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TRAVESSIAS
Revista de Ciências Sociais e Humanas de periodicidade anual e de sede editorial rotativa
nas instituições acadêmicas ou de fomento à ciência dos países de língua portuguesa.
EDIÇÃO DO NÚMERO 9
Ministério da Ciência e Tecnologia
Conselho Nacional de Dessenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
Programa de Cooperação em Ciências Sociais para os Países de Língua Portuguesa
Editor Executivo
Renato Lessa / Iuperj (UCAM) e UFF
Editora Adjunta
Sabrina Evangelista Medeiros (EGN e UFRJ)
No 9 – 2008
(1) TRAVESSIAS aceita trabalhos inéditos, sob forma de artigos e comentários de livros, sob
forma de ensaios bibliográficos em Ciências Sociais. Os trabalhos deverão ser de interesse académico e
social, e escritos de forma inteligível ao leitor culto; os aspectos mais técnicos e especializados deverão
limitar-se ao essencial.
(2) A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres de membros do Conselho Edito-
rial e de Avaliadores Ad Hoc – garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação.
Eventuais sugestões de modificação de estructura ou conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente
acordadas com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois que os trabalhos forem
entregues para composição.
(3) Os artigos devem ser apresentados via e-mail (travessias@iuperj.br) acompanhados de resumos
em torno de 250 palavras, em que fique clara uma síntese de propósitos, dos métodos empregados e das
principais conclusões do trabalho, além de palavras-chave e dados sobre o autor (titulação acadêmica, cargo
que ocupa, áreas de interesse, últimas publicações etc.).
(4) Os artigos deverão ter em torno de 30 laudas digitadas, escritas em Times New Roman,
tamanho 12, espaço 1,5. O nome dos autores, acompanhado de grau de titulação e instituição em que
actuam, deve constar na primeira página, separadamente do artigo.
(5) As recensões (resenhas) devem versar sobre livros escritos nos últimos três anos. Devem ter
entre 6 e 10 páginas, Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5.
(6) Gráficos deverão ser acompanhados das respectivas planilhas que os originaram, com indicação
das unidades em que se expressam os valores e as fontes correspondentes.
(8) Com a publicação do artigo ou recensão, o autor receberá cinco exemplares da revista.
Sumário
7
Apresentação
9
Gêmeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos:
uma Teoria Moçambicana de Poder Político
Paulo Granjo
35
Militância Política e Religiosa: Representações Paradoxais
de Pentecostais no Processo de Ocupação de Terra
Fábio Alves Ferreira
61
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal:
Relações Interétnicas de Acomodação e Resistência
Manuel Carlos Silva
95
O Controle Democrático das Práticas Policiais
César Barreira
107
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização
na Análise Sociológica: Debate e Crítica
Alessandro André Leme
133
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal:
a Questão Identitária
Francisco Avelino Carvalho
157
O Tempo da Justiça Criminal:
Portugal e Brasil em uma Perspectiva Comparada
Ludmila Ribeiro
187
Governamentalidade e Anarqueologia
Nildo Avelino
209
Sociologia de Cobras e Latão:
Reflexões sobre a Produção de Conhecimento
das Sociedades Africanas
João Feijó
227
Ensaio Bibliográfico
As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias:
Leituras da Obra de José de Souza Martins e Aihwa Ong.
Letícia de Faria Ferreira
Apresentação
Renato Lessa
Editor Executivo de TRAVESSIAS (números 8 e 9)
Presidente do Comitê Gestor do
Programa Ciências Sociais/CPLP (MCT/CNPq)
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos:
uma Teoria Moçambicana do Poder Político
Y
Paulo Granjo
Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa
Resumo
À imagem de antigas referências etnográficas, os gémeos e os
albinos são vistos, no sul de Moçambique, como o resultado e causa de
calamidades cósmicas. Eles foram atingidos por raios dentro do útero
materno e secarão o solo, a menos que sejam enterrados sob condi-
ções especiais, ou simplesmente “desapareçam” da face da Terra. Os
condicionalismos impostos às suas vidas e mortes foram extrapolados,
nas décadas mais recentes, para conceber uma categoria inesperada de
pessoas: os prisioneiros políticos que desapareceram das cadeias coloniais,
ou que foram enviados pelo estado pós-independência para “Campos
de Reeducação”. No entanto, não foi esse o caso dos «improdutivos»
urbanos que desapareceram sob exílio interno na região do Niassa. As
crenças acerca dos gémeos e albinos foram utilizadas para expressar
uma declaração moral local acerca do poder politico: é socialmente
ameaçador fazer perigar o poder estabelecido; mas é ilícito, para um
poder legítimo, tomar decisões injustas acerca das pessoas que tem sob
sua responsabilidade.
Imagem 1. Cemitério da Matola, junto do rio com o mesmo nome, de uma salina e da Mozal.
Foi a primeira vez que ouvi falar de uma ligação simbólica entre
gémeos, albinos e prisioneiros políticos. Isto porque, sinteticamente, os
gémeos devem ser enterrados em solo húmido ou secarão a terra; os
albinos (que têm a mesma origem cósmica) supostamente não morrem,
mas desaparecem; e os prisioneiros desaparecidos eram enterrados em
terra molhada.
É desrespeitoso enterrar pessoas “normais” em solo molhado,
porque isso corresponde a tratá-los como «mortos que secam a terra» –
e essa era a razão da minha pergunta. Ao contar-me aquela história,
o senhor Matsolo concordou comigo e enfatizou a importância do
assunto que eu tinha levantado; mas, ao fazê-lo da forma que o fez,
ensinou-me algo de novo.
Esse novo assunto – a equivalência simbólica que mencionei e
o sentido que lhe subjaz – é a razão deste artigo.
De facto, existem várias referências etnográficas às restrições so-
fridas em Moçambique pelos gémeos, albinos e suas mães, e até algumas
interpretações antropológicas acerca delas. Se as compararmos entre si
e falarmos com as pessoas hoje em dia, parece que essas restrições não
mudaram muito nos últimos 100 anos, como tão pouco mudaram as
excepções geográficas onde, pelo contrário, os gémeos recebem uma
valoração positiva.
No entanto, essas regras resilientes e os conceitos que lhes sub-
jazem eram suficientemente pertinentes para terem sido seleccionadas
como uma linguagem para falar e pensar acerca dos prisioneiros políticos
desaparecidos, tanto durante o colonialismo como após a independên-
cia – embora não, conforme veremos, para referir os vários milhares
de pessoas que, na década de 1980, foram expulsas das cidades para a
remota província do Niassa, acusadas de serem «improdutivas».
A equivalência com gémeos e albinos foi empregue apenas por
esses prisioneiros terem desaparecido? Durante algum tempo, pensei
que essa explicação era suficiente – pelo menos se lhe adicionássemos
as restrições e estigma que os prisioneiros políticos sofreram. Contudo,
foram muito mais numerosos os deportados que desapareceram no
Niassa, também eles sofreram restrições e estigmatização, mas a equi-
valência que mencionei não é utilizada no seu caso.
Irei por isso sugerir que a equivalência simbólica entre gémeos,
albinos e prisioneiros políticos desaparecidos não é apenas formal; ela
expressa um conceito das relações de poder político em que prisioneiros
“subversivos”, mesmo tratando-se de lutadores pela independência, são
12 Travessias 2008
(3) Embora o seu livro The Life of a South African Tribe fosse publicado em 1912, Junod começou a escrevê-lo
em 1898, com base em dados recolhidos entre 1889 e 1895; foi recolhido material extra em 1907 (HARRIES,
2007), mas nada indica que fosse esse o caso daquilo que o autor diz acerca dos gémeos.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 13
(4) Pude ouvir duas delas em contexto urbano, de pessoas com níveis de escolaridade elevados: (1) uma mulher
terá gémeos se a sua xará (a pessoa de quem herdou o nome) teve gémeos; (2) tornar-se mãe de gémeos é heredi-
tário. Contudo, não só estas novas hipóteses populares torneiam a razão da própria existência de gémeos, como
se verifica que os casos reais de nascimentos de gémeos em gerações sucessivas são, pelo contrário, encarados
correntemente como um acontecimento estranho e excepcional, que exige uma explicação particular.
16 Travessias 2008
(5) Gaza era um estado do séc. XIX que ocupava grande parte do sul e centro de Moçambique, na sequência
da invasão da região por um grupo guerreiro de origem Zulu chamado vaNguni, que por sua vez tinha sido
empurrado dos seus territórios anteriores pelas guerras de conquista promovidas pelo rei Chaka. A sua der-
rota pelos portugueses, em 1895, marca o início da ocupação colonial efectiva do interior sul de Moçambique
(veja-se, por exemplo, CLARENCE-SMITH 1990 [1985], PÉLISSIER 1994, LIESEGANG 1986a,VILHENA
1996, ou NEVES 1987 [1878]). Kraal (“curral”) era a designação local das residências dos reis, juntamente com
as suas cortes e gado.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 17
(6) Actual capital do país, Maputo. Na altura, era apenas um presídio e um porto, rodeados de algumas casas,
armazéns e paliçada. A capital da África Oriental Portuguesa era então na ilha de Moçambique, mais a norte.
(7) Como referi na nota 3, os dados para o livro de Junod foram recolhidos em dois períodos: de 1889 a 1895
(antes da derrota do império de Gaza) e em 1907 (sob efectiva dominação colonial portuguesa). Os exemplos
apresentados no mencionado sub-capítulo mostram que os seus dados são de 1907.
18 Travessias 2008
(8) Também na vizinha Tanzânia não é suposto que os albinos morram. Mas, paradoxalmente, partes dos seus
corpos são procuradas para efeitos de feitiçaria de enriquecimento, visto que o enriquecimento pessoal é visto
como algo que seca a riqueza à sua volta. Por essa razão e por ser desconhecida a localização das suas campas,
pelo menos 19 albinos foram mortos e mutilados post mortem, em 2007 (GETTLEMAN, 2008). Também em
Moçambique, os mais poderosos amuletos e tratamentos mágicos para obter e manter riqueza e poder exigem
partes de corpos humanos mas, tanto quanto sei, não especificamente de albinos. Isto pode contudo mudar em
breve, devido ao ocorrido na Tanzânia e à habitual rapidez com que novas técnicas mágicas se espalham na região.
Os dados acerca dos procedimentos funerários com albinos resultam de uma comunicação pessoal de Danúbio Lihahe.
20 Travessias 2008
(9) Comunicação pessoal de três ex-militares portugueses (dois deles conscritos) que testemunharam este
procedimento e desejam manter o anonimato.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 21
Subversivos e Vítimas
Em Maio de 1983, ao informar o país acerca dos resultados do
4º Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel anunciou que
uma das decisões era «limpar as cidades de vadios, marginais, prostitutas e to-
dos aqueles que não trabalham». Nas palavras de Gita Honwana (1984: 3),
22 Travessias 2008
Imagem 3. Julgamento de uma mãe, durante a Operação Produção (foto Justiça Popular).
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 23
(10) Ao contrário dos restantes exemplos que menciono, tomei conhecimento destes últimos casos (que cor-
respondem à punição de inimizades pessoais ou políticas que não encontravam bases legais sob outras acusações)
através de comunicações pessoais, e não pelos artigos da revista Justiça Popular.
24 Travessias 2008
(11) Num quadro monopartidário que indiferenciava o Estado e o Partido Frelimo, esta expressão designava os
Secretários de Bairro, os Grupos Dinamizadores e as lideranças locais das organizações de base da Frelimo, com destaque
para as de mulheres e de juventude. “Estruturas” acabou por se tornar a designação popular para quaisquer di-
rigentes do Estado ou da Frelimo, do nível central ao local.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 25
(12) Pouco depois da independência, em 1975, os regimes minoritários “brancos” da Rodésia (Zimbabué) e África
do Sul começaram a apoiar grupos de oposição armada para actuarem em Moçambique, cuja acção acabou por
evoluir para uma guerra civil em larga escala que apenas terminou em 1992. Acerca dos horrores dessa guerra,
veja-se por exemplo Geffray (1991), Hall & Young (1997) e Granjo (2006).
26 Travessias 2008
mais útil a fazer o meu trabalho de graça, naquele dia. Mas nunca me
queixei dessas coisas. Não gostava, mas fazia o meu melhor e aceitava.
E aceitava a Frelimo mandar, porque nos trouxe a independência.
Mas mandaram-me para o campo de reeducação como contra-
revolucionário e sabotador! Foi assim: uma peça importante de uma
máquina partiu e o director da fábrica mandou-me fazer uma nova.
Eu disse que não se podia fazer, que era preciso importar. Expliquei
que não tínhamos aquele aço e as ferramentas que eram precisas e
que, se substituíssemos por uma peça feita por nós, outras iam partir.
O director não sabia nada de mecânica e indústria. Era só um “camarada
dedicado da luta armada”13 e então fui preso como sabotador. Depois,
aconteceu o que eu disse. Ele é que foi o sabotador, mesmo. Mas fui
eu que fiquei anos no campo de reeducação.
(13) A independência de Moçambique, em 1975, foi precedida e acompanhada por um êxodo quase geral das
pessoas com origens europeias ou asiáticas (RITA-FERREIRA, 1988). Visto que o acesso à educação escolar
e aos postos de chefia era muito racializado no tempo colonial, isto criou uma dramática escassez de pessoal
qualificado na maioria das áreas e actividades. Dessa forma, o voluntarismo e o currículo político tornaram-se,
muitas vezes, o único critério disponível na nomeação para postos de liderança em instituições administrativas
e económicas.
Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 29
(14) Seria interessante verificar que destino era atribuído pelos relatos populares aos cadáveres das pessoas falecidas
em trabalho forçado durante o regime colonial, mas não consegui encontrar referências a esse assunto.
(15) Para além da vasta bibliografia científica acerca deste assunto veja-se, por exemplo, o fascinante romance
sul-africano The Wrath of the Ancestors (JORDAN, 2004 [1940]).
30 Travessias 2008
Referências Bibliográficas:
CABRAL, João Pina (2004), “Os albinos não morrem: crença e etnicidade no Mo-
çambique pós-colonial”. In F. GIL, P. LIVET & J. P. CABRAL (eds.), O Processo
da Crença. Lisboa, Gradiva, pp. 238-267.
FELICIANO, José Fialho (1998), Antropologia Económica dos Thonga do Sul de Moçam-
bique. Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique.
FRAZER, James (1922 [1890]), The Golden Bough. New York, Macmillan.
GRANJO, Paulo (2005), Lobolo em Maputo: um velho idioma para novas vivências con-
jugais. Porto, Campo das Letras.
HALL, Margaret & YOUNG, Tom (1997), Confronting Leviathan: Mozambique since
Independence. London, Hurts & Company.
JORDAN, Archibald Campbell (2004 [1940]), The Wrath of the Ancestors. Johannes-
burg, AD Donker.
JUNOD, Henry (1996 [1912]), Usos e Costumes dos Bantu. Maputo,Arquivo Histórico
de Moçambique, vol. II.
LIESEGANG, Gerhard (1986), A guerra dos reis Vátuas do cabo Natal, do Maxacane da
Matola, do Macassane do Maputo e demais reinos vizinhos contra o presídio da baia de
Lourenço Marques. Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique.
NEVES, Deocleciano Fernandes das (1987 [1878]), Das Terras do Império Vátua às
Praças da República Bóer. Lisboa, Dom Quixote.
URDANG, Stephanie (1989), And Still They Dance: women, destabilization, and the
struggle for change in Mozambique. London, Earthscan.
Y
Fábio Alves Ferreira
Programa de Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada no Assentamento
Herbert de Souza, localizado em Moreno, interior do Estado de Per-
nambuco. Tal pesquisa procurou constatar quais são as representações
religiosas de camponeses praticantes de alguma religião pentecostal e
que foram beneficiados com desapropriação do Engenho Pinto, trans-
formado posteriormente em assentamento. Esse assentamento é com-
posto de camponeses dentre os quais muitos se professam praticantes
de atividades religiosas pentecostais. Por meio de pesquisa qualitativa,
com entrevistas sem-estruturadas, constatamos que a identidade reli-
giosa daqueles camponeses interferiu ou interferem no desenrolar de
seu cotidiano de pequenos agricultores. Percebemos no decorrer da
investigação que os assentados pentecostais, todos beneficiados pela ação
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), atualizam
suas representações religiosas de acordo com a demanda de vida que os
motivou quando da entrada deles no processo de ocupação. Foi cons-
tatado também que o lugar e o tempo no qual aconteceu a inserção de
cada pentecostal fez com que eles desenvolvessem elaborações religio-
sas diferenciadas acerca do Movimento, da terra e do que concebem
como prática religiosa. Assim eles tecem redes de significado que dão
ordem às suas concepções de mundo. Nesse hibridismo de concepções
criamos três tipos ideais de pentecostais: os pré-ocupação, os pós-ocupação
e os pró-ocupação. Consideramos, finalmente, que as representações são
elaboradas num momento de crise, em que há um intercâmbio de
36 Travessias 2008
Representações Paradoxais:
Pentecostais, MST e a Terra
Os pentecostais, já residentes do Engenho Pinto no período
anterior à ocupação, mantiveram uma postura arredia acerca do MST.
Animaram-se inicialmente com a possibilidade da divisão da terra e com
o dinheiro proveniente dos projetos para desenvolvimento dos agriculto-
res. Entretanto, com o passar do tempo, começaram a expressar o desejo
de retorno ao tempo no qual trabalhavam para o dono do engenho.Tais
posturas tornam-se perceptíveis através do discurso dos pentecostais,
nos quais falavam de uma organização que permeava o assentamento.
Sentiam-se assistidos, acobertados, sobretudo financeiramente. Mesmo
ganhando uma “quantia pouca de dinheiro” por cada tonelada de cana
que pudessem colher, falavam de uma prosperidade lenta, mas contínua.
Esse discurso se sustentou no pressuposto de que atualmente “não há
organização no Engenho”. M.T.S.L. nos informou que:
Antes tinha 600 pessoas empregadas. Cum nada, cum nada o povo tinha
seu salário, seu décimo e hoje? Saiu esses projeto aí, mas os marajá
comeu tudo. De oito mil e tanto que saiu, só chegou pra gente cinco e
pouco. Três mil reais eles comeram e agora é a gente que vai pagar.1
(1) MTSL, pentecostal e morador pré-ocupação do MST. Entrevista em: 02 nov. 2007.Todos os nossos interlocu-
tores são identificados com as letras iniciais de seus nomes, para que pudessem ter as suas identidades resguardadas.
Por fim, queremos esclarecer que na transcrição das falas dos pentecostais, com os quais tivemos contato, foram
mantidas as formas particulares e o modo específico deles falarem. Portanto, apresentar os termos expressos
corretamente na língua portuguesa seria impossível, pois eles usam uma linguagem coloquial. Segue-se que a
colocação de “SIC” na frente de cada erro tornaria o texto extremamente marcado por “sics”.
42 Travessias 2008
A razão para essa atitude se dá, a nosso ver, porque, agora como
pequenos proprietários de terras doadas pelo INCRA, eles deviam
seguir uma política de produção determinada por uma instituição
governamental. Os assentados começaram então a perceber que não
havia lucro; aliás, essa é uma reclamação de todos os demais que foram
ouvidos. Segundo o INCRA, eles deveriam se deter no plantio da
lavoura branca, tais como batata, mandioca, abóbora e outros legumes
e frutas. O problema é que, segundo o depoimento dos pentecostais,
isso não é suficiente para sobrevivência. Dessa maneira, os pentecostais
pré-ocupação relembravam da submissão ao patrão, acompanhada pela
certeza do salário no fim do mês.
Essa visão negativa, causada pela proibição de se plantar cana-
de-açúcar, foi transferida aos resultados da ação desencadeada pelo
MST. Daí a idéia de que o MST é um movimento que traz miséria
para os agricultores pobres. No entanto, há dois anos, o INCRA cedeu
à plantação de cana-de-açúcar entre os beneficiários do Assentamento
Herbert de Souza. No depoimento de V.S.P., percebemos claramente
a mudança. Ainda assim, essa mudança de representação a respeito do
MST não é homogênea entre os pentecostais pré-ocupação. Isso porque
outros continuaram afirmando a degradação daquele espaço rural em
virtude da desapropriação desencadeada pela ação do movimento. En-
tre os agricultores pentecostais que continuam a afirmar uma melhor
situação no tempo do Engenho, estão aqueles que, na época em que
trabalhavam para o proprietário da fazenda, galgavam um status ou um
cargo que lhe trazia diferencial significativo aos trabalhos desenvolvidos
pelos demais agricultores.As representações sobre o movimento são:“o
MST é um movimento de bagunça e Deus não é dessas coisas”; “por
causa desse movimento que o engenho está desorganizado, as pessoas
desempregadas e as terras sem produção”. Entretanto, estas são opiniões
individualizadas e não expressam uma idéia comum entre eles.
A ordem do INCRA era pra não plantar cana. Só lavoura branca. Mas
eles viram que ninguém ia pagar o banco se não fosse com cana. Aí
liberaram. Eu sempre vi esse movimento como uma coisa que tava
trazendo confusão e na verdade trazendo tormento pra os pobres que
mora no campo. E trazendo mais gente que já passa dificuldade na
cidade pra passar mais ainda nos engenhos. Mas você me perguntou
como eu acho essas coisas diante de Deus; (...) uma coisa dessas nunca
é de Deus. Deus traz bênçãos, alivia. Mas as vez a gente demora pra
entender as coisas: com o passar do tempo que eu fui ver que isso
trouxe uma diferença pra todos. Porque de dez anos pra cá eu sinto a
Militância Política e Religiosa 43
O MST é errado porque faz aquela inganja por terra. Num é verdade?
Tá certo que divide as coisas e cada um tem um pedaço de terra pra
cum nada plantar sua macaxeira. Mas hoje em dia é mato por tudo.
Cada um tem sua terra, mas ninguém se dedica.6
tá precisando. Saiu terra, saiu projeto, a palavra de Deus diz: faça a sua
deligência que eu te darei.” 7
A maneira como os pentecostais pós-ocupação representam, em
seu imaginário, a atuação do MST deve ser entendida pela situação por
eles experimentada quando entraram no assentamento. Estes, como o
próprio nome indica, entraram posteriormente à ocupação. Mesmo
constatando que residem num lugar tomado pela ação coletiva e radical
de um movimento, conceberam a ilegalidade do ato. E quando indaga-
dos sobre beneficiados desse processo, argumentaram que sua imersão
no campo se concretizou após desapropriação da terra pelo INCRA.
Esses religiosos constroem representações que condenam este tipo de
atuação. D.S.S. afirmou com todas as letras que:
A Bíblia é clara nisso: se eu pego uma coisa que não é minha isso é
roubo. E Deus não aprova esse tipo de comportamento. Porque veja
bem: você tem esta bolsa, você comprou esta bolsa, ela lhe pertence.
Se eu tomasse de você e ficasse pra mim. Isto não é errado?8
Eu acho que tudo é de Deus.Tudo nesse mundo. Mas tem as leis aqui
que faz uma coisa passar pro nome de uma pessoa. E esta coisa neste
mundo vai ser daquela pessoa. Por isso que eu não concordo em tomar
o que é de outro. Porque essa pessoa suou pra ter.10
(7) ASS tem 52 anos de idade e é casada com SPS, de 65 anos. Ambos são pentecostais pró-ocupação.
(8) DSS tem 61 anos de idade e mora no Assentamento há nove anos. Pentecostal pós-ocupação. Entrevista em:
13 out. 2007.
(9) ASS pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 05 out. 2007.
(10) DSS pentecostal pós-ocupação. Entrevista em: 13 out. 2007.
46 Travessias 2008
Sou a favor do MST porque meu pai de criação foi assentado e agora
tem onde morar e onde conseguir seu pão. Mas diante de Deus ta
errado porque tomou à força. Mas por outro lado deu terra pra muita
gente que não tinha onde morar.13
(12) MRS filho de AS, que é pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 21 ago. 2007.
(13) FB, filho de pentecostais pré-ocupação. Os pais mudaram para a cidade e o mesmo continuou morando no
Assentamento. Entrevista em: 21 ago. 2007.
48 Travessias 2008
(16) Assim diziam os gritos de guerra: “MST essa luta é pra valer”, “reforma agrária já”.
52 Travessias 2008
(17) Um de nossos interlocutores, quando indagado sobre a razão do nome do Assentamento, respondeu que
Herbert de Souza foi “um cara do MST que foi assassinado porque lutava pelo povo”. D. N. pentecostal pré-
ocupação. Em: 10 nov. 2007.
Militância Política e Religiosa 53
Representações e Legitimação:
o Pentecostal no AHS
(18) José Roseno da Costa, o Tarimba, como era conhecido por todos, foi assassinado no próprio Assentamento.
Segundo as narrativas, ele estava em seu bar quando foi abordado por dois homens de moto. Após beberem
cervejas deram um tiro na cabeça de Tarimba.
54 Travessias 2008
Considerações Finais
As representações religiosas são eficazes, pois atribuem às tênues
construções humanas valores meta-históricos. Dando dessa maneira uma
consolidação que contraria aquilo que mais incomoda o ser humano:
Referências Bibliográficas
BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulinas, 1985.
DUVEEN, Gerard. O poder das idéias (introdução). In: MOSCOVICI, Serge. Repre-
sentações sociais: investigações em psicologia social. 2ª ed. Petrópolis:Vozes, 2004.
FARIAS, Marisa de Fátima Lomba de. “A gente vai levando a vida e esperando a ajuda
de Deus”. Representações religiosas nos Assentamentos de reforma agrária. II Simpósio
Internacional de Religião, Religiosidade e Cultura. Universidade Estadual do
Mato Grosso do Sul, 2006.
NOVAES, Regina Reyes. De corpo e alma: catolicismo, classes sociais e conflitos no campo.
Rio de Janeiro: Graphia, 1997.
Y
Manuel Carlos Silva
Departamento de Sociologia – Instituto de Ciências Sociais / Universidade do Minho
Resumo
As relações entre maiorias autóctones e minorias étnicas-
imigrantes lançam importantes desafios à democracia e exigem uma
nova gestão política, uma vez que determinadas situações históricas
e actuais têm demonstrado que a identidade étnica não traduz uma
realidade imutável mas é relacional e tem constituído, na esteira da
tese weberiana, uma fonte de clivagem social tão ou mais importante
como a identidade de classe. As posições de relativa desvantagem social
e económica em que se encontra(va)m membros de minorias étnicas
e imigrantes, agravadas pelas definições e categorizações externas por
parte dos membros da alegada maioria, comportam tensões e encerram
contradições que reflectem as da própria comunidade ou sociedade
autóctone. As instituições desta e membros do endogrupo autóctone
desejam a ‘integração’ das minorias étnicas-migrantes como exogrupo
mas, simultaneamente, reagem, subalternizando-as e confinando-as,
por exemplo, à ocupação de determinado lugar sócio-espacial. Por
sua vez, os membros das minorias étnicas e migrantes ressentem-se e
apresentam formas reactivas de resistência que incitam reviver e rea-
limentar a identidade cultural de origem e uma eventual demarcação
face ao exterior.
Entre outros modelos de alcance intermédio cabe salientar, por
exemplo, em relação à questão da identidade étnica e cultural modelo
quadrimodal de aculturação delineado, entre outros, pelo psicólogo
social Berry (1980), em que a aculturação, a assimilação, a separação e a
62 Travessias 2008
1. Introdução: o Problema
Portugal, país tradicional de emigração, tem vindo a constatar
nas últimas décadas uma notável mudança societal, ao transformar-se
também em país receptor de imigrantes. Não actuando preventivamente
nem fornecendo condições sociais mínimas aos imigrantes, como aliás
aos próprios portugueses em situação de pobreza, o Estado poderá acor-
dar tardiamente quando as clivagens ou os confrontos se manifestarem
com a sua crueza ou até crueldade. Por outro lado, convém precaver-
nos contra uma forma perversa de ideologia dominante que parte do
princípio etnocêntrico que os autóctones ou estabelecidos têm não só
o dever como o direito de incorporar ou assimilar os de fora, ou seja,
os imigrantes e demais minorias étnicas ou culturais. Por fim, importa
ter presente que a declaração do princípio da diferença, se não deve
constituir apenas um slogan para afirmar subrepticiamente a supremacia
dos nacionais, tão pouco pode resumir-se a um simples alibi ou táctica
conjuntural para incorporar os não nacionais a médio-longo prazo.
A questão que se coloca será, contextualizando-a, a seguinte:
em que medida os portugueses brancos têm ou não comportamentos
preconceituosos e quais as atitudes dominantes dos portugueses face
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 63
(1) As categorias sociais mais vulneráveis à pobreza em Portugal são, por ordem decrescente: idosos pensionistas;
agricultores de baixos rendimentos; assalariados de baixo nível de remuneração; trabalhadores precários e da
economia informal; minorias étnicas; desempregados; e jovens de baixa escolaridade e qualificações à procura de
primeiro emprego (Almeida et al. 1992: 77).
64 Travessias 2008
(2) É a este fenómeno que se refere Machado (1992:123):“falar de etnicidade é, genericamente, falar da relevância
que a pertença a determinados grupos étnicos pode adquirir no plano das desigualdades sociais, das identidades
culturais e das formas de acção colectiva” e, por seu turno, Fernandes (1995:15):“De uma maneira ou de outra, as
pessoas são continuamente afastadas da esfera de bens, privilégios, do mundo dos valores, da escolaridade normal
ou de um meio familiar digno” (1995:15).
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 65
que cada grupo tenha uma consciência mais ou menos nítida da sua
própria situação social e da posição dos outros, gerando uma potencial
eclosão de conflitos, os quais sedimentam, por sua vez, a consciência
de cada um dos grupos contendores. Com efeito, um grupo étnico,
sempre que separado social e economicamente dos demais ou quan-
do, como enfatizam Simmel (1987), Elias e Scotson (1969), Bourdieu
(1979), Giddens (1997), se apresenta como distintivo pelas suas origens,
vínculos de pertença e práticas culturais, demarca-se de e/ou é demar-
cado por outros grupos nas suas relações interétnicas, as quais poderão
caracterizar-se ora por co-presença e coexistência, ora por distância e
exclusão, ora ainda por afrontamento e hostilidade. As estratégias de
preservação das identidades étnicas reforçam-se, sempre que as mino-
rias são alvo de processos de exclusão no país de acolhimento ou por
parte da etnia dominante, fazendo emergir o que Weber (1978:303)
denominava comunidade negativamente privilegiada e Myrdal (1944)
designava de subclasse étnica.3 Este conceito em Myrdal foi construí-
do a partir da existência de categorias étnicas que sofriam de privação
relativa num contexto de pobreza e/ou exclusão social. As subclasses,
constituídas, amiúde, por trabalhadores imigrados e outras minorias
têm sido e ainda são apresentadas como ‘perigosas’ em certos círculos
conservadores, sem que estes se preocupem em aprofundar as raízes
e causas da marginalidade e da criminalidade nomeadamente urbana:
dificuldades de acesso à escola e situações de desemprego, desintegração
social, barreiras socio-culturais e/ou linguísticas, sendo o acumular de
obstáculos e dificuldades de vária ordem, nomeadamente o problema
habitacional que segrega um determinado grupo étnico como um
grupo minoritário excluído e discriminado.
Sempre que a pertença étnica comporte um eixo de diferen-
ciação social e sobretudo, como reiteram Machado (1992:123-124) e
Seabra (1994:9 ss), ocorra um processo de construção de identidade
socio-cultural das minorias étnicas contrastante com o da sociedade en-
volvente, estas duas (pre)condições favoráveis a mobilizações colectivas
são susceptíveis de desembocar em conflitos interétnicos. Em diversos
países e regiões, tais clivagens têm comportado, nas últimas décadas,
repercussões tão ou mais relevantes que os conflitos de classe, cujo po-
tencial de mobilização tem vindo a diminuir relativamente nas últimas
(3) Era aliás aos grupos desprivilegiados, quase párias, que, vivendo em “comunidades desprezadas”,Weber (1978)
se referiu e tipificou na sua classificação de classes, sendo o conceito de pária também retrabalhado na América
por Du Bois em torno do negro americano do início do século XX.
66 Travessias 2008
(4) Para Berry (1980) aculturação é abordada como um fenómeno multilinear, como um conjunto de alternativas
(integração, assimilação, separação, marginalização) mais do que uma simples modalidade que desemboca na as-
similação ou na absorção por parte da sociedade de acolhimento.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 67
(5) Rex (1995) salienta as desigualdades cívicas e sociais que resultam da actual União Europeia e que “separarão
os cidadãos da Comunidade Económica Europeia que gozarão do direito de livre circulação e os imigrantes na mesma Comu-
nidade que não beneficiarão desse direito: os imigrantes brancos vindos do Leste, os imigrantes originários do Terceiro Mundo
e um grande número de indivíduos em situação irregular e de refugiados” (1995:295).
(6) Wieviorka (1993:181 ss) reconhece aqui a etnicidade na sua plenitude: em nome da sua identidade particular,
da respectiva experiência ou da necessidade de assegurar a sua sobrevivência em épocas particularmente difíceis,
um grupo étnico é capaz de apelar à sua memória para “pressionar” a história.
70 Travessias 2008
(7) Giddens (1997:310) define sociedades plurais como sendo aquelas “onde existe uma grande variedade de grupos
étnicos englobados na mesma ordem política e económica, mas, por outro lado, completamente distintos uns dos outros. Fala-se, por
isso, em mistura mas não em associação.Vivem todos lado a lado, mas separadamente, dentro da mesma unidade política”.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 71
(8) cf. respectivamente Becker 1968, Goffman 1988, Weber 1978, Abou 1990, Almeida et al. 1994, Xiberras
1993, Martins 1996.
72 Travessias 2008
(9) Taguieff (1995: 309-317) evidencia as contradições ideológicas do discurso anti-racista: a contradição do
“pluricultural”, que consiste em enunciar a eminente respeitabilidade das diferenças grupais e, simultaneamente,
apontá-las como uma causa da falta de respeito entre as pessoas; a contradição das atitudes eruditas face à “raça”,
pois os preceitos legais (que, enquanto proibitivos da discriminação em função da “raça”, pressupõem que as
diferenças “raciais” são um factor de discriminações) contradizem a proclamada e provada não cientificidade da
noção de “raça”; a contradição das duas tolerâncias, traduzida na necessidade de compreensão entre humanos que
não podem compreender-se; a contradição da posição mistófila, que para combater a mistofobia elogia imod-
eradamente a mistofilia; o dilema da hipertolerância diferencialista e da concepção assimilacionista da cidadania,
traduzida na oscilação entre os ideais da coexistência e da assimilação progressiva
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 73
Outra
Outra
Estudante
Estudante
Profissão liberal
Profissão liberal
Trabalhador qualificado assalariado
Trabalhador qualificado assalariado
Pequeno comerciante
Pequeno comerciante
Artesão
Artesão
Empregado do comércio ou serviços
Empregado do comércio ou serviços
Operário fabril ou de construção civil
Operário fabril ou de construção civil
00 55 10
10 15
15 20
20 25
25 30
30 35
35 40
40
(10) A pesquisa foi realizada no distrito de Braga e sob a minha orientação (Manuel Carlos Silva), na sequência
de projecto aprovado
n = 287 pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (POCTI/SOC 103/96/2001) realizada
em 2001- 2003, cujo relatório final foi concluido em 2006. Para além de um inquérito elaborado a portugueses
não ciganos com uma amostra de 2000 inquéritos e uma amostra de 142 inquéritos a portugueses-ciganos,
74 Travessias 2008
foi elaborado um inquérito específico a africanos negros com uma amostra de 300 inquéritos a afri-
canos negros residentes no distrito de Braga, sendo este último inquérito o que diz respeito ao texto.
O questionário foi estruturado nas seguintes componentes: identificação pessoal em termos de variáveis como sexo,
idade, estado civil, nacionalidade, profissão, habilitação escolar, situação e antecedentes antes da vinda para Portugal,
motivos da emigração, apoios institucionais e informais, trajectória laboral, salários/renta, condições de trabalho,
tipo de alojamento e equipamentos domésticos, relações com vizinhança, dificuldades de inserção social, relação
com autoridades, percepções e representações sobre portugueses, crenças e afinidades políticas,caracterização
dos africanos, expectativas para os filhos, etc.
(11) Convém ter presente que um não desprezável número de respondentes declara que, além da profissão prin-
cipal na construção ou nos serviços, tem outro trabalho complementar, tendo alguns, nomeadamente guineenses,
referido ser também futebolistas, certamente em clubes de terceira divisão ou locais.
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 75
(12) Tal como referi no enquadramento teórico, o autor peca de um psicologismo de cariz individualista porque
não analisa o contexto e as diversas variáveis presentes na interação dos actores sociais, para além de assumir
como padrão referencial os valores da cultura dominante.
76 Travessias 2008
Outros
Outros
Habitação
Habitação
Serviços
Serviçospúblicos
públicos
Hábitos/costumes
Hábitos/costumes
Trabalho
Trabalho
Sim Língua
Língua
Não
n= 283 0%
0% 20%
20% 40%
40% 60%
60% 80%
80% 100%
100%
n = 283
Da análise do gráfico 2 podemos constatar que os inquiridos
destacam três principais dificuldades no processo de adaptação: ao nível
dos hábitos e costumes (50%); na esfera da habitação (38%) – situação
que pode, em parte, ser explicada pelo preconceito – e no mundo do
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 77
801€ e mais
701€ - 800€
601€ - 700€
401€ - 600€
251€ - 400€
0 5 10 15 20 25 30 35 1982
(13) Sobre as categorias em situação de precariedade e de pobreza, referem Almeida et al (1994:91), “de modo
geral, as categorias da população mais vulneráveis à pobreza, são essencialmente os desempregados de longa
duração, jovens à procura do primeiro emprego e certas minorias étnicas, nomeadamente africanos, asiáticos,
ciganos, deficientes e idosos com recursos limitados.
78 Travessias 2008
4. Sociabilidades e Interacções
Quotidianas na Comunidade Envolvente
Para os imigrantes é crucial manter as solidariedades familia-
res e grupais e as redes interpessoais que permitam a sua inserção e
suportem, também, novas estratégias migratórias. Um dos factores
determinantes das migrações é, precisamente, o acesso a redes sociais
de parentesco e amizade, que já existiam nos países de acolhimento. A
solidificação dos mecanismos de solidariedade e dos laços de entrea-
juda são uma primeira fase indispensável, porque estas sociabilidades,
no quadro dos processos de reprodução, sobrevivência e reciprocidade,
permitirão estratégias de maximização das possibilidades de obtenção
de sucesso no processo de adaptação.
Desta forma, de entre os tipos de sociabilidade existentes e,
para além dos já analisados apoios no momento de chegada e dos
relacionamentos com as diversas instituições da sociedade de aco-
lhimento, são de relevar, principalmente, as relações de vizinhança,
as amizades que se vão construindo no dia a dia. Quanto às relações
de vizinhança, vários dos inquiridos e, posteriormente, entrevistados
consideram que têm sobre as relações de vizinhança outras atitudes
e práticas diferentes das que ocorrem não só entre eles como das que
têm lugar entre os portugueses:
O que eu achei mais complicado foi lidar com as pessoas, porque eu
cumprimentava sempre com um bom dia, por exemplo, e ninguém me
dava resposta. Eu ficava mesmo chateada! (g,mu, 41 anos, cabeleireira).
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 81
eles não me chateiam para não haver problemas, é essa a relação que eu
tenho com eles (...) para evitar problemas, para evitar confusão, para ficar
na minha, convivemos, damo-nos bem, há portugueses espectaculares,
como há portugueses maus, como para nós, há africanos espectaculares,
há africanos que não prestam. (m,s,h,24 anos, estudante).
Outros
Outros
Receio
Receio dododiferente
diferente.
Falta dedediálogo
Falta dialogo.
Razões culturais
Razões culturais.
Falta de compreensão
Falta de compreensão.
Motivos racistas
Motivos racistas.
n= 26
Sim Não
0%
0% 10% 20%
10% 20% 30% 40% 50%
30% 40% 50% 60%
60% 70%
70% 80%
80% 90%
90% 100%
100%
sim não
Fonte: IIAPB, 2003
n = 26
nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %
Indiv.
Portugueses 22 17 2 7 7 19 8 14 3 23 13 37 55 19
Outros
imigrantes 68 54 16 59 18 49 32 56 7 54 13 37 154 52
Portug
e imig 37 29 9 33 12 32 17 30 3 23 9 26 87 29
TOTAL
127 100 27 100 37 100 57 100 13 100 35 100 296 100
Razoável
n= 297
56%
De “são boa gente” (g, mu, 42 anos, limpeza) a atitudes mais negativas
como “Eles mandam-nos embora quando querem. Nós somos colónia portugue-
sa, mas nós não merecíamos (g, mu, 44 anos, 12º ano, serviço de limpeza)
a percepção relativa ao acolhimento é razoável, o que se pode prender,
efectivamente, com lógicas de tolerância e de não hostilização, mas desde
que “cumpram as suas obrigações”. Ou seja, segundo uma entrevistada
“alguns portugueses ‘racistas” não nos aceitam, querem que ocupemos o nosso lugar,
não tolerando que ascendamos numa posição acima deles” (g, mu, 42 anos,12ºano,
mulher de limpeza, professora na Guiné), o que é constatável, como vimos
noutros textos (SILVA e SILVA 2002, SILVA e PINTO 2004), nas visões
e nos discursos dos autóctones sobre os imigrantes e os ciganos.
À excepção de uma minoria residual de 2% para os quais os
portugueses “não discriminam nem são racistas”, para 54% só alguns
portugueses são racistas, para 30% “os portugueses são na sua maioria
racistas”, para 14% os “ portugueses são todos racistas”, um retrato que
não deixa de suscitar alguma preocupação. Mesmo podendo relativizar
os 14% que dizem que todos os portugueses são racistas, questão que
não deixa de ser produto de vivências concretas de discriminação, o
certo é que 30% considera que a maioria dos portugueses é racista.
Os ciganos
Os negros 14%
n= 292
e os ciganos
48%
4. Balanço e Conclusão
Feita uma breve introdução a conceitos centrais em torno das
relações interétnicas e enunciado o problema, neste texto cingi-
me, com base nalguns dos resultados do inquérito e das entrevis-
tas, a caracterizar brevemente os inquiridos em termos laborais e
Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 87
nº % nº % nº %
-250€ 6 3 3 5 9 4
251€ - 400€ 47 27 30 49 77 33
401€ - 600€ 69 40 18 30 87 37
601€ - 700€ 30 17 4 7 34 15
701€ - 800€ 19 11 4 7 23 10
801€ e + 1 1 2 3 3 1
TOTAL 172 100 61 100 233 100
Fonte: IIAPB, 2003 (IIAPB = Inquérito aos imigrantes africanos dos PALOP´s)
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ciones Paidós.
Y
César Barreira Antonio dos Santos Pinheiro
Departamento de Ciências Sociais Universidade Regional do Cariri – URCA
Universidade Federal do Ceará e Laboratório de Estudos da Violência – LEV
Resumo
O presente artigo descreve as mudanças ocorridas no campo
da segurança pública após a promulgação da Constituição de 1998.
Conhecida pelos juristas, como Constituição Cidadã, a principal das
mudanças implantada por esta Constituição está relacionada ao exercício
democrático da população no controle sobre a violência policial. Entre
outras formas de controle, o texto se propõe a analisar a intervenção
das denúncias apresentadas a Corregedoria como um mecanismo que
permite a aplicação do poder policial de acordo com o respeito aos
direitos humanos.
Introdução
“A polícia me parou, e agora?”. Com este título o Governo
Federal lançou, em 2008, uma cartilha em que pretende orientar a po-
pulação brasileira como se comportar e quais os direitos que o cidadão
possui ao ser abordado pela polícia nas ruas. Esta preocupação a favor
dos direitos do cidadão sugere mudanças nas relações entre o Estado e
a sociedade civil, no que diz respeito ao uso legítimo da violência.
Nos dias atuais, a perspectiva de que os tempos são outros e a polícia
não é mais a mesma de antes, instiga um debate acerca da importância
96 Travessias 2008
(1) Os princípios básicos estabelecidos pelas Nações Unidas sobre o uso da força e de armas de fogo, resolução
n. 45/166 de 18 de dezembro de 1990, estabelece que o recurso a estes procedimentos deva estar orientado de
acordo com os princípios de necessidade, proporcionalidade, legalidade, oportunidade e ética. Cabe ao aplica-
dor da lei observar a discricionariedade, para que seus atos não configurem uma ação arbitrária de poder. Ver.
NOGUEIRA, Antonio Soares e AMARAL, Lima. A importância dos princípios de direitos humanos sobre o uso da
força e de armas de fogo para a Polícia Militar do Ceará. Fortaleza. (mimeo), 2001.
O Controle Democrático das Práticas Policiais 99
(2) A participação social nas questões relacionadas à segurança pública surge diante da própria necessidade dos
grupos e indivíduos em garantir seus deveres e obrigações prescritos no art.144 da Constituição Federal, que
define a segurança pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”.
100 Travessias 2008
(3) Proposta similar aos dos Conselhos de Justiça foi à criação, em junho de 2006, no país de uma Secretaria
Especial de Direitos Humanos – SEDH, para prevenir e controlar casos de tortura.
102 Travessias 2008
(4) Na Corregedoria, atualmente, existem cinco gabinetes de trabalho, onde os processos são analisados por cor-
regedores antes de serem encaminhados para o Corregedor Geral. Em sua formação, os Corregedores tanto o
Geral, como os chefes e auxiliares são bacharéis em direito.
(5) No estudo sobre a relação entre crime e cotidiano nas práticas policiais, em São Paulo, entre o período de 1880
a 1924, Fausto (2001: p. 186) constatou da mesma forma que, as principais razões para o medo e a insegurança nas
relações entre polícia e sociedade, estavam relacionados somente à curva dos delitos, mas, a outros fatores como,
por exemplo, a “recusa da população pobre a discutir a violência policial nos bairros populares”
O Controle Democrático das Práticas Policiais 103
Conclusão
A transição democrática na sociedade que culminou na parti-
cipação da sociedade civil, por outro lado, segundo Pinheiro (2000),
nem mesmo tem sido suficiente para reduzir os altos índices de
criminalidade e violência. Na cidade de São Paulo, o aumento dos
crimes violentos, por exemplo, têm provocado o esvaziamento dos
espaços públicos, e, na ausência de tais espaços, as relações interpessoais
passariam a ser regidas pelos códigos privados de conduta social. Esta
questão tem contribuído para o que chamou de “esvaziamento do
monopólio da violência”.
Na opinião de um corregedor-chefe, por mais que a população
esteja consciente sobre seus direitos ao fazer uma denúncia contra
ações criminosas praticadas por policiais, existe ainda, a possibilidade
de o agente acusado causar o mal decorrente de uma situação de raiva
por ter sido alvo de intervenção judicial. A partir de sua experiência
de policiamento nas ruas, considerou que este tipo de pensamento é
cultural, em que um sentimento de impunidade diluída por todo corpo
social permite que as pessoas, quando lesionadas e informadas sobre os
seus direitos, procurarem a justiça legal, manifestem a recusa em levar
o caso à delegacia, primeiro, pela indisponibilidade de tempo para
prestar a queixa, e, segundo, pela descrença que a queixa possa resolver
a situação de indignação em decorrência da lesão sofrida.
O Controle Democrático das Práticas Policiais 105
Referências Bibliográficas
PINHEIRO, Paulo Sérgio (1996) O passado não está morto: nem é passado ainda.
106 Travessias 2008
Y
Alessandro André Leme
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Estadual de Campinas
Resumo
Do conjunto de transformações ocorridas no final do século
XX, as Reformas do Estado e as reestruturações nos setores infra-
estruturais adquiriram relevância político-econômica e institucional,
assim como também relevância para a análise teórico-científica. Desse
processo destacaram-se as privatizações nos setores elétricos dos países
em desenvolvimento. Por outro lado, tal processo marcou uma redefi-
nição de orientações e estratégias para o desenvolvimento. É perante tal
processo de mudanças que se faz necessária a análise das privatizações
do setor elétrico e suas respectivas motivações político-econômicas
e ideológicas. Ou seja, quais foram às motivações para as mudanças
e quais foram os atores que participaram deste processo e como se
beneficiaram do mesmo.
(1) A definição do termo “indústria” também pode variar segundo a concepção teórica, ou seja, enquanto para
algumas teorias ele está associado a algum tipo de mercado, para outros ele se vincula a uma determinada base
técnica específica.Ver melhor este debate em Acumulação e crescimento da firma, (GUIMARÃES, 1981).
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 109
(2) Embora a argumentação de Velasco e Cruz tenha como ponto de partida a relação entre o Estado, os em-
presários e o desenvolvimento industrial, a discussão teórica realizada pelo autor nos propicia entendermos
melhor a complexidade e a forma com que os diversos atores presentes em um determinado setor atuam – se
movimento e, que tipo de relação estabelecem com o Estado (demanda, pressões e etc.).
110 Travessias 2008
(3) Cabe reforçar aqui que a forma com os diversos atores sociais, políticos e econômicos se organizam, se
confrontam e costuram consensos preservam particularidades históricas inerentes ao espaço de disputas locais
(regionais ou nacionais).
118 Travessias 2008
(4) O caso que mais se diferenciou dos demais, segundo Velasco e Cruz, foi o Coreano por a partir do pós-guerra
construir uma industria já assentada na lógica do mercado, ou seja, a Coréia ao contrário dos demais países não
conferiu um papel importante à empresa pública. Ao passo que quando todos os países vão discutir sobre as
privatizações a Coréia vai direcionar suas reformas para o estabelecimento de fronteiras mais transparentes entre
os interesses privados e o poder público, na tentativa de evitar os vícios dos grupos monopolistas - independente
de ser privado ou público -, (VELASCO E CRUZ, 2004:98-99).
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 119
(8) O artigo 175 incubiu “ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. – Parágrafo único. A lei disporá sobre: o regime das empresas
concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como
as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; os direitos dos usuários; política tarifária; a
obrigação de manter serviço adequado”.
(9) A ANEEL foi aprovada pelo Decreto 2.335 de 6 de Outubro de 1997.
126 Travessias 2008
(10) Essa empresa também fez parte da concessão que controla a distribuidora de energia elétrica de São Paulo
até meados de 2006 - Metropolitana -, uma das maiores distribuidoras de energia elétrica do país.
(11) O conceito de processo histórico-estrutural nos parece aqui particularmente interessante por permitir, no
âmbito metodológico, a necessária fusão entre estrutura e história na análise social. Isto porque, sob tal perspec-
tiva, as estruturas são concebidas como produto da luta social e como resultado da imposição social, sendo, deste
modo, analisadas diante de processos. Conforme bem observa Cardoso (1993: 97), “a idéia de que existe uma
explicação histórico-estrutural tem a ver com o processo de formação das estruturas e, simultaneamente, com a
descoberta das leis de transformação dessas estruturas. Trata-se de conceber as estruturas como relações entre os
homens que, se bem são determinadas, são também (...) passíveis de mudança, à medida em que, na luta social
(política, econômica cultural), novas alternativas vão se abrindo à prática histórica. Neste sentido, o objeto da
análise não se reifica em atores, mas se dinamiza em conjuntos de relações sociais.”
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 127
(12) A autora ainda expõe que parte das privatizações também é motivada pela mudança nas idéias predominantes
sobre o papel do Estado na economia.
O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 129
Referências Bibliográficas
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who regulates. Report nº 13205-BR, 1994.
Y
Francisco Avelino Carvalho
Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa
Introdução
O discurso de que os jovens filhos de imigrantes se encontram
numa crise de identidade está largamente difundido, tanto no que se
refere a produções de carácter socio-antropológico, bem como no dis-
curso do senso comum. Assiste-se ao recurso a asserções do tipo “eles
[os descendentes] não sabem quem são (...) se são caboverdeanos, ou
se são portugueses”,2 para se referir ao problema que constitui a defi-
nição, ou a necessidade de definição, da identidade dos descendentes
de imigrantes. Quanto ao discurso académico, o posicionamento iden-
titário dos filhos de imigrantes caboverdeanos em Itália poderá estar
conotada à ideia de indefinição, quando se diz que “os descendentes
não são nem carne nem peixe”(MONTEIRO, 1997). A mesma ideia
estará presente na afirmação de que “ as «segundas» gerações são por
excelência o «lugar» da crise”(ALMEIDA, 2000).
Verifica-se que o problema da chamada ‘segunda geração’ tem
merecido a reflexão de vários autores em diversos contextos, desig-
nadamente o dos Estados Unidos da América,3 com a chegada de
contingentes de imigrantes oriundos de diversos pontos do globo; ou
(1) À Professora Doutora Margarida Marques por todo o incentivo e pela disponibilidade que sempre revela e
aos colegas do SociNova/Migrações pelos comentários.
(2) Palavras de um morador do bairro das Fontaínhas ( Entrevista n.º 6).
(3) Nos Estados Unidos da América os estudos sobre a segunda geração ganham particular relevância nas décadas
de 40 e 90 (Portes 1999:97).
134 Travessias 2008
(4) Designação atribuída à migração de descendentes nipónicos - os nikkeis - para o Japão, iniciada na década
de 80 (Sasaki citada por L. SUGIMOTO (2002, 24 a 30 de Junho).
(5) Vejam-se, M. B. ROCHA-TRINDADE (1986) Villanova, R. (1983).
(6) Para a exploração das entrevistas elaborou-se uma grelha de análise abarcando aspectos tais como os espaços
em relação aos quais os descendentes desenvolvem identificações; a relação que estabelecem com o seu país de
origem e com o de origem dos pais; e as relações interpessoais que estabelecem, cruzando-os com as representações
que elaboram, os atributos identitários que convocam e a dimensão temporal (passado, presente e futuro).
(7) Na codificação das entrevistas procedeu-se à classificação dos diversos excertos, atribuindo-os a um ou mais
aspectos da problemática contemplados na grelha, mas cientes de que, seguindo o raciocínio de Bardin (1995:115),
a selecção de determinados excertos “sem tratar exaustivamente todo o conteúdo” encerra “o perigo de elementos
importantes serem deixados de lado, ou de elementos não significativos serem tidos em conta”.
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 135
Caboverdeano
Embora cientes de que não se pode falar da existência de um
caboverdeano no sentido essencialista do termo, esta noção ganha
particular importância na constituição de identidades sociais desses
filhos de imigrantes.
Atente-se nesta identificação desenvolvida nas entrevistas reali-
zadas como dá conta a seguinte passagem, a que o descendente recorre
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 143
Português
Na assunção como português, ao contrário daquele que identi-
fica-se como caboverdeano, o facto de ter nascido em Portugal ganha
importância central, em detrimento da ascendência:
Eu sou portuguesa. Eu estou cá, nasci cá ... simplesmente os meus pais
são de Cabo Verde e ... olhe, eu até gosto de Cabo Verde, não é nada
disso. Mas, eu sinto que não tenho nada a ver com a vida de lá. Nasci
cá, sou portuguesa ... tenho passaporte e tudo. – (Entrevista N.º 12)
Luso-caboverdiano
Nesta identificação está presente a procura de valorização de
ambas as matrizes culturais, tanto a do seu país de origem como a do
país de origem dos pais:
(...) nunca fui a Cabo Verde, e tenho uma extrema necessidade de ir lá,
pelo menos para encontrar a minha raiz cultural não é? porque afinal
de contas eu tenho a minha raiz cá, eu tipo, adoro Portugal, sinto-me
tipo, portuguesa mesmo. Em termos culturais, em termos de educa-
ção foi aqui que eu recebi os meus valores, mas em termos de sangue
sinto uma grande ligação com Cabo Verde e quero ir lá conhecer (...).
– (Entrevista N.º 2)
Pretoguês
A decisão de incluir essa designação entre as aplicadas às categorias
de identificações aqui referidas, prende-se com a ênfase recorrente que
é colocada no atributo cor da pele. Um dos entrevistados afirma:
(...) eu digo que eu sou tuga,8 mas tuga preto, um pretoguês. Eu digo,
eu digo ... quando as pessoas me perguntam de onde é que eu sou, eu
digo que os meus pais são de Cabo Verde, que eu nasci cá, mas ... que
sou tuga preto, é assim que eu digo. – (Entrevista N.º 1)
Pan-étnica,
Para a consideração da categoria pan-étnica como uma das
identificações que os descendentes desenvolvem levou-se em conta,
por um lado, o facto de que nos bairros degradados e nos bairros de
realojamento há uma conotação que se estabelece entre os filhos de
imigrantes de origem africana e símbolos e estilos de comportamen-
to que se inspiram numa cultura “afro-americana”, distinta da dos
seus progenitores, com uma forte componente da cultura designada
de “adversarial”. Recorrem a aspectos simbólicos como estilos de
musica rap e hip-hop, graffiti e ainda expressões verbais como dread e
getto, que utilizam com o objectivo de contestar as normas e valores
institucionais (MARQUES, 2000:137). Ainda segundo Marques et
al (2000:137) o que se verifica é que “actualmente estes símbolos e
comportamentos tendem a generalizar-se e a constituir modas entre
a juventude, com a globalização da cultura afro-americana que extra-
vasa as fronteiras étnicas e nacionais e se enraíza como subcultura a
nível mundial”9, alargando assim o conjunto de referências culturais
disponíveis para os processos de identificação.
Nos excertos que se seguem evidenciaram-se essas referências que
se inserem em quadros que estão para lá das duas matrizes, a sociedade
de origem dos pais e a sociedade de origem dos descendentes, que têm
servido de balizas às identificações até aqui estabelecidas pelos filhos
(…) Jovens que vieram de Cabo Verde estudar, estavam lá a falar dos
jovens de segunda geração, mas falavam de nós como se fossemos um
mundo à parte. E se ... aí está o problema fulcral nesta questão toda.
É que somos vistos como seres à parte, como mundos à parte tanto
pelas pessoas originárias de Cabo Verde, como os portugueses. Por
exemplo, os portugueses vêem-te a passar na rua obviamente que vêem
que tu és diferente, que tens uma origem diferente, por causa da tua
cor de pele, já os caboverdeanos chegas ao pé deles ... ou falas muito
bem português [risos], ou dizes que nasceste cá, tipo és passado aaa ...
literalmente, quase como tipo ignorante, porque não sabes a tradição,
não nasceste lá. – (Entrevista N.º 2)
Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 149
(11) Malheiros, num estudo sobre a comunidade caboverdeana de Lisboa e Roterdão, revela-nos que é entre os
mais jovens (15-34 anos) que se registam os valores mais baixos quanto ao desejo de instalar-se em CaboVerde e os
mais altos quanto à hipótese de fixação em países terceiros. Enquanto que este último aspecto “mostra que a cultura
migratória está viva e que a possibilidade de mobilizar este recurso é equacionada” (Malheiros, 2001: 330).
152 Travessias 2008
(...) ah! vontade de viver em Cabo Verde é algo que não me falta! (...)
Principalmente eu gostaria muito de ir até o Tarrafal, para ir ver assim de
perto, como é que é o Tarrafal,12 mesmo a sério! – (Entrevista N.º 3)
Este desejo de contacto com a terra dos pais e a vontade de viver lá,
poderá ser entendida, de certo modo, como um regresso, não no sentido de
uma das fases do percurso migratório (ROCHA-TRINDADE 1995:39),
mas enquanto o regresso às origens, tomadas como ancestrais.
Referências Bibliográficas
CARREIRA, António (1977), Migrações nas ilhas de Cabo verde, Lisboa: Universidade
Nova de Lisboa.
COLLER, Xavier (2000), Estudio de casos, Cadernos Metodológicos, N.º 30, Madrid:
Centro de Investigaciones Sociológicas.
SAYAD,A. ( 1999), La double absence. Des illusions de l’émigré aux souffrances de l’immigré,
Paris : Seuil.
Artigos de jornal
SUGIMOTO, L. (2002, 24 a 30 de Junho), Parece, mas não é, Jornal da Unicamp, p. 11.
[Em linha] Acessível em <http://www.unicamp. br/unicamp/unicamp_ hoje/
ju/junho 2002/unihoje_ju178pag11.html>.
O Tempo de Justiça Criminal:
Portugal e Brasil em uma Perspectiva Comparada
Y
Ludmila Ribeiro
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida
Resumo
A proposta deste artigo foi realizar uma revisão dos estudos
realizados sobre o tempo de processamento da justiça criminal em
Portugal e no Brasil. Para tanto, as pesquisas realizadas em cada locali-
dade foram sumarizadas com o objetivo de verificar: a) qual a diferença
entre o tempo prescrito pelas legislações (morosidade legal) e o tempo
despendido para o processamento de uma causa criminal (morosidade
necessária) em cada realidade; e b) quais são os principais fatores que
de acordo com esta revisão explicam o tempo da justiça criminal em
ambas localidades.
Brasil e Portugal foram escolhidos como objeto de análise por-
que são filiados a tradições jurídicas semelhantes, inclusive, no que diz
respeito à existência de uma legislação que estabelece o tempo máximo
do processo. Por outro lado, os estudos realizados no Brasil sempre re-
ferenciam os estudos realizados em Portugal tanto no que diz respeito
à metodologia utilizada como ainda no que diz respeito aos fatores
utilizados como possíveis explicações para o menor ou maior tempo
de processamento. Neste sentido, reunir os estudos realizados em ambas
realidades pode auxiliar na melhor compreensão do problema e ainda
apontar questões que, apesar de relevante, ainda não foram abordadas
por esses estudos.
Introdução
Uma das temáticas mais relevantes no que se refere ao direito
em ação é a relativa à capacidade do sistema judicial em processar de
forma eficiente as demandas que chegam ao seu conhecimento. De
acordo com Santos (1996) um desses indicadores é o tempo despendido
pelos sistemas judiciais (Cíveis, Criminais, Trabalhistas, dentre outros)
no processamento do caso desde a sua ocorrência até a sentença que
encerra, institucionalmente, o conflito.
A problemática atual dos sistemas de justiça criminal se refere a
sua incapacidade de processar adequadamente os delitos que chegam ao
seu conhecimento, especialmente pela demora excessiva no julgamento
de uma dada infração. O efeito perverso deste problema é o fato de ele
contribuir para a disseminação da idéia de impunidade. Isso porque, se
o tempo de processamento do delito é excessivo, a probabilidade de a
punição acontecer em um horizonte muito distante do tempo presente
é real e, com isso, a idéia de que o crime compensa deixa de ser uma
falácia para se tornar uma realidade.
Assim, o estudo do tempo de processamento de um delito pelo
sistema de justiça criminal é importante porque este é um indicador
da própria capacidade das organizações em implementar a idéia de
justiça. Se o tempo da justiça é longo, é cada vez menos provável cor-
rigir falhas técnicas na condução administrativa dos procedimentos ou
localizar testemunhas, eventuais vítimas, possíveis agressores. Se o tempo
da justiça é curto, corre-se o risco de suprimir direitos consagrados
na Constituição e nas leis processuais penais, instituindo, em lugar da
justiça, a injustiça (ADORNO e IZUMINO, 2007).
A sociologia contemporânea (portuguesa e brasileira) tem ana-
lisado cada vez mais esta temática na tentativa de: a) calcular o tempo
despendido pelo sistema de justiça criminal no processamento de uma
infração penal e; b) compreender em que medida os sistemas de justiça
criminal aplicam ou não os dispositivos legais que regulam o tempo
de um processo.
No que se refere ao cálculo do tempo propriamente dito, o
pressuposto para a realização deste tipo de estudo diz respeito ao con-
traste dos conceitos de morosidade necessária e de morosidade legal.
A morosidade legal seria aquela estabelecida pela lei, pelos códigos. Já a
pode ser entendida como o tempo ideal de du-
ração de um processo, tempo este que harmoniza rapidez e eficiência
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 159
(1) No Brasil, o julgamento pelo júri é privativado dos crimes dolosos contra a vida. Em Portugal, este ocorre
sempre que acusação e defesa o julgarem conveniente.
162 Travessias 2008
(*) Tempo do processo calculado desde a data do crime até a data da sentença
(**) Processos criminais encerrados entre 1989 e 1993
Duração
(anos) N % N % N % N % N %
< 1 9686 20% 10468 21% 10699 17% 17117 21% 20518 29%
1 e 1,9 16325 34% 18138 36% 22722 35% 26188 33% 23391 33%
2 e 2,9 9088 19% 9136 18% 13532 21% 15609 20% 11942 17%
3 e 5,9 7953 16% 7722 15% 10943 17% 12931 16% 5516 8%
5 e mais 5162 11% 5031 10% 6913 11% 8043 10% 8963 13%
TOTAL 48214 100% 50495 100% 64809 100% 79888 100% 70330 100%
CARACTERÍSTICAS PROCESSUAIS
CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS
Insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos humanos Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)
Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)
CARACTERÍSTICAS LEGAIS
Crimes qualificados (casos mais complexos) Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)
CARACTERÍSTICAS TEMPORAIS
Assim, para cálculo de tais tempos, tal como sugerido por Adorno
e Izumino (2007), foram identificados todos os prazos estabelecidos no
Código de Processo Penal – CPP para processamento de um crime,
com destaque para: o tempo de duração dos inquéritos; intervalo entre
o inquérito e a denúncia; intervalo entre o oferecimento da denúncia
pelo promotor e o aceite desta pelo juiz; intervalo entre o aceite da
denúncia pelo juiz e o interrogatório do réu; duração da instrução cri-
minal; tempo gasto com as providências ordinárias do rito processual, tais
como oitiva de testemunhas, defesa prévia, alegações finais, pronúncia,
libelo e contra-libelo acusatório, e julgamento pelo tribunal do júri.
Ao final deste exercício, foi possível constatar que, para crimes
comuns, o tempo prescrito pelo Código de Processo Penal é de 129
dias para réu preso e 179 dias para réu solto. Importante salientar que,
de acordo com a classificação de Santos (1996) este é o prazo deno-
minado de morosidade legal para os crimes comuns, posto ser este o
tempo formalmente prescrito pelo Código de Processo Penal.
Já para os crimes dolosos contra a vida, o CPP prescreve como
tempo de duração legal, desde o registro do delito pela autoridade
policial até o primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri, o prazo de
310 dias (ou 10, 3 meses) para o caso de réu solto e 260 dias para o
caso de réu preso.
Considerando essas informações é possível afirmar que, no Brasil,
o tempo de processamento dos crimes dolosos contra a vida é 2,01
maior do que o tempo prescrito para o processamento dos crimes
comuns para os casos de réu preso e 1,73 vezes maior para os casos de
réu solto. Esses resultados apontam, por sua vez, para a expectativa de
um processo penal mais complexo, no caso de crimes dolosos contra a
vida em comparação com o processo de crimes comuns.
Esses resultados apontam ainda para diferenças no funcionamento
da justiça criminal brasileira e portuguesa no que se refere ao tempo
de processamento. Isso porque se em ambas há uma diferenciação de
tempos legais dependendo da situação jurídica do réu (preso ou solto),
apenas no Brasil há uma diferenciação de tempos legais de acordo com
a intencionalidade e o objeto do delito. Isso porque nesta localidade,
legalmente, os crimes dolosos contra a vida possuem um tempo maior
de processamento do que os crimes comuns.
Uma vez apresentadas as disposições legais relativas ao tempo
do processo criminal no Brasil, tem-se início a revisão das pesquisas
realizadas nesta localidade propriamente dita.
170 Travessias 2008
Campinas 120,33
Lapa 101,41
Ribeirão Pires 100,34
Itapec. Serra 92,28
Carapicuíba 91,3
Mauá 68,48
Praça da Sé 61,11
Jardim Noronha 22,52
Osasco 11,29
Média das médias 74,34
Tempo do CPP 10,16
(2) Importante destacar que a análise de Vargas (2004) se restringiu ao crime de estupro porque este delito possui
regras diferenciadas no que se refere ao tempo de processamento quando a vítima é menor de quatorze anos. Isso
porque, nesses casos, de acordo com o art. 224 do Código Penal há presunção de violência e, por conseguinte,
aumento do juízo de reprovação sobre este delito.
O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 173
Tipo de crime Crimes mais graves aumentam o tempo de processamento, pois, em regra,
contam com a presença de advogado particular a utilizar os recursos
processuais protelatórios que podem levar a materialização da prescrição.
Revelia do Réu Implica em aumento do tempo, dada a dificuldade dos funcionários
judiciais em se comunicarem com outros cartórios e delegacias de polícia
para, desta forma, encontrar o réu.
Problemas na fase policial A fase com maior tempo de duração é a do inquérito policial, dada a
dificuldade de obtenção de provas, de demora na realização de perícias e,
inclusive, de identificação do autor do delito
Adiamento do julgamento Em qualquer fase do processo, faz com que o tempo de processamento seja
aumentado A advogados particulares manejam este instituto neste sentido e
a ausência de defensores públicos faz com que ele termine por ocorrer
sucessivas vezes.
Dificuldade na localização Implica em aumento do tempo em razão da demora dos tribunais em
de testemunhas processarem as cartas precatórias
Prisão do indivíduo ao longo Fazem com que o tempo de processamento seja muito menor, pois, a
de todo o processo ou em maioria desses casos pede urgência dos tribunais.
algum momento do processo
Natureza da defesa Advogados particulares fazem com que o processo dure mais, ou para que
seu cliente seja beneficiado com a prescrição ou para que este alcance
uma pena menor.
Número de recursos O uso de recursos legalmente previstos visa atender aos interesses do
acusado da prática do delito de homicídio, dado que os atrasos no
processamento podem implicar em uma punição menor ou mesmo na
extinção do processo pelo decurso do tempo.
Natureza da Sentença
crime até a data da sentença) é de 707 (setecentos e sete dias) dias. Isso
significa que o sistema de justiça criminal da cidade do Rio de Janeiro
demorou, neste período, aproximadamente, 1,93 anos para decidir o
destino dos réus que praticaram este delito.
No que se refere aos fatores processuais capazes de explicar o
tempo de processamento (únicos disponíveis nesta base de dados) tem-se
que apenas as variáveis flagrante e condenação foram estatisticamente
significantes. De um lado, o flagrante atua como fator de redução da
morosidade necessária. Por outro lado, o fato de o caso se encerrar com
uma condenação atua como fator de extensão do tempo global de
processamento. Já as outras variáveis (homicídio qualificado, homicídio
praticado com concurso de agentes e presença de testemunhas) não
interferiram expressivamente no tempo de duração do processo.
Como a pesquisa de Ribeiro e Duarte (2008) foi a última pu-
blicada sobre este tema no Brasil é possível afirmar que, até o ano de
2008, todas as pesquisas realizadas sobre o tempo da justiça criminal
apontaram para a incapacidade deste em implementar os dispositivos
do Código de Processo Penal no que se refere ao tempo para proces-
samento do delito de homicídio doloso (foco da maioria das pesquisas
realizadas no Brasil) desde a ocorrência do delito até a sentença que
encerra o processo (Tabela 7).
(*) Considerando-se o prazo de 310 dias para réus soltos, já que alguns dos dados coletados não fazem esta
diferenciação entre réu preso e réu solto.
CARACTERÍSTICAS PROCESSUAIS
CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS
CARACTERÍSTICAS LEGAIS
Crimes qualificados (casos mais complexos) Izumino (1998), Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)
Julgamento do caso por um Juízo Especial (Júri) Código de Processo Penal (1941)
CARACTERÍSTICAS TEMPORAIS
Considerações Finais
A proposta deste artigo foi realizar uma revisão dos estudos
realizados sobre o tempo de processamento da justiça criminal em
Portugal e no Brasil. Para tanto, as pesquisas realizadas em cada
localidade foram sumarizadas com o objetivo de verificar: a) qual
a diferença entre o tempo prescrito pelas legislações (morosidade
legal) e o tempo despendido para o processamento de uma causa
criminal (morosidade necessária) em cada realidade; e b) quais são
os principais fatores que de acordo com esta revisão explicam o
tempo da justiça criminal em ambas localidades.
No que se refere ao primeiro objetivo, foi possível constatar
que, em cada país, as legislações sobre o tempo de duração do pro-
cesso criminal são distintas, em termos de: a) ano de publicação da
legislação, b) limite de tempo fixado; c) situação jurídica do réu e d)
natureza do delito (Tabela 9).
Portugal Código de
Processo Penal
Português 1987 420 Sim Não
Brasil Código de
Processo Penal
Brasileiro 1941 310 Sim Sim
(*) Para cálculo do prazo máximo, usou-se como parâmetro o réu solto.
180 Travessias 2008
Tabela 10
Sumário das variáveis apontadas pelas pesquisas como explicativas do
aumento do tempo de duração do processo penal em Portugal e Brasil
Variáveis apontadas como causas
da morosidade processual Portugal brasil
CARACTERÍSTICAS PROCESSUAIS
CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS
CARACTERÍSTICAS LEGAIS
CARACTERÍSTICAS TEMPORAIS
Referências Bibliográficas
GOMES, C. (1998), “Porquê são tão lentos? Três casos especiais de morosidade na
administração da justiça”. Coimbra
Y
Nildo Avelino
Núcleo de Sociabilidade Libertária / Pontifícia Universidade Católica - São Paulo
Resumo
O curso inédito intitulado Du gouvernement des vivants, proferido
por Michel Foucault no Collège de France em 1980, constitui um
momento importante nos estudos em governamentalidade. Em 1978,
no curso Sécurité, territoire, population, Foucault introduziu o problema
do governo e um primeiro deslocamento que levou da linguagem da
dominação para as artes de governar, marcando a operacionalização da
sua análise em termos de governamentalidade através de estudos sobre a
razão de Estado e o neo-liberalismo como tecnologias de governo. No
curso de 1980, retoma o estudo da governamentalidade no eixo verdade-
subjetividade, introduzindo um segundo deslocamento que leva do tema
Poder-Saber para o tema do governo dos homens pela verdade sob a
forma da subjetividade. A partir deste deslocamento, Foucault inaugura
uma postura intelectual que chamou de anarqueologia dos saberes. O artigo
aborda estes deslocamentos da analítica do poder de Foucault, situando
sua importância nos estudos em governamentalidade e as implicações que
uma anarqueologia do poder estabelece com o pensamento anarquista.
A abordagem comporta dois movimentos: o primeiro apreende a im-
portância que o deslocamento saber-poder/verdade-subjetividade ocupa
nas análises em governamentalidade; o segundo aborda o neologismo
anarqueologia como a descrição de uma história da força da verdade no
Ocidente pela análise dos diversos regimes de saber e suas conexões com
regimes jurídicos, penais, governamentais etc., propondo uma genealogia
das formas da obediência moderna.
Palavras-chave: Poder – Governamentalidade – Anarqueologia – Subjetivi-
dade –Verdade.
188 Travessias 2008
‘guerra civil’ que deve ser colocada no coração de todas essas análises
das penalidades.” A guerra civil é tomada como matriz de todas as lutas
em torno do poder, a propósito do poder e contra ele, matriz para a
analítica do jogo entre uma luta permanente e as diversas táticas de
poder. “Com efeito, poder-se-ia mostrar que a guerra civil (...) habita,
atravessa, anima, investe o poder em toda parte. Encontram-se precisa-
mente os sinais disso sob a forma desta vigilância, desta ameaça, deste
monopólio da força armada, numa palavra, de todos os instrumentos
de coerção que o poder efetivamente estabelecido se dá para poder se
exercer. O exercício cotidiano do poder deve ser considerado como
uma guerra civil; exercer o poder é, de alguma maneira, conduzir a
guerra civil, e todos esses instrumentos, essas táticas de que falei, essas
alianças, devem ser analisados em termos de guerra civil. (...) o poder
não é o que suprime a guerra civil, mas é o que a conduz e a continua;
e, se é verdade que a guerra exterior é o prolongamento da política,
é preciso dizer, do mesmo modo, que a política é a continuação da
guerra civil.” (Ibid.:32-33)
Nestas passagens, Foucault (1999a:55) aparece claramente ligado
ao tipo de análise realizada na História da loucura que descreve o sur-
gimento na Europa de “uma categoria da ordem clássica” conhecida
como internamento, responsável por colocar 1% da população parisiense
no interior do Hospital Geral alguns anos apenas após sua fundação,
e que atingiria bruscamente “seu limiar de manifestação na segunda
metade do século XVII” sob a forma da exclusão pelo internamento
como fato maciço. Essa mesma categoria foi retomada na Ordem do
Discurso para descrever os procedimentos de exclusão e interdição que
durante séculos atravessaram a vontade de saber no Ocidente (FOU-
CAULT, 1999b:14). Entretanto, esta análise em termos de exclusão foi
em seguida considerada inadequada por Foucault. Após a aparição do
primeiro volume da História da Sexualidade, em uma entrevista de janei-
ro de 1977, Foucault (2001b:229) afirmou ter aceito, em seus escritos
anteriores, a concepção tradicional do poder como aquilo que dita a
lei, que interdita, que diz não. Uma concepção do poder que condizia
ao período clássico no qual “o poder se exerceu sobre a loucura, sem
dúvida, sob a forma maior da exclusão”, mas que se mostrava insuficien-
te para descrever o exercício do poder na atualidade. Esta declaração é
confirmada pela narrativa de Pasquale Pasquino (1993:79), segundo a
qual foi a partir da segunda metade dos anos 1970 que o discurso em
termos de guerra e dominação, utilizado por Foucault para descrever
as práticas disciplinares, havia provocado um impasse que “conduziu a
190 Travessias 2008
Verdade e Subjetividