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TRAVESSIAS

TRAVESSIAS
Revista de Ciências Sociais e Humanas de periodicidade anual e de sede editorial rotativa
nas instituições acadêmicas ou de fomento à ciência dos países de língua portuguesa.

EDIÇÃO DO NÚMERO 9
Ministério da Ciência e Tecnologia
Conselho Nacional de Dessenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
Programa de Cooperação em Ciências Sociais para os Países de Língua Portuguesa

Endereço/Morada: Instituto Ciência Hoje


Av.Venceslau Brás, 71, fundos/casa 27 – CEP: 22290-140 – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Editor Executivo
Renato Lessa / Iuperj (UCAM) e UFF

Editora Adjunta
Sabrina Evangelista Medeiros (EGN e UFRJ)

Conselho Editorial para o número 9


César Barreira / Universidade Federal do Ceará
Francisco Carlos Palomanes Martinho / Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Peter Fry / Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sebastião Carlos Velasco e Cruz / Universidade Estadual de Campinas
Sergio Miceli / Universidade de São Paulo

Ministério da Ciência e Tecnologia Conselho Nacional de Desenvolvimento


Científico e Tecnológico

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade de seus autores.


TRAVESSIAS

No 9 – 2008

Rio de Janeiro, Brasil


INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

(1) TRAVESSIAS aceita trabalhos inéditos, sob forma de artigos e comentários de livros, sob
forma de ensaios bibliográficos em Ciências Sociais. Os trabalhos deverão ser de interesse académico e
social, e escritos de forma inteligível ao leitor culto; os aspectos mais técnicos e especializados deverão
limitar-se ao essencial.

(2) A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres de membros do Conselho Edito-
rial e de Avaliadores Ad Hoc – garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação.
Eventuais sugestões de modificação de estructura ou conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente
acordadas com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois que os trabalhos forem
entregues para composição.

(3) Os artigos devem ser apresentados via e-mail (travessias@iuperj.br) acompanhados de resumos
em torno de 250 palavras, em que fique clara uma síntese de propósitos, dos métodos empregados e das
principais conclusões do trabalho, além de palavras-chave e dados sobre o autor (titulação acadêmica, cargo
que ocupa, áreas de interesse, últimas publicações etc.).

(4) Os artigos deverão ter em torno de 30 laudas digitadas, escritas em Times New Roman,
tamanho 12, espaço 1,5. O nome dos autores, acompanhado de grau de titulação e instituição em que
actuam, deve constar na primeira página, separadamente do artigo.

(5) As recensões (resenhas) devem versar sobre livros escritos nos últimos três anos. Devem ter
entre 6 e 10 páginas, Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5.

(6) Gráficos deverão ser acompanhados das respectivas planilhas que os originaram, com indicação
das unidades em que se expressam os valores e as fontes correspondentes.

(7) As notas deverão ser de natureza substantiva, restringindo-se a comentários adicionais ao


texto. Referências bibliográficas, quando necessárias, deverão aparecer no próprio texto, com a menção
do último sobrenome do autor, acompanhado do ano da publicação e do número da página, quando
necessário (GIL, 1984:19). Ao final do artigo deverão ser listadas as referências bibliográficas, em ordem
alfabética, com a observância dos seguintes critérios:
• Para livro
Exemplo: GIL, Fernando (1984), Mimésis e Negação. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda.
• Para artigo em revista
Exemplo: CRUZ E SILVA,Teresa. (2004),“Identidade Religiosa e construção da democracia em
Moçambique: o caso da Igreja Metodista Unida de Moçambique”. TRAVESSIAS, no 4/5, pp. 223-235.
• Para citação de artigo eletrônico
Exemplo: BRANDÃO, Gildo Marçal. “Linhagens do Pensamento Político Brasileiro”. DADOS
[online]. 2005, vol. 48, no1 [dia-mês-ano da consulta], pp. 231-269. Disponível na Internet: <http://www.
scielo.br/dados>. ISSN 0011-5258 [páginas e ISSN facultativos].

(8) Com a publicação do artigo ou recensão, o autor receberá cinco exemplares da revista.
Sumário

7
Apresentação

9
Gêmeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos:
uma Teoria Moçambicana de Poder Político
Paulo Granjo

35
Militância Política e Religiosa: Representações Paradoxais
de Pentecostais no Processo de Ocupação de Terra
Fábio Alves Ferreira

61
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal:
Relações Interétnicas de Acomodação e Resistência
Manuel Carlos Silva

95
O Controle Democrático das Práticas Policiais
César Barreira

107
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização
na Análise Sociológica: Debate e Crítica
Alessandro André Leme
133
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal:
a Questão Identitária
Francisco Avelino Carvalho

157
O Tempo da Justiça Criminal:
Portugal e Brasil em uma Perspectiva Comparada
Ludmila Ribeiro

187
Governamentalidade e Anarqueologia
Nildo Avelino

209
Sociologia de Cobras e Latão:
Reflexões sobre a Produção de Conhecimento
das Sociedades Africanas
João Feijó

227
Ensaio Bibliográfico
As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias:
Leituras da Obra de José de Souza Martins e Aihwa Ong.
Letícia de Faria Ferreira
Apresentação

A revista TRAVESSIAS, criada no V Congresso Luso Afro


Brasileiro em Ciências Sociais (Maputo, 1998), é regular-
mente editada desde 2000. Naquela altura, coube ao Iu-
perj a edição do primeiro número e do volume duplo 2/3. As edições
seguintes ficaram a cargo do Instituto de Ciências Sociais, da Univer-
sidade de Lisboa, e do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de
Coimbra. No IX Congresso Luso Afro Brasileiro em Ciências Sociais,
havido em Luanda, em 2006, por decisão da assembléia de conclusão,
a responsabilidade editorial da revista recaiu em mãos brasileiras.
Desta feita, coube ao Programa de Cooperação em Ciências
Sociais para os Países de Língua Portuguesa (Ciências Sociais/CPLP),
implantado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e vinculado ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), a produção e a edição da revista (números 8 e 9). O Programa
foi criado em 2004, com a finalidade de apoiar ações – investigação,
mobilidade de professores e investigadores e eventos científicos -, no
âmbito das ciências sociais, que envolvam membros da comunidade de
cientistas sociais dos países lusófonos.A responsabilidade pela edição da
revista foi considerada pelo Programa como tarefa de grande relevância.
TRAVESSIAS possui uma identidade editorial singular, por ser a única
publicação acadêmica internacional, no campo das ciências sociais, no
espaço comum dos países de língua portuguesa.
O presente número de TRAVESSIAS foi inteiramente composto
por textos encaminhados à redação, a partir da chamada de artigos divul-
gada no segundo semestre de 2008, pelas principais associações científicas
da área, no espaço lusófono. Os textos foram selecionados pela Comissão
Editorial da revista, que contou com o apoio de avaliadores externos.
Foi significativa a remessa de artigos – cerca de 40 –, o que tornou difícil
a tarefa de selecionar um conjunto publicável em apenas um número de
TRAVESSIAS. A Comissão Editorial agradece o empenho dos colegas
que se dispuseram a prestigiar a revista e está convencida de seu potencial
de centralidade, para a comunidade de ciências sociais de nossos países,
assim como de sua viabilidade e consistência intelectuais.
A expectativa dos responsáveis pela edição de TRAVESSIAS
(números 8 e 9) é a de que este veículo se consolide como patrimônio
comum da comunidade de cientistas sociais dos países lusófonos.

Renato Lessa
Editor Executivo de TRAVESSIAS (números 8 e 9)
Presidente do Comitê Gestor do
Programa Ciências Sociais/CPLP (MCT/CNPq)
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos:
uma Teoria Moçambicana do Poder Político

Y
Paulo Granjo
Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa

Resumo
À imagem de antigas referências etnográficas, os gémeos e os
albinos são vistos, no sul de Moçambique, como o resultado e causa de
calamidades cósmicas. Eles foram atingidos por raios dentro do útero
materno e secarão o solo, a menos que sejam enterrados sob condi-
ções especiais, ou simplesmente “desapareçam” da face da Terra. Os
condicionalismos impostos às suas vidas e mortes foram extrapolados,
nas décadas mais recentes, para conceber uma categoria inesperada de
pessoas: os prisioneiros políticos que desapareceram das cadeias coloniais,
ou que foram enviados pelo estado pós-independência para “Campos
de Reeducação”. No entanto, não foi esse o caso dos «improdutivos»
urbanos que desapareceram sob exílio interno na região do Niassa. As
crenças acerca dos gémeos e albinos foram utilizadas para expressar
uma declaração moral local acerca do poder politico: é socialmente
ameaçador fazer perigar o poder estabelecido; mas é ilícito, para um
poder legítimo, tomar decisões injustas acerca das pessoas que tem sob
sua responsabilidade.

Palavras-chave: Moçambique – Gémeos – Albinos – Presos políticos – Ope-


ração Produção – Teorias políticas populares.
10 Travessias 2008

Alguns anos atrás, visitei Martins Matsolo, o chefe hereditário


da região onde foi construída a fundição de alumínio Mozal, perto
da capital de Moçambique. Queria auscultá-lo acerca de uma ideia
que se estava a espalhar entre os operários dessa fábrica: que, durante a
cerimónia que precedeu a sua construção,1 ele tinha proibido a morte
de cobras na área fabril, ou iriam ocorrer acidentes.
Ele disse-me que não era verdade e ficámos a discutir as razões
para esse boato, que deriva da crença local em cobras possuídas por
espíritos (GRANJO, 2008). Mas, como se espera que essas “cobras es-
peciais” vivem em lugares com características também elas especiais, a
nossa conversa levou-me a falar do peculiar cemitério da Matola, junto
da fundição (imagem 1). «É um mau cemitério, não é? Quero dizer, mesmo
junto ao rio, que até transborda…», perguntei.

Imagem 1. Cemitério da Matola, junto do rio com o mesmo nome, de uma salina e da Mozal.

Ele permaneceu algum tempo em silêncio e, como tantas vezes


acontece quando fazemos a um moçambicano mais velho uma pergunta
melindrosa, não me respondeu directamente, mas através de uma história
sem aparente relação com o assunto, embora fácil de compreender por
parte de alguém que dominasse as referências que a ligam à questão.
- Sim... No tempo colonial, a PIDE2 até costumava esconder
ali os prisioneiros que matavam na prisão deles. Não era bem ali, mas
mesmo ao lado, mais junto da água.
(1) Trata-se do “kuphalha”, uma invocação dos antepassados na qual os líderes dos seus descendentes os informam
acerca de um plano dos vivos, para que pedem a sua autorização e protecção (Granjo, 2005). Os dados para este
artigo foram, de facto, recolhidos durante o meu trabalho de campo para as pesquisas «Apropriação social do
perigo e da tecnologia industrial – perspectiva comparativa Moçambique/Portugal», «”Tradição”, modernidade
e direitos familiares em Moçambique – negociação e conflito em torno da Lei da Família» e «Nyangas e hospitais
– lógicas e práticas curativas moçambicanas», todas elas financiadas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia
Agradeço a João Pina Cabral, José Fialho Feliciano e Philip Peek, pela sua leitura crítica do manuscrito.
(2) Polícia política portuguesa durante a ditadura de 1926/1974, foi renomeada DGS nos últimos anos do regime.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 11

Foi a primeira vez que ouvi falar de uma ligação simbólica entre
gémeos, albinos e prisioneiros políticos. Isto porque, sinteticamente, os
gémeos devem ser enterrados em solo húmido ou secarão a terra; os
albinos (que têm a mesma origem cósmica) supostamente não morrem,
mas desaparecem; e os prisioneiros desaparecidos eram enterrados em
terra molhada.
É desrespeitoso enterrar pessoas “normais” em solo molhado,
porque isso corresponde a tratá-los como «mortos que secam a terra» –
e essa era a razão da minha pergunta. Ao contar-me aquela história,
o senhor Matsolo concordou comigo e enfatizou a importância do
assunto que eu tinha levantado; mas, ao fazê-lo da forma que o fez,
ensinou-me algo de novo.
Esse novo assunto – a equivalência simbólica que mencionei e
o sentido que lhe subjaz – é a razão deste artigo.
De facto, existem várias referências etnográficas às restrições so-
fridas em Moçambique pelos gémeos, albinos e suas mães, e até algumas
interpretações antropológicas acerca delas. Se as compararmos entre si
e falarmos com as pessoas hoje em dia, parece que essas restrições não
mudaram muito nos últimos 100 anos, como tão pouco mudaram as
excepções geográficas onde, pelo contrário, os gémeos recebem uma
valoração positiva.
No entanto, essas regras resilientes e os conceitos que lhes sub-
jazem eram suficientemente pertinentes para terem sido seleccionadas
como uma linguagem para falar e pensar acerca dos prisioneiros políticos
desaparecidos, tanto durante o colonialismo como após a independên-
cia – embora não, conforme veremos, para referir os vários milhares
de pessoas que, na década de 1980, foram expulsas das cidades para a
remota província do Niassa, acusadas de serem «improdutivas».
A equivalência com gémeos e albinos foi empregue apenas por
esses prisioneiros terem desaparecido? Durante algum tempo, pensei
que essa explicação era suficiente – pelo menos se lhe adicionássemos
as restrições e estigma que os prisioneiros políticos sofreram. Contudo,
foram muito mais numerosos os deportados que desapareceram no
Niassa, também eles sofreram restrições e estigmatização, mas a equi-
valência que mencionei não é utilizada no seu caso.
Irei por isso sugerir que a equivalência simbólica entre gémeos,
albinos e prisioneiros políticos desaparecidos não é apenas formal; ela
expressa um conceito das relações de poder político em que prisioneiros
“subversivos”, mesmo tratando-se de lutadores pela independência, são
12 Travessias 2008

avaliados como anormalidades sociais negativas e ameaçadoras – ao


contrário das vítimas de exílio doméstico por decisão estatal, vista
como um injusto abuso de poder. No seu conjunto, esta duplicidade
revela aquilo a que podíamos chamar um contrato social (ROUS-
SEAU, 1974 [1762]) que serve de base à relação da população com
o poder político.

Gémeos e Ordem Cósmica


Segundo os dados proporcionados por Henry Junod (1996 [1912]:
266-272) acerca do sul de Moçambique, a relação entre os gémeos, a
chuva e os enterros em solo molhado já era considerada consensual
e antiga em finais do Séc. XIX3, sendo objecto de complexos rituais
caso a seca ameaçasse uma determinada região.
Quando tal acontecia, a razão era sobretudo atribuída ao anterior
enterro em solo seco de gémeos, de abortos ou de bebés falecidos antes
da sua apresentação à lua (que marca a sua existência social e integração
na comunidade), sendo o primeiro passo para obter chuva descobrir
as suas campas e corrigir a situação. A par de rituais de purificação das
suas mães (caso elas tivessem escondido esses enterros incorrectos), os
ossos dessas crianças eram exumados para um local húmido ou lama-
cento e as suas campas originais eram molhadas com água. Esta acção
era desempenhada por todas as mulheres da comunidade, caminhando
atrás de uma mãe de gémeos.
Na sua época, diz Junod (op cit: 371-378), o infanticídio do gé-
meo mais débil já não era praticado, como nos “tempos antigos”, mas
tanto os gémeos como as suas mães eram objecto de especiais restrições
e controlo social.
No dia seguinte ao seu nascimento, ninguém podia trabalhar,
ou as colheitas secariam. Todas as mulheres da aldeia deviam partir
em direcção aos quatro pontos cardeais, cantando “que a chuva
caia” e regressando com água que era despejada sobre a mãe e os
gémeos. A sua cabana era queimada e passavam a viver numa outra,
fora da aldeia, usando objectos em que mais ninguém podia tocar
e recolhendo a água de um local exclusivo. Os gémeos não eram
apresentados à lua e começavam a ser alimentados com leite de cabra

(3) Embora o seu livro The Life of a South African Tribe fosse publicado em 1912, Junod começou a escrevê-lo
em 1898, com base em dados recolhidos entre 1889 e 1895; foi recolhido material extra em 1907 (HARRIES,
2007), mas nada indica que fosse esse o caso daquilo que o autor diz acerca dos gémeos.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 13

mal a sua mãe voltasse a ter menstruação. Só regressariam à aldeia


quando a mulher desse à luz um bebé “normal” – o que só seria
possível depois de ela seduzir consecutivamente quatro homens que
desconhecessem a sua situação, a quem passaria a sua impureza através
da prática sexual, provocando-lhes a morte. Mesmo após o regresso
à aldeia, os gémeos eram proibidos de brincar com outras crianças,
eram apontados como exemplos de mau carácter e, tal como as suas
mães, eram objecto de especiais protecções rituais quando assistiam
a cerimónias funerárias.
De acordo com o autor, muitas destas restrições tinham se-
melhanças com as impostas às viúvas. Eram mais exigentes, duras e
longas porque, se o nascimento de gémeos era identificado com a
morte, tinha também uma significância cósmica – os gémeos eram
chamados «filhos do céu» e a sua mãe era referida como a pessoa que
fez o céu, que o carregou ou que a ele subiu. Contudo, os aspectos
ameaçadores que derivavam dessa familiaridade cósmica podiam
ser socialmente úteis em momentos de crise: nos mais fortes ritu-
ais contra a seca, era necessário sentar uma mãe de gémeos numa
cova e cobri-la de água até ao peito e, se relâmpagos assustadores
se aproximassem da aldeia, só um gémeo conseguiria pedir à tem-
pestade para se afastar.
Como seria de esperar, Junod interpreta essas práticas e crenças,
que ouviu de forma fragmentar, de acordo com as ferramentas teóricas
à sua disposição – utilizando a tipologia de princípios mágicos elaborada
por Frazer (1922 [1890]). No entanto, Feliciano (1998) pôde fornecer-
nos mais detalhes e uma interpretação global da posição ocupada pelos
gémeos no sul de Moçambique.
Para além dos dados fornecidos pelo seu predecessor, aponta
outras práticas dos finais da década de 1970 que, conforme pude
verificar, ainda estão em uso actualmente. Quando um gémeo
adoece, é proibido chorar, dar-lhe remédios ou perguntar-lhe se
está melhor; pelo contrário, deverá ser insultado com frases como
«Quando é que morre?», ou «De qualquer maneira, vai ser comido pelos
peixes». Nos funerais, os gémeos devem manter-se à distância das
outras pessoas. Quando um deles morre, é proibido chorar e deverão
ser colocadas cinzas na fontanela do sobrevivente, para evitar que
desmaie. O gémeo sobrevivente não pode tomar medicamentos, ou
morrerá, e não pode ir ao funeral, ou desmaiará e cairá dentro da
campa (FELICIANO, 1998: 334-336).
14 Travessias 2008

Pude também ouvir e observar que o gémeo sobrevivente


não pode verbalizar a morte do irmão ou irmã. Pelo contrário, deve
agir como se o falecido estivesse nalgum lugar longínquo e, se al-
guém que não saiba da morte lhe pedir notícias do defunto, deverá
mentir, inventando alguma viagem ou dizendo que o finado se mu-
dou para outro país ou província. Tal como muitas vezes acontece,
várias pessoas foram incapazes de me apresentar uma razão clara para
este comportamento, limitando-se a dizer que seria perigoso agir
de outra forma; outras pessoas, contudo, explicaram-me que falar
acerca da morte do outro gémeo traria a morte ao sobrevivente. Na
atitude e nas palavras deste último, então, o gémeo morto limitou-se
a desaparecer.
A característica dos gémeos que aqui mais nos interessa, no en-
tanto, é o facto de eles terem que ser enterrados em solo molhado, sob
pena de, tal como acontece com outras pessoas e nascimentos anormais
(ver FELICIANO, 1998: 326-352), secarem a terra.
A razão desta prática e das restantes restrições impostas aos
gémeos no sul de Moçambique torna-se mais clara se atentarmos na
análise de Feliciano (op cit: 305-308) acerca do sistema simbólico que
é localmente dominante. Em síntese, o autor sustenta que todos os
fenómenos pertinentes de natureza social ou cósmica são “tradicional-
mente” concebidos de acordo com um conjunto de diferentes códigos,
com particular relevância para o sexual, o térmico e o culinário. No
entanto, esses códigos são isomorfos e cada um deles pode ser usado
para representar analogicamente (ou mesmo para dirigir a representação
de) fenómenos que pertencem ao âmbito de outro código – o que,
aliás, acontece de forma regular.
Neste quadro, a reprodução humana é análoga à interacção de
um par incubador fogo/água e o seu resultado bem sucedido, o bebé
vivo, é representado como sendo água (que pode ou não resultar de
uma tempestade) e, tal como a água, os bebés normais propiciam a
fertilidade global. Só provisoriamente, até à cicatrização do umbigo e
ao fim do sangramento da parturiente, o bebé e a sua mãe são conside-
rados «quentes». No entanto, de um aborto ou de um bebé que morre
enquanto está quente, resulta um desequilíbrio térmico global que exige
o enterro do cadáver num local húmido, ou a terra secará.
As analogias e substituições mútuas entre diferentes códigos vão,
contudo, ainda mais longe: «se o raio, fogo que seca a terra, é como
o aborto, sangue expulso que queima o bebé, e o aborto seca a terra,
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 15

como se fosse um raio; então o raio queima os bebés como se fosse


um aborto.» (FELICIANO, 1998: 310)
Este ponto é crucial porque, embora também existam hoje em
dia outras hipóteses populares,4 o nascimento de gémeos é corren-
temente atribuído, tal como o nascimento de albinos, a um acidente
cósmico. Ambos foram atingidos por raios dentro do útero materno,
com consequências um pouco diferentes: os gémeos foram partidos
em dois e os albinos foram queimados. É por isso que os gémeos são
chamados «filhos do céu» e são eficientes interlocutores com as tem-
pestades, e que os albinos eram chamados em língua ronga qhlandlati
(«carvão de raio»), uma palavra que muitos falantes adultos conhecem
mas evitam utilizar, devido à sua carga pejorativa.
Entretanto, a interacção entre os códigos sexual e térmico
clarifica um outro aspecto: devido à sua origem, os gémeos são (tal
como os albinos) raios sem chuva; ao contrário dos outros bebés,
nunca deixam de ser quentes, com as consequências que tal acarreta.
Para além dos perigos para si próprios que derivam dessa condição,
propiciam a secura e infertilidade, a desarmonia social e mesmo a
doença – que é nalguns casos, normalmente relacionados com a se-
xualidade, atribuída a uma situação de calor interior chamada kuhisa.
Em suma, são ameaças socio-cósmicas.
É este o quadro geral de referências relativamente aos gémeos
no sul de Moçambique. Para além delas, contudo, Junod (op cit:
272) menciona en passant um detalhe revelador de que, já há mais de
um século atrás, as características atribuídas aos gémeos e restantes
“secadores de terra” podiam ser extrapoladas para outros grupos de
pessoas ameaçadoras, e ser ligadas ao destino que era dado aos seus
cadáveres. De facto, dizia-se que chovia tempestuosamente sempre
que as pessoas se juntavam para apanhar os barbos nalgumas lagoas,
que a estação seca tinha transformado em lamaçais. Isto acontecia
porque, no passado, tinham ali ocorrido batalhas e os cadáveres dos
inimigos tinham sido atirados para a água.
Mas porque razão se parte do princípio, tantos anos depois, que
também os prisioneiros políticos que desapareceram foram atirados
para a água, ou sepultados em terra molhada?

(4) Pude ouvir duas delas em contexto urbano, de pessoas com níveis de escolaridade elevados: (1) uma mulher
terá gémeos se a sua xará (a pessoa de quem herdou o nome) teve gémeos; (2) tornar-se mãe de gémeos é heredi-
tário. Contudo, não só estas novas hipóteses populares torneiam a razão da própria existência de gémeos, como
se verifica que os casos reais de nascimentos de gémeos em gerações sucessivas são, pelo contrário, encarados
correntemente como um acontecimento estranho e excepcional, que exige uma explicação particular.
16 Travessias 2008

Albinos e Prisioneiros Desaparecidos


A ligação entre gémeos e prisioneiros desaparecidos, ambos
supostamente sepultados em solo molhado, é de facto fornecida pelos
albinos (imagem 2).
Acerca da crença local no desaparecimento dos albinos, João
Pina Cabral (2002) enfatizou o seu estatuto intersticial, nem “negro”
nem “branco”, sugerindo que eles «não morrem» porque supostamente
não são enterrados, e que essa recusa de os ligar à terra significa uma
recusa de pertença, numa sociedade em que pertencer é primariamente
marcado pela divisão “negro”/”branco”.
Podemos de facto dizer que a actual relevância da ambiguidade
“racial” dos albinos é um aspecto evidente da sua situação e do inte-
resse que despertam as representações acerca deles. Mas é apenas uma
pequena parte dessas representações e, muito provavelmente, não é a
chave para as compreender.
Numa sociedade como a moçambicana, em que a “raça” é vista
como uma realidade biológica e não como uma construção socio-
ideológica, e em que a cor da pele e as “misturas rácicas” detectáveis
servem de base a diferentes comportamentos para com as pessoas, não
se podem ignorar as questões identitárias e hierárquicas levantadas por
uma pessoa “negra” com pele “branca”. É normal que um conjunto
polissémico de crenças, como este que envolve os albinos, seja utilizado
para expressar essas questões. Mas não deveremos ignorar, tão pouco,
que a relevância hierárquica da cor da pele é historicamente recente, e
que as actuais representações acerca dos albinos são demasiado comple-
xas para derivarem apenas da ambiguidade “rácica” – embora também
sejam capazes de a representar.
Deveremos, por exemplo, recordar que apenas em meados do
séc. XIX o primeiro imperador de Gaza5 viu, nas suas próprias pala-
vras, um «branco branco» (por contraste com os “brancos” luso-indianos
que costumavam comerciar no interior de Moçambique), e que esse
homem era uma visita convidada a entrar no kraal real, de forma
alguma uma pessoa com precedência hierárquica sobre a população

(5) Gaza era um estado do séc. XIX que ocupava grande parte do sul e centro de Moçambique, na sequência
da invasão da região por um grupo guerreiro de origem Zulu chamado vaNguni, que por sua vez tinha sido
empurrado dos seus territórios anteriores pelas guerras de conquista promovidas pelo rei Chaka. A sua der-
rota pelos portugueses, em 1895, marca o início da ocupação colonial efectiva do interior sul de Moçambique
(veja-se, por exemplo, CLARENCE-SMITH 1990 [1985], PÉLISSIER 1994, LIESEGANG 1986a,VILHENA
1996, ou NEVES 1987 [1878]). Kraal (“curral”) era a designação local das residências dos reis, juntamente com
as suas cortes e gado.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 17

e autoridades locais (NEVES, 1987 [1878]). Claro que os “brancos”


eram conhecidos muito antes disso, em torno das áreas limitadas onde
se tinham estabelecido, mas salvo excepções regionais não ocupavam
na maioria dos casos uma posição dominante, especialmente no sul de
Moçambique. Por exemplo, o Governador de Lourenço Marques6 era
considerado pelo rei local, em 1833, um chefe subordinado que lhe
devia tributo e o argumento para atacar a sua fortaleza e o matar foi a
sua insubordinação (ver LIESEGANG, 1986).
É óbvio que a relevância social da “brancura” de pele durante
os tempos coloniais (1895/1975), e depois deles, é muito mais recente
que a anomalia representada pelos albinos. Mas é também previsível e
plausível que essa relevância seja, igualmente, muito mais recente do
que a necessidade social de interpretar e explicar a excepção que os
albinos constituem – uma explicação pertinente, mesmo para pessoas
que pensassem ter toda a humanidade a pele castanha.
Curiosamente, Henry Junod não menciona explicitamente os
albinos no seu detalhado livro Usos e Costumes dos Bantu, quando lida
com as ideias dos indígenas «relativas às diferentes raças humanas» (JUNOD,
1996 [1912]: 298-300). Parece, então, que nesse tempo os albinos não
lhe tinham sido apresentados como uma questão rácica.
Mas penso que de facto fala acerca deles, sem o notar, quando
discute a origem da palavra valungo para designar “homens brancos”
(idem: ibidem). Junod nega que a etimologia do termo venha de um
verbo zulu que significa “ser justo” e sugere a palavra local valungwana,
que traduz por “habitantes do céu”, especulando que tal designação
viria provavelmente de alguma mitologia esquecida acerca do “homem
branco”. Contudo, acreditava-se que os portugueses agora dominantes7
vinham do mar, não do céu, e os gémeos eram (e ainda são) referidos
como «filhos do céu».
Embora Junod nunca tenha realmente descodificado o sentido
desta última designação celestial, esse sentido era claro na informação
recolhida por Feliciano em finais da década de 1970 e que eu próprio
pude ouvir cerca de 30 anos depois: conforme antes mencionei, os
gémeos e os albinos são filhos do céu porque, independentemente da sua
concepção terrestre, receberam a sua condição excepcional ao serem

(6) Actual capital do país, Maputo. Na altura, era apenas um presídio e um porto, rodeados de algumas casas,
armazéns e paliçada. A capital da África Oriental Portuguesa era então na ilha de Moçambique, mais a norte.
(7) Como referi na nota 3, os dados para o livro de Junod foram recolhidos em dois períodos: de 1889 a 1895
(antes da derrota do império de Gaza) e em 1907 (sob efectiva dominação colonial portuguesa). Os exemplos
apresentados no mencionado sub-capítulo mostram que os seus dados são de 1907.
18 Travessias 2008

atingidos por um raio dentro do útero materno. Os gémeos foram


fendidos em dois mas os albinos não, apenas tendo sido queimados e,
com isso, perdido a cor da sua pele.
No entanto, ambos alcançaram, com esse incidente, uma relação
próxima e privilegiada com os fenómenos celestes. Uma relação que,
conforme também já mencionei, é ameaçadora da ordem e da fecun-
didade pois, no quadro simbólico em que está integrada, os gémeos e
os albinos são simultaneamente “demasiado quentes” e “uma trovoada
sem chuva”. Devido a essas características, carregam em si o potencial
para a desordem, para a doença e para secar o céu e a terra.
Uma das consequências da origem comum e celeste dos gémeos e
albinos é que, se Junod tinha razão acerca da etimologia, o mais provável
é que os “brancos” tivessem sido nomeados metaforicamente a partir
dos albinos (com um sentido de “caras pálidas”), com base em prévias
crenças acerca destes últimos.A ser assim, os albinos foram originalmente
a referência para classificar os “brancos”, e não o contrário.
Mas, mais importante para o assunto que temos entre mãos, os
albinos e os gémeos são simbolicamente equivalentes. Os albinos são
vistos como gémeos incompletos que, ainda mais que estes últimos,
carregam em si o poder destrutivo do raio, que nem foi capaz de os fen-
der a meio – e, devido a isso, também carregam maiores consequências
ameaçadoras, para a sociedade e para o cosmos, do que os gémeos.
Sugiro que é devido a essa condição superlativamente ameaçadora
que não é suposto enterrar os albinos em lugares e circunstâncias especiais,
à imagem do que acontece com os gémeos, mas não os enterrar de todo. É
por isso, então, que é suposto eles não morrerem, mas desaparecerem.
É claro que os albinos morrem e são enterrados. Alguns dos seus
parentes mais próximos cumprem esse dever em segredo, seguindo os

Imagem 2. Relações simbólicas entre gémeos, albinos, prisioneiros políticos e “improdutivos”.


Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 19

procedimentos prescritos para os gémeos e escondendo a localização da


campa. Ao fazê-lo, protegem quer a segurança cósmica quer as crenças
da comunidade:8 os albinos continuam a desaparecer, porque ninguém
pode afirmar que assistiu ao funeral de um deles.
Tal como acontece com os albinos, muitos prisioneiros políticos,
quer antes quer depois da independência, desapareceram da vista das
suas comunidades e das pessoas que os conheciam.A maioria realmente
morreu, outros estabeleceram-se nas regiões onde foram encarcerados,
quando terminou a sua detenção.Também vários guerrilheiros do movi-
mento anti-colonial (Frelimo) foram mortos pelas tropas ou pela polícia
política portuguesa (PIDE/DGS), após a sua captura e interrogatório.
Já mencionei uma história acerca do que aconteceu a alguns destes
resistentes anti-coloniais desaparecidos: o seu enterro clandestino pela
PIDE/DGS, junto à água do rio, perto do actual cemitério da Matola.
Escrevi “história” porque, de facto, não há evidências de que tal tenha
acontecido naquele local, que aliás seria uma estranha escolha para
sepultar pessoas em segredo.
Dalila Mateus (2004) fornece-nos uma outra história acerca da
ocultação dos cadáveres de resistentes em lugares molhados. Ouviu dizer
na praia do Tofinho, perto da cidade de Inhambane, que a PIDE/DGS
costumava ali atirar ao mar os cadáveres das pessoas que matava, para
que fossem comidos por tubarões. Esta informação popular parece ser,
de novo, uma lenda significativa, pois não existem naquela área tubarões
comedores de homens e, para além disso, a praia sofreu uma enorme
erosão nas últimas décadas – pelo que aquilo que parece muito fácil
actualmente teria sido muito difícil de fazer há 35 ou 45 anos atrás.
Ouvi contudo, no mesmo local, uma variante dessa história,
apontando agora para diversas furnas nas rochas que conduzem a ca-
vernas subaquáticas. Nesta versão, a analogia com a sepultura de gémeos
é ainda mais directa pois, embora os corpos fossem mandados à água,
eram simultaneamente atirados para dentro da terra.
Há ainda uma outra história corrente acerca da morte e mani-
pulação de cadáveres dos resistentes e guerrilheiros. Diz-se que, durante

(8) Também na vizinha Tanzânia não é suposto que os albinos morram. Mas, paradoxalmente, partes dos seus
corpos são procuradas para efeitos de feitiçaria de enriquecimento, visto que o enriquecimento pessoal é visto
como algo que seca a riqueza à sua volta. Por essa razão e por ser desconhecida a localização das suas campas,
pelo menos 19 albinos foram mortos e mutilados post mortem, em 2007 (GETTLEMAN, 2008). Também em
Moçambique, os mais poderosos amuletos e tratamentos mágicos para obter e manter riqueza e poder exigem
partes de corpos humanos mas, tanto quanto sei, não especificamente de albinos. Isto pode contudo mudar em
breve, devido ao ocorrido na Tanzânia e à habitual rapidez com que novas técnicas mágicas se espalham na região.
Os dados acerca dos procedimentos funerários com albinos resultam de uma comunicação pessoal de Danúbio Lihahe.
20 Travessias 2008

o transporte em helicóptero de prisioneiros políticos até Lourenço


Marques, a PIDE/DGS e as tropas portuguesas costumavam atirá-los ao
mar, longe da costa. Se não é de excluir que isso possa ter acontecido,
relatos fidedignos de antigos membros das tropas portuguesas, também
eles horrorosos, contam uma história significativamente diferente.Alguns
comandantes militares e agentes da PIDE/DGS costumavam, de facto,
atirar guerrilheiros de helicópteros, quando pensavam que não iriam obter
mais informações deles; mas isto era feito em terra firme e os cadáveres
das vítimas eram deixados insepultos. Um dos agentes costumava até gritar
sarcasticamente, nessas ocasiões: «Dizes que a terra é tua, vai ter com ela!»9
Assim, naquilo que parece ser uma reinterpretação de práticas reais
que não envolviam água, as narrativas populares acerca do destino dado
aos cadáveres dos resistentes independentistas desaparecidos colocam-
nos sistematicamente em ambientes molhados. Essas narrativas tanto
podem seguir uma analogia directa com os enterros de gémeos ou ir
ainda um pouco mais longe, colocando os corpos dentro de água, em
vez de sob terra molhada – tal como os albinos “vão um pouco mais
longe” que os gémeos na ameaça que representam e nos constrangi-
mentos impostos às suas mortes.
No entanto, esta ligação simbólica entre prisioneiros desapareci-
dos, gémeos e albinos continua após a independência.
Cronologicamente, o primeiro caso que me foi mencionado
refere-se a um motim de ex-guerrilheiros, pouco depois da indepen-
dência. Conta-se que os rebeldes foram dominados e levados para a
ilha da Xefina (situada perto da costa, na baía de Maputo, e local da
tentativa de fuga do Governador em 1833), onde foram fuzilados e
lançados ao mar. Até ao momento dos fuzilamentos, trata-se de factos
históricos bem conhecidos, mas não pude obter qualquer confirmação
acerca do que realmente aconteceu aos cadáveres.
A ilha tornou-se depois o local de um Campo de Reeducação,
para pessoas que o regime considerava “comprometidas com o colo-
nialismo”, “reaccionárias” ou ideologicamente heterodoxas. Acerca do
que aconteceu nesta fase, é vox populi que os prisioneiros lá falecidos
foram igualmente lançados à água. Contudo, um antigo prisioneiro
desse campo negou a veracidade dessa história durante uma conversa
comigo, chamando-lhe «um mito».

(9) Comunicação pessoal de três ex-militares portugueses (dois deles conscritos) que testemunharam este
procedimento e desejam manter o anonimato.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 21

Vários outros campos de reeducação foram subsequentemente cons-


truídos, sobretudo no interior e longe de Maputo. Pude ouvir acerca
deles, em várias histórias contadas por pessoas que nunca lá estiveram,
que as campas dos prisioneiros eram cavadas na margem dos rios. Em-
bora muitos campos fossem de facto construídos junto de rios, devido
às necessidades de abastecimento de água, nunca alguém que lá tenha
realmente estado me confirmou esses procedimentos funerários. Pelo
contrário, quatro antigos prisioneiros disseram-me que nunca viram
tal acontecer e que, nos campos onde estiveram presos, as margens dos
rios eram usadas para culturas agrícolas.
Também existem narrativas populares acerca de pessoas que ten-
taram fugir dos campos de reeducação e não conseguiram regressar a casa,
desaparecendo pelo caminho. Pude ouvir seis dessas histórias e todas
elas tinham um leit motiv similar: o fugitivo morreu ao tentar atravessar
um rio, onde se afogou ou foi comido por crocodilos – o protótipo de
predador aquático nas zonas de interior.
Portanto, no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos no perí-
odo pós-independência, as narrativas populares colocam-nos sistematica-
mente – tal como acontece com os resistentes anti-coloniais desaparecidos
– morrendo na água, sendo comidos por predadores aquáticos, ou sendo
sepultados em solo molhado ou na própria água. E isto acontece, também,
independentemente do conhecimento factual de eventos reais.
Esta última característica reforça a significância simbólica de
tais histórias. Mas qual é o sentido das equivalências entre prisioneiros
desaparecidos, gémeos e albinos que elas enfatizam?
Se tomássemos apenas em consideração estes dados, pareceria que
as velhas crenças acerca de gémeos e albinos são usadas para mencionar
prisioneiros políticos desaparecidos apenas para destacar o facto de eles
terem desaparecido. No entanto, existe um outro grupo conspícuo de
pessoas que também foram presas, levadas para longe das suas comu-
nidades e famílias e detidas em terras distantes, de onde muitas delas
nunca regressaram, e essas crenças não são usadas para falar delas.

Subversivos e Vítimas
Em Maio de 1983, ao informar o país acerca dos resultados do
4º Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel anunciou que
uma das decisões era «limpar as cidades de vadios, marginais, prostitutas e to-
dos aqueles que não trabalham». Nas palavras de Gita Honwana (1984: 3),
22 Travessias 2008

«Assim se iniciou a grandiosa operação pela produção, contra a fome e o de-


semprego, contra a marginalidade e a criminalidade, pela dignidade do Homem
Moçambicano; uma operação que é parte integrante da batalha económica que
hoje travamos; uma operação que está sendo uma escola em que também a Jus-
tiça através dos seus Tribunais, através da actuação dos seus Juízes, foi aprender
uma lição de legalidade.»
Para a população comum, contudo, era difícil reconhecer sob esta
retórica gloriosa os acontecimentos reais que estavam a viver.
Aquilo que recordam e mencionam são as constantes rusgas e
postos de controlo, impostos pela polícia e pelas milícias oficiais junto
das paragens de autocarro e nas áreas residenciais, as pessoas que não
traziam no bolso o bilhete de identidade ou o cartão de trabalho a
serem levadas para o Niassa antes que as suas famílias tivessem oportu-
nidade de intervir, as mães solteiras sendo deportadas como prostitutas,
os desempregados sendo tratados como criminosos por um estado que
era dono da economia mas não lhes conseguia proporcionar trabalho,
a humilhação, a dor, o desamparo e a amargura. Afinal, as pessoas lem-
bram e sublinham as famílias separadas e destruídas, o trabalho forçado,
os parentes desaparecidos para sempre, o abuso de poder sobre pessoas
normais, sem que nada de positivo tivesse resultado de tudo isto. Lem-
bram e sublinham, também, o aproveitamento do ambiente de delação
e depuração para levar a cabo vinganças pessoais.

Imagem 3. Julgamento de uma mãe, durante a Operação Produção (foto Justiça Popular).
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 23

Quando recuamos no tempo e olhamos para essa realidade


através da perspectiva do Estado, na revista oficial Justiça Popular,
tanto as apologéticas compte rendu dos Juízes Populares (HONWA-
NA, 1984) quanto os apelos e veredictos publicados como exemplos
de jurisprudência (TPCM 1984) são consistentes com as descrições
populares que mencionei.
Não foi escrita qualquer lei sobre a “Operação Produção” mas,
só em Maputo, foram de imediato criados 38 postos de verificação com o
estatuto de Tribunais Populares mas, ao contrário destes, com o poder de
sentenciar os acusados a penas de prisão ou de deportação para centros
de produção ou campos de reeducação. Nas primeiras semanas, as rusgas e
detenções foram tão numerosas que os Juízes Populares nomeados ti-
veram frequentemente que trabalhar 48 horas consecutivas, decidindo
o destino de centenas de pessoas (imagem 3).
Com a acumulação de detidos, as forças policiais começaram a
mandá-los logo para os centros de evacuação, de onde seguiam directamente
para o Niassa. Foram mais tarde criados grupos de triagem nos postos de veri-
ficação, e só os «casos duvidosos» eram levados aos Juízes Populares.Também
acabou por ser implementado um mecanismo de apelo, neste caso baseado
sobretudo em juízes que já tinham alguma preparação jurídica.
A revista refere muitas decisões injustas, mesmo de acordo com os
critérios draconianos da Operação Produção. Nas áreas periurbanas, hou-
ve camponeses deportados porque, obviamente, não tinham nenhum
cartão de trabalho passado por uma entidade empregadora. O mesmo
aconteceu a vários trabalhadores empregados, porque muitas empre-
sas tinham os seus registos de pessoal desactualizados (HONWANA,
1984). Entre os académicos e outras profissões proeminentes, chegou
a haver casos de pessoas que foram subitamente demitidas e, ao chega-
rem a casa, encontraram a polícia à sua espera para as deportar como
“improdutivas”10. Outras profissões, como as de curandeiro e adivinho,
não eram reconhecidas como tal pelo estado e, dessa forma, praticá-las
tornou-se uma razão para deportação – tal como acontecia com os
biscateiros (TPCM, 1984: 40).
Também os critérios utilizados nos apelos são com frequência
surpreendentes. Um dos exemplos de jurisprudência confirma a de-
portação para o Niassa de um trabalhador emigrado que esperava em

(10) Ao contrário dos restantes exemplos que menciono, tomei conhecimento destes últimos casos (que cor-
respondem à punição de inimizades pessoais ou políticas que não encontravam bases legais sob outras acusações)
através de comunicações pessoais, e não pelos artigos da revista Justiça Popular.
24 Travessias 2008

Maputo pela renovação do seu passaporte, baseando-se a decisão no


facto de ele não ter um cartão de trabalho da Suazilândia – que não
existia – e de, ao contrário do que a polícia política lhe dissera para
fazer, não se ter inscrito como alguém que procurava trabalho – o que
não era o seu caso, visto trabalhar no estrangeiro (TPCM, 1984: 41).
De facto, apelar podia piorar a situação. Os pais de uma jovem
pediram o seu regresso de um campo de trabalho perto de Maputo, pois
não era “improdutiva”, à luz das últimas instruções enviadas aos postos
de verificação. Mas o juiz de recurso decidiu que, como ela era mãe
solteira de dois filhos «perante a total indiferença dos seus pais», era uma
«mulher de mau porte» e deveria voltar a ser julgada sob essa acusação, e
não como “improdutiva” (TPCM, 1984: 41). Nesta nova situação, foi
provavelmente enviada para o Niassa…
As situações mais arbitrárias diziam de facto respeito a mulheres
e à acusação de prostituição. Depois de 6 meses de julgamentos su-
mários e deportações, um Juiz Popular sugere timidamente que talvez
fosse tempo de «definir claramente prostituição e identificar a sua punição,
de acordo com a nossa realidade» (HONWANA, 1984: 9), aproveitando
para mencionar o caso de uma mulher que foi acusada de prostitui-
ção porque se separou de um homem com quem coabitava há vários
anos sem ser casada e, vivendo de novo em casa dos pais, começou a
relacionar-se com outro homem antes de as «estruturas locais»11 terem
ratificado a sua separação anterior. Um dos veredictos de recurso teve
que sublinhar que «uma mulher não é uma prostituta apenas por ter vivido
maritalmente com um português», antes da independência (TPCM, 1984:
42). E Stephanie Urdang (1989) ouviu, numa viagem de estudo através
de campos de deportação, queixas sistemáticas de mulheres que diziam
estar ali devido a vinganças pessoais de carácter sexual.
Que aconteceu a esses milhares de pessoas, apelidadas de impro-
dutivas, delinquentes ou prostitutas? No início, havia de facto alguns
centros de produção onde podiam ser colocadas a fim de desempenhar tra-
balhos pesados, e ainda havia espaço nos campos de reeducação. Em breve,
todos esses lugares estavam sobrelotados e o Estado não conseguia organizar
novos, pelo que as pessoas eram simplesmente abandonadas longe das suas
zonas de residência. Primeiro, em aldeias; depois (como aconteceu a um
ícone do bairro do Xipamanine, um homem que regressou do Niassa

(11) Num quadro monopartidário que indiferenciava o Estado e o Partido Frelimo, esta expressão designava os
Secretários de Bairro, os Grupos Dinamizadores e as lideranças locais das organizações de base da Frelimo, com destaque
para as de mulheres e de juventude. “Estruturas” acabou por se tornar a designação popular para quaisquer di-
rigentes do Estado ou da Frelimo, do nível central ao local.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 25

caminhando milhares de quilómetros), eram largadas no meio do mato,


numa província onde os leões são muito comuns.A esmagadora maioria
dos deportados nunca chegou a ser trazida de volta para as suas cidades.
Assim, a menos que eles ou as suas famílias tenham conseguido trans-
porte pelos seus próprios meios, ou morreram ou continuam a viver
nas regiões onde o Estado os deixou. Para as suas famílias e vizinhos,
eles desapareceram.
Curiosamente, nem os cidadãos comuns nem os simpatizantes
internacionais que observavam as transformações em Moçambique
(URDANG, 1989) apontaram as óbvias semelhanças entre as primeiras
justificações colonialistas para o trabalho forçado (ENNES, 1946 [1899])
e o discurso acerca do trabalho que legitimava a Operação Produção, ou
sequer o paralelo entre ela e a Lei do Passe e política dos Bantustões do
apartheid sul-africano. Na década de 1980, aquilo que apontavam era
o enorme número de pessoas que eram tratadas injustamente, mesmo
de acordo com os princípios da Operação Produção. Só mais tarde esses
princípios começaram a ser popularmente vistos como um abuso em
si próprios, mas sem suscitarem analogias históricas locais – embora
antigos responsáveis com quem tive oportunidade de falar acerca do
assunto justifiquem a Operação através de uma outra analogia histórica,
designadamente as restrições à circulação interna e ao estabelecimento
nas cidades que vigoravam na URSS.
Mesmo assim, os deportados são vistos, em termos gerais e na
grande maioria dos casos individuais, como pessoas normais que sim-
plesmente se tornaram vítimas de uma utilização abusiva do poder
político. E a Operação Produção acabou por perdurar como um aconteci-
mento colectivamente traumático, que apenas os subsequentes horrores
da guerra civil12 permitiram minimizar na memória das pessoas.
Ao perguntar a pessoas de diferentes bairros de Maputo o que
aconteceu a esses deportados que nunca regressaram, nunca recebi uma
resposta que mencionasse água, solo molhado ou crocodilos. Em mais
de 30 entrevistas e conversas informais acerca deste assunto, encontrei
também um leit motiv comum, mas que é muito diferente daquele que
referi no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos: de acordo com
as histórias, ou essas pessoas continuaram a viver no Niassa; ou foram

(12) Pouco depois da independência, em 1975, os regimes minoritários “brancos” da Rodésia (Zimbabué) e África
do Sul começaram a apoiar grupos de oposição armada para actuarem em Moçambique, cuja acção acabou por
evoluir para uma guerra civil em larga escala que apenas terminou em 1992. Acerca dos horrores dessa guerra,
veja-se por exemplo Geffray (1991), Hall & Young (1997) e Granjo (2006).
26 Travessias 2008

comidas por leões; ou morreram por qualquer outra razão e foram


sepultadas de acordo com os costumes vigentes nessa província.
Esses maputenses não conhecem realmente as características dos
tais costumes funerários do Niassa que mencionam, mas partem do
princípio que se tratará de enterros em solo seco. Um tal fim é, não
obstante, visto como lamentável, pois supõem que o ritual seja diferente
do seu – e portanto estranho para os deportados falecidos – e porque
os espíritos dos defuntos ficarão sozinhos no Niassa, sem a companhia
dos seus parentes vivos e mortos.
Devo, entretanto, sublinhar que esta narrativa recorrente acerca
do destino dado aos cadáveres é particularmente significativa porque,
conforme Feliciano (1998) já salientou, quando um forasteiro morre
deverá ser sepultado em solo húmido,“à cautela”, pois para a população
local é fácil ver que o defunto não é um albino, mas nunca se pode ter
a certeza de que ele/ela não é um gémeo, ou a mãe de alguém que seca
a terra. Partir do princípio de que as pessoas do Niassa não tomaram
essa habitual precaução para com forasteiros que, afinal, estavam numa
posição estigmatizante é, portanto, uma forte declaração (embora talvez
não consciente) de que eles não a deveriam tomar. É, de facto, uma
reivindicação de que os deportados não merecem ser enterrados como
gémeos ameaçadores.
Também os relatos públicos do homem do Xipamanine que
mencionei algumas páginas atrás eram duplamente significativos, pois
constituíam testemunhos da sua experiência pessoal e, ao mesmo tempo,
reconfigurações dessa experiência à luz das expectativas e consensos
da audiência. Quando ele atravessou o país a pé, teve também que
passar rios a vau, de forma a evitar postos de controlo nas pontes. Es-
sas travessias e o concomitante perigo de crocodilos eram momentos
impressionantes das suas narrações, mas nunca atribuía aos crocodilos
a morte de outros deportados, embora mencionasse com frequência a
sua morte por parte de leões e o terror que a todos suscitava a possi-
bilidade de tal lhes acontecer.
Verificamos então que, em completa oposição aos prisioneiros
políticos desaparecidos (ver imagem 2), os deportados desaparecidos na
Operação Produção – que também foram presos e mandados para longe
pelo Estado, sob condições e acusações estigmatizantes – são sistema-
ticamente representados como tendo sido enterrados em solo seco ou
comidos por predadores terrestres, mesmo se é provável que alguns deles
se tenham na realidade afogado, ou sido comidos por crocodilos.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 27

Num contexto retórico e conceptual em que os prisioneiros políticos


são equiparados a gémeos/albinos, os deportados desaparecidos são, as-
sim, veementemente apresentados como não sendo gémeos/albinos.
Uma das consequências deste facto é que a imagem projectada
sobre os prisioneiros políticos desaparecidos não pode ser apenas uma
afirmação do seu desaparecimento. Uma segunda consequência é que
se torna necessário clarificar os sentidos atribuídos às diferenças entre
estes dois grupos de pessoas desaparecidas, para que possamos compre-
ender o sentido dessa imagem.

Uma Teoria Popular do Poder Político


Tendo eu referido que os deportados da Operação Produção são
vistos como vítimas inocentes do poder político, seria tentador aplicar
aos prisioneiros políticos, inversamente, o rótulo de culpados.
Essa seria, contudo, uma assunção simplista.
Por um lado, seria simplista pelo facto de dois grupos muito di-
ferentes de prisioneiros políticos desaparecidos surgirem amalgamados,
nas narrações populares, sob uma mesma equivalência aos gémeos e
albinos: os heróis que morreram pela independência (que depressa foi
apresentada como sinónimo de revolução socializante); e as pessoas que,
sob imputações estigmatizantes, foram acusadas de conspirar contra a
independência, o Povo Moçambicano e a revolução.
Em segundo lugar, seria simplista por ser bem sabido que uma
detenção como prisioneiro político não deriva necessariamente de
uma culpa ou de um acto censurável. Isto é imediato no caso dos re-
sistentes anti-coloniais. Mas a maioria das pessoas concordará também
que após a independência, junto com “verdadeiros” pró-colonialistas,
contra-revolucionários e ideologicamente heterodoxos, muitos prisio-
neiros foram detidos apenas porque se queixaram um pouco mais alto
de assuntos que também desagradavam aos seus vizinhos e colegas, ou
porque tomaram as atitudes “erradas” no momento errado, mesmo que
tivessem razão em fazê-lo – como no caso apresentado neste pungente
relato de um ex-prisioneiro político:
Nesse tempo, eu não era contra-revolucionário, nada! Estava con-
tente com a independência e aceitava como ela era, mesmo as coisas
que não gostava. Por exemplo: se tinha que se fazer dias de trabalho
voluntário, porque é que eu ficava de enxada na mão, a capinar e
a fazer buracos? Sou mecânico, por amor de Deus! Não sabia usar
uma enxada e as outras pessoas não sabiam fazer mais nada. Eu ia ser
28 Travessias 2008

mais útil a fazer o meu trabalho de graça, naquele dia. Mas nunca me
queixei dessas coisas. Não gostava, mas fazia o meu melhor e aceitava.
E aceitava a Frelimo mandar, porque nos trouxe a independência.
Mas mandaram-me para o campo de reeducação como contra-
revolucionário e sabotador! Foi assim: uma peça importante de uma
máquina partiu e o director da fábrica mandou-me fazer uma nova.
Eu disse que não se podia fazer, que era preciso importar. Expliquei
que não tínhamos aquele aço e as ferramentas que eram precisas e
que, se substituíssemos por uma peça feita por nós, outras iam partir.
O director não sabia nada de mecânica e indústria. Era só um “camarada
dedicado da luta armada”13 e então fui preso como sabotador. Depois,
aconteceu o que eu disse. Ele é que foi o sabotador, mesmo. Mas fui
eu que fiquei anos no campo de reeducação.

Assim, a diferenciação popular entre deportados e prisioneiros polí-


ticos não decorre dos actos particulares que eles efectuaram (ou não) e da
culpa atribuída a esses actos concretos, mas da posição que eles mantêm
perante o poder e da avaliação pública que é feita acerca dessa posição.
Por outras palavras, o objecto da avaliação popular, neste jogo de
identificação e diferenciação, não é a culpa ou inocência de actores con-
cretos, mas aquilo que é lícito ou ilícito quer na relação das pessoas com
o poder estabelecido, quer na forma como esse poder é exercido.
Efectivamente, conforme antes mencionei, os gémeos e os albinos
têm outra característica pertinente, no contexto socio-cultural do sul de
Moçambique, para além do desaparecimento destes últimos e da sua origem
cósmica comum: ambos são ameaças socio-cósmicas que fazem perigar a
ordem da reprodução do mundo, nos seus aspectos naturais e sociais.
Dado que o desaparecimento é comum aos deportados e prisio-
neiros políticos acerca dos quais se contam as histórias que temos vindo
a acompanhar, o assunto que é enfatizado nos destinos opostos que são
atribuídos aos seus cadáveres é, então, o carácter ameaçador que é ou
não reconhecido a cada um dos grupos (veja-se imagem 2).
Assim sendo, a coexistência entre, por um lado, uma equivalência
simbólica entre prisioneiros políticos desaparecidos e gémeos/albinos
e, por outro lado, a sua diferenciação dos deportados desaparecidos
na Operação Produção, expressa um conceito – ou, melhor dizendo,

(13) A independência de Moçambique, em 1975, foi precedida e acompanhada por um êxodo quase geral das
pessoas com origens europeias ou asiáticas (RITA-FERREIRA, 1988). Visto que o acesso à educação escolar
e aos postos de chefia era muito racializado no tempo colonial, isto criou uma dramática escassez de pessoal
qualificado na maioria das áreas e actividades. Dessa forma, o voluntarismo e o currículo político tornaram-se,
muitas vezes, o único critério disponível na nomeação para postos de liderança em instituições administrativas
e económicas.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 29

uma teoria – das relações de poder político que mantém interessantes


paralelos com as sugestões de Harry West (2008) acerca do norte de
Moçambique.
Sejam heróis da independência ou ameaças a ela, sejam culpados
ou simplesmente pessoas consideradas subversivas pelo poder (não im-
porta quando ou qual), os prisioneiros políticos ameaçam a sociedade
global e não apenas aqueles que ocupam o poder. Pessoas normais a
que se tornaram vítimas de um abuso de poder generalizado não são
ameaças sociais; pelo contrário, são merecedoras de preocupação e
consideração públicas.14
Em termos mais gerais, de acordo com essa teoria política popular,
é ilícito e socialmente ameaçador fazer perigar o poder estabelecido, a
partir do momento em que ele é reconhecido como tal, e quem o faz
torna-se uma anormalidade social ameaçadora. Fazer perigar o poder
estabelecido é fazer perigar não apenas os poderosos, mas também a
ordem e equilíbrio sociais. Entretanto (tão importante como a afirma-
ção anterior), é também ilícito, para um poder estabelecido e legítimo,
tomar decisões injustas acerca das pessoas sob sua responsabilidade, em
vez de assegurar o seu bem-estar básico, conforme deveria.
As resilientes representações sociais acerca dos gémeos e albinos
foram, então, manipuladas para expressar de forma crítica uma visão
do poder subtilmente equilibrada, que pode ser muito enganadora
se focarmos a nossa atenção em apenas um dos seus pólos. Tudo o
que conseguiremos ver, nesse caso, será ou uma atitude dependente
e exigente ou (olhando para o pólo oposto) uma resignada e quase
automática submissão ao poder.
Quando a tomamos no seu conjunto, contudo, aquilo que en-
contramos é um “contrato social” (ROUSSEAU, 1762) que, de facto, é
similar a várias descrições de conceitos “tradicionais” de poder político
na África sub-sahariana:15 Um poder estabelecido pode ser considerado
legítimo devido a diversas razões diferentes (neste contexto, a genealogia, a
conquista, a legitimidade revolucionária ou eleições democráticas); mas o
reconhecimento social da legitimidade do poder, mesmo que consensual,
não significa que todas as suas decisões e práticas sejam legítimas, mesmo
que elas sejam realizadas ao abrigo das competências que são reconhecidas

(14) Seria interessante verificar que destino era atribuído pelos relatos populares aos cadáveres das pessoas falecidas
em trabalho forçado durante o regime colonial, mas não consegui encontrar referências a esse assunto.
(15) Para além da vasta bibliografia científica acerca deste assunto veja-se, por exemplo, o fascinante romance
sul-africano The Wrath of the Ancestors (JORDAN, 2004 [1940]).
30 Travessias 2008

a esse poder. O reconhecimento público da legitimidade do poder impõe,


aos poderosos, responsabilidades para com a protecção e bem-estar da
população que governam. Se o poder estabelecido falha a concretização
dessas responsabilidades – ou as desrespeita – nas suas acções concretas,
essas acções são ilegítimas, embora o próprio poder não o seja.
Assim, focar apenas um dos pólos deste “contrato social” tem
consequências mais vastas que o mero equívoco interpretativo ou
científico. Pode, também, restringir a capacidade para compreender as
dinâmicas políticas correntes.
Após 80 anos de domínio colonial e 33 anos de independência
sob governação de um mesmo partido, que nem sequer enfrentou re-
sistências explícitas à sua mudança de um paradigma socializante para
uma política neo-liberal, é muito compreensível que as elites políticas
moçambicanas foquem a sua atenção no pólo da resignação e submissão
popular ao poder – afinal, aquilo que é mais visível e tranquilizador a
partir da posição em que se encontram.
Foi por isso, parece-me, que essas elites se mostraram tão surpre-
endidas pelos violentos motins contra os aumentos de preços de trans-
portes que abalaram Maputo no início de Fevereiro de 2008 (GRANJO,
2008a) e declararam que existia uma «mão invisível» externa por detrás
deles. Tal como se compreende que, simetricamente, alguns apoiantes
mais fervorosos do maior partido de oposição tivessem a esperança de
assistir, nessas movimentações populares, ao dobre de finados do poder
da Frelimo, logo numa das regiões onde esta tem uma votação mais
massiva (PEREIRA, 2008). Encarando em simultâneo as duas vertentes
do contrato social que referi, contudo, aquilo que estava sobretudo em
causa nos motins era uma declaração popular da inaceitabilidade de que
o poder continue a ser exercido sem consideração pelas necessidades
básicas das pessoas sobre as quais se exerce, sem que tal pusesse em
questão o próprio poder estatal e a força política que o ocupa.
Mas, se parece agora claro, a partir dos dados e interpretações
que apresentei, que as velhas representações acerca de gémeos e albi-
nos foram seleccionadas como matéria-prima para expressar de uma
forma sistemática uma visão popular do poder e para classificar, em
função dela, recentes actores dos acontecimentos políticos, não há nada
de “natural” nessa escolha. A selecção dessa metáfora, em detrimento
de alguma das outras linguagens locais que são mais habitualmente
utilizadas para falar do poder (como por exemplo a feitiçaria) é, pelo
contrário, excepcional e surpreendente.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 31

É provável que tudo tenha começado com esse perturbante acto


de desaparecer, que é comum aos dois contextos e parece ter oferecido,
aos albinos e gémeos, uma insuspeitada pertinência para simbolizarem
questões políticas recentes.
O facto de terem sido seleccionados para esse efeito revela, no
entanto, um outro ponto importante: mostra até que ponto são ainda
hoje relevantes, no Moçambique urbano e periuburbano, as represen-
tações e crenças acerca de gémeos e albinos.

