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Introdução
Rede, estrutura reticular, malha, teia são as novas metáforas que surgem nesse final de
século, substituindo o modelo do telégrafo que ao longo de décadas serviu, de maneira
explícita ou implícita, para nomear e representar o funcionamento dos meios de
comunicação na sociedade. Debruçarmo-nos sobre essa substituição dos modelos torna-
se, portanto, um exercício interessante. Neste sentido, quero iniciar minha reflexão
ressaltando a pertinência e importância não apenas da iniciativa deste evento –
Seminário Interprogramas -, mas também das temáticas recortadas, e em particular desta
que tratamos hoje – redes de comunicação, a comunicação em rede. Trata-se de uma
temática relevante, porque está na ordem do dia; uma temática suspeita, porque está
excessivamente na ordem do dia.
Por outro lado, o modismo às vezes provoca aplicações mecânicas, soluções rápidas e
fáceis – e o conceito se torna auto-evidente. Por esse caminho, as modas teóricas podem
levar ao empobrecimento da reflexão. De qualquer maneira, um e outro aspecto (a
contribuição e os riscos da temática) confluem, reforçando a pertinência de colocá-la em
discussão. Esse é o caso da temática que motiva hoje nossos debates.
*
Trabalho apresentado no 1º Seminário Interprogramas de Pós-Graduação em Comunicação, promovido
2
A temática das redes possui uma dupla natureza – ou possibilita duas formas de
abordagem.
Naturalmente essa dimensão empírica da noção de rede se abre para um sem número de
objetos de estudo: o funcionamento das redes telemáticas, a criação dos espaços
virtuais, as novas formas de sociabilidade, as relações global/local, as artes digitais etc...
Indo mais além, o conceito de sociedade em rede, ou sociedade informacional tem sido
reivindicado por alguns autores1 para caracterizar as transformações atuais e nomear a
nova forma de organização social: “..... a informação representa o principal ingrediente
de nossa organização social, e os fluxos de mensagens e imagens entre as redes
constituem o encadeamento básico de nossa estrutura social”2.
Numa primeira definição, resgatando seu sentido mais literal, rede se refere a um
entrelaçamento de linhas, a um conjunto de nós interconectados. Rede assim remete à
forma, à morfologia de um sistema. Comunicação em rede, sociedade em rede são
Aí então faço a pergunta óbvia (com o objetivo de provocar meu próprio pensamento):
A resposta também óbvia é que a noção de rede é adequada para pensar a estruturação
da sociedade hoje – como sempre foi. A vida social é morfologicamente disposta
enquanto rede (ou se presta muito bem para ser pensada assim). Portanto, ao falar do
contemporâneo, das profundas transformações que temos assistido nas últimas décadas,
precisamos ter claro que o elemento distintivo não é bem este; o novo não é a
configuração em rede (poderíamos dizer isto, ou olhar assim para outras situações e
agrupamentos sociais3) – mas estaria antes no desenho e extensão das redes, na
diversidade dos cruzamentos, na quantidade / qualidade dos elementos conectados ou
desconectados, na sua dinâmica espaço-temporal.
Então, constatar a rede é muito pouco. O desafio que está colocado hoje – e
notadamente para nós, no domínio da comunicação - são os operadores teórico-
metodológicos que nos permitam compreender, de forma adequada, o funcionamento e
a lógica das dinâmicas relacionais do mundo contemporâneo. A noção de rede – na
acepção de rede de sentidos, rede de informações, rede de homens – é preciosa porque
nos incita a pensar nos nós, conexões, interseções, inclusões e exclusões que se
processam no âmbito das práticas sociais, realizadas comunicativamente. É preciso
perguntar, no entanto, pelo avanço dos nossos instrumentos analíticos para empreender
sua efetiva aplicação, para transformar a metáfora ou imagem da rede em dispositivo
analítico que de fato nos possibilite uma outra e mais rica incursão e leitura da
realidade. Esta indagação suscita uma rápida retrospectiva (o “antes da rede”).
