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A citação em epígrafe deve alertar-nos desde já para esta Pessoa, O Desconhecido de Si Mesmo - e diz respeito ao
coisa curiosa: tão longe levou Pessoa o seu "fingimento" que Pessoa do Cancioneiro :
pôs os heterónimos a falar uns dos outros - de todos, terá
sido porventura Campos o que melhor o conheceu, ao ponto "O Cancioneiro: mundo de poucos seres e muitas som­
de, para grande arrelia de Ophélia Queiroz, se ter intrometido bras. Falta a mulher, o Sol central. Sem mulher, o universo
por diversas vezes no seu namoro com o Fernando ... sensível desvanece-se, não há nem terra firme nem água nem
E, porque assim é, vamos considerar que o Pessoa ele­ incarnação do impalpável. Faltam os prazeres terríveis. Falta a
-mesmo ou ortónimo é também elo de uma constelação de paixão, esse amor que é desejo de um ser único, qualquer
poetas que de comum têm, por exemplo, a enorme admira­ que seja. Há um vago sentimento de fraternidade com a
ção pelo "mestre" de todos eles, Alberto Caeiro . Assim sendo, Natureza: árvores, nuvens, pedras, tudo suspenso num vazio
se os chamados heterónimos são "outros nomes/personalida­ temporal. Irrealidade das coisas, reflexo da nossa irrealidade.
des/máscaras"(1) de Fernando Pessoa, também este é más­ Há negação, cansaço e desconsolo. (...)"
cara, heterónimo dos outros - do "mestre" Caeiro, de
Campos, de Reis, etc. Os dois textos que acabo de transcrever apontam para um
Sobre a poesia do Cancioneiro, assinada pelo seu autor, Fernando Pessoa - sombra, ausência, sol idão, desamparo,
Fernando Pessoa, passo a transcrever duas citações . A pri­ desconsolo. Apontam também para algumas dessa ausên ­
meira, de Isabel Pascoal, na sua edição de Poemas de F. cias, sobretudo o texto de Octavio Paz: a da mulher, a dos
Pessoa (colecção Textos Literários, Ed. Comunicação): prazeres, a da paixão.

"Privado do mundo, ausente de si, Fernando Pessoa O que dizem os dois autores é basicamente verdade. No
revela-se - quando percorremos os dados da sua biografia ­ entanto, se a mulher está quase ausente nos versos do
como o lugar da deserção do "eu ", esse lugar onde se arrisca Cancioneiro, há, pelo menos, um belíssimo poema, resplan­
progressivamente uma solidão essencial, no sentido de decente de erotismo (o erotismo eventualmente reprimido do
Blanchot, e se vislumbra a perda, narcísica e dramática, de si homem Fernando Pessoa iria "explodir" em Campos, sobre­
e do mundo, na ambivalência que se joga entre escrever e tudo nas odes "Triunfal" e "Marítima"). Assim, e antes de mais,
viver." não resisto a transcrever esse poema:

A segunda citação integra o também já referido livro de Dá a surpresa de ser.


Octavio Paz, Prémio Nobel da Literatura, no seu Fernando É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
(1) Ainda não referi o facto de o nome de Pessoa - persona - significar em
latim máscara teatral usada pelos actores. Então, os heterónimos seriam per­
sonae do mesmo autor - cujo nome, em francês - personne - significa, por
sua vez, ninguém .