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Militância Política e Religiosa:
Representações Paradoxais de Pentecostais
no Processo de Ocupação de Terra

Y
Fábio Alves Ferreira
Programa de Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco

Resumo
Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada no Assentamento
Herbert de Souza, localizado em Moreno, interior do Estado de Per-
nambuco. Tal pesquisa procurou constatar quais são as representações
religiosas de camponeses praticantes de alguma religião pentecostal e
que foram beneficiados com desapropriação do Engenho Pinto, trans-
formado posteriormente em assentamento. Esse assentamento é com-
posto de camponeses dentre os quais muitos se professam praticantes
de atividades religiosas pentecostais. Por meio de pesquisa qualitativa,
com entrevistas sem-estruturadas, constatamos que a identidade reli-
giosa daqueles camponeses interferiu ou interferem no desenrolar de
seu cotidiano de pequenos agricultores. Percebemos no decorrer da
investigação que os assentados pentecostais, todos beneficiados pela ação
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), atualizam
suas representações religiosas de acordo com a demanda de vida que os
motivou quando da entrada deles no processo de ocupação. Foi cons-
tatado também que o lugar e o tempo no qual aconteceu a inserção de
cada pentecostal fez com que eles desenvolvessem elaborações religio-
sas diferenciadas acerca do Movimento, da terra e do que concebem
como prática religiosa. Assim eles tecem redes de significado que dão
ordem às suas concepções de mundo. Nesse hibridismo de concepções
criamos três tipos ideais de pentecostais: os pré-ocupação, os pós-ocupação
e os pró-ocupação. Consideramos, finalmente, que as representações são
elaboradas num momento de crise, em que há um intercâmbio de
36 Travessias 2008

saberes entre o que afirma o MST e o que sistematiza as doutrinas da


comunidade religiosa à qual os fieis estejam vinculados.

Palavras-Chave: Representações religiosas – Pentecostais – Assentamento


Herbert de Souza – Religião – Cultura camponesa – MST.

Nesse artigo pretendemos descrever e analisar as representações


religiosas dos pentecostais instalados no Assentamento Herbert de
Souza (AHS), localizado em Moreno, na região metropolitana do Es-
tado de Pernambuco, no Brasil. As representações desses pentecostais
relacionam-se com as condições que desencadearam a sua entrada no
assentamento. Portanto, elas se diversificam a partir da localização social
do sujeito. Para compreender isso dividimos os pentecostais ali presentes
em pré-ocupação, pró-ocupação e pós-ocupação.A criação desses tipos ideais,
conforme modelo weberiano facilitou o entendimento do discurso a
partir da motivação e justificativas de envolvimento no processo de
tomada de terra e fixação de residência no Assentamento.
O AHS foi assim nomeado em 4 de setembro de 1997 com um
total de 147 famílias assentadas, alocadas em uma área de 1.523 hectares.
Dessas, 22 famílias são praticantes de alguma religião pentecostal, que
pode variar entre as duas igrejas presentes no assentamento: Assembléia
de Deus, ou Batista Monte Moriá.
No decorrer desta pesquisa, entrevistamos 11 pessoas repre-
sentantes de nove famílias pentecostais residentes no AHS. Durante
as pesquisas ali realizadas também tivemos conversas prolongadas e
informais com dezenas de outros pentecostais e não pentecostais.
Todos eles nos ajudaram a perceber e interpretar as redes simbólicas
religiosas ali estabelecidas. Nossa pesquisa se caracteriza, portanto,
como uma pesquisa qualitativa, na qual adotamos a observação par-
ticipante e entrevistas semi-diretivas.
No decorrer desse texto transcrevemos a fala dos pentecostais
entrevistados durante nossa imersão no campo de pesquisa. Colhemos
depoimentos que nos ajudaram na compreensão do ethos de nossos
sujeitos e dos símbolos que permeiam o seu cotidiano. Para tanto, uti-
lizamos dois aportes teóricos: primeiro, o conceito de representações
coletivas de Durkheim, explicitado com propriedade em As Formas
Elementares da Vida Religiosa. Esse conceito depois foi desenvolvido por
outros pesquisadores com o termo representações sociais. A segunda
ferramenta foi o conceito de cultura e também religião, muito caros a
Militância Política e Religiosa 37

Clifford Geertz. Tomamos por base as obras O saber local e A interpre-


tação das culturas. No decorrer do texto, dialogaremos com outros
teóricos, buscando esclarecer todas as nuanças dos processos sociais
estabelecidos no Assentamento Herbert de Souza. Dadas as trincheiras
pelas quais interpretamos nosso objeto em questão, partimos para
exploração dos conceitos.
Durkheim entende a religião como fato social, portanto, em
termos coletivos. Ele emprega o termo fato social para designar aqui-
lo que é externo ao indivíduo e dotado de poder coercitivo sobre o
mesmo (DURKHEIM, 2005). Dessa maneira, constitui-se um desafio
entender a religião na modernidade a partir de Durkheim.A pluralidade
contemporânea favorece a entrada de diversos sistemas de significação,
num mesmo espaço social (SANCHIS, 2003). Ainda assim a sua teoria
nos fornece pistas fundamentais para interpretar o fenômeno religioso
na cultura camponesa. O termo representações refere-se a elaborações
que dão sentido ao mundo dos sujeitos sociais que as construíram
(JOVCHELOCITCH, 1998). Para Durkheim, as representações co-
letivas contêm duas características que as qualificam como fato social:
primeiro por ser externo às consciências individuais; segundo, é pelo
fato de exercer ação coercitiva sobre as mesmas (MINAYO, 1998).
Afirmar que as representações religiosas são coletivas implica
em dizer que a religião traduz um estado da coletividade. A teoria de
Durkheim acerca da religião é que todas elas são apenas uma transpo-
sição da sociedade para o plano simbólico. Isso porque as sociedades
necessitam de crenças para as quais reportarão enquanto esta, por sua vez,
constitui-se como sistema de representação valorativo, para o qual educa,
disciplina e forma os cidadãos. O totem, nesse sentido, é a realidade
transfigurada projetada pelo consciente coletivo (CIVITA, 1983).
Já o conceito de cultura, em Geertz, é um conjunto de teias que
atribui significado à vida humana em sociedade. Por isso, o estudo das
culturas deve dirigir-se no sentido de interpretar os símbolos dos grupos
sociais, buscando o significado dos mesmos no cotidiano dos indivíduos
(GEERTZ, 1989). Para Geertz, todos os acontecimentos são colocados
em redes locais de saber (GEERTZ, 2001). Ele ainda sustenta que não
é a partir de fatos gerais que o ser humano constrói a religião (Id). A
aproximação entre Durkheim e Geertz se dá, em nossa perspectiva, pelo
fato de Durkheim não negar o aparecimento de novas representações
para responder a questões para as quais não se tem respostas. Ou seja,
as representações não são estáticas.
38 Travessias 2008

Outro autor igualmente relevante para nossa abordagem é


Serge Moscovici, que desenvolve a teoria das representações sociais,
proveniente de Durkheim. Em que consiste, então, a diferença de
Durkheim e o conceito de representação coletiva para Moscovici e a
idéia de representação social? Segundo Gerard Duveen (DUVEEN,
2004) a teoria durkheimiana está orientada em interpretar aquilo que
mantém as sociedades coesas. Dedica-se ao entendimento daquilo que
estrutura e conserva a sociedade. Já a teoria das representações sociais
de Moscovici, investiga menos o caráter coercitivo das representações,
dedicando-se à sua heterogeneidade na sociedade moderna.
Para Moscovici, uma das funções das representações sociais é
convencionar os objetos e acontecimentos. Assim, por exemplo, é que
se sabe quando alguém levanta o braço para demonstrar cordialidade
ou impaciência (MOSCOVICI, 2004). Essa função aproxima-se do
exemplo dado por Geertz, das crianças que piscam os olhos (GEERTZ,
Op.cit). Elas praticam os mesmos atos, porém com significação dife-
renciada dentro da rede local de saber. Geertz utiliza-se desse aconte-
cimento simples para mostrar que existe uma estrutura de significado
que permite o entendimento dos movimentos das pessoas e, no caso
das crianças, essa estrutura ajuda a discriminar qual o significado de
cada ato, aparentemente igual. Em Moscovici, esse mesmo fenômeno,
seriam os signos de comunicação convencionados, isto é, tornado em
representação social.
Ora, tanto Durkheim, quanto Geertz dissertam sobre a relevância
do símbolo na construção e manutenção dos valores de um determinado
grupo. Para Geertz, os símbolos sagrados agregam em si mesmos o ethos
de um povo. Ele considera ethos a visão de mundo de um determinado
grupo; as qualidades e disposições morais e estéticas, o caráter e a qua-
lidade de vida. Para Durkheim, os símbolos representam as expectativas
das pessoas e fazem com que os sentimentos possam perdurar e impedir
o esfacelamento das idéias, propósitos e história do grupo.

Aliás, sem símbolos, os sentimentos sociais só poderiam ter existência


precária. Se os movimentos, pelos quais esses sentimentos se expri-
miram, se inscrevem sobre coisas que duram, eles próprios se tornam
duráveis. Essas coisas evocam continuamente tais sentimentos aos
espíritos e os mantêm perpetuamente despertos; é como se a causa
inicial que os suscitou continuasse a agir. Assim, o emblematismo,
necessário para permitir que a sociedade tome consciência de si, não
é menos indispensável para assegurar a continuidade dessa consciência.
(DURKHEIM, 1989)
Militância Política e Religiosa 39

Regina Reyes Novaes chama de alquimia de conceitos, símbolos


e imagens o que acontece na formação do discurso de um movimento
social (NOVAES, 1997). Os símbolos condensam toda a variedade de
expectativas do grupo. Portanto, eles são resultados de uma hetero-
geneidade de motivações, de razões diferentes, que agregam em um
único objeto o desejo da comunidade. Esses símbolos são elaborados a
partir do contato com outros sujeitos. Segundo Sandra Jovchelovitch,
o sujeito constrói na sua relação com o mundo, novos significados. Em
suma, ela entende que é no contato com o outro que as representações
têm início (JOVCHELOCITCH, 1998).
As representações religiosas dos pentecostais do Assentamento
Herbert de Souza foram criadas de acordo com o espaço e lugar que
os indivíduos ocupavam na sociedade, da qual sentiam parte, antes de
sua entrada no Assentamento. Ou mesmo, o lugar que o pentecostal
passa a ocupar no assentamento após seu estabelecimento. Essas repre-
sentações atribuem significado às suas atividades, legitimando-os nos
novos papéis sociais que assumem. Neste caso há uma atualização das
representações religiosas de acordo com a demanda social vivenciada
pelos mesmos.
As representações construídas pelos pentecostais no AHS são
entendidas numa situação de privação de condições básicas de sobrevi-
vência. Para esclarecermos tais concepções, voltamo-nos para Durkheim,
com a ressalva de que este estudou uma religião totêmica e, portanto
diferente das estruturas observadas nas religiões contemporâneas, que
possuem um complexo repertório doutrinário. Esclarecidas as diferenças
contextuais, citemo-lo:

Essas classificações sistemáticas, como efeito, são as primeiras clas-


sificações que encontramos na história; ora, acabamos de ver que
elas se modelaram pela organização social, ou antes, que tomaram
por quadros os próprios quadros da sociedade (...) Por que viviam
agrupados é que os homens puderam agrupar as coisas; por que, para
classificar estas últimas, limitaram-se a lhes destinar um lugar nos
grupos que eles próprios formavam. (...) A unidade desses primeiros
sistemas lógicos apenas reproduz a unidade da sociedade (DUR-
KHEIM, Op. cit. p. 189-190).

Sem tomar por base categorias gerais para análise do pente-


costalismo no Brasil, entendemos que as condições sociais às quais os
trabalhadores estiverem submetidos farão com que haja uma remode-
lação de sua fé (RIOS, 2001). Essa remodelação facilitará a inserção do
40 Travessias 2008

pentecostal num movimento que imprimirá nele (neste trabalhador e


por tanto sujeito social), um novo comportamento dentro da sociedade.
Reportamo-nos a Rolim, quando assevera que os personagens históricos
do pentecostalismo foram, quase em sua totalidade, oriundos de segmen-
tos pobres da sociedade. Há uma influência desse fato social na produção
religiosa nesse movimento religioso. O mesmo diz que a explicação sobre
ele seria difícil sem levar em conta tais fenômenos (ROLIM, 1985).
As representações religiosas dos pentecostais do Assentamento
Herbert de Souza foram criadas a partir dessa lógica. Elas surgiram
para legitimar as novas ideologias e possibilitar a ação do camponês
evangélico. Em outros termos, Durkheim e a sociologia do conheci-
mento posterior insistem que “as noções fundamentais do espírito, as
categorias essenciais do pensamento podem ser produtos de fatores
sociais” (DURKHEIM, Op. cit).

Pentecostais no AHS: Configuração dos Grupos


Nessa pesquisa partimos do conselho de Geertz, a respeito do
papel de densificar o óbvio nos acontecimentos cotidianos (GEERTZ,
1989, p. 15), a fim de tornar evidentes as estruturas nas quais se assentam
o imaginário dos pentecostais residentes do AHS. Para interpretar tais
estruturas dividimos os pentecostais em três tipos ideais: pentecostais pré-
ocupação, pró-ocupação e pentecostais pós-ocupação. A classificação dos pen-
tecostais em pré, pró e pós-ocupação foi a metodologia que encontramos
para compreender melhor as diversas visões da terra, de Deus e da igreja
entre os religiosos do assentamento. Cada enquadramento de pentecostal,
de acordo com seu engajamento, o coloca num lugar específico que o
diferencia do anterior ou posterior. Estar na condição de pré-ocupação
significa vivenciar espaços que os pós-ocupação não experimentaram. Estes,
por sua vez, colocam-se nas situações diferentes que os motivaram na
busca da terra. Tentaremos detalhar esses tipos ideais.
Contudo, percebemos que tal metodologia apresenta insuficientes
fronteiras para compreender os sistemas simbólicos criados por cada
grupo. Até porque as percepções se entrecruzam, dependendo do as-
sunto a ser tratado e do tempo no qual o fenômeno ocorreu. Para ser
mais detalhista, percebemos, por exemplo, que houve uma migração da
visão acerca do MST entre os pentecostais pré-ocupação e pró-ocupação, nas
questões relativas à possibilidade de ascensão social. Porém, esses dois tipos
de pentecostais continuaram divergentes quando argumentavam sobre a
vivência tranqüilo no Engenho Pinto, posteriormente transformado em
Militância Política e Religiosa 41

assentamento. Para os pentecostais pré-ocupação, a entrada do MST no


assentamento desencadeou uma constante inquietação no cotidiano
das agrovilas; essa percepção é similar às dos pentecostais pós-ocupação,
que repudiam a ação do MST, considerando-a violenta. Dessa manei-
ra, as representações dos pentecostais pré-ocupação se aproximam das
representações dos pós-ocupação. E, portanto, deixam de afinar com as
representações dos pentecostais pró-ocupação. No entanto, quando a te-
mática a ser discutida é a igreja, todos os três tipos ideais de pentecostais
concordam numa única opinião. Para eles a “igreja” é o espaço onde
ocorre a atividade fundamental. Sem ela, eles seriam pessoas “indig-
nas com aquele que lhes conferiu a salvação”. Nos tópicos seguintes,
discutiremos as representações dos pentecostais sobre suas práticas
doutrinárias e suas relações com o MST.

Representações Paradoxais:
Pentecostais, MST e a Terra
Os pentecostais, já residentes do Engenho Pinto no período
anterior à ocupação, mantiveram uma postura arredia acerca do MST.
Animaram-se inicialmente com a possibilidade da divisão da terra e com
o dinheiro proveniente dos projetos para desenvolvimento dos agriculto-
res. Entretanto, com o passar do tempo, começaram a expressar o desejo
de retorno ao tempo no qual trabalhavam para o dono do engenho.Tais
posturas tornam-se perceptíveis através do discurso dos pentecostais,
nos quais falavam de uma organização que permeava o assentamento.
Sentiam-se assistidos, acobertados, sobretudo financeiramente. Mesmo
ganhando uma “quantia pouca de dinheiro” por cada tonelada de cana
que pudessem colher, falavam de uma prosperidade lenta, mas contínua.
Esse discurso se sustentou no pressuposto de que atualmente “não há
organização no Engenho”. M.T.S.L. nos informou que:
Antes tinha 600 pessoas empregadas. Cum nada, cum nada o povo tinha
seu salário, seu décimo e hoje? Saiu esses projeto aí, mas os marajá
comeu tudo. De oito mil e tanto que saiu, só chegou pra gente cinco e
pouco. Três mil reais eles comeram e agora é a gente que vai pagar.1

(1) MTSL, pentecostal e morador pré-ocupação do MST. Entrevista em: 02 nov. 2007.Todos os nossos interlocu-
tores são identificados com as letras iniciais de seus nomes, para que pudessem ter as suas identidades resguardadas.
Por fim, queremos esclarecer que na transcrição das falas dos pentecostais, com os quais tivemos contato, foram
mantidas as formas particulares e o modo específico deles falarem. Portanto, apresentar os termos expressos
corretamente na língua portuguesa seria impossível, pois eles usam uma linguagem coloquial. Segue-se que a
colocação de “SIC” na frente de cada erro tornaria o texto extremamente marcado por “sics”.
42 Travessias 2008

A razão para essa atitude se dá, a nosso ver, porque, agora como
pequenos proprietários de terras doadas pelo INCRA, eles deviam
seguir uma política de produção determinada por uma instituição
governamental. Os assentados começaram então a perceber que não
havia lucro; aliás, essa é uma reclamação de todos os demais que foram
ouvidos. Segundo o INCRA, eles deveriam se deter no plantio da
lavoura branca, tais como batata, mandioca, abóbora e outros legumes
e frutas. O problema é que, segundo o depoimento dos pentecostais,
isso não é suficiente para sobrevivência. Dessa maneira, os pentecostais
pré-ocupação relembravam da submissão ao patrão, acompanhada pela
certeza do salário no fim do mês.
Essa visão negativa, causada pela proibição de se plantar cana-
de-açúcar, foi transferida aos resultados da ação desencadeada pelo
MST. Daí a idéia de que o MST é um movimento que traz miséria
para os agricultores pobres. No entanto, há dois anos, o INCRA cedeu
à plantação de cana-de-açúcar entre os beneficiários do Assentamento
Herbert de Souza. No depoimento de V.S.P., percebemos claramente
a mudança. Ainda assim, essa mudança de representação a respeito do
MST não é homogênea entre os pentecostais pré-ocupação. Isso porque
outros continuaram afirmando a degradação daquele espaço rural em
virtude da desapropriação desencadeada pela ação do movimento. En-
tre os agricultores pentecostais que continuam a afirmar uma melhor
situação no tempo do Engenho, estão aqueles que, na época em que
trabalhavam para o proprietário da fazenda, galgavam um status ou um
cargo que lhe trazia diferencial significativo aos trabalhos desenvolvidos
pelos demais agricultores.As representações sobre o movimento são:“o
MST é um movimento de bagunça e Deus não é dessas coisas”; “por
causa desse movimento que o engenho está desorganizado, as pessoas
desempregadas e as terras sem produção”. Entretanto, estas são opiniões
individualizadas e não expressam uma idéia comum entre eles.

A ordem do INCRA era pra não plantar cana. Só lavoura branca. Mas
eles viram que ninguém ia pagar o banco se não fosse com cana. Aí
liberaram. Eu sempre vi esse movimento como uma coisa que tava
trazendo confusão e na verdade trazendo tormento pra os pobres que
mora no campo. E trazendo mais gente que já passa dificuldade na
cidade pra passar mais ainda nos engenhos. Mas você me perguntou
como eu acho essas coisas diante de Deus; (...) uma coisa dessas nunca
é de Deus. Deus traz bênçãos, alivia. Mas as vez a gente demora pra
entender as coisas: com o passar do tempo que eu fui ver que isso
trouxe uma diferença pra todos. Porque de dez anos pra cá eu sinto a
Militância Política e Religiosa 43

diferença. Eu planto a minha caninha, faço uma lavoura de macaxeira


uma coisa dessas (...) antes, de 100 reais que custasse uma conta de
terra de cana, você ficava com 20, 15 reais. Agora é sua: você planta
e é tudo seu.2

A afirmação de V.S.P. nos mostra que a autonomia financeira


atual é entendida como resultante dos benefícios pela desapropriação
requerida e conquistada através do MST. Dessa maneira, os pentecostais
pré-ocupação começaram a expressar novas construções sociais acerca do
MST, aproximando-se dos pentecostais pró-ocupação. Nesta perspectiva, o
Movimento foi um instrumento de Deus para que as pessoas ali tivessem
a oportunidade de crescimento e autonomia no meio rural. Ora, nos
discursos dos pentecostais pré-ocupação, fica clara a idéia de que o MST
foi um agente fundamental de mudança social. Nessa linha continua a
afirmar V.S.P. que:
O sistema de Deus é este: latifundiário não tem terra e agricultor não
tem terra. De Deus é a terra e a sua plenitude. Então a terra é de todos.
E tudo o que acontece é de Deus e este movimento agrário veio pra
ajudar mesmo os sofredores.3

A mesma idéia aparece no discurso de R.J.B., um pentecostal


pró-ocupação: “todo mundo tem que ter uma terra pra morar. Um lugar
preservado só pra isso. E depois que inventaram os sem-terra eu acho
que isso é uma lei.”4 Embora haja uma flutuação na visão acerca do MST,
podemos observar que as representações passaram de um “Movimento
desordeiro” para um “Movimento instrumentalizado por Deus”.Todavia,
há pentecostais que, em outros pontos, continuaram afirmando as dife-
renças de outrora, principalmente sobre a percepção do espaço social.
Antes era mais tranqüilo, pois antes o povo tinha a consciência de que
aqui tinha dono. E hoje briga por tudo, acho que num entenderam e aí
não cuida do lugar.Vê como tá a sede, aquela casa tá caino os pedaços.
Agora hoje tem mais facilidade. Nunca que antes a gente imaginava
que podia ir num shopping, fazer um churrasco. Essas coisas antes
quem fazia era só rico.Tinha as festas na casa grande, mas a gente num
ia não. Quem ia mesmo era os parentes do dono. Hoje todo mundo
tem moto, tem celular. As facilidades é mais.5

(2) VSP pentecostal pré-ocupação. Entrevista em: 10 nov. 2007.


(3) Id. Ibid.
(4) RJB pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 13 out. 2007.
(5) ISS pentecostal pré-ocupação. Entrevista em: 02 jun. 2007.
44 Travessias 2008

O MST é errado porque faz aquela inganja por terra. Num é verdade?
Tá certo que divide as coisas e cada um tem um pedaço de terra pra
cum nada plantar sua macaxeira. Mas hoje em dia é mato por tudo.
Cada um tem sua terra, mas ninguém se dedica.6

No assentamento as estratégias de sobrevivências são coletivas e


individuais. Em parte porque a localização dos lotes define um me-
lhor aproveitamento do mesmo ou sua quase nulidade na produção.
Por outro lado, as tentativas de emprego na cidade definem em nível
particular as tentativas de sobrevivências. As concepções em torno do
que alí está instalado contrastam com as imagens do antigo dono do
engenho, onde todas as ordens, e acontecimentos dependiam especifi-
camente de sua autorização. Em outras palavras, havia somente um ator
social oficialmente reconhecido para decidir sobre os demais atores,
cujos papéis conferiam aos camponeses a submissão. Dessa maneira, a
ordem e a sua manutenção não cabiam ao conjunto de moradores, mas
à autoridade do dono do engenho.
Nas representações dos pentecostais pró-ocupação, permanece a
concepção de que o movimento foi um instrumento de Deus usado
para ampará-los quando estavam em uma situação sem resposta ou
esperança. Wilson de Luces Machado escrevendo sobre os pentecos-
tais e os conflitos entre religião e ação política constatou, por meio de
pesquisa realizada nos Assentamentos Sumaré I e II, no Estado de São
Paulo, que a ocupação da terra por parte dos pentecostais surgiu como
uma orientação de Deus aos problemas que eles enfrentavam, cada um
em sua particularidade (MACHADO, 1995).
Os pentecostais que se engajaram no MST, e participaram da
ocupação do Engenho Pinto, interpretaram essa inserção como uma
prática aprovada por Deus, mesmo lidando com a reprovação de sua
comunidade religiosa. Machado também constatou, em sua pesquisa,
que a justificativa dos pentecostais em Sumaré I e II, a de que Deus
autorizava-lhes a ocupação, servia como elemento amenizador pelo
fato de sentirem-se excluídos por “contaminarem-se ou envolverem-
se com lideranças humanas, mas sim que cumpriam sua obediência ao
que Deus estava ordenando que fizessem” (MACHADO, Op.cit. p. 83).
O comentário de A.S.S. uma pentecostal pró-ocupação mostra de que
maneira ela legitima a sua ação no MST: “o MST naquele tempo foi
colocado por Deus porque tem gente preguiçoso, mas tem gente que

(6) MTSL, pentecostal pré-ocupação. Entrevista em: 02 de nov. 2007.


Militância Política e Religiosa 45

tá precisando. Saiu terra, saiu projeto, a palavra de Deus diz: faça a sua
deligência que eu te darei.” 7
A maneira como os pentecostais pós-ocupação representam, em
seu imaginário, a atuação do MST deve ser entendida pela situação por
eles experimentada quando entraram no assentamento. Estes, como o
próprio nome indica, entraram posteriormente à ocupação. Mesmo
constatando que residem num lugar tomado pela ação coletiva e radical
de um movimento, conceberam a ilegalidade do ato. E quando indaga-
dos sobre beneficiados desse processo, argumentaram que sua imersão
no campo se concretizou após desapropriação da terra pelo INCRA.
Esses religiosos constroem representações que condenam este tipo de
atuação. D.S.S. afirmou com todas as letras que:
A Bíblia é clara nisso: se eu pego uma coisa que não é minha isso é
roubo. E Deus não aprova esse tipo de comportamento. Porque veja
bem: você tem esta bolsa, você comprou esta bolsa, ela lhe pertence.
Se eu tomasse de você e ficasse pra mim. Isto não é errado?8

Essas diferentes perspectivas nos mostram a complexidade das


visões políticas ali existentes. Há paradigmas diferentes entre membros
de uma mesma comunidade. Sendo que esta comunidade é colocada
em suas vidas como aquela que rege os símbolos sagrados e, portanto
o comportamento sacro ou profano do associado. Basta compararmos
as posições de A.S.S. com as de D.S.S. para percebermos as diferentes
falas baseadas em um só texto bíblico. Ambos utilizaram um mesmo
texto para legitimar e para deslegitimar a ocupação de terra.
Assim como o povo de Israel tava precisano.Tava precisano de terra e
Deus deu a terra prometida e num foi fácil não.Teve que ir e tomar a
força. Então desde os tempo antigo é assim e ta lá na Bíblia, Deus deu
a terra pra o povo nela viver. Poder plantar e colher o fruto da vida.9

Eu acho que tudo é de Deus.Tudo nesse mundo. Mas tem as leis aqui
que faz uma coisa passar pro nome de uma pessoa. E esta coisa neste
mundo vai ser daquela pessoa. Por isso que eu não concordo em tomar
o que é de outro. Porque essa pessoa suou pra ter.10

(7) ASS tem 52 anos de idade e é casada com SPS, de 65 anos. Ambos são pentecostais pró-ocupação.
(8) DSS tem 61 anos de idade e mora no Assentamento há nove anos. Pentecostal pós-ocupação. Entrevista em:
13 out. 2007.
(9) ASS pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 05 out. 2007.
(10) DSS pentecostal pós-ocupação. Entrevista em: 13 out. 2007.
46 Travessias 2008

Porém, ao ser perguntado:“mas o povo de Israel não tomou uma


terra que já tinha morador?”, a resposta foi a seguinte:
Mas sobre o povo de Israel é o seguinte: aquele povo que estava cativo
só entrou na terra prometida porque a terra já tinha sido prometida
a Abraão muitos anos antes. Então a terra já era do povo. Ela não foi
invadida não!11

Aqui há duas visões explicitamente opostas, mas elas não repre-


sentam problemas no cotidiano dos pentecostais camponeses. Como
entender tais paradoxos? Talvez possamos pensar que isso ocorra por
causa da ausência de uma demanda política que exija deles um posi-
cionamento partidário público. Ora, no momento da ocupação hou-
ve rompimento de uma postura religiosa velada que os colocava em
oposição à tradição de não-envolvimento político, praticado por sua
comunidade religiosa. Assim, quando conquistado o direito de divisão
do Engenho, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se
afastou gradativamente. Isso gerou um acomodamento e eles passaram
a visualizar os problemas menores surgidos em seu cotidiano de agri-
cultor assentado a partir da ótica do possuidor de terra.
Além disso, destacamos que este não-conflito, mesmo admitindo
a existência do contraste entre as diferentes percepções dos pentecostais,
pode ser visto numa tentativa, por eles empreendida, de passar a idéia
de união entre os adeptos de sua religião para o pesquisador. Já que
o mesmo foi alvo constante de tentativas de conversão por parte dos
pentecostais. Daí, os pentecostais utilizavam a tão comum oposição entre
mundo profano e espaço sacro que é o templo de sua igreja. Conside-
rando que o pesquisador se constituía num adepto em potencial, não
cabia deixar explícito as discordâncias entre eles.
Diante das várias narrativas por eles apresentadas surgiu-nos uma
pergunta: como se identificam os filhos dos pentecostais pró-ocupação?
Quais as representações dos pentecostais que não se encaixam dentro
da estrutura proposta nesta pesquisa de pré, pró, e pós-ocupação? Este é o
caso daqueles que se converteram depois de legalizada a ocupação da
terra. Eles são igualmente a favor do MST ou se aproximam de uma
prática política mais amena?
Queremos a seguir retratar dois depoimentos que apontam
para as representações por estes elaboradas acerca do Movimento.

(11) DSS Op. cit.


Militância Política e Religiosa 47

Entenderemos como eles mesmos se identificam na questão de tomada


da terra e do MST. Um é parte da entrevista de M.R.S., filho de A.S. e
o outro é de F.B., filho de pais não-pentecostais e que atualmente não
residem no assentamento.
Diante de Deus nós devemos respeitar o que é dos outros. Mesmo
tomando para que se cumpra a lei, para que não haja mais tanta gente
com dificuldade. Eu jamais faria uma invasão. Eu não sou dessas coisas
e acho que o crente não deve se envolver com isto não. Deus dá a
oportunidade na hora certa pra cada um.12

Sou a favor do MST porque meu pai de criação foi assentado e agora
tem onde morar e onde conseguir seu pão. Mas diante de Deus ta
errado porque tomou à força. Mas por outro lado deu terra pra muita
gente que não tinha onde morar.13

Os dois fragmentos de discurso amparam-se na atitude cautelosa


que está presente na visão de mundo dos pentecostais daquela região. Estes
não estão mais sujeitos a uma situação de privação das condições básicas
de sobrevivência. Reputamos como constituinte do próprio ethos do
pentecostal uma negativa da aquiescência no envolvimento em questões
de embates políticos. Entendemos por ethos o conjunto de características
morais, afetivas e comportamentais de um determinado grupo.
Resumidamente, inferimos que a percepção dos pentecostais pré-
ocupação acerca do ato de buscar a terra é semelhante aos pentecostais
pró-ocupação. Para estes, a terra é de todos, pois Deus é o grande possuidor.
Já os pentecostais pós-ocupação compreenderam que a terra é de quem
dela tem os direitos legais para habitar ou explorá-la da maneira que
lhe convier. Para compreender tal processo de diferenças de represen-
tações entre os religiosos de uma mesma comunidade, nos reportamos
a Peter Berger, para quem o processo dialético de construção social, é
formado por três passos condicionantes do ser humano. Nesse processo,
o ser humano torna-se pessoa, os valores subjetivos são construídos e a
interligação entre eles faz com que a sociedade e o ser que a constrói
sejam elaborados e re-elaborados continuamente. É por isso que Ber-
ger afirma que a atuação do ser humano no mundo caracteriza-se por
uma instabilidade congênita. Nessa perspectiva o indivíduo se define
ininterruptamente (BERGER, 1985, p. 20).

(12) MRS filho de AS, que é pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 21 ago. 2007.
(13) FB, filho de pentecostais pré-ocupação. Os pais mudaram para a cidade e o mesmo continuou morando no
Assentamento. Entrevista em: 21 ago. 2007.
48 Travessias 2008

O Imaginário dos Pentecostais


Militantes do MST
Uma figura significativa do início do pentecostalismo foi
William Joseph Seymour. Um filho de ex-escravos da Louisiana que
iniciou suas pregações aos 36 anos de idade em Los Angeles em abril
de 1906. Nesse período, começou a haver uma série de movimen-
tos incomuns na comunidade de Seymour. Rapidamente a mídia se
voltou para os acontecimentos que ali aconteciam, como êxtases,
glossolalias e curas divinas. Esse movimento ficou conhecido como
“avivamento de Azuza Street”. Foi assim que Seymour tornou-se
famoso e desencadeou um movimento que se expandiu por todo
o mundo. Logo a Azuza Street tornou-se roteiro oficial de cristãos
espalhados por todo o país. Cristãos, negros e brancos, afluíam para
Los Angeles em caravanas ansiosos por viverem experiências religiosas
como as observadas naquele lugar (CAMPOS, 1995).
Na concepção de Weber, o profeta genuíno apresenta-se
com a criação e o anúncio de novos mandamentos e formas “legí-
timas” de se comportarem. Weber ainda argumenta que o profeta
surge nos momentos de crise, quando o mundo ao redor do fiel
ou militante se apresenta com instabilidade. Outra vez, voltamos a
Weber, quando afirma que o reconhecimento nasce do entusiasmo
ou da miséria (WEBER, 1972, p.159, 160). Assim aconteceu com
a imagem construída pelos pentecostais que ocuparam o Engenho
Pinto. Jaime Amorim, líder do MST em Pernambuco, foi quem
liderou a ocupação das terras e, portanto, esteve em contato direto
com todos os militantes. Atualmente, Jaime Amorim é o presidente
estadual do MST e reside em Caruaru, onde está localizada a sede
estadual do Movimento. Assim como os primeiros líderes pente-
costais, esse também instaurou, no imaginário dos pentecostais ali
presentes, uma nova situação.
Jaime Amorim articulou a ocupação do engenho e as poste-
riores ocupações da sede do INCRA. Os pentecostais o reputam
como portador de uma mensagem estimulante, progressiva e de
Deus para os sem-terra do assentamento. Assim como William Joseph
Seymour foi o agente catalisador de uma situação que necessitava
de uma teodicéia, os agentes políticos do MST serviram de su-
porte das situações vivenciadas pelos militantes. Estes encontraram
no discurso de seus líderes resposta a uma demanda que requeria
uma nova compreensão e uma nova ação no mundo. Nesse sentido,
Militância Política e Religiosa 49

tencionando a ação política estritamente, o líder serviu como um


profeta. Reiniciou a produção de um capital religioso que culminaria
em dois resultados: isentaria os indivíduos de culpa, pois ofereceria
liberação divina para o ato; e congregaria pessoas para realizar o
processo de resistência ao latifúndio.
Ato profético semelhante aconteceu com o fundador das Ligas
Camponesas, Francisco Julião, que utilizou o código civil, em com-
plementação com a bíblia, para arregimentar camponeses. A sua peda-
gogia consistiu em mostrar que a opressão que atingia os protestantes
e a opressão sobreposta aos camponeses era semelhante e não havia
bipolaridade. Tanto a um quanto a outro estava negado o direito de
liberdade, de dignidade de vida. Esse discurso não demonstrava quan-
titativamente o número de protestantes envolvidos nas Ligas, mas nos
sugere ter havido muitos trabalhadores dos canaviais que compartilha-
vam da mesma fé evangélica e que se envolveram nas lutas camponesas
(NOVAES, Op. cit.)
Shepard Forman destacou o depoimento de um camponês que
se reportou a Julião como “o príncipe da vida”. Um significado devido
à formação acadêmica dele, do qual surgiriam as respostas e diretrizes a
serem acatadas. Em continuação, Forman destacou ainda: “quando lhe
perguntaram de que modo isso seria feito, respondeu: ‘isso eu não sei,
pois sou ignorante. Estou esperando uma explicação e então seguirei!”
(FORMAN, 1979, p. 306).
À semelhança do papel desenvolvido por Julião nas Ligas
Camponesas, Jaime Amorim também desenvolvia o discurso político
articulado com o conhecimento religioso. Por isso, os assentados do
Herbert de Souza se reportaram a Jaime Amorim como uma pessoa
digna, sem a qual não conquistariam o assentamento. Amorim, ainda
que não fosse procedente de nenhuma religião, foi considerado um
enviado de Deus, um anunciador de soluções para a vida difícil que os
agricultores estavam levando. Essa perspectiva aparece nos depoimentos
de V.S.P. e de M.S., quando afirmam:
O MST, apesar de ser um partido comunista, veio para o povo que ta
sofrendo para fazer essa reforma agrária. E esse, esse... é Jaime Amorim
- como se rapidamente tivesse esquecido o nome - , é o comando que
sabe trabalhar. Nunca mandou ninguém fazer confusão e veio como
um resolvedor dos problemas.14

(14) VSP, pentecostal pré-ocupação. Em: 10 nov. 2007.


50 Travessias 2008

Jaime Amorim é um homem de coragem e de fé porque entrar num


negócio desse só um homem de fé. E mandava o povo trabalhar onde
não tinha lavoura do dono. O propósito dele era que todo mundo
tivesse o que comer. Ele enfrentou com a gente o rico, o todo poderoso
dono disso aqui. Entramo com 70 pessoas e já tinha 40 morador.15

Tal mecanismo criador de espaços sagrados e profanos nos reporta


a Émile Durkheim. Ora, é característico aos pentecostais eleger uma
pessoa que represente seus anseios. Essa aproximação da religiosidade
pentecostal no MST com o mecanismo descrito por Durkheim é
possível por meio do conceito de que a religião só pode ser definida
prescindindo de características comuns a todas. Espaço sagrado e espaço
profano talvez sejam duas categorias de aproximação entre as religiões.
Assim nos mostra Durkheim: “Se ela [a sociedade] vem a entusiasmar-
se por um homem, se acredita descobrir nele as principais aspirações
que a marcam e os meios de satisfazê-las, esse homem será colocado
acima dos demais e como que divinizado. Ele será investido pela opi-
nião de majestade perfeitamente análoga àquela que protege os deuses”
(DURKHEIM, 1989, p. 267).
O destaque dado à atuação de Jaime Amorim deve-se à sua
liderança carismática. Para Weber, o caráter carismático está baseado
em um tipo puro de dominação. A liderança carismática é baseada na
veneração no poder heróico de uma pessoa ou na ordem que ela repre-
senta (WEBER, Op.cit. p. 141). Entretanto, o conceito de carisma será
desenvolvido aqui a partir dos comentários de Geertz. Segundo Geertz
existe uma dificuldade nos textos de Weber, pois não fica explícito o
significado do termo carisma. Na perspectiva de Geertz, o carisma ora
aparece com ênfase à característica que alguma personalidade possui
de arrebatar multidões; ora parece referir-se a um status adquirido com
destaque de tal característica. Em tese, a incongruência levantada por
Geertz nos escritos de Weber, pergunta sobre o que de fato seja carisma:
um status, estímulo; ou fusão dos dois (GEERTZ, Op.cit. p. 182).
A explicação que se tem dado para o aparecimento de persona-
lidades que se tornam líderes carismáticos, principalmente no contexto
dos EUA, segundo Geertz, deve-se à desordem social que ele chama de:
psicopatologia, que a desordem social alimenta (Id. Ibid. p. 183). Jaime
Amorim, na perspectiva dos pentecostais, foi a pessoa que representou a
compreensão necessária da militância do Assentamento Herbert de Souza.

(15) MS, pentecostal pró-ocupação. Em: 13 out. 2007.


Militância Política e Religiosa 51

Algo que faltou em sua comunidade religiosa. Assim então, um novo


sistema é erguido pelo qual transita as mentalidades dos pentecostais.
Luis Roberto Lemos do Prado desenvolveu a idéia de que a
árdua caminhada de militância é permeada pela lembrança e festa, que
preservam a memória de outros militantes que marcaram a história.
Resgatar a memória e, inconscientemente, divinizar alguns persona-
gens, faz parte da estratégia e necessidade do MST. Dessa maneira o
movimento adiciona ao seu repertório personalidades que, em sua
perspectiva, incorporaram a resistência e galgaram vitória na busca de
justiça.Tais como: Martin Luther King, Zumbi dos Palmares, Emiliano
Zapata, Sandino, Ernesto Che Guevara, José Martí, Darcy Ribeiro, Flo-
restan Fernandes, Rosa Luxemburgo, Margarida Alves, Chico Mendes,
dentre outros (PRADO, 2002, p. 105).
Todos esses personagens são utilizados pelo MST numa identifi-
cação direta com a situação atual vivenciada pelos sem-terra. As músicas
cantadas nas frentes de ocupação, a bandeira sempre hasteada nos acam-
pamentos e assentamentos, as marchas, as assembléias, as festas; enfim,
todos esses elementos são realizados com uma significação que vai além
de um mero ato de realizá-los. Na concepção de Prado, esse é o processo
místico que permeia a ação do MST. “A vivência coletiva destes ele-
mentos faz com que cada militante adquira uma profunda paixão pelas
lutas populares, associada à valorização da vida das pessoas e do planeta,
revelada no cultivo inadiável da auto-estima” (Id. Ibid. p. 107).
Em nossas observações, pudemos notar que, nos pentecostais
militantes do MST do Assentamento Herbert de Souza, não há uma
lembrança de tais símbolos. Apesar disso, eles afirmam o quanto foi
emocionante cantar o hino nacional e aclamar os gritos de guerra sobre
reforma agrária.16 Os interlocutores vibraram literalmente ao narrar esses
fatos. Ocupar uma terra e reivindicar a sua possessão era a consciência
de um direito que aqueles pentecostais nunca souberam, como também
representou uma atitude ativa que nunca tiveram na sociedade. Naquele
momento, sentiram-se de fato cidadãos e não se importaram em juntar-se
a outras pessoas de confissões religiosas diferentes. O importante mesmo,
naquele momento, era a união em torno de um ideal comum, que foi a
conquista do direito de trabalhar na terra própria.
A nossa hipótese para explicar o esquecimento dos símbolos e
mitos do MST, por parte dos pentecostais militantes do AHS deve-se ao

(16) Assim diziam os gritos de guerra: “MST essa luta é pra valer”, “reforma agrária já”.
52 Travessias 2008

gradativo distanciamento do Movimento e conseqüente acomodação


dos militantes.17 Lançamos mão de Maurice Halbwachs, especialmente
quando se refere à memória individual, que, para fazer sentido de uma
experiência, deve dialogar e atualizar as lembranças de outras pessoas
acerca da experiência que eles comunicam. Portanto, é necessário que
os outros compactuem com as mesmas lembranças do acontecimento
social fundante (HALBWACHS, 2004).
Na teoria social da memória, Halbwachs destaca que a cons-
trução de uma memória coletiva depende do compartilhamento das
lembranças comuns. Por isso, caso haja uma situação da qual a memória
do indivíduo não recorda, é porque ele não se sente mais incluído ou
dentro da memória coletiva que determinado grupo retém. Nesse caso,
os pentecostais do AHS não elaboraram correlação com aquele fato so-
cial, guardado na memória coletiva do grupo de assentados. O resultado
disso é que há pouco ou quase nenhum significado na vida dos mesmos.
Experimentou-se um sentimento que não mais os dominava.
Geertz mostra o quanto o poder é associado a emblemas visíveis
e transformado igualmente em alegoria da prosperidade, da justiça e
da honra, como mecanismo de legitimação da dominação (GEERTZ,
1989). Observamos que, no tipo de liderança cultivada nos assenta-
mentos do MST, em particular no AHS, foram igualmente utilizados
aspectos de alegoria para convencer e gerar convicção nos militantes.
Parece haver uma resistência mental para absorver tais valores naqueles
que já são praticantes de uma religião pentecostal. Isso pressupondo
que haja um corpo de doutrinas que rege as suas ações. Aderir a uma
nova cosmovisão não é algo facilmente praticado, porém, ampliar esta
mesma cosmovisão incluída de maneira que adotem um novo modo de
ser, só acontece em condições de desajuste profundo de sua condição
de ser cidadão na sociedade. Nesses momentos de extrema delicadeza
dos militantes pentecostais, bem observados pelas narrativas de nossos
informantes, eles aderem a outra esfera de combate, que é a militância
através da ocupação de terras.
Entretanto, para se chegar a esse estágio, o MST também adotou
mecanismos semelhantes aos que são apontados por Geertz. A busca
de referenciais na história, o retorno a uma situação bem presente no
imaginário coletivo, como, por exemplo, citações de acontecimentos

(17) Um de nossos interlocutores, quando indagado sobre a razão do nome do Assentamento, respondeu que
Herbert de Souza foi “um cara do MST que foi assassinado porque lutava pelo povo”. D. N. pentecostal pré-
ocupação. Em: 10 nov. 2007.
Militância Política e Religiosa 53

míticos como se fossem reais e representativos de um problema social


moderno. Para representar isso, os líderes narravam a história bíblica
da tomada da terra por Moisés, descrita no livro de Êxodo. Quando
perguntados sobre quem seria exemplo para eles, responderam:“aquele
que liderou a ocupação [Jaime Amorim] era um grande exemplo a ser
seguido”. Tais falas eram seguidas de uma impostação da voz e ênfases
faciais que nos sugeriram a idealização do tempo da lona, bem como
eles se referem ao período da ocupação.Talvez esse tenha sido o tempo
mais propício à construção do herói.
Dizer que idealizaram o tempo da lona requer comentários que
possam amparar esta afirmação. Reportamo-nos a um fato na história
do assentamento, sendo, portanto vivenciado pelos pentecostais pré, pró
e pós-ocupação: o assassinato de José Roseno da Costa, presidente da co-
operativa em 21 de março de 2004.18 Todos concordam em qualificá-lo
como um lutador das causas populares e destacam que o assentamento
esteve organizado até o dia de sua morte. Porém, tal fato não aparece
inicialmente no discurso dos pentecostais.A não-referência ao presidente
é sinal de que idealizaram o tempo da lona e não os tempos posteriores.
Jaime Amorim fazia parte do tempo da lona e, portanto foi atu-
ante num momento propício para legitimação das ações dos líderes. A
morte do presidente ocorreu num momento no qual a adequação à
nova condição de “com-terra” havia se instalado entre eles. Pois já não
vivenciavam as situações de incerteza que os acometiam no início do
protesto. A interpretação do assassinato de José Roseno da Costa, dada
pelos pentecostais e demais assentados, refere-se ao fato dele se colocar
explicitamente a favor da preservação ecológica de algumas partes do
engenho, terras das quais tentavam-se roubar madeira. Nesse sentido,
a morte foi ocasionada por questões políticas.

Representações e Legitimação:
o Pentecostal no AHS

Regina Reyes Novaes aponta que nas Ligas Camponesas, movi-


mento que reivindicava terra que se originou em Pernambuco na década
de 1950, o trabalhador quando recorria à justiça, passava a ter a carteirinha
de camponês, isto é a carteirinha de filiação às Ligas. Ou seja, as Ligas
eram os espaços onde o camponês encontrava o suporte para pleitear sua

(18) José Roseno da Costa, o Tarimba, como era conhecido por todos, foi assassinado no próprio Assentamento.
Segundo as narrativas, ele estava em seu bar quando foi abordado por dois homens de moto. Após beberem
cervejas deram um tiro na cabeça de Tarimba.
54 Travessias 2008

causa frente a um tribunal. Nesse processo, havia uma parcela de medo


diante das ameaças dos mais fortes. Sobre isso, escreve Novaes:
A experiência coletiva de perder o medo, elemento fundamental na interi-
orização da dominação, exigiu, no decorrer do processo, o reforço da iden-
tidade do camponês como aquele que adere a um grupo e passa a partilhar
seus símbolos e representações, diferenciando-se de outros trabalhadores
que não pertencem à mesma organização (NOVAES, Op. cit. p. 53).

Esse fenômeno foi similar a adesão dos pentecostais ao MST.


Estes já pertenciam a um grupo religioso que reforça os laços de rela-
cionamento. Aderir a outro movimento de ordem secular pressupõe,
como em muitos dos casos relatados, romper com os laços anteriores.
O grau de dificuldade desse ato reside no fato de que a instituição à
qual pertenciam relega a si mesma a instrumentalização do sagrado,
que, nesse caso, colocava-se como detentora de todas as respostas para o
indivíduo.Assumir outra forma de busca da justiça conjuntamente com
pessoas de outras religiões, segundo o depoimento dos interlocutores,
seria o mesmo que se entregar a um desvio religioso.
A idéia de pertencimento a um contingente histórico, injustiçado
e massacrado pelos governantes, uma idéia presente nas prédicas do MST,
fizeram com que os militantes pentecostais se sentissem fortalecidos pela
nova escolha, facilitando a assimilação de uma nova identidade. Dessa vez,
uma identidade pró-ativa em relação às mudanças da sociedade rural. É
essa condição propícia que favorece o aparecimento de pessoas que se
tornam personalidades, nas quais se corporificam os desejos dos militantes.
Tal situação facilita também o aparecimento de utopias. Na análise do
discurso dos pentecostais pré-ocupação, que tiveram um motivo forte para
inserção no MST e que significou independência do grupo social anterior,
a utopia é permeada de conotação religiosa. A.S.S. expressa bem isso:
Quando Jesus voltar vai fazer justiça e juízo para todos que faz injustiça
no mundo. Os homens começaram com esse negócio de pegar um
pedação. Desde criança eu ouvi falar da terra forra. Meus avós conta-
vam que viria a terra forra para todo mundo trabalhar. A terra forra
chegou, assim como chegou a libertação para os cativos que esperava
a alforria, a terra também tinha que ser forra (A.S.S, pentecostal e
militantes pré-ocupação).

Marisa de Fátima Lomba de Farias percebeu bem a força dessa


utopia ao constatar que as representações religiosas dão sentido ao
vivido pelas famílias:
Militância Política e Religiosa 55

Sabe-se que historicamente, na terra, se compôs um cenário de relações


familiares que se combinou e/ou se fortaleceu com o trabalho na terra,
que constituindo espaços de continuidades e (des)continuidades de
antigos laços familiares e/ou de sociabilidade. Essas relações familiares
são caracterizadas, muitas vezes, por relações míticas com a terra de
trabalho, alicerçadas nas representações religiosas, especificamente,
de um Deus que ouve ‘a voz do povo oprimido’, o que imprime
uma coloração própria às ‘maneiras de fazer’ as práticas cotidianas...
(FARIAS, 2006, p. 2).

Nessa perspectiva, o MST “instrumentalizado por Deus”,


apresenta-se como mediador eficaz e fundamental para transformar
o cotidiano sofrível, num tempo de descanso. A infertilidade da terra
se transformaria em abundância de comida. O desprovimento da casa
em satisfação dos desejos dos filhos. Portanto, a relação da terra com a
libertação dos escravos e com Deus é uma relação que perfaz as ausências
de seu passado. A terra apresenta-se, dessa maneira, como a chegada ao
paraíso e o direito legítimo de conquista do espaço social.
Essa criatividade é explorada por Michel de Certeau. Ele defende
que a individualidade é o espaço onde acontece uma pluralidade, orga-
nizada ou não, do que é determinado na coletividade social (CERTEAU,
2005). Na perspectiva de Certeau, a produção da imagem e o uso que se
faz dela pode ter duas categorias passíveis de análises: a primeira é uma
bricolagem na economia cultural dominante, metamorfoseando o que
foi posto como lei, e que, dentro da esfera do dia-a-dia dos indivíduos,
vividos em particulares ou em grupos marginais, aplica-se de outra
maneira.A segunda categoria defende que a bricolagem surge segundo
os “seus interesses próprios e suas próprias regras” (Id. Idib. p. 40).
Esta é uma ferramenta relevante para compreensão do desenrolar
do cotidiano dos militantes que se professam pentecostais dentro do
MST.As regras, doutrinas e representações oficiais da igreja à qual estão
vinculados mantêm-se intactas. A sua interpretação e sua aplicação nas
situações vivenciadas pelos sujeitos religiosos, porém, é diferenciada. E
essa capacidade inventiva do sujeito pentecostal do AHS está represen-
tada no desejo de posse da terra. A sua tomada da terra representou um
marco histórico, no qual já estava profetizado que aconteceria: “meus
avós contavam que viria a terra forra pra todo mundo trabalhar...”
A percepção da liderança dos grupos pentecostais não recobre
o MST com status de sacralidade. Pelo contrário: para esses, o MST é
um movimento político, que, embora traga benefícios, instaura uma
56 Travessias 2008

esfera de guerra, morte e desordem. Representações presentes não só


no discurso da liderança como também no discurso dos pentecostais
pós-ocupação. O depoimento reproduzido abaixo sobre a razão da igreja
se fazer presente no Assentamento é do presbítero R.B.S., responsável
pelas atividades religiosas Igreja Assembléia de Deus no AHS:“A finali-
dade não é outra a não ser converter o povo para o bom caminho. Bom
comportamento, palavras de conselho. É nosso privilégio estarmos ali,
conseguimos aquela parte para construir. Queremos ver paz”.19
Já M.S., um pentecostal pró-ocupação, que militou diretamente no MST,
na ocasião da ocupação do Engenho Pinto, definiu da seguinte maneira o
que representa a paz para a igreja pentecostal presente no assentamento:
Se fosse pra fazer a luta do jeito que o movimento faz ninguém ia
querer fazer. Se já é crente, já não é bagunceiro. Num é que nós é
bagunceiro (risos), mas do jeito que a gente [o MST] faz eles [pen-
tecostais] num faz não. Porque quando parte pra essas coisas eles fala
logo: nós num somos disso, nós somos da paz (M.S. Op. cit).

A paz, para os sujeitos pentecostais que ocuparam a terra, repre-


senta a sua conquista e a possibilidade atual de nela viver sem o risco
da expulsão ou da situação de incerteza que vivenciavam antes de seu
engajamento. Em contrapartida, a paz para as instituições religiosas pre-
sentes no AHS representa a passividade em questões sociais, ainda que
em condições nas quais a incerteza posta coloque em xeque a própria
existência.Voltamo-nos a Farias novamente, pois se torna claro que as
representações construídas acerca de Deus podem perfazer dois cami-
nhos na vida dos indivíduos sem terra: primeiro, conduzir a libertações
à medida que constroem um Deus que se apresenta como provedor
dos eixos sociais, solucionadores de problemas como saúde, amor,
trabalho, etc, e desencadeia atitudes solidárias; mas que pode aparecer
como opressão quando as representações religiosas são apropriadas por
alguma igreja que geralmente nega a criatividade dos indivíduos para
resolver os problemas cotidianos (FARIAS, Op.cit. p. 10).

Considerações Finais
As representações religiosas são eficazes, pois atribuem às tênues
construções humanas valores meta-históricos. Dando dessa maneira uma
consolidação que contraria aquilo que mais incomoda o ser humano:

(19) RBS. Entrevista em: 10 nov. 2007.


Militância Política e Religiosa 57

as contingências da vida que desorganizam o seu cosmos e, portanto gera


crise.A religião entra como estrutura de plausibilidade, pois atribui às verda-
des humanas a verdade última da vida. Para Berger, essas construções da
realidade humana são contraditórias e precárias; porém, com a explicação
religiosa, tornam-se seguras e definitivas (BERGER, Op.cit).
Se há algo, portanto, que questiona a realidade legitimada, é a
incerteza da vida em sua durabilidade física.A ameaça da morte desafia,
na perspectiva de Berger, todas as definições socialmente objetivadas da
realidade. Aqui acontece a heterogeneidade no fenômeno pentecostal
que tende a se tornar homogêneo nas correções comportamentais dos
indivíduos. No caso do assentamento, a questão da contingência da vida
desencadeia o aparecimento de representações diferentes, culminando
em sistemas particulares de cada grupo que não corresponde necessa-
riamente ao da comunidade religiosa de origem.
Destacamos ainda que o pentecostalismo presente no Assenta-
mento Herbert de Souza não pode ser considerado como um movi-
mento messiânico no sentido empregado por Queiroz. Ela entende
que as crenças messiânicas pressupõem uma necessidade de salvação
terrena. A religiosidade que ali se expressa não é um movimento ativo
que em prol de suas crenças estabelece um plano de ação na socie-
dade com força prática de protesto (QUEIROZ, 1977). Isso se torna
claro pelas orientações da liderança aos adeptos de sua religião. Neste
sentido, podemos enfatizar que os pentecostais pró-ocupação possuem
expectativas messiânicas bastante contextualizadas e ajustadas às situa-
ções vivenciadas pelos militantes. Ou seja, seus anseios condizem com
a justiça implacável de um ser que corrigirá as imperfeições do mundo,
incluindo a questão da posse da terra.
No caso dos pentecostais pós-ocupação, apresentamos as suas
características com as semelhanças mantidas com o que Henry Desro-
che designou ser a esperança evaporada. Com isso ele quer afirmar que
há religiões “tão atestatórias de um além que ela se torna contrária a
qualquer contestação” (DESROCHE, 1985, p. 18). Esses pentecostais
mantêm uma esperança religiosa sem vínculos com demandas sociais,
sobretudo se tais demandas perfaçam o caminho de sua própria atuação
de transformação social. Posturas de resignação, mesmo reconhecendo-
se beneficiados pela ação de um movimento que agiu contrário ao que
pregam.A síntese das representações desses pentecostais acerca da igreja
atesta esta afirmação. Para eles, a igreja é o lugar de paz, ou seja, o am-
biente onde não deve haver espaços para discussão de tais situações.
58 Travessias 2008

Já os pentecostais pró-ocupação entendem a igreja como o lugar


onde não há traição ou onde as pessoas encontram compreensão, desde
que sejam agentes de uma nova situação e que os coloque à margem das
doutrinas da igreja. Para os pentecostais pré-ocupação, a igreja é o lugar
de união, possivelmente fazendo alusão às formas de decisões instaladas
no Assentamento após desapropriação. Para eles, antes, havia ordem e
calmaria no engenho; após o MST e a entrada de novas famílias, as
decisões passaram a ser tomadas na base da discordância constante e o
resultado, na perspectiva dos agentes religiosos,“é mato tomando conta
de tudo”. Podemos organizar um quadro comparativo que sintetize as
representações dos pentecostais, de acordo com sua entrada no movi-
mento. Com ele, damos por encerrado esse artigo.

Agentes religiosos Representações: Representações: Representações:

MST Terra Igreja

Pentecostais Agente de ajuda aos É de Deus e, Lugar de união


Pré-ocupação pobres do Brasil. portanto de todas as
pessoas

Pentecostais Mecanismo de Deus É de Deus e, Lugar de pessoas


Pró-ocupação portanto de todas as confiáveis.
pessoas.

Pentecostais Partido político É de Deus, mas Lugar de paz – não


Pós-ocupação violento – Deve ser quem detém violência e não
repudiado. autoridade é quem enfrentamento com
tem o registro autoridades instituídas
jurídico de posse.

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Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal:
Relações Interétnicas de Acomodação
e Resistência

Y
Manuel Carlos Silva
Departamento de Sociologia – Instituto de Ciências Sociais / Universidade do Minho

Resumo
As relações entre maiorias autóctones e minorias étnicas-
imigrantes lançam importantes desafios à democracia e exigem uma
nova gestão política, uma vez que determinadas situações históricas
e actuais têm demonstrado que a identidade étnica não traduz uma
realidade imutável mas é relacional e tem constituído, na esteira da
tese weberiana, uma fonte de clivagem social tão ou mais importante
como a identidade de classe. As posições de relativa desvantagem social
e económica em que se encontra(va)m membros de minorias étnicas
e imigrantes, agravadas pelas definições e categorizações externas por
parte dos membros da alegada maioria, comportam tensões e encerram
contradições que reflectem as da própria comunidade ou sociedade
autóctone. As instituições desta e membros do endogrupo autóctone
desejam a ‘integração’ das minorias étnicas-migrantes como exogrupo
mas, simultaneamente, reagem, subalternizando-as e confinando-as,
por exemplo, à ocupação de determinado lugar sócio-espacial. Por
sua vez, os membros das minorias étnicas e migrantes ressentem-se e
apresentam formas reactivas de resistência que incitam reviver e rea-
limentar a identidade cultural de origem e uma eventual demarcação
face ao exterior.
Entre outros modelos de alcance intermédio cabe salientar, por
exemplo, em relação à questão da identidade étnica e cultural modelo
quadrimodal de aculturação delineado, entre outros, pelo psicólogo
social Berry (1980), em que a aculturação, a assimilação, a separação e a
62 Travessias 2008

marginalização constituíam modalidades estratégicas dos actores sociais


na gestão das suas trajectórias entre a cultura de origem e a cultura da
sociedade de acolhimento, sendo avançado o conceito ‘integração’ como
referencial dos diversos modos de relacionamento interétnico.
Na base de dados extraídos duma pesquisa entre imigrantes afri-
canos dos PALOP no Noroeste de Portugal, nomeadamente no distrito
de Braga, o autor contesta os pressupostos funcionalistas deste autor na
medida em que assume de maneira acrítica o conceito de aculturação, o
qual seria visto como uma espécie de género face às diversas diferenças
específicas. Ora, tendo presente os diversos níveis de análise avançados
por Bader (1991, 2005), Berry fixa-se na aculturação e na assimilação
e arreda da análise os constrangimentos de vária ordem, em especial, a
questão fulcral do poder económico e político a nível sócio-estrutural
na sociedade de destino, a nível organizacional-institucional e a nível
das interacções quotidianas entre a alegada maioria e as minorias étnicas,
ignorando os “registos ocultos”, no dizer de Scott (1990), as formas de
esquivamento passivo e distanciamento, acomodação instrumental ou
resistência silenciosa, aliás sintomáticas de identidades étnicas contidas
como as de imigrantes africanos negros em Portugal.