2
Idem, p.505.
3
Nas culturas indígenas, por exemplo, a interligação mágico-religiosa que unifica os seres vivos (homens,
animais e plantas) e as forças cósmicas e naturais – quebrando a idéia de individualidade e constituindo
uma totalidade complexa – apenas pode ser compreendida sob a forma de rede, de teia simbólica.
4
Se hoje absorvemos com naturalidade a idéia de rede, é preciso lembrar que ela
contrasta fortemente com a maneira como o processo comunicativo era percebido até
bem pouco tempo atrás. Do paradigma informacional de Shannon e Weaver (1948),
passando por vários outros modelos e metáforas – modelo telegráfico, modelo da agulha
hipodérmica, a pergunta-definição de H. Lasswell, a comunicação em duas etapas de P.
Lazarsfeld – a comunicação veio sendo estudada e compreendida de forma quase
hegemônica neste século não como rede, mas como vetor; como um fluxo linear de
informações entre um Emissor (E) e um Receptor (R).
Não por acaso, no mesmo momento a sociedade era representada pela sociologia
positivista através da metáfora do organismo. Era um outro tempo, em que os Estados
Nacionais queriam se pensar como um corpo unificado, regido pelos princípios da
divisão de funções, integração e harmonia. Os fluxos lineares de comunicação (como
comandos cerebrais), atuavam no sentido dessa unificação das partes do corpo social
(para o bem, ou para o mal ...)
clássico estudo Réquiem para os media 4. Mais recentemente L. Sfez fala da bola de
bilhar5. Obras literárias – 1984, Farenheit 451 – enfatizam o papel da tecnologia da
comunicação na criação de sociedades totalitárias.
4
BAUDRILLARD, J. Para uma crítica da economia política do signo. São Paulo: Martins Fontes,
1972.
5
‘Tudo se passa como se o mecanismo de ligação fosse extremamente simples: como uma bola num
flipper. Introduz-se a bola num circuito (aqui denominado “canal”), e ela atinge seu alvo (o receptor) o
qual a devolve, no momento oportuno, através de intermediários. Emissor, canal, receptor. Dentro, uma
mensagem.” In: SFEZ, L. Crítica da comunicação. São Paulo: Loyola, 1994, p. 41.
6
“Simmel foi acusado de uma certa fragmentação nas suas análises. Ele abordava a
realidade social ora de uma perspectiva, ora de outra, cada vez focalizando apenas um
fenômeno, tipo ou processo social. Com tal prática, a realidade emergia de seus textos
como um punhado de estilhaços de vida e migalhas de informação, longe dos modelos
completos, abrangentes, harmoniosos e sistemáticos de “ordem” ou “estrutura social”
oferecidos por outros sociólogos considerados de rigueur pelas ciências sociais da
época. (.........) Hoje vemos que a “fragmentação” das análises de Simmel era algo sob
medida para a condição humana que ele, ao contrário dos colegas, percebia por trás da
fachada das ambições totalizantes dos poderes instituídos; (.........). Pode-se dizer que
Simmel desmascarou a imaginada totalidade numa época em que a maioria dos
contemporâneos ainda lhe cantava louvores.” 6
O panorama hoje é outro – e essas contribuições já são bem vindas. Tendências mais
recentes (alimentadas sobretudo pelos estudos culturais ingleses, pelo pós-
estruturalismo, por uma sociologia do cotidiano, entre outras) vêm questionar a
simplificação promovida pelo modelo informacional (a metáfora do telégrafo) e
enfatizar o papel ativo dos receptores, a natureza produtiva do consumo, as complexas
mediações culturais.