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Seus seios altos parecem
busca de um outro lugar, um qualquer local esotérico(1 }, cum­
(Se ela estivesse deitada)
prindo uma missão de que teria sido encarregado por um "Rei
Dois mantinhas que amanhecem
desconhecido" .
Sem ter que haver madrugada.
E tudo em versos oscilando entre o respeito pelas estrutu­
ras versificatórias tradicionais e o "livre", como os que consti­
E a mão do seu braço branco tuíram os poemas daquilo que podemos designar de fase
10 Assenta em palmo espalhado experimental, no período de busca de uma poética que pas­
Sobre a saliência do flanco sou por vários -ismos, como referi no Capítulo Quarto, e cul­
Do seu relevo tapado. minou com a sua teoria e prática do "fingimento" poético.
Versos - todos eles, dos mais musicais da nossa poesia de
Apetece como um barco. língua portuguesa, eufónicos, graças aos ritmos, aliterações,
Tem qualquer coisa de gomo. onomatopeias e outros recursos fónicos.
15 Meu Deus, quando é que eu embarco? Mas para melhor conhecer este poeta há que lê-lo. Vou
Ó fome, quando é que eu como? propor que leiam comigo alguns dos poemas mais belos do
Cancioneiro. (Será que o leitor se importará que me dirija
Mas a ausência da mulher, da paixão veemente, como as directamente a si, tratando-o por tu ­ é que, como se diz num
restantes ausências referidas por Octavio Paz, é um facto. Tal verso de Jacques Prévert, "digo tu àquilo que amo ... " ­ seNe,
como são factos a tristeza ou vaga melancolia, o cepticismo, como desculpa? Então vou fazê-lo.)
o sentimento de saudade, particularmente da infância, e da
vida instintiva do "gato que brinca(s) na rua", a música, pre­ Ela canta, pobre ceifeira,
sença inefável e fugidia, o sentimento de vazio e da opacidade Julgando-se feliz talvez;
do real Oá presente, por exemplo, nos "Pauis"), o sentimento Canta, e ceifa , e a sua voz, cheia
de ser "estrangeiro", "alheio", sentimento gerador de estra­ De alegre e anónima viuvez,
nheza, de perplexidade; também a angústia, a inquietação, as
contradições, o tédio, a náusea, o cansaço . E ainda a busca Ondula como um canto de ave
~I
do refúgio possível - o sonho; ou então o sentimento e von­ No ar limpo como um limiar,
tade de "abdicar", de desistir, de se resignar. E a dificuldade E há curvas no enredo suave '11
de distinguir sonho e realidade, a consciência da enorme dis­ Do som que ela tem a cantar.
tância entre o que se sonha e o que se realiza, o tudo e o
nada. E o tema, recorrente em Pessoa ortónimo - também, II
Ouvi-Ia alegra e entristece,
mais tarde, em Campos -, da dor de pensar, de ser lúcido, de 10 Na sua voz há o campo e a lida, I
não conseguir "a alegre inconsciência" da ceifeira e simultanea­
mente "a consciência disso" - desejo impossível de realizar, já
que "a ciência pesa tanto e a vida é tão breve". Também 8. (1) Ver nota da p. 116.
E ca nta como se tivesse anulada pela intromissão de um ponto de vista subjectivo e
J\llais razões p'ra cantar que a vida. valorativo por parte do Eu poético (ou, como hoje se diz do
sujeito da enunciação), presente em formas de um discurso
Ah, canta, canta sem razão! dubitativo, modalizante, como em ''julgando-se feliz, talvez", o
O que em mim sente 'stá pensando. "pobre ceifeira", a referência à "alegre e anónima viuvez".
15 Derrama no meu coração Na segunda quadra a descrição do canto assume grande
A tua incerta voz ondeando! beleza nas imagens - "Ondula como um canto de ave" ­
associada a grande beleza fónica conseguida pelo ritmo
Ah, poder ser tu , sendo eu! ondulatório(1) desse mesmo verso e de toda a quadra em
Ter a tua alegre inconsciência, geral, pelas aliterações "como um canto", ou, mais adiante,
E a consciência disso' Ó céu' "ar limpo como um limiar"; as assonâncias em nasais: Ondula,
20 Ó campo! Ó canção' A ciência canto, limpo, limiar, e em timbres abertos das vogais: ave, ar,
limiar, suave, cantar.
Pesa tantO e a vida é tão breve'
Entrai por mim dentro' Tornai Face à suavidade do canto, a sua repercussão sobre o Eu,
Minha alma a vossa sombra leve! na terceira quadra: "Ouvi-Ia alegra e entristece". (De passa­
Depois, levando-me, passai' gem, e se ainda não notaste, repara nesta antítese - tão "anti­
tética" como é paradoxal o canto alegre numa voz que
(91 4) poucas razões teria para cantar - uE canta como se
tivesse/Mais razões para cantar que a vida".)
Como é de imediato possível ver, este poema apresenta
uma versificação regular: seis quadras rimadas, com versos A segunda parte, constituída pelas três últimas quadras,
regulares de 8 sílabas métricas. Trata-se de um poema ainda apresenta um tom diferente. Neste momento, o Eu poético vai
ligado, um pouco, ao interseccionismo que, na altura, Pessoa dirigir-se directamente ao tu (a mudança do ela ao tu implica
ensaiava com "Chuva Oblíqua". Mas neste poema o intersec­ necessariamente uma aproximação do Eu à ceifeira) em lin­
cionismo não é só exercício de estilo (também não era só isso
em "Chuva Oblíqua", mas neste é mais possível verificá-lo,
como vamos ver.)
É possível encontrar dois momentos ou partes na constru­ (1)
ção deste poema, ocupando cada uma das partes 3 quadras. ~
Assim, numa primeira parte, a focalização incide sobre o ~
Ondula como um canto de ave E há curvas no enredo suave
canto da ceifeira - um ela canta; assume-se uma tentativa de
descrição, logo na primeira quadra do canto (daí a pontuação ~ ~
lógica e as formas de presente do indicativo), tentativa logo No ar limpo como um limiar Do som que ela tem a cantar
guagem fortemente emocionada (a pontuação passa de á canção!" (repare-se nesta espécie de olhar descendente na
lógica a emotiva, com base no ponto de exclamação, em gradação dos substantivos) e prosseguida na última quadra _
frase exclamativas que substituem as declarativas da primeira "Entrai por mim dentro! Tomai/Minha alma a vossa sombra leve!"
parte); os verbos passam às formas próprias do apelo: impe­ - este é também um desejo de dispersão, de aniquilamento
rativo, principalmente (canta, derrama, entrai, tomai, passai) e que culmina no verso final: "Depois, levando-me, passai!".
infinitivo pessoal, implicando um desejo (poder ser tu, ter a tua
alegre...). (Como se vê começa a ser possível dar razão ao que
Quais os apelos? Quais os desejos de um ser que se eu disse antes sobre a poesia ortónima do Cancioneiro.
afirma "cansado" e a necessitar de um bálsamo para o seu Além do mais é um poema lindíssimo, não é? Mas isso
coração (v. 16)? vou eu dizer de quase todos, por isso não fiques já
Um primeiro desejo: "Canta, canta, sem razão!", seguido impressionado... )
de "Derrama no meu coração/ A tua incerta voz ondeando!" ­
este é, ainda, um desejo viável e "sensato". Mas segue-se um Vejamos mais alguns poemas em que o "motivo " da
segundo desejo: "Ah poder ser tu, sendo eu!" - esta vontade música está presente. Vamos começar por dois deles, igual­
de permuta é tornada inviável porque paradoxal (da ordem do mente belos:
chamado oxímoro). E depois: 'Ter a tua alegre inconsciên­
cia/E a consciência disso!" - novo desejo paradoxal.
E porquê tal impossibilidade? O poeta vai dizendo: É que Leve, breve, suave,

"O que que em mim sente 'stá pensando" - o pensamento Um canto de ave

racional está na origem do ser incapaz de verdadeiramente Sobe no ar com que principia

sentir, sensitivamente, instintivamente(1l, como quem desco­ O dia.

bre o mundo sem preconceitos, sem nada dele saber. Mais 5 Escuto, e passou ...

abaixo continua o poeta: '~ ciência pesa tanto e a vida é tão Parece que foi só porque escutei

breve!" - constatação amarga que parece reforçar a tal dor Que parou.

de pensar, de ser lúcido, tema condutor deste belíssimo


poema. Nunca, nunca, em nada,

Raie a madrugada,

Perante os factos, a vontade de intersecção, iniciada no 10 Ou 'splenda o dia , ou doire no declive,


final da quinta quadra, com a exclamação: "á céu!/á campo! Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.
(1) Seria interessante que lesses também o poema "Gato que brincas na rua".
Procura-o numa boa Antologia. (913)
Trila na noite uma flauta, É de algum nia, com a mudança expressa nos timbres vocálicas fechados
Pastor? Que impo11a? Perdida em -ui-ou ("Escuto, e passou"), Neste verso há também
Série de notas vaga e sem sentido nenhum, uma espécie de infracção sintáctica, ao associarem-se os
Como a vida, tempos verbais de presente "Escuto" (e escutar implica um
"ouvir atentamente", reparando no que se ouve) e de pas­
Sem nexo ou princípio ou fim ondeia sado - "passou", Ao associar assim os dois tempos,
A ária alada , marca-se a simultaneidade das acções de escutar (do Eu) e
Pobre ária fora de música e de voz tão cheia de passar (do canto). Ou seja, insinua-se claramente que foi
De nào ser nadai o esforço de atenção que estragou a impressão captada
inconscientemente pelos sentidos e que era de encanta­
Não há nexo ou fio por que se lembre aquela mento inconsciente (e aproximamo-nos assim do tema pre­
10 Ária , ao parar; sente no poema da "Ceifeira"), Esta ideia é reforçada nos
E já ao ouvi-la sofro a sa udade dela dois versos seguintes: "Parece que foi só porque
E o quando cessar. escutei/ Que parou".