1. Introdução: o Problema
Portugal, país tradicional de emigração, tem vindo a constatar
nas últimas décadas uma notável mudança societal, ao transformar-se
também em país receptor de imigrantes. Não actuando preventivamente
nem fornecendo condições sociais mínimas aos imigrantes, como aliás
aos próprios portugueses em situação de pobreza, o Estado poderá acor-
dar tardiamente quando as clivagens ou os confrontos se manifestarem
com a sua crueza ou até crueldade. Por outro lado, convém precaver-
nos contra uma forma perversa de ideologia dominante que parte do
princípio etnocêntrico que os autóctones ou estabelecidos têm não só
o dever como o direito de incorporar ou assimilar os de fora, ou seja,
os imigrantes e demais minorias étnicas ou culturais. Por fim, importa
ter presente que a declaração do princípio da diferença, se não deve
constituir apenas um slogan para afirmar subrepticiamente a supremacia
dos nacionais, tão pouco pode resumir-se a um simples alibi ou táctica
conjuntural para incorporar os não nacionais a médio-longo prazo.
A questão que se coloca será, contextualizando-a, a seguinte:
em que medida os portugueses brancos têm ou não comportamentos
preconceituosos e quais as atitudes dominantes dos portugueses face
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 63

a imigrantes africanos negros que desde os anos sessenta e sobretudo


após 1974-75 foram afluindo a Portugal? Em que medida as minorias
nacionais de imigrantes se sentem e estão inseridos na sociedade de
acolhimento, em que medida a desejam e de que modo gerem a sua
presença no país receptor? De que modo as instituições serão capazes
de gerir as diferenças? Mais, em que medida os portugueses que, não
obstante se afirmarem, em regra, não racistas, apresentam contudo
práticas e representações veladas de discriminação para com os imi-
grantes nomeadamente os africanos negros? E, por fim, verificando-se,
como se explicam?
Salvo alguns artigos e recentes projectos – alguns já com resul-
tados (cf. MACHADO 1992, 1994,VALA et al. 1999, CABECINHAS
2003, KHAN 2003, Silva et al 2006) – não se têm produzido estudos
sistemáticos sobre esta questão em Portugal. Apesar dalguns factos e até
visíveis atitudes de discriminação face a negros co-residentes, Portugal
(ainda) não conhece, de facto, situações de gravidade semelhante à das
cidades inglesas, francesas, belgas, suíças ou alemãs. Tal situação terá
provavelmente a ver, como refere Machado (1992:124 ss), com a não
concentração residencial e a fraca expressão numérica das comunidades
emigrantes – quando comparadas com as de outros países europeus –,
com a não existência de fortes contrastes socio-culturais com segmen-
tos ou categorias sociais desfavorecidas da população portuguesa1 e até
com a presença de continuidades culturais sobretudo linguísticas. Por
outro lado, como refere Machado (1992:134), a politização da questão
étnica em Portugal encontra-se numa fase, senão embrionária, ainda
não consolidada, até porque, para além da omissão política por parte
do Estado, o próprio movimento associativo dessas minorias que ali-
menta essa politização é recente, fraco e/ou está bastante dependente
de partidos de esquerda, solidários com a causa das minorias étnicas,
mas de expressão minoritária no contexto nacional.
A par ou em articulação com outras formas de desigualdade
(classe, género, idade), etnicidade constitui um dos principais eixos de
diferenciação social, clivagem cultural e política, dando lugar, não raro,
à “etnicização” da exclusão social (cf. GLAZER e MOYNIHAN 1975,
MACHADO 1992:123 ss, FERNANDES 1995:15 ss),2 tal como o
reforça Wieviorka (1992:214):

(1) As categorias sociais mais vulneráveis à pobreza em Portugal são, por ordem decrescente: idosos pensionistas;
agricultores de baixos rendimentos; assalariados de baixo nível de remuneração; trabalhadores precários e da
economia informal; minorias étnicas; desempregados; e jovens de baixa escolaridade e qualificações à procura de
primeiro emprego (Almeida et al. 1992: 77).
64 Travessias 2008

a etnicidade é uma categoria que parece dever aplicar-se prioritari-


amente a grupos que a nossa sociedade põe à parte, a quem recusa a
integração social e económica....

Os grupos étnicos dominantes, sobretudo quando confrontados


a viver numa área residencial partilhada com grupos étnicos minori-
tários, sentem-se entalados entre a necessidade de respeitar os valores
da democracia plural (liberdade, justiça, igualdade) e o sentimento de
rejeição para com esses grupos étnicos considerados estranhos e outsiders,
sobretudo quando partem do pressuposto que estes são concorrentes
e vêm ameaçar a sua posição.
Como diz Wieviorka (1993), as relações entre maiorias autóctones
e minorias étnicas lançam importantes desafios à democracia e exigem,
como refere Pierré-Caps (1995), uma nova gestão política, uma vez
que determinadas situações históricas e actuais têm demonstrado que
a identidade étnica tem constituído uma fonte de clivagem social tão
ou mais importante como a pertença de classe.Tal como refere Seabra
(1994), a própria tensão vivida pelas minorias étnicas entre integração e
exclusão encerra contradições que reflectem as da própria comunidade
ou sociedade autóctone face a elas, pois esta deseja a integração daquelas,
mas simultaneamente reage, subalternizando-as e confinando-as, por
exemplo, à ocupação de determinado espaço. Se, por um lado, a retórica
oficial proclama o imperativo de integração e a promoção das minorias
étnicas, sempre que membros destas acedem a determinados recursos,
lugares ou espaços, nomeadamente em meio urbano, e conhecem
uma caminhada num sentido ascendente, emergem ressentimentos e
fenómenos de resistência por parte de membros da maioria, sobretudo
quando, perante a ‘concorrência’ de membros das minorias, se sentem
ameaçados, vulneráveis ou precarizados (cf. RUDDER e TABOADA-
LEONETTI in SEABRA 1994:16, 17,VENÂNCIO 1999:127). Estas
reacções, por sua vez, incitam à revivescência e ao reforço da identidade
cultural por parte das minorias étnicas, que realimentam o sentimento
de pertença pela preservação dos seus traços identitários, o que contribui
para manter e até reforçar processos de distanciamento, quando não
de separação e exclusão social interétnica. Tal distanciamento faz com

(2) É a este fenómeno que se refere Machado (1992:123):“falar de etnicidade é, genericamente, falar da relevância
que a pertença a determinados grupos étnicos pode adquirir no plano das desigualdades sociais, das identidades
culturais e das formas de acção colectiva” e, por seu turno, Fernandes (1995:15):“De uma maneira ou de outra, as
pessoas são continuamente afastadas da esfera de bens, privilégios, do mundo dos valores, da escolaridade normal
ou de um meio familiar digno” (1995:15).
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 65

que cada grupo tenha uma consciência mais ou menos nítida da sua
própria situação social e da posição dos outros, gerando uma potencial
eclosão de conflitos, os quais sedimentam, por sua vez, a consciência
de cada um dos grupos contendores. Com efeito, um grupo étnico,
sempre que separado social e economicamente dos demais ou quan-
do, como enfatizam Simmel (1987), Elias e Scotson (1969), Bourdieu
(1979), Giddens (1997), se apresenta como distintivo pelas suas origens,
vínculos de pertença e práticas culturais, demarca-se de e/ou é demar-
cado por outros grupos nas suas relações interétnicas, as quais poderão
caracterizar-se ora por co-presença e coexistência, ora por distância e
exclusão, ora ainda por afrontamento e hostilidade. As estratégias de
preservação das identidades étnicas reforçam-se, sempre que as mino-
rias são alvo de processos de exclusão no país de acolhimento ou por
parte da etnia dominante, fazendo emergir o que Weber (1978:303)
denominava comunidade negativamente privilegiada e Myrdal (1944)
designava de subclasse étnica.3 Este conceito em Myrdal foi construí-
do a partir da existência de categorias étnicas que sofriam de privação
relativa num contexto de pobreza e/ou exclusão social. As subclasses,
constituídas, amiúde, por trabalhadores imigrados e outras minorias
têm sido e ainda são apresentadas como ‘perigosas’ em certos círculos
conservadores, sem que estes se preocupem em aprofundar as raízes
e causas da marginalidade e da criminalidade nomeadamente urbana:
dificuldades de acesso à escola e situações de desemprego, desintegração
social, barreiras socio-culturais e/ou linguísticas, sendo o acumular de
obstáculos e dificuldades de vária ordem, nomeadamente o problema
habitacional que segrega um determinado grupo étnico como um
grupo minoritário excluído e discriminado.
Sempre que a pertença étnica comporte um eixo de diferen-
ciação social e sobretudo, como reiteram Machado (1992:123-124) e
Seabra (1994:9 ss), ocorra um processo de construção de identidade
socio-cultural das minorias étnicas contrastante com o da sociedade en-
volvente, estas duas (pre)condições favoráveis a mobilizações colectivas
são susceptíveis de desembocar em conflitos interétnicos. Em diversos
países e regiões, tais clivagens têm comportado, nas últimas décadas,
repercussões tão ou mais relevantes que os conflitos de classe, cujo po-
tencial de mobilização tem vindo a diminuir relativamente nas últimas

(3) Era aliás aos grupos desprivilegiados, quase párias, que, vivendo em “comunidades desprezadas”,Weber (1978)
se referiu e tipificou na sua classificação de classes, sendo o conceito de pária também retrabalhado na América
por Du Bois em torno do negro americano do início do século XX.
66 Travessias 2008

décadas. Já Weber (1978) e neoweberianos como Parkin (1979), Rex


(1986:27) alertaram para o facto de que, enquanto as classes ou formas
associativas nomeadamente com base na pertença de classe, precisando
de ajustar racionalmente os seus interesses, só o adquirem gradualmente
ou, em terminologia marxista, forjam a consciência de “classe para si” de
modo progressivo, exigindo tempo e compromissos, as filiações étnicas,
incorporando um sentimento de pertença e afectividade em base (quase)
comunal ou comunitária, beneficiam da particularidade adicional de
já possuírem o sentimento de formarem um todo mas disponível para
a mobilização, quando necessária (cf. SILVA 2000:64).

2. Da “Integração” Social a uma


Cidadania Pluriétnica
Entre outros modelos de alcance intermédio cabe salientar, por
exemplo, em relação à questão da identidade étnica e cultural, o modelo
quadrimodal de aculturação4 delineado por Berry (1980), em que a
aculturação, a assimilação, a separação e a marginalização constituíam
modalidades estratégicas dos actores sociais sociais na gestão das suas
trajectórias entre a cultura de origem e a cultura da sociedade de aco-
lhimento. Berry (1980), embora considere o seu modelo quadrimodal
da aculturação como algo não ideal e, como tal, sujeito às mudanças das
relações interétnicas, assume de maneira acrítica o conceito funcionalista
de aculturação, o qual seria visto como uma espécie de género face
às diversas diferenças específicas. O próprio conceito de aculturação,
além de herdeiro do berço estruturo-funcionalista, detém, para já em
termos etimológicos, uma dimensão de negação ou privação da própria
cultura. Donde, admitir aculturação como conceito‘guarda-chuva’ de
diversos modos de relacionamento entre os grupos étnicos enferma à
partida de um enviesamento teórico, pelo que tal conceito, não dando
conta das diversas formas de relacionamento inter-grupal nomeada-
mente interétnico, deveria ser banido para este efeito ou, pelo menos,
circunscrever-se apenas a abarcar duas das modalidades apontadas por
Berry (1980): a assimilação e a integração. Por fim, há que sublinhar
que, nesta tipologia arquitectada em torno dos processos de interacção
interétnica, Berry (1980) acaba por arredar da análise os constrangi-
mentos de vária ordem, em especial a questão fulcral do poder – não só

(4) Para Berry (1980) aculturação é abordada como um fenómeno multilinear, como um conjunto de alternativas
(integração, assimilação, separação, marginalização) mais do que uma simples modalidade que desemboca na as-
similação ou na absorção por parte da sociedade de acolhimento.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 67

do poder político na sociedade de acolhimento, mas das várias formas


de poder nas diversas esferas societais.
O conceito de integração apresenta para Berry (1980), em termos
de médio-longo prazo, uma dupla positividade do indivíduo ou, mais
exactamente, uma relação positiva de equidistância, quer em relação à sua
própria cultura e ao seu próprio grupo de pertença, quer em direcção
aos grupos da sociedade de acolhimento. Esta pretensa relação de equi-
líbrio estável nas duas direcções eventualmente opostas não é contudo
sustentável a médio-longo prazo, pois o processo de integração não é
resultante da simples vontade ou decisão dos indivíduos em questão e,
em regra, por razões de tempo e outros constrangimentos, um dos pólos
da tensão entre culturas tende a subordinar-se ou a claudicar em função
do pólo oposto mais forte. Além disso, há aparentes comportamentos
de ‘integração’ e, portanto, de não afrontamento que o são a título me-
ramente instrumental ou mesmo de autodefesa no sentido de retirar o
máximo proveito possível em termos individuais ou familiares, mas tal
não corresponde a uma integração efectiva na sociedade receptora.
A tese de Berry (1980), segundo a qual as chamadas situações de
separação e de marginalização seriam, dum ponto de vista sistémico,
respostas negativas dos actores sociais e/ou reflexos da incapacidade do
sistema em integrar os indivíduos ghetizados ou marginalizados, igno-
ra de modo soberano que elas amiúde também exprimem de modo
informal, subterrâneo e oculto as formas quotidianas de fuga e resis-
tência silenciosas, passivas e, como tal, sintomáticas de uma identidade
étnica contida ou reprimida. A identidade colectiva numa situação de
separação/demarcação poderá constituir um processo de identificação e
mesmo de integração não no grupo dominante mas justamente no seio
dos grupos dominados. Além disso, por que é que a dita marginalização
implicaria, de facto, a perda total da cultura de origem e/ou que a não
integração na sociedade de acolhimento deva ser necessariamente co-
notada em termos negativos? Será que os marginalizados serão despidos
de alguma forma de cultura? Não será esta visão um vago reflexo de
formas perversas de ideologia etnocêntrica que parte do pressuposto
que as minorias deverão ser, senão assimiladas, pelo menos integradas,
aceitando tacticamente as suas diferenças culturais para num segundo
momento as dobrar à cultura, à sociedade e ao Estado dominantes?
Subjacente a este conceito de integração mitigada reside, com
efeito, uma estratégia de interculturalismo que Stoer e Cortezão (1999)
denominam de ‘multiculturalismo benigno’ e que também designei de
68 Travessias 2008

‘interculturalismo táctico’ (SILVA 2000) que, a curto prazo, visa evitar


clivagens e rupturas mas, estrategicamente e a longo prazo, pretende
conseguir a incorporação ou a fusão dessas minorias étnicas nos parâ-
metros políticos e ideológicos vigentes.Tais estratégias políticas, supos-
tamente mais humanistas e democráticas do que a exclusão ou reclusão
sociais, para além de não produzirem tão rapidamente os efeitos deseja-
dos, são contudo confrontadas com princípios duma multiculturalidade
crítica que pressupõe o respeito pela respectiva identidade étnica e pelo
reconhecimento dum espaço de afirmação política próprio.
A este tipo de interculturalismo táctico se associam amiúde atitudes
de condescendência paternalista que, embora não sejam confundíveis com
puras estratégias assimilacionistas, têm certamente em vista a adaptação/
acomodação das etnias e (sub)culturas minoritárias às etnias e culturas
dominantes. Por outro lado, esta concepção interculturalista, ora táctica,
ora ingénua, ignora ou, pelo menos, obnubila duas questões centrais: as
diferenças e contradições nas posições objectivas de vida e sobretudo a
questão do poder entre ambos os grupos protagonistas e a relação de forças
dos respectivos agentes criadores e portadores das diversas culturas.
A interculturalidade adquire relevância e sentido em base de-
mocrática mas ela só é, de facto, possível, se, como referem Dias et al.
(1997:141), cada uma das culturas aprender a conhecer os seus limites
inerentes, se auto-interprete e dialogue com as demais. Daqui se infere
a necessidade e a importância do pensamento crítico e do chamado
multiculturalismo crítico ou progressivo (cf. SANTOS 1995,TAGUIE-
FF 1995:308-344, STOER e CORTEZÃO 1999). Não basta, por isso,
proclamar princípios universalistas “que não passam da face iluminada de
uma imagem da sociedade de que o racismo é a face sombria” (TOURAINE
1995:42), tal como o demonstra também Wachsman (in PIERRÉ-
CAPS 1995:228), ao concluir que o discurso internacional dos direitos
humanos traduz a concepção do universal elaborada pelo ocidente numa
“contemplação narcísica de si”. Sem menosprezar determinados avanços e
conteúdos progressistas proclamados desde o iluminismo, não será que
esta razão ocidental se pretende e inclusive se arroga como universal
porque se alimenta do poderio económico e político?
Rex (1995:297) considera que “o pensamento político europeu só di-
ficilmente ainda admite a ideia de uma sociedade realmente pluricultural”, pois
uma tal sociedade pluricultural não só exige que haja uma única cultura
política de direitos iguais no domínio público, como também reclama
o livre curso da tolerância e do reconhecimento da língua, da religião,
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 69

dos costumes familiares e da cultura das minorias no domínio privado,


concluindo que a União Europeia, não cumprindo estas exigências, co-
nhecerá cada vez mais racismo5. Mais, a política de exclusão poder-se-á
transformar em política de reclusão através de uma integração autoritária
e, não raro, violenta e, justamente por isso, globalmente mais ineficaz.
Países assentes nos princípios do Estado de Direito têm desenvol-
vido alguns mecanismos contra o racismo flagrante, frontal e agressivo.
Contudo, têm surgido, nas últimas décadas, o que alguns autores (TA-
GUIEFF 1988, PETIGREW e MEERTENS 1995:127,VALA et al 1999)
designam de racismo subtil, o qual, segundo recentes investigações na
área da sociologia e da psicologia social é, do ponto de vista cognitivo,
relativamente coerente, não se tratando de uma tomada de posição cons-
ciente mas mais de um processo subconsciente ou inconsciente.
A acentuação dos estereótipos negativos sobre as minorias étnicas
exprime e reflecte a exclusão/rejeição destas por parte considerável dos
membros do grupo étnico dominante. Se, por um lado, tais atitudes
incitam as comunidades das minorias étnicas a reforçar a sua identidade,
refugiando-se nela para alimentar um sentimento de pertença e coesão
de grupo e para garantir a sua reprodução social6, tal reforço identitário
acentua, por sua vez, a exclusão a que são sujeitos, funcionando estes
mecanismos num sentido circular (cf. PINTO 1995:37-51).
As identidades sociais produzem-se a partir da interacção dialéc-
tica entre o lugar ocupado pelos actores sociais na estrutura social – na
qual interferem basicamente, entre outros, factores como a classe social,
o género, a etnia, a idade – e a construção social das mesmas forjadas e
incorporadas nas trajectórias dos próprios actores sociais. Na formação
das identidades sociais, tal como a conceptualiza Pinto (1991:218),
imbricam-se dois processos: um primeiro em que os actores sociais se
fundem entre si e se integram em conjuntos mais vastos de pertença
ou de referência (processo de identificação); e um segundo em que os
actores sociais tendem a demarcar-se, autonomizar-se e diferenciar-se
socialmente, fixando, em relação a outros, distâncias e fronteiras mais
ou menos rígidas (processo de identização).

(5) Rex (1995) salienta as desigualdades cívicas e sociais que resultam da actual União Europeia e que “separarão
os cidadãos da Comunidade Económica Europeia que gozarão do direito de livre circulação e os imigrantes na mesma Comu-
nidade que não beneficiarão desse direito: os imigrantes brancos vindos do Leste, os imigrantes originários do Terceiro Mundo
e um grande número de indivíduos em situação irregular e de refugiados” (1995:295).
(6) Wieviorka (1993:181 ss) reconhece aqui a etnicidade na sua plenitude: em nome da sua identidade particular,
da respectiva experiência ou da necessidade de assegurar a sua sobrevivência em épocas particularmente difíceis,
um grupo étnico é capaz de apelar à sua memória para “pressionar” a história.
70 Travessias 2008

A pertença étnica, reivindicada ou atribuída, só existe e será in-


teligível na condição de serem pressupostos certos prerequisitos, como
vimos acima. As relações interétnicas fornecem-nos um código de
categorias destinado a orientar o desenvolvimento das relações sociais,
sendo este um código de contraste, na medida em que a identidade
étnica se afirma, por um lado, “negando” a(s) outra(s) identidade(s) e,
por outro lado, em confronto com ela(s), apreendida(s) num sistema de
representações de carácter ideológico (cf. BARTH 1969, OLIVEIRA
1976: 5 ss, SÁN ROMAN 1986, MEMMI 1993).
Do exposto poder-se-á inferir ser necessário não só contrariar
os preconceitos e as formas de racismo subtil entre os cidadãos da
maioria autóctone dominante como também exigir-se aos Estados
europeus, em nome do princípio constitucional da igualdade de
tratamento, uma nova atitude para com as minorias étnico-culturais,
incluindo obviamente as comunidades de imigrantes. Dum consi-
derável grau de práticas discriminatórias e representações racizantes
não é pertinente deduzir concepções essencialistas em torno do
racismo como se este fosse uma espécie de propriedade intrínseca
de determinadas pessoas, enquanto outras seriam imunes a tal. Ele
é o resultado de determinadas estruturas e contextos específicos,
de relações sociais assimétricas perpassadas de etnocentrismo e
dominação de uns grupos sociais sobre outros, caracterizadas por
contrastes de identidades, culturas e estilos de vida entre dominan-
tes e dominados. Se o conflito em bastantes situações não assumiu
outras proporções de confronto mais violento, tal se deve, entre
outros factores, ao facto de as próprias comunidades migrantes,
além de minoritárias, serem desprovidas de recursos internos e ex-
ternos suficientes nomeadamente não deterem capacidade política
e organizativa adequada.
Para Lévi-Strauss (1975) – para quem a civilização implica a
coexistência de culturas, oferecendo entre elas o máximo de diversi-
dade – a civilização mundial, sem negar ou mutilar a originalidade e
especificidade de cada uma das culturas, pressupõe a articulação e a
aliança das diversas culturas.Vivendo nós em sociedades plurais,7 urge a
tomada de consciência deste facto, de modo não só a tolerar mas a aceitar
gradamente o diferente, o estranho à nossa identidade e cultura.

(7) Giddens (1997:310) define sociedades plurais como sendo aquelas “onde existe uma grande variedade de grupos
étnicos englobados na mesma ordem política e económica, mas, por outro lado, completamente distintos uns dos outros. Fala-se, por
isso, em mistura mas não em associação.Vivem todos lado a lado, mas separadamente, dentro da mesma unidade política”.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 71

Perante os problemas e as ameaças à coexistência e à convivên-


cia pluriétnica e multicultural, é curial questionar-se sobre quais os
caminhos que se afiguram mais prováveis nas próximas décadas, quer
na América, quer, pelas acrescidas dificuldades do modelo político a
configurar, na Europa. Uma das pistas de solução, sobretudo defen-
dida por certas correntes monolíticas, resume-se à integração pura
e simples, ou melhor, à assimilação das minorias étnicas, forçando,
senão a curto, pelo menos a médio-longo prazo, os seus membros a
renunciar à endogamia, às suas práticas religiosas e demais tradições
culturais e, assim, moldá-los pelos padrões, normas e valores domi-
nantes. A palavra de ordem seria: “ou te integras e deixas-te assimilar
ou põe-te a andar”.
Uma segunda consistiria numa fusão de culturas (melting pot),
procurando dar lugar a novas formas culturais. No entanto, dado o maior
peso ou influência da tradicional cultura dominante, mesmo que esta
não apresente uma estratégia de aniquilação das demais, este modelo
acabará no predomínio da cultura autóctone dominante.
Uma terceira defenderia o princípio da diversidade e do plu-
ralismo cultural, em que todas as culturas seriam igualmente dignas e
reconhecidas. Este caminho é defendido sobretudo pelas organizações
das próprias minorias étnicas e organizações anti-racistas solidárias com
as minorias e cuja divisa, cada vez mais popularizada, se resume: “Todos
diferentes, todos iguais”. A defesa do multiculturalismo não poderá ser
simplesmente de ordem táctica e, por outro lado, só poderá ser efectiva,
se acompanhada por uma política de partilha do poder e não de sim-
ples subalternização estratégica, a médio-longo prazo, das respectivas
minorias étnicas e culturais.
Independentemente do modelo social mais adequado para fazer
face a este problema, importa assumir como prioridade política, pelo
menos, a intensificação de medidas de prevenção, regulação e superação
da conflitualidade inter-étnica. Só deste modo é possível, a curto-médio
prazo e de modo gradual e progressivo, criar condições favoráveis para
combater situações de rotulagem, estigmatização e exclusão sociais e
perseguir um objectivo estratégico a médio-longo prazo: a convivência
pacífica e a solidariedade entre os portugueses autóctones e os diferentes
grupos étnicos.8

(8) cf. respectivamente Becker 1968, Goffman 1988, Weber 1978, Abou 1990, Almeida et al. 1994, Xiberras
1993, Martins 1996.
72 Travessias 2008

Diversos são os autores que vão apontando para a realização deste


objectivo a necessidade de uma educação multicultural. Um tal discur-
so, ao dar lugar ao reconhecimento da diferença, é um primeiro passo
positivo. No entanto, se ele se resumir a uma simples folclorização das
diferenças assumidas como exóticas (música, dança, alimentação), tal po-
derá revelar a face do ‘multiculturalismo benigno’, a que se referem Stoer
e Cortezão (1999) ou desembocar no que Santos (1995) designa com
justeza uma “gestão controlada da exclusão”. Quando não caricata, esta
folclorização, tranquilizando as consciências e ficando-se não raro pelas
boas intenções, comporta efeitos perversos de despolitização anestesiante.
O multiculturalismo educativo, quando simples retórica ‘inofensiva’ e sem
consequências políticas na relação com o poder, servirá ora para reforçar
a guetização, ora para assimilar, numa segunda fase, as culturas e os frágeis
poderes dos grupos minoritários. Não basta preservar a identidade cultu-
ral, há que fornecer meios e recursos que permitam que os grupos ditos
excluídos e desprovidos conquistem eles próprios, de modo organizado,
o seu lugar na sociedade, influenciando decisivamente a própria dinâmica
do poder local, regional e central. E isto é tanto mais válido e premente
quanto se, no processo de globalização transnacional, as identidades das
minorias étnicas estão a sofrer uma erosão pela via educativa, ao mesmo
tempo a sua identidade e valores culturais podem constituir uma forma
de resistência à triunfante lógica da globalização.
O combate ao racismo depara-se, porém, com diversas dificul-
dades: uma patente ineficácia devida à falta de vontade política para o
fazer e certa argumentação das políticas anti-racistas9 , que contribuem
para a “racialização” da vida social e política. É, então, necessário cami-
nhar numa outra direcção para que possamos alcançar a atitude que,
a nosso ver, é a verdadeiramente positiva – reconhecer o princípio do
pluralismo cultural, assumindo as diversas exigências que daí advêm.
Revela-se, assim, urgente reconstruir espaços sociais e políticos que
combinem três orientações: (i) sentido comum de pertença a uma
sociedade; (ii) clareza das escolhas políticas; (iii) e maior participação
política (TOURAINE 1995:43).

(9) Taguieff (1995: 309-317) evidencia as contradições ideológicas do discurso anti-racista: a contradição do
“pluricultural”, que consiste em enunciar a eminente respeitabilidade das diferenças grupais e, simultaneamente,
apontá-las como uma causa da falta de respeito entre as pessoas; a contradição das atitudes eruditas face à “raça”,
pois os preceitos legais (que, enquanto proibitivos da discriminação em função da “raça”, pressupõem que as
diferenças “raciais” são um factor de discriminações) contradizem a proclamada e provada não cientificidade da
noção de “raça”; a contradição das duas tolerâncias, traduzida na necessidade de compreensão entre humanos que
não podem compreender-se; a contradição da posição mistófila, que para combater a mistofobia elogia imod-
eradamente a mistofilia; o dilema da hipertolerância diferencialista e da concepção assimilacionista da cidadania,
traduzida na oscilação entre os ideais da coexistência e da assimilação progressiva
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 73

Neste sentido Taguieff (1995: 308-344) salienta a importância do


desenvolvimento do pensamento crítico capaz de reconhecer os seus
próprios limites, o que deverá envolver a participação da escola, pois a
prevenção pela educação é, segundo o autor, essencial para combater
os preconceitos, embora tal missão seja complementada pela respon-
sabilidade intelectual dos jornalistas, uma vez que o exame crítico
do racismo contemporâneo tem de considerar as suas duas principais
características: a hipermediatização e a instrumentalização políticas.
Paralelamente, há que antecipar o racismo através de políticas volun-
taristas geradoras de uma ética da responsabilidade capaz de criar um
“civismo anti-racista que, juntamente com a virtude da justiça, redescobriria as
da generosidade e dedicação” (TAGUIEFF 1995: 344).

3. Entre a Inserção, a Condescendência


Paternalista e a Exclusão Social
Dadas as dificuldades e barreiras de selecção no sistema educativo e as
desiguais oportunidades no acesso ao emprego e/ou à criação de empresas
no país de origem e no pais de acolhimento, a grande maioria dos membros
das minorias étnicas não integra as classes empresariais ou as profissões libe-
rais e sente-se confrontada, em termos de emprego, em posições marginais,
instáveis e precárias, tal como se pode constatar do seguinte retrato sócio-
profisssional dos grupos migratórios provindo dos PALOP10:

Gráfico 1: Profissão actual dos imigrantes dos PALOP

Outra
Outra
Estudante
Estudante
Profissão liberal
Profissão liberal
Trabalhador qualificado assalariado
Trabalhador qualificado assalariado
Pequeno comerciante
Pequeno comerciante
Artesão
Artesão
Empregado do comércio ou serviços
Empregado do comércio ou serviços
Operário fabril ou de construção civil
Operário fabril ou de construção civil

00 55 10
10 15
15 20
20 25
25 30
30 35
35 40
40

Fonte: IIAPB, 2003

(10) A pesquisa foi realizada no distrito de Braga e sob a minha orientação (Manuel Carlos Silva), na sequência
de projecto aprovado
n = 287 pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (POCTI/SOC 103/96/2001) realizada
em 2001- 2003, cujo relatório final foi concluido em 2006. Para além de um inquérito elaborado a portugueses
não ciganos com uma amostra de 2000 inquéritos e uma amostra de 142 inquéritos a portugueses-ciganos,
74 Travessias 2008

Apesar das dificuldades de aceder a trabalhadores do sector se-


cundário – parte deles em situação irregular – foi possível constatar
que 39% dos inquiridos eram operários fabris, da construção civil ou
artesãos, os quais, acrescidos dos 12% empregados no sector terciário
(comércio e serviços), somam uma maioria de 51%.11 Ou seja, as ditas
subclasses étnicas, além de deterem, em regra, posições de desvantagem e
dependência, mantêm amiúde ocupações pior remuneradas no mercado
de trabalho (cf. gráfico 3), deixam de ser objecto de igual tratamento e
protecção perante a lei e são não raro alvo de discriminação por parte
de agentes das várias instituições (policiais, de saúde, segurança social,
escolares).Além disso, amiúde, por razões de enconchamento identitário
ou mesmo de autodefesa, constituem-se em mundos isolados, separados
ou até segregados em ghettos, cuja baixa ou nula comunicação com fo-
râneos provoca sentimentos de insegurança e medo junto de membros
das comunidades autóctones, o que reforça os processos de rotulagem
e estigmatização das minorias étnicas.
É correntemente assumido como desejável que os imigrantes e
minorias étnicas se integrem e sejam integradas na sociedade envolvente,
maioritária, sem que se problematizem os termos em que a almejada in-
tegração possa e deva ocorrer. Porém, antes de discutirmos e avaliarmos a
justeza ou não desse desiderato, importa aferir o que se entende por cada
conceito, procurando destilar alguns critérios que permitam traduzir e
concretizar cada um deles. Pela minha parte problematizo o conceito de
integração pela ambiguidade que encerra e, de modo inequívoco o rejei-
to, quando ele implique homogeneização e subalternização das culturas
vindas de fora, porque, tal como referem Dias et al. (1997:141), sendo
“um conceito socialmente manipulado sob uma perspectiva funcional, significaria
uma espécie de assimilação elegante, sem hostilização, que de forma subtil constitui
um marco num Estado de Direito … que garanta direitos e oportunidades para
todos os cidadãos”. É este aliás o conceito-chave que é invocado por Berry
(1997) que, tal como o resumi na rubrica 2., arquitecta uma tipologia de
quatro possíveis respostas dos actores sociais ao meio envolvente: duas

foi elaborado um inquérito específico a africanos negros com uma amostra de 300 inquéritos a afri-
canos negros residentes no distrito de Braga, sendo este último inquérito o que diz respeito ao texto.
O questionário foi estruturado nas seguintes componentes: identificação pessoal em termos de variáveis como sexo,
idade, estado civil, nacionalidade, profissão, habilitação escolar, situação e antecedentes antes da vinda para Portugal,
motivos da emigração, apoios institucionais e informais, trajectória laboral, salários/renta, condições de trabalho,
tipo de alojamento e equipamentos domésticos, relações com vizinhança, dificuldades de inserção social, relação
com autoridades, percepções e representações sobre portugueses, crenças e afinidades políticas,caracterização
dos africanos, expectativas para os filhos, etc.
(11) Convém ter presente que um não desprezável número de respondentes declara que, além da profissão prin-
cipal na construção ou nos serviços, tem outro trabalho complementar, tendo alguns, nomeadamente guineenses,
referido ser também futebolistas, certamente em clubes de terceira divisão ou locais.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 75

adaptativas, consideradas positivas tais como a integração e a assimilação


e outras duas vistas como negativas: a segregação ou marginalização.12
Ou seja, dependendo do grau de satisfação, da incorporação linguística e
cultural, do desempenho económico, assim será o grau de integração dos
membros das comunidades migrantes, um posicionamento que converge,
de certo modo, com o assumido por Rocha Trindade (1995:358).
Um outro conceito mais sofisticado mas aceitável e que tem sido
utilizado é o de inserção, o qual já não tem todavia a mesma conotação po-
lítico-ideológica de subalternização social e cultural em relação à sociedade
e cultura dominantes, mas tão só a inserção social em termos habitacionais,
laborais, educativos, enquanto cidadãos, não lhes sendo exigido pautar-se
pelas normas e valores da cultura dominante. Eis, portanto, a questão que
importa indagar, tendo em conta o que já pudemos apurar e continuare-
mos a desenvolver. Não há, a este respeito, uma resposta uniforme, pois,
enquanto observamos e comprovamos haver membros das comunidades
migrantes dos PALOP inseridos na sociedade portuguesa, na perspectiva
acima referida, outros há que de modo algum se sentem inseridos e outros
ainda estão em parte inseridos mas reservam para si espaços e nichos da sua
identidade sócio-cultural, vivendo um processo de relativa adaptação de
maneira instrumental, tal como mostraremos quer em termos quantitativos,
quer em termos qualitativos. Assim o clarifica Vasco:
Isto é dificil, eu tive que vestir muitas capas e, passe a expressão, engolir
muitos sapos. Tinha que vestir a capa de que a minha posição era uma
posiçao inferior, tive que vestir essa capa. Tive que vestir a capa de que
estava tudo bem e de que estava satisfeito com o patrão, com a empresa e
com o trabalho; tive que vestir outra que considerava a maneira e o ritmo
como se trabalhava, aquilo era escravatura moderna entre aspas: era violento
o ritmo de trabalho, havia uma diferenciação nítida entre pessoal africano
e pessoal não africano a trabalhar, e depois houve também umas coisas
caricatas que tive, que observei, que tive que engolir. Havia muita exigência,
muita pressão, nao havia maneira de tratos – tipo faz isso -, não sei se é
linguagem própria da construção civil – a linguagem da construção civil
é muito própria, é muito rude -, mas também assisti a muito absentismo
da parte do pessoal, o pessoal sempre que tivesse uma oportunidade para
não trabalhar, não trabalhava e nas situações mais delicadas possíveis, desde
estar a dormir em cima de um andaime, num quarto escuro com risco de
cair, o pessoal às vezes dizia que aquilo era para se vingar das pessoas que
os tratavam muito mal (st,s,h,33 anos, bancário)

(12) Tal como referi no enquadramento teórico, o autor peca de um psicologismo de cariz individualista porque
não analisa o contexto e as diversas variáveis presentes na interação dos actores sociais, para além de assumir
como padrão referencial os valores da cultura dominante.
76 Travessias 2008

Quanto questionado se tinha sido discriminado no trabalho e


como se sentia,Vasco é peremptório:
“Sim fui discriminado, sim objectivamente, como os outros. Sentia-me
muito revoltado e às vezes pensava que, se eu tivesse um outro meio
de ganhar a vida, abandonava logo; cheguei mesmo a confrontar as
pessoas com esse tipo de situação. Se calhar, eu tinha mais à-vontade
de fazer isso porque sabia que aquilo não ia ser futuramente a minha
vida, não ia ser o meu futuro e, então, estava à-vontade e confrontava
muito os patrões e as pessoas, refilava muito e discutia; e o facto de
eu refilar e discutir granjeou-me um outro estatuto, mudaram-me,
continuei na construção civil mas passaram-me para um trabalho mais
leve, e havia comentários do género – “vê-se que você nao é pessoa para
esse trabalho” – e eu uma altura perguntei – “quem é que é pessoa para
esse trabalho?” – era mais ou menos, isso e muito mais, coisas muito
complicadas”. (st, 33 anos, operário e agora bancário).

Deste modo, as modificações na variável inserção serão determi-


nadas pelos perfis de cada grupo, analisados no âmbito das condições
de vida reais e das mundividências culturais, onde se formam sistemas
sociais diferenciados e aí se produzem universos simbólicos específicos.
Neste sentido, torna-se pertinente auscultar os actores sociais sobre o
grau de facilidade ou tipos de dificuldades de adaptação e inserção na
sociedade de acolhimento:

Gráfico 2: Dificuldades encontradas no processo de adaptação

Outros
Outros

Habitação
Habitação

Serviços
Serviçospúblicos
públicos

Hábitos/costumes
Hábitos/costumes

Trabalho
Trabalho

Sim Língua
Língua
Não
n= 283 0%
0% 20%
20% 40%
40% 60%
60% 80%
80% 100%
100%

Fonte: IIAPB, 2003 Sim Não

n = 283
Da análise do gráfico 2 podemos constatar que os inquiridos
destacam três principais dificuldades no processo de adaptação: ao nível
dos hábitos e costumes (50%); na esfera da habitação (38%) – situação
que pode, em parte, ser explicada pelo preconceito – e no mundo do
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 77

trabalho com 35% de respostas.A língua surgiu como o obstáculo menos


frequente (10%), situação que se compreende quando constatamos que
64% dos inquiridos fala, em casa, a língua portuguesa.
Embora sob formas não tão extensas e dramáticas como nalguns
bairros das grandes áreas metropolitanas como Lisboa e Porto, tam-
bém em Braga, a par de imigrantes que têm conseguido um razoável
emprego e nível de vida, uma parte considerável deles é afectado por
situações de exclusão social e de pobreza relativa, quando não absoluta,
constituindo os imigrantes africanos uma das categorias vulneráveis à
pobreza e precariedade social a que Almeida et al (1992:91) se referiram
na sua tipologia sobre pobres e excluídos sociais na sociedade portu-
guesa.13 Procurando saber os níveis de remuneração salarial, obtivemos
os seguintes resultados distribuídos nos seguintes escalões:

Gráfico 3: Salário médio mensal

801€ e mais

701€ - 800€

601€ - 700€

401€ - 600€

251€ - 400€

menos de 250€ 0% 20% 40% 60% 80% 100%

0 5 10 15 20 25 30 35 1982

Fonte: IIAPB, 2003

Analisado o gráfico, ressaltam, em primeiro lugar, como traço


dominante, os baixos salários: 37% situam-se entre 401 a 600 euros
e 33% entre 251 e 400 euros, a que acrescem 4% que se encontram
abaixo dos 250 euros. Apenas 14% ganham entre 601 a 700 euros e
uma menor fatia de 9% entre 701 a 800 euros e 1% com mais de 800
euros. Assim, 76% dos inquiridos recebem apenas um salário abaixo
do salário médio, dos quais parte considerável (acima de 30%) abaixo
do salário mínimo. A esta discrepância não serão alheios processos de

(13) Sobre as categorias em situação de precariedade e de pobreza, referem Almeida et al (1994:91), “de modo
geral, as categorias da população mais vulneráveis à pobreza, são essencialmente os desempregados de longa
duração, jovens à procura do primeiro emprego e certas minorias étnicas, nomeadamente africanos, asiáticos,
ciganos, deficientes e idosos com recursos limitados.
78 Travessias 2008

discriminação salarial também em função da origem étnico-racial, de


género ou simplesmente migratória.
Para parte dos imigrantes o primeiro problema é mesmo o do
próprio acesso ao trabalho, o qual, permitindo a percepção de um ren-
dimento, proporciona ao indivíduo a possibilidade de acesso aos bens
materiais, de consumo e todo um conjunto de necessidades a satisfazer
em termos materiais, políticos e cultural-simbólicos. O poder de compra
resultante da remuneração salarial constitui como que a base nuclear
que orienta e abre possibilidades aos indivíduos não só de satisfazerem
as suas necessidades, como de elevarem a sua autoestima e o seu sentido
de dignidade cidadã. Assim, uma permanente diferenciação salarial em
relação aos autóctones, para não falar nalguns casos de não pagamento,
propicia o surgir do sentimento de discriminação, podendo, em casos
mais extremos, levar à exclusão social. Para além do predomínio de
baixos salários e da execução de trabalhos mais duros e mal pagos,
acrescem ainda as diferenças salariais entre homens e mulheres: 84%
das mulheres aufere menos de 600€/ mês (contra 70% dos homens),
sendo que destas 49% recebe entre 251-400€ (cf. anexo 1).
Para além de trabalhos com salários baixos e da execução de
trabalhos mais duros, do ponto de vista do esforço físico, nas grandes
obras públicas, de infraestruturas (pontes, autoestradas) e de construção
civil, o que mais magoa os imigrantes negros é a discriminação de que
são objecto: “Eu lá no trabalho sou visto como o diferente, todos me tratam
não pelo nome mas como o black” (g,h,35 anos, armador de ferro) e um
outro: “Há a ideia de que tudo que vem de África não tem capacidade de
pensar!” (cv, h, 21 anos, estudante).
Quanto a descontos, segundo os dados obtidos, ao lado de 41%
que fazem descontos para a segurança social e duma parte menor com
cerca de 9% que têm seguros privados ou outros, há um considerável
contingente de 30% que não têm qualquer seguro em contexto laboral
ou privado. Por outro lado, questionados sobre quais as mudanças no
percurso migratório, para 47% dos inquiridos o processo migratório
não trouxe alterações significativas ao nível das suas condições de vida,
apesar de 43% afirmarem que houve melhorias substanciais contra os
7% que dizem ter piorado – o que terá sobretudo ocorrido aos que por
razões de descolonização ou de guerra saíram do seu país, forçando-os
a descida de estatuto ou a piorarem as suas condições económicas. Se o
melhoramento no nível das condições de vida é algo que sobressai para
uma parte dos inquiridos, tal não se estende à maioria como verificamos.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 79

Falar em condições de vida, principalmente em percursos migratórios,


leva-nos a acrescentar a questão das estratégias de poupança que são
encetadas pelos imigrantes e que os leva a reconhecer que “valeu a pena”
emigrar, independentemente do seu projecto de regresso/ permanência.
Enquanto uns denotam dificuldades de inserção e adaptação à socieda-
de receptora, outros conseguem estabelecer pontes e ligações, pela via
escolar e/ou laboral, em parte também dependendo tais atitudes dos
tempos de residência e fixação no território, em particular das relações
de vizinhança, amizade e pelas vicissitudes do percurso ou pelas relações
de amizade e/ou ligações afectivas e emocionais que vão construindo
nos seus próprios espaços, esbatendo-se diferenças em processos de mis-
cigenação com casamentos ou uniões de facto interétnicos. O tempo de
permanência tem efeitos diferentes sobre os imigrantes e, numa análise ao
destino das poupanças, constatamos que 32.5% dos inquiridos poupam
para comprar uma casa em Portugal, 21.9% poupam para regressar ao
país de origem e 14.4% para enviar para a família.
Se uns adiam o projecto de regresso, outros consolidam esse pro-
jecto consoante os tempos de imigração. Por sua vez, 50% dos imigrantes
inquiridos responderam que pretendem regressar por razões diversas das
quais se destaca, com maior número de respostas (29%), outras activida-
des para além das tipificadas, normalmente associadas às qualificações;
e de seguida, com 25% que quer investir em pequena empresa ou em
pequeno comércio (25%), 35% ainda não sabe se regressará e 15% não
pensa em regressar alegando, como motivos, ter melhores condições de
vida em Portugal (40.3%) e ter família já estabelecida (28%).
Esta questão do regresso/permanência põe em relevo a vivên-
cia – contraditória nalguns casos – entre nacionalidade e cultura, o ser
português por nacionalidade, mas africano na cultura. Representando a
nacionalidade um vínculo jurídico por parte do cidadão a um país e a
um Estado, para os imigrantes que pretendem permanecer em Portugal,
a aquisição da nacionalidade constitui o derradeiro e culminante passo
do processo gradual de inserção neste país.
Da lista de instituições listadas verifica-se que as entidades mais
procuradas pelos imigrantes são o hospital (82.7%), o Serviço de Es-
trangeiros e Fronteiras (SEF) (79.7%), o consulado (71.4%) e o centro
de Saúde (77,8%). As opiniões que os imigrantes têm da acção destas
entidades não são nem boas nem más, apesar de podermos verificar
uma tendência para uma apreciação negativa em relação ao serviço das
repartições públicas.
80 Travessias 2008

“...quando nós nos dirigimos a uma instituição qualquer (...) de uma


forma geral, o africano existe como uma pessoa que veio entre aspas
desenrascar-se – como nós dizemos em São-Tomé –, uma pessoa que
não tinha lugar para cair morto, há sempre aquele tratamento de ter-
ceira, de rejeição, a forma mesmo inclusive de falar connosco já mostra
que a abordagem que a pessoa faz da questão ja é uma abordagem
pejorativa. Por exemplo, quando vamos anualmente renovar os nossos
vistos, creio que no SEF, aliás, muitas das vezes é onde se nota maior
discriminação”. (st, homem, solteiro, 21 anos, estudante).

Em suma, é em relação aos serviços públicos que várias queixas fo-


ram formuladas, dirigindo-se mais em relação ao SEF e outras repartições
públicas, incluindo também as escolas. Ora, como veremos, estas formas de
discriminação institucional reforçam a produção da diferenciação entre o
“nós” e o “eles”, cavando mais o fosso já existente na própria sociedade.

4. Sociabilidades e Interacções
Quotidianas na Comunidade Envolvente
Para os imigrantes é crucial manter as solidariedades familia-
res e grupais e as redes interpessoais que permitam a sua inserção e
suportem, também, novas estratégias migratórias. Um dos factores
determinantes das migrações é, precisamente, o acesso a redes sociais
de parentesco e amizade, que já existiam nos países de acolhimento. A
solidificação dos mecanismos de solidariedade e dos laços de entrea-
juda são uma primeira fase indispensável, porque estas sociabilidades,
no quadro dos processos de reprodução, sobrevivência e reciprocidade,
permitirão estratégias de maximização das possibilidades de obtenção
de sucesso no processo de adaptação.
Desta forma, de entre os tipos de sociabilidade existentes e,
para além dos já analisados apoios no momento de chegada e dos
relacionamentos com as diversas instituições da sociedade de aco-
lhimento, são de relevar, principalmente, as relações de vizinhança,
as amizades que se vão construindo no dia a dia. Quanto às relações
de vizinhança, vários dos inquiridos e, posteriormente, entrevistados
consideram que têm sobre as relações de vizinhança outras atitudes
e práticas diferentes das que ocorrem não só entre eles como das que
têm lugar entre os portugueses:
O que eu achei mais complicado foi lidar com as pessoas, porque eu
cumprimentava sempre com um bom dia, por exemplo, e ninguém me
dava resposta. Eu ficava mesmo chateada! (g,mu, 41 anos, cabeleireira).
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 81

A mesma ideia é expressa por um caboverdiano que, no seu dia


a dia, fez notar o seguinte:
Lá em Cabo-Verde, se me relacionar com uma pessoa durante três
semanas, depois se passamos na rua cumprimentamos, quer passe um ou
cinco anos. Aqui as pessoas viram a cara! (cv,h,21 anos, estudante).

Alguns dos entrevistados mostraram um certo espanto perante


o modo como os próprios portugueses, de uma maneira geral, são in-
sensíveis a diversas situações sociais de exclusão como o caso dos “sem
abrigo” e os “velhos”.
Eu não percebo a mentalidade aqui, porque aqui quem está mal, está
mesmo mal, porque ninguém ajuda. Nós não somos assim. Por exemplo,
os sem abrigo dormem no chão, à chuva…Se um tiver a dormir à porta
do meu prédio, eu não vou conseguir dormir descansada! No meu país
isso não acontecia, alguém ia arranjar um sítio. E os velhos? Aqui deixam-
se no lar. Isso entre nós não acontece (g, mu, 41 anos, cabeleireira).

No que concerne as relações de vizinhança, 92% dizem não ter


problemas, mas esta percepção positiva do relacionamento com a vizi-
nhança se deve principalmente ao facto de, a par das proximidades entre
africanos e sobretudo conterrâneos, se verificar distanciamento consciente
dos membros das comunidades migrantes face à maioria branca.
Como estratégia eu tenho de fazer a minha vida e não me meter na
vida dos outros, não me meter em situações desagradáveis e fazer a
minha vida (a, 28 anos).

eles não me chateiam para não haver problemas, é essa a relação que eu
tenho com eles (...) para evitar problemas, para evitar confusão, para ficar
na minha, convivemos, damo-nos bem, há portugueses espectaculares,
como há portugueses maus, como para nós, há africanos espectaculares,
há africanos que não prestam. (m,s,h,24 anos, estudante).

Se a estratégia de evitamento surge como forma de obviar si-


tuações de conflito e confronto, não deixam de transparecer, também,
quesílias latentes ao nível das relações interétnicas ou interfamiliares,
como nos deixam percepcionar as conclusões de estudos parcelares
realizados emVilaVerde e em Barcelos, entre portugueses versus ciganos-
portuguees e cidadãos negros (cf. Silva e S.Silva 2002; Silva e Pinto
2004). A maioria de respostas refere um bom relacionamento com a
vizinhança; os respondentes que referem algum problema apontam
como principais motivos os vertidos no gráfico 4:
82 Travessias 2008

Gráfico 4: Motivos dos problemas com os vizinhos

Outros
Outros

Receio
Receio dododiferente
diferente.

Falta dedediálogo
Falta dialogo.

Razões culturais
Razões culturais.

Falta de compreensão
Falta de compreensão.

Motivos racistas
Motivos racistas.
n= 26
Sim Não
0%
0% 10% 20%
10% 20% 30% 40% 50%
30% 40% 50% 60%
60% 70%
70% 80%
80% 90%
90% 100%
100%
sim não
Fonte: IIAPB, 2003
n = 26

Dos motivos invocados, a par de 34% que aduzem “falta de com-


preensão” e “falta de diálogo” e 55% que apresentam “razões culturais”,
sobressaem, com 79% das respostas, motivos racistas:
Não fui bem aceite na família do meu marido. Senti e vivi muito
racismo na escola” (a,mu,cs,53 anos, licenciada, professora 1º ciclo)
“Tínhamos um vizinho (...) que dizia que ouvia barulho da nossa casa,
é incrível podia ser barulho exterior, mas ele dizia que era da nossa casa,
e sempre, pra aí à meia-noite, ele tocava a campainha porque estávamos
a fazer barulho; é que ele chegou quase a bater-me na escada (...) só
porque eu respondi, porque ele disse “vocês pretos só vêm pra’qui fazer
confusão, vocês deviam voltar para a vossa terra”, e eu respondi “então que
tirem todos os portugueses d’África”. (...) Eu tive que avisar o senhorio, é
que era mesmo implicância (st,s,m,21 anos, estudante)
Alguns, ao referirem que a maioria dos portugueses é racista, não
deixam de reconhecer também o inverso (“os negros são também racistas”
(a,h,24 anos, operário), mas justificam-no por razões defensivas, por
retaliação ou em nome da honra: “os negros são também racistas mas em
defesa de honra pessoal ou de grupo” (a,h,s,29, estudante universitário), ou
simplesmente “por causa de não darem os mesmos direitos de um português”
(a, h, s, 30 anos, curso médio, vendedor). O mesmo se diga quando os
portugueses os avaliam como pessoas agressivas, mostrando sê-lo quando
se sentem objecto de discriminação ou tratamento injusto:
Agora acho que a agressividade é agora menor, mas se a gente não é
agressiva, está feita, a gente tem que se defender, por isso passa a ser
um traço mais frequente. O africano, se lhe ‘baterem’ e ele souber que
têm razão, deixa, fica quieto, mas se soube que quem lhe bateu não
tem razão, uih, ele tem de levar a dele avante!
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 83

A seguir aos motivos de racismo são apontadas, em ordem de-


crescente, as razões culturais (55%), falta de compreensão e/ou diálogo
(29%) e, embora residualmente, o “receio do diferente”, um motivo
aduzido e valorizado heuristicamente por alguns psicólogos sociais (cf.
Vala et al. 1999), o que de resto transparece nalguns dos desabafos:“Para
mim o maior entrave é a questão cultural, a questão é a falta da compreensão, a
estranheza” (h,a,s,29,estudante universitário). Talvez este e outros mo-
tivos de estranheza face ao diferente possam explicar por que é que a
taxa das respostas negativas ao “encontro frequente com vizinhos” seja
largamente superior às respostas positivas: 62% não tiveram contacto
com vizinhos versus 38% que o tiveram.
Este resultado já é por si sintomático dos processos de evitamento
e menor frequência de contacto com vizinhos. Porém, o evitamento,
tal como o definiu Goffman (1974), tanto pode ser expressão duma
estratégia consciente e de omissão calculada com contornos discri-
minatórios, como também pode ser reflexo condicionado do medo
pelo diferente derivado do desconhecimento mútuo, da angústia em
torno do desconhecido, supostamente assumido como “perigoso” ou
preconcebido como “raiz de incerteza, perturbação ou mal estar”. No
caso específico dos imigrantes africanos, encontramos as questões das
representações que se vão formando acerca dos residentes negros e que
podem, de facto, ser um obstáculo ao relacionamento
O problema da imigração é que há uma má imagem em torno do imi-
grante…Enquanto as pessoas virem os africanos como alguém agres-
sivo, vai ser difícil a gente integrar-se. Generaliza-se muito as coisas…
Para mim o maior entrave é a questão cultural, a questão é a falta da
compreensão, a estranheza (a, h, 29 anos, estudante universitário).

Se pretendermos destrinçar como é que os diversos grupos das


diferentes nacionalidades convivem ou não com os vizinhos brancos,
os dados do inquérito evidenciam os seguintes resultados:

Quadro 5: Convívio com grupos por nacionalidades


Angolana Guineense Moçambicana Caboverdeana S. Tomense Outra Total

nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %

Indiv.
Portugueses 22 17 2 7 7 19 8 14 3 23 13 37 55 19

Outros
imigrantes 68 54 16 59 18 49 32 56 7 54 13 37 154 52

Portug
e imig 37 29 9 33 12 32 17 30 3 23 9 26 87 29

TOTAL
127 100 27 100 37 100 57 100 13 100 35 100 296 100

Fonte: IIAPB, 2003


84 Travessias 2008

Como podemos constatar, e numa primeira leitura, a maior parte


das amizades/ convívio é feita com outros imigrantes do mesmo país
(52%) e, dentro desta percentagem, a amizade intra-grupal, ainda que
transversal aos vários grupos, é mais visível entre os guineenses (59%)
e os cabo-verdianos (56%). 29% afirmaram que se relacionam amiga-
velmente com portugueses e imigrantes e 19% só com portugueses,
sendo que aqui se destacam os moçambicanos e os santomenses. Assim,
verificamos que existe um adensamento das redes de sociabilidade intra-
imigrantes pelos contactos e pelas amizades que se vão construindo.
O grau de etnicidade variará consoante os contrastes sociais e
culturais que demarcam as minorias e as maiorias no contexto em que
se inserem. Segundo Machado (1992), apesar do aumento e da diversi-
ficação das minorias étnicas em Portugal, com especial relevância para
os grupos étnicos vindos dos PALOP, o fenómeno da etnicidade é, até
ao momento, pouco expressivo.Também em Braga foi possível verificar
situações de privação entre imigrantes e não imigrantes no que respeita
as condições socio-económicas, o alojamento, assim como modos de
vida e processos de identificação similares em relação à língua, à filiação
religiosa. Ou seja, a par de algumas diferenças significativas entre uns e
outros, há também claras continuidades em termos de condição social
desfavorecida entre a maior parte de imigrantes e uma franja significativa
de portugueses autóctones em situação de pobreza. Não obstante estas
continuidades, as sociabilidades e relações interétnicas, nomeadamente
entre africanos negros e portugueses autóctones são ainda relativamente
débeis, sobretudo no tocante aos cruzamentos que impliquem relações
de intimidade e sobretudo casamentos interétnicos, tal como o refere
um estudante angolano:
Quanto à comunidade africana aqui em Braga em relação à comuni-
dade portuguesa, da experiência que eu tenho, digamos assim, há uma
disparidade, uma certa discrepância, um certo afasta mento, porque não
é muito fácil um africano namorar ou contrair casamento com uma
moça que seja portuguesa. Isso é um problema às vezes, não, isso é uma
ameaça às vezes. Os portugueses entendem que isso poderia estragar a
raça e eu acho que isso está mal. Porque quando uma pessoa gosta da
outra e a outra também, deve-se permitir que as coisas se passem. Se
os pais intervierem para que não se realize, acho que isso é mau, acho
isso mal (a, 40 anos, estudante).

Em matéria de acolhimento, a análise do gráfico 6 permite-nos


destacar três principais posições: a mais consensual que se prende com
uma razoabilidade do acolhimento, com 56% das respostas; as posições
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 85

francamente favoráveis, do “bom” ao “óptimo”, que concentram 18%


das opiniões; e as abertamente desvaforáveis (“mau” e “péssimo”) que
são emitidas por 26% dos inquiridos.

Gráfico 6: Percepções sobre o acolhimento dos portugueses


Péssimo Óptimo
10% Bom
Mau 3%
15%
16%

Razoável
n= 297
56%

Fonte: IIAPB, 2003

De “são boa gente” (g, mu, 42 anos, limpeza) a atitudes mais negativas
como “Eles mandam-nos embora quando querem. Nós somos colónia portugue-
sa, mas nós não merecíamos (g, mu, 44 anos, 12º ano, serviço de limpeza)
a percepção relativa ao acolhimento é razoável, o que se pode prender,
efectivamente, com lógicas de tolerância e de não hostilização, mas desde
que “cumpram as suas obrigações”. Ou seja, segundo uma entrevistada
“alguns portugueses ‘racistas” não nos aceitam, querem que ocupemos o nosso lugar,
não tolerando que ascendamos numa posição acima deles” (g, mu, 42 anos,12ºano,
mulher de limpeza, professora na Guiné), o que é constatável, como vimos
noutros textos (SILVA e SILVA 2002, SILVA e PINTO 2004), nas visões
e nos discursos dos autóctones sobre os imigrantes e os ciganos.
À excepção de uma minoria residual de 2% para os quais os
portugueses “não discriminam nem são racistas”, para 54% só alguns
portugueses são racistas, para 30% “os portugueses são na sua maioria
racistas”, para 14% os “ portugueses são todos racistas”, um retrato que
não deixa de suscitar alguma preocupação. Mesmo podendo relativizar
os 14% que dizem que todos os portugueses são racistas, questão que
não deixa de ser produto de vivências concretas de discriminação, o
certo é que 30% considera que a maioria dos portugueses é racista.

...no norte, tendo em conta o conservadorismo que ainda se verifica cá,


pronto, o tratamento já é diferente, porque as pessoas têm uma certa resistên-
cia em aceitar a diversidade étnica, a diversidade racial, e qualquer tipo de
inovação é facilmente rejeitado (st, homem, solteiro, 21 anos, estudante).
86 Travessias 2008

Estas representações negativas sobre os portugueses na sua


interação com os imigrantes articulam-se e traduzem também
percepções e convicções em torno de questões mais relacionadas
com factos discriminatórios, sobretudo em relação a negros e a
portugueses ciganos, avaliações que, embora com diferentes graus,
são anotados no seguinte gráfico:

Gráfico 7: Percepções sobre os grupos mais discriminados

Todas as pessoas Os negros


entrangeiras 19%
19%

Os ciganos
Os negros 14%
n= 292
e os ciganos
48%

Fonte: IIAPB, 2003

À parte a resposta generalizante e talvez simplista de que todas as


pessoas estrangeiras são discriminadas (19%), os mais discriminados são,
na opinião de 48% dos inquiridos, os negros e os ciganos que, quando
somados aos 14% que só referiram ciganos e aos 19% que só mencio-
naram os negros, faz subir esse valor para 81%. Os inquiridos conside-
ram, contudo, que os negros são os mais discriminados, situação que
poderá estar claramente associada a experiências e vivências subjectivas
de construção de sentido da sua realidade e do seu estatuto enquanto
imigrante. Apesar desta opinião, não deixa de ser clara a consciência
de que o racismo é visível tanto por parte dos portugueses como dos
negros. “Racismo há em todo o lado, em África também há dizendo: lá vai o
branco”, mas não deixam também de notar que estas atitudes são, em
grande parte, uma forma de defesa.

4. Balanço e Conclusão
Feita uma breve introdução a conceitos centrais em torno das
relações interétnicas e enunciado o problema, neste texto cingi-
me, com base nalguns dos resultados do inquérito e das entrevis-
tas, a caracterizar brevemente os inquiridos em termos laborais e
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 87

sócio-profissionais para me centrar nas suas percepções e repre-


sentações sobre os portugueses autóctones brancos. Traçou-se um
breve panorama não só das dificuldades dos imigrantes na chegada,
como a sua situação a nível laboral e profissional nomeadamente
o exercício de profissões predominantemente desqualificadas, mais
duras e mais mal pagas. Por fim e, em particular, os modos como
são tratados nas sociabilidades interétnicas e quotidianas com os
portugueses não negros, sendo de relevar a percepção de não se
sentirem de corpo inteiro na sociedade portuguesa, o que é verifi-
cável pela sua opinião sobre as dificuldades encontradas na chegada
e na permanência no país sobretudo do lado das instituições, em
particular as policiais, pela natureza e grau de acolhimento por
parte de portugueses autóctones brancos e, de modo especial, pelo
modo como se relacionam com os vizinhos e como são tratados
por este e pela comunidade envolvente.
As desigualdades e exclusões sociais são produzidas e reproduzidas
pela acção social dos diversos tipos de actores sociais e esta, por sua vez,
é estruturada pelas condições (pre)existentes das desigualdades. No en-
tanto, a fim de evitar qualquer raciocínio de tipo circular, impõe-se uma
hierarquização dos níveis de análise. Assim, embora cada um dos níveis
tenha a sua relativa autonomia, lógica e campo específicos, dever-se-á
manter, na esteira de Bader e Benschop (1988) e Bader (2005), a seguinte
hierarquia de níveis de compreensão-explicação: o nível socio-estrutural,
embora não determine totalmente, estrutura e integra o organizacional
e este, por sua vez, o interaccional, afastando-se esta posição de qualquer
alinhamento incondicional em relação quer à teoria organizacional e das
elites, quer à teoria interaccionista simbólica, quer ainda da teoria dos
jogos ou das redes que esquecem ou subalternizam os aspectos estruturais.
Em suma, em relação ao velho dilema estrutura-acção, torna-se cada vez
mais insustentável, em termos exclusivos ou unidimensionais, a defesa
de um dos pólos da dicotomia pelo facto de se cair ora no monolitismo
ora no dogmatismo teórico-metodológico.
A pertença étnica, reivindicada ou atribuída, bem como as rela-
ções interétnicas fornecem-nos um código de categorias destinado a
orientar o desenvolvimento das relações sociais, sendo este um código
de contraste, na medida em que a identidade étnica se afirma, por
um lado, “negando” a(s) outra(s) identidade(s) e, por outro lado, em
confronto com ela(s), apreendida(s) num sistema de representações de
carácter político e ideológico.
88 Travessias 2008

Embora não tenha sido tratado de modo central, procuramos


aferir até que ponto os imigrantes se sentem social, económica, politica
e culturalmente inseridos na sociedade de acolhimento, dando conta do
relativo baixo grau de inserção social, o que se tornou visível no baixo
grau de intensidade de relacionamento intervicinal e, sobretudo, na per-
cepção de se sentirem discriminados nos contextos laboral, residencial
e outras situações dos seus quotidianos. Ou seja, é possível concluir que
se, por um lado, ao nível das relações de sociabilidades, os imigrantes, sem
negar atritos e conflitualidades internas, evidenciam relações mais fortes
de entreajuda, de proximidade e mesmo de amizade, já nas relações entre
membros de grupos étnicos – imigrantes e autóctones –, persistem, a par de
acções de boa vizinhança e solidariedade, bastantes preconceitos e distâncias
sociais que parecem não confirmar a tão propalada política de ‘integração’
– um conceito ambíguo equívoco e discutível – tendo, no tocante aos
imigrantes africanos negros, a sua confirmação nesta parte empírica do
projecto. As estratégias dos imigrantes por si próprios, em grupo ou em
associações de imigrantes, foram sobretudo de sobrevivência e melhoria
das suas condições de vida, procurando superar os constrangimentos de
vária ordem. Nesta óptica, não obstante as dificuldades constatadas ao nível
quantitativo e qualitativo, vão melhorando as suas condições de existência
e assegurando níveis mínimos e até satisfatórios por comparação às suas
sociedades de origem. Porém, nas sociabilidades e relações face a face, os
imigrantes, tendo a consciência das diferenciações sócio-económicas e
culturais, sentindo as formas de discriminação ora velada ora flagrante,
salvo nalguns casos em que ripostavam com raiva e revolta ainda que
contida, ficam desapontados e denotam atitudes expressivas de sentimen-
tos de contenção e de evitamento de conflitos. Mantendo a sua cultura,
afirmam, na maioria, estar abertos às culturas da sociedade de acolhimento
– o que no modelo de Berry (1980) representaria integração –; de modo
algum, porém, tal corresponde à maioria dos casos: desde as dificuldades
na adopção de certos hábitos e costumes até às experiências sentidas de
indiferença e discriminação por parte do exogrupo maioritário. Seja com
base em dados de ordem quantitativa, seja com base em testemunhos ricos
de ordem qualitativa, é-nos possível concluir, com base numa abordagem
compreensiva e interpretativa de cariz weberiano, que os sentimentos ora
de indiferença, ora de exclusão e de discriminação por parte de um núme-
ro considerável de membros do exogrupo maioritário são uma realidade
vivida à qual subjazem, para além das diferenças e preconceitos étnico-
culturais, constrangimentos de vária ordem – económica, social e política
– que no exogrupo são projectados sobre as minorias étnicas e imigrantes.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 89

Neste processo está sempre presente a racialização e a etnicização discrimi-


natória respectivamente na base dos caracteres biológicos (sobretudo cor da
pele) e dos traços alegadamente étnicos-culturais por parte dos membros
da sociedade receptora. Neste processo é fácil de inferir estarmos perante
representações essencialistas e fixistas de cultura, à qual subjazem consciente
ou inconscientemente imagens negativas e depreciativas do outro – neste
caso africano negro – e motivos de hierarquização, umas subtis outras mais
denotativas do que Bastos et al (1999) designam de estratégias de acultu-
ração antagonista, herdeiras não só das representações do passado colonial,
como tributárias dos processos de homogeneização cultural no contexto
nacional e da globalização hegemónica do mundo de hoje.
Revela-se, assim, urgente reconstruir espaços sociais e políticos que
permitam a aceitação e o reconhecimento das suas identidades sócio-culturais
e dos seus modos de vida para, a partir daí, obter vivências reais de multi-
culturalidade, sem que tal implique a subordinação ou subalternização de
uma cultura pela outra. Mas tal só poderá ocorrer no quadro do já referido
multiculturalismo crítico, estratégico e não apenas táctico. Por outro lado,
contrariamente a posições radicalizadas que assumem que só no quadro
duma sociedade socialista será possível realizar uma sociedade multicultural,
importa contudo entretanto apontar algumas pistas a curto e médio prazo:
estabelecer pontes de comunicação entre membros da maioria e das minorias,
denunciar agressões e violências raciais, estimular a criação de escolas e pro-
fessores multiculturais que combatam preconceitos, apelar à responsabilidade
de organizações políticas e associações cívicas, dos cidadãos e, em particular,
de determinados grupos sociais relevantes na formação da opinião pública
(organizações políticas, políticos, intelectuais, jornalistas, líderes locais).

Anexo 1: Diferenças salariais entre homens e mulheres


MASCULINO FEMININO TOTAL

nº % nº % nº %
-250€ 6 3 3 5 9 4
251€ - 400€ 47 27 30 49 77 33
401€ - 600€ 69 40 18 30 87 37
601€ - 700€ 30 17 4 7 34 15
701€ - 800€ 19 11 4 7 23 10
801€ e + 1 1 2 3 3 1
TOTAL 172 100 61 100 233 100

Fonte: IIAPB, 2003 (IIAPB = Inquérito aos imigrantes africanos dos PALOP´s)

Legenda: Distrito de Braga; a =angolano/a; cv=caboverdiano/a; m=moçambicano/a; st=sãotomense; g=guineense;


h=homem; um=mulher; s=solteiro/a; c=casado/a.
90 Travessias 2008

Referências Bibliográficas

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Paris : Anthropos.

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O Controle Democrático
das Práticas Policiais

Y
César Barreira Antonio dos Santos Pinheiro
Departamento de Ciências Sociais Universidade Regional do Cariri – URCA
Universidade Federal do Ceará e Laboratório de Estudos da Violência – LEV

Resumo
O presente artigo descreve as mudanças ocorridas no campo
da segurança pública após a promulgação da Constituição de 1998.
Conhecida pelos juristas, como Constituição Cidadã, a principal das
mudanças implantada por esta Constituição está relacionada ao exercício
democrático da população no controle sobre a violência policial. Entre
outras formas de controle, o texto se propõe a analisar a intervenção
das denúncias apresentadas a Corregedoria como um mecanismo que
permite a aplicação do poder policial de acordo com o respeito aos
direitos humanos.

Palavras-chave: Cidadania – Democracia –Violência – Polícia.

Introdução
“A polícia me parou, e agora?”. Com este título o Governo
Federal lançou, em 2008, uma cartilha em que pretende orientar a po-
pulação brasileira como se comportar e quais os direitos que o cidadão
possui ao ser abordado pela polícia nas ruas. Esta preocupação a favor
dos direitos do cidadão sugere mudanças nas relações entre o Estado e
a sociedade civil, no que diz respeito ao uso legítimo da violência.
Nos dias atuais, a perspectiva de que os tempos são outros e a polícia
não é mais a mesma de antes, instiga um debate acerca da importância
96 Travessias 2008

do controle democrático no exercício das atividades policiais. No pre-


sente artigo discuto a importância da participação da sociedade civil no
controle democrático sobre o exercício das atividades policiais. Muitos
atores sociais encamparam esta luta, entre outros, o Ministério Público,
os Conselhos Comunitários de Defesa e Cidadania, representantes das
entidades dos direitos humanos e a Corregedoria de polícia.
O estudo realizado na Corregedoria de policias, no Estado do
Ceará, concentrou esforços em duas direções: o acompanhamento dos
processos-denúncia e a realização de entrevistas com policiais civis e
militares. Além destes recursos metodológicos, pude exercitar a “par-
ticipação observante” no interior dos gabinetes por meio de longas
conversas com os Corregedores-chefes e seus auxiliares. As conversas
possibilitaram descobertas que nem sempre puderam ser reveladas, sob
pena de comprometer os segredos de justiça.
Os dados qualitativos sugerem duas possibilidades. Em um pri-
meiro momento, a necessidade de rever o papel atribuído aos políciais
como “carrascos da sociedade”. Em segundo momento, analisa como
as formas de resistências podem manifestar-se, por exemplo, em práticas
corporativas. Desta forma, as mudanças e as resistências entre velhas e
novas práticas policiais podem ser explicadas tanto pela emergência das
lutas da sociedade civil organizada por justiça e acesso à polícia, bem
como pela permanência de vícios do passado.
O artigo propõe uma análise mais detalhada sobre o papel exer-
cido pela Corregedoria de polícia em coibir ações consideradas cri-
minosas perante órgãos responsáveis pela segurança pública e também
por parte da população que luta em suas comunidades pela redução
da violência policial.

1. A Constituição Federal de 1988


e os Direitos Humanos

A Constituição Cidadã de 1988 possibilitou, entre outras con-


quistas de cidadania, um direcionamento das políticas de segurança
pública para a observância e proteção aos direitos fundamentais. Esta
questão contribuiu da mesma forma para divergências em torno do
reconhecimento da associação entre direitos humanos e cidadania. Para
alguns dos entrevistados, não são cidadãos aqueles que infringiram a lei
e a ordem. Outros consideram que todos são cidadãos, independente-
mente da situação jurídica, social e econômica.
O Controle Democrático das Práticas Policiais 97

A existência de um equilíbrio ente as duas posições é quase im-


possível, pois o que está em jogo são, geralmente, divergências pautadas
em juízos valorativos. Em busca de um meio termo existem outros grupos
considerados “esclarecidos” no interior da polícia e da justiça que, ao
justificarem que é preciso defender a sociedade dos crimes e criminosos,
argumentam sobre a necessidade de não culpabilizar cada vez mais aqueles
duplamente penalizados, ou seja, os que se encontram desprovidos de
oportunidades no acesso às condições econômicas e a justiça.
Para estes grupos, na punição aos criminosos e ao crime que
cometeram, deve-se recorrer com cautela para que não se corra o ris-
co de reprodução da violência pela violência. Em suas considerações,
afirmam que as mudanças no nível de relacionamento com o poder
público possibilitaram uma melhor conscientização sobre o papel das
polícias como forças adicionais na produção da segurança e promoção
dos direitos humanos.
Eu acho que são duas coisas que estão abraçadas: direitos humanos e
segurança pública. A segurança pública existe para garantir os direitos
humanos, não existe segurança pública sem o respeito aos direitos
humanos, são duas coisa absolutamente irmanadas. O país avançou
nesta área, com a Constituição de 88, nós temos um novo regimento,
uma lei, novos procedimentos policiais. Os avanços estão presentes,
hoje, através dos órgãos de fiscalização, através da corregedoria, do
Ministério Público, que exerce um controle externo da polícia civil
e militar, enfim, por todas estas ferramentas que foram criadas para
tornar a segurança pública mais transparente, mais eficiente, e, mais
absolutamente legal, sob a observância de todos os preceitos consti-
tucionais. (Entrevista concedida pelo Delegado de Polícia Civil Área
Operacional Integrada II, em 18/01/2007)

Os casos de violações aos direitos humanos são apontados por


este delegado como um exemplo de uma concepção errônea de “se-
gurança cidadã” ou “participativa”. Nestes casos, o que está em xeque
é o “direito a ter direitos”, ou seja, a capacidade em exercer livremente
as cobranças e garantir igualdade aos meios de justiça. O problema é
que, às vezes, a destituição dos direitos ao “cidadão” pode gerar uma
situação em que a vítima não tenha interesse em formalizar uma de-
núncia contra os policiais.
Em outros casos analisados, sugerem que a conscientização em
cobrar da polícia um trabalho compatível com a promoção da cidadania,
é resultante de um contexto em que os cidadãos estão aprendendo com
a experiência democrática a exigirem mais da polícia um tratamento
98 Travessias 2008

justo e respeitoso. O exercício do controle externo das polícias justifica-


se como a possibilidade de positivar e conscientizar-se a respeito de
práticas que ponham em questionamento a arbitrariedade no exercício
da atividade policial.
A sociedade, hoje, é mais esclarecida, ela busca os seus direitos. Em
muitas ocasiões, no passado, a polícia era arbitrária, era tida como
uma polícia truculenta e hoje não, a sociedade e o cidadão sabem dos
direitos. Eu acredito que nós temos que seguir esta cartilha que está
na Carta de 1988, que é respeitar os direitos individuais e coletivos
do cidadão, porque meu direito termina quando o do outro cidadão
começa. A segurança pública, apesar de ser dever do Estado, é direito
e responsabilidade de todos, independentemente, de ser policial ou
não. (Entrevista concedida pelo Comandante da área operacional X
em 12/11/2006).

No processo de conscientização acerca dos “direitos a ter di-


reitos”, as reivindicações não se resumem somente aos grupos não
marginalizados, pois, por exemplo há casos de pessoas que estão em
conflito com a lei fazerem a denúncia contra determinados policiais. De
acordo com o depoimento de uma escrivã de polícia, que trabalha há
dezessete anos na Corregedoria, o acréscimo no número de denúncias
ocorreu com a intervenção dos direitos humanos, sendo este dado, um
indicador de que:
“a população estaria mais consciente e não teria medo em de-
nunciar a polícia, porque sabe que será tomada uma providência para
o caso em questão, mas, quando se faz necessário que se conste nos
autos do processo que eles estão sendo pressionados por medo, muitos,
optam por não assinar a denúncia, mesmo que a gente saiba, e, ele tenha
consciência que o problema é exatamente este”. (Entrevista concedida
por uma polícial civil, em 12/06/2007)
O reconhecimento de que a consolidação da democracia repre-
senta um passo importante nas lutas pelo acesso à justiça e na promoção
dos direitos humanos se contrapõe a uma realidade em que policiais
costumam violar as determinações disciplinares, que estabelecem o uso
comedido da força nas operações policiais1.

(1) Os princípios básicos estabelecidos pelas Nações Unidas sobre o uso da força e de armas de fogo, resolução
n. 45/166 de 18 de dezembro de 1990, estabelece que o recurso a estes procedimentos deva estar orientado de
acordo com os princípios de necessidade, proporcionalidade, legalidade, oportunidade e ética. Cabe ao aplica-
dor da lei observar a discricionariedade, para que seus atos não configurem uma ação arbitrária de poder. Ver.
NOGUEIRA, Antonio Soares e AMARAL, Lima. A importância dos princípios de direitos humanos sobre o uso da
força e de armas de fogo para a Polícia Militar do Ceará. Fortaleza. (mimeo), 2001.
O Controle Democrático das Práticas Policiais 99

É realidade, porém, que apesar dos avanços no controle da violên-


cia a partir da implantação de leis como, por exemplo, a Lei de n. 9.455,
de 1997, que tipifica o crime de tortura, muitos policiais ainda adotam
tal procedimento no trabalho preventivo e investigativo de crimes com
a conivência de grupos conservadores da sociedade civil.
As lutas pela redução da violência, propostas levadas a frente pelas
novas políticas de segurança cidadã demonstram, por outro lado, que tem
sido de suma importância o controle democrático sobre as práticas policiais
na perspectiva de coibir abusos e assegurar o uso da violência de acordo com
os princípios de proporcionalidade, legalidade, oportunidade e ética.

2. “Quem Controla os Controladores?”


– Polícia e Cidadania
Em “o futuro da democracia”, Bobbio (2000) sugere que na com-
preensão de quaisquer mudanças na direção de uma segurança democrática
deve-se recorrer, antes de tudo, a velha pergunta histórica:“Quem controla
os controladores?”. O cerne desta questão está centrado no entendimento
de que em uma sociedade, onde os cidadãos não exercem o controle so-
bre os grupos dominantes, é possível que o poder não seja uma “arma” a
serviço da cidadania e da democracia, mas, simplesmente um dispositivo
para impor as vontades soberanas do Estado sobre os súditos.
No Brasil, particularmente, a transição do período de exceção
para o período democrático foi marcada por uma fase de instabilidade
no relacionamento entre polícia e comunidade. Por esta razão, Pi-
nheiro (1996) ao analisar as resistências à implantação de um projeto
de segurança cidadã, definiu que, na sociedade brasileira, “o passado
nem é passado ainda”, ou seja, apesar das mudanças não são poucos os
policiais que nos trabalhos de rua recorrem às velhas práticas punitivas
para coibir os delinqüentes ou possíveis suspeitos.
Por outro lado, as lutas populares que tiveram como marco inicial, a
década de 80, possibilitaram mudanças na segurança pública2.As propostas
aprovadas pela Constituição Cidadã sugerem, portanto, uma discussão em
torno das propostas de “nova concepção de segurança” onde os agentes
de segurança estejam mais vigilantes as demandas de cidadania pela de-
mocratização da justiça social e respeito aos direitos humanos.

(2) A participação social nas questões relacionadas à segurança pública surge diante da própria necessidade dos
grupos e indivíduos em garantir seus deveres e obrigações prescritos no art.144 da Constituição Federal, que
define a segurança pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”.
100 Travessias 2008

O termo “polícia cidadã” ou “segurança cidadã” como termo


correlato à promulgação da Constituição de 1988 é compreendido,
assim, como um tipo de segurança que tem por prioridade, aspectos
destacados como fundamentais: o controle das práticas policiais e o
reforço dos vínculos com a comunidade.
De acordo com a filosofia de segurança comunitária, a figura do
policial comunitário como mediador de conflitos é referendada como
parte substancial de um processo que permite aos agentes responsáveis
pela aplicação da violência caminhar na direção da pacificação das
condutas sociais, com base na otimização da cidadania e à noção de
direitos (FELTES, 2003; MATIAS DA SILVA, 2007).
Nestes termos, o conceito de cidadania é compreendido como
amplo e diversificado que não exclui, não nega os direitos, mas tenta
incluí-los no interior de uma sociedade que luta pela democratização
no acesso a justiça. A junção entre cidadania e democracia é, portanto,
percebida por aqueles que recorrem à Corregedoria, como inseparáveis,
pois, como argumenta Bobbio (2004 p.21), “sem direitos do homem
reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não
existem as condições mínimas para a solução dos conflitos sociais”.

3. Accountability nas Relações entre


Polícia e Comunidade
A participação da sociedade em prol de uma segurança cidadã,
segundo Lemgruber (2003: p.45), é fundamental no processo civiliza-
tório, e, esta deve exercer-se por meio do controle externo e interno,
no exercício das práticas policiais, ao lutar para equacionar o emprego
da força com respeito aos direitos humanos. A idéia de que o controle
sobre as polícias ou o accountability é parte intrínseca ao processo de-
mocrático, sugere o lugar do controle sobre a violência como um dos
canais importante na luta pela solução pacífica dos conflitos sociais.
Na própria definição do papel da polícia, a implantação de
mecanismos de controle no acesso a justiça justifica-se pela idéia de
segurança como relacionada à concepção não menos universal de
cidadania e humanização nas relações sociais. O argumento sobre a
impossibilidade de existência de uma polícia democrática, que não
tenha como correlato os termos “cidadã” e “humana”, indica para um
caminho contrário, cuja direção, é a observância aos direitos humanos
que se exerce pelo controle democrático sobre as práticas policiais.
O Controle Democrático das Práticas Policiais 101

O controle democrático, segundo Phillips e Trone (2003: p.30), per-


mite que a própria sociedade aponte para a confiança nas instituições como
representantes dos direitos humanos, pois,“tanto a polícia, como a cidadania,
devem batalhar continuamente para desenvolver confiança mútua”, em
busca de um projeto compartilhado de segurança cidadã, que tenha por
objetivo assegurar práticas abusivas do poder constituído no Estado.
No Estado do Ceará, por exemplo, a criação dos conselhos parti-
cipativos do Judiciário e Promotoria de Justiça e de Segurança Pública3,
em 2001, e a unificação das corregedorias de polícias militar e civil,
possibilitaram que a população pudesse exercer o controle democrático
sobre as práticas policiais. Como nos lembra Balestreri (2003), inicia-
tivas como estas permitem que, não simplesmente a população, mas,
os próprios policiais lutem pelo reconhecimento de si como agentes
“promotores dos direitos humanos” e da democracia.

4. O Controle da Violência como


“Caso e Coisa de Polícia”
A questão da legitimidade no uso da violência é tema recor-
rente quando está em discussão o papel desempenhado pela polícia e
sociedade democráticas de direito.Max Weber contribui, inicialmente,
para esta discussão ao lembrar que a legitimidade está assegurada pela
capacidade dos agentes em recorrer à violência de acordo com uma
racionalidade que lhe é peculiar, como por exemplo, a garantia da ordem
e o exercício da lei, mas, reconhece que, em determinado momentos,
este exercício pode extrapolar seus limites de ação.
A falsa idéia, como nos lembra Arendt (1994), de que a violência
pode representar ganhos de poder inverte a possibilidade em rever as
práticas policiais e sua aplicabilidade no exercício legítimo da violência.
Com objetivo de evitar os “excessos de poder” no exercício da violência,
cabe à Corregedoria de polícia, como órgão complementar da Secretaria
de Segurança Pública, a missão de prevenir e punir os abusos.
Através do incentivo para que as pessoas vítimas de violência
policial denunciem os “maus policiais”, este órgão busca por em prática
o controle democrático contra aqueles que não costumam cumprir e
zelar pelo respeito e integridade física dos cidadãos ao cometerem atos

(3) Proposta similar aos dos Conselhos de Justiça foi à criação, em junho de 2006, no país de uma Secretaria
Especial de Direitos Humanos – SEDH, para prevenir e controlar casos de tortura.
102 Travessias 2008

julgados pela justiça como passíveis de punição, entre outros, agressões


físicas e morais, extorsão e invasão de domicílio.
As denúncias apresentadas à Corregedoria de Polícia, no Ceará,
em primeiro momento, caracterizam o problema da violência policial
como decorrência da própria dificuldade da população no acesso à jus-
tiça. Esta questão, segundo Bobbio (2004) está relacionada à dificuldade
de proteção e reconhecimento dos direitos.
A não proteção contradiz a Constituição Federal de 1988, onde
em seu artigo primeiro, estabelece que “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, a segurança e à propriedade”.
Ao conceder a voz, particularmente, “aos oprimidos”, ou seja,
para aqueles que não têm condições econômicas de acesso à justiça,
a Corregedoria assume o duplo papel de ser, ao mesmo tempo, uma
instância de poder jurídico e assistência social4. Na opinião do coman-
dante de policiamento da área operacional X, a cobrança sobre as falhas
nas práticas policiais, é resultante de um processo de conscientização
da população sobre seus direitos como cidadãos.
Do ponto de vista mais geral, é possível ler nas denúncias um
sentimento de indignação por parte de uma população, que clama por
justiça social e o fim da violência nas relações sociais. Na própria de-
núncia existe algo de arbitrário que, em determinadas circunstâncias,
em razão do medo e das constantes ameaças, a vítima pode conduzir o
caso, alegando a inocência do algoz pelas arbitrariedades cometidas ou,
em outros casos, não se intimidarem diante das ameaças sofridas5.
Nos processos-denúncia apresentados à Corregedoria, não são
poucas as críticas, por parte dos corregedores, sobre as intervenções
policiais em conflitos e suas implicações em relação aos direitos hu-
manos. Estes alegam que no arbítrio de um conflito, uma ação social
legítima e pública deve primar pelo uso controlado da força física
e respeito aos direitos humanos. Esta questão sugere que a defesa
da sociedade é, portanto, “coisa de polícia”, pois, a intervenção da

(4) Na Corregedoria, atualmente, existem cinco gabinetes de trabalho, onde os processos são analisados por cor-
regedores antes de serem encaminhados para o Corregedor Geral. Em sua formação, os Corregedores tanto o
Geral, como os chefes e auxiliares são bacharéis em direito.
(5) No estudo sobre a relação entre crime e cotidiano nas práticas policiais, em São Paulo, entre o período de 1880
a 1924, Fausto (2001: p. 186) constatou da mesma forma que, as principais razões para o medo e a insegurança nas
relações entre polícia e sociedade, estavam relacionados somente à curva dos delitos, mas, a outros fatores como,
por exemplo, a “recusa da população pobre a discutir a violência policial nos bairros populares”
O Controle Democrático das Práticas Policiais 103

Corregedoria em casos de violência policial não pode prescindir de


regras que garantam a defesa do cidadão.
A busca de reparação do dano causado à vitima é percebido
por aqueles que procedem à denúncia como algo que não está re-
lacionado simplesmente com a punição ao policial, como também
com a possibilidade em ser tratado de forma justa e respeitosa como
um cidadão digno. A denúncia revela que o cidadão que busca por
justiça pretende, ao mesmo tempo, contribuir para mudanças no
relacionamento entre polícia e comunidade por intermédio de um
trabalho igual e respeitoso.
Em alguns casos denunciados, as vítimas questionam que as ati-
tudes dos policiais em uma situação de agressão física ou verbal não são
compatíveis com a de uma polícia que deveria preservar a segurança dos
cidadãos. Os sindicados vêem na denúncia a possibilidade de lutarem
contra uma situação de desrespeito praticada por alguns policiais que, de
acordo com suas considerações, não estão cumprindo com o seu dever
constitucional em prestar segurança de qualidade, não só prendendo
bandidos, mas, principalmente, respeitando as pessoas da comunidade.
Para os policiais que se sentem intimidados com a possibilidade
de terem seus direitos cerceados pela punição, as conseqüências resul-
tantes de uma denúncia possibilitam que suas ações sejam devidamente
punidas, de acordo com os regulamentos disciplinares presentes nos
regulamentos de conduta no exercício da atividade policial. Para os
que temem a violação do regulamento, uma ameaça, por parte da ví-
tima, pode sugerir que sejam mais cautelosos ao abordarem as pessoas,
principalmente, se estas tiverem a coragem de acusá-los.
Nos casos de denúncias envolvendo policiais, parte das testemu-
nhas são lideranças comunitárias que querem um bairro mais seguro,
e outra parte é constituída por pessoas que são encorajadas a não se
calarem diante de ameaças físicas ou verbais praticadas por policiais civis
e militares. A participação, particularmente, das primeiras, permitem
que, em casos de dúvidas acerca do comportamento de alguns policiais,
estas possam contribuir no trabalho de investigação sobre a conduta
do policial denunciado. Os corregedores consideram que a cobrança
da sociedade civil é, portanto, fundamental na conquista da confiança
na justiça e no aparelho policial.
No que se refere ao encaminhamento das denúncias, existem
duas formas de fazê-las. Nos casos em que as vítimas são pessoas
de maior poder aquisitivo ou “membros distintos” da sociedade, a
104 Travessias 2008

exemplo, de médicos, advogados, dentre outros, é comum que en-


trem com uma ação de representação devidamente acompanhada
por advogados, e, em casos onde as vítimas, são pessoas das “classes
populares” existem duas alternativas: encaminhar a denúncia via
entidades representativas, tais como, conselhos, comissão de direitos
humanos ou prestar a queixa, ir diretamente à Ouvidoria dos órgãos
de segurança pública.
Na análise sobre a importância da punição aos policiais sob
sindicância, a não formalização da denúncia ou, até mesmo, casos
em que a vítima manifesta o encerramento do processo, sugere um
recuo na produção da lei e da ordem, de acordo com as conquistas
de cidadania. Este desafio tem sido superado, em parte, pelo com-
promisso dos corregedores em passarem confiança na punição aos
infratores, aplicando sanções que tenha por finalidade não simples-
mente punir por punir, mas, que a punição sirva de exemplo para
que outros não sigam o mesmo caminho.

Conclusão
A transição democrática na sociedade que culminou na parti-
cipação da sociedade civil, por outro lado, segundo Pinheiro (2000),
nem mesmo tem sido suficiente para reduzir os altos índices de
criminalidade e violência. Na cidade de São Paulo, o aumento dos
crimes violentos, por exemplo, têm provocado o esvaziamento dos
espaços públicos, e, na ausência de tais espaços, as relações interpessoais
passariam a ser regidas pelos códigos privados de conduta social. Esta
questão tem contribuído para o que chamou de “esvaziamento do
monopólio da violência”.
Na opinião de um corregedor-chefe, por mais que a população
esteja consciente sobre seus direitos ao fazer uma denúncia contra
ações criminosas praticadas por policiais, existe ainda, a possibilidade
de o agente acusado causar o mal decorrente de uma situação de raiva
por ter sido alvo de intervenção judicial. A partir de sua experiência
de policiamento nas ruas, considerou que este tipo de pensamento é
cultural, em que um sentimento de impunidade diluída por todo corpo
social permite que as pessoas, quando lesionadas e informadas sobre os
seus direitos, procurarem a justiça legal, manifestem a recusa em levar
o caso à delegacia, primeiro, pela indisponibilidade de tempo para
prestar a queixa, e, segundo, pela descrença que a queixa possa resolver
a situação de indignação em decorrência da lesão sofrida.
O Controle Democrático das Práticas Policiais 105

Para as instituições que lutam a favor dos direitos humanos, a


exemplo do controle externo exercido pela Corregedoria de polícia,
a violência e a criminalidade crescente envolvendo, particularmente,
os agentes responsáveis pela segurança pública tem sido um constante
problema que, se não solucionado, pode impossibilitar o estreitamento
de laços sociais entre as polícias e a sociedade.

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O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização
na Análise Sociológica: Debate e Crítica

Y
Alessandro André Leme
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Estadual de Campinas

Resumo
Do conjunto de transformações ocorridas no final do século
XX, as Reformas do Estado e as reestruturações nos setores infra-
estruturais adquiriram relevância político-econômica e institucional,
assim como também relevância para a análise teórico-científica. Desse
processo destacaram-se as privatizações nos setores elétricos dos países
em desenvolvimento. Por outro lado, tal processo marcou uma redefi-
nição de orientações e estratégias para o desenvolvimento. É perante tal
processo de mudanças que se faz necessária a análise das privatizações
do setor elétrico e suas respectivas motivações político-econômicas
e ideológicas. Ou seja, quais foram às motivações para as mudanças
e quais foram os atores que participaram deste processo e como se
beneficiaram do mesmo.

Palavras-Chave: Setor Elétrico – Privatização – Estado – Estratégias para o


Desenvolvimento.
108 Travessias 2008

O Setor Elétrico e sua Constituição


como Problema Sociológico

A reflexão sobre o setor elétrico implica em compreendê-lo


em sua complexidade, ou seja, do ponto de vista econômico, institu-
cional e político, levando em conta os diversos atores que o compõe
(agentes privados e públicos). Para tal, o “olhar” sociológico sobre a
questão se faz necessário.
No aspecto econômico, o conceito de “setor” apresenta a fun-
ção de reunir empresas ou atividades econômicas que apresentam
interesses comuns ou mesmo que constituem unidades de agrega-
ção. Tal qual podemos verificar na divisão da economia em setores
primário, secundário e terciário, onde cada setor pode apresentar
mais de um tipo de indústria1.
Todavia, a discussão sobre o conceito “setor” remonta praticamen-
te à história da economia política, encontrando suas raízes na divisão
de trabalho e na especialização presentes na obra de Adam Smith (A
riqueza das nações). Smith argumentava sobre a separação de atividades
e a distinção entre agricultura e indústria (separando com isto dife-
rentes ramos do trabalho). Outro fator, também presente em Smith e
importante para a definição de setor, é o corolário da especialização e
da interdependência, que tem como conseqüência a compreensão do
setor como um processo coletivo.
Em Ricardo e Marx também podemos verificar a presença
dos temas da especialização, da interdependência e das estruturas
produtivas e suas respectivas implicações para o desenvolvimento
do capitalismo em seus contextos histórico (e suas particularidades
teórico-metodológicas).
Keynes e Schumpeter são outros autores da economia que, de
forma direta ou indireta, vão contribuir para o debate sobre a dimensão
setorial e sua respectiva importância para o entendimento do dinamismo
da economia capitalista.
No aspecto institucional o conceito de “setor” é marcado por uma
crescente política de institucionalidade de sua estrutura e função, assim
como também de atuação, mesmo quando esta se dá no mercado.

(1) A definição do termo “indústria” também pode variar segundo a concepção teórica, ou seja, enquanto para
algumas teorias ele está associado a algum tipo de mercado, para outros ele se vincula a uma determinada base
técnica específica.Ver melhor este debate em Acumulação e crescimento da firma, (GUIMARÃES, 1981).
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 109

Já o entendimento do setor como um complexo de organizações


e papéis sociais estruturados em torno de um conjunto de atividades
compartilhadas, foi foco de análise e compreensão por parte de Velasco
e Cruz2 que o definiu da seguinte maneira, num primeiro momento:
Setor é um complexo de organizações e papéis estruturados em torno
de atividades que compartilham uma ou mais características social-
mente reconhecidas como foco duradouro de interesses coletivos,
(VELASCO E CRUZ, 1997:23).

Com isto,Velasco e Cruz nos demonstra que o setor ao mesmo


tempo em que se constitui como processo de diferenciação nas socie-
dades modernas, também representa apenas um dos domínios em que
se exercem as políticas do Estado.
Neste sentido, o setor entendido enquanto subconjunto institu-
cionalizado de relações sociais, tendo atenção privilegiada do Estado,
contém inúmeras dimensões que podem ser compartilhadas no espaço
(territorialidade) ou não, como veremos posteriormente na forma de
organização do setor elétrico, em particular.
Dentro deste debate evidencia-se que a complexidade existente
em um determinado setor (composto por diversos atores e relações
sociais) está fortemente marcada pela presença do Estado, seja pelas
constantes demandas recebidas (quando de setores industriais, por
exemplo). Ou pela necessidade de atuação específica e direta nos setores
por meio de políticas setoriais, ou mesmo, políticas públicas voltadas
para o bom desenvolvimento do setor (quando relativos a seres infra-
estruturais sobre gestão estatal).
Todavia, este último aspecto se alterou em alguns setores na dé-
cada de 1990, tal como o da energia elétrica ou das telecomunicações,
no que concerne a composição dos atores sociais que os compunham.
Ou seja, há a saída do Estado como promotor do desenvolvimento
nesses setores para “jogá-los” ao mercado, inserindo neste novo arranjo
a presença de entes reguladores que vão apresentar novos desenhos
institucionais e novas composições sociais e técnico-políticas.
Cabe ressaltar aqui que o setor elétrico brasileiro é composto
majoritariamente pela geração por fonte hidroelétrica, cuja organização

(2) Embora a argumentação de Velasco e Cruz tenha como ponto de partida a relação entre o Estado, os em-
presários e o desenvolvimento industrial, a discussão teórica realizada pelo autor nos propicia entendermos
melhor a complexidade e a forma com que os diversos atores presentes em um determinado setor atuam – se
movimento e, que tipo de relação estabelecem com o Estado (demanda, pressões e etc.).
110 Travessias 2008

do mesmo se deu em duas esferas no país, ou seja, a geração de posse


do governo federal e as gerações de posse dos governos estaduais e
municipais (PCH’s). Esta estrutura Federativa do Brasil vai ser um fator
importante na redefinição do setor, por um lado, e, no tipo e ritmo
de reformas e reestruturações, seja na geração e/ou na distribuição
elétrica, por outro.
Isto porque, para além dos problemas inerentes ao setor (geração,
transmissão e distribuição), a reestruturação do setor no Brasil ainda
teve que enfrentar problemas vinculados à estrutura e conflitos fede-
rativos no país.
Esses diversos fatores presentes na noção de “setor” se com-
plexificam um pouco mais quando trazidos para a análise do “setor
elétrico”. Isto porque este setor apresenta algumas particularidades
na sua forma de organização e no modo como o setor se movimenta
e se relaciona com outros setores da economia e/ou esferas sociais e
político-econômicas.
O setor de energia (elétrica) é um setor estratégico para a
produção e reprodução das sociedades capitalistas. Ou seja, a energia
é indispensável ao funcionamento do aparelho produtivo de que
dispõe uma determinada sociedade, como também responde por
parte significativa da fruição e reprodução da vida de cada indivíduo
desta totalidade social.
Este setor pode ser visto num primeiro olhar a partir de duas
grandes situações. A primeira caracteriza-se pela fonte como a eletrici-
dade é gerada, ou seja, pela fonte primária quando de origem hidráu-
lica, nuclear, geotérmica, fotovoltaica, eólica e maremotriz. E de fonte
secundária quando provem de centrais termoelétricas alimentadas por
carvão, por combustível pesado ou por gás natural.
A segunda se refere à esfera do consumo que também se divide
em duas categorias, a saber: como insumo produtivo e como bem de
consumo. Como insumo produtivo pode entender o aparecimento
daqueles insumos destinados à potencialização do trabalho, alimentando
o processo de produção e distribuição de bens destinados ao consumo
ou à reposição ampliada do aparelho reprodutivo e da sociedade em
geral. Trata-se, portanto, da parcela de energia requerida para levar a
finco a produção industrial e agrícola, bem como o transporte desta
produção até os centros consumidores.
Já como bem de consumo, podemos compreender a parcela da
energia cujo consumo é realizado diretamente pelos indivíduos, tanto
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 111

no âmbito doméstico, com a utilização de eletrodomésticos e eletroele-


trônicos, como no de serviços, como transporte (particular ou coletivo)
ou em iluminação pública.
O setor de energia (elétrica), seja como fonte primária ou
secundária, sendo consumido como insumo produtivo ou como
bem de consumo, caracteriza-se como um setor fundamental para o
padrão de desenvolvimento econômico, social e espacial das socieda-
des urbanas e industriais decorrentes das transformações ocorridas/
geradas pela Revolução Industrial e intensificadas durante o século
XX. Desatacaram-se duas indústrias nesse setor, a saber: a indústria
petrolífera e a indústria elétrica.
Aqui daremos mais ênfase à segunda.Todavia, não vamos “olhá-la”
apenas pelo viés econômico/produtivo, mas também vamos compre-
endê-la pela presença dos diversos atores que a compõem, dos diversos
arranjos político-institucionais presentes e de sua respectiva forma de
atuação e organização junto ao Estado.
O setor elétrico pode ser descrito por um conjunto de esferas
que, somadas, dão característica ao setor. As esferas são a econômica, a
tecnológica e a político-institucional.
Pela esfera econômica temos a energia elétrica como insumo
produtivo e como bem de consumo. Enfim, temos a energia como
mercadoria a ser produzida e consumida no mercado (regional/na-
cional ou internacional). Na esfera tecnológica temos os processos
de conversão de determinadas fontes (carvão, petróleo, hidroeletrici-
dade e gás natural, por exemplo) em formas de energia (motriz e de
iluminação). Ou seja, temos o processo pelo qual se produz energia
elétrica, que hoje em dia tem como componente a busca da produção
de energia elétrica pelo menor preço, com a maior qualidade ener-
gética, o menor desperdício e a melhor qualidade ambiental (menos
impactante ao meio ambiente).
Já a esfera político-institucional se refere ao conjunto de políti-
cas, instituições e leis que são criadas para definir, ordenar e coordenar
o setor elétrico e seus respectivos atores. Nesta esfera fica evidente a
presença do Estado no planejamento (indicativo ou determinativo,
conforme o modelo adotado) e institucionalização do setor, isto por-
que o setor elétrico não é um setor de atividade econômica como
outros. O que faz com que mesmo os países vinculados fortemente
às proposições do liberalismo econômico, apresentem uma ação dos
governos e de suas respectivas administrações públicas com certo peso
112 Travessias 2008

para as escolhas energéticas, seus planejamentos e suas respectivas


estruturas reguladoras.
A junção das esferas supra mencionadas foram fundamentais
para o desenvolvimento do setor de energia elétrica pelo mundo com
a criação de novos mercados, novos atores, novas fontes de energia e
novas formas de organização deste setor no espaço/território, ou seja,
no espaço e no tempo (como territorialização e como relações de
poder e dominação).
Evidenciaremos alguns pontos como ilustração das particularida-
des presentes no setor elétrico e que o distingue das demais atividades
econômicas, são elas: a garantia de abastecimento e a competitividade
econômica; a gestão dos recursos naturais; a proteção dos consumidores
e externalidades e irreversibilidades.
Na garantia de abastecimento e na competitividade econômica,
caso haja uma interrupção no abastecimento de carburantes, de com-
bustíveis ou de eletricidade sempre vai apresentar um custo muito alto
por provocar uma paralisia de toda ou de parte substancial da atividade
econômica ou de infra-estruturas da vida urbana (iluminação pública
e residencial, por exemplo). Ou seja, interrompe-se um dos principais
mecanismos e meios de reprodução das sociedades capitalista.
Na gestão dos recursos naturais, mesmo quando o Estado não
é o proprietário de todo o subsolo, ele ainda é responsável pelas con-
dições de exploração dos recursos naturais no território nacional. No
caso brasileiro em particular, após a criação do Código de Águas em
1934, também compete ao Estado à exploração das quedas d’água e
dos demais tipos de aproveitamentos hidroelétricos.
No que se refere à proteção aos consumidores, as infra-estruturas
fixas, tais como: gasodutos, oleodutos e redes elétricas (transmissão em
alta tensão e distribuição em baixa tensão para atendimento aos consu-
midores residenciais), são muito sensíveis às economias de escala, o que
dificulta a concorrência nessas esferas de atividades, caracterizando-as
como monopólios naturais, apenas sujeitos a algum tipo de regulação.
Embora tanto as primeiras redes de gás (manufaturado), como
também as de eletricidade tenham sido construídas por empresas priva-
das, com o seu desenvolvimento e expansão alguns fatores começaram
a estrangular o setor, principalmente a inexistência de concorrência. Ou
seja, ou duas redes elétricas seriam instaladas em uma mesma rua, gerando
desperdício, ou realmente se configuraria esta esfera como monopólio e
no caso desta última alternativa, sendo conduzido pelo Estado.
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 113

A solução arrumada e que caracterizou esta esfera do setor, foi


o controle do Estado sobre o funcionamento das indústrias de rede
(transmissão em alta tensão e distribuição). Os Estados passariam a
estabelecer regimes jurídicos de concessão de serviços públicos que
garantiria um monopólio territorial à empresa concessionária (privada
ou pública), cuja contrapartida estatal seria o controle das tarifas e
dos investimentos.
Por fim, as externalidades e irreversibilidades marcam um se-
tor cuja maioria das atividades energéticas consome recursos naturais
e impacta de alguma forma o meio ambiente (em maior ou menor
intensidade segundo a fonte geradora).
Uma vez verificadas algumas das especificidades do setor
elétrico frente às outras atividades econômicas, vamos brevemente
evidenciar quais são os grandes atores que são os principais consu-
midores de energia.
Primeiramente, a indústria é um grande consumidor de energia
elétrica (e também de outras fontes energéticas – petróleo, gás natural),
e tem nela a fonte de funcionamento de suas atividades.
Os transportes hoje em dia se sustentam eminentemente por
petróleo e derivados, restando apenas um percentual muito pequeno
de móveis alimentados por eletricidade (alguns trens e metros).
O residencial-terciário que, em conjunto, consomem quase
o mesmo que o setor industrial. O residencial se caracteriza pelas
residências individuais ou coletivas e os respectivos usos de eletrodo-
mésticos e eletroeletrônicos; o terciário, pelas atividades de serviços
(escritórios, comércios, escolas, hotéis, instalações esportivas, culturais
e de lazer, dentre outras).
Vimos até o momento que o setor elétrico pode ser gerado
por fonte primária ou secundária e que o setor se constitui de três es-
feras (a econômica, a técnica e a político-institucional). Além disso, ele
apresenta muitas especificidades quando comparado a outros setores de
atividades industriais e possui alguns consumidores centrais (indústria,
residencial, terciário/comercial, transporte e agricultura).
O setor elétrico ainda é marcado por uma organização setorial
que o divide em três ou mais partes, a saber: a geração/produção, a
transmissão de alta tensão e a transmissão de baixa tensão (distribui-
ção) e mais recentemente se criou à comercialização (nos países que
realizaram as reformas orientadas para o mercado no setor).
114 Travessias 2008

Esta divisão do setor nos evidencia a complexidade de atores e


instituições componentes e atuantes no setor elétrico. Para melhor visu-
alização do setor, vamos apresentar um pouco do como o setor elétrico
brasileiro se organizou e com quais atores foi composto. É sabido que as
especificidades da matriz energética brasileira cuja fonte (predominante)
é a hidroeletricidade reserva suas particularidades frentes a fontes ter-
moelétricas (a carvão, gás ou nuclear).Todavia, para fins de ilustração da
complexidade do setor elétrico, o caso brasileiro é bastante ilustrativo.
O setor elétrico brasileiro, embora date suas primeiras usinas
hidroelétricas e/ou termoelétricas (a carvão ou madeira) ainda no final
do século XIX, vai ser somente a partir da década de 1930 que vai
começar a se institucionalizar de forma mais efetiva enquanto fator de
desenvolvimento e modernização do país.
Este processo de modernização do país contemplava simulta-
neamente um processo de crescente urbanização e industrialização do
Brasil, principalmente a partir do Pós-Segunda Guerra Mundial. E é
nesse contexto que o setor de energia elétrica (no caso brasileiro, de
vocação hidroelétrica) se fortalece e passa a ser encarado como fator de
modernização do país, por um lado, e, por outro, como um dos setores
responsáveis para superar os estrangulamentos presentes no processo
urbano-industrial brasileiro.
Em outras palavras, o setor elétrico brasileiro, por meio de sua
indústria hidroelétrica representou uma importante etapa para o pro-
cesso de substituição de importações, principalmente nos fatores de
substituição de importações de equipamentos. (KLEIN, 1986).
A matriz vai ser predominantemente a hidroeletricidade como
fonte geradora/produtora de energia, seja, pelas Usinas Hidroelétricas
ou pelas Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCH’s). Neste modelo
também se montou uma estrutura de transmissão de energia em alta-
tensão cuja finalidade era de transportar a energia gerada nas usinas
hidroelétricas aos centros consumidores. E uma estrutura de distribuição
em baixa tensão para levar a energia aos consumidores finais (residencial,
industrial, comercial, e rural).
A geração/produção de energia elétrica constituiu-se predomi-
nantemente por hidrelétricas estatais (federais e estaduais) implantadas
pelas cinco regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e
Sul) usufruindo do grande percentual de águas interiores que o Brasil
possui para a instalação de Grandes Centrais Hidroelétricas e Pequenas
Centrais Hidrelétricas espalhadas pelas bacias hidrográficas brasileiras.
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 115

O Sistema de Transmissão de energia elétrica brasileira apresenta


um Sistema Interligado Nacional (SIN) onde participam empresas da região
sul, sudeste, centro-oeste, nordeste e parte do norte (tendo apenas aproxi-
madamente 3,4% da capacidade de produção de eletricidade do país fora
deste sistema, localizados em pequenos sistemas locais – principalmente na
região norte do país).A predominância hidroelétrica de energia, o tamanho
e as características do Sistema Interligado Nacional (SIN) brasileiro fazem
dele único em termos mundiais (www.ons.com.br).
Ainda há um sistema de distribuição em baixa tensão que leva
a energia elétrica aos consumidores finais, caracterizando o setor na
sua forma estrutural de composição tríade, ou seja, geração/produção,
transmissão em alta tensão e distribuição.
Essa estrutura nos mostra a característica técnica/econômica do
setor, ainda temos as seguintes características constituintes do setor,
a saber: a econômica, referente aos meios e mecanismos de financia-
mento do setor e a político-institucional, referente à definição insti-
tucional e aos marcos governamental e regulatório do setor elétrico
brasileiro, assim como também, a definição dos atores participantes
em cada esfera setorial.

A Privatização em Perspectiva Crítica:


História e Debate
No final do século XX, defrontamo-nos com grandes transfor-
mações em esfera global, dentre as quais, a globalização e o neolibe-
ralismo adquirem relevância teórica entre pesquisadores, cientistas e
intelectuais dos mais diversos campos do saber, e, prática na orientação
macroeconômica, adotada integralmente ou em parte por diversos países
no mundo. Especialmente pelos países em desenvolvimento e, entre
eles, salientamos o caso do Brasil, da Argentina e do México, enquanto
ilustração aos propósitos deste paper.
Associado às transformações supra mencionadas, encontra-
se as mudanças na forma de apreender, implantar e conduzir a
política econômica (em seus aspectos micro e macroeconômicos).
Neste sentido, as estratégias desenvolvimentistas adotadas pelos Es-
tados, principalmente no Pós-Segunda Guerra Mundial passam a
serem desacreditadas, e sofre grandes críticas decorrentes em parte
pelos efeitos engendrados pela crise político-econômica do final da
década de 1970.
116 Travessias 2008

Durante a década de 1980, as reformas propostas em esfera global,


principalmente para os países Latino-Americanos perpassavam o tema
das “estratégias para o desenvolvimento”. Com a consolidação e hege-
monia das orientações político-econômicas das Reformas liberalizantes,
ocorre uma forte pressão para que os países em desenvolvimento se
integrem e criem os arranjos institucionais necessários ao livre fun-
cionamento da economia de mercado (VELASCO E CRUZ, 2004;
SALLUM JUNIOR, 2001).
Este processo foi marcado por fatores exógenos e endógenos aos
países em desenvolvimento e apresentaram dois grandes movimentos no
âmbito do Estado Nacional. O primeiro se refere aos chamados ajustes
estruturais, ou seja, as Reformas cuja centralidade passava pela adequação
do Estado as novas contingências globais, a economia de Mercado, a
integração comercial e conseqüentemente as alterações institucionais
necessárias a este processo de ajustamento propalado pelo Banco Mun-
dial e FMI como meios necessários a nova ordem econômica global.
(BANCO MUNDIAL, 1987, 1989, 1991, 1994 e 1997).
A segunda se refere às alterações no âmbito da organização da
Administração do Estado. Ou seja, o modelo de gestão burocrático
racional marcante e fundamental para o funcionamento e organização
do Estado Moderno no século XX precisaria ser substituído e/ou
complementado por um modelo de gestão gerencial, mais voltado para
a lógica de mercado (PEREIRA, 1997a; 1997b).
Essas alterações afetaram diretamente o Estado, não somente por
uma mera relação quantitativa (de mais ou menos Estado), mas também
por fatores qualitativos, afinal, como nos mostra Sallum Junior (2001),
“o Estado é a principal instituição de base nacional” (principalmente
quando se trata de países em desenvolvimento). As mudanças no âm-
bito do Estado não são somente alterações institucionais, normativas,
mas também rearranjos de estruturas de poder e redefinição de atores
políticos e econômicos constituintes e/ou influente no Estado, no
Poder, ou melhor, nas estruturas de Poder.
Desde então, por um conjunto de fatores endógenos e exógenos
(agências multilaterais, por exemplo) a esses países em desenvolvimento,
tem ocorrido um conjunto de escolhas que visam à reestruturação na
condução econômica para o desenvolvimento e crescimento das res-
pectivas economias. Donde a lógica liberalizante volta a ter um espaço
central, marcada por um conjunto de restrições político-econômicas
de corte de gastos, de eliminação de subsídios, privatizações e abertura
da economia, entre outros.
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 117

Porém, o movimento exposto acima não ocorreu de forma sin-


crônica no conjunto dos países em desenvolvimento, especialmente os
já citados neste artigo (Brasil, Argentina e México). Isto nos evidencia
que as reformas engendradas nesses países se, por um lado, apresentam
fatores uniformes no que tange as proposições fundamentais, por
outro lado, também nos mostrou que à dinâmica e a forma com que
cada Estado soberano foi conduzindo suas reformas foi diferenciado
no tempo e no espaço3.
Este quadro que apresentamos nos evidencia que o conjunto de
mudanças ocorridas tem afetado tanto a organização burocrática do
Estado (instituições diversas) como também no plano das instituições
econômicas internacionais. Neste sentido, o Estado a as diversas agên-
cias e organizações supranacionais tem passado por enormes reformas,
cujo público alvo principal tem sido os países em desenvolvimento.
Tal fato acaba por fortalecer a necessidade de estudos comparados
sobre as experiências de reformas econômicas em países em desen-
volvimento, entre elas, as ocorridas nos setores infra-estruturais, tal
como o da energia elétrica.
As discussões sobre as privatizações e principalmente as ocorri-
das nos setores de infra-estrutura anteriormente geridos por empresas
públicas em diversos países em desenvolvimento e mesmo em alguns
países desenvolvidos nos remetem a questões de natureza e de práticas
(políticas e econômicas).
Isto porque, para o quadro conceitual do liberalismo econômi-
co as empresas públicas seriam portadoras de algumas contradições,
uma em particular bastante significativa, qual seja: a de que a em-
presa pública ao mesmo tempo em que se apresentava como fator
de acumulação de capital, também representava um instrumento de
política de governo. Fato inconcebível para esta linhagem teórica,
por contrariar as possibilidades de tomada de decisões no livre jogo
do mercado.
Embora indesejada pelo liberalismo econômico, as empresas
públicas ocuparam um lugar de destaque tanto nos países desenvolvidos,
como também nos países em desenvolvimento, principalmente a partir
do Pós-Segunda Guerra Mundial.

(3) Cabe reforçar aqui que a forma com os diversos atores sociais, políticos e econômicos se organizam, se
confrontam e costuram consensos preservam particularidades históricas inerentes ao espaço de disputas locais
(regionais ou nacionais).
118 Travessias 2008

Os setores mais visados e mais facilmente transformados em em-


presas públicas foram os voltados para os serviços de utilidade pública
ou os necessários à implantação de indústrias de base nos países em
desenvolvimento. Onde a necessidade de romper com os estrangula-
mentos econômicos passavam por uma estratégia de substituição das
importações, como o verificado no caso brasileiro, por exemplo.
Outro fator presente nos países em desenvolvimento era a
baixa capacidade dos grupos locais em darem respostas rápidas e
efetivas à necessidade de implantar uma indústria num processo que
exige grandes mobilizações de capital num tempo relativamente
curto de maturação e, ao mesmo tempo não representavam atrativos
para o capital internacional.Tal quadro é verificado no caso do setor
elétrico brasileiro, principalmente a partir da década de 1950, seja
sob um governo democrático (segundo mandato de Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek e João Goulart) ou sob governos autoritários
(governos militares pós-64).
Mesmo oriunda das motivações expostas acima, a empresa pública
sofreu fortes ataques dos ideários em prol da liberalização econômica
desde o início. Ou seja, para esta abordagem teórica, a interferência do
Estado nas questões econômicas estaria criando muito mais problemas
(por mais que estes somente aparecessem em médio prazo) do que
soluções para suas respectivas economias. Seja porque o Estado seria
ineficiente na condução econômica ou porque geraria déficit público,
a solução sempre se apresentava como a transferência do controle dessas
empresas para o setor privado.
A construção histórico-econômica da privatização como única
alternativa para adoção de políticas econômicas orientadas para o mer-
cado nos países em desenvolvimento, embora tenha reservado algumas
especificidades de país para país4, podemos afirmar que as privatizações
tiveram papel central no debate sobre as reformas do Estado na década de
1990, principalmente nos países latino-americanos, especialmente o caso
Argentino e o Brasileiro, respectivamente os que mais privatizaram.
A Argentina apresenta sua primeira experiência de liberaliza-
ção em 1976, após o golpe militar (pondo fim à segunda experiência

(4) O caso que mais se diferenciou dos demais, segundo Velasco e Cruz, foi o Coreano por a partir do pós-guerra
construir uma industria já assentada na lógica do mercado, ou seja, a Coréia ao contrário dos demais países não
conferiu um papel importante à empresa pública. Ao passo que quando todos os países vão discutir sobre as
privatizações a Coréia vai direcionar suas reformas para o estabelecimento de fronteiras mais transparentes entre
os interesses privados e o poder público, na tentativa de evitar os vícios dos grupos monopolistas - independente
de ser privado ou público -, (VELASCO E CRUZ, 2004:98-99).
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 119

peronista). Entre 1976 e 1982, implantaram-se muitas políticas neste


sentido que passaram pelo programa de eliminação de controles dire-
tos de importação e redução tarifária; liberação de preços e salários e
redução de restrições às operações cambiais.
Segundo Velasco e Cruz (2004), a Argentina reverteu medidas
prévias de liberalização, levantando barreiras não aduaneiras, incluindo
proibição de importações e sistemas de concessão de licenças.
Como parte de programa heterodoxo de combate à inflação,
o governo Alfonsín impõe controles diretos sobre preços e salários.
Frente às dificuldades enfrentadas na administração do Plano Austral,
já em 1986 ocorre a renovação da política de liberalização comercial,
acelerando-se em 1991 (BASUALDO, 2002).
Embora nos últimos dois anos do governo Alfonsín tenha havido
uma adesão ao discurso das reformas econômicas liberalizantes, isto não
se traduziu em medidas mais efetivas de política. O que por sua vez,
só passam a ser adotadas a partir de 1989, com a eleição de Menem
à presidência do país. A forte crise hiperinflacionária e os sucessivos
“apagões” elétricos não só levaram à saída de Alfonsín da presidência
antes do tempo institucional, como também deram força social e política
para que Menem aderisse com toda a força às orientações econômicas
voltadas para o mercado.
A Argentina privatizou suas empresas entre os anos de 1990 e
1999 a uma média anual de 4,46 bilhões de dólares, respectivamente
1,51% de seu PIB, em 1999. Já o Brasil privatizou a soma de 6,98 bi-
lhões de dólares, o equivalente a 0,93% do seu PIB, em 1999, embora
o ano de 1998 tenha sido o que o país mais tenha privatizado (33,427
bilhões de dólares), (VELASCO E CRUZ, 2004).
O México, por sua vez, tem no Plano Nacional de Desenvolvi-
mento do presidente Echevarria (1970/1976) um grande movimento
marcado por dois processos, de um lado ocorre uma forte intervenção
do estado na economia e, por outro lado, há inúmeras mobilizações do
empresariado contra tal processo.
Outro fato marcante foi à estatização dos bancos decretada pelo
presidente López Portillo logo em seguida da Moratória da dívida
externa em 1982, gerando com isto forte abalo nas relações entre o
Estado e o empresariado no México. Porém, vai ser somente a partir
de 1986, nos governos de La Madrid e Salinas Gortari que começam
a ocorrer as reformas liberalizantes.
120 Travessias 2008

Como complemento e especificidade do caso mexicano, as re-


formas econômicas internas estão intimamente vinculadas às mudanças
promovidas em sua política econômica internacional, se expressando
primeiramente pela adesão do país ao GATT – em 1986 – e nas ne-
gociações seguintes de integração regional com o Canadá e os Estados
Unidos – NAFTA.
Como evidenciado até o momento, as privatizações se assenta-
ram numa lógica de entregar ao mercado os setores da economia mais
atrativos aos grupos econômicos nacionais e internacionais. Todavia,
esta tomada de decisão não é meramente técnica, ou seja, marcada
por uma escolha simplesmente técnico-burocrática. Ela passa também
por uma tomada de decisão política, ou seja, sobre que tipo de Estado
e que tipo de atuação compete a este novo Estado, centrado muito
mais na fiscalização e regulação dos setores rentáveis da economia
por meio de agências reguladoras, tal qual veremos no caso brasileiro
com a criação na ANEEL para o setor Elétrico, da ANATEL para o
setor de Telecomunicações e da ANP para o setor de Petróleo para
nos atermos apenas a algumas.
Todavia, as tomadas de decisões do plano governamental para
realização de tais reformas privatistas também não foram fáceis por
conter um conjunto de atores muito grande participando de forma
direta ou indiretamente deste processo.
Além do Estado Nacional (representado por suas diversas for-
ças e instâncias – executivo, legislativo, judiciário; oposição política;
movimentos sociais; ONG’s e capital econômico nacional/regional e
local) marcando um conjunto de negociações e debates endógenos,
havia também os fatores exógenos, caracterizando por um lado, as
recomendações de diversas agências multilaterais e de fomento (FMI,
Banco Mundial e etc.) e, por outro, pelas fortes pressões das imensas
massas de capital transnacional requerente de novos mercados para
investimentos e continuidade de seus respectivos processos de acu-
mulação e concentração.
As reformas econômicas realizadas nas décadas de 1980 e 1990
nos países em desenvolvimento têm sido amplamente discutidas pela
literatura (econômica, política, sociológica, entre outras). Uma questão
central posta neste conjunto de debates é a busca de entendimento sobre
como se deram as transformações das idéias político-econômicas que
vigoraram nos anos 1970, marcado pela crença no desenvolvimento
estruturado em um Estado forte, poderoso e com uma forte dose de
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 121

protecionismo para as reformas voltadas para o mercado que reinaram


durante a década de 1990.
Já ao final dos anos 1980, em função de drásticas mudanças
ocorridas no cenário nacional, os países em desenvolvimento começam
a formular e implementar um conjunto de políticas econômicas mais
ortodoxas. O quadro de fundo dessas decisões era a presença de um
ambiente recessivo, com interrupção dos fluxos externos de financia-
mento, abundantes no período anterior, (VELASCO JR, 1997).
O objetivo primário era o controle do déficit público e da
inflação e, ao mesmo tempo buscavam-se meios de fazer frente ao
pagamento das dívidas assumidas junto às instituições financeiras inter-
nacionais. Do ponto de vista da estratégia de desenvolvimento também
havia mudanças, entre elas, a venda de empresas estatais e a eliminação
total ou parcial de barreiras tarifárias, tendência, esta, reforçada e ace-
lerada nos anos 1990.
As pressões externas são outro fator que contribuíram para
as reformas econômicas nos países em desenvolvimento, todavia aqui
não pretendemos “olhá-las” de forma unidirecional, ou seja, impostas
independente das vontades nacionais. Os fatores externos se dinamizam
com um conjunto de fatores internos (elites econômicas e políticas)
para favorecerem a realização de reformas, ou seja, há um processo de
interação em contextos de negociação de interesses.
As reformas orientadas para o mercado no final do século XX,
marcam no âmbito do Estado um conjunto de reformas, reorientações
e reestruturações que visavam a transição do Estado Burocrático ao
Estado garantidor do livre jogo do Mercado.
Ou seja, a tendência mundial vinha impactando os Estados-Na-
ções com a globalização que, entre outros efeitos, marcou um processo
de integração regional, seguida por uma crise do Estado-Nação e por
um crescente avanço do capitalismo financeiro, que por sua vez, trouxe
novas ameaças, mas também novas oportunidades em esfera global para
as economias dos Estados no final do século XX (principalmente nos
países latino-americanos).
A década de 1990 (no Brasil) teve como marco político na agenda
privatista os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC).Todavia
este movimento começou a se institucionalizar ainda no governo de
José Sarney, a partir de 1985, passando pelo governo do presidente
Fernando Collor de Mello e do presidente Itamar Franco até chegar e
se fortalecer com o FHC (no primeiro e no segundo mandato).
122 Travessias 2008

No entanto, algumas distinções e observações devem ser feitas.


A primeira delas se refere à presença das privatizações enquanto
reformas econômicas para redefinição de modelos e/ou de padrão
de desenvolvimento.
Neste primeiro caso percebe-se nitidamente que, embora as
privatizações começassem a ocorrer no setor de siderurgia no governo
do presidente José Sarney, não havia por parte deste uma opção decla-
rada em sua agenda pública para realização de tais reformas. É o que
podemos denominar de uma particularidade, afinal as privatizações se
caracterizaram como uma produção de política pública que não cons-
tava, de fato, da agenda pública, da pauta governamental.
Já os governos seguintes, embora dando continuidade à lógica
privatista, vão aprofundá-la como fator central de reformas propostas
na agenda política e na pauta governamental. Talvez a exceção seja o
governo do presidente Itamar Franco que, embora não fosse enqua-
drado como um político voltado para esses tipos de reforma, teve seu
governo, em parte, agindo mediante aos movimentos começados e
propostos no governo do presidente Collor.
No governo do presidente Fernando Collor há um marco
muito importante para as reformas orientadas para o mercado, ou
seja, a criação do Programa Nacional de Desestatização (PND) que
vai marcar no plano institucional e político as reformas liberalizantes.
É a partir daí que se alteram algumas leis, criam-se novos arranjos e
dá-se início à reestruturação do setor elétrico brasileiro na sua esfera
federal e estadual, ora em sintonia, ora em conflito com os entes da
Federação (Governo Federal e Governos Estaduais).
É dentro deste quadro liberalizante e de recomendações para
mudança do modelo de desenvolvimento econômico dos países em
desenvolvimento que o setor elétrico é envolvido. Mediante tal con-
texto histórico, verificaremos como se deu este embate no Brasil, ou
seja, como o país agiu mediante tais movimentos globais.
As Reformas do Estado no Brasil deu-se a partir do início da
década de 1990, no governo do presidente Fernando Collor, sob
influência dos órgãos supranacionais, tais como o FMI, o BIRD e a
OMC, entre outros. Das ações oriundas de tal reforma, destacam-se
aquelas denominadas de ‘privatização’ e ‘desestatização’. Muitos são os
questionamentos e reflexões sociológicas, políticas e econômicas que
se pode fazer sobre as mesmas.
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 123

O primeiro questionamento refere-se à suficiência das estra-


tégias neoliberais na condução de um novo ciclo de investimentos.
Poderia as mesmas ser eficazes na retomada de um desenvolvimento
que preveja a mitigação das graves distorções sociais e distributivas?
O Estado Brasileiro durante a década de 1990 deixou enlevar-se pelas
premissas neoliberais na tomada de decisão concernente aos rumos dos
setores estratégicos, entre eles, o da produção e distribuição de energia
elétrica, por exemplo, alegando, entre outros, o ajuste fiscal e a melhoria
do Bem Estar Social como decorrência “natural” deste processo.
O ideário neoliberal5 foi proposto, na década de 1980, por ex-
poentes da economia e política dos EUA e da Inglaterra, a saber: os
governos de Reagan e Thatcher respectivamente. Vendeu-se como
sendo a melhor (senão a única) saída para os países ditos emergentes
retomarem seu desenvolvimento econômico com condições de com-
petitividade produtiva no cenário internacional gerando, por via de
conseqüência, as benesses sociais tão necessárias.
Destacou-se, na veiculação dessas premissas, o ‘Consenso de Wa-
shington’, realizado em 1989, o qual reuniu economistas do governo
norte-americano e de instituições internacionais, tais como o FMI. A
reforma financeira, o comércio liberalizado, o controle da inflação, o
‘Estado Mínimo’, e principalmente, a privatização, foram algumas das me-
tas propostas naquela ocasião. Embora o marco político e simbólico da
onda neoliberal seja os governos Thatcher e Reagan, donde ocorre um
movimento global. Alguns países tiveram um movimento nesta direção
precocemente, destacamos o Chile e a Argentina ainda sob ditadura
militar (1976/1983), outros países, por sua vez, tiveram um movimento
mais tardiamente, tal qual o caso da Índia. Por fim há os casos de embate
interno muito grande entre os defensores e os críticos de tais propostas
como o ocorrido na Coréia e em Taiwan durante a década de 1990.
As propostas apresentadas acima, por um lado, redefinem o papel
do Estado no que concerne a sua função essencial, por outro, também
se veicula a idéia por meio discursivo, que a implantação do Estado
Mínimo juntamente com o equilíbrio fiscal e ajuste das contas públicas
em si, seria condição suficiente para engendrar, por decorrência, a sus-
tentabilidade e equidade social tão almejada no país. Sobre tal discurso,

(5) As principais orientações político-econômicas e ideológicas do neoliberalismo consistem na proposição de


“estado mínimo”, ou seja, o Estado deve deixar de ser o investidor para ser o regulador e fiscalizador do “livre
mercado”. A estabilização da moeda e contenção da inflação, a abertura comercial, a flexibilização do mundo do
trabalho e a privatização também ocupam uma centralidade no neoliberalismo.
124 Travessias 2008

Bermann (2002) ao analisar o Índice de Gini6 dos seguintes anos (1981,


1986, 1990, 1993, 1995, 1998 e 1999) evidencia que, mesmo após a
estabilização da moeda – Plano Real – praticamente não houve altera-
ções significativas no Índice, ou seja, as reformas supra em si não foram
capazes de, por decorrência, como o proposto, melhorar as condições
sociais e diminuir a desigualdade social existente no Brasil.
Muitos investidores internacionais passaram a impor como con-
dição de continuidade de interesse nas transações com os países ditos
emergentes, que os mesmos acatassem as diretrizes e políticas de reformas
econômicas enunciadas pelo ‘Consenso de Washington’. A condição-mór
era a de que houvesse privatização das empresas inseridas nos chamados
setores estratégicos para o desenvolvimento, o que foi em grande medida
acatado, incorporado e implantado pelo Estado Brasileiro durante a década
de 1990. Principalmente no governo do presidente Fernando Henrique
Cardoso, donde se privatizou o setor de Telecomunicações e parte do
Setor Elétrico (os dois setores juntos responderam por praticamente 62%
do montante das privatizações) (BNDES, 2004).
É com base neste contexto histórico, político, econômico e ins-
titucional envolvendo atores locais/nacionais e internacionais vincu-
lados aos organismos multilaterais de financiamento e propositores de
modelos para condução político-econômico que o Brasil vai realizar
sua Reforma do Estado a partir da década de 1990.
Ou seja, as reformas geradas a partir de 1990, iniciadas com o
governo do Presidente Fernando Collor de Melo sofreram fortes influ-
ências das orientações do Banco Mundial, a saber: abertura comercial
(1990); Plano Nacional de Desestatização - PND (1990); Renegociação
da Dívida Externa (assinada em 1992); Plano Real (1994); Quebra dos
monopólios e restrição ao capital estrangeiro (1995) e Lei de Concessão
de Serviços Públicos (1995).
O PND, criado em 1990, pela Lei n.º 8.031, durante o governo
do presidente Collor, é o documento norteador das privatizações. O
processo de reestruturação do setor elétrico – privatização – acirra-
se a partir de 1993 com a promulgação da Lei n.º 8.6317. Em 1995,
com a promulgação das Leis das Concessões n.º 8.987 e o Decreto

(6) O Índice de Gini varia de 0 (igualdade máxima) a 1 (desigualdade máxima)


(7) Esta Lei eliminou o regime tarifário pelo custo de serviço, abrindo espaço para o processo de criação do Produtor
Independente de Energia (PIE) e o estabelecimento de regras para fixação de níveis tarifários, além de estabelecer a
obrigatoriedade de contratos de suprimento de energia (contendo quantidades e preços) (FERREIRA, 2000).
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 125

n.º 9.074, que regulamentaram o artigo 175 da Constituição8, criou-


se condições legais para que os geradores e distribuidores de energia
elétrica pudessem competir pelo suprimento dos grandes consumi-
dores de energia elétrica.
O setor elétrico foi um dos setores que tiveram que se adequar
a esta nova realidade imposta pelo FMI e pelo Banco Mundial. As
reformas para o setor elétrico foram orientadas em dois níveis: um
macroeconômico voltado para a eliminação do déficit das empresas
estatais e outro vinculado ao equilíbrio das contas do setor público.
Outro de caráter microeconômico visando à melhora na eficiência do
setor e a criação das condições necessárias à obtenção de financiamento
privado para o setor.
Fruto do PND foi constituído a ANEEL - Agência Nacional de
Energia Elétrica9 - no ano de 1997. Sua finalidade de regular e fiscalizar
a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elé-
trica, cuja direção ainda compete aos atores vinculados à rede política
estatal demonstrou não uma descontinuidade do controle estatal sobre
o setor, mas, sim, um novo tipo de envolvimento e comprometimento
do Estado. Cabe ainda o questionamento sobre a efetiva atuação da
ANEEL enquanto uma agencia de estado ou de governo.
Algumas das reflexões sobre a questão dos impactos econô-
micos oriundos das reformas estatais, dentre elas a que faz Cano
(2000:250), destaca que:
tanto no que se refere à administração quanto à privatização de suas
empresas, o Estado permitiu que houvesse desmantelamento de seus
principais órgãos decisórios de planejamento e a redução efetiva da
capacidade de formular políticas de desenvolvimento.

Nosso entendimento, todavia, é o de que não houve um desmante-


lamento strictu, mas um reordenamento das funções do Estado de molde
a reiterar uma política econômica que, de um lado, marca a heteronomia
da nação brasileira, isto é, uma situação nas quais os rumos nacionais são
fortemente influenciados por interesses exógenos e, por outro, mantêm-se
os compromissos com a rede de relações político-econômicas tradicionais

(8) O artigo 175 incubiu “ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. – Parágrafo único. A lei disporá sobre: o regime das empresas
concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como
as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; os direitos dos usuários; política tarifária; a
obrigação de manter serviço adequado”.
(9) A ANEEL foi aprovada pelo Decreto 2.335 de 6 de Outubro de 1997.
126 Travessias 2008

do Estado Brasileiro. Formando um compósito emblemático para o ple-


no desenvolvimento social e econômico da nação, fato compartilhado
com Dowbor (2000b), Santos (1998), Furtado (2001), Maranhão (2001)
Pinguelli, Tolmasquim e Pires (1998) e Sauer (2002), entre outros.
Entrementes, as benesses aos capitais que adentraram ao proces-
so de privatização ocorrido durante a década de 1990 não faltaram,
contaram com a prática de financiamento pelo BNDES de até 50%
do valor do leilão das concessões de energia elétrica, inclusive para as
empresas transnacionais. Essas (como a – AES10, concessionária que
entrou na Geração de Energia Elétrica Tietê) e os grandes grupos
empresariais nacionais (Bradesco, Camargo Correa, Votoratim, entre
outros) souberam se aproveitar da rede de oportunidades e proteção
gerada. E houve, ainda, brechas na legislação do Imposto de Renda
que permitiu aos compradores das estatais deduzirem os sobre-preços
(ágios) do lucro tributável, o que lhes deu um desconto de cerca de
30% sobre os referidos ágios (CANO, 2000).
A necessidade de analisar a privatização numa perspectiva
histórico-estrutural11, perante a qual, é possível constatar a ocorrência
de modificações na relação entre o Estado e o setor privado. Embora
as características da privatização sejam a transferência de ativos e de
capital – reelaborando as condições de concorrência, a dimensão de
clientela e a política de recursos humanos da própria empresa de ma-
neira profunda –, há especificidades na forma como o Estado busca
legitimidade social para efetivar tal processo, bem como também, em
quais razões o levou a escolhê-lo (LEME, 2001).
Corroborando tal análise, Maranhão (2001) afirma que não foi
por incapacidade do Estado que o setor elétrico brasileiro começou a
voltar para o setor privado a partir de 1995, mas sim, por um conjunto
de pressões exógenas que cobraram, com altos juros, o pagamento da
dívida feita pelo Brasil para a construção do modelo do sistema elétrico
estatal e eficiente que sobreviveu até o início dos anos 1990.

(10) Essa empresa também fez parte da concessão que controla a distribuidora de energia elétrica de São Paulo
até meados de 2006 - Metropolitana -, uma das maiores distribuidoras de energia elétrica do país.
(11) O conceito de processo histórico-estrutural nos parece aqui particularmente interessante por permitir, no
âmbito metodológico, a necessária fusão entre estrutura e história na análise social. Isto porque, sob tal perspec-
tiva, as estruturas são concebidas como produto da luta social e como resultado da imposição social, sendo, deste
modo, analisadas diante de processos. Conforme bem observa Cardoso (1993: 97), “a idéia de que existe uma
explicação histórico-estrutural tem a ver com o processo de formação das estruturas e, simultaneamente, com a
descoberta das leis de transformação dessas estruturas. Trata-se de conceber as estruturas como relações entre os
homens que, se bem são determinadas, são também (...) passíveis de mudança, à medida em que, na luta social
(política, econômica cultural), novas alternativas vão se abrindo à prática histórica. Neste sentido, o objeto da
análise não se reifica em atores, mas se dinamiza em conjuntos de relações sociais.”
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 127

(...) as fissuras oriundas dos grandes investimentos em geração por meio


da tomada de empréstimos internacionais de maneira inadequada à
realidade financeira mundial do final dos anos 1980. O governo tomou
dinheiro spot em péssimas condições, agravando o quadro da dívida
externa. (...), além disso, alheio à crise internacional, o governo insistiu
em fazer Itaipu de uma vez só, ignorando estudos dando conta de que
o potencial hidroelétrico da Bacia Platina poderia ser aproveitado por
várias usinas que iriam sendo construídas, com comprometimento
financeiro menos oneroso (MARANHÃO, 2001).

Somado a isso, Furtado (2001), nos mostra que o programa


brasileiro de privatização – e aqui inclui o setor elétrico –, des-
pontou porque a meta era resolver o balanço de pagamentos e não
para solucionar a crise já anunciada por diversos especialistas, ou
seja, a finalidade da privatização se apresentava inadequada desde a
sua implantação.
Como se percebe, as orientações de políticas liberalizantes
para o mercado, com algumas diferenças são generalizadas entre os
países em desenvolvimento. De forma geral e simplificada podemos
afirmar que os países em desenvolvimento tiveram um movimento
histórico de acentuação da intervenção estatal na economia, prin-
cipalmente nos setores estratégicos, tal como a energia a partir da
segunda guerra mundial.
Para melhor ilustrarmos o movimento mencionado acima,
citamos o caso do Brasil que Pós-Segunda Guerra Mundial engen-
dra um movimento de desenvolvimento econômico centrado nas
“mãos” do Estado. Esta forte intervenção estatal, principalmente
nos setores de infra-estrutura perdurou-se de forma crescente até
meados da década de 1970, passando por forte estagnação na década
de 1980, seguida por reformas liberalizantes na década de 1990, tal
como já mencionado.
Já a reestruturação do setor elétrico brasileiro não tem sido muito
enfatizada nos estudos sociológicos recentes, embora haja algumas refle-
xões sobre as Reformas do Estado e nela, algumas discussões a respeito
do processo de privatização em geral. Dos autores da sociologia que
estão à frente de tal assunto, destacamos Petras (1999), que recentemente
fez uma crítica ao neoliberalismo e às reformas sob essa inspiração.
Por outro lado, as investigações sociológicas que se debruçam
criticamente sobre as proposiçõe s neoliberais, por vezes contrastam
com as convicções de outra parte dos estudiosos em áreas correlatas e,
128 Travessias 2008

por outras, corroboram com as mesmas. Na economia, Bresser Perei-


ra (1995), ao retornar a discussão do ‘livre mercado’, gerou muitos dos
argumentos que as autoridades encamparam para justificar a adoção
das medidas privatistas. Porém, Cano (2000) salienta as conseqüências
negativas para a economia decorrente da privatização e na mesma
perspectiva está Biondi (1999 e 2000).
Na perspectiva econômica ainda podemos citar Tolmasquim
(2002), que por sua vez, tem debruçado esforços críticos para compre-
ender a reestruturação do setor elétrico brasileiro, suas conseqüências
negativas e quais possibilidades estão postas para o desenvolvimento
sustentável, sem oneração do Estado e nem dos consumidores. Isto é,
tentativas de construções alternativas a reestruturação do setor elétrico
ocorrida durante a década de 1990.
Na Ciência Política, Tavares de Almeida (1997 e 1999) afirma
que as privatizações têm ocorrido mediante uma articulação político
institucional que, em alguns momentos, peca pelos exageros (por parte
do Executivo) na adoção de Medidas Provisórias (MP), configurando
um Executivo forte frente a um Legislativo fraco12.
Muitos outros são os atores e campo do saber que também tem
dedicado relativa atenção à reestruturação do setor elétrico brasileiro,
dentre eles destacamos Pinguelli,Tolmasquim e Pires (1998), Bermann
(2002), Sauer (2002), entre outros, que numa visão interdisciplinar
entre a engenharia elétrica, a física e a economia têm realizado um
‘olhar’ crítico no que concerne às reformas do setor elétrico praticadas
durante a década de 1990.
A compreensão sociológica e política crítica, em diálogo com
o saber de outras áreas das humanidades e interdisciplinares, nos darão
as condições científicas e intelectuais para desvendar o fenômeno em
referência, isto é, entender a relação entre o Estado, o capital (transna-
cional ou nacional) e a sociedade no processo de reestruturação do setor
elétrico não apenas como uma simples relação dicotômica. Mas como
uma construção, a partir de relações de poder, propiciadas por atores e
regras jurídicas e políticas institucionais específicas, donde o movimento
geral da economia se faz pertinente. É nesse sentido que as transforma-
ções ocorridas no setor elétrico dos países em desenvolvimento e, do
Brasil em particular foi analisada e compreendida neste paper.

(12) A autora ainda expõe que parte das privatizações também é motivada pela mudança nas idéias predominantes
sobre o papel do Estado na economia.
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 129

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Filhos de Emigrantes Caboverdeanos
em Portugal: a Questão Identitária1

Y
Francisco Avelino Carvalho
Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa

Introdução
O discurso de que os jovens filhos de imigrantes se encontram
numa crise de identidade está largamente difundido, tanto no que se
refere a produções de carácter socio-antropológico, bem como no dis-
curso do senso comum. Assiste-se ao recurso a asserções do tipo “eles
[os descendentes] não sabem quem são (...) se são caboverdeanos, ou
se são portugueses”,2 para se referir ao problema que constitui a defi-
nição, ou a necessidade de definição, da identidade dos descendentes
de imigrantes. Quanto ao discurso académico, o posicionamento iden-
titário dos filhos de imigrantes caboverdeanos em Itália poderá estar
conotada à ideia de indefinição, quando se diz que “os descendentes
não são nem carne nem peixe”(MONTEIRO, 1997). A mesma ideia
estará presente na afirmação de que “ as «segundas» gerações são por
excelência o «lugar» da crise”(ALMEIDA, 2000).
Verifica-se que o problema da chamada ‘segunda geração’ tem
merecido a reflexão de vários autores em diversos contextos, desig-
nadamente o dos Estados Unidos da América,3 com a chegada de
contingentes de imigrantes oriundos de diversos pontos do globo; ou

(1) À Professora Doutora Margarida Marques por todo o incentivo e pela disponibilidade que sempre revela e
aos colegas do SociNova/Migrações pelos comentários.
(2) Palavras de um morador do bairro das Fontaínhas ( Entrevista n.º 6).
(3) Nos Estados Unidos da América os estudos sobre a segunda geração ganham particular relevância nas décadas
de 40 e 90 (Portes 1999:97).
134 Travessias 2008

o designado “fenómeno dekassegui”4 (SASAKI, E. citada por L. SU-


GIMOTO, 2004) relativo à emergência da questão dos descendentes
de imigrantes japoneses no Brasil; ou ainda, sobre o aparecimento de
gerações de filhos de imigrantes portugueses em França.5
Quanto a Portugal, um dos aspectos que resulta da abordagem de
Machado (1994) da questão dos filhos de imigrantes de origem africana
em Portugal é a chamada de atenção para a sua, pelo menos, dupla perten-
ça. Nesse sentido os filhos de imigrantes caboverdeanos corresponderiam
aos novos luso-caboverdeanos, como forma de ultrapassar as insuficiências da
designação «segunda geração», remetendo assim para uma categorização
que funde duas referências de nomenclatura nacional.
Neste artigo pretende-se explorar a diversidade de posicionamentos
identitários que os descendentes assumem, através de identificações distin-
tas que desenvolvem em relação ao seu país de origem, Portugal, e à dos
pais, Cabo Verde; do modo estratégico como se apropriam e manipulam
atributos identitários como a língua, a musica e a gastronomia; das relações
interpessoais que estabelecem; das imagens que elaboram tanto sobre os
portugueses como sobre a forma como pensam que são vistos.
Deste modo procura-se mostrar que por detrás dos posiciona-
mentos identitários alicerçados num dado atributo, tecem-se tramas
complexas que justificam evitar o enclausuramento em categorias onde,
de resto, se ancoram os discursos de crise.
As entrevistas semi-directivas aqui submetidas à exploração6 e
codificação7 foram realizadas a 16 filhos de imigrantes caboverdeanos
com idades entre 15 e 18 anos e residentes em Lisboa. No processo de
construção da amostra, optou-se por um número reduzido de pessoas
a inquirir, uma vez que não se pretende fazer inferências globais (GHI-
GLIONE e MALATON, 1993:55) e porque nos estudos qualitativos a
representatividade em termos estatísticos não se coloca (GHIGLIONE
e MALATON, 1993:55; COLLER, 2000:34).

(4) Designação atribuída à migração de descendentes nipónicos - os nikkeis - para o Japão, iniciada na década
de 80 (Sasaki citada por L. SUGIMOTO (2002, 24 a 30 de Junho).
(5) Vejam-se, M. B. ROCHA-TRINDADE (1986) Villanova, R. (1983).
(6) Para a exploração das entrevistas elaborou-se uma grelha de análise abarcando aspectos tais como os espaços
em relação aos quais os descendentes desenvolvem identificações; a relação que estabelecem com o seu país de
origem e com o de origem dos pais; e as relações interpessoais que estabelecem, cruzando-os com as representações
que elaboram, os atributos identitários que convocam e a dimensão temporal (passado, presente e futuro).
(7) Na codificação das entrevistas procedeu-se à classificação dos diversos excertos, atribuindo-os a um ou mais
aspectos da problemática contemplados na grelha, mas cientes de que, seguindo o raciocínio de Bardin (1995:115),
a selecção de determinados excertos “sem tratar exaustivamente todo o conteúdo” encerra “o perigo de elementos
importantes serem deixados de lado, ou de elementos não significativos serem tidos em conta”.
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 135

2. Imigrantes de Segunda Geração:


Invenção de um Conceito

Como é possível falar de «imigrantes» a propósito de pessoas que


não «imigraram» de parte nenhuma e que são, de resto, declaradas de
«segunda geração»(BOURDIEU, 1998:20).

A interrogação colocada por Bourdieu toca na questão central que


se levanta à volta da designação que se atribui aos filhos de imigrantes
nascidos no país de acolhimento dos progenitores. É que tal designação,
quando não é devidamente explicitada, remete-os automaticamente
para a categoria de imigrantes, quando não podem ser considerados
tecnicamente como imigrantes (ROCHA-TRINDADE, 1995: 50),
precisamente, por já terem nascido no país de destino dos pais. Daí
que vários autores (PORTES, 1999, MARQUES, 2000) recorrem à
expressão filhos de imigrantes ou descendentes, para se referirem a esses
indivíduos. Contudo, ainda é usual a designação de imigrantes de se-
gunda geração na construção da sua identidade social.
Atribuir a esses filhos de imigrantes a designação de imigrantes
pode representar a demissão da sociedade de acolhimento em relação às
suas responsabilidades para com este aspecto da questão da imigração, uma
vez que o remete para a sociedade de origem dos pais, como se a situação
que se gera à volta dos descendentes se tratasse de “uma mera reedição,
com os mesmos parâmetros, do «problema» anterior dos imigrantes, uma
espécie de reprodução social mecânica” (MACHADO, 1994:120).
Na análise da problemática dos descendentes não se pode também
negar o recurso à expressão segunda geração quando tem o sentido
da acepção utilizada por Portes, isto é, enquanto categoria constituída
por “indivíduos nascidos de pais estrangeiros no país de acolhimento”
(PORTES, 1999:97), remetendo para a ideia de ser a primeira geração
de descendentes que surge após a chegada dos pais.
Sendo assim, no caso da imigração caboverdeana em Portugal já
terão existido várias segundas gerações, tantas quantos os momentos his-
tóricos de chegada de contingentes significativos de originários daquele
arquipélago que, desde os inícios do século XX têm vindo a instalar-se
neste país: período 1900-1920; anos 60; anos 80 (CARREIRA, 1977).
Pelo que a presença de imigrantes caboverdeanos em Portugal corres-
ponde a um continuum de gerações em que coexistem filhos, netos e bisnetos
descendentes de imigrantes chegados nos diferentes períodos citados.
136 Travessias 2008

3. Algumas Considerações sobre o


Conceito de Identidade
A formação de identidades em contextos imigratórios reveste-se
de alguns aspectos particulares que importa referir. Portes e Rumbaut
(2001:151) evidenciam a ligação que une o processo de categorização
com o de construção identitária ao mencionarem que este começa
com a aplicação de um selo a si próprio, num processo cognitivo de
autocategorização que passa tanto pela reclamação de pertença a um
grupo ou categoria, como pelo estabelecimento de contrastes com
outros grupos ou categorias.
Considerando que “a categorização está muitas vezes relacio-
nada com valores diferenciais” e que “(...) a interacção entre, por um
lado, valores diferenciais derivados socialmente e mecanismos cogni-
tivos de categorização, por outro, é particularmente importante em
todas as divisões sociais entre o “nós” e o “eles” (TAJFEL citado por
SAINT-MAURICE, 1993:393), então os contextos migratórios podem
constituir-se como espaços por excelência de ocorrência de interac-
ção entre modos de pensar, sentir e agir diferentes e diferenciadores, e
que conduzem ao processo de construção de categorias e identidades
igualmente diferentes e diferenciadoras.
Nesse processo de formação de identidades há dois aspectos que
se destacam. Por um lado, a importância que assume o aspecto relacional,
pois, o “nós” é sempre construído em relação a “eles”, acabando muitas
vezes por se proclamar uma identidade decalcando-a, pela negativa, da
do outro(MAALOUF, 2002:22), do “eles”.
Nesse sentido, assim como um irlandês católico diferencia-se
dos ingleses pela religião, como refere Maalouf, também um portu-
guês diferenciar-se-ia de um caboverdeano pela cor da pele. Estes dois
elementos aqui referidos, a religião e a cor da pele, inserem-se num
conjunto mais vasto que é o dos atributos, cuja forma de selecção,
constitui o outro aspecto que se destaca no processo de formação de
identidade. Com efeito, há uma série de atributos que vem juntar-se
aos supramencionados tais como a língua, a nacionalidade, a classe so-
cial, a música, as festas, a gastronomia, entre outros, que, por um lado,
de forma arbitrária e não por ser o atributo que o grupo alvo gostaria
de ver como o seleccionado para o identificar e, por outro, a variação
da relevância a que o atributo seleccionado está sujeito de situação de
interacção para situação de interacção. Se em Portugal, no processo de
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 137

categorização social, a cor da pele é determinante para a identificação


de um jovem descendente de imigrantes caboverdeanos como imigrante
de segunda geração, já em Cabo Verde, pode-se avançar que, o atributo
local de nascimento é que assume essa preponderância.
Contudo, é de salientar que por detrás dessa selecção de apenas
um, ou pouco mais, atributos em vista à definição de uma identidade,
reside uma lógica que assenta numa “concepção estreita, exclusiva,
preconceituosa, simplista, que reduz a identidade inteira a uma úni-
ca pertença” (MAALOUF, 2002:13). Negar tal ideia permite que se
esbatam as ligações automáticas entre determinados atributos e certas
identificações e/ou identidades, abrindo deste modo a possibilidade de
uma concepção que não assenta num único elemento, o que permite
ao indivíduo a assunção das suas múltiplas pertenças e a possibilidade
de variar de situação para situação. Sem que, como alerta Giddens,
essa diversidade contextual promova a fragmentação do self ou a sua
desintegração em múltiplos selves. Em muitas circunstâncias pode até
promover a sua integração, uma vez que “ uma pessoa pode usar a
diversidade de modo a criar uma auto-identidade distinta que incor-
pora positivamente elementos de diferentes cenários numa narrativa
integrada” (GIDDENS, 2001: 175).

Identidade como processo dinâmico


A identidade não se compartimenta, não se reparte em meta-
des, nem em terços, nem se delimita em margens fechadas
(MAALOUF, 2002:10).

O sentido que está subjacente a estas palavras de Maalouf dis-


tancia-se claramente da concepção fechada e exclusiva de identidade,
referida anteriormente, e pode constituir-se como ponto de partida
para uma proposta de uma identidade dinâmica que assenta em dois
pressupostos fundamentais: a constituição da identidade com base numa
multiplicidade de elementos, e não apenas num único, e o carácter con-
tínuo do processo de construção identitária. Neste sentido a identidade
de cada indivíduo tem na sua constituição um conjunto de elementos
que vão para além dos que figuram nos designados documentos ofi-
ciais – bilhetes de identidade, passaporte - ou dos que são eleitos como
marca distintiva e, consequentemente, identificadora nas interacções
quotidianas. Sendo que a importância de cada elemento pode variar com
o tempo, de situação para situação, bem como em relação aos demais
elementos o que demonstra a mutabilidade da hierarquia das pertenças,
138 Travessias 2008

que por sua vez, pode modificar os comportamentos dos indivíduos


(MAALOUF, 2002:22). É ainda de notar que todos esses elementos
tais como, língua, cor da pele, classe social, religião, nacionalidade, entre
outros, apresentam-se numa imbricação complexa onde nem sempre
fica claro quais são os mais importantes para a construção da identidade
dos indivíduos, uma vez que “todos eles têm uma capacidade similar
de ordenar a realidade, capacidade que está na base de todo o processo
de construção identitária”(VILA, s/d:16).
Partindo de uma proposta de concepção identitária que assenta
numa multiplicidade de pertenças fica afastada a ideia de “uma só per-
tença maior, tão superior às outras em todas as circunstâncias que se po-
deria legitimamente chamar de identidade”(MAALOUF, 2002:21).
É ainda de se referir o carácter contextual da maior parte das
categorias que recebem o estatuto de essências identitárias como a
raça, a religião, a nacionalidade, uma vez que são construídas refle-
xiva ou autoreflexivamente (PEREIRA, 2002:107-108). Na questão
das identidades o valor dessas categorias pode se situar apenas no
plano analítico, onde se pode proceder à segmentação da identidade
em fracções relevantes, mas sem nunca tomar qualquer uma delas
como a identidade.
O outro pressuposto em que assenta a acepção dinâmica de iden-
tidade é o que tem que ver com o carácter contínuo do seu processo
de construção. Neste sentido a identidade, ao contrário da concepção
essencialista, não é algo que é dado ao indivíduo na sua forma inteira
e definitiva desde a nascença, mas sim uma (re)construção que ocorre
ao longo da vida como resultado de vários processos de interacção e
inserção em que é constantemente negociada em relação aos outros
num processo em que os contornos são continuamente definidos e
redefinidos (VILA, s/d:5).
Daí que, face às criticas a que tem sido sujeita, a noção de iden-
tidade como integral, originária e unificada, Hall (1996:6) descreve no
seu lugar os conceitos de identidade e de identificação como:
... a process of articulation, a suturing, an overdetermination not
a subsumption ... Like all signifyng practices, it is subject to the
‘play’, of difference. It obeys the logic of more than one. And since
as a process it operates across difference, it entails discursive work,
the binding and marking of symbolic boundaries, the production
of ‘frontier-effects’. It requires what is left outside, its constitutive
outside, to consolidate the process.
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 139

Em suma, é esta a acepção de identidade, acima sintetizada, como


algo dinâmico, flexível, que obedece à lógica de mais do que um, aberto
continuamente a influências diversas e que assenta numa multiplicidade
de pertenças cuja importância está sujeita a oscilações segundo o tempo
e a situação, que se quer adoptar neste trabalho.

A situação particular dos descendentes: da posição de ombreira...


A análise da questão da identidade dos descendentes revela, por
um lado, a posição de ombreira em que os filhos de imigrantes se
encontram, crescendo aparentemente entre a cultura dos pais e a da
sociedade de acolhimento e, por outro, o rumo que acabam assumindo,
identificando-se com ou afastando-se de, em maior ou menor grau,
uma ou outra matriz.
Segundo o que nos refere Portes, para a sociedade americana,
esta posição de ombreira tem-se constituído como um terreno de
dificuldades que caracteriza afirmando que “crescer no seio de uma
família de origem imigrante foi, desde sempre, um difícil processo
de conciliação da língua e das orientações culturais de pais nascidos
no estrangeiro com as solicitações para a assimilação da sociedade de
acolhimento” (PORTES, 1999:97). Daí a socialização complexa desses
descendentes marcada por uma bipolaridade de referências que tanto
pode corresponder, como estar contra as duas culturas em presença
(ROCHA-TRINDADE, 1986:617). O que tem conduzido a “uma
série de tensões familiares e sociopsicológicas, raramente resolvidas, que
terminam, muitas vezes, ou com a rejeição da cultura dos pais, ou com
a fuga ao confronto com a sociedade exterior” (PORTES, 1999:97).
Sendo assim, os descendentes de imigrantes, enquanto seres “fron-
teiriços de nascimento”(PORTES, 2002:47) acabam por transportar
em si próprios pertenças diversas, ou até contraditórias, colocando-se
na linha de fronteira étnica, religiosa ou outra, que separa o imigrante
da sociedade de acolhimento.
Por isso, confrontam-se com a necessidade de se definirem a
si próprios tanto “em relação a múltiplos grupos de referência (às
vezes em dois países e em duas línguas)” como no que diz respeito
“às classificações a que são submetidos pelos colegas nativos, escolas, a
comunidade étnica e a sociedade em geral ou mais vasta” (PORTES
e RUMBAUT, 2001:150).
Contudo, nessa demanda de definição, deparam-se com novas
questões. Pois, mediante as identificações assumidas, arriscam-se, nas
140 Travessias 2008

relações quotidianas, a ser acusados de rejeição do país de origem,


ou então é-lhes negada socialmente pelos autóctones, ou adiada ju-
ridicamente, a posse de determinados elementos – a nacionalidade
formal no caso de Portugal, por exemplo - que podem ser tomados
como símbolos da identidade correspondente à da sociedade de
acolhimento dos pais.
Por outro lado, o ponto que é tomado como referência para a
avaliação da situação em que vivem, constitui igualmente um foco de
conflito entre os ascendentes e os descendentes. Com efeito, enquan-
to que os pais orientam-se para o país de origem, para onde acabam
muitas vezes por regressar, e tomam como ponto de referência os
salários e as condições de vida da terra natal (PORTES, 1999:3-4), os
seus filhos, contudo, orientam-se para o país receptor e comparam-se
“eles próprios com os que estão à sua volta, com base na sua similari-
dade ou diferença com os grupos de referência que mais directamente
afectam as suas experiências – especialmente com recurso a marcas
socialmente visíveis e categorizadoras como género, fenótipo, língua e
nacionalidade”(PORTES e RUMBAUT, 2001:151).
Particularmente, no que diz respeito à experiência caboverdeana
note-se que sobre a construção da identidade dos descendentes pesa
ainda aquilo que Rodrigues chamou de efeito projector em que há a
selecção de apenas alguns aspectos da identidade como agressividade,
perigosidade e estranheza de comportamento, que depois são projec-
tados sobre os caboverdeanos, englobando os seus filhos.

... ao desgaste identitário e à formação de novas identidades


Os traços culturais que o imigrante traz da sua sociedade de
origem tendem a diluir-se com o passar de gerações.Wieviorka consi-
dera que a partir do momento de chegada à sociedade de acolhimento
ocorre uma perda de vitalidade em termos identitários, constatando-se
que os indivíduos, ou pelo menos alguns, afastam-se da sua identidade
de origem, o que reflecte na fragilização social da segunda e terceira
gerações, uma vez que perdem parte dos recursos económicos e cul-
turais colectivos (WIERVIRKOVA, 2002:142). Ainda o mesmo autor,
aludindo-se ao contexto francês, refere-se aos jovens de segunda gera-
ção de imigrantes de origem magrebina como definindo-se “mais pela
fraqueza das suas referências comunitárias e pela sua participação numa
cultura internacional ou hipermoderna (o hip hop, a roupa de marca, o
uso dos meios de informação e comunicação mais recentes, etc.) que
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 141

pelo dinamismo das suas culturas de origem, de facto desestruturadas”


(WIERVIRKOVA, 2002:142). No entanto é preciso ter em atenção
que, como diz Portes, esse processo de desgaste identitário é vivido pela
maioria dos grupos étnicos, mas não por todos, embora se verifique
que a erosão da etnicidade e da identidade étnica ocorre no decurso de
três gerações, sendo que a “herança étnica, incluindo a língua materna
étnica, deixa frequentemente de ter qualquer papel importante na vida
da terceira geração”(PORTES e RUMBAUT, 2001:150).
Nos contextos imigratórios, a par da transformação das identida-
des marcadas pela sociedade de origem ocorrem novas configurações
identitárias junto dos filhos de imigrantes com maior ou menor grau
de afastamento da sociedade de origem dos ascendentes, ainda mais que
não seja pela inclusão de elementos socialmente atribuídos à sociedade
de acolhimento dos pais, por meio do processo de socialização. Ao
enfraquecimento dos laços comunitários de que fala Wieviorka não
corresponderá o reforço de outras ligações?

4. Identificações que Desenvolvem os Descendentes:


Estratégias e Posicionamentos Diversos
Dado à já referida tentação que, por vezes, se verifica de remeter
os descendentes de imigrantes para uma categoria homogénea, desig-
nada de imigrantes de segunda geração, importa realçar a diversidade
de situações que ocorre tanto no desenvolvimento de identificações
como a nível das representações recaídas sobre si.
Ao analisar as entrevistas realizadas procurou-se verificar como
é que se desenvolve o processo identitário de filhos de imigrantes ca-
boverdeanos em Portugal, tentando dar conta das identificações que
desenvolvem, dos elementos a que recorrem e das representações que
constróem em relação a Cabo Verde e Portugal.
Recorreu-se ao conceito de identificação como forma de assi-
nalar o carácter prático, a incorporação de elementos provenientes de
mais do que uma matriz e a flexibilidade das relações, ideias e práticas
que esses filhos de imigrantes desenvolvem.
Na análise dos dados resultantes das entrevistas emergem quatro
identificações que são desenvolvidas pelos descendentes abordados:
caboverdeana, portuguesa, luso-caboverdeana, pretoguês e pan-étnica. Catego-
rias que correspondem a quadros mais amplos aos quais os filhos de
imigrantes reivindicam a sua pertença, movendo-se entre as influências
142 Travessias 2008

culturais em presença, na perspectiva de construir, “dar sentido à sua


experiência vivida, encontrando ou reencontrando uma pertença
colectiva, pontos de referência”(WIERVIRKOVA, 2002:145). Sendo
que a identificação assumida, ou como diz Wieviorka, “a identidade
escolhida constitui então a melhor resposta frente à desqualificação
que lhe imputa uma diferença que é sinónimo de inferioridade”
(WIERVIRKOVA, 2002:145).
A exploração das identificações aqui referidas efectua-se a um
nível relativamente abstracto sem a preocupação de alistar exaustiva-
mente os atributos que lhe dariam conteúdo, até porque seguindo essa
via estar-se-ia a incorrer em contradição com a noção de identidade já
assumida neste trabalho, pois estar-se ia a atribuir a essa noção deter-
minados limites fixos e princípios de exclusividade entre as categorias,
descurando o dinamismo, o aspecto relacional, a componente negocial
e estratégica que está presente nas relações de pertença que os filhos de
imigrantes estabelecem. Por outro lado, revela-se um processo flexível
pelo que a identificação desenvolvida pode mudar com o tempo, ou
até mesmo na sucessão das situações de uma entrevista. Exemplo disso
é o que ocorre na entrevista n.º1 em que o interlocutor inicialmente
refere-se a Cabo Verde como sendo a terra “deles” demarcando-se do
conjunto de indivíduos que vêm aquele país como a sua terra, enquan-
to que afirma que “Portugal é fixe! É a minha terra (...)”, e continua,
dizendo que “(...)uma pessoa diz que nós também nascemos cá, pronto,
que somos portugueses (...)”, estabelecendo uma identificação da qual,
mais à frente, no decorrer da entrevista, acaba também por distanciar-se
quando manifesta “(...) eu sou também caboverdeana.”
As identificações caboverdeano, português, luso-caboverdeano,
pretoguês e pan-étnica são malhas largas que deixam em aberto con-
figurações bastante mais complexas.
Uma vez exemplificado o carácter flexível das identificações,
passa-se a apresentá-las.

Caboverdeano
Embora cientes de que não se pode falar da existência de um
caboverdeano no sentido essencialista do termo, esta noção ganha
particular importância na constituição de identidades sociais desses
filhos de imigrantes.
Atente-se nesta identificação desenvolvida nas entrevistas reali-
zadas como dá conta a seguinte passagem, a que o descendente recorre
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 143

para exemplificar uma situação em que identifica-se como caboverdeano.


Tinha ido a uma loja, acompanhada de uma colega recém-chegada de
Cabo Verde e que quis ser ela a dirigir-se à lojista como forma de co-
meçar a praticar o português, não tendo conseguido fazer-se entender,
a entrevistada acaba por intervir. Conta que:
(...) de certa forma ela estava a menosprezar a menina, mas por detrás,
estava também a menosprezar os caboverdeanos, porque para não vir
para Portugal se não sabe falar e tal, para ficarem no país deles, para
não virem chatear ninguém. Depois, naquele momento disse-lhe que
eu também era caboverdeana (...) – (Entrevista N.º 3)

A assunção como caboverdeana passa pela defesa do grupo


étnico de pertença e passa também pela negação da identificação
como portuguesa:
(...) eu nunca me senti portuguesa. (...) chegam ao pé de ti e dizem,
ah tu nasceste cá, és portuguesa, eles pensam que somos, mas não, eu
sou caboverdeana ... – (Entrevista N.º 3)

Aqui o recurso à origem associada à ascendência é utilizado


para construir e alimentar oposições (ROOSENS, 2003:125), ao
mesmo tempo que é assumido como elemento central para a cons-
trução da sua identidade, o que a leva a desvalorizar o facto de ter
nascido em Portugal.

Português
Na assunção como português, ao contrário daquele que identi-
fica-se como caboverdeano, o facto de ter nascido em Portugal ganha
importância central, em detrimento da ascendência:
Eu sou portuguesa. Eu estou cá, nasci cá ... simplesmente os meus pais
são de Cabo Verde e ... olhe, eu até gosto de Cabo Verde, não é nada
disso. Mas, eu sinto que não tenho nada a ver com a vida de lá. Nasci
cá, sou portuguesa ... tenho passaporte e tudo. – (Entrevista N.º 12)

Afirma nunca ter passado por uma situação em que tivesse a


necessidade de afirmar que é portuguesa.
Para quê? Eu sei quem eu sou, não tenho que estar a discutir, a pro-
var p’rás pessoas (...) Se tiver que discutir, discuto os meus direitos.
– (Entrevista N.º 12)
144 Travessias 2008

Se para alguns filhos de imigrantes caboverdeanos a cor da pele


está sempre presente, neste caso, tratou-se de um atributo praticamente
ignorado pelo entrevistado, não revelando nenhuma importância par-
ticular nas identificações que constrói.

Luso-caboverdiano
Nesta identificação está presente a procura de valorização de
ambas as matrizes culturais, tanto a do seu país de origem como a do
país de origem dos pais:
(...) nunca fui a Cabo Verde, e tenho uma extrema necessidade de ir lá,
pelo menos para encontrar a minha raiz cultural não é? porque afinal
de contas eu tenho a minha raiz cá, eu tipo, adoro Portugal, sinto-me
tipo, portuguesa mesmo. Em termos culturais, em termos de educa-
ção foi aqui que eu recebi os meus valores, mas em termos de sangue
sinto uma grande ligação com Cabo Verde e quero ir lá conhecer (...).
– (Entrevista N.º 2)

Embora avisados por Maalouf (2002:10) que as identidades não


se repartem em metades, nem em terços, não podemos deixar de con-
siderar o modo como este filho de imigrante procura quantificar a sua
dupla pertença quando confrontada com uma questão provocante, se
se sente mais caboverdeana ou mais portuguesa:
É difícil essa pergunta [risos], é mesmo bastante difícil! Eu acho
que é assim, tipo meio a meio, eu acho que sem estar a querer
aldrabar [risos], nem nada disso, acho que é mesmo meio a meio.
– (Entrevista N.º 2)

Os dois próximos trechos contêm alguns dos elementos a que a


este filho de imigrantes caboverdeanos recorre para ilustrar a sua, pelo
menos, dupla pertença. Exemplifica que o que a faz sentir portuguesa
é a sua adoração por Lisboa, a gastronomia que até prefere à cabover-
deana e, ainda, elege um ponto de contacto: a saudade.
(...) sinto-me portuguesa, por exemplo, adoro Lisboa ... adoro, por
exemplo, algumas tradições portuguesas mesmo ...por exemplo, olha,
adoro [risos] a comida, se calhar ainda mais até do que a caboverdeana.
Apesar de gostar da cachupa, mas gosto ainda mais da comida portu-
guesa. – (Entrevista N.º 2)

Considera que é demonstrativo do caboverdeano que “sente no


sangue” o gosto que tem pela Cesária Évora,“pelas batidas das músicas”
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 145

e pela maneira de conviver, mais “agradável”, com mais “amizade”,


de forma mais “simples”.
Procura conciliar as suas raízes culturais, reconhecendo-as e
dando-as a conhecer aos “dois lados”: compra bolachas e doces de
Cabo Verde para os amigos “portugueses” e fala da “cultura portugue-
sa aos amigos de Cabo Verde”. Considera que quando encontra a sua
amiga caboverdeana na rua e fala crioulo com ela está a demonstrar e
a defender a sua raiz cultural.
A procura de conciliação das heranças recebidas, sem a so-
brevalorização de uma em relação à outra, pode até ser o mais
desejável da parte dos pais, assim como para certas instituições das
sociedades de origem e de acolhimento.Todavia, a realidade é muito
mais complexa, pelo que se regista a ocorrência de processos de
identificação que resultam de modos diversos de apropriação dos
elementos identitários disponíveis.

Pretoguês
A decisão de incluir essa designação entre as aplicadas às categorias
de identificações aqui referidas, prende-se com a ênfase recorrente que
é colocada no atributo cor da pele. Um dos entrevistados afirma:
(...) eu digo que eu sou tuga,8 mas tuga preto, um pretoguês. Eu digo,
eu digo ... quando as pessoas me perguntam de onde é que eu sou, eu
digo que os meus pais são de Cabo Verde, que eu nasci cá, mas ... que
sou tuga preto, é assim que eu digo. – (Entrevista N.º 1)

No momento em que este filho de imigrante assume-se como


preto apela à associação entre o preto da cor da pele e a posse do bi-
lhete de identidade português para se definir.Trata-se de uma proposta
de redefinição da categoria português que assim passaria a abranger
indivíduos negros. Daí que, para dizer o que é que a faz sentir portu-
guesa, afirma que:
Deve ser por causa do bilhete de identidade ... eu tenho o bilhete de
identidade português ... pelo menos é a única coisa que mostra que
uma pessoa é portuguesa. Porque cá em Portugal a única coisa que
faz calar os tugas é o bilhete de identidade, né?, porque para os tugas a
cor da pele quer dizer tudo. – (Entrevista N.º 1)

(8) Tuga, expressão com sentido equivalente a português.


146 Travessias 2008

Esta forma de identificação difere da anterior, na medida em


que, se para aquela há a aceitação de ambas as matrizes identitárias
correspondentes à sua sociedade de origem e à dos pais, para esta o
posicionamento é caracterizado por uma alternância discursiva, ora
aproximando-se da matriz caboverdeana e distanciando-se da portu-
guesa, ora aproximando-se da portuguesa e distanciando-se da cabo-
verdeana. Numa situação de conflito a identificação com a categoria
português é reivindicada com mais força, como quem reclama um
direito com base no factor local de nascimento.
(...) às vezes quando sai alguma confusão assim, nos autocarros, nos
comboios, porque tuga gosta de mandar as pessoas para a terra deles
... é isso né? aí é que, às vezes, (...) uma pessoa diz que nós também
nascemos cá, pronto, que somos portugueses, pena é que nós somos
pretos ... – (Entrevista N.º 1)

Pan-étnica,
Para a consideração da categoria pan-étnica como uma das
identificações que os descendentes desenvolvem levou-se em conta,
por um lado, o facto de que nos bairros degradados e nos bairros de
realojamento há uma conotação que se estabelece entre os filhos de
imigrantes de origem africana e símbolos e estilos de comportamen-
to que se inspiram numa cultura “afro-americana”, distinta da dos
seus progenitores, com uma forte componente da cultura designada
de “adversarial”. Recorrem a aspectos simbólicos como estilos de
musica rap e hip-hop, graffiti e ainda expressões verbais como dread e
getto, que utilizam com o objectivo de contestar as normas e valores
institucionais (MARQUES, 2000:137). Ainda segundo Marques et
al (2000:137) o que se verifica é que “actualmente estes símbolos e
comportamentos tendem a generalizar-se e a constituir modas entre
a juventude, com a globalização da cultura afro-americana que extra-
vasa as fronteiras étnicas e nacionais e se enraíza como subcultura a
nível mundial”9, alargando assim o conjunto de referências culturais
disponíveis para os processos de identificação.
Nos excertos que se seguem evidenciaram-se essas referências que
se inserem em quadros que estão para lá das duas matrizes, a sociedade
de origem dos pais e a sociedade de origem dos descendentes, que têm
servido de balizas às identificações até aqui estabelecidas pelos filhos

(9) Wieviorka (2002:142) designa de cultura internacional ou hipermoderna.


Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 147

de imigrantes. Conjugam-se os gostos musicais manifestados, onde se


incluem o rap e o raggae, e a identificação que assume como rapper, ao
que se acrescenta a identificação com o black, a referência à África como
origem e o guetto como espaço de residência:
O black já está a sofrer há bué de time meu. Sempre discriminado, sempre
maltratado, injuriado tás a ver? Desde os tempos dos nossos avós, a
cena da escravatura, tu já estudaste história, andas na escola, sabes estas
coisas ... o black sofre por todo o lado. – (Entrevista N.º 4)

Sobre a forma como ocupa os tempos livres diz:


(...) ... às vezes, vou jogar à bola com a malta, ouvir uns rags, vamos
ao centro da juventude, rappamos e ... fazemos uns improvisos, assim,
fumamos umas ganzas10 e assim, né?, porque eu gosto de estar aqui
no getto que é onde me sinto bem, junto com a malta, na boa, a fazer
essas cenas de que te falei. – (Entrevista N.º 4)

Ao referir ao sofrimento do black, que já perdura há muito, desde


o tempo dos “avós” remete para as representações sobre a diáspora afri-
cana, englobando todo o processo de imigração e a própria escravatura,
símbolo da opressão secular do povo negro, e a assunção de África
como origem. Cabo Verde surge retratado com base na experiência
paradisíaca da sua visita como representação do oposto do acolhimento
que é dispensado ao black noutras paragens:
(...) mas lá já é diferente, é a tua origem, é a África de onde todos nós
saímos. É lá que está a origem, o teu pé, quando falas todas as pessoas
te ouvem, te entendem, te tratam bem! Eu digo, Cabo Verde é uma
maravilha, é uma maravilha. – (Entrevista N.º 4)

Ao apontar a África como origem, está a posicionar-se para


além das fronteiras nacionais de Cabo Verde, do mesmo modo que ao
identificar-se como black, recorre a um conceito que está para além
do caboverdeano, do português ou ainda do pretoguês.

5. Sobre as Imagens: o “Eles” e como


acham que são vistos

Na construção identitária o “eles” surge como aquele em relação


ao qual o “nós” é definido, assumindo assim um papel relevante nessa
relação de que é parte integrante. Daí o interesse em compreender

(10) Substâncias psicotrópicas.


148 Travessias 2008

como é que os descendentes vêem os portugueses na medida em que essa


imagem surge ao mesmo tempo como resultado e elemento que sustenta
a interacção entre os descendentes e indivíduos de ascendência maioritária
portuguesa. Consideremos os seguintes trechos de entrevistas:
(...) porque os tugas são assim, tugas têm mania, começam a chamar-nos
de pretos, a dizer para irmos para a nossa terra. – (Entrevista N.º 1)

(…)É um povo um bocado falso, tu sentes muita falsidade neles (...).


São um bocado fechados, abrem-se, mas não se abrem completamente,
tipo, mas e ... não são todos , é claro! Certo é que alguns não é por
culpa deles né? Acho que vem da educação que os pais transmitem e
essas coisas assim. – (Entrevista N.º 3)

(…) Aqui em Portugal (…) as pessoas te ignoram por simples coisas, tu


és black, lá porque simplesmente tu és preto, já é motivo suficiente para
te desprezarem, te ... te pisarem se for preciso. – (Entrevista N.º 4)

Nestes excertos transparece a construção negativa do “eles”,


cuja caracterização assenta em expressões como “fechados”, “falso”,
“desconfiados” e “cheio de mania”. Aqui espelha-se a dimensão
para o qual Pereira Bastos chama atenção: a identidade como um
processo de busca de uma superiorização sobre o outro (J. G.
PEREIRA BASTOS, 2003).
Quanto à imagem que os descendentes pensam que é construída
sobre eles, respeitante à sua identidade, é de realçar o seguinte testemunho
que chama a atenção na medida em que constitui um protesto em relação
ao tratamento discriminatório que lhe é dispensado tanto por indivíduos
de ascendência portuguesa maioritária, como por indivíduos oriundos
de Cabo Verde, onde se incluem jovens recém-chegados daquele país.

(…) Jovens que vieram de Cabo Verde estudar, estavam lá a falar dos
jovens de segunda geração, mas falavam de nós como se fossemos um
mundo à parte. E se ... aí está o problema fulcral nesta questão toda.
É que somos vistos como seres à parte, como mundos à parte tanto
pelas pessoas originárias de Cabo Verde, como os portugueses. Por
exemplo, os portugueses vêem-te a passar na rua obviamente que vêem
que tu és diferente, que tens uma origem diferente, por causa da tua
cor de pele, já os caboverdeanos chegas ao pé deles ... ou falas muito
bem português [risos], ou dizes que nasceste cá, tipo és passado aaa ...
literalmente, quase como tipo ignorante, porque não sabes a tradição,
não nasceste lá. – (Entrevista N.º 2)
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 149

Deste modo o “eles” alarga-se também aos caboverdeanos vindos


de Cabo Verde. É assim que este testemunho se coloca perante o reapa-
recimento, mas desta feita nos filhos, desse sentimento de dupla ausência
com que Sayad (1999) caracteriza o imigrante, ausente do seu país de
origem e do país de acolhimento. Nega-se-lhes a pertença tanto à sua
sociedade de origem, que os remete para a sociedade de origem dos
pais, onde de facto não estão, como à sociedade de origem dos pais.
Também verificam-se alusões a situações vividas no quotidiano
que, por um lado, sustentam o sentimento de discriminação que
os filhos de imigrantes experimentam e, por outro, o descontenta-
mento face a estereótipos que os associam à prática de crimes, como
ilustram as seguintes passagens:
(...) Vou a uma loja de roupa com uma amiga portuguesa, em primeiro
lugar para quem olham, não é para ela, mas sim para o descendente
caboverdeano [risos] porque já estão naquela, naquela ... pronto
como que avisados de que vais assaltar porque os outros assaltam.
– (Entrevista N.º 2)

Vêem-te e não querem saber, és preto, logo és isto, és aquilo, és um


bandido, preto é ladrão. – (Entrevista N.º 4)

Contudo, é preciso considerar, como nos alertam Marques et


al (2000:155), que dentro do próprio bairro ocorre a reprodução de
estereótipos dominantes em que os jovens acabam por ser respon-
sabilizados por actos criminais, sendo que “os jovens nascidos em
Portugal de pais de origem imigrante são por vezes apontados, no
terreno, como os maiores causadores de distúrbios e «confusão» nos
bairros”(MARQUES et al, 2000:140).
Os estereótipos construídos enquanto produtores de realidade for-
necem elementos tanto para a categorização de indivíduos, como para a
viabilização das redes interpessoais. Se se os entender como parte de uma
campanha que tem como finalidade promover a separação, divisive cam-
paign, como designam Portes e Rumbaut, então poderão ocorrer efeitos
não intencionais tais como, o acentuar da diferença entre grupos e o ele-
var da consciência de grupo dessas diferenças (PORTES e RUMBAUT,
2001:148), o que poderá também reflectir, por exemplo, na proclamação
de uma identificação ou na constituição do circulo de amigos. Sem que
exista um padrão único na definição das relações interpessoais, nota-se
contudo, que no excerto seguinte, transparece a ideia de que não se trata
de uma situação “normal” ter uma “melhor amiga portuguesa”.
150 Travessias 2008

(...) a minha melhor amiga mesmo é portuguesa, não vou te dizer


que não é portuguesa, há já muito tempo que nos conhecemos e tal,
mas ... para que chegássemos a esta fase também, para que chegás-
semos neste ponto de amizade tivemos que desenvolver muito.
– (Entrevista N.º 3)

6. Cabo Verde, Portugal e o Mundo


enquanto Espaços de Referência

Nos processos de identificação desenvolvidos pelos jovens des-


cendentes de imigrantes caboverdeanos, Portugal e CaboVerde, surgem
como dois espaços de referência que ocupam um lugar importante,
tanto no quotidiano desses jovens, como nos seus projectos de vida
futura. Do mesmo modo espaços mais amplos marcam os processos
de identificação desenvolvidos por esses jovens: trata-se do espaço da
diáspora africana e o da emigração caboverdeana. Este último pode ser
tomado como referência para se estabelecerem relações de aproximação
ou de distanciamento, procedimentos que os confirmam como espaços
possíveis no âmbito dos projectos de vida futura.
Detendo-se um pouco sobre o presente e considerando represen-
tações em torno desses espaços, constata-se que a imagem de Portugal é
enformada de opiniões contrastantes.Tanto é uma “maravilha”, propor-
cionando espaços de consumo e lazer, como tem um “povo fechado e
egoísta”. Contribui ainda para essa imagem negativa a ideia de que face
aos preconceitos existentes a condição de filho de imigrante representa
dificuldades acrescidas, como se constata no seguinte excerto:
E ... eu como descendente de caboverdeanos, mesmo que fosse descen-
dente de portugueses, eu acho que o meu futuro... acho que não tenho
perspectivas de um futuro muito brilhante aqui dentro de Portugal.
Isso já de partida se fosse descendente de portugueses. Agora, como
sendo já descendente de caboverdeanos ainda é menos brilhante ainda.
Primeiro porque as pessoas na generalidade né?, colocam barreiras e eu
ainda vou encontrar barreiras muitas mais. – (Entrevista N.º 2)

A referência ao espaço da diáspora africana surge também para


explicar o tratamento designado de discriminatório de que se consi-
dera alvo no presente, estabelecendo uma ligação entre o passado da
negritude e o seu quotidiano:
O black já está a sofrer há bué de time meu. Sempre discriminado, sem-
pre maltratado, injuriado tás a ver? Desde os tempos dos nossos avós,
a cena da escravatura (...). – (Entrevista N.º 4)
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 151

No que diz respeito a Cabo Verde, a terra de origem dos pais, os


discursos concentram-se à volta das pessoas caracterizadas por “uma
grande amizade” entre si, “gentis”, “dispostas a te estender as mãos” e
o povo que é visto como:
(...) Sonhador e que às vezes corre o mundo atrás dos seus sonhos.
– (Entrevista N.º 3)

Deste modo, não se evidencia aqui a valorização positiva do


percurso imigratório dos pais, vistos como “sonhadores” e “corajo-
sos”, capazes de sair do seu país e correr o mundo atrás de um sonho?
Compreendendo e, de certo modo, conferindo alguma legitimidade, à
decisão de emigrar, que os pais tomaram anos, ou décadas antes?
No que se refere à construção do futuro dos filhos de imigran-
tes entrevistados há três espaços que são tomados como referências:
Portugal, Cabo Verde e o mundo da emigração caboverdeana.11
Quanto ao lugar que Portugal ocupa, registamos duas situações
distintas. Há aquele cujo projecto futuro passa pela sua continuidade
neste país, como afirma:
Eu cresci cá e olha eu nem sequer penso em ir trabalhar para Londres,
ou para morar em França (...). No meu sonho mesmo, não entra nen-
hum desses sítios, só se é para ir passar férias e depois voltar, mas para
ficar não, Portugal para mim está óptimo! – (Entrevista N.º 1)

Os outros espaços referidos ajudam a definir o espaço de iden-


tificação, num jogo de aproximações e distanciamentos. A definição
do espaço com o qual se identifica – Portugal, passa pela negação de
outros destinos da emigração caboverdeana.
Entretanto, a saída de Portugal pode surgir também como uma
alternativa a ser considerada, como se constata, no seguinte trecho:
Depois de eu terminar o curso espero trabalhar fora de Portugal,
porque aqui dentro de Portugal, sinceramente, acho que não dá para
eu aplicar os meus conhecimentos. É um país muito fechado, fechado
demais ... não dá para conseguires expressar dentro da tua actividade,
a tua área, tás a ver? – (Entrevista N.º 3)

(11) Malheiros, num estudo sobre a comunidade caboverdeana de Lisboa e Roterdão, revela-nos que é entre os
mais jovens (15-34 anos) que se registam os valores mais baixos quanto ao desejo de instalar-se em CaboVerde e os
mais altos quanto à hipótese de fixação em países terceiros. Enquanto que este último aspecto “mostra que a cultura
migratória está viva e que a possibilidade de mobilizar este recurso é equacionada” (Malheiros, 2001: 330).
152 Travessias 2008

Cabo Verde aparece como um dos destinos no projecto futuro


de jovens descendentes de imigrantes caboverdeanos. Por um lado, há
aqueles filhos de imigrantes que se sentem satisfeitos com o seu país
de origem, Portugal, e deste modo, não consideram a possibilidade
de fixarem-se em Cabo Verde, nem temporariamente, sendo um dos
factores o impacto negativo da deslocação a Cabo Verde.
Por outro lado, verifica-se também que a visita à terra de origem
dos pais tem um impacto positivo junto de outros filhos de imigrantes,
contribuindo até para o reforço da identificação com Cabo Verde, a
ponto de afirmarem que terão sentido que “é lá que está a origem”,
apesar de não pretenderem voltar para lá, senão temporariamente.
(...) Eu já não consigo viver em Cabo Verde, eu já não me adapto a
Cabo Verde. (...) Quando eu sair de Portugal outra vez, é para viver
num outro país do mundo, da Europa, mas ... é isso. Cabo Verde é uma
maravilha, mas eu não adapto mais, é difícil para mim, mas eu volto
para lá ainda, volto porque Cabo Verde é uma maravilha, como te disse,
gostei muito. – (Entrevista N.º 4)

A Europa, uma das áreas do globo onde se verifica uma presença


significativa de imigrantes caboverdeanos, constitui um dos espaços em
relação ao qual projecta-se o futuro, confirmando-se as redes sociais
(PORTES, 1999:23) como elementos importantes na definição do
destino emigratório.
Há ainda aqueles que, na construção do seu projecto de vida
futura, colocam a possibilidade de ir temporariamente, ou mesmo de
viver em CaboVerde, para, por meio das qualificações adquiridas, darem
o seu contributo para o desenvolvimento do país:
(...) eu quero lá ir, estar lá um tempo, por exemplo, cinco anos a ver se
me adapto bem, se for aquilo que eu quero, se for aquilo que eu gosto,
se eu não encontrar tipo barreiras, obviamente, que eu vou querer ficar,
lá não é?, obviamente que eu vou querer ajudar. – (Entrevista N.º 2)

Ou ainda motivados pelo desejo de estabelecerem contacto com as


localidades de origem dos ascendentes, como se depreende das palavras:

(...) ah! vontade de viver em Cabo Verde é algo que não me falta! (...)
Principalmente eu gostaria muito de ir até o Tarrafal, para ir ver assim de
perto, como é que é o Tarrafal,12 mesmo a sério! – (Entrevista N.º 3)

(12) Localidade no interior da ilha de Santiago, de onde os pais são originários.


Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 153

Este desejo de contacto com a terra dos pais e a vontade de viver lá,
poderá ser entendida, de certo modo, como um regresso, não no sentido de
uma das fases do percurso migratório (ROCHA-TRINDADE 1995:39),
mas enquanto o regresso às origens, tomadas como ancestrais.

7. Alguns Aspectos Conclusivos


Pode-se constatar que os descendentes abordados não se revêem
numa mesma categoria identitária, uma vez que assumem pertenças
que diferem entre si. Todavia, fica patente a percepção de que são vis-
tos como pertencentes a uma mesma categoria, como “seres à parte”,
tanto pelos caboverdeanos com que interagem no seu dia a dia como
por indivíduos de ascendência maioritária portuguesa.Ainda no que se
refere à imagem que pensam que a sociedade de acolhimento constrói
sobre eles, nota-se o predomínio de um sentimento generalizado de
discriminação pelo que o facto de se ser descendente é encarado como
constitutivo de “dificuldades acrescidas” no que se refere à construção
de futuro no país de acolhimento. Mas, mais uma vez, dando conta
dessa diversidade de posicionamentos que ocorre no seio dos entre-
vistados, há quem se se sinta bem no seu país de origem, Portugal, não
pretendendo por isso ir viver para qualquer outro país.
Para a construção da sua identidade estes filhos de imigrantes
recorrem a atributos relacionados com o campo musical, a gastrono-
mia, a língua (crioulo), a cor da pele, o local de nascimento, o bilhete
de identidade (português), as maneiras de estar “característicos” de
caboverdeanos e portugueses e o sentimento de discriminação.
O modo como lidam com os atributos, para a construção iden-
titária, revela a existência de estratégias de manipulação e negociação
que visam conferir realce a determinados aspectos, em função da
identificação que se pretende assumir. Apenas dois exemplos. O duplo
uso que se faz do “eu nasci cá”. Aquele que pretende reforçar a sua
ligação com Portugal, recorre ao local de nascimento, para defender um
encadeamento lógico do tipo eu nasci cá, logo sou português. Enquanto
que o descendente que afirma-se caboverdeano desvaloriza o facto de
ter nascido cá, quando diz eu apenas nasci cá, mas sou tão caboverdeano
quanto tu. Um outro exemplo é a forma como é interpretada a posse
do bilhete de identidade português, símbolo de nacionalidade. Há aquele
descendente que afirma: eu sou português só de documento. Enquanto que
um outro argumenta que é português porque tem o bilhete de identidade
que o confirma. Sem contar com as situações em que jogam com os
154 Travessias 2008

atributos, procurando acentuar ora os que se inscrevem no quadro das


suas origens europeias, ora no das suas origens africanas.
A forma como Portugal e Cabo Verde marcam presença nesse
processo de construção identitária, enquanto referências importantes, é
caracterizada por uma considerável diversidade, como se pode constatar
pelos dados obtidos. Domina a imagem de um CaboVerde de sonho de
pessoas “amáveis e gentis”, mas que pode tornar-se numa decepção com
uma visita às ilhas, onde pode não confirmar-se a imagem construída
que é reveladora da socialização que está por detrás dessa leitura.
Contudo é de realçar a inesperada inclusão, nos projectos de vida
futura, da possibilidade de viver em Cabo Verde. Aspecto que contraria
a ideia de que os jovens descendentes vêem Cabo Verde apenas como
destino de férias. No entanto, é preciso assinalar que há um traço em
comum entre os entrevistados que manifestaram essa vontade. Isto é
são todos estudantes do ensino superior, visando a obtenção de um
diploma académico e, logo, colocados numa posição privilegiada face ao
mercado de trabalho em Cabo Verde. Daí que questionamos se haverá
alguma relação entre as habilitações académicas e/ou profissionais com
o projecto de viver em Cabo Verde?
O que remete para a necessidade de se compreender que circunstân-
cias sociais estariam por detrás desta escolha e, de um modo mais amplo, que
circunstâncias são favoráveis a que escolhas identitárias dos descendentes.
Embora já tenha sido referido, salienta-se que o estudo de caso en-
quanto metodologia adoptada permitiu captar as matizes que compõem
o quadro da distribuição das posições identitárias que os descendentes de
imigrantes assumiram, no entanto, não confere legitimidade a possíveis
generalizações, o que, aliás, também não constitui objectivo deste trabalho.
Portanto as categorias avançadas, caboverdeana, portuguesa, luso-caboverdeana,
pretoguês e pan-étnica, correspondem a tipos construídos a partir dos discur-
sos dos jovens descendentes entrevistados, e, por isso, não são passíveis de
serem encontrados na realidade enquanto formas essencializadas.Trata-se
de um esquema de leitura que visa dar conta das posições identitárias
ocorridas, mas sem valorizar a dimensão quantitativa.
A constatação dessa diversidade de posicionamentos, permite
avançar que, sem menosprezar a importância na construção identitária
que assume o facto de os descendentes nascerem e crescerem entre
dois “mundos” diferentes, há que acrescentar que outros “mundos”
também concorrem para esse processo, designadamente, o “mundo”
transnacional, deixando a discussão da identidade dos descendentes de
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 155

ter como balizas apenas Cabo Verde e Portugal, enquanto referências


mais amplas. De igual modo, outras lógicas que não apenas a da adesão/
recusa, concorrem para esse processo, por exemplo, o da combinação
estruturante de diversos elementos.

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O Tempo de Justiça Criminal:
Portugal e Brasil em uma Perspectiva Comparada

Y
Ludmila Ribeiro
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida

Resumo
A proposta deste artigo foi realizar uma revisão dos estudos
realizados sobre o tempo de processamento da justiça criminal em
Portugal e no Brasil. Para tanto, as pesquisas realizadas em cada locali-
dade foram sumarizadas com o objetivo de verificar: a) qual a diferença
entre o tempo prescrito pelas legislações (morosidade legal) e o tempo
despendido para o processamento de uma causa criminal (morosidade
necessária) em cada realidade; e b) quais são os principais fatores que
de acordo com esta revisão explicam o tempo da justiça criminal em
ambas localidades.
Brasil e Portugal foram escolhidos como objeto de análise por-
que são filiados a tradições jurídicas semelhantes, inclusive, no que diz
respeito à existência de uma legislação que estabelece o tempo máximo
do processo. Por outro lado, os estudos realizados no Brasil sempre re-
ferenciam os estudos realizados em Portugal tanto no que diz respeito
à metodologia utilizada como ainda no que diz respeito aos fatores
utilizados como possíveis explicações para o menor ou maior tempo
de processamento. Neste sentido, reunir os estudos realizados em ambas
realidades pode auxiliar na melhor compreensão do problema e ainda
apontar questões que, apesar de relevante, ainda não foram abordadas
por esses estudos.

Palavras-chave: Tempo da justiça criminal – Morosidade legal – Morosidade


necessária – Brasil – Portugal.
158 Travessias 2008

Introdução
Uma das temáticas mais relevantes no que se refere ao direito
em ação é a relativa à capacidade do sistema judicial em processar de
forma eficiente as demandas que chegam ao seu conhecimento. De
acordo com Santos (1996) um desses indicadores é o tempo despendido
pelos sistemas judiciais (Cíveis, Criminais, Trabalhistas, dentre outros)
no processamento do caso desde a sua ocorrência até a sentença que
encerra, institucionalmente, o conflito.
A problemática atual dos sistemas de justiça criminal se refere a
sua incapacidade de processar adequadamente os delitos que chegam ao
seu conhecimento, especialmente pela demora excessiva no julgamento
de uma dada infração. O efeito perverso deste problema é o fato de ele
contribuir para a disseminação da idéia de impunidade. Isso porque, se
o tempo de processamento do delito é excessivo, a probabilidade de a
punição acontecer em um horizonte muito distante do tempo presente
é real e, com isso, a idéia de que o crime compensa deixa de ser uma
falácia para se tornar uma realidade.
Assim, o estudo do tempo de processamento de um delito pelo
sistema de justiça criminal é importante porque este é um indicador
da própria capacidade das organizações em implementar a idéia de
justiça. Se o tempo da justiça é longo, é cada vez menos provável cor-
rigir falhas técnicas na condução administrativa dos procedimentos ou
localizar testemunhas, eventuais vítimas, possíveis agressores. Se o tempo
da justiça é curto, corre-se o risco de suprimir direitos consagrados
na Constituição e nas leis processuais penais, instituindo, em lugar da
justiça, a injustiça (ADORNO e IZUMINO, 2007).
A sociologia contemporânea (portuguesa e brasileira) tem ana-
lisado cada vez mais esta temática na tentativa de: a) calcular o tempo
despendido pelo sistema de justiça criminal no processamento de uma
infração penal e; b) compreender em que medida os sistemas de justiça
criminal aplicam ou não os dispositivos legais que regulam o tempo
de um processo.
No que se refere ao cálculo do tempo propriamente dito, o
pressuposto para a realização deste tipo de estudo diz respeito ao con-
traste dos conceitos de morosidade necessária e de morosidade legal.
A morosidade legal seria aquela estabelecida pela lei, pelos códigos. Já a
pode ser entendida como o tempo ideal de du-
ração de um processo, tempo este que harmoniza rapidez e eficiência
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 159

com a proteção dos direitos (que, em algumas situações, demandam a


extensão do prazo prescrito em lei). Assim, um sistema de justiça será
considerado tanto mais eficiente quanto menor a diferença existente
entre a morosidade legal e a morosidade necessária (SANTOS, 1996).
Mesmo porque:
O Conselho da Europa tem considerado que um processo estará em
atraso logo que dure mais que o tempo exigido pelo sistema penal
vigente, considerando as exigências decorrentes das regras processuais,
constitucionais e outras que garantam direitos ou interesses legítimos
do acusado, da vítima ou de terceiros. (SANTOS, 1996: 397).

Nesses termos, parte dos estudos realizados em Portugal e no


Brasil dedicados à análise do tempo dos sistemas de justiça criminal
tem como objetivo calcular a morosidade necessária dessas instâncias
e compará-la à morosidade legal. O propósito deste cálculo é verifi-
car a diferença entre os limites prescritos pelos códigos e a realidade
dos sistemas de justiça criminal. A partir desse cálculo esses estudos
problematizam a questão da implementação do direito no âmbito das
estruturas jurídicas e apontam para a importância de se refletir sobre a
diferença existente entre o direito no papel e o direito em ação.
O segundo objetivo perseguido pelas pesquisas realizadas sobre
o tema em Portugal e no Brasil diz respeito à compreensão dos de-
terminantes do tempo da justiça. Essas análises, no entanto, tendem a
possuir elementos diferenciados de acordo com a tradição jurídica em
questão: common law ou civil law.
De acordo com Siegel e Senna (2007), o sistema judiciário dos
Estados Unidos da América pode ser definido como partidário da
tradição jurídica da Common Law. Neste sistema, o direito é criado
ou aperfeiçoado pelos juízes: uma decisão a ser tomada em um caso
depende das decisões adotadas para casos anteriores e afeta o direito a
ser aplicado a casos futuros. Neste sistema jurídico, a análise do caso se
faz a partir de determinados precedentes e não através de determina-
dos diplomas legais que regulem aquela questão. Quando não existe
um precedente, os juízes possuem a autoridade para criar o direito,
estabelecendo um precedente.
O sistema da Civil Law é de origem romano-germânica, o que
equivale a dizer que dentro de seu arcabouço institucional todas as
controvérsias devem ser dirimidas de acordo com os diplomas legais
que regem aquela questão. Assim, casos semelhantes podem implicar
em decisões diferentes na medida em que a solução anterior de um
160 Travessias 2008

caso não produz vinculação da matéria para a decisão de casos subse-


quentes. No âmbito deste sistema a resolução da controvérsia se dá pela
interpretação do diploma legal e não pela vinculação de precedentes
(SIEGEL e SENNA, 2007). Neste sistema, o que é estabelecido é tanto
o prazo de duração global do processo, como também o tempo que
cada um dos operadores do direito pode despender na realização de
um ato processual.
O ponto relevante de ser destacado para esta análise é o fato de
que Portugal e Brasil são partidários da tradição jurídica da Civil Law
e, por isso, tanto o tempo para a prática de cada ato que compõem o
processo penal, como ainda o tempo para a duração do processo penal
como um todo encontra-se estabelecido em códigos publicados antes
do início do processamento do crime.
Outra questão importante de ser destacada quanto a semelhan-
ça entre as realidades Portuguesa e Brasileira diz respeito a forma de
funcionamento do sistema de justiça criminal. Em ambos os casos, a
ocorrência de um delito implica em seu registro na Polícia Judiciária.
A este registro segue-se a fase de inquérito policial, durante a qual são
reunidas as provas de que: a) houve crime e b) quem o praticou foi o
indivíduo indiciado pela autoridade policial.
O encerramento da fase policial ocorre a partir do envio dos
autos do inquérito (já que todos os atos desta fase são devidamente
documentados e escritos) ao Ministério Público. Este órgão tem a
competência para a) requisitar o início da ação penal pelo oferecimento
da denúncia; b) requisitar o arquivamento do inquérito policial por
entender que não houve crime ou que não foi o indivíduo indiciado
na fase policial o responsável pela sua ocorrência.
Caso o Ministério Público ofereça a denúncia, tem-se início a
fase judicial, durante a qual o Estado procurará punir o autor do cri-
me sempre garantindo a este o direito de ampla defesa. Assim, a cada
ato do Ministério Público segue-se conseguinte pronunciamento da
defesa, que pode ser pública ou particular dependendo da condição
sócio-econômica do acusado.
A atuação do Ministério Público e da Defesa é sempre me-
diada pela atuação do juiz, o qual possui ainda a competência para
pronunciar a sentença de absolvição ou condenação. Neste segundo
tipo de sentença, o juiz possui ainda a competência para estabelecer a
sentença que o condenado deverá cumprir. Contudo, esta função do
juiz é reduzida apenas ao estabelecimento da pena nos casos em que
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 161

há julgamento pelo júri1, já que a decisão de condenar ou absolver o


réu é dada pelos jurados.
Assim, as pesquisas sociológicas realizadas em Portugal e no
Brasil sobre o tempo da justiça criminal procuraram compreender
em que medida o tempo global do processo ou o tempo individual
de cada fase (da polícia e do judiciário) é ou não explicado pelas ca-
racterísticas dos envolvidos em detrimento das características legais
e processuais do fato.
A partir desta primeira apresentação do tema, os objetivos des-
te artigo são: a) apresentar os estudos já realizados sobre a temática
tempo da justiça criminal em Portugal e no Brasil; b) mensurar as
diferenças entre morosidade legal e morosidade necessária em cada
tempo e lugar; c) compreender os determinantes do tempo do pro-
cesso criminal no âmbito dessas duas realidades filiadas a tradição
jurídica da Civil Law.
Para tanto, este artigo encontra-se estruturado em três seções. A
primeira apresenta os estudos realizados em Portugal sobre a temática
“tempo de processamento da justiça criminal” e a segunda revisa os
estudos com objetivo semelhante que tiveram lugar no Brasil.A terceira
e última seção sumariza as principais consonâncias e divergências entre
os estudos realizados em ambas localidades.
O ponto de partida das análises sobre morosidade no Brasil: os estu-
dos sobre o tempo de duração do processo desenvolvidos em Portugal
No âmbito da tradição jurídica da Civil Law, o país que
produziu um maior número de estudos sobre o tempo da justiça
criminal é Portugal. O núcleo de pesquisa responsável por este
tipo de projetos é o Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, o qual é coordenado por Boaventura de Souza Santos e
tem como objetivo principal discutir a capacidade, efetividade e
eficiência dos tribunais portugueses.
O interesse pelo tempo de duração dos processos criminais flo-
resceu quando da aprovação do novo Código Processo Penal Português
no ano de 1987 (Decreto-Lei nº 78/87). Isso porque, quando da publi-
cação deste diploma, colocou-se em discussão não apenas a necessidade
de se reformar institutos que não mais faziam sentido para a realidade
portuguesa, mas, ainda, a necessidade de esta sociedade contar com uma

(1) No Brasil, o julgamento pelo júri é privativado dos crimes dolosos contra a vida. Em Portugal, este ocorre
sempre que acusação e defesa o julgarem conveniente.
162 Travessias 2008

justiça mais rápida e capaz de solucionar os conflitos de maneira mais


efetiva ao que vinha realizando até então.
A grande inovação colocada por este código foi o estabeleci-
mento de um prazo único de 10 dias para a realização de qualquer ato.
Isso porque, o Código de Processo Penal (CPP) Português anterior,
tal como o Código de Processo Penal Brasileiro, estabelecia uma série
de prazos diferenciados para a realização dos atos processuais depen-
dendo de quem o praticava (polícia, ministério público, defensoria
pública, judiciário).
Nesta reforma ficou estabelecido ainda que os prazos legais
do inquérito seriam de seis meses para réus presos e de oito meses
para réus soltos (art. 276). Já o art. 306 do mesmo diploma legal
estabeleceu que o prazo máximo de duração da instrução criminal
seria de dois meses para réus presos e de seis meses para réus sol-
tos. Portanto, a partir de 1987, em Portugal, o processo penal deve
durar oito meses, em se tratando de réu preso e dez meses, em se
tratando de réu solto.
Em sendo dessa forma, as pesquisas iniciadas no ano de 1989,
em Portugal, se destinavam a verificar, em que medida, o tempo
estabelecido pela reforma do Código de Processo Penal de 1987,
como necessário para o processamento de uma causa criminal desde
a data do crime até a data da sentença era ou não respeitado pelas
organizações que compõem o sistema de justiça criminal. Além deste
primeiro objetivo, essas pesquisas se destinavam a compreender quais
eram os fatores que explicavam o prazo de duração de tais processos
criminais (SANTOS et al, 1996).
A primeira etapa desta pesquisa verificou que, no período
compreendido entre os anos de 1989 e 1993, o tempo compreendido
entre a data do crime e a data da sentença se alterou ligeiramente,
passando de 920,4 dias (2,5 anos) em 1989 para 794,1 dias (2 anos)
em 1993. A pesquisa verificou ainda que, em média, um processo-
crime durava de 28 a 32 meses no período compreendido entre os
anos de 1989 e 1993.
Analisando o peso percentual dos processos que se encerraram
em um ano, contando desde a data do crime até a data do julga-
mento, tem-se uma evolução de 20,1% (em 1989) para 29,2% (em
1993). Os dados permitiram constatar ainda que a maioria dos cri-
mes se resolveu em menos de três anos, apesar de uma percentagem
significativa de casos terem duração superior a cinco anos (Tabela 1).
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 163

Tabela 1 - Morosidade penal(*) em Portugal para causas criminais(**)

(*) Tempo do processo calculado desde a data do crime até a data da sentença
(**) Processos criminais encerrados entre 1989 e 1993

1989 1990 1991 1992 1993

Duração
(anos) N % N % N % N % N %

< 1 9686 20% 10468 21% 10699 17% 17117 21% 20518 29%

1 e 1,9 16325 34% 18138 36% 22722 35% 26188 33% 23391 33%

2 e 2,9 9088 19% 9136 18% 13532 21% 15609 20% 11942 17%

3 e 5,9 7953 16% 7722 15% 10943 17% 12931 16% 5516 8%

5 e mais 5162 11% 5031 10% 6913 11% 8043 10% 8963 13%

TOTAL 48214 100% 50495 100% 64809 100% 79888 100% 70330 100%

Fonte: Santos et al (1996)

De acordo com os dados sumarizados na Tabela 1, no período


compreendido entre os anos de 1989 e 1993, metade dos processos
criminais portugueses eram encerrados em até 1,9 anos após a data
do crime. Essa tabela indica ainda uma certa tendência de redução do
tempo de processamento, dada a redução percentual do número de
casos que se encerra em um período superior a três anos.
No estudo publicado por Ferreira e Pedroso em 1997, foram
analisados processos encerrados no período compreendido entre os
anos de 1990 e 1995, com o intuito de compreender os principais
fatores que atuavam como variáveis de redução ou aumento do tempo
de processamento em cada tipo de área. Essa diferenciação de acordo
com a área do direito foi necessária porque o que explica a duração de
um processo de natureza civil não é, necessariamente, o que interfere na
duração de um processo criminal. Por fim, os resultados desta pesquisa
permitiram aos autores constatar que:
Em 1990 e 1995 resolveram-se, respectivamente, 64,8% e 62,4% dos
processos num ano e 17,5% e 19,9% entre um e dois anos. Refira-se,
no entanto, que nesta fase processual sobreviveram mais de 3 anos
5.223 (9,7%) e 8.407 (10%) respectivamente em 1990 e em 1995.
De salientar, no entanto, que entre a data do crime e a data da sen-
tença, em primeira instância, os processos que duraram mais de três
anos cresceram de 25,3% (12.250) em 1990 para 30,9% (24.954)
em 1995. Estes resultados demonstram que, nesta óptica, o desem-
penho do sistema judicial piorou e a investigação judicial continua
a ser um ponto de estrangulamento do sistema judicial criminal.
(FERREIRA e PEDROSO, 1997: 94).
164 Travessias 2008

Na tentativa de melhor compreender as razões do aumento da


morosidade processual criminal no período compreendido entre 1990
e 1995, a equipe do CES, sob a coordenação da professora Concei-
ção Gomes, analisaram três casos de longa duração nos tribunais de
Coimbra, Setúbal, Lisboa e Monsanto. As principais conclusões deste
trabalho dizem respeito ao fato de que o primeiro grande ponto de
bloqueio do fluxo do sistema de justiça criminal português é a fase de
investigação criminal, pois, os processos tendem a “parar” nos institutos
de medicina legal, sempre que a perícia médica se faz indispensável ao
esclarecimento do caso (GOMES, 1998).
Outros fatores que interferem no tempo de processamento crimi-
nal são os atrasos decorrentes de: a) não pronunciamento do Ministério
Público no prazo adequado, b) não comparecimento de testemunhas e
do próprio acusado nas audiências de inquirição, c) demora no cumpri-
mento das cartas precatórias para a oitiva de testemunhas e, d) demora
do próprio magistrado em marcar a data da audiência, principalmente,
quando esta suscita a realização do júri (GOMES, 1998).
Já no entender de Fonseca (2004), uma das razões para a mo-
rosidade da justiça criminal, especialmente no período compreendido
entre os anos de 1992 e 2001, é a queda da produtividade judicial. De
acordo com a autora, a ausência de um sistema de punição de magis-
trados, escrivães e promotores pela demora excessiva no processamento
da causa, fez com que muitos desses permanecessem com o processo
por um tempo muito além do razoável. Assim, se em 1992 cada fun-
cionário era responsável por 117 processos, hoje cada um é responsável
por apenas 69 processos. Com isso, o tempo de processamento da ação
praticamente dobrou nesses nove anos.
O estudo publicado por Gomes no ano seguinte (2005) foi rea-
lizado a partir da solicitação do Ministério da Justiça. Esta análise teve
como resultado a avaliação do tempo de processamento do sistema de
justiça criminal português. Com isso, foi possível verificar que para o
período compreendido entre os anos de 2000 e 2004, os crimes contra
a vida demoravam, em média, 15 meses (contados a partir da data do
crime) para receberem uma sentença (Tabela 2).
Outro dado interessante de ser enfatizado a partir da análise da
Tabela 02 é o fato de que, no período compreendido entre os anos
de 2000 e 2004 o tempo de processamento dos crimes contra vida se
reduziu substancialmente. Isso porque, se no ano de 2000, eram neces-
sários 17 meses para processar um delito contra a vida, no ano de 2004
eram necessários 14 meses para realizar a mesma atividade.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 165

Tabela 2 - Tempo médio(*), em número de meses, para


o processamento das causas criminais(**)
(*) Duração média em meses dos processos encerrados entre 2000 e 2004.
(**) Natureza da causa criminal – APENAS CRIMES CONTRA A VIDA.

Crimes contra a vida 2000 2001 2002 2003 2004 Média


Homicídio simples e qualificado 13 11 9 10 10 11
Homicídio privilegiado a pedido da vítima ou infanticídio 20 21 16 5 3 13

Homicídio por negligência 18 17 16 15 16 16
Tentativa de homicídio 16 14 12 11 10 13
Outros crimes contra a vida 43 9 77 62 43 47
Todos os crimes contra a vida 17 16 15 14 14 15

Fonte: Ministério da Justiça Português / Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Considerando a média do período (15 meses) é possível afirmar


que no período compreendido entre os anos de 2000 e 2004, o tempo
efetivado pelo sistema de justiça criminal português para o processa-
mento dos crimes contra a vida era bastante similar ao prescrito pela
lei portuguesa como adequado para o processamento de crimes cujos
réus encontram-se em liberdade.
O CPP português estabelece que o prazo para o processamento
de crimes (em geral) é de 8 meses para réus presos e de 14 meses para
réus soltos. Contudo, como os dados organizados pelo Observatório
da Justiça Portuguesa não fazem diferenciação entre réus presos e réus
soltos não é possível verificar em que tipo de processo a morosidade é
mais pronunciada (GOMES, 2005).
Investigando os determinantes do tempo de processamento das
causas criminais, os autores puderam verificar que a presença de algu-
mas características aumenta a probabilidade de o caso durar mais que o
prescrito pela legislação, quais sejam: a) a insuficiência de infra-estruturas
judiciárias e de recursos humanos; b) o aumento considerável de litígios
dadas as alterações de ordem legislativa, social, económica ou outra;
c) a crescente complexidade dos casos; d) a ausência ou limitação de
recursos aos meios alternativos de resolução de conflitos; e) a excessiva
burocratização dos procedimentos judiciais e f) a opacidade do sistema
judicial (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2005).
Revisando essas informações, Duarte (2007) constatou que a
morosidade dos processos criminais é devida, sobremaneira, aos recursos
aos tribunais superiores, os quais implicam em grande dispêndio de
tempo e, por conseguinte, esquecimento do caso. Por isso, os processos
que contam com advogados particulares são exatamente os mais lentos,
166 Travessias 2008

já que esses não poupam esforços em manejar todos os tipos de recursos


previstos nos códigos penais e de processo penal portugueses. Tanto é
assim que, de acordo com o autor, 30% do tempo do processo criminal
é destinado apenas ao recurso às instâncias superiores.
Portanto, considerando os estudos realizados pela equipe de
pesquisadores do Centro de Estudos Sociais (CES) é possível verificar
que, no período compreendido entre os anos de 1989 e 2004 o tempo
da justiça criminal portuguesa não apenas diminuiu (como um todo)
como se tornou bastante semelhante ao prescrito pelo Código de
Processo Penal Português como adequado ao processamento dos réus
presos durante o processo (Tabela 3).

Tabela 3 - Sumarização do tempo médio de processamento dos


processos criminais encerrados em Portugal entre 1989 e 2004(*)
(*) De acordo com as pesquisas realizadas em Portugal neste mesmo período.

Tempo médio de processamento Diferença entre o tempo médio do


Ano (em dias) caso e o tempo estabelecido pelo
Desde a data do fato até a condenação Código de Processo Penal(*)
1989 920 500
1990 893 473
1991 939 519
1992 885 465
1993 794 374
2000 510 90
2001 480 60
2002 450 30
2003 420 0
2004 420 0

N.A. - Período anterior à publicação do CPP.


(*) Considerando-se o prazo de 14 meses para réus soltos, já que os dados coletados não fazem
esta diferenciação entre réu preso e réu solto.

Os dados apresentados na Tabela 3 são interessantes, em um


primeiro plano, por revelarem que, em Portugal, 16 anos após a publi-
cação do novo prazo de processamento, os processos criminais eram
encerrados dentro do prazo prescrito legalmente.
No que se refere a natureza dos estudos realizados, uma outra
ressalva também é importante de ser realizada. Isso porque nas pes-
quisas sobre o tempo de duração do processo criminal as fontes de
informação utilizadas são as oficiais, são os bancos de dados do Mi-
nistério da Justiça. Neste caso, as contagem de tempo não são fruto de
pesquisas, na maioria dos casos, realizadas diretamente nos processos
criminais julgados em um determinado ano ou em um determinado
período de tempo.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 167

Por fim, no que diz respeito às causas da morosidade processual


no âmbito da justiça criminal portuguesa, tem-se que o excesso de
formalismos em um primeiro plano e, em um segundo plano, as pró-
prias limitações colocadas pela tradição Civil Law, são apontadas como
as principais causas para extensão do prazo do processo para além do
previsto em lei (Tabela 4).
Tabela 4 - Sumário dos principais estudos realizados sobre a temática
em Portugal determinantes do tempo do processo criminal
(desde a década de 1990 até o ano de 2007)

Variáveis apontadas como causas


da morosidade processual Referências

CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

Nenhuma característica dos envolvidos aparece,


na justiça portuguesa, como relevante para explicação
do tempo de processamento de uma causa criminal

CARACTERÍSTICAS PROCESSUAIS

Presença de advogado particular Duarte (2007)

Não uso da justiça alternativa(dada a ausência deste recurso


ou de outros capazes de tornar a justiça mais rápida) Gomes (2005)

Ausência de pronunciamento do Ministério


Público no prazo adequado Gomes (2005)

Não comparecimento de testemunhas e do próprio


acusado nas audiências de inquirição Gomes (2005)

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS

Ausência de órgãos específicos destinados a monitorar


o tempo dos tribunais Fonseca (2004)

Insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos humanos Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Aumento considerável de litígios Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

CARACTERÍSTICAS LEGAIS

Pedido de perícia médica Gomes (2005)

Julgamento do caso por um Juízo Especial (Júri) Gomes (2005)

Crimes qualificados (casos mais complexos) Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Recursos para os tribunais superiores Duarte (2007)

CARACTERÍSTICAS TEMPORAIS

Problemas no andamento da fase de investigação Ferreira e Pedroso (1997); Gomes (2005)

De acordo com a Tabela 4, nos estudos realizados em Portugal,


ficou evidente que apenas as características processuais e legais do
caso, as características organizacionais do sistema e as características
temporais do processo é que explicam a duração do tempo de pro-
cessamento e, por conseguinte, aumentam as chances de o caso ter
um tempo maior que o prescrito pelo CPP.
168 Travessias 2008

As informações sumarizadas nesta tabela são importantes


porque, no Brasil, todos os estudos sobre tempo de duração do
processo criminal fazem referência às pesquisas do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Assim, organizar
o resultado das pesquisas de acordo com a relação que cada tipo
de fator possui com o tempo de duração do processo auxiliar a
compreender as semelhanças e diferenças desta realidade no que
se refere ao tipo de fenômeno que aumenta as chances de o caso
incorrer em morosidade processual.
Por fim, cumpre destacar que os pesquisadores brasileiros se uti-
lizam não apenas da mesma metodologia para cálculo do tempo global
e do tempo parcial de processamento (tempo da fase de investigação e
tempo da fase judicial) como ainda utilizam as variáveis apontadas por
esses estudos como possíveis explicações para a morosidade no cenário
brasileiro. Neste sentido, cumpre agora apresentar os estudos realizados
sobre este tema no cenário nacional.

O Tempo do Sistema de Justiça


Criminal Brasileiro
Para compreender o tempo de processamento de um delito pelo
sistema de justiça criminal brasileiro, a primeira atividade a ser realizada
é a de calcular o prazo prescrito pelo Código de Processo Penal (CPP)
neste sentido. Isso porque ao contrário do que ocorre em Portugal, o CPP
brasileiro estabelece prazos diferenciados dependendo de quem possui com-
petência para a sua prática e ainda de acordo com a natureza do crime.
Nestes termos, a opção apresentada aqui foi a de transcrever o
tempo do processamento dos crimes dolosos contra a vida. Isso porque
esses são os casos que demandam um tempo mais longo para serem
julgados, em detrimento dos crimes comuns, os quais se encerram com
a publicação do resultado do julgamento (art. 592 – CPP).
De acordo com Mirabette (2001), o tempo previsto pelo CPP
para o processamento do delito de homicídio doloso é diferenciado
do tempo prescrito para processamento de outros crimes comuns
(como, por exemplo, o estupro), porque, no Brasil, os crimes dolosos
(intencionais) contra a vida não são julgados por um juiz singular,
mas, por um Tribunal composto de juízes leigos que através do de-
pósito de votos sim / não absolvem ou condenam o autor do fato
(tribunal do júri).
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 169

Assim, para cálculo de tais tempos, tal como sugerido por Adorno
e Izumino (2007), foram identificados todos os prazos estabelecidos no
Código de Processo Penal – CPP para processamento de um crime,
com destaque para: o tempo de duração dos inquéritos; intervalo entre
o inquérito e a denúncia; intervalo entre o oferecimento da denúncia
pelo promotor e o aceite desta pelo juiz; intervalo entre o aceite da
denúncia pelo juiz e o interrogatório do réu; duração da instrução cri-
minal; tempo gasto com as providências ordinárias do rito processual, tais
como oitiva de testemunhas, defesa prévia, alegações finais, pronúncia,
libelo e contra-libelo acusatório, e julgamento pelo tribunal do júri.
Ao final deste exercício, foi possível constatar que, para crimes
comuns, o tempo prescrito pelo Código de Processo Penal é de 129
dias para réu preso e 179 dias para réu solto. Importante salientar que,
de acordo com a classificação de Santos (1996) este é o prazo deno-
minado de morosidade legal para os crimes comuns, posto ser este o
tempo formalmente prescrito pelo Código de Processo Penal.
Já para os crimes dolosos contra a vida, o CPP prescreve como
tempo de duração legal, desde o registro do delito pela autoridade
policial até o primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri, o prazo de
310 dias (ou 10, 3 meses) para o caso de réu solto e 260 dias para o
caso de réu preso.
Considerando essas informações é possível afirmar que, no Brasil,
o tempo de processamento dos crimes dolosos contra a vida é 2,01
maior do que o tempo prescrito para o processamento dos crimes
comuns para os casos de réu preso e 1,73 vezes maior para os casos de
réu solto. Esses resultados apontam, por sua vez, para a expectativa de
um processo penal mais complexo, no caso de crimes dolosos contra a
vida em comparação com o processo de crimes comuns.
Esses resultados apontam ainda para diferenças no funcionamento
da justiça criminal brasileira e portuguesa no que se refere ao tempo
de processamento. Isso porque se em ambas há uma diferenciação de
tempos legais dependendo da situação jurídica do réu (preso ou solto),
apenas no Brasil há uma diferenciação de tempos legais de acordo com
a intencionalidade e o objeto do delito. Isso porque nesta localidade,
legalmente, os crimes dolosos contra a vida possuem um tempo maior
de processamento do que os crimes comuns.
Uma vez apresentadas as disposições legais relativas ao tempo
do processo criminal no Brasil, tem-se início a revisão das pesquisas
realizadas nesta localidade propriamente dita.
170 Travessias 2008

Adotando uma perspectiva histórica para a apresentação dos es-


tudos sobre o tempo de processamento da justiça criminal já realizados
no Brasil, é possível afirmar que o primeiro acerca da diferença entre
morosidade legal e morosidade necessária foi o intitulado “Continui-
dade Autoritária e Construção da Democracia”.
Esta pesquisa coordenada por Paulo Sérgio Pinheiro teve como
objetivo analisar os processos de linchamentos ocorridos no Brasil no
período compreendido entre os anos de 1980 a 1989. No que se refere
à metodologia utilizada tem-se que este trabalho baseou-se nas pes-
quisas desenvolvidas pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra e centrou-se na investigação do tempo de processamento
de casos de violação de direitos humanos.
A pesquisa identificou aproximadamente 3.519 casos de lin-
chamentos ocorridos em todo o território brasileiro no período
compreendido entre os anos de 1980 e 1989. Dado o volume e
a impossibilidade de analisar detidamente todo esse universo, foi
necessário realizar uma seleção dos casos a serem analisados em
profundidade. Para tanto, os critérios adotados foram os seguintes: a)
presença da opinião pública por intermédio da mídia; b) intervenção
do poder público por meio das agências policiais e judiciárias; e c)
participação da sociedade civil, organizada e não-organizada, seja em
virtude da identificação das comunidades onde os casos ocorreram,
seja em virtude da intervenção dos movimentos sociais no pedido
de justiça diante do caso.
O resultado desse trabalho foi a identificação de 162 casos, ocorri-
dos no eixo Rio–São Paulo. Destes, foi possível ter acesso aos inquéritos
e processos penais de 28 casos ocorridos no estado de São Paulo.A análise
desses 28 casos de linchamentos ocorridos em São Paulo permitiu veri-
ficar que a morosidade necessária é acentuada nos crimes que envolvem
a violação de direitos humanos, ultrapassando em vários números de dias
o tempo médio do processo dos crimes de homicídio doloso, que era, a
esta época, de um ano e meio no Município de São Paulo.
De forma geral, o tempo médio de processamento dos lincha-
mentos que tiveram lugar em São Paulo, no período compreendido
entre os anos de 1980 a 1989 pode ser vislumbrado na Tabela 5. A
análise desses dados demonstra que a média dos tempos de processa-
mento dos linchamentos era de 74,34 meses, tempo este 738% maior
que o estabelecido pelo Código de Processo Penal como necessário à
duração deste tipo de ação penal.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 171

Tabela 5 - Tempo médio de duração dos processos


de linchamentos no Estado de São Paulo
(APENAS casos que resultaram em condenação - Período de 1980 a 1989)

Tribunal Competente Tempo médio (meses)

Campinas 120,33
Lapa 101,41
Ribeirão Pires 100,34
Itapec. Serra 92,28
Carapicuíba 91,3
Mauá 68,48
Praça da Sé 61,11
Jardim Noronha 22,52
Osasco 11,29
Média das médias 74,34
Tempo do CPP 10,16

Fonte: Pinheiro et al (1999:785).

A segunda conclusão do estudo diz respeito aos fatores de


aumentam o tempo de processamento do delito, quais sejam: a)
requisições de laudos ausentes e complementares, b) solicitação de
informações a outros órgãos, c) mandatos de citação e intimação não
cumpridos. Ou seja, nos casos dos linchamentos ocorridos em São
Paulo no período de 1980 a 1989 e que receberam uma condenação
do judiciário até o ano de 1989, as causas para a extensão do prazo
prescrito do CPP são relacionadas a uma série de atividades que são
indispensáveis ao andamento do processo e que em razão do excesso
de formalismo demandam um longo tempo para serem cumpridas
(PINHEIRO et al, 1999).
O segundo estudo desenvolvido também nesta seara foi o reali-
zado por Izumino (1998), o qual coletou informações sobre casos de
violência contra a mulher registrados nas delegacias de mulheres de
São Paulo no ano de 1996. A autora utilizou esses casos para analisar a
intervenção judicial em conflitos de gênero que resultaram em desfecho
fatal para mulheres ou em lesões corporais. Os resultados de tal análise
denotaram que: a) 40,96% dos processos instaurados foram encerrados
entre doze e 24 meses, b) 21,69% dos processos se encerraram em menos
de doze meses; c) 21,69% dos processos se encerraram entre 24 e 36
meses, d) 8,43% dos processos se encerraram em 48 meses (8,43%), e;
e) 1,20% se encerraram em um tempo superior a 48 meses.
Portanto, de acordo com Izumino (1998), para casos de violência
doméstica nos quais há a morte da mulher pelo seu parceiro ou por
alguém da família, espera-se que o encerramento do processo criminal
172 Travessias 2008

que coloca a punição ou a absolvição do autor do fato ocorra em um


prazo médio de 12 a 24 meses, contados da data do delito.
No livro intitulado “Morosidade da justiça: causas e soluções”, o tempo
da justiça é analisado por diversos monografias de direito que foram or-
ganizadas por Svedas et al (2001) para a publicação em um único volume.
De acordo com os autores, a morosidade processual, apesar de ainda não se
constituir em foco dos estudos diretamente relacionados ao funcionamento
dos tribunais, deve ser melhor compreendida para que soluções pontuais
possam ser propostas para o tema. Nestes estudos o formalismo processual
é a maior causa da morosidade processual no Brasil.Tal fenômeno faz com
que muitos processos demorem entre 3 e 5 anos para chegar ao Supremo
Tribunal Federal na tentativa de se decidir quem é o juiz competente ou
se é adequado este ou aquele caminho procedimental.
No que diz respeito aos responsáveis, ou seja, a quem dá ensejo
a esta morosidade, tem-se que os funcionários dos cartórios são os que
mais contribuem para a extensão dos prazos processuais para além dos
limites previstos em lei. Isso porque, de acordo com o levantamento dos
autores, os juízes são responsáveis por 10% do tempo de uma ação, os
advogados por 20% da demora e o cartório (a burocracia) retém o pro-
cesso 70% do tempo total de processamento (SVEDAS et al: 2001).
Apesar de estes estudos terem despertado a atenção das ciências
sociais brasileira para a importância de se analisar o tempo de proces-
samento de uma demanda criminal, foi a partir do estudo de Vargas
(2004) que os estudos desta natureza se multiplicaram em termos de
escopo e metodologias de análise.
Vargas (2004) analisou todos os Boletins de Ocorrência de estupro2
registrados na cidade de Campinas, entre os anos de 1980 e 1996. Para
proceder à descrição do tempo despendido em cada uma das fases de
processamento, a autora utilizou informações sobre 446 registros iniciais
de estupro e seus desdobramentos. Os primeiros registros datam ano de
1988 e os últimos desdobramentos na justiça, datam o ano de 1999.
A análise estatística do tempo entre o registro da queixa e a sen-
tença neste caso, demonstrou que são fatores que influenciam o tempo
de processamento dos casos de estupro: a) Idade da vítima, já que réus
acusados de estupro de vítimas com até 14 anos de idade têm seus

(2) Importante destacar que a análise de Vargas (2004) se restringiu ao crime de estupro porque este delito possui
regras diferenciadas no que se refere ao tempo de processamento quando a vítima é menor de quatorze anos. Isso
porque, nesses casos, de acordo com o art. 224 do Código Penal há presunção de violência e, por conseguinte,
aumento do juízo de reprovação sobre este delito.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 173

processos tramitando quase quatro vezes mais rápido do que aqueles


com vítimas de 14 anos ou mais e b) prisão durante o processo, posto
que o fato de o réu ter sido preso durante o processo diminui em cinco
vezes o tempo do registro da queixa até a sentença.
Apesar da grande contribuição do trabalho deVargas (2004) para o en-
tendimento do tempo da Justiça Criminal, bem como dos fatores associados à
morosidade processual,sua análise restringiu-se a poucos casos,não permitindo
identificar padrões e regularidades e menos ainda fazer generalizações.
Em estudo publicado em 2005,Vargas, juntamente com Blavatsky
e Ribeiro, analisou o tempo de tramitação dos processos de homicí-
dio no estado de São Paulo a partir de duas bases de dados: a) a da
Fundação SEADE, que possuía as informações oficiais (da polícia e da
justiça) sobre o processamento de todos os casos de homicídio (simples
e dolosos) registrados no estado de São Paulo e cujo registro inicial
na polícia ocorreu entre os anos de 1991 e 1998, e; b) a resultante da
análise de todos os casos (93) de homicídio doloso cujo arquivamento
do processo ocorreu no ano de 2003 na cidade de Campinas.
Os resultados da análise da base de dados da Fundação SEADE
indicavam que, no Estado de São Paulo, no período compreendido entre
os anos de 1991 e 1998, um delito de homicídio doloso demorava, em
média, 2,69 anos (983 dias) para ser julgado pelos Tribunais. Já a análise
da base de dados construída a partir dos casos arquivados em Campinas
no ano de 2003 indicou que são variáveis que afetam o tempo compre-
endido entre o registro da ocorrência e a sentença final (Quadro 1).
Com a análise dessas duas bases de dados, as autoras puderam
constatar que as variáveis determinantes do tempo das três fases prin-
cipais do procedimento (inquérito policial, denúncia, processo judicial)
atuam seguindo a seguinte relação: para cada dia de acréscimo em cada
um destes tempos há o acrescimento de uma unidade na probabilidade
de se ter um processo mais moroso, ou seja, que demande mais tempo
do que o delimitado pelos códigos para percorrer todas as fases previstas
entre o registro da ocorrência e a sentença final do júri.
De acordo com as autoras, esta constatação aponta para o efeito
cumulativo dos atrasos dos processos, pois, o fato de uma fase demorar
mais do que o previsto, implica que as fases subseqüentes também de-
mandaram um tempo maior do que o prescrito para se encerrarem.
Os resultados sumarizados na Tabela 3 enfatizam ainda a cons-
tatação de Santos (1996: 442) acerca da morosidade nos tribunais
portugueses, qual seja: “a morosidade é tanto mais forte quanto mais
variadas, intensas e cumulativas forem as suas causas”.
174 Travessias 2008

Quadro 1 - Principais variáveis que explicam o tempo


de processamento do homicídio doloso
(Casos encerrados no ano de 2003 em Campinas – 93 no total)

Variável direção de causalidade com o tempo de processamento

Tipo de crime Crimes mais graves aumentam o tempo de processamento, pois, em regra,
contam com a presença de advogado particular a utilizar os recursos
processuais protelatórios que podem levar a materialização da prescrição.
Revelia do Réu Implica em aumento do tempo, dada a dificuldade dos funcionários
judiciais em se comunicarem com outros cartórios e delegacias de polícia
para, desta forma, encontrar o réu.
Problemas na fase policial A fase com maior tempo de duração é a do inquérito policial, dada a
dificuldade de obtenção de provas, de demora na realização de perícias e,
inclusive, de identificação do autor do delito
Adiamento do julgamento Em qualquer fase do processo, faz com que o tempo de processamento seja
aumentado A advogados particulares manejam este instituto neste sentido e
a ausência de defensores públicos faz com que ele termine por ocorrer
sucessivas vezes.
Dificuldade na localização Implica em aumento do tempo em razão da demora dos tribunais em
de testemunhas processarem as cartas precatórias
Prisão do indivíduo ao longo Fazem com que o tempo de processamento seja muito menor, pois, a
de todo o processo ou em maioria desses casos pede urgência dos tribunais.
algum momento do processo
Natureza da defesa Advogados particulares fazem com que o processo dure mais, ou para que
seu cliente seja beneficiado com a prescrição ou para que este alcance
uma pena menor.
Número de recursos O uso de recursos legalmente previstos visa atender aos interesses do
acusado da prática do delito de homicídio, dado que os atrasos no
processamento podem implicar em uma punição menor ou mesmo na
extinção do processo pelo decurso do tempo.

Fonte:Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

No ano de 2006, tem-se a publicação do trabalho intitulado “Flu-


xo do crime de homicídio no sistema de justiça criminal em Minas Gerais”, o
qual foi desenvolvido pela Fundação João Pinheiro sob a coordenação
de Eduardo Cerqueira Batitucci. Este trabalho analisou uma amostra de
processos de homicídios dolosos julgados por três diferentes comarcas
judiciais do estado de Minas Gerais no período compreendido entre
os anos de 1985 e 2003.
Os resultados indicaram que a maior parte do tempo de pro-
cessamento é referente ao encerramento do Inquérito Policial, o qual
demora, em média, 304 dias. Quando o Inquérito Policial, já termi-
nado, é devolvido, pelo Ministério Público, à Organização Policial
para a continuidade das investigações, o tempo médio ultrapassa 680
dias. Estes resultados evidenciam a falência do modelo investigativo
adotado pela Polícia Civil em Minas Gerais e sua incapacidade insti-
tucional de fazer frente às demandas dos casos de homicídio doloso
(BATITUCCI, CRUZ e SILVA, 2006).
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 175

Ainda neste ano, em dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de Santa Catarina, Ruschel (2006) analisou os casos de homi-
cídio doloso, julgados em primeiro grau no ano de 2004, na cidade
de Florianópolis. Com isso, o autor pôde constatar que: os réus foram
processados em um tempo médio de 784 dias, sendo que o menor
tempo foi de 303 dias e que o maior tempo foi de 2378 dias. Ou seja,
o tempo máximo foi 7 vezes maior que o tempo mínimo.
No que se refere aos elementos que podem dar ensejo à morosi-
dade constatados nesta pesquisa, tem-se que as cartas precatórias e os re-
cursos de habeas corpus, bem como outros pleitos ao Juiz, prolongaram a
duração do Processo Penal. Casos com recursos aos tribunais superiores
são os que demandam mais tempo, pois, para tanto são necessários de
1 a 9 meses, para a volta da resposta ao Fórum, acrescidos de mais dois
meses para agendamento de uma nova data para o Julgamento.
Análise recente, porém circunscrita ao tempo policial, ou seja, a fase
compreendida entre a data do fato e a data de encerramento do in-
quérito policial, é a coordenada por Ratton e Fernandes (2007). Este
trabalho analisou os casos de homicídio doloso que ocorreram na cidade
de Recife, nos anos de 2000 a 2004 e cuja autoria foi esclarecida.
Os resultados desta pesquisa apontam para o fato de que o tempo
médio da fase policial é de 86,55 dias para casos que envolvem apenas
um réu e de 150,29 para casos que envolvem mais de um réu. Consi-
derando que o tempo previsto para a duração desta fase é de 35 dias (se
o réu estiver preso) ou 65 dias (se o réu estiver solto) é possível afirmar
que os casos de homicídio doloso ocorridos em Recife sofrem de certa
morosidade para o encerramento do inquérito policial.
No ano de 2007, tem-se a publicação do trabalho de Adorno e
Izumino (2007), os quais analisaram a questão da morosidade no julga-
mento de crimes dolosos contra a vida. Para tanto, eles se basearam nas
informações relativas a dez casos de linchamentos, que tiveram lugar
em são Paulo, no período compreendido entre os anos de 1980 a 1989
e que integram a base de dados resultante da pesquisa “Continuidade
Autoritária e Construção da Democracia”.
Em um primeiro plano, os autores calcularam a morosidade legal
(aquela resultante da contabilização dos prazos previstos no Código
do Processo Penal) a qual estabelecia o dispêndio de 10,2 meses para
conclusão de todos os procedimentos judiciais e judiciários, desde o
registro da ocorrência policial até a sentença judicial transitada em
julgado para os casos de crimes dolosos contra a vida.
176 Travessias 2008

Em seguida, os autores mensuraram a morosidade necessária


nestes casos, qual seja, o tempo médio real para processamento de uma
causa de linchamento em São Paulo. Para tanto, eles utilizaram como
base os dados estatísticos relativos ao tempo de processamento destes
crimes que foram julgados pelo IV Tribunal do Júri do Fórum Regional
da Penha (município de São Paulo) no período compreendido entre
os anos de 1984 e 1988 (Tabela 6).

Tabela 6: Tempo Médio (em meses) de duração dos processos


de crimes dolosos contra a vida em São Paulo
APENAS casos julgados pelo IV Tribunal do Júri do Fórum Maria da Penha
(Cidade de São Paulo) Período de 1984 a 1988

Natureza da Sentença

Tempo médio Absolvição Condenação Desclassificação Total


de duração
N % N % N % N %

< 12 meses 26 37% 70 41% 20 37% 116 39%


12-24 meses 32 45% 73 42% 27 50% 132 44%
24-36 meses 9 13% 24 14% 7 13% 40 13%
36-48 meses 3 4% 2 1% - 5 2%
Sem informação 1 1% 3 2% - 4 1%
TOTAL 71 100% 172 100% 54 100% 297 100%

Fonte: Adorno e Izumino (2007: 148)

As conclusões desta pesquisa apontam para o fato de que a maioria


dos casos de linchamento julgados no Fórum da Penha no período
compreendido entre os anos de 1984 e 1988 demorou entre 12 e 24
meses para receber uma sentença de absolvição, condenação ou des-
classificação do delito.
Por fim, no ano de 2008, Ribeiro e Duarte (2008) analisaram
624 casos de homicídio doloso cujo processo foi iniciado e encerrado
nos Tribunais do Júri da cidade do Rio de Janeiro no período com-
preendido entre os anos de 2000 e 2007. A vantagem desta base de
dados diz respeito ao fato de ela ser uma cópia do sistema original de
movimentação processual do próprio tribunal de justiça. Ou seja, as
autoras trabalharam com os dados oficiais do sistema.
O estudo desta base de dados permitiu às autoras constatar que
para os casos de homicídio doloso, cujo processo foi distribuído e en-
cerrado em quaisquer dos tribunais do júri da capital entre os anos de
2000 e 2007, o tempo médio de processamento global (desde a data do
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 177

crime até a data da sentença) é de 707 (setecentos e sete dias) dias. Isso
significa que o sistema de justiça criminal da cidade do Rio de Janeiro
demorou, neste período, aproximadamente, 1,93 anos para decidir o
destino dos réus que praticaram este delito.
No que se refere aos fatores processuais capazes de explicar o
tempo de processamento (únicos disponíveis nesta base de dados) tem-se
que apenas as variáveis flagrante e condenação foram estatisticamente
significantes. De um lado, o flagrante atua como fator de redução da
morosidade necessária. Por outro lado, o fato de o caso se encerrar com
uma condenação atua como fator de extensão do tempo global de
processamento. Já as outras variáveis (homicídio qualificado, homicídio
praticado com concurso de agentes e presença de testemunhas) não
interferiram expressivamente no tempo de duração do processo.
Como a pesquisa de Ribeiro e Duarte (2008) foi a última pu-
blicada sobre este tema no Brasil é possível afirmar que, até o ano de
2008, todas as pesquisas realizadas sobre o tempo da justiça criminal
apontaram para a incapacidade deste em implementar os dispositivos
do Código de Processo Penal no que se refere ao tempo para proces-
samento do delito de homicídio doloso (foco da maioria das pesquisas
realizadas no Brasil) desde a ocorrência do delito até a sentença que
encerra o processo (Tabela 7).

Tabela 7: Sumarização do tempo médio de processamento


dos casos de homicídio doloso
(analisados pelas pesquisas brasileiras no período entre 1999 e 2007)

Tempo médio Diferença entre


de processamento o tempo médio
ANO (desde a data do fato do caso e o tempo
até a data da estabelecido pelo
condenação Código de Processo
(em dias) Penal(*)

1980-1989 2230 1920


1990-1998 983 673
1985-2003 911 601
2004 784 474

(*) Considerando-se o prazo de 310 dias para réus soltos, já que alguns dos dados coletados não fazem esta
diferenciação entre réu preso e réu solto.

No que se refere aos fatores capazes de explicar o tempo do pro-


cesso criminal de homicídio doloso, essas pesquisas apontaram como
variáveis que aumentam o tempo do processo: a) o fato de o crime ter
178 Travessias 2008

sido praticado na forma qualificada em detrimento da forma simples,


b) a excessiva burocratização dos procedimentos judiciais, c) a presença
de liberdade provisória durante o processo em detrimento da prisão em
flagrante, d) a existência de Cartas Precatórias, e) os problemas enfren-
tados durante a fase de investigação e f) os recursos para os tribunais
superiores (Tabela 8).
Tabela 8 - Sumário dos principais estudos realizados no Brasil
sobre as temáticas determinantes do tempo do processo criminal
(desde a década de 1990 até o ano de 2007)

Variáveis apontadas como causas


da morosidade processual Referências

CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

Casos de estupro com vítimas com idade


inferior a 14 anos são processados mais
rapidamente que vítimas com idade superior a 14 anos Vargas (2004)

CARACTERÍSTICAS PROCESSUAIS

Presença de advogado particular Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Ausência do acusado em quaisquer dos atos


do processo Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS

Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais Pinheiro et al (1999), Svedas et al (2001)

CARACTERÍSTICAS LEGAIS

Crimes qualificados (casos mais complexos) Izumino (1998), Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Julgamento do caso por um Juízo Especial (Júri) Código de Processo Penal (1941)

Liberdade provisória Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Pedido de perícia médica Pinheiro et al (1999)

Pedido de provas adicionais Pinheiro et al (1999)

Presença de advogado particular Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Presença de Cartas Precatórias Pinheiro et al (199), Ruschel (2006)

Recursos para os tribunais superiores Svedas et al (2001),Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005);


Ruschel (2006)

CARACTERÍSTICAS TEMPORAIS

Problemas no andamento da fase de investigação Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005); Batitucci,


Cruz e Silva (2006).

Esta tabela permite verificar ainda que os fatores que determinam


a extensão do tempo do processo para além do previsto pelo CPP em
Portugal aparecem também nas análises brasileiras como fatores que
aumentam o tempo de processamento do crime.
Contudo, não é possível afirmar que o tempo da justiça criminal
no Brasil e em Portugal é explicado pelos mesmos fatores em ambas
as localidades. Isso porque as pesquisas realizadas no Brasil partem das
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 179

conclusões alcançadas nas pesquisas portuguesas e, com isso, apenas


as variáveis que aparecem como relevantes para o tempo naquela
análise são, usualmente, testadas no cenário brasileiro. Esses resulta-
dos apontam, portanto, para o fato de que as variáveis selecionadas
nos estudos portugueses como relevantes para a análise do tempo
possuem impactos semelhantes no tempo global de processamento
em ambas as realidades analisadas.

Considerações Finais
A proposta deste artigo foi realizar uma revisão dos estudos
realizados sobre o tempo de processamento da justiça criminal em
Portugal e no Brasil. Para tanto, as pesquisas realizadas em cada
localidade foram sumarizadas com o objetivo de verificar: a) qual
a diferença entre o tempo prescrito pelas legislações (morosidade
legal) e o tempo despendido para o processamento de uma causa
criminal (morosidade necessária) em cada realidade; e b) quais são
os principais fatores que de acordo com esta revisão explicam o
tempo da justiça criminal em ambas localidades.
No que se refere ao primeiro objetivo, foi possível constatar
que, em cada país, as legislações sobre o tempo de duração do pro-
cesso criminal são distintas, em termos de: a) ano de publicação da
legislação, b) limite de tempo fixado; c) situação jurídica do réu e d)
natureza do delito (Tabela 9).

Tabela 9 - Diferenças e semelhanças entre as legislações sobre


o tempo da justiça criminal em Portugal e no Brasil.

País Nome do Ano da Prazo Máximo Há diferenças Há diferenças


diploma legal Legislação Estabelecido(*) de tempo de de tempo
acordo com a quanto a
situação jurídica natureza
do réu do crime?
(preso ou solto)?

Portugal Código de
Processo Penal
Português 1987 420 Sim Não

Brasil Código de
Processo Penal
Brasileiro 1941 310 Sim Sim

(*) Para cálculo do prazo máximo, usou-se como parâmetro o réu solto.
180 Travessias 2008

Analisando a Tabela 8, é possível verificar que a legislação bra-


sileira é a mais antiga sobre o assunto. No entanto, o prazo por ela
estabelecido é inferior ao previsto na Portuguesa. Considerando estes
fatores, é possível pontuar que talvez o tempo de processamento previsto
pelo CPP brasileiro necessite ser adaptado para um valor mais próximo
ao previsto pelo CPP português.
As razões para esta pontuação dizem respeito ao fato de que a
legislação portuguesa não apenas é mais recente que a brasileira (a
portuguesa foi publicada há 21 anos atrás, enquanto a brasileira foi
publicada há 67 anos atrás), mas, ainda ao fato de que, após esta altera-
ção, os tribunais portugueses passaram a respeitar mais o prazo previsto
pela legislação e, com isso, na atualidade, o tempo médio da justiça
criminal desta localidade é exatamente o previsto pelos códigos.
Um segundo ponto importante de ser destacado a partir da
Tabela 08 diz respeito ao fato de que os Códigos de Processo Penal,
brasileiros e portugueses, estabelecem limites temporais diferenciados
de acordo com a natureza jurídica do réu durante o processo: preso
ou solto. Isso ocorre porque, tanto no Brasil e em Portugal, caso esta
diferença não esteja inscrita no diploma legal, dificilmente ela poderá
ser aplicada na realidade cotidiana dos tribunais. Assim, para garantir
que os réus presos tenham um tratamento diferenciado pelas estruturas
burocráticas, esses diplomas legais trazem previsões expressas sobre
esses fatos em seu interior.
Por fim, tem-se que, no Brasil, existem regras diferenciadas de
acordo com a natureza do delito. Isso ocorre porque nesta realidade os
crimes dolosos contra a vida são de competência privativa do Tribunal
do Júri e, por isso, possuem um processamento diferenciado, mais longo
posto que bifásico (MIRABETTE, 2001).
Em Portugal esta diferenciação do tempo em razão do cri-
me ou do juízo competente não ocorre porque o júri pode ser
requerido pelo Ministério Público e o próprio acusado nos casos
de crimes contra a vida, violação de direitos internacional hu-
manitário e ainda nos casos em que a pena máxima seja superior
a oito anos de prisão (art. 13 do CPP Português). Nesse sentido,
como o julgamento pelo júri não se constitui em procedimento
ordinário previsto para o julgamento de determinados crimes, mas,
em procedimento extraordinário a ser requerido pelas partes, as
regras temporais aplicáveis a este são as mesmas que se regulam o
julgamento pelos tribunais comuns.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 181

Uma vez destacadas as conclusões relativas ao primeiro ob-


jetivo desta revisão bibliográfica, cumpre destacar a semelhança e a
diferença dos estudos no que se refere aos fatores que explicam o
tempo da justiça criminal no Brasil e em Portugal. Neste sentido, o
primeiro ponto a ser destacado diz respeito a metodologia empre-
gada em cada uma dessas análises.
Este ponto é importante porque, no Brasil, as bases de dados
que viabilizam o estudo dos determinantes do tempo da justiça cri-
minal são resultado da consulta individual a uma amostra de proces-
sos criminais encerrados em um dado período em dada localidade.
São exceções a esta regra os estudos realizados por Vargas, Blatasky e
Ribeiro (2007) e Ribeiro e Duarte (2008), pesquisas essas que utili-
zam o sistema oficial de informação de São Paulo e Rio de Janeiro
(respectivamente) para cálculo do tempo da justiça criminal e para a
análise dos determinantes deste.
Já em Portugal, os estudos realizados sobre esta temática uti-
lizam a base de dados do próprio sistema e, por isso, essas pesquisas,
ao invés de trabalharem com a amostra, trabalham com o universo
de todos os processos encerrados naquele período de tempo. A van-
tagem deste método em relação aos demais diz respeito ao fato de
ele permitir a produção de informações mais confiáveis não apenas
sobre o tempo da justiça criminal como também sobre os fatores
que influenciam este tempo.
Outra ressalva metodológica importante de ser realizada é o
fato de, no Brasil, a análise do tempo da justiça criminal não é re-
alizada de maneira geral, mas, de acordo com a natureza do crime.
Isso ocorre porque o Código de Processo Penal deste país estabe-
lece regras diferenciadas para o processamento do delito de acordo
com o natureza e a intencionalidade deste. Assim, crimes dolosos
contra a vida possuem, legalmente, um processamento mais longo
do que crimes comuns, merecendo portanto, uma análise distinta.
Contudo, em Portugal, os estudos não realizam estas distinções.
Neste caso, o que é analisado é o tempo global da justiça criminal,
pouco importando a natureza do delito.
Comparando os resultados encontrados em cada uma dessas
pesquisas, no que se refere aos fatores capazes de explicar o tempo de
duração do processo, foi possível constatar que, são variáveis que con-
tribuem para a extensão do tempo de duração de um caso criminal
em Portugal e no Brasil os sumarizados na Tabela 10.
182 Travessias 2008

Tabela 10
Sumário das variáveis apontadas pelas pesquisas como explicativas do
aumento do tempo de duração do processo penal em Portugal e Brasil
Variáveis apontadas como causas
da morosidade processual Portugal brasil

CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

Casos de estupro com vítimas com idade


inferior a 14 anos são processados mais
rapidamente que vítimas com idade superior a 14 anos X

CARACTERÍSTICAS PROCESSUAIS

Presença de advogado particular X X


Ausência do acusado em quaisquer dos atos
do processo X X
Não uso da justiça alternativa (dada a ausência deste
recurso ou de outros capazes de tornar a justiça mais rápida X
Ausência de pronunciamento do Ministério Público no prazo adequado X

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS

Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais X X


Ausência de órgãos específicos destinados a monitorar
o tempo dos tribunais X
Insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos humanos X
Aumento considerável de litígios X

CARACTERÍSTICAS LEGAIS

Crimes qualificados (casos mais complexos) X X


Julgamento do caso por um Juízo Especial X X
Liberdade provisória X X
Pedido de perícia médica X X
Pedido de provas adicionais X
Presença de Cartas Precatórias X
Recursos para os tribunais superiores X X

CARACTERÍSTICAS TEMPORAIS

Problemas no andamento da fase de investigação X X

A tabela 10 é interessante porque denota que, apesar de as pes-


quisas realizadas no Brasil terem como ponto de partida as pesquisas
realizadas em Portugal, algumas variáveis que explicam o tempo de
processamento em uma realidade não são as mesmas que explicam o
tempo de processamento em outra.
Entre as variáveis que parecem mais se adequar a esta constatação
tem-se que, no Brasil, o tempo da justiça criminal é aumentado pelo uso
de diversos instrumentos processuais que podem ser administrados pela
acusação e defesa no sentido de reunir um número maior de provas que per-
mitam a cada parte comprovar o seu argumento no curso do processo.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 183

As variáveis organizacionais, por sua vez, não podem ser colocadas


como fatores que não afetam o tempo da justiça criminal Brasileira
apesar de afetarem o tempo da justiça criminal portuguesa. Isso porque,
tais fatores ainda não foram incluídos nas análises nacionais sobre o tema
dada a dificuldade de coleta de informações neste sentido.
Portanto, o que a revisão dos estudos sobre o tempo de duração do
processo criminal denotam é o sistema de justiça criminal brasileiro, em
regra, desrespeita o prazo legalmente estabelecido para processamento
deste tipo de ocorrência ultrapassando-o para além de um mínimo
razoável. O sistema de justiça criminal português, por sua vez, opera
em uma perspectiva diferenciada já que, desde o ano de 2003, este vem
apresentando tempos médios de processamento criminal semelhantes
aos estabelecidos pelo código de processo penal.
Essas pesquisas denotam ainda que o tempo de processamento do de-
lito pelo sistema de justiça criminal tende a ser maior, em ambas as realidades,
quando o caso apresenta determinadas características, tais como: a) Ausência
do acusado em quaisquer dos atos do processo; b) Crimes qualificados (casos
mais complexos); c) Julgamento do caso por um Juízo Especial; d) Liber-
dade provisória; e) Pedido de perícia médica; f) Recursos para os tribunais
superiores e; g) Problemas no andamento da fase de investigação.
Esses fatores indicam que, quaisquer que sejam as sensibilidades jurí-
dicas em questão, os sistemas de justiça criminal operam sob a perspectiva
de morosidades seletivas, posto que o padrão de tempo é diferenciado, es-
pecialmente, de acordo com as características processuais e legais do caso.

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Governamentalidade e Anarqueologia

Y
Nildo Avelino
Núcleo de Sociabilidade Libertária / Pontifícia Universidade Católica - São Paulo

Resumo
O curso inédito intitulado Du gouvernement des vivants, proferido
por Michel Foucault no Collège de France em 1980, constitui um
momento importante nos estudos em governamentalidade. Em 1978,
no curso Sécurité, territoire, population, Foucault introduziu o problema
do governo e um primeiro deslocamento que levou da linguagem da
dominação para as artes de governar, marcando a operacionalização da
sua análise em termos de governamentalidade através de estudos sobre a
razão de Estado e o neo-liberalismo como tecnologias de governo. No
curso de 1980, retoma o estudo da governamentalidade no eixo verdade-
subjetividade, introduzindo um segundo deslocamento que leva do tema
Poder-Saber para o tema do governo dos homens pela verdade sob a
forma da subjetividade. A partir deste deslocamento, Foucault inaugura
uma postura intelectual que chamou de anarqueologia dos saberes. O artigo
aborda estes deslocamentos da analítica do poder de Foucault, situando
sua importância nos estudos em governamentalidade e as implicações que
uma anarqueologia do poder estabelece com o pensamento anarquista.
A abordagem comporta dois movimentos: o primeiro apreende a im-
portância que o deslocamento saber-poder/verdade-subjetividade ocupa
nas análises em governamentalidade; o segundo aborda o neologismo
anarqueologia como a descrição de uma história da força da verdade no
Ocidente pela análise dos diversos regimes de saber e suas conexões com
regimes jurídicos, penais, governamentais etc., propondo uma genealogia
das formas da obediência moderna.
Palavras-chave: Poder – Governamentalidade – Anarqueologia – Subjetivi-
dade –Verdade.
188 Travessias 2008

No curso inédito intitulado Du gouvernement des vivants1, pro-


ferido no Collège de France no ano de 1980, Michel Foucault operou
um deslocamento analítico que levou do tema poder-saber para o
tema subjetividade-verdade. Meu objetivo é abordar este deslocamen-
to procurando mostrar que ele não somente constitui um momento
importante para a análise que Foucault empreendeu em termos de go-
vernamentalidade, mas também mostrar de que modo ele implica uma
aproximação, talvez a mais direta e positiva de que se tem notícia, entre
Foucault e o pensamento anarquista dos séculos XIX e XX, através do
neologismo anarqueologia. A abordagem proposta comporta, portanto,
dois movimentos: um sobre a importância que o deslocamento saber-
poder/verdade-subjetividade ocupa na análise da governamentalidade,
e outro sobre o neologismo anarqueologia e algumas correlações pos-
síveis com a anarquia.

Da Guerra para o Governo


Segundo Daniel Defert (2001:57), é a partir de dezembro de
1972 que Foucault “empreende a análise das relações de poder a partir
da ‘mais indigna das guerras: nem Hobbes, nem Clausewitz, nem luta
de classes, mas a guerra civil.’” Data deste período o curso, por ele
proferido no Collège de France, em 1973, intitulado La société punitive, e
que inicialmente deveria chamar-se “La société disciplinaire” (Ibid.:58).
Nesta ocasião, Foucault toma na análise o domínio histórico das táticas
punitivas através das quais as diferentes sociedades estabeleceram contra
aqueles que infringiram suas leis, suas regras, o exercício de seu poder
etc. Propunha definir, a partir das diferentes táticas punitivas como o
banimento, a compensação, a marca, a clausura etc., quais relações de
poder eram efetivamente colocadas em funcionamento. As diferentes
táticas punitivas deveriam funcionar, portanto, como analisadores do
poder, e Foucault (1973:16) acrescentava que “se é verdade que o sistema
das táticas penais pode ser visto como analisador das relações de poder,
o elemento que será considerado central é o elemento da luta política
em torno do poder e contra ele; é todo o jogo dos conflitos, das lutas
que existem entre o poder tal como ele é exercido em uma sociedade
e os indivíduos ou grupos que buscam, de uma maneira ou de outra,
escapar desse poder, que o contestam localmente ou globalmente, que
contradizem suas ordens e suas regras. (...) É, portanto, a noção de

(1) Para excertos do curso ver Foucault, 2007.


Governamentalidade e Anarqueologia 189

‘guerra civil’ que deve ser colocada no coração de todas essas análises
das penalidades.” A guerra civil é tomada como matriz de todas as lutas
em torno do poder, a propósito do poder e contra ele, matriz para a
analítica do jogo entre uma luta permanente e as diversas táticas de
poder. “Com efeito, poder-se-ia mostrar que a guerra civil (...) habita,
atravessa, anima, investe o poder em toda parte. Encontram-se precisa-
mente os sinais disso sob a forma desta vigilância, desta ameaça, deste
monopólio da força armada, numa palavra, de todos os instrumentos
de coerção que o poder efetivamente estabelecido se dá para poder se
exercer. O exercício cotidiano do poder deve ser considerado como
uma guerra civil; exercer o poder é, de alguma maneira, conduzir a
guerra civil, e todos esses instrumentos, essas táticas de que falei, essas
alianças, devem ser analisados em termos de guerra civil. (...) o poder
não é o que suprime a guerra civil, mas é o que a conduz e a continua;
e, se é verdade que a guerra exterior é o prolongamento da política,
é preciso dizer, do mesmo modo, que a política é a continuação da
guerra civil.” (Ibid.:32-33)
Nestas passagens, Foucault (1999a:55) aparece claramente ligado
ao tipo de análise realizada na História da loucura que descreve o sur-
gimento na Europa de “uma categoria da ordem clássica” conhecida
como internamento, responsável por colocar 1% da população parisiense
no interior do Hospital Geral alguns anos apenas após sua fundação,
e que atingiria bruscamente “seu limiar de manifestação na segunda
metade do século XVII” sob a forma da exclusão pelo internamento
como fato maciço. Essa mesma categoria foi retomada na Ordem do
Discurso para descrever os procedimentos de exclusão e interdição que
durante séculos atravessaram a vontade de saber no Ocidente (FOU-
CAULT, 1999b:14). Entretanto, esta análise em termos de exclusão foi
em seguida considerada inadequada por Foucault. Após a aparição do
primeiro volume da História da Sexualidade, em uma entrevista de janei-
ro de 1977, Foucault (2001b:229) afirmou ter aceito, em seus escritos
anteriores, a concepção tradicional do poder como aquilo que dita a
lei, que interdita, que diz não. Uma concepção do poder que condizia
ao período clássico no qual “o poder se exerceu sobre a loucura, sem
dúvida, sob a forma maior da exclusão”, mas que se mostrava insuficien-
te para descrever o exercício do poder na atualidade. Esta declaração é
confirmada pela narrativa de Pasquale Pasquino (1993:79), segundo a
qual foi a partir da segunda metade dos anos 1970 que o discurso em
termos de guerra e dominação, utilizado por Foucault para descrever
as práticas disciplinares, havia provocado um impasse que “conduziu a
190 Travessias 2008

uma crítica extremista do poder – visto segundo um modelo repressivo


– pela esquerda (...). Uma análise fechada das disciplinas oposta às teses
marxistas da exploração econômica como princípio para compreender
os mecanismos do poder não era suficiente, e reclamou a investigação
de problemas globais de regulação e ordem da sociedade, bem como
as modalidades para a conceitualização deste problema. Daí a questão
do governo – termo que substituiu gradualmente a noção de ‘poder’,
considerada por Foucault como uma palavra muito ambígua.”
Percebe-se como é equivocado atribuir ao curso de 1976, inti-
tulado Em defesa da sociedade, a inversão do aforismo de Clausewitz e a
afirmação da política como guerra por outros meios. Ao contrário, o
curso de 1976 apresenta uma problematização da análise de 1973 que
tomou a guerra como analisador da política. Foucault (1999c:26) intro-
duz na sua analítica do poder o que ele chamou de hipótese Nietzsche
que consiste em considerar a guerra, a luta e o enfrentamento como
princípio e motor do poder político em nossas sociedades. Pergunta
se “o poder, pura e simplesmente, é uma guerra continuada por meios
que não as armas ou as batalhas? (...) Deve-se ou não entender que a
sociedade em sua estrutura política é organizada de maneira que alguns
possam se defender contra os outros, ou defender sua dominação con-
tra a revolta dos outros, ou simplesmente ainda, defender sua vitória e
perenizá-la na sujeição?” Hesita, entretanto, uma resposta afirmativa.
Propõe, ao contrário, um certo número de precauções de método. In-
siste, por exemplo, em não tomar a dominação que o poder pretende
perenizar como “fato maciço de ‘uma’ dominação global de uns sobre os
outros, ou de um grupo sobre o outro”, mas tomá-la como “múltiplas
formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade”.
A dominação não deve ser compreendida como “o rei em sua posição
central, mas os súditos em suas relações recíprocas”, ou compreendida
como “a soberania em seu edifício único”, mas como “as múltiplas
sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social”
(Ibid.:31-32). Existe, portanto, um claro desnível entre poder e domi-
nação, entre política e guerra. Está claro quando Foucault (1993:89)
pergunta, no primeiro volume da História da Sexualidade publicado
ainda 1976, se “seria preciso inverter a fórmula e dizer que a política é
a guerra prolongada por outros meios?” Responde que, ao contrário,
seria necessário distinguir guerra e política na medida em que esses dois
termos constituem efetivamente dois tipos de estratégias, diferentes uma
da outra, para a codificação das relações de força.“Trata-se, em suma, de
orientar, para uma concepção do poder que substitua o privilégio da
Governamentalidade e Anarqueologia 191

lei pelo ponto de vista objetivo, o privilégio da interdição pelo ponto


de vista da eficácia tática, o privilégio da soberania pela análise de um
campo múltiplo e móvel de correlações de força, onde se produzam
efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis, de dominação. O mo-
delo estratégico, ao invés do modelo do direito. E isso, não por escolha
especulativa ou preferência teórica; mas porque é efetivamente um dos
traços fundamentais das sociedades ocidentais o fato de as correlações de
força que, por muito tempo tinham encontrado sua principal forma de
expressão na guerra, em todas as formas de guerra, terem-se investido,
pouco a pouco, na ordem do poder político.” (Ibid.:97)
Assimilar guerra e política arriscava simplificar os mecanismos
complexos das relações de poder e reduzir todas as correlações de força
próprias das relações de poder às peripécias de uma guerra.“Parece-me
simplesmente que a pura afirmação de uma ‘luta’ não pode servir de
explicação primeira e última para a análise das relações de poder. Esse
tema da luta não se torna operatório a não ser que se estabeleça con-
cretamente, e a propósito de cada caso, quem está em luta, a propósito
do que, como se desenrola a luta, em qual lugar, com quais instrumentos
e segundo qual racionalidade.” (FOUCAULT, 2001b:206) O curso de
1976 teve por objetivo não de abandonar a concepção do poder em
termos de guerra, mas certamente interrogou seus pressupostos e as
conseqüências históricas da recorrência do modelo da guerra como
analisador das relações de poder. Decorre daí uma conseqüência im-
portante. Como notou Senellart (2004, p. 382), ao romper “com o dis-
curso da ‘batalha’ utilizado desde o começo dos anos 1970, o conceito
de ‘governo’ marca o primeiro deslocamento [glissement], acentuado
desde 1980, da analítica do poder à ética do sujeito”. O tema da po-
lítica como guerra por outros meios induzia pensar a lei em termos
de sobrevivência arcaica da soberania, as instituições jurídico-políticas
atravessadas por um modelo da guerra e a disciplina como um tipo
de proeminência longínqua da soberania na modernidade. Todavia, o
problema para Foucault era muito mais complexo.Ao invés de pensar a
política contendo velhos arcaísmos de tipo guerreiro, era preciso pensar
qual poderia ser o lugar da lei, da dominação disciplinar e da guerra no
interior das formas governamentais do presente.“Foucault empenhou-
se em considerar a maneira pela qual a arte de governar transformou
e reconstituiu os aparatos estatais jurídicos e administrativos do século
XX. (...) Nem a imagem da soberania, nem a linguagem da dominação
e da repressão, podem dar conta da emergência da autoridade gover-
namental e do lugar da lei e das instituições legais no seu interior.”
192 Travessias 2008

(DEAN, 1999:26) Foi para responder a essa necessidade da distinção


entre política e guerra, e para tornar operatório o tema da batalha na
política, que Foucault introduziu, a partir de 1978, no curso Sécurité,
territoire, population, a problemática do governo. É importante perceber
o que está em jogo nessa recusa em assimilar guerra e política. Pierre
Lascoumes (2004:169) sugeriu situá-la no contexto dos anos 1970, no
qual se demolia os grandes mitos liberadores, sobretudo do comunismo,
que sustentavam em relação ao Estado uma crítica globalizante.“Tirano
mascarado ou liberador potencial, a noção de Estado suscitou, desde o
século XVIII, muitas teorias unificadoras, frequentemente sob a forma
de utopias positivas (propondo a edificação de um modelo social) ou
críticas (denunciando um modelo de dominação).” É preciso situá-la
também no interior da própria postura intelectual de Michel Foucault:
a arqueologia no final dos anos 1960, a genealogia no começo dos anos
1970 e, finalmente, a anarqueologia no começo dos anos 1980. Longe
de supor a idéia de sucessão, esses três termos que, grosso modo, definem
a possibilidade de uma “metodologia” foucaultiana, complementam-se e
implicam-se um ao outro. Uma descrição arqueológica recusa a análise
em termos de ideologia e propõe uma abordagem do saber a partir
da materialidade do discurso, ou a partir do que Foucault chamou de
regularidades discursivas. “Regularidade (...) designa (...) o conjunto
das condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e
define sua existência. A regularidade (...) especifica um campo efetivo
de aparecimento.Todo enunciado é portador de uma certa regularidade
e não pode dela ser dissociado.” (FOUCAULT, 2002a:165) Ao recusar
a análise histórica global, geral, de uma época, de uma cultura, de uma
certa sociedade, de uma determinada consciência coletiva etc., a ar-
queologia tornou possível o procedimento genealógico, permitindo “a
constituição de um saber histórico das lutas”. Pareceu a Foucault que
para “fazer a história de certos tipos de discursos, portadores de saber,
era preciso levar em conta relações de poder que existem na socieda-
de onde esse discurso funciona.” (FOUCAULT, 2001a:1277) Assim, a
genealogia deveria restabelecer os diversos sistemas de assujeitamento,
o jogo fortuito das dominações, através de uma história efetiva que faria
emergir o acontecimento ou as relações de força que incessantemente se
invertem e se revertem no acaso da luta. No seu conhecido ensaio sobre
“Nieztsche, a genealogia, a história”, Foucault (Ibid.:1015) afirma que
“se interpretar é se apossar, pela violência ou astúcia, de um sistema de
regras que não possui em si nenhuma significação essencial, impondo-
lhe uma direção, dobrando-lhe a uma nova vontade, fazendo-lhe entrar
Governamentalidade e Anarqueologia 193

em um outro jogo e submetendo-lhe a outras regras, então o devir


da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser
precisamente sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos
metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como
emergências de interpretações diferentes.” O mundo, diz Foucault, é
uma miríade de acontecimentos intrincados. Compreende-se como, ao
tomar como prisma reflexivo esta história efetiva, não é mais possível a
definição do poder em termos de substância ou atributo. Ao contrário,
uma história efetiva descreve o exercício do poder como um “conjunto
de mecanismos e de procedimentos que têm por papel, função e tema,
mesmo sem êxito, precisamente o de assegurar o poder.” (FOUCAULT,
2004a:4) Uma teoria do poder que repousasse sobre a análise global
de uma sociedade, ou de suas transformações econômicas e estruturais,
seria certamente insuficiente. Nesse sentido, na sua análise do poder,
Foucault toma uma decisão teórico-metodológica que consiste em,
ao invés de partir de noções tais como soberania, povo, súditos, Esta-
do, sociedade civil etc., sua análise parte das práticas governamentais
tais como estão dadas, e tais como são refletidas e racionalizadas, para
compreender como essas noções tidas como universais pela análise
sociológica e histórica foram constituídas. “Parto da decisão, teórica e
metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os universais
não existam, nesse momento eu coloco essa questão à história e aos
historiadores: como podem escrever a história sem admitir a priori a
existência de qualquer coisa como o Estado, a sociedade, o soberano, os
súditos? (...) Não interrogar os universais utilizando-se como método
crítico a história, mas partir da decisão da inexistência dos universais
para perguntar qual história é possível.” (FOUCAULT, 2004b:5)
O que está em jogo no deslocamento operado por Foucault
que leva da linguagem da guerra para o governo, é precisamente a
operacionalização da sua análise em termos de governamentalidade.
O acontecimento que a genealogia faz emergir é menos da ordem da
batalha e do enfrentamento que das relações de força. Dizer que a go-
vernamentalidade é acontecimental2 é afirmar que a política é menos da
ordem do combate do que da ordem de uma estratégia. “O poder, no
fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários, ou
do engajamento de um em relação ao outro, do que da ordem do ‘go-
verno’. (...) Portanto, o modo de relação própria ao poder não deve ser

(2) Sobre a noção de acontecimento cf. Branco (2008).


194 Travessias 2008

procurado nem do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato


e do laço voluntário (que não são mais que seus instrumentos): mas do
lado desse modo de ação singular – nem guerreiro nem jurídico – que
é o governo.” (FOUCAULT, 2001b:1056) A partir disso, nem o modelo
rousseauniano, nem o modelo schmittiano, nem a teoria do contrato,
nem a teoria do partisan, servem para uma analítica do poder. Em um
manuscrito inédito, citado por Senellart (2004:408), Foucault definiu a
governamentalidade como “uma generalidade singular” que não possui
“outra realidade que a acontecimental, e cuja inteligibilidade não coloca
em funcionamento nada mais que uma lógica estratégica.”
Todavia, não é o bálsamo liberal das relações inócuas de governan-
ça. Se as relações de poder não assimilam-se a simples formas de guerra
e dominação, é porque é preciso configurá-las em termos de relações
agônicas, relações que são “ao mesmo tempo de incitação recíproca e
de luta, (...) de provocação permanente” (FOUCAULT, 2001b:1057),
e fazem com que essas duas estratégias, que são distintas uma da outra,
estejam também sempre “prontas a se transformarem uma na outra.”
(FOUCAULT, 1993:89) Como bem notou Mitchell Dean (2007:11),
em Foucault as relações de poder se tornam políticas “quando ultra-
passam um certo limiar de intensidade, e quando a luta não está apenas
no corte e na perfuração da palavra, mas sobre os meios pelos quais a
decisão para lutar pode ser forçosamente imposta, e quando os riscos
recaem sobre matérias de vida e de morte.” No tipo de sociedade como
a nossa, a intensidade deste agonismo encontra uma gravidade na ordem
do governo: é o governo, e a resistência que ele provoca, que torna
altamente politizável a ubiqüidade das relações de poder.
O deslocamento que leva da linguagem da guerra para o governo
marca, portanto, a operacionalização da análise em termos de governa-
mentalidade na medida em que analisar o poder em termos genealógicos
é descrever seu exercício a partir de uma história efetiva, das práticas
governamentais. As práticas de governo possuem basicamente duas di-
mensões. Uma dimensão que é tecnológica, através da qual o governo é
analisado como tecnologia, como “conjunto de pessoas, técnicas, insti-
tuições e instrumentos para a condução da conduta” (MILLER; ROSE,
2008:16) dos indivíduos; neste momento Foucault estuda, nos cursos de
1977-1979, a razão de Estado e o neo-liberalismo como tecnologias de
governo e como “instância da reflexão na prática de governar e sobre a
prática de governar.” (FOUCAULT, 2004b:4) A outra dimensão das práti-
cas de governo é “programática” e diz respeito aos diversos programas de
governo e às racionalidades governamentais; e neste momento, a análise
Governamentalidade e Anarqueologia 195

da governamentalidade é retomada, a partir do curso de 1980 Do governo


dos vivos, no eixo verdade-subjetividade que procura estudar o governo
dos homens pela verdade sob a forma da subjetividade, propondo uma
genealogia das formas da obediência moderna.

Verdade e Subjetividade
Neste novo eixo correlacionado à dimensão programática da
governamentalidade e às múltiplas racionalidades governamentais, o
problema para Foucault, tal como descrito no resumo do curso, é o
de saber “como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo
dos homens exigiu da parte desses que são dirigidos, além de atos de
obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de
que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas de dizer
a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do
estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos
homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a
manifestar, enunciando-o, aquilo que se é?” (FOUCAULT, 2001b:944)
Para responder a essa questão, Foucault introduziu a noção de regime
de verdade para compreender a maneira pela qual “a verdade está ligada
circularmente a sistemas de poder que a produzem e a sustentam, e
a efeitos de poder que ela induz e que a reconduzem.” (Ibid., p. 114)
Regimes de verdade não são jamais simplesmente ideológicos nem
superestruturais; em todo caso, constituíram uma das condições de
formação do capitalismo tal como se conhece hoje. Por regime de
verdade é preciso entender aquilo que constringe os indivíduos a
um certo número de atos de verdade. Atos de verdade são tomados a
partir da análise do conceito de exomologese do cristianismo primitivo,
que designa “um ato destinado a manifestar ao mesmo tempo uma
verdade e a adesão do sujeito a essa verdade. Fazer a exomologese de
sua crença não é simplesmente afirmar o que se crê, mas afirmar o
fato dessa crença; é fazer do ato de afirmação um objeto de afirmação
e, portanto, autenticá-lo seja em si mesmo, seja diante dos outros. A
exomologese é uma afirmação enfática cuja ênfase se aplica antes de
tudo sobre o fato de que o próprio sujeito liga-se a essa afirmação,
aceitando suas conseqüências.” (Ibid.:945) A exomologese foi indis-
pensável ao cristianismo, na medida em que é através dela que o cristão
aceita as verdades que lhe são reveladas e ensinadas, e estabelece com elas
uma relação de obrigação e de engajamento.“Obrigação de manter suas
crenças, de aceitar a autoridade que as autentica, de fazer eventualmente
196 Travessias 2008

profissão pública, de viver em conformidade com elas etc.” (Id.) Um


regime de verdade define-se por uma relação de obrigação e de en-
gajamento entre sujeito e verdade, pela junção entre a obrigação e o
engajamento dos indivíduos com os procedimentos de manifestação do
verdadeiro. Para Foucault, é tão plausível falar em regime de verdade,
quanto falar em regime político, em regime penal etc. Designa-se por
regime político “o conjunto dos procedimentos e das instituições pelos
quais os indivíduos encontram-se engajados de uma maneira mais ou
menos forçada, encontram-se constrangidos a obedecer decisões que
emanam de uma autoridade coletiva ou de uma unidade territorial
onde essa autoridade exerce um direito de soberania”. Do mesmo
modo, designa-se por regime penal “um conjunto de procedimentos
e instituições pelos quais os indivíduos estão engajados, determinados,
constrangidos a se submeterem à leis de validade geral. Então, nessas
condições, por que efetivamente não poder-se-ia falar de regimes de
verdade para designar o conjunto de procedimentos e instituições pe-
los quais os indivíduos são engajados e constrangidos a manifestar, em
certas condições e com certos efeitos, atos bem definidos de verdade?
Por que, enfim, não poder-se-ia falar de obrigações de verdade do
mesmo modo que existem constrangimentos políticos ou obrigações
jurídicas?” (FOUCAULT, 1980:fita V, lado A, 06/fev.) Ao transferir a
noção de regime político para o problema da verdade, Foucault afirma
a existência de obrigações de verdade destinadas a impor atos de crença,
de profissão de fé, de confissões, de convicções, de convencimentos, de
persuasões e de engajamentos.
Todavia, a noção de regime de verdade parece conduzir a um
impasse, na medida em que serviria unicamente para designar práticas
nas quais o verdadeiro está efetivamente ausente, como ocorre na exo-
mologese cristã. Ao se considerar que a coerção na exomologese cristã
é exercida pelo não-verdadeiro, pelo não-verificável, por aquilo que
não pode ser demonstrado, então a verdade não tem realmente poder
de obrigação e a coerção é necessária somente quando uma “verdade”,
tal como a ressurreição da carne, deve produzir seus efeitos de vínculo
e de obrigação. Assim, quando tratar-se efetivamente do verdadeiro, a
noção de regime de verdade seria insuficiente, tendo em vista que a
verdade, por si mesma, não tem necessidade de regimes de obrigação e
de sistemas de constrição que tenham por função torná-la verdadeira lhe
conferindo força de sujeição.A verdade, por ela mesma, não obriga ver-
dadeiramente.Assim, toda vez que se tratar verdadeiramente da verdade,
o sujeito da verdade não será constrangido por nenhuma obrigação a ser
Governamentalidade e Anarqueologia 197

o operador em uma manifestação de verdade. Simplesmente porque a


verdade basta, por si mesma, para fazer sua própria lei, e porque a força
de coerção da verdade está no verdadeiro em si mesmo.
Foi contra essa tese que Foucault procurou demonstrar a opera-
cionalidade da noção de regime de verdade e as possibilidades analíticas
que ela implica.A afirmação segundo a qual aquilo que obriga na verda-
de é o verdadeiro em si mesmo oculta e excluí da análise uma distinção
que é muito importante. Segundo Foucault, é preciso não confundir
duas coisas:“de um lado, o princípio segundo o qual o verdadeiro é um
index sui, quer dizer, entendido na significação propriamente espinosista
de que somente a verdade pode mostrar legitimamente o verdadeiro
ou, em todo caso, que apenas o jogo do verdadeiro e do falso pode de-
monstrar o que é a verdade. De outro lado, que o verdadeiro seja index
sui, não quer dizer, entretanto, que a verdade seja rex sui, que a verdade
seja lex sui, que a verdade seja judex sui. Ou seja, não é a verdade que é
detentora e criadora dos direitos que ela exerce sobre os homens, das
obrigações que esses têm a seu respeito e dos efeitos que eles esperam
dessas obrigações, uma vez que e na media em que se acoplam. Não
é a verdade que administra seu próprio império, que julga e sanciona
aqueles que a obedecem e desobedecem. Enfim, não é verdade que a
verdade não constringe a não ser pela verdade.” (Id.) Desta forma, não
é porque a verdade é o índice de si, verum index sui, não é porque a
verdade ateste por si mesma e, no ato de atestar, revela, derrota, suprime
o que lhe é oposto, que ela seja também, extensivamente, soberano de
si, legislador de si, juiz de si. Seja qual for o raciocínio, seja qual for a
evidência que o recubra, seja qual for sua intensidade demonstrativa e
a constância da sua proposição,“existe sempre e é preciso sempre supor
uma certa afirmação que não é da ordem da lógica, da constatação ou
da dedução; uma afirmação que não é da ordem do verdadeiro e do
falso, mas que é muito mais uma espécie de engajamento, de profissão
que consiste em dizer: é verdade, logo, eu me inclino” (Id.).
Este “logo” [donc], segundo Foucault, não pertence à lógica e
não repousa sobre nenhuma evidência, nem tampouco é unívoco. Ao
contrário, se apresenta como uma proposição um tanto enigmática e
um fenômeno de tipo histórico, muito mais do que uma conseqüência
inerente à lógica.“Nesse ‘logo’ que liga o ‘é verdade’ e o ‘eu me inclino’,
e que confere o direito à verdade de dizer: você é forçado a me aceitar
porque eu sou a verdade. Nesse ‘logo’, nesse ‘você é forçado, você é
constrangido, você deve se inclinar’, nesse ‘você deve’ da verdade existe
qualquer coisa que não pertence à verdade em si mesma. O ‘você deve’
198 Travessias 2008

em termos de verdade, imanente a manifestação da verdade, é um pro-


blema que a ciência por si mesma não pode justificar e dar conta. Esse
‘você deve’ é um problema histórico-cultural, creio, fundamental.” (Id.)
Foucault dá o seguinte exemplo. Imagine-se dois lógicos discutindo e
a maneira pela qual o raciocínio conduzirá uma certa proposição a um
ponto em que será reconhecida por ambos como verdadeira, ainda que
um deles no início da discussão tenha negado a verdade dessa propo-
sição. O lógico que, no início da discussão, nega a verdade da proposi-
ção, mas que ao final a reconhece, dirá, explícita ou implicitamente: é
verdade, logo, eu me inclino. Então, o que se passa? Segundo Foucault,
duas coisas bem distintas. De um lado, o que faz um dos lógicos dizer
“é verdade”, é simplesmente o fato de que a proposição é lógica: a
lógica escolhida, com suas regras, seus axiomas, sua gramática etc., foi
tal que a proposição aparece finalmente como verdadeira. Em outras
palavras, para que uma proposição seja verdadeira, basta, é suficiente
e é necessário que exista a lógica com suas regras de construção e de
sintaxes, seus símbolos, sua gramática etc. Assim, uma das proposições
é reconhecida como verdadeira não porque os dois debatedores são
lógicos, mas porque a proposição está em maior conformidade com a
lógica previamente adotada: “é a lógica, definida na sua estrutura par-
ticular, que vai assegurar o fato de que a proposição seja verdadeira.”
(Id.) Mas, de outro lado, algo muito distinto se dá quando se diz “é
verdade, logo, eu me inclino”: “esse ‘logo’ não pertence à lógica. Não
é a verdade da proposição que o constringe efetivamente, mas é pelo
fato dele ser lógico, ou melhor, é na medida em que ele faz lógica (não
é seu estatuto de lógico que faz com que ele se incline, ele poderia
não ser lógico de profissão e se inclinaria igualmente: é porque ele faz
lógica). Quer dizer, é porque ele se constituiu a si mesmo, ou porque
ele foi convidado a se constituir a si mesmo como operador em um
certo número de práticas, ou como parceiro em um certo numero de
jogos que, encontrando-se desse modo no jogo da lógica, o verdadeiro
será considerado como vinculativo, por ele mesmo e sem outra con-
sideração, como valor constringente.” (Id.)
A tradição filosófica do Ocidente tomou a conjunção cartesiana
‘logo’ colocada entre o “eu penso” e o “eu existo” como uma coisa te-
oricamente inatacável. Sem perceber, entretanto, que o logo cartesiano
ocultava um segundo logo implícito e que é, precisamente, aquele que
diz “é verdade, logo, eu me inclino”. Esse logo implícito pertence aos
regimes de verdade e não é redutível ao caráter intrínseco do verdadeiro,
mas, ao contrário, resulta da aceitação do regime de verdade pelo sujeito.
Governamentalidade e Anarqueologia 199

“Para que esse regime de verdade seja aceito é preciso que o sujeito
que pensa seja qualificado de uma certa maneira. Esse sujeito pode
perfeitamente ser submetido a todos os erros possíveis, a todas as ilusões
possíveis dos sentidos; pode até mesmo ser submetido a um raciocínio
imperfeito que o engana. Não obstante, existe uma condição para que
a máquina funcione e para que o ‘logo’ do ‘eu penso, logo, existo’ seja
um valor provável: é preciso que esteja vinculado a um sujeito que possa
dizer: ‘quando isso for verdadeiro, e evidentemente verdadeiro, eu me
inclinarei’. É necessário um sujeito que possa dizer:‘é evidente, logo, eu
me inclino’. É preciso um sujeito que não seja louco.” Daí a exclusão
da loucura como fato fundamental para a organização dos regimes de
verdade no Ocidente. Se não existe soberania em geometria, se para
a prática da geometria não é útil nem mesmo necessário que exista
uma visão principesca e soberana, tampouco “é preciso haver visões
da loucura na filosofia ou em qualquer outro sistema racional. Não é
preciso existir loucos, quer dizer, não é preciso existirem pessoas que
não aceitem o regime de verdade.” (Id.)
Nesse momento, Foucault introduz sua postura anarqueológica
que consiste em, ao invés de tomar a história da ciência para mostrar
como os regimes de saberes têm por função efetivamente coagir os
homens, mas fazendo-o de modo a reduzir neles suas presunções, des-
fazendo seus sonhos e fantasias, celebrando seus desejos ou desenrai-
zando suas representações. Ao contrário, uma história anarqueológica
consiste em negar, de saída, o direito de obrigação e a força de coerção
que o verdadeiro pretende sobre os homens. E para isso, é deslocada
a ação do “é verdadeiro” para a força que ele implica. “Uma história
deste tipo não seria consagrada ao verdadeiro na sua função, digamos,
de desenraizamento do falso e de rompimento com todos os laços que
o encerra, mas seria uma história consagrada à força do verdadeiro e à
ligação pela qual os homens se encerram, pouco a pouco, eles mesmos
na e para manifestação do verdadeiro.” (Id.) Na medida em que a força
de uma verdade não está no seu grau de racionalidade, trate-se ou não
dos atos de fé na exomologese cristã ou da certeza no cogito cartesiano,
uma analítica dos regimes de saberes ou, aquilo que Foucault chamou
de anarqueologia dos saberes e dos conhecimentos científicos e não
científicos, consiste não em “estudar de modo global as relações do poder
político e dos saberes e dos conhecimentos científicos” , mas “estudar
os regimes de verdade, quer dizer, o tipo de relação que vincula entre si
as manifestações de verdade e seus procedimentos, e os sujeitos que são
neles os operadores, as testemunhas e, eventualmente, os objetos.” (Id.)
200 Travessias 2008

O neologismo anarqueologia3 foi introduzido por Foucault para ensaiar


em que medida a anarquia e o anarquismo podem sustentar e fazerem
funcionar um discurso crítico contra o poder. A perspectiva anarque-
ológica integra, a partir dos anos 1980, um conjunto mais amplo de
pesquisas sobre a noção do “governo dos homens pela verdade” iniciada
por Foucault no seu curso ainda inédito Du gouvernement des vivants.
A anarquelogia tornou mais operatório o tema saber-poder ao
recusar ver na política simplesmente uma guerra por outros meios e ao
levar em consideração a multiplicidade dos regimes de verdade para afir-
mar que todos esses regimes comportam modos específicos de vincular
de maneira constringente a manifestação do verdadeiro e os sujeitos que
nela operam. O que está em jogo não é a história do verdadeiro, mas
uma história da força do verdadeiro, uma história do poder da verdade,
uma história da vontade de saber no Ocidente. “Como os homens, no
Ocidente, foram ligados ou conduzidos a se ligarem à manifestações
bem particulares de verdade, precisamente nas quais são eles mesmos
que devem ser manifestados em verdade? Como o homem ocidental foi
ligado à obrigação de manifestar em verdade isso que ele é? Como foi
ligado, de qualquer modo, a dois níveis e de dois modos: de um lado à
obrigação de verdade, e de outro, ao estatuto de objeto no interior desta
manifestação de verdade? Como foram eles ligados à obrigação de se
ligarem eles mesmos como objetos de saber?” (Id.) Foi essa espécie de
double bind que o método anarqueológico procurou analisar tornando
explícita a maneira pela qual os regimes de verdade estão, por sua vez,
sempre ligados a outros regimes: regimes políticos, regimes jurídicos,
regimes penais etc. Explicitar a não separação, mas, ao contrário, as co-
nexões sempre existentes entre o político e o epistemológico, permite
compreender como um regime penal é também um regime de verdades
sobre o criminoso, como um regime da loucura implica um regime
de verdades sobre o louco e, finalmente, como um regime de governo
implica ao mesmo tempo e necessariamente um regime de verdades
sobre os súditos, sobre os cidadãos, sobre os sujeitos do governo, seus
direitos e suas obrigações. Enfim, compreender como o sujeito não
se encontra apenas preso nas relações de produção, mas também nos
procedimentos de manifestação do verdadeiro, articulados em regimes
de verdade – que, por sua vez, articulam-se com vários outros regimes
– penais, jurídicos, governamentais etc. Foi a partir disso que o governo

(3) Landry (2007:31-45), escreveu seu artigo apoiando-se na transcrição integral do curso de Foucault, não obstante
não faz menção ao termo. No entanto, é citado como “anarcheology of power” em Szakolczai (1998: 247).
Governamentalidade e Anarqueologia 201

dos vivos exigiu, “além de atos de obediência e de submissão”, atos de


subjetivação da verdade manifestada nos procedimentos de veridição
através nos quais subjetividade e verdade foram indexados.

Genealogia da Obediência
A anarqueologia re-atualiza o que foi uma das grandes preocu-
pações na reflexão anarquista de Proudhon (1947:15) e que consiste
no questionamento: “do que procede, na sociedade humana, essa idéia
de autoridade, de poder; essa ficção de uma pessoa superior, chamada
Estado? Como se produz essa ficção? Como se desenvolve? Qual é
sua evolução, sua economia?” Para Proudhon, a filosofia é tão incapaz
de demonstrar o governo quanto de provar a existência de Deus, e a
autoridade política, tanto quanto a divindade religiosa, é matéria de fé.
Então, do que procede, na nossa sociedade, o fato de que os indivíduos
foram constrangidos, em seus discursos e em suas práticas, a declararem
para o poder, pelo poder e com o poder, não simplesmente “sim, eu
obedeço!”, mas foram igualmente constrangidos à acrescentarem a esse
ato de consentimento frágil esse outro ato de convicção que o reforça
e o consolida: “eu que obedeço: eis aquilo que sou, o que quero, o que
faço, o que penso”? (FOUCAULT;1980, loc. cit.) Do que procede esta
predisposição mental que fez, segundo Proudhon (1979:87), com que
“até nossos dias, as revoluções mais emancipadoras, e todas as eferves-
cências da liberdade, terminassem constantemente com um ato de fé
e de submissão ao poder”? Procede do fato, para Proudhon (Ibid.:245),
que o homem, envolvido por um “sistema teológico-político, recluso
nessa caixa hermeticamente fechada, da qual a religião é a tampa e o
governo o fundo, tomou os limites desse estreito horizonte pelos limites
da razão e da sociedade”. Procede, diz Foucault, destas práticas curiosas
encontradas na experiência cristã da carne, descritas por Jean Cassien,
padre do séc. IV, como procedimentos no qual o monge é admitido
no monastério e suas finalidades. Ambos remetem esta procedência
a um tipo de relação coercitiva entre verdade e subjetividade que é
historicamente localizável.
Vejamos. Segundo Cassien (1872:53 et seq.), quando se quer
entrar nas comunidades cenobitas é preciso passar por três momentos
sucessivos. Primeiramente, durante dez dias o noviço deve permane-
cer na porta do monastério onde ele será sistematicamente rejeitado
e desprezado por todos, ele será coberto de injúrias e de reprovações
pelos outros monges. Depois desses dez dias de estágio na humilhação,
202 Travessias 2008

na rejeição e na abjeção, se o noviço provou que pode resistir, ele é


aceito. Começa a segunda fase da sua preparação. Durante um ano ele
vai permanecer, não no monastério, mas na entrada do monastério, nos
cômodos reservados ao acolhimento dos estrangeiros e das pessoas de
passagem, ele é colocado lá sob a direção de um mais velho encarregado
dos serviços. Somente no fim deste um ano ele vai ser admitido no
monastério, mas ele é novamente confiado a um mais velho encarre-
gado de dez jovens noviços sobre os quais ele deve instituir e governar,
ou seja, deve assegurar a educação, a formação e o governo. Nestas três
fases: dez dias na porta do monastério, um ano na entrada do monas-
tério e, enfim, o período de tempo indeterminado durante o qual ele
fará parte de um grupo de dez noviços governados, nestas três fases
de preparação, diz Foucault, existe uma convergência de objetivo. Na
porta do monastério, ao seu pedido de ingresso, lhe é oposto a bufaria,
a humilhação, a recusa, a rejeição, práticas próximas da penitência que
têm por função constituir provas. O noviço deve mostrar sua capacidade
de suportar e deve mostrar sua vontade de entrar no monastério. É
provada sua paciência de receber as injúrias e sua capacidade de aceitar
tudo que se pode lhe impor, é provada sua submissão. Enfim, durante
o período indefinido sob a direção de um mestre, sua formação recai
essencialmente sobre dois pontos: o noviço deverá aprender a vencer
sua vontade e para isso o seu mestre deverá lhe dar ordens que serão
tanto quanto possível contrárias as suas inclinações. O mestre deverá ir
na contra-corrente das inclinações do noviço para que ele obedeça e
para que, nessa obediência, sua vontade seja vencida. Deve-se, portanto,
ensinar-lhe obedecer. Mas trata-se de uma obediência exaustiva e per-
feita, capaz de fazer o noviço percorrer pelo discurso todos os segredos
de sua alma; capaz de fazer com que os segredos da sua alma venham à
luz e que, neste emergir à luz, a obediência ao outro seja total, exaustiva
e perfeita. Obedecer tudo e nada esconder, tudo dizer de si mesmo
e nada esconder, nada querer por si mesmo e obedecer em tudo: é a
junção destes dois princípios que, segundo Foucault, está no coração
não somente da instituição monástica, mas de toda uma série de práticas
e de dispositivos que irão informar o que constitui a subjetividade no
Ocidente.A técnica para o estabelecimento desta obediência exaustiva,
total e perfeita, é a de dar ordens opostas as inclinações do noviço, ou
seja, é a obediência por ela mesma. Cassien insiste no fato de que o
mestre é frequentemente um monge inculto, sem erudição, um rústico,
e que a direção no monastério não implica uma qualificação precisa
do mestre. Ao contrário, ele pode aparecer perfeitamente como mau,
Governamentalidade e Anarqueologia 203

injusto, dando ordens as mais detestáveis. Porque o simples fato de


obedecer conferirá mérito a quem obedece e terá um efeito positivo.
Não é a qualidade da ordem, não é igualmente a qualidade de quem
ordena que dará valor a relação de obediência: é simplesmente o fato
de obedecer qualquer que seja a ordem. Cassien cita algumas ordens
absurdas como exemplos que demonstram o espírito e a sinceridade da
obediência. Havia um caso famoso do abade Jean, habitante de Lycon,
cidade de Thébaïde. Cassien ressalta sua “admirável obediência” com a
seguinte narrativa: “seu superior apanha na sua dispensa um pequeno
bastão talhado para instrumento de cozinha e que, não mais servindo,
estava não somente seco como quase apodrecido. Finca-o na terra
na presença de Jean e lhe ordena buscar água duas vezes por dia para
irrigá-lo, afim de que a umidade desenvolva nele raízes, que o verdeje,
que sua folhagem conforte os olhos e que sua sombra beneficie àqueles
que fossem ali repousar durante o calor do verão. O discípulo recebe
a ordem com o respeito ordinário, sem pensar na inutilidade da sua
obediência. Saía todos os dias à procura de água a mais de duas milhas
e jamais deixou de irrigar o bastão durante um ano inteiro; a doença,
as festas, as ocupações mais empenhativas que poderiam desobrigá-lo,
mesmo os rigores do inverno, não o impediram uma única vez de fazer
o que tinha sido ordenado. Seu velho mestre observava em silêncio a
assiduidade de seu discípulo e a maneira como obedecia com grande
simplicidade de coração e humildade sincera, sem nenhuma feição de
contrariedade no rosto, sem murmurar ou raciocinar, como se a ordem
tivesse vinda do céu”.Ao que Cassien (Ibid.:71-72) acrescenta,“o jovem
religioso, formado em uma semelhante escola, fez tamanhos progressos
nessa virtude e brilhou de tal maneira por sua humildade, que sua re-
putação se espalhou como bom odor por todos os monastérios.”4
Portanto, é a obediência por ela mesma que produz a obediência
total e exaustiva. Como notou Foucault, não se trata de uma obediência
que se obedece por um objetivo colocado no exterior da relação de
obediência. Obedece-se para poder se tornar obediente, para produzir
um estado de obediência permanente e definitivo que seja capaz de
durar mesmo quando não há ninguém a quem se deva obedecer ou
mesmo antes que alguém formule uma ordem. Estado de obediência
significa, portanto, que a obediência não é uma maneira de reagir a
uma ordem, que a obediência não é somente uma resposta a um outro,

(4) Cf. o mesmo exemplo citado em Foucault (2004a:179-180).


204 Travessias 2008

mas que a obediência é e deve ser uma maneira de ser, uma maneira de
ser anterior a qualquer ordem e que é mais fundamental que qualquer
situação de comando. Consequentemente, o estado de obediência
antecipa, de alguma maneira, as relações com o outro, e antes mesmo
que esse outro esteja presente e que ordene, já se estará em estado
de obediência. Na direção entre noviço e mestre, a obediência não é
uma passagem na vida. Não existe uma parte da vida durante a qual se
obedece e depois uma outra parte durante a qual não mais se obede-
ce: a obediência não é uma passagem, mas um estado no qual se deve
permanecer até o fim da vida e sob o olhar de quem quer que seja. Por
essa razão Cassien caracterizou o que ele chamou de submissão como
o fato de ser sujeito. O mundo do monge deve ser uma trama na qual
cada um dos seus feitos e dos seus gestos devem ser inscritos como
respostas a uma ordem ou como respostas a uma permissão.
Foi sobretudo através do domínio da sexualidade que Foucault
demonstrou a força da verdade na problemática do governo de si e
do governo dos outros. É com relação ao sexo que governo e verdade
aparecem constantemente problematizados na experiência do Ociden-
te, na medida em que não foi possível governar o sexo pela força ou
pela violência, mas foi necessário governá-lo, dominá-lo ou limitá-lo
através de uma relação com a verdade. No curso Subjectivité et Vérité,
de 1981, Foucault afirma que a propósito da loucura, da doença e do
crime, os tipos de práticas implicando a existência e o desenvolvimento
de discursos verdadeiros sobre a razão alienada, sobre o corpo doente
e sobre o caráter criminoso, estabeleceram uma relação fundamental-
mente negativa e de rejeição na qual a questão da verdade da loucura,
da doença e do crime, foi colocada unicamente a partir dessa rejeição
e dessa recusa. Com a sexualidade o problema é diferente. Qualquer
que seja o sistema de regulação, o sistema de desqualificação, o sistema
de repressão ou de rejeição no qual a sexualidade foi exposta, ela não é
jamais o objeto de rejeição sistemática, fundamental e constante. Mas,
ela é objeto de um jogo sempre complexo de recusa e de aceitação, de
valorização e de desvalorização. Além disso, nos domínios da loucura,
da doença, do crime, o essencial do discurso verdadeiro é tido como
vindo do exterior sobre o sujeito, por um outro: é na medida em que
não se é louco, é na medida em que o médico não é doente, é na me-
dida em que aquele que fala do crime não é criminoso, é deste modo
que um discurso verdadeiro pôde ser mantido sobre a loucura, sobre
a doença e sobre o crime. Já o discurso verdadeiro sobre a sexualidade
foi institucionalizado, diz Foucault (1981:fita I, lado B, 07/jan.), em
Governamentalidade e Anarqueologia 205

grande parte, como discurso obrigatório do sujeito sobre ele mesmo:


“foi sobretudo a partir de práticas de confissão que o discurso verdadeiro
sobre a sexualidade se organizou. Práticas de confissão sobre uma parte
de si mesmo que pode ser certamente detestada e que pode ser objeto
de purificação, mas que é indissociável disso que se é”.
Então, a partir destes domínios da loucura, da doença e do crime,
e em relação à problemática do governo pela verdade, a questão que
é preciso colocar, segundo Foucault, é a de saber qual experiência é
possível fazer de si mesmo e dos outros no momento em que existe
alguém que tem o direito ou o poder de dizer: “ele é louco, vocês
são doentes, aquele é criminoso”. No domínio da sexualidade, o
problema que se coloca é outro: qual experiência é possível fazer de
si mesmo, ou qual é o tipo de subjetividade que está ligada ao fato
de que se está sempre na possibilidade e no direito de dizer: “sim, é
verdade: eu desejo!” (Id.) Foi nesse momento em que o indivíduo
foi chamado a manifestar e a se reconhecer no seu próprio discurso
como sendo ele mesmo um sujeito de desejo, que pela primeira vez
na história do Ocidente foi colocada a necessidade de uma relação
de obediência total, perfeita e exaustiva.
Segundo Foucault, quaisquer que tenham sido as formas que
puderam tomar, esta obrigação de dizer o verdadeiro sobre si mes-
mo, e de se reconhecer nesta verdade, jamais cessou nas sociedades
ocidentais: nós somos obrigados a falar de nós mesmos para dizer a
verdade. Nessa obrigação de falar de si, o discurso de verdade consti-
tuiu uma das grandes linhas de força na organização da subjetividade:
ele é solicitado e incitado por todo um sistema institucional, cultu-
ral, religioso e social. Se na tragédia de Sófocles, diz Foucault, para
conhecer a verdade sobre si mesmo, Édipo teve que extorqui-la do
alto do seu poder, da boca de um escravo, nós, em nossa atualidade,
para sermos obrigados a dizer a verdade sobre nós mesmos, não
temos necessidade de ser rei e nem de interrogar qualquer escravo:
basta simplesmente nos interrogar no interior de uma estrutura de
obediência sob o olhar de alguém. Essa verdade que trazemos no
fundo de nós mesmos e que foi acoplada profundamente no segredo
de nós mesmos, somos indefinidamente constrangidos a mostrá-la
a um outro. Se isso ocorre é por que esta fixação em discurso da
verdade do que somos não constituiu simplesmente uma obrigação
essencial, mas foi também uma das formas primeiras, e continua
sendo uma das formas fundamentais, da nossa própria obediência
(FOUCAULT:1980, fita XII, lado B, 26/mar.).
206 Travessias 2008

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Sociologia de Cobras e Latão:
Reflexões sobre a Produção de Conhecimento
das Sociedades Africanas

Y
João Feijó
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

“se não escrevermos sobre ornamentos de latão ou cobras,


não acreditam que estamos a escrever sobre África”
Wole Soyinka1

Resumo
Na produção de conhecimento sobre as sociedades africanas
são utilizados uma série de conceitos que têm carecido de uma devida
problematização. De facto, vulgarizam-se expressões como africanismo,
africanidade ou afrocentrismo, conceitos que são descontextualizados de
inúmeros factores que condicionam a produção de conhecimento, entre
os quais os interesses económicos e as agendas de investigação, questões
políticas e nacionalistas, ou simplesmente os processos de competição
pelo acesso a recursos de poder. O texto em questão pretende analisar
uma série de pressupostos e condições sociais de investigação que es-
truturam a produção de conhecimentos sobre as sociedades africanas.
Trata-se de entender a ciência como um processo de construção social
e de valorizar o processo de auto-reflexão por parte dos actores que
produzem o conhecimento.

Palavras-chave: Epistemologia – Afrocentrismo – Estudos Africanos.

(1) Escritor nigeriano, entrevistado por Nelson Saúte e Pedro Rosa Mendes, in Público (1849), 1 de Abril de
1995, p.29 (cf. SERRA, 1997: 141).
210 Travessias 2008

Quando falamos em estudos africanos, normalmente estamos a


referir-nos não apenas a uma disciplina, mas a todo um leque de dis-
ciplinas cujo objecto de estudo é África. Entre estas incluem-se disci-
plinas como a história africana, a antropologia e a sociologia africanas,
a linguística africana, a política africana ou a filosofia africana, entre
outras. Na produção de conhecimento sobre o continente africano são
utilizadas expressões como africanismo ou africanista, africanidade e
afrocentrismo muitas vezes carecendo da merecida problematização. Os
conceitos pressupõem a existência de uma especificidade sócio-cultural
africana, merecedora por isso de uma preocupação especial ao nível da
produção de conhecimento.A utilização destes conceitos, por referência
à análise de um objecto marcado por fortes tensões sociais (como é o
continente e as sociedades africanas), merece uma reflexão mais cuidada
dos pressupostos que estão por detrás da sua utilização.

1. Do Estudo à Defesa do Continente


Africano – Africanismo e Africanistas
O termo africanista é frequentemente utilizado no senso co-
mum ou até na literatura científica. Para Alain Ricard (2004: 178),
o africanista constitui aquele que estuda ou que fala as línguas de
África, ou que é especialista em línguas e civilizações africanas. O
dicionário da língua portuguesa da Porto Editora alarga a definição
de africanista à “pessoa que tem negócios na África ou vive lá há muitos
anos”. Da mesma forma, o conceito de africanismo comporta em
si fortes ligações com o continente africano. A partir da definição
de africanismo nos dicionários de língua francesa e inglesa, Benoîte
de L’Estoile (1997: 19) constata a existência de duas perspectivas
distintas sobre o conceito. Assim, no Grand Robert de la langue fran-
çaise [2º éd., 1985], o termo africanisme reporta aos “écrivains latins
nés en Afrique” ou ao conjunto das ciências humanas aplicadas ao
estudo de África. Na definição francesa, o africanismo representa
um reagrupamento de disciplinas que encontram a sua coerência na
referência a um objecto geograficamente definido (ESTOILE, 1997:
19). Já no Oxford English Dictionary [2nd ed, 1989], o termo africanism
refere-se a um idioma ou a um modo de falar próprio de África; ou
às qualidades e características africanas. Na definição anglo-saxónica,
o conceito pode também remeter para um nacionalismo africano,
nomeadamente para uma “policy which advogates that the indigenous
inhabitants should have political control in África”.
Sociologia de Cobras e Latão 211

Desta forma, enquanto que a versão francesa faz referência ao


estudo e ao conhecimento de algo que é supostamente específico e
diferente – o que confere ao conceito uma dimensão exótica –, na
versão inglesa não é evocado o conhecimento de África. Para Estoile
(1997: 19), esta diferença conceptual traduz duas formas distintas de
percepcionar o saber: em Inglaterra encontram-se especialistas sobre
África que se podem (auto)-denominar de africanistas, mas desse afri-
canismo não se desenvolveu um domínio específico do saber.
Alain Ricard (2004: 178-179) enuncia o esforço de um conjunto
de africanistas, geralmente missionários da primeira metade do século
XX, cujas intervenções no terreno estiveram inseparadas da defesa das
civilizações e das culturas africanas2. Trata-se de trabalhos que contri-
buíram para o desenvolvimento de diversos domínios científicos, entre
os quais a etnologia, a antropologia (linguística) ou a geografia. Não
obstante os esforços realizados, estas áreas científicas não deixaram de
ser instrumentalizadas para fins coloniais (LECLERC, 1972; COPANS,
1975). A sistematização do conhecimento das sociedades africanas
era muitas vezes financiada pelas administrações coloniais, visando o
controlo das relações sociais e a manipulação das populações africanas,
de acordo com os interesses dos europeus3. A regulação ou a obriga-
toriedade do trabalho africano, sob tutela das administrações coloniais,
baseava-se na ideia de que os africanos eram fundamentalmente dife-
rentes dos europeus e, consequentemente, necessitavam de instituições
políticas e sociais específicas (MACAMO, 2000: 15). Esta associação da
antropologia como saber do colono, e até como arma do colonialismo,
frequentemente veiculada na literatura africana, peca por confundir em
excesso a disciplina com as práticas coloniais, ou com o oportunismo
de alguns antropólogos. As leituras das ciências decorrentes deste novo
paradigma, contestatário e também ele ideológico, não conferem des-
taque ao contributo da antropologia ao nível do relativismo cultural4

(2) Alain Ricard (2004: 178-179) exalta o exemplo de Dietrich Westermann (1875-1956), missionário no Togo
(1900-1905), na época uma colónia alemã, que aprendeu as línguas locais, realizou uma gramática e um dicionário,
incitando à escrita nesses idiomas. Abrindo caminho à antropologia linguística, tratou-se de uma abordagem que
conferiu particular importância à tradução e alfabetização, proporcionando o reconhecimento e desenvolvimento
de comunidades (e das culturas) africanas.
(3) As sociedades de geografia conferiram fortes impulsos à produção de conhecimentos, mas colocaram a ciência
ao serviço de interesses políticos e nacionalistas, de forma a legitimarem o direito dos diversos países europeus
à administração das colónias africanas. Este processo de colocação da ciência ao serviço da política não deixou
de se prolongar pelo período pós-independência, desta vez ao serviço dos interesses das novas elites dirigentes
africanas ou das novas agendas de desenvolvimento.
(4) Melville Herskovits (1895-1963), fundador do primeiro programa interdisciplinar de estudos africanos nos Estados
Unidos, constitui uma das figuras de referência da antropologia moderna. Na linha de Franz Boas, em Man and His
Works Herskovits (1952) sustenta que as crenças e as actividades Humanas devem ser compreendidas no contexto
212 Travessias 2008

(HERSKOVITS, 1952), da desmistificação do conceito de raça ou da


valorização da cultura do Outro (LEVI-STRAUSS, 1995).
Num contexto de crítica aos regimes coloniais e estreitamen-
te associados a processos nacionalistas e independentistas, a partir da
década de 1960 realizaram-se os primeiros congressos internacionais,
promovidos pelos africanistas de origem africana5. Trataram-se de po-
sições militantes e fortemente politizadas, que procuravam salientar o
contributo africano no Mundo e combater os estigmas e os preconceitos
sobre as populações de origem africana. Num contexto marcado por
elevadas assimetrias sócio-económicas é inevitável que o conceito de
africanista tenha desenvolvido uma dimensão racialista (RICARD, 2004:
178). Como se verá, explicar as diferenças sociais a partir de supostas
diferenças biológicas pode constituir uma estratégia, num contexto de
luta pela posse de recursos de poder. Ao serviço de poderes coloniais
ou de movimentos independentistas, de interesses europeus ou africa-
nos, um facto é que as investigações dos africanistas (na sua concepção
francófona) se estruturaram em torno de representações do Mundo
e de projectos políticos muitas vezes incompatíveis. É neste contexto
de competição que Hountondji (2008: 154) estabelece uma distinção,
no campo da filosofia, entre africanistas (no sentido de estudiosos de
África) e africanos. Para o filósofo do Benim, muitos dos pensadores
ocidentais que escrevem profusamente sobre os sistemas de pensamento
africanos deixam de poder ser vistos como pertencentes a uma filosofia
africana. Por sua vez, as obras dos seus pares africanos passam a fazer
parte de uma escrita africana, neste caso sobre a etnofilosofia e, por
conseguinte, parte de uma literatura filosófica africana. Esta constitui-
ção de um saber autóctone não deixa de traduzir um nacionalismo
cultural (HOWE, 1998: 1) levantando uma série de questões sobre os
critérios que estão subjacentes a essa conceptualização6 .A identificação
de uma filosofia africana com a bibliografia ou a literatura filosófica

da cultura que lhes dá origem. Incrementando o princípio da subjectividade, à luz do relativismo cultural as
culturas não podem ser avaliadas por um único critério de racionalidade, mas de acordo com o contexto em
que se inserem. Neste novo paradigma está implícito a crítica ao etnocentrismo e a uma suposta superioridade
Ocidental, sublinhando-se a dignidade inerente a cada corpo de costumes e a necessidade de tolerância e de
respeito entre as diversas culturas.
(5) Sibeud e Piriou (1997: 14) destacam os congressos de 1962 em Accra, capital do primeiro país africano a
tornar-se independente; de 1967 em Dakar, capital da “negritude”; de 1973 em Addis-Abeba, capital do único país
do continente a ter escapado à colonização; ou de 1978 em Kinshasa, capital de “l’authenticité africaine”.
(6) Sobre a definição do conceito de africano poderiam ser colocadas uma série de questões relacionadas com a
territorialidade – o africano constitui unicamente aquele que nasceu em África ou abrange os que nasceram na
diáspora? Os imigrantes europeus que residem em África podem ser considerados africanos? – ou da hereditar-
iedade – o saber dos africanos de descendência europeia pode ser considerado africano?
Sociologia de Cobras e Latão 213

produzida por africanos não pode ignorar a existência de contradições,


de debates internos e de tensões intelectuais, no panorama científico
e académico africano.

2. Cobras e Ornamentos de Latão


– a Construção Social da Africanidade
Enquanto que o africanismo, pelo menos na sua interpretação
francesa, se relaciona com o estudo de África ou da cultura africana,
o conceito de africanidade (ou africanity) é utilizado para exprimir os
costumes e as tradições das populações oriundas de África, residindo
no continente ou na diáspora (ASANTE, 2001: 80). À luz desta con-
cepção, a africanidade reporta à manifestação ou à detenção de uma
cultura africana.
No processo de procura dos traços característicos e específicos
das populações do continente, a africanidade não deixa de ser associada
ao conceito de negritude . Emblematicamente, Senghor (1964: 102)
afirmava: “l’émotion est nègre comme la raison est hellène”8. Nesta visão
essencialista da cultura, os conceitos de negritude e de africanidade não
deixam de ser construídos na oposição a um Outro não africano ou na
negação de uma posição subalterna, adquirindo um carácter político e
pan-africanista9. De facto, após a segunda guerra mundial10, enraízam-se
e desenvolvem-se centenas de textos (políticos e literários) a partir dos

(7) A negritude constitui um conceito de origem francófona, desenvolvido por indivíduos de descendência
africana, nascidos nas ex-colónias francesas (como Léopold Senghor do Senegal, Léon Damas da Guiana francesa
ou Aimée Césaire da Martinica). Estes intelectuais criaram um movimento cujo objectivo se orientava para a
união de todos os “negros”, de forma a combater a discriminação a que eram submetidos e a revalorizar o seu
papel político e sócio-cultural.A negritude constituía uma reacção ao processo de assimilação cultural do período
colonial e traduzia um conjunto de traços que se defendia serem característicos do “negro”, como a solidariedade,
a capacidade de emoção ou a importância conferida ao simbólico e ao sagrado. Defensora da ideia de que a cor
da pele deflagra uma identidade comum, esta ideologia foi criticada pelo facto de veicular um essencialismo
africano, imaginado por uma elite intelectual, alheia à heterogeneidade das populações do continente.A negritude
constitui, por isso, não só uma reacção como uma extensão das ideologias racistas coloniais.
(8) Senghor exprime uma diferença fundamental entre europeus e africanos a partir da oposição destes dois
conceitos. No vocabulário de Senghor, a emoção aparece como a antítese da razão, que traduz, por sua vez, o
materialismo e um instinto de dominação europeu.
(9) Foi precisamente em torno do prefixo “pan”, nomeadamente do objectivo de abarcar todo o continente e de
promover a unidade e a solidariedade entre os Estados africanos, que se constituiu, em 1963, a Organização da
Unidade Africana (OUA). Para além desses objectivos, a OUA pretendia defender a soberania e a independência
dos Estados africanos, bem como erradicar todas as formas de colonialismo no continente.
(10) William Du Bois constituiu um dos grandes precursores da africanidade, ainda em finais do século XIX. Por
essa altura, as ciências sociais encontravam-se marcadas por pressupostos etnocêntricos, registando por isso uma
desvalorização das culturas africanas. No norte dos Estados Unidos, as comunidades de descendência africana
– The Philadelphia Negro (1899) – apresentavam-se segregadas em termos sociais e económicos. O trabalho de
Du Bois foi por isso profundamente político, clamando por uma unidade pan-africana. Ainda que assentando
em dimensões económicas e sócio-culturais, o conceito de classe por si utilizado encontra-se próximo de uma
etno-classe ou de uma classe racial (Monteiro, 2001: 202). O pensamento de Du Bois teve forte impacto nas
ciências sociais, marcando a pesquisa, o activismo e a reflexão ao longo do século XX.
214 Travessias 2008

quais se procuram ultrapassar as divisões internas no seio do continente


(de cariz nacional ou regional), propondo assim a união das populações
e a valorização das culturas e usos africanos. O conceito de africani-
dade aparece, desta forma, enquadrado em estratégias de luta política,
delineadas por uma elite africana dominante, letrada e, paradoxalmente,
ocidentalizada11. As noções de cultura e de tradição são inseridas numa
retórica de luta pelo acesso a recursos de poder.
Se a africanidade constitui uma construção social, o discurso sobre
a africanidade, bem como a difusão de debates e reflexões acerca da
sua essência contribuem para a (re)criação e para a alimentação dessa
africanidade.Trata-se daquilo que poderia ser definido de africanização,
nomeadamente de um processo em curso, de imaginação e de cons-
trução teórica de uma essência ou de uma cultura africana.

3. O Afrocentrismo – Perspectivas de
Conhecimento Centradas em África
Um terceiro conceito frequentemente utilizado relaciona-se com
a perspectiva do conhecimento construído sobre África. Nas últimas
décadas têm-se multiplicado trabalhos científicos que fazem a apologia
do conhecimento de África sob o ponto de vista das culturas africanas.
À luz da definição de Molefi Asante (2001: 72), o afrocentrismo sig-
nifica literalmente “placing African ideals and behaviors in the center of any
discourse that involves Africans”. Para o autor, enquanto que a africanidade
se refere, genericamente, à generalidade dos costumes, das tradições e
das características dos africanos na diáspora, o afrocentrismo represen-
ta uma reflexão epistemológica sobre o processo de investigação dos
assuntos, directa ou indirectamente associados aos africanos ou a esse
continente.Ao contrário da africanidade, o afrocentrismo não constitui
uma característica natural das populações africanas, mas antes um pro-
cesso reflexivo que tem em consideração as características da cultura
africana na produção do conhecimento. Nesta perspectiva ser africano
não significa, necessariamente, ser afrocêntrico (ASANTE, 2001: 80).
De uma forma geral, a apologia do afrocentrismo tem sido sustentada
por um conjunto de quatro factores: pela sub-representação da produção
científica de autores africanos no contexto mundial; pela necessidade

(11) A maioria dos intelectuais africanos que encabeçaram os movimentos independentistas formaram-se em
universidades europeias ou norte-americanas, expressavam-se fluentemente numa ou mais línguas europeias e
adoptavam hábitos culturais «estrangeiros» à cultura africana.
Sociologia de Cobras e Latão 215

de definição das agendas de investigação a partir de interesses africanos;


como uma reacção a uma importação acrítica de conceitos pensados em
realidades ocidentais; e pela necessidade de adaptação das metodologias de
investigação a realidades africanas.
No que respeita à formação e à produção científica, as univer-
sidades e os investigadores africanos ocupam, de facto, uma posição
periférica no panorama mundial. Como constata Jean-Pascal Daloz
(1998: 105-107) os investigadores africanos estão claramente sub-
representados nas principais conferências internacionais, nas principais
revistas especializadas ou no corpo docente das melhores universidades
do Mundo. Esta situação é explicada pelas dificuldades económicas dos
Estados africanos, pelos escassos orçamentos atribuídos às universidades,
pelas carências bibliotecárias e pelo reduzido número de centros de in-
vestigação e de pós-graduações, ministradas nas universidades africanas12
. Os baixos salários auferidos pelos professores africanos (sobretudo a sul
do Sahara) têm sido responsáveis pela deslocação de muitos profissionais
para actividades de consultoria. Neste cenário, os alunos africanos não
experimentam as mesmas oportunidades que os congéneres europeus
ou norte-americanos, o que tende a reproduzir, nas segundas gerações,
as assimetrias e as desigualdades ao nível da produção científica.
No campo da produção científica, os investigadores africanos mais
conceituados tendem a publicar os seus artigos em revistas científicas
sediadas fora do continente, destinando-se, sobretudo, a leitores não-
africanos. Como refere Hountondji (2008: 157), mesmo quando são pu-
blicadas em África, a verdade é que as revistas académicas são consultadas
por um grupo muito reduzido de leitores, a maioria dos quais oriunda
do estrangeiro. Para Hountondji, o uso exclusivo de línguas europeias
como veículo de expressão científica não facilita a inserção dos africanos
no debate académico. Os académicos africanos participam, assim, numa
“discussão vertical” com os parceiros ocidentais, ao invés de entabularem
“discussões horizontais” com outros académicos africanos.
Neste contexto, a actividade científica produzida em África tende
a ser orientada para o exterior, para as problemáticas teóricas definidas
por parceiros ocidentais e para as questões por estes colocadas. Daloz
(1998: 112) alerta para a excessiva atenção (na Europa e em África)

(12) Refira-se, contudo, a existência de uma mudança a este nível, registando-se, nos diversos campos do meio
académico africano, comunidades científicas regionais, sub-regionais e nacionais de renome. Nos últimos 50 anos
multiplicaram-se universidades e centros de investigação no continente africano, alguns dos quais de qualidade
internacionalmente reconhecida.
216 Travessias 2008

conferida aos assuntos susceptíveis de financiamento – enquadrados


em agendas desenvolvimentistas e em projectos de consultoria – e para
a consequente dependência em relação aos interesses das instituições
doadoras. É contra uma importação da problematização científica,
que um conjunto de vozes vem apelando para a definição das agendas
de investigação por parte dos próprios africanos, de acordo com as
necessidades teóricas locais. Hountondji (2008: 158) defende o desen-
volvimento de uma tradição de conhecimentos em todas as discipli-
nas com base em África, onde as questões a estudar sejam estruturadas
pelos próprios cientistas e sociedades africanas. A partir da formulação
de questões lançadas pelas populações autóctones13, os académicos não-
africanos dariam o seu contributo na implementação das agendas de
investigação, a partir da sua própria perspectiva e contexto histórico.
Emblematicamente, e com base num comentário a uma obra de Michel
Cahen14, Elisio Macamo salienta: “Nós os académicos moçambicanos
temos que finalmente nos impormos na definição científica do que são
os nossos problemas. Não devemos continuar a deixar isso aos outros
sob pena da trivialização dos nossos assuntos”. Como contrapôs o an-
tropólogo José Pimentel Teixeira, trata-se de uma linha de pensamento
que não deixa de estar em continuidade com as teorias dependentistas,
de acordo com as quais os males de África advêm sempre do exterior,
dos Outros, assumindo por isso um carácter redutor. Está, de facto, por
provar, a existência de uma relação de dependência entre a qualidade
de uma investigação e o facto de ter sido estruturada por investigadores
europeus ou africanos. A constituição destas “agendas africanas” levanta,
portanto, uma série de questões, relacionadas com a definição do que
são temas do “interesse africano”, com os critérios subjacentes a essa
determinação e com as motivações políticas inerentes a esse interesse.Ao
clamarem por um saber local, «autóctone»15, os pressupostos afrocêntricos

(13) Trata-se de uma atitude que se apresenta em continuidade com as críticas que se tecem aos investigadores
europeus da modernidade, que partiam do princípio que os africanos não tinham consciência da sua própria
filosofia e que apenas os analistas ocidentais, que os observavam a partir do exterior, poderiam traçar um
quadro sistemático da sua sabedoria (HOUNTONDJI, 2008: 151). O afrocentrismo representa, por isso, um
mecanismo de reconhecimento e de valorização da cultura e da produção científica africana. Contudo, ao
fazer a apologia de um saber autóctone, o afrocentrismo constitui não só uma reacção, como uma extensão
do etnocentrismo colonial.
(14) Michel Cahen. (2004), Os outros. Basileia, P. Schlettwein Publishing. O comentário de Elísio Macamo
foi publicado no blog Ideias para Debate http://ideiasdebate.blogspot.com/2006/03/macamo-x-cahen.html
(08.03.2006, consultado a 11.10.2008).
(15) Importa, de facto, questionar os critérios subjacentes à definição do que é africano. Quem tem legitimidade
para definir essas características? Quando se escreve sobre um saber ou sobre uma perspectiva africana está-se de
facto a falar sobre o quê? Da perspectiva de um feiticeiro local, de um camponês, de um delegado sindical ou
de um professor universitário? A perspectiva e o saber africano representam, na verdade, uma multiplicidade de
experiências, a maioria das vezes contraditórias.
Sociologia de Cobras e Latão 217

escondem em si motivações políticas e até ideológicas. A apologia da


africanização das ciências sociais é indutora de um sentimento de ameaça
relativamente a cientistas ocidentais, favorecidos que estão ao nível das
condições de produção de conhecimento. Marcadas pela precariedade
das condições de trabalho e por uma acesa competição pelo acesso a
financiamentos, a questão da definição das agendas de investigação não
deixa de constituir, nas universidades africanas, um motivo de conflito
e até de racialização16.
É sob um ponto de vista afrocêntrico que se contesta a utilidade
de pressupostos marxistas na análise de realidades africanas – precisa-
mente por se tratarem do produto de uma consciência eurocêntrica,
que exclui as perspectivas históricas e culturais sobre África17 (ASANTE,
2001: 73). Outros autores vêm clamando, por vezes de forma apaixo-
nada, pela constituição nas ciências sociais daquilo que designam de
“Webers africanos”18, de “conceitos africanos” (Asante, 2001: 73) ou de um
“discurso moral africano” (LEHMAN, 2001: 332-334). Como se referiu,
Hountondji (2008: 155-158) procura formular “problemáticas originais”
estribadas numa sólida apropriação do legado intelectual internacional,
mas profundamente enraizadas na experiência africana. Da apropriação
de tradições de pensamento externas pretendem-se constituir inter-
pretações africanas de Descartes, de Marx, de pensadores islâmicos ou,
eventualmente no futuro, de filosofias chinesas e indianas e de outras
tradições intelectuais provenientes de fora de África.
É de um ponto de vista afrocêntrico, de procura de novas teo-
rias, modelos e métodos críticos que sirvam de ponto de referência

(16) De acordo com Carlos Serra (2000: 102-104), a Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais
(UFICS) da UEM esteve alguns dias de Março de 2000 com as aulas paralisadas pelos professores, em protesto
contra a forma como a reitoria procedeu na sequência de um documento anónimo, por ela recebido, que mais
tarde se provou ter sido escrito por um aluno. O acontecimento, que levou à exoneração da directora foi “mas-
sivamente interpretado por certos sectores públicos como uma luta de ‘brancos’ e ‘mulatos’ (UFICS) contra ‘negros’ (Reitoria)”.
Alexandrino José, na época director interino do CEA, afirmou a um dos investigadores de Serra que a instituição
“(…) está neste momento a ser dirigida por pessoas não negras e que um dos produtos disso é o tipo de problemáticas que
estão a ser pesquisadas naquele centro que visivelmente respeitam a todas as agendas menos a moçambicana”. De acordo
com esta perspectiva, as problemáticas moçambicanas só podem ser definidas por moçambicanos de origem
africana. Esta perspectiva expressa um negrocentrismo, que se traduz na apologia de uma africanização das
ciências sociais em Moçambique.
(17) Para Molefi Asante (2001: 73), o Marxismo não só emergiu de uma consciência ocidental, como é demasiado
mecanicista na compreensão dos fenómenos sócio-culturais.Ainda que o pensamento de Marx tenha resultado de
dinâmicas sócio-económicas decorridas na Europa no século XIX, um facto é que a liberalização dos mercados
africanos e o aumento das assimetrias sociais são convidativos à recuperação desse pensamento.
(18) Inserido num congresso internacional de sociologia, inscrito num grupo maioritariamente constituído
por cientistas sociais africanos, que discutiam a sociologia em África, o sociólogo moçambicano Carlos Serra
(1997:40) testemunhou a defesa, entre os conferencistas, “que devíamos saber criar conceitos africanos «adequados à
nossa realidade»; que devíamos saber, algum dia, recusar os Webers europeus, criando os nossos próprios Webers”. Carlos Serra
considera que esteve confrontado com a “«astúcia da razão», pois cada desses colegas tinha sido formado em universidades
estrangeiras (europeias e norte-americanas), todos vestiam roupas estrangeiras, expressavam-se bem em língua francesa, etc.,
realidades essas que eles não punham em causa”.
218 Travessias 2008

epistemológico na análise das sociedades africanas, que diversos


autores – entre os quais Molefi Asante (1990) ou Cynthia Lehman
(2001) – recorrem aos textos filosóficos produzidos no antigo Egipto,
nomeadamente na civilização Kemet19.Trata-se, para os autores, de uma
retórica alternativa ao pensamento filosófico grego e comparativamente
fecundo na análise do relacionamento no Mundo africano, ou da in-
teracção das culturas globais com as populações deste continente. Na
análise dos discursos em questão20,Asante (1990) constata a valorização
de temas como a humildade e a submissão à autoridade, o discurso não
ameaçador e não apressado, o auto-controlo, a generosidade, a procu-
ra da verdade ou a justiça. Por conferirem particular importância ao
respeito do indivíduo para com o grupo, para com os mais velhos e
para com os antepassados, para com os líderes, para com a natureza ou
o sobrenatural, Lehman (2001: 333) salienta a utilidade deste discurso
moral na análise das sociedades colectivistas africanas. Para a autora,
trata-se de questões que devem ser enfatizadas por qualquer modelo
de investigação afrocêntrico, uma vez que pressupõem a existência
de modelos e interpretações derivados de uma experiência africana.
Cheikh Anta Diop (cf LEHMAN, 2001: 328) vai ainda mais longe,
considerando que o recurso à oratória Kemet constitui uma condição
necessária para uma reconciliação das civilizações africanas com a sua
história, de forma a serem capazes de construir um corpo de ciências
humanas modernas, renovando assim uma cultura africana.
É também sob este ponto de vista afrocêntrico, que o historiador
Ki-Zerbo (1979) procura escrever a história de um ponto de vista afri-
cano, mostrando como é que África diferiu da história europeia: através
da ausência de propriedade privada, de uma monarquia moderada ou
do refinamento das relações interpessoais. Sempre com o objectivo de
explorar a especificidade africana, outros autores salientam a impor-
tância do mundo simbólico (TAYLOR e NWOSU, 2001: 301), dos
valores metafísicos e espirituais ou da singularidade africana ao nível
da relação com o tempo, com o trabalho ou com as pessoas (OBENG-
QUAIDOO, 1986 cf TAYLOR E NWOSU, 2001: 304). A perspectiva
afrocêntrica parte do pressuposto que a forma como os africanos foram

(19) Os textos incluem aquilo que Karenga (cf Lehman, 2001: 329-330) designa de Sebait (livros de Kagemni,
Kheti, Khun-Anup e Ptah-Hotep). O livro de Khun-Anup também é conhecido, na literatura anglo-saxónica,
por The story of the Eloquent Peasant.
(20) Na análise da retórica Kemet, Asante (1990) destaca o conceito filosófico e espiritual Maat, construção
filosófica central e base das preocupações humanas, sobrenaturais e ecológicas. O Maat constitui um ideal moral
do antigo Egipto que representa a figura do Bem, a concessão da vida, a fundação da ordem e da responsabilidade,
assentando em valores como a justiça, a harmonia, o equilíbrio e a verdade.
Sociologia de Cobras e Latão 219

socializados condiciona a forma como conceptualizam os fenómenos


sociais (ASANTE, 1989).
O movimento afrocentrista pretende também contribuir com
uma discussão dos procedimentos empíricos ocidentais, de observação
e de medição21. Ao nível da interpretação dos resultados, contesta-se
a rigidez de orientações e defende-se a integração de dimensões de
uma cultura africana – incluindo o relacionamento com o mundo
metafísico e espiritual ou com os grupos de pertença (TAYLOR e
NWOSU, 2001: 303) – que geralmente influenciam o discurso e as
dinâmicas sociais em África. O que se designa de empirismo afrocen-
trista constitui, no fundo, uma metodologia qualitativa de investigação,
que valoriza a observação e a construção de significados a partir dos
saberes e dos valores dos participantes locais. Trata-se de um método
de análise próximo da grounded theory (GLASER e STRAUSS, 1967),
que se pretende constantemente adaptável e condicionado pelo exer-
cício da observação, enfatizando a descoberta ao invés da validação do
conhecimento existente (TAYLOR e NWOSU, 2001: 308). O afrocen-
trismo constitui, assim, uma tentativa de alargamento das possibilidades
epistemológicas, onde África passa a constituir o sujeito e não apenas
o objecto de conhecimento (Asante, 2001: 71).
Este processo de recriação e de valorização de pensamentos e
experiências africanas, muito em voga nas sociedades pós-coloniais22,
enquadra-se naquilo que Boaventura de Sousa Santos designa de
Epistemologias do Sul. Tratam-se de tendências de inclusão de novas
experiências de conhecimento do Mundo, que não deixam de incluir,
depois de reconfiguradas, as experiências de conhecimento de um Nor-
te global23. Denominado de “sociologia das ausências” (SANTOS, 2006:

(21) Taylor e Nwosu (2001: 300) alertam para o perigo dos métodos de pesquisa que aliciam as opiniões
dos respondentes acerca de atitudes, crenças e comportamentos, em contextos africanos onde a expressão de
opiniões pessoais não constitui uma característica pacífica no processo de comunicação. As opiniões são gran-
demente influenciadas pelas normas do grupo, pelo género ou pelo estatuto social. Os autores sintetizam outros
problemas, incluindo as dificuldades ao nível das traduções de entrevistas e questionários num continente que
conhece elevadas índices de iliteracia nas línguas europeias. Taylor e Nwosu referem também dificuldades no
questionamento de assuntos sensíveis, a inexistência de dados e de fontes a partir dos quais se possam constituir
amostras relevantes; bem como as dificuldades de aplicação de questionários de escolha forçada, que obrigam a
um pensamento dicotómico nos inquiridos.
(22) Pela forma distinta como se têm desenvolvido importa realçar o carácter plural do conceito de realidades
pós-coloniais. A diversidade na América do Sul é distinta da que ocorre no continente africano ou nos contex-
tos europeus e, dento de cada um destes macrocosmos, existe uma infinidade de microcosmos, infinitamente
distintos entre si. Se esta diversidade apela para a diferença dentro do Sul, um facto é que uma experiência
colonial comum permite a constituição de um Sul global, onde essa condição pós-colonial adquire destaque na
compreensão das especificidades políticas, económicas e sociais.
(23) Como analisa Boaventura de Sousa Santos (2007), o projecto imperial do colonialismo e do capitalismo
global desencadearam uma divisão abissal entre o que hoje é designado de “Norte global” e de “Sul global”, divisão
que se transformou, ela própria, numa condição epistemológica.
220 Travessias 2008

87-126), este processo de recuperação de saberes parte da ideia que


a racionalidade que subjaz ao pensamento ocidental (produzido num
Norte global) não reconhece, ignora e desperdiça muita da experiência
social disponível ou possível no Mundo. Para a captar seria necessária a
reinvenção de uma racionalidade mais ampla, disponível para absorver
uma emergente experiência social. Esta visão afrocêntrica não deixa,
contudo, de merecer uma série de observações.
Um primeiro conjunto relaciona-se com a própria definição de
conceitos africanos, da sua distinção relativamente a conceitos “europeus”
ou “asiáticos”, da configuração de conceitos híbridos ou do tipo de rela-
cionamento possível entre estes diferentes conhecimentos. A partir desta
questão importa analisar até que ponto é que uma epistemologia africana
parte de pressupostos essencialistas sobre a cultura africana. O continente
vem conhecendo um processo de inserção num sistema global, com
profundas influências ao nível da organização das suas sociedades. Não
obstante as inerentes problemáticas políticas e sociais e as especificidades
de cada região, um facto é que as sociedades africanas nunca deixaram
de estar envolvidas em processos dinâmicos de transformação, em muitos
aspectos comuns a outras regiões do globo.
Em segundo lugar, quando se procura formular um modelo
de análise com base numa “experiência africana”, importa questio-
nar o que significa, exactamente, essa experiência africana e que
africanos se revêem na mesma. Ela é comum nas zonas rurais e
nos centros urbanos? Nas sociedades agrícolas e nas repartições
bancárias? Estamos a falar de uma experiência ou de experiências
africanas? A retrospecção pelo passado em busca de uma especifi-
cidade e de uma raiz cultural (seja no Antigo Egipto, no reino do
Monomotapa ou no império Zulu), com vista a uma “reconciliação
com a história” transporta consigo uma série de riscos epistemoló-
gicos. Por um lado por ser bastante ambíguo no que concerne à
definição de que período histórico se processaria o reencontro 24.
Por outro lado, precisamente por pressupor a existência de uma
única história, comum a todas os africanos, esta perspectiva não
confere a merecida atenção aos complexos processos migratórios
(transcontinentais), à diversidade linguística, religiosa e cultural

(24) Quando se fala em reencontro com a história falamos exactamente de quê? De uma história africana conge-
lada pelos retratos etnográficos da primeira metade do século XX? Dos costumes recriados nos espectáculos de
companhias de canto e dança africanas? Como reagem os jovens africanos, em plena era de globalização cultural,
relativamente a esses valores e costumes de períodos pré-coloniais?
Sociologia de Cobras e Latão 221

das populações e suas múltiplas e contraditórias influências. A


história e a experiência africana (aliás como a europeia, a asiática
ou a americana) são fortemente marcadas pela heterogeneidade e
consequente complexidade de práticas culturais.
Uma terceira questão que merece ser colocada prende-se com
os traços e com os valores que são seleccionados na caracterização das
populações africanas. Do recurso aos textos filosóficos produzidos no
antigo Egipto são realçadas dimensões como a harmonia, o respeito,
a verdade ou a justiça25, não se conferindo destaque ao conflito e à
competição, processos esses subjacentes ao fenómeno de socialização
(SIMMEL, 1995). A procura de modelos de análise afrocêntricos não
deixa de perpassar uma imagem idílica das sociedades africanas, colec-
tivistas, harmoniosas e funcionais, ecológicas, congeladas na tradição e
livres do conflito, da anomia e da injustiça social.
Uma quarta questão prende-se com os factores subjectivos
inerentes ao próprio processo de construção do conhecimento. Em
inúmeros aspectos – não só nos pressupostos epistemológicos em
análise, mas também no etnoturismo africano26 ou na vulgarização
de expressões como “mãe-África” – constatam-se diversas atitudes
emotivas, nacionalistas e maniqueístas (nomeadamente da tradição).
A ideia que perpassa é que África está envolta numa hiper-identidade,
imagem essa que é produzida no interior do continente, não dei-
xando de ser alimentada do seu exterior. Trata-se de uma atitude
que valoriza a procura de uma especificidade africana, ignorando o
carácter dinâmico e contraditório das culturas, a que não é alheia
a realidade africana.

(25) Destaque-se que estes valores estão presentes nos textos judaico-cristãos e não foi por isso que, nos últimos
200 anos, as grandes potencias europeias não foram promotoras de uma intensiva colonização do continente
africano, de duas guerras mundiais e de sanguinários conflitos étnicos e raciais. Do mesmo modo, o continente
africano foi, no pós-independência, marcado por violentas guerras civis e catástrofes humanitárias, por processos
de corrupção e de aumento de desigualdades sociais. Em África ou na Europa, o discurso moral da justiça ou
da solidariedade é acompanhado por um outro processo de competição pela posse de recursos de poder, por
vezes de forma bem violenta.
(26) A propósito das características do artesanato e da arte tradicional africana (estatuetas, batiks, adornos,
etc.), invariavelmente procurada por estrangeiros (em especial os de descendência europeia), um pouco
por todas as cidades africanas, considera-se oportuno transcrever o seguinte comentário de Carlos Serra
(1997: 151): “Quantas vezes não encontro nos aviões, girafas, camponesas com filhos às costas, pilões, dentes de
marfim, etc., e sinto a alegria dos seus proprietários na fórmula fatal: «Isto é África!». Mas temos, ainda, as artes
maiores, as artes plásticas, aquelas que estão nas exposições onde, não menos invariavelmente, abundam os Europeus.
E aí, sempre me admirará a ubuesca mania de se ter por arte «tradicional» uma multidão de quadros onde máscaras,
olhos esbugalhados, anatomia transfigurada, etc., expressam, afinal, desolação, tormento, tragédia, fenocídio (sic),
desemprego, guerra, tristeza, etc., quer dizer, sentimentos, percepções perfeitamente universais, rigorosamente humanos,
identificadamente históricos, epocalmente reconhecíveis” (Serra, 1997: 151). A pergunta central é, portanto, a
seguinte: quando se vende, na moeda local ou em moeda estrangeira, este tipo de arte está-se realmente
a vender tradição? Que tipo de tradição?
222 Travessias 2008

4. Conclusão
Ao salientarem a especificidade de uma cultura e de uma sensi-
bilidade africana, a africanidade e o afrocentrismo não deixam de partir
de uma concepção essencialista e fortemente politizada do conceito de
cultura. Qualquer forma de conhecimento da realidade social africana
(como aliás de qualquer outra) não pode debruçar-se apenas sobre o que
é definido a priori como eternamente africano, mas assumir uma lógica
processual, considerando as transformações e as contradições que ocorrem
no que pode ser considerado um espaço social africano. É neste contexto
que importa analisar os processos de conhecimento destas sociedades ou,
inclusive, a relevância da constituição de uma sociologia das sociedades
africanas.A tónica geral do argumento que sustenta esta última ideia reside
na existência de uma particularidade africana, fundamentalmente dife-
rente da dos outros continentes, que exigiria a utilização de instrumentos
analíticos apropriados. Para Elísio Macamo (2002: 5), a particularidade
africana seria o resultado da complexidade do social em África27, das
relações e dos factos sociais, caracterizados por uma oscilação entre um
mundo irreal dos espíritos e um mundo real de uma existência social
precária. A complexidade resultaria, portanto, de uma relação ambígua
que o continente estabelece com a modernidade (KANE, 1995).Trata-se
de uma perspectiva que, ainda que tenha subjacente uma lógica unilinear
da história e do progresso da humanidade28, não ignora a coexistência
de distintos aspectos culturais, supostamente característicos de períodos
históricos diferentes (modernidade e pré-modernidade), bem como as

(27) Macamo (2002: 5-6) ilustra este ponto com um exemplo do músico moçambicano Xidimingwana 1997,
no seu tema intitulado “Djoni” (minas da África do Sul, na designação popular no Sul de Moçambique. Na
letra da música, o cantor canta “as aventuras de um homem que, sob a insistência da mulher, se alista na companhia de
contratação de mineiros moçambicanos para ir trabalhar nas minas de ouro da África do Sul. Todavia, logo no seu primeiro
dia de trabalho cai-lhe uma pedra sobre as mãos que são imediatamente amputadas. Na impossibilidade de continuar a tra-
balhar nessas circunstâncias, o homem é despedido com uma compensação avultada [literalmente, “um saco de randes”] que
leva consigo para Moçambique. De regresso a casa, é recebido efusivamente pela mulher que nem sequer lhe pergunta o que
aconteceu às mãos. Diariamente ela subtrai 200 contos para gastar em bebida e dar à sua mãe. Pouco depois o dinheiro acaba
e, segundo o cantor, ela começa a ‘faltar ao respeito ao marido’. Um exemplo dessa falta de respeito é a solicitação que, certa
manhã, ela faz ao marido. Pede-lhe que vá cortar estacas no mato para reparar o telhado, sabendo muito bem que o pobre
homem perdeu as mãos nas minas da África do Sul e não pode, evidentemente, fazer esse trabalho. Frustrado, ele agride a
mulher com o coto do braço amputado. A mulher corre à polícia a fazer queixa e esta envia uma força de intervenção rápida
para prender o marido. Na esquadra a mulher diz que o marido a agrediu com um pau. Ele desmente, alegando que foi com
o coto. Ela rompe aos gritos e diz que o marido perdeu as mãos e que estas foram enterradas na África do Sul. Segundo ela, o
que a agrediu não foi o coto mas sim algo ‘invisível’, do reino dos espíritos. Exige que lhe seja feito um diagnóstico tradicional
para saber se estará ou não enfeitiçada”.
(28) Esta perspectiva adquiriu maior popularidade no período pós-guerra fria com o best-seller “The end of his-
tory and the last man”. Francis Fukuyama (1992) previa que os movimentos reformistas na ex-União Soviética
e na Europa de Leste viessem a resultar na propagação, à escala mundial, das democracias liberais, do regime
económico capitalista e de uma cultura de consumo de massas. Fukuyama toma como referência o pensamento
de Hegel e de Marx, para quem a evolução das sociedades humanas não era ilimitada, mas terminaria quando a
humanidade alcançasse uma forma de sociedade que pudesse satisfazer as suas aspirações ou as suas contradições:
o estado liberal ou a sociedade comunista.
Sociologia de Cobras e Latão 223

complexas possibilidades de mudança por parte de cada cultura29 (LÉVI-


STRAUSS, 1995: 30). Para Macamo, esta ambiguidade do continente
africano na sua relação com a modernidade não postula uma ciência
do social fundamentalmente diferente, mas uma maior sensibilidade na
utilização de conceitos.
O debate teórico sobre estas questões epistemológicas não deixa
de estar relacionado com as condições sócio-económicas de produção
do conhecimento, que têm como inevitável efeito a politização do saber.
A apologia de uma visão do Mundo centrada em África processa-se num
contexto de confrontação de culturas e de conflito identitário, pelo que
a frequente distinção entre investigadores africanistas e investigadores
africanos30 resulta não só de uma questão relacional – da inevitável
distinção “Nós” vs “Eles” – como também de factores estratégicos,
nomeadamente dos interesses dos actores sociais a cada moment31.
É neste contexto que Sibeud e Piriou (1997: 15) fazem a apo-
logia da análise não só das práticas como das orientações de pesquisa
dos cientistas sociais. Trata-se de um processo que Bachelard (1938)
designaria de “psicanálise da ciência”, nomeadamente de centrar a abor-
dagem nos elementos subjectivos que envolvem os cientistas sociais na
produção do conhecimento: as suas preferências emotivas e educacionais,
os preconceitos sociais, as condições de existência e as motivações sócio-
económicas, as inclinações políticas, os grupos de pertença e de referência,
etc.. Constituindo a ciência uma construção social, a crítica científica
deveria começar na auto-reflexão e dirigir-se à sensação, às convicções
primeiras, à própria linguagem ou à significação das palavras.
Na compreensão da dinâmica dos processos de produção de
conhecimento importa, ainda, rever os trabalhos epistemológicos de
Thomas Khun ou de Imre Lakatos. Para Khun (1989), o trabalho do
cientista exprime uma adesão muito profunda a um paradigma teórico.

(29) Lévi-Strauss (1995: 30-31) compara os processos múltiplos de mudança da humanidade aos movimentos de
um cavalo de xadrez. Para o antropólogo francês “a humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe
uma escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo degrau a todos aqueles já anteriormente conquistados,
evoca antes o jogador cuja sorte é repartida por vários dados e que, de cada vez que os lança, os vê espalharem-se no tabuleiro
formando outras tantas somas diferentes”.
(30) Saliente-se que as epistemologias do Sul não são unicamente formuladas por saberes autóctones. Referiu-
se anteriormente o carácter complexo que pode adquirir o conceito de africano, pois pode englobar actores
sociais que estudaram na Europa ou populações de descendência europeia que nasceram ou viveram muitos
anos no continente africano.
(31) Nesta perspectiva, torna-se natural que muitos europeus residentes em África se assumam como africanistas
perante um aumento da concorrência europeia, mas que se sintam europeus quando em competição directa
com populações africanas. A mesma atitude pode ser estruturada por um africano, no seu relacionamento
estratégico com europeus.
224 Travessias 2008

Numa interpretação sócio-política da produção do conhecimento, Khun


considera que cada paradigma implica a existência de esquemas teóricos,
conceptuais e metodológicos, aceites por todos aqueles que partilham
essa forma de olhar. Lakatos (1978) considera que qualquer paradigma
de investigação concebe um “núcleo duro”, irrefutável pelos respectivos
investigadores. O autor húngaro utiliza o conceito de “cintura protectora”
para exprimir um compromisso (inconscientemente) estabelecido pela
comunidade para, ao longo das suas investigações, não introduzir falsi-
ficações que perturbem a ordem do paradigma. As teorias de Khun e
Lakatos não deixam de se inserir, elas próprias, num paradigma científico
que envolve um compromisso por parte dos seus seguidores.
De qualquer das formas, a análise e comparação recíproca de
diferentes paradigmas e perspectivas epistemológicas, das respectivas
possibilidades e limites, enquadra-se naquilo que Boaventura de Sousa
Santos (SANTOS, 2008: 28-29) designa de “ecologia de saberes”. Nesta
perspectiva, quanto menos um dado saber conhecer os limites do que
conhece sobre os outros saberes, tanto menos conhece os seus próprios
limites e possibilidades. Para Boaventura de Souza Santos (SANTOS,
2008: 37), sem este processo de confrontação de problemas, perplexida-
des e incertezas, estaremos condenados a neo-ismos e a pós-ismos, ou “a
interpretações do presente que só têm passado”. Ainda que com o processo
de globalização em curso se abram pontes de intercomunicação entre
as diferentes perspectivas epistemológicas, essas vias de comunicação
não deixam de estar marcadas pela suspeição, por relações de força e
por conflitos de poder entre os produtores de conhecimento.

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Lisboa, Estampa.
Ensaio Bibliográfico
As Origens de Aparições Demoníacas para
Operárias: Leituras da Obra de
José de Souza Martins e Aihwa Ong.

Y
Letícia de Faria Ferreira
CPDA – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

O presente estudo pretende apresentar a obra de José de


Souza Martins “A aparição do demônio na fábrica” (A
aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividido
no subúrbio. São Paulo: Ed. 34, 2008) e, nesse ínterim, fazer
uma leitura paralela sobre a temática de aparições demoníacas para
operárias com o trabalho de Aihwa Ong, “Spirits of resistance capita-
list discipline” (Spirits of resistance and capitalist discipline: factory women
in Malaysia Albany. NY : State University Press, 1987). Por diferentes
caminhos esses trabalhos discutem as contradições para a implemen-
tação da sociedade industrial, onde é observado o modo como cada
local reagiu às interferências exógenas do capital moderno. O texto de
Ong discute as mudanças na sociedade rural da Malásia, o recorte de
seu trabalho se distancia dos temas mais conhecidos nos estudos sobre
campesinato ou mesmo sobre as transformações no campo operário,
no entanto, estes temas estão presentes a partir do enfoque que faz
das manifestações de possessão, dos sacrifícios e rituais tomados como
“exóticos” e que, tal como aparecem no livro de Martins, ocorrem na
linha de produção industrial.
O livro publicado recentemente por Martins é um conjunto de
quatro artigos, uma entrevista e um texto introdutório. São textos
reunidos que datam da primeira metade da década de 90 até o ano de
2008 e, com uma exceção, foram trabalhos já publicados e/ou apre-
sentados em congressos e palestras proferidas pelo autor. No entanto,
mesmo com temporalidades diferentes, os capítulos são conectados
entre si pelo tema que vai sendo entretecido pelo autor, onde cada
228 Travessias 2008

capítulo o apresenta sob seus diferentes aspectos. O que podemos


chamar de tema do livro é a investigação sobre a multiplicidade de
formas – às vezes misteriosas – de desencontro entre o processo de
modernização industrial e a concepção do trabalhador dessa moderni-
dade, considerando sua origem rural, pautada em valores tradicionais;
tematiza a partir da vida repartida que é ocasionada nos operários
do ABC paulista, berço da industrialização moderna brasileira. São
desencontros tratados com muita sutileza pelo autor, que se dedica
a observar sua expressão em miudezas espalhadas pelo cotidiano da
vida no subúrbio – e, é como um observador especial que descreve
as cores, o badalar dos sinos, o apito do trem na estação ferroviária,
etc, pois durante os anos 50, foi ele mesmo operário da fábrica de
cerâmicas de São Caetano.
Observa o autor, com acuidade, as fragmentárias expressões que
revestem as ações da população trabalhadora em sua busca de adaptar-
se aos adventos do tempo que regra a vida. Ou seja, o tempo linear
da fábrica que lentamente entra nas práticas “de uma sociedade ainda
regulada pelo tempo cósmico das estações do ano e dos ritos sociais e
religiosos demarcadores do calendário litúrgico e da vida.” (MARTINS,
2008:11). Martins fala de um abismo que separa o homem comum de
sua história quando este é inserido em uma sociedade que o coloca
como agente e ator; seu processo histórico é vivido e também é tea-
tralizado; é práxis autêntica e mistificação na resistência que trava para
não se reduzir à coisa. Esse homem, afirma o autor, redivivo, recicla
o modo das antigas relações sociais e “reapropria-se das tradições de
suas origens pré-modernas para enfrentar a privação de história e de
compreensão plena que lhe impõe a modernidade que o minimiza e
coisifica. Adere, resistindo, para viver e vencer a seu modo o mal-estar
da sociedade da incerteza.” (MARTINS, 2008: 14).
A discussão sobre a chegada do país ao mundo moderno começa
chamando atenção para o divisor de águas que foi a reordenação social
trazida pelo trem, e de modo mais específico, na cidade de São Paulo,
que é tratada por Martins no primeiro capítulo do livro – “A gestação
do ser dividido: a ferrovia e a modernidade em São Paulo”. Uma vida
lenta foi abalada na década de 60 do século XIX, quando a ferrovia
impõe seu tempo, seu equipamento moderno a vapor percorrendo
distâncias antes transpostas a cavalo. O tempo se torna regulado, e nas
palavras de Martins foi quando “o homem deixou de ser o condutor
de tropa para ser conduzido como tropa.” (MARTINS, 2008:16).
As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias 229

As Estações (da Luz e Vila Piranapiacaba) trazem consigo uma arqui-


tetura do medo, que vai ser estudada pelo autor através da definição
foucaultiana de panóptico.
Na pesquisa de Aihwa Ong, Foucault também aparece quando
o enfoque é o poder e sua capacidade de produzir subjetividades; a
mudança no ritmo da vida e as representações de mundo colocadas pela
intervenção inglesa no cotidiano malaio, produziram representações que
foram internalizados pelos próprios “malaios”, Ong percebe as táticas de
resistência e sobrevivência que colocaram em prática, sendo a possessão
uma forma possível, não necessariamente consciente, de resistir.
Voltando a Martins, a conflitividade social se torna uma possi-
bilidade quando a ferrovia dilui a dimensão local e de localidade dos
antagonismos sociais. A ferrovia trazia consigo os códigos da moder-
nidade e as contradições gestadas na passagem de uma sociedade es-
cravista para a sociedade industrial nascente. Assim que, todos - os que
mandam e os que são mandados - temem, por que já não seria mais
possível viver “sem medo dos desdobramentos do mundo criado pelo
capital moderno e pela máquina.” (MARTINS, 2008:17). Nesse capí-
tulo Martins nos atenta para esse embate entre o passado que persiste
nos ritmos da vida, por um lado, e de outro, descreve o lento processo
que consiste em reacomodar a vida, nesse momento de desencontro
de temporalidades. As transformações criavam a necessidade de uma
sociedade de trabalhadores, posto que em meados do século XIX a
escravidão já anunciava seu próprio fim. O texto discorre sobre essa
invenção de uma classe trabalhadora livre, de origem eminentemente
rural, sendo, ao custo de muitas rupturas, preparada para o trabalho
fabril moderno, que reordena costumes, mentalidades, que cria a vida
privada, enfim, é a modernidade em seu engendrar o conteúdo do
capítulo primeiro que, de certo modo, vai alicerçar para os próximos
capítulos a discussão sobre o modo de ver e viver – ouvir e cheirar –
que as populações do subúrbio paulista concebem.
No segundo capítulo (uma entrevista publicada em 2001) o
autor, ao discutir a história da noção de subúrbio - em estreita relação
com o desenvolvimento da cidade de São Paulo e criando uma nova
concepção de espaço como lugar do vivido com estilo, com adornos
e detalhes, realidade espacial intermediária entre o campo e a cidade
- vai trazendo à tona a questão da ausência de interesse por parte da
sociologia pelo subúrbio. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos, o
conceito sociológico de subúrbio serviu para definir espaços residenciais
230 Travessias 2008

de alto nível, aqui para nós, diz Martins, temos outra situação.“O traba-
lhar e o morar disputam os mesmos espaços em áreas supervalorizadas
pelas funções rentistas do ganhar”, e ainda, é a presença da renda da
terra urbana que entre nós agrava as condições de moradia, devido o
tributo pago ao dono da terra que vive da especulação imobiliária.
Esse é um tema bastante debatido por Martins em livros anteriores
– a renda da terra, a novidade deste texto consiste em falar da renda
da terra urbana (MARTINS, 2008:49). Ainda, dentro dessa temática
da renda, Martins distingue o conceito de subúrbio de “periferia,”
esta última, segundo ele significa a vitória da renda da terra sobre a
cidade, resultando em moradias precárias e confinadas; já subúrbio
tem uma concepção positiva, sua história é a história de um modo
de vida relacionada com o trabalho, e que têm nesse lugar relações
sociais, cotidiano, memória, que por vezes, desmente a história oficial;
enfim, é para a confusão conceitual que Martins chama atenção, pois
percebe periferia e subúrbio como espaços com problemas socioló-
gicos de diferente ordem (MARTINS, 2008:60).
O subúrbio como lugar de viver é o que inspira Martins a es-
crever o texto Odores, sons e cores: mediações culturais do cotidiano
operário - onde esses elementos dão e criam significados para a vida
cotidiana, expressam mentalidades e fundam a sociabilidade dos grupos
de convivência. O que esta sendo proposto “é uma breve etnografia
de costumes relativos a cores, odores e ruídos cotidianos, em particu-
lar os do corpo ou com o corpo relacionados. Constituem eles uma
interferência mediadora no desenrolar cotidiano das relações sociais
e variam conforme a situação social e a situação de classe social dos
agentes.”(MARTINS, 2008:64) No entanto, essa etnografia propos-
ta por Martins tem um componente especial, pois usa suas próprias
lembranças como fonte de dados, vindo a se chamar de “etnógrafo
espontâneo”.(idem:148). Recupera o que faz parte de sua memória
(trata especialmente dos anos 40 e 50) como morador e trabalhador do
subúrbio de São Caetano, dentro de uma idéia de Peter Berger – de
uma alternação biográfica, onde o tempo lhe permite um olhar crítico,
“observo sociológica e participativamente através do informante que
é o outro que fui”( MARTINS, 2008:64).
O desenvolvimento da urbanização transformando-se em um
“modo de vida” se institui sem anular às condutas respectivas a um certo
jeito de ser rural, da sociedade tradicional, mas institui uma censura
a esses hábitos, jeitos e costumes. Ainda, nos diz Martins, “limitou a
As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias 231

visibilidade dos modos de ser, instituindo a legitimidade dominante e a


precedência do modo de parecer como técnica de apresentação social
de pessoas e grupos”. (MARTINS, 2008:65). Os jardins, as roupas, as
cores e os sons tem uma classificação nesse universo, que Martins nos
revela com detalhes (fala das flores e a combinação adequada destas
com espaço e o momento, trata da diferenciação feita entre sons e ba-
rulhos – este último é aquele espécie de som que foge a classificação)
quando descreve esses costumes que, lentamente misturam-se intera-
gem e compõe a especificidade da sociabilidade do subúrbio. Ainda,
encontramos no texto as ordenações cotidianas de gênero, as funções
e papéis respectivos – a casa, o jardim e a mulher; o trabalho externo, a
horta a rua e o homem. Martins recorda dos odores e suas separações,
ou seja, havia, por um lado, o cheiro industrial, fétido, que se espraiava
por São Caetano e, por outro, os perfumes dos jardins, das comidas, das
pessoas (entre elas está o de gênero). Descreve os ruídos e os silêncios,
e o medo – onde as histórias de aparição começam a surgir.
O capítulo “A aparição do demônio na fábrica, no meio da pro-
dução” apresenta o relato do autor que se recorda do fato de no ano de
1956 o demônio aparecer para várias operárias de uma nova seção na
fábrica de Cerâmicas, onde foi office-boy na época, para a qual regressou
para conversar com antigos trabalhadores do lugar. Encontramos nesse
capítulo um texto singular, por que quando retorna para falar com os
engenheiros e operários passados mais de 30 anos, Martins recompõe
sua memória na troca com as memórias de outros e apresenta-nos um
documento significativo sobre as relações de trabalho e as relações co-
tidianas (paralelas) da fábrica. E entende o aparecimento do demônio
como uma das características desse processo de trabalho em crise. Era
um momento na fábrica de intensificação da vigilância e das estratégias
de despersonalização das ocupações, tornando-as impessoais e técnicas,
o que, sem dúvida, criava um descompasso com as mentalidades dos
trabalhadores ainda vinculados a modos tradicionais de produção. O
processo de prensagem dos ladrilhos deixa de ser controlado pelo rit-
mo do operário prensista que ao lado tinha uma operária que retirava
os ladrilhos e repassava para o próximo setor, portanto, quando esse
processo é alterado e o operário é que se adapta ao ritmo da máquina
a situação torna-se outra, pois neste caso a modernização da linha
permaneceu no início e não até o fim, assim que, as operárias( para as
quais o demônio apareceu) situavam-se no na seção final de seleção,
encaixotamento e escolha onde o trabalho permaneceu artesanal e
somente foi alterada a intensidade do ritmo do trabalho.
232 Travessias 2008

Nas palavras de Martins, “nesse descompasso tecnológico está a


causa fundamental das tensões que levaram ao aparecimento do de-
mônio na nova seção de escolha de ladrilhos.”(MARTINS, 2008:154).
Ainda, as mudanças sofridas pela fábrica nesse período é a hipótese de
Martins para a aparição do demônio justamente na seção de escolhas,
setor onde não ocorreram mudanças no processo de trabalho, pois “foi
a expressão dos temores gerados pelo conservadorismo desses setores
colocados à margem das inovações e/ou das decisões (...)”. Para o autor
essa foi “a forma que o imaginário das operárias deu às inovações para
compreendê-las no conflito que encerravam.”(MARTINS, 2008:167).
Esse novo modo de produzir afastava-se dos saberes práticos, mas ele
não foi harmônico na linha de produção, o que no entender de Mar-
tins não apenas ocasionou a aparição do demônio em determinado
lugar, como essa desarmonia enfraquecia o domínio do saber cientifico,
permanecendo saberes antigos dos mestres (em contraponto com dos
engenheiros), associados a valores como parentesco e lealdades pessoais.
Martins associa à visão das operárias do demônio aos engenheiros,“ele
era meio sorridente, bem vestido, como os engenheiros, num canto
da seção.” A aparição cessou depois que as operárias pediram que um
padre benzesse as novas instalações, trazendo para o interior da fabrica
um costume rural, religioso, de celebração das novas produções. Ob-
servando o que, de certo modo, não é “visível”, a análise traz à tona os
dilemas vividos pelos trabalhadores na relação com as contradições do
trabalho capitalista.(MARTINS, 2008:173).
O livro de Martins finda com um capítulo de retomada de suas
considerações iniciais e um convite à pesquisa sobre a história da in-
dústria e da classe operária no ABC paulista. Trata-se de uma reflexão
do autor sobre a produção sociológica a propósito desse tema e sobre
o que está faltando e por que está; e o que precisa ser feito ou refeito.
Ao levantar questões metodológicas para pensar as singularidades da
história regional, o livro nos leva a pensar as possibilidades da história
que desconstrua, através da voz dos trabalhadores, a história que é de
poucos para construir uma história de todos.
Ong, por diferentes caminhos, coloca questões semelhantes às
de Martins: de gênero, campesinato, industrialização, mudança cul-
tural, classe, etc. Refere que, the contradictory experiences of malay
factory women indicate that we need to reformulate the relationships
among class, resistene, and conciousness (ONG,1987:195). Fazendo
inicialmente um breve histórico do momento anterior a chegada da
As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias 233

dominação colonial britânica, discute fenômenos decorrentes do pro-


cesso de acumulação implantado pelos ingleses na segunda metade do
século XIX e as transformações provocadas na sociedade e na cultura
melanésia (ONG, 1987:4). A preocupação da pesquisa está em refletir
sobre as mulheres como sujeitos históricos e em termos das suas ex-
periências subjetivas, atentando para o contexto de transição em que
vivem essas mulheres de um modelo de sociedade camponesa para um
modelo de produção industrial. A intervenção inglesa ocasionou mu-
danças intensas no modo de organização dos camponeses “malaios”, e a
autora nos remete, do passado, - quando as terras eram abundantes nas
aldeias Kampug e não se arranjavam enquanto “propriedade privada”,
mas de uso mediante o pagamento de impostos, - ao momento em
que os interesses britânicos administram a Malásia e “reconstituem” o
campesinato, estabelecendo leis que visam assegurar uma etnia de cam-
poneses malaios, os quais obtiveram títulos de propriedade, política que
promoveu um mercado de terras e, conseqüentemente, a instituição de
um Reservation Enactment que permitia a venda apenas para “malaios”.
A preocupação do trabalho de Ong não é buscar explicações para as
questões apenas no âmbito do plano local, pois trata os processos de
diferenciação e proletarização do campesinato não exclusivamente nos
eventos internos ao kampung, mas articulados com o contexto mais
amplo onde essa população se insere. O que encontramos no texto é
a percepção de Ong da trama que abriga múltiplos aspectos da relação
entre o plano local e um plano mais geral, tal como foi possível identi-
ficar no texto de Martins – transformação de relações de trabalho locais
inseridas em uma dinâmica global. Em Ong, essa interação envolve os
costumes e valores da sociedade malaia, a percepção de gênero, trabalho,
religião, sagrado e profano são invadidas pela sociedade industrial e
pela disciplina capitalista. A maciça absorção das jovens pelo emprego
industrial, não só traz modificações no âmbito familiar pela maior in-
dependência dessas jovens, como desencadeia, pelos ritmos de trabalho
estressante da indústria, mecanismos de resistência nas operárias. No
entanto, as fábricas incorporam, paralelo a ritmos de tempo controla-
dos e uniformizados da linha de montagem, padrões e representações
familiares (como a dominação de gênero), quando representa na fábrica
um hierarquia “como se fosse uma família.” É nesse campo, onde vi-
goram imposições de disciplinas de trabalho, - “corporate disciplinary
techniques involve not only the surveillance but also the encoding of
Malay female sexuality, in work, movement, and residence”– (ONG,
1987:177) que aparecem os espíritos hantu nas fábricas.
234 Travessias 2008

Para Ong, as origens rurais dessas operárias vêm de uma tra-


dição em que “the rural malay universe is still inhabited by spirits
which move easily between human and nonhuman domains.” Con-
siderando a observação de Ong que, “over the past decade, spirit
possession episodes have proliferated among the young malay wo-
men who flock in the thousands to urban institutions”, fenômeno
que fica conhecido como “mass hysteria”. Serão, no entanto, em
algumas situações essas “experiences of affliction”, percebidas, espe-
cialmente pelos homens como algo feminino, e vem a ser percebido
localmente de modo que “hysteria is symptom of the women’s rural
urban transition” (ONG,, 1987:203-205).
Entretanto, não é exclusividade das aparições demoníacas o en-
volvimento da economia em tais acontecimentos, podemos lembrar,
tomando pelo inverso, às aparições que ao invés de serem ocasionadas
por determinada condições econômicas, promovem uma nova si-
tuação, como mostra a pesquisa de Elisabeth Claverie, “Les guerres
de la Vierge, une antropologie des apparitions” que não trata de
aparições demoníacas, mas sim da Virgem Maria para videntes. Essa
etnografia apresenta as transformações que um santuário mariano
e sua importância turística trouxeram para uma pequena vila rural
iugoslava, ou seja, não é transição provocada pela industrialização
que provoca as aparições, mas são as aparições marianas que trans-
formam economicamente o povoado rural em um centro turístico
e comercial. As transformações no modo de vida e de trabalho
encontra nos trabalhos acima apresentados um enfoque particular,
indicando que temas como campesinato e mundo do trabalho longe
de terem se esgotado, podem, ao apresentar outros recortes, abrir
novas possibilidades e caminhos para a observação sociológica.

Referências Bibliográficas

CLAVERIE, Elisabeth (2003). Les guerres de la Vierge, une antropologie des apparitions.
Paris: Gallimard.

MARTINS, José de Souza. (2008) A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do


Eu dividido no subúrbio. São Paulo: Ed. 34.

ONG,Aihwa (1987). Spirits of resistance and capitalist discipline :factory women in Malaysia
Albany. NY : State University Press.
Este livro acabou de se imprimir em janeiro de 2009, com tiragem de 500 exemplares. A fonte utilizada para a
composição do texto foi o Bembo Regular corpo 12/13,5. A produção gráfica ficou a cargo da Sir Speedy, com
impressão digital sobre papel “Pólen bold” 90g (miolo) e cartão “Supremo” 250g (capa). Coordenação Editorial:
Raul Coachman – Projeto gráfico: Ricardo Barrocas – Editoração Eletrônica: Silvio Luis da Silva Neto.

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