Nem tudo é tão simples. Com esse breve percurso na nossa tão conhecida história das
teorias da comunicação, quis ressaltar minha preocupação com o “impressionismo” do
real (o peso da técnica “marcando” o modelo conceitual). Como registrei no início,
nossos modelos teóricos devem poder ir além da descrição dos novos cenários, e evitar
os riscos das aplicações mecânicas. As modificações na realidade exigem também o
desenvolvimento dos nossos instrumentos conceituais, que não podem simplesmente
reiterar as mudanças, mas devem ser capazes de compreendê-las. Como diz E. Morin, é
7
6
BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 196-197
7
“Mas a diferença aqui é precisamente o paradigma. Não se trata mais de obedecer a um princípio de
ordem (excluindo a desordem), de claridade (excluindo o obscuro), de distinção (excluindo as aderências,
participações e comunicações), de disjunções (excluindo o sujeito, a antinomia, a complexidade), ou seja,
um princípio que liga a ciência à simplificação lógica. Trata-se, ao contrário, a partir de um princípio de
complexidade, de ligar o que estava separado.” In: MORIN, E. La méthode. 1. La nature de la nature.
Paris: Seuil, Col. Points, 1977, p. 23.
8
“Para dizer em outros termos, é preciso elaborar um saber “dionisíaco” que se aproxime o máximo
possível de seu objeto. Um saber capaz de integrar o caos ou pelo menos de lhe atribuir o lugar que é o
seu. Um saber que possa, por mais paradoxal que pareça, traçar a topografia da incerteza e do aleatório,
da desordem e da efervescência, do trágico e do não-racional. Todas as coisas incontroláveis,
imprevisíveis, mas nem por isto menos humanas. Todas as coisas que, em graus diversos, atravessam as
histórias individuais e coletivas. Todas as coisas, pois, que constituem a via crucis do ato de
conhecimento.” In: MAFFESOLI, M. Eloge de la raison sensible. Paris: Grasset, 1996, p. 13.
9
RODRIGUES, A.D. Estratégias da comunicação. Lisboa: Presença, 1990.
10
“A rede rodoviária é constituída por uma multiplicidade de nós ou de pontos definidos pela sua
natureza ambivalente, dado que cada materialidade singular, cada nó, é ao mesmo tempo ponto de
chegada, ponto de partida e local de passagem. Qualquer nó rodoviário é ponto de chegada de um
percurso antecedente e ponto de partida para um percurso subsequente.” (Rodriques, 1990-b, p. 14)
11
“O jogo de xadrez ajudará a compreender outros aspectos dessa lógica tabular. Apesar de o número das
peças e de as regras que regulam a sua deslocação no decorrer da partida permanecerem inalterados,
enquanto regime abstracto de determinações absolutas e indiscutíveis, o jogo desenrola-se entre um ponto
8
jogo das probabilidades, pelos processos seletivos de escolha, pela tensão determinação
/ indeterminação.
No entanto, não é esse desenho – marcado pelas injunções, pelo aleatório e pela
presença de singularidades complexas – que o mesmo autor utiliza, ao falar da nova
sociedade da informação e das novas sociabilidades12. Ao contrário, ele identifica uma
realidade cindida, ou dois domínios distintos da experiência: no que tange ao domínio
dos meios eletrônicos de informação, estaríamos vivendo processos de transmissão
unilateral ou unidirecional de saberes – relações de informação. No domínio da
experiência cotidiana, das relações interpessoais e na esfera das tradições realizar-se-
iam efetivas relações de comunicação.13 Essa leitura – de tom maniqueísta - não
conjuga os entroncamentos, o jogo das posições e a presença do imponderável trazidos
pelas duas imagens evocadas. Ou seja: estou chamando a atenção para o fato de que não
necessariamente as imagens da complexidade (que são da ordem da abstração) se
traduzem ou se vêem refletidas em nossos trabalhos analíticos mais específicos.
zero e um ponto de determinismo total, entre o primeiro e o último lance. Entre estes limites, os limiares
inferior e superior de determinação, realizam-se estados diversos de saturação relativa das probabilidades
de escolha dos jogadores. Cada lance altera a configuração do todo mas é determinado pela disposição
que resulta das posições precedentes.” (Rodriques, 1990-b, p. 16)
12
RODRIGUES, A.D. Comunicação e cultura. A experiência cultural na era da informação. Lisboa:
Presença, 1993; RODRIGUES, A.D., As novas fronteiras culturais das tecnologias da informação. In:
Comunicação & Política na América Latina,ano XIII, nº 22-23-24-25. São Paulo, CBELA, 1993.
13
Essa distinção entre relações de comunicação (bilaterais) e relações de informação (unilaterais) foi
bastante explorado por autores latino-americanos na década de 70, dentre os quais destacamos o trabalho
A. Pasquali, da Venezuela.
14
LEVY, P. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
9
emissor, nem o receptor, mas sim o hipertexto. Este se torna então a metáfora da
comunicação – e é regido por alguns princípios abstratos:15
- princípio de heterogeneidade;
- princípio de multiplicidade e de encaixe de escalas;
- princípio de exterioridade;
- princípio de topologia;
- princípio de mobilidade dos centros.
Então Levy promove sem dúvida ênfases pertinentes – mas faz isso com prejuízo de
outros aspectos. Realçando a força das imagens, dos sentidos construídos, da produção
de textos, ele conclui: “podemos certamente afirmar que o contexto serve para
determinar o sentido de uma palavra; é ainda mais judicioso considerar que cada palavra
15
Op.cit., pp. 25-26.
10
contribui para produzir o contexto”16. Aqui ele está deslocando a perspectiva (já
consensual) de que as palavras ganham seu sentido (e devem ser analisadas) em
contexto, e chamando a atenção para o outro lado: para a dimensão de realidade das
formas simbólicas, para o fato de que as imagens produzidas / disseminadas ganham
vida própria e atuam nos seus ambientes. A colocação é apropriada17 – mas
insuficiente, se não vem acompanhada por outras perguntas: quem diz a palavra, e para
quem? Como se posicionam os atores nesse processo produtivo? Como se dá a
intervenção dos homens estabelecendo as conexões, fazendo escolhas, esquivando-se de
alguns sentidos, perseguindo outros? São essas as perguntas que seu modelo não
formula.
Resumindo, então, as críticas ou inquietações provocadas por tal modelo – que tomei
como referência, mas podem ser estendidas a outros autores e ao uso mais corrente da
noção de rede - destacamos os seguintes pontos:
- ênfase excessiva nas vias mediadoras (vias de acesso) em detrimento do estudo dos
processos relacionais estabelecidos (que tipo de relação está sendo vivenciada; que
tipo de uso, de apropriação dos materiais e das posições; quem está de um lado,
quem está de outro etc.);
16
Levy, op. cit., p. 24.
17
Podemos lembrar Neruda: “SIM SENHOR, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as
que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as,
derreto-as ... (.....) Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar
ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ...
Têm sombra, transparência, peso, plumas, pelos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo
rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ...” (NERUDA, P. Confesso que vivi. São Paulo:
Difel, 1982. 15ª ed., p.51)
11
Esse quase enrijecimento na aplicação da noção de rede pode ser percebido em certas
afirmativas de outros autores, que acabam com isto construindo visões totalizantes e
homogeneizadoras - e expulsando as ambivalências e o contraditorial.
Como exemplo, remeto-me ainda a duas colocações de Castells. A primeira diz respeito
à discussão que ele faz sobre espaço, e à identificação e distinção (interessante e
apropriada) entre “espaço de lugares” e “espaço de fluxos”. Ao tecer essa distinção, o
autor não apenas aponta uma realidade cindida e uma relação de oposição entre esses
diferentes espaços - “uma esquizofrenia estrutural entre duas lógicas espaciais que
ameaça romper os canais de comunicação da sociedade”18– como registra a tendência a
uma subjugação e substituição do espaço de lugares pelo espaço de fluxos. Há que se
tomar essa discussão com mais cuidado – a criação de antinomias, bem como o
ofuscamento da criatividade e resistência que marcam a intervenção cotidiana dos
homens impede a compreensão dos movimentos, das formas ambivalentes de
convivência, da hibridação das experiências.
Uma segunda colocação refere-se ao grau de determinação que esse autor atribui às
redes e à tecnologia da informação:
“.... essa lógica de redes gera uma determinação social em nível mais alto que a dos
interesses sociais específicos expressos por meio das redes: o poder dos fluxos é
mais importante que os fluxos do poder.” (19grifo nosso)
Não posso aqui me alongar muito nessa discussão, mas quero pelo menos registrar o
que considero três pecados capitais incorridos pela afirmação acima:
18
Castells, op. cit., p. 451.
19
Castells, op. cit., p. 497.
12
- por outro lado, no que ele tem de interessante, esse jogo de palavras – “o poder dos
fluxos é mais importante que os fluxos do poder” – não diz nada além do que já
disse McLuhan, com sua célebre frase “o meio é a mensagem”;
Com estas críticas não quero invalidar o uso ou as possibilidades da noção de rede, mas
apontar os riscos das aplicações mecânicas.
Buscando então a noção de rede não como modelo que enquadra, mas como noção que
abre pistas e possibilidades de leitura, fazemos apelo agora à instigante contribuição de
M. Serres, (num texto publicado em 1964 - A rede de comunicação: Penélope, -
anterior, portanto, à realidade das redes digitais), em que ele opõe à linearidade do
argumento dialético tradicional (guiado por uma cadeia unívoca de determinação), um
modelo de representação em forma de rede:
1. Enquanto o modelo dialético tradicional supõe que existe apenas um caminho para
ir de um elemento a outro em uma dada situação (estabelecendo, portanto, uma
20
In: SERRES, M. A comunicação. Porto: Rés, s/d., p. 7.
21
Os itens abaixo foram apresentados pelo autor no texto citado (pp. 8-15); a citação / recorte do texto
original (itálico) foram feitas de forma mais ou menos livre.
13
relação unilinear), o diagrama em rede indica que as vias mediadoras são plurais
e complexas – e um caminho (ou caminhos) é escolhido entre outros possíveis, num
movimento tanto marcado pelo aleatório quanto pela decisão e seleção (a mediação
única é substituída pela seleção de uma mediação entre outras). É importante
registrar que, além da pluralidade das vias, essa premissa ressalta o processo de
escolha;
3. Uma vez que cada vértice, ou ponto, pode ser plurideterminado, e sofre a influência
das interseções que o atravessam, portanto também dos outros pontos, podemos
concluir que a situação dos elementos na rede é instável – e cada um tem seu poder
avaliado segundo uma situação de reciprocidade, no contexto dos diferentes
posicionamentos e face à rede do jogo contrário. Donde cabe perguntar, no
momento da análise: qual é esta situação? Como estão se dando / evoluindo os
posicionamentos?
Essa discussão trazida por Serres se apresenta como uma matriz epistemológica bem
mais rica e complexa, abrindo-se para as ambivalências, para o móvel, para a diferença.
As pistas que oferece podem nos ajudar na superação definitiva do modelo redutor
através do qual sempre pensamos a comunicação – e a ultrapassar o pensamento
simplificador. Ela abre caminhos, e nos incita a novas buscas.
Nessa perspectiva, a noção de rede se apresenta como uma metáfora promissora – que
aparece e ganha pertinência enquanto princípio de inteligibilidade, uma nova ordem
lógica que indica uma outra forma de aproximação da concretude dos fenômenos
comunicativos. A comunicação, que não pode ser explicada como relação unilateral
entre dois pólos, também não se reduz à intertextualidade (que é apenas um de seus
aspectos).
Levando adiante a crítica feita a Levy – e tirando dela suas consequências – realçamos a
importância de não tomar a rede como algo em si (o que seria hipostasiar a forma), mas
como o viés adequado para apreender a dinâmica relacional que marca os processos
15
Por último, queremos lembrar que entrada na rede supõe “cortes”- a ênfase em um
ponto, a escolha de um ou mais fluxos com temporalidade e mediações variadas. A
rede é uma abstração, que se realiza em situações particulares. Então nosso trabalho de
análise, se quer escapar ou ir além das grandes generalizações, deve fazer cortes, ir em
busca dos fenômenos na sua dimensão empírica – o que significa recortar situações
específicas, objetos específicos, produtos, relações. O trabalho de apreensão, de
interpretação, assim, tem início com uma escolha, com o recorte de nosso objeto – para
então percebê-lo não como um “em si”, mas como um elo, um nó, um vértice,
atravessado por vários caminhos, na grande rede do social.
Um estudo de caso
Até então vim desenvolvendo uma reflexão mais abstrata, promovendo a discussão de
uma matriz paradigmática. Para dar um pouco mais de concretude a essas questões (ou
possibilidades de caminho) falarei muito rapidamente de um projeto de pesquisa do qual
participo, e de como viemos buscando construir nosso problema à luz das preocupações
formuladas por um modelo diagramático, ou por um paradigma relacional. O projeto –
entitulado Imagens do Brasil: modos de ver, modos de conviver22 - se constrói em torno
da construção discursiva das relações de identidade e alteridade no contexto da
sociedade brasileira, e trabalha com diferentes recortes empíricos. Um desses recortes
refere-se a uma favela de Belo Horizonte (o Aglomerado da Serra) tomada enquanto
“lugar de fala”23. Buscamos flagrar as diferentes situações em que o favelado –
claramente o “outro” dentro do grande “nós” da identidade brasileira – se coloca não
como o “falado”, o referente de construções externas de representação, mas como
22
Este projeto vem sendo desenvolvido pelos pesquisadores do GRIS (Grupo de Estudo e Pesquisa sobre
Imagem e Sociabilidade), da FAFICH/UFMG, e conta com auxílio do CNPq e FAPEMIG.
23
Usamos o conceito de “lugar de fala” da forma como foi discutido por J.L. Braga, enquanto lugar de
integração entre fala (o enunciado, ou discurso), textos disponíveis (intertextualidade) e situação (evento).
“... esse ‘lugar de significação’ não é inteiramente pré-existente à fala: ele se constrói na trama entre a
situação concreta com que a fala se relaciona, a intertextualidade disponível e a própria fala como
dinâmica selecionadora e atualizadora de ângulos disponíveis e construtora da situação interpretada.”
BRAGA, J.L. Lugar de fala como conceito metodológico no estudo de produtos culturais e outras falas.
In: FAUSTO NETO, A. e PINTO, M. (org.). Mídia e cultura. Rio de Janeiro: Diadorim – Compós,
1997, p. 107.
16
- uma rádio (a rádio Favela FM), sediada no Aglomerado, que se apresenta como “a
voz da periferia”; pretende falar o “favelês”; tem uma página da internet; trata das
questões do cotidiano da favela e discute temáticas tais como violência, drogas,
cidadania, vivência urbana;
Ouvi em algum lugar (acho que a expressão de uma criança) uma definição curiosa de
rede: “rede é um monte de buracos costurados juntos”. É engraçado pensá-la assim – já
que essa “definição”, assim como aqueles quebra-cabeças infantis que brincam com a
forma e o fundo, inverte a ênfase do olhar – dos fios para os “buracos”. Pode ser rico
pensá-la desta maneira, brincar com a inversão – tomando os buracos não como vazios,
mas potencialidades que se realizam (ou não) nessa costura transformadora, que é a
relação com o outro, o viver em sociedade.