A segunda estrofe, como a an terior em 7 versos de


Vamos, então, ao primeiro destes dois poemas: métrica irregular, alternando versos relativamente longos (por
exemplo, os 3,° e 6,°, de 10 sílabas) com versos muito curtos,
Se o ouvires ler em voz alta, vais, de certeza, ser sensível à de 1 ou 2 sílabas ("Ti(ve)" - "Gozar"), com reflexos sobre o
extrema musicalidade de que é feito, Tal musicalidade é con­ ritmo, visíveis igualmente na mancha gráfica, é toda ela mar­
seguida pela harmonia dos timbres vocálicas, abertos nos cada por sinais de disforia, de negatividade - começando pela
quatro primeiros versos, alternando os timbres em -a e os tim­ sucessão de advérbios de negação do primeiro verso:
bres em -ia. À harmonia destes timbres, vêm acrescentar-se "Nunca, nunca, em nada" e continuando pelas antíteses (mar­
as aliterações em -v e por vezes a rima interior (Leve, breve, cadas igualmente a nível de timbres vocálicas abertos/fecha­
suave - ave), O próprio desenho da mancha gráfica do dos) "Raie a madrugada/ Ou 'splen da o dia, ou doire no
poema aponta para uma atmosfera de harmonia e ritmo declive" (notar também o jogo de aliterações em -cf) e pelo
ondulatório, a que vem acrescentar-se o significado dos reforço de palavras de conotação negativa (nada, perda) e
adjectivos (neste caso os três adjectivos iniciais) utilizados. culminando com a confissão de um total desencanto: como
Nos quatro primeiros versos, de facto, impera um clima geral se de uma maldição se tratasse (porque pensa, porque não é
de eufonia (harmonia fónica) e de euforia (alegria) propiciado inconsciente), a impossibilidade de ter prazer a durar antes de
pelo canto matinal da ave. o ir gozar, Temas presentes neste poema são naturalmente o
da dor de pensar, de ser lúcido, o da perda (da inocência),
Mas, bruscamente, o quinto verso vem romper a harmo­ o da incapacidade de fruir, senão por breves instantes, do

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prazer inefável da música e da harmonia por ela proporcio­ Tudo aponta, então, para a recorrência dos temas da
nada.(1) perda, da dor de pensar, da impossibilidade de fruir, de
gozar - e é em tom de desalento que confessa: "E já ao ouvi­
Os mesmos temas estão presentes no segundo dos poe­ -Ia sofro a saudade delalE o quando cessar." É que sabe,
mas transcritos, o "Trila na noite uma flauta". De novo, o porque é consciente, lúcido, e não instintivo e sensitivo como
"motivo" condutor - o da música que se ouve na noite. De a ceifeira ou o "gato que brinca(s) na rua/como se fosse na
novo, a extrema eufonia presente, por exemplo, na sucessão cama", que o prazer não dura e dele nada resta, nem a
de consoantes vibrantes e líquidas: Trila/flauta; nas aliterações memória, visto que tudo passa.
em nasais e assonâncias (provenientes da sucessão de tim­
bres dos ditongos ditos "doces", -oi/-au: na noite uma flauta. Mas vou ainda dar a conhecer um outro poema de motivo
De notar também alguma irregularidade métrica e o facto de o musical, o "Pobre velha música!".
poeta recorrer por vezes ao processo de enjambement (em
português, "encavalgamento" ou transporte) de versos, como Pobre velha música!

em: "é de algum/Pastor?" e, de um modo geral, nos restan­ Não sei porque agrado,

tes. Enche-se de lágrimas

Outro processo fónico que se repete é o do ritmo ondula­ Meu olhar parado.

tório e das assonâncias e aliterações presentes sobretudo nos


1.° e 2.° versos da 2. a quadra - ondeiala ária alada. Passando Recordo outro ouvir-te.

à esfera do sentido, proporcionado, mas não apenas, por Não sei se te ouvi

estes recursos fónicos, desde o início, e após a breve suges­ Nessa minha infância

tão musical da flauta que trila na noite em movimentos ondu­ Que me lembra em ti.

latórios, a intromissão (intersecção?) do pensar, presente na


pergunta: "é de algum/Pastor?" - E após tal intersecção do Com que ãnsia tão raiva
pensar no sentir (com os sentidos), a constatação do fra­ 10 Quero aquele outrora!

casso, da perda, primeiramente no desalento presente no E eu era feliz? Não sei:

"Que importa?" e depois nas marcas de negatividade que se Fui-o outrora agora.

sucedem: "Perdida - sem sentido nenhum - ária fora de


música - voz cheia de não ser nada - não há nexo, ou fio ... ­ (1921)
parar". .
Este é um poema menos "livre", no sentido de que apre­
senta uma versificação regular - 3 quadras em verso de
redondilha menor (5 sílabas). Todo o poema é envolvido por
(1) Boa parle desta análise provém da que sobre o poema foi feita por Jacinto intensa melancolia, marcada desde o início pela expressão
do Prado Coelho no seu livro Diversidade e Unidade em F. Pessoa, Ed.
Verbo, Lisboa.
"Pobre velha música!", que é uma frase exclamativa. Porquê
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pobre e velha? Porquê a estranha emoção doce/amarga: Um mar onde bóiam lentos
"Não sei porque agrado/Enche-se de lágrimas? Porquê o 10 Fragmentos de um mar de além...
olhar parado" sugerindo inacção? É que algo associa esta Vontades ou pensamentos'
música, na lembrança do Eu, a um período - o da infância ­ Nào o sei e sei-o bem.
em que era capaz de ouvi-Ia de outro modo: "Recordo outro
ouvir-te" (de um modo sensitivo, não reflexivo). (933)
A terceira quadra é um verdadeiro "achado". Inicia-se por
uma confissão de impotência face a um desejo de recupera­ É inevitável que te peça que procures ler, a par deste
ção desse outro ouvir que era o da infância: "Com que ânsia poema, um outro, do grande amigo de Pessoa, o Mário de
tão raiva/Quero aquele outrora!". De notar é, aqui, a transfor­Sá-Carneiro, intitulado "Quase" e em que se diz:
mação do substantivo "raiva" em adjectivo antecedido de tão:
tão raiva Gá víramos o processo em "Pauis"). Depois, nova Um pouco mais de sol - e eu era brasa,

reflexão: "E eu era feliz? Não sei." O que importa nem é Um pouco mais de azul - e eu era além;

mesmo sabê-lo, mas sim o facto expresso no último verso: Para o alcançar faltou-me um golpe de asa.

"Fui-o outrora agora" . Associam-se aqui dois tempos - o Se ao menos eu permanecesse aquém.

"outrora" e o "agora", vivenciados em simultâneo. É a expres­


são da felicidade possível: a já passada (que não se sabe É que o tema é o mesmo: "a dor de ser quase, dor sem
mesmo se realmente foi vivida), experimentada agora. Ao fim", de ser "asa que se elançou, mas não voou" - como se
fazê-lo desta forma, Pessoa acentua assim o tema da brevi­ diz também nesse poema ...
dade, da fugacidade de toda e qualquer felicidade. Tal feli­ Ou seja: a dor que resulta da distância imensa entre o que
cidade só permanece como já passada, como memória. O se quer - o Tudo, o Infinito - e o que se realiza - o Nada, o
resto é emoção breve - e melancolia. aquém do sonho. Em Pessoa, e neste poema em 3 quadras
Mas não vamos parar por aqui , já que seleccionei mais de versificação regular (versos de 6 sílabas), essa dor vai origi­
alguns poemas. Como, por exemplo, o seguinte: nar nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma
alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de
Tudo que faço ou medito "cheia de luz", luminosa) ser um mar de sargaço, mais pare­
Fica sempre na metade. cido com algo de pantanoso , de charco - mar, segundo
Querendo, quero o infinito. Pessoa, em que "bóiam lentos/fragmentos de um mar de
Fazendo, nada é verdade. além". Ou seja, em que se reflectem ainda vestígios, fragmen­
tos, de algo de maior e distante (provável marca de crença
5 Que nojo de mim me fica
esotérica num mundo anterior, das ideias , de que o mundo
Ao olhar para o que faço'
real, que conhecemos, não passaria de reflexo - neste caso
Minha alma é llicida e rica ,
"baço", indefinido ...). Fragmentos de quê? O sujeito afirma
E eu sou um mar de sa rgaço -
não o saber e ao mesmo tempo sabê-lo bem. E mais não diz.

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É que ele não tem que dizer, tem , quando muito, de sugerir. Creio que dificilmente se poderia dizer melhor a frustração ,
Porque, não o esqueçamos, "Sentir? Sinta quem lê!" o desencanto pelo sonho não cumprido, a dor da perda, o
fracasso, o desespero, a vontade de aniquilação. Com efeito,
Um outro poema igualmente "magoado" é o poema "Onde nestas 3 estrofes, a oposição entre a expectativa, o sonho ­
pus a esperança": marcados nas palavras de conotação positiva: esperança,
rosas, casa, jardim, afeição, fonte, floresta - e a realidade - as
Onde pus a esperança, as rosas
rosas murcharam logo - sem razão - secou a fonte. Parece
Murcharam logo.
que o Eu poético é um ser fatal que destrói aquilo que ama.
Na casa, onde fui habitar,
Ou será ele vítima de um Fatum, de um destino que o torna
O jardim, que eu amei por ser
"maldito"? De facto, diz-se nas duas primeiras oitavas, que
Ali o melhor lugar,
constituem um primeiro momento do poema, que, mal conse­
E por quem essa casa amei -
gue obter o que o sonho anseia - paz, conforto, afeição,
Decerto o achei,
beleza - tudo seca, tudo se perde. Trata-se uma vez mais do
E, quando o tive, sem razão p'ra o ter. tema da perda e da frustração daí gerada.
Na última oitava é legítima a reflexão e interrogação: para
Onde pus a afeição, secou quê, então, sonhar, ter expectativas? O melhor será desistir­
A fonte logo.

10 ou melhor, deixar de sonhar; que o vento arranque esse


Da floresta que fui buscar
melhor de si e disperse por lugares onde não possam ser
Por essa fonte ali tecer
encontrados! Há melhor forma de dizer o desespero? Creio
Seu canto de rezar -
que não...
Quando na sombra penetrei,
Uma atitude possível é abdicar, desistir voluntariamente,
15 Só o lugar achei
por decisão própria. É mesmo isso que se diz em
Da fonte seca, inútil de se ter.
"Abdicação"(1l:

p'ra quê, pois, afeição, 'sperança,


Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
Se perco, logo
E chama-me teu filh o. Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
Que as uso, a causa p'ra as usar,

O meu trono de sonhos e cansaços.


20 Se tê-las sabe a não as ter?
Crer ou ama r -
(1) Este poema deve ser co nfrontado co m o segu inte texto de Pessoa:
Até à raiz, do peito onde alberguei "Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso,
Tais sonhos e os gozei, ... toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores sentem-se satisfeitos - e satis­
O Vento arranque e leve onde quiser feito só pode estar aquele que se conforma, que não tem mentalidade de
vencedor. Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima sem­
25 E eu os nào possa achar'
pre. O melhor é abdicar" (in Páginas Intimas e de Auto-Interpretação).

103
Minha espada, pesada a braços lassas,
Em mãos viris e calmas entreguei; em sibilantes (-s e -z) - espada pesada a braços lassas -,
E meu ceptro e coroa - eu os deixei mas também em nasais e oclusivas (neste caso o -t, o -p ) ­
Na antecâmara, feitos em pedaços. Toma-me ó noite eterna nos teus braços/E chama-me... ;
Minha espada pesada; o 1.° verso da 1. a quadra acrescenta a
Minha cota de malha , tão inútil,
tudo isto, ainda, o ritmo ondulatório a que começamos a habi­
10 Minhas esporas, de um tinir tão fútil ,
tuar-nos em Pessoa.
Deixei-as pela fria escadaria.
Abdicar, entregar em mãos viris e calmas os sinais de rea­
leza, que mais não deram que em cansaço e frustração, será
Despi a realeza , corpo e alma,
então a solução. E sobretudo, recolher-se, como filho, no seio
E regressei à noite antiga e calma
acolhedor da noite. (A propósito, o heterónimo Álvaro de
15 Como a pa isagem ao morrer do dia.
Campos escreveu uma belíssima "Ode à Noite", em que se
retoma este desejo de acolhimento, de dispersão, de calma.)
Há muitos mais lindíssimos poemas neste Pessoa do
Cancioneiro . Só posso recomendar (pelo menos ... ) todos ...
Entretanto , vou ainda transcrever dois poemas justamente
Trata-se de um soneto, embora à primeira vista não o conhecidos e reconhecidos como belos e importantes. O pri­
pareça. É que o 2.° verso da 1. a quadra é bipartido em dois meiro deles é:
semi-versos. Mas lá temos as duas quadras e os dois terce­
tos, os versos decassilábicos e as rimas em abba abba ccd
eed - quase perfeitamente clássico, este soneto.
Trata-se também de um longo apelo à noite eterna, mater­ o menino da sua mãe
nal, antiga e calma, no sentido de nela procurar refúgio e o
lenitivo possível para o cansaço. Um poema construído sobre No plaina abandonado
símbolos e uma longa metáfora: a do rei que abdica e renun­ Que a morna brisa aquece,
cia vo luntariame nte aos símbolos da realeza: o trono, a
De balas traspassado
espada, o ceptro, a coroa, a cota de malha, as esporas. E
- Duas, de lado a lado - ,
porquê? Porque tais símbolos de realeza são-no também de
S Jaz morto, e arrefece.
frustração: assim o trono é feito de sonhos e cansaços; a
espada é pesada a braços lassas ; a cota de malha é tão inútil,
Raia-lhe a farda o sangue.
as esporas têm um tinir tão fútil.
De braços estendidos,
De passagem, terás dado certamente conta da grande
musicalidade conseguida não só pelas rimas externas, como Alvo, louro, exangue,
pelas internas (braços lassos) , pelas assonâncias, sobretudo Fita com olhar langue
10 E cego os céus perdidos.
104
Tão jovem! que jovem era!
com narrador - o poeta; narração de uma história; acção - a
(Agora que idade tem?)
morte na guerra; personagens; espaço - piai no
Filho único, a mãe lhe dera
abandonado/ lá longe, em casa; e tempo - passado. O narra­
Um nome e o mantivera:
dor é subjectivo, visto emitir juízos de valor sobre o que conta
15 "O menino da sua mãe". e até sobre os motivos desta morte prematura. Em todo o
caso, naturalmente que aqui, sob forma narrativa, se transmi­
Caiu-lhe da algibeira
tem sentimentos (mesmo que "fingidos" no sentido de fingi­
A cigarreira breve.
mento pessoano), emoções, ideias - logo, expressão do Eu,
Dera-lhe a mãe. Está inteira
lirismo.
E boa a cigarreira.
Nas duas primeiras quintilhas, conta-se, descreve-se a
20 Ele é que já não serve. situação vivida pelo protagonista e também se faz o retrato da
personagem no momento actual. A descrição é feita em ter­
De outra algibeira, alada
mos realistas, "fortes", como convém a quem quer fazer ver.
Ponta a roçar o solo
Nas estrofes seguintes, predomina a emoção, o discurso
A brancura embainhada
judicativo ou valorativo. O jovem, cuja juventude e perda dela
De um lenço... Deu-lho a criada
são referidas em frases exclamativas, que já não tem idade
25 Velha que o trouxe ao colo. (como se refere entre parênteses - discurso parentético que
realça a mensagem nele contida) é, afinal, "filho único", cujo
Lá longe, em casa, há a prece:
nome é, por vontade materna, O menino da sua mãe - é um
"Que volte cedo, e bem!"
menino-símbolo de uma mãe-símbolo e ambos personagens
(Malhas que o Império tece!)
colectivas. Regressa-se nas 4. a e 5. a quintilhas à descrição e à
Jaz morto, e apodrece ,
emoção: a cigarreira breve, símbolo do que não morre, do que
30 O menino da sua mãe. fica de uma vida, essa sim, breve (deves ter reconhecido a
figura estilística da hipálage); o lenço bordado dado pela criada
velha/que o trouxe ao colo.
A última quintilha lança um olhar sobre o espaço familiar:
Este poema em seis estrofes de cinco versos (quintilhas), "Lá longe, em casa, há a prece:/"Que volte cedo e bem!" Só
de versos regulares de 6 sílabas e rimados - esquema abaab, que a prece é, sem que lá em casa o saibam, inútil, agora que
que se repete nas diferentes quintilhas, ainda que com rimas "o menino da sua mãe" ''iaz morto e apodrece" (este verbo
diferentes - destoa um pouco no conjunto do Cancioneiro substitui e intensifica o realismo do arrefece da 1. a estrofe).
por, aparentemente, abordar um tema social - o da guerra e Pelo meio, novo discurso parentético que aponta subtilmente
dos meninos injustamente roubados à idade ("Agora que a causa que está por detrás desta morte prematura (Malhas
idade tem?"), às mães e às velhas amas, à infância, afinal. que o Império tece!), ou seja, hoje e sempre, as vítimas que o
Trata-se, efectivamente, de um poema de base narrativa, desejo de Impérios faz.
É um poema que nos põe perante o absurdo da guerra e Quanto é melhor, quanto há bruma,

da vontade de Império, de modo mais veemente - acho eu ­ Esperar por O. Sebastião,

do que o episódio do Velho do Restelo n'Os Lusíadas . Quer venha ou não!

Mas pode ser também o lamento por um menino da sua


mãe - eventualmente Pessoa, mas, em rigor, muitos outros ­ 20 Grande é a poesia, a bondade e as danças...

por uma infância perdida por razões absurdas - a guerra ou Mas o melhor do mundo são as crianças,
talvez, quem sabe?, o desabar dos sonhos, a perda da ino­ Flores, música, o luar, e o sol, que peca
cência. Só quando, em vez de criar, seca.
Vou terminar com um último poema, por sinal dos últimos
que Pessoa terá escrito: o mais do que isto
25 É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finan ças
Nem consta que tivesse biblioteca .. .
Liberdade
(Falta uma citação de Séneca)
Independentemente de se saber se há ou não alusão irónica
Ai que prazer
(há.. .) ao Dr. Salazar, omnipotente Ministro das Finanças (que
Não cumprir um dever,
de Finanças se calhar saberia muito) e ditador letrado (parece
Ter um livro para ler
que ele lia mesmo muito, .. .), a verdade é que este canto à liber­
E não o fazerl
dade de ler ou não ler, de fazer o que temos vontade de fazer é
Ler é maçada.
de uma enorme frescura. É o louvor - que Caeiro, o Mestre,
Estudar é nada.
teria certamente muito gosto em subscrever -, das coisas natu­
O sol doira
rais, consubstanciadas no sol, no rio, na brisa, nas crianças ­
Sem literatura.
"o melhor do mundo", das flores , da música, do luar, da vida
livre, sobre o saber que vem nos livros , mas também, ainda
O rio corre, bem ou mal, que em menor grau , certamente, sobre a arte - a poesia, as
la Sem edição original. danças ou a bondade.
E a brisa, essa , Um convite, afinal : Sejamos livres de fazer ou não fazer o
Oe tão naturalmente matinal, que, desculpem a linguagem, nos dá na real íss ima gana!
Como tem tempo não tem pressa... Quanto ao resto, melhor será esperar por D. Sebastião, quer
venha ou não!
Livros são papéis pintados com tinta. Claro que, por detrás da mensagem, está presente neste
15 Estu dar é uma coisa em que está indistinta poema uma profunda e subtil ironia - e uma guerra a todos
A distinção entre nada e coisa nenhuma. os que gostam de impor os seus valores e a sua ordem.
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Mas, acima de tudo, sê livre! Recupera (tenta recupe­ 1. Um Pessoa em busca de caminhos poéticos:
rar) a inocência de menino! Será isso que o mestre Caeiro, - via simbolista/paúlica
como veremos lá para diante, passou a vida a "dizer". - interseccionista
- "fingimento" e criação heteronímica (1914)
QUADRO-síNTESE - CANCIONEIRO - esoterismo
Estilo
2. Pessoa, "lugar da "deserção" do eu e da consequente
Motivos Nível perda, narcísica e dramática, de si e do mundo" - o drama
poéticos/temas Nível fónico morfossintáctico e da identidade perdida: "quem me dirá quem sou?"
semântico
- nostalgia do Eu, de um grande sentido da - adjectivação expres­ 3. Respostas possíveiS:
bem perdido (tema da musicalidade: siva;
- resposta religiosa, metafísica, esotérica
perda); - versificação regu- - utilização expressiva
- refúgio na noite, no sonho, na música
- ceptiCismo; lar e tradicional; de modos e tempos

- vontade de permuta (ceifeira, gato ...)


- sentimento da saudade; - eufonia; verbais;

- nacionalismo; - rimas, ritmo, alite- - uso frequente do pre­


Nenhuma destas respostas é viável: daí a abdicação.
- tédio, náusea, resignação; rações, onomato- sente do indicativo;
(Obs.: uma outra via: o "fingimento " heteronímico, o
- abdicação, cfflstência; peias; - paralelismos e repeti­ "outrar-se" .)
- sentimento do vácuo e da - transporte ou ções;

opacidade do real; encademento de - comparações;


4. Uma poesia musical que vive da música das emoções:
- angústia; versos. - metáforas;
- ritmo
- abulia, fraqueza da von- - uso de símbolos;
- música das ideias
tade; - vocabulário simples;

- melodia
- estranheza, perplexidade; - associações inespe­
- música das palavras
- dificuldade em distinguir radas - por vezes des­
sonho e realidade; vios sintácticos;

- lucidez e dor de ser - pontuação emotiva

lúcido, de pensar; (frases exclamativas,


5. Um poeta:
- intelectualização de emo- interrogativas, suspen­ - da nostalgia do eu
ções; sivas);
- do sentido da perda
- esoterismo; - uso frequente de fra­ - do tédio, da náusea, do cansaço(1)
- momentos inefáveis: ses nominais;
- da estranheza
infância, música, sonho. -oxímoros.

(1) Náusea: ver poema: "Náusea. Vontade de nada."

Angústia: ver poema "Ah quanta melancolia!".

(esquema adaptado e baseado em esquemas Cansaço: ver poema "Cansa ser, sentir dói, pensar destrói".

idênticos de António Morato e de José Manuel de Melo) Podes encontrá-los em boas Antologias.

110 111
e também: CAP[TULO StTIMO
- da inquietação perante o enigma do mundo, indecifrável
porque opaco MENSAGEM
- da solidão interior
- das contradições pensar/sentir; querer/fazer; espe­ Um "supra-Camões"?
rança/desencanto

6. Com momentos (breves) de plenitude na:


- infância
- música
- sonho (1)

Um poeta subjectivo, centrado sobre o eu (egotismo);


sofrendo a dor de pensar, a distância entre o sonho e a
realidade, a incapacidade de fruir - vivendo sobretudo
pela inteligência e pela imaginação.

Não queria terminar, sem te pedir que releias o início deste


capítulo dedicado à poesia ortónima do Cancioneiro - para
°
ver se eu disse bem que aí disse, à luz destes poemas que
te convidei a ler comigo, e dos outros que espero ter-te dado
vontade de conhecer ... Vamos a isso?

(1) Ver poema "Não sei se é sonho se realidade" . Podes encontrá-lo em boas
Antologias .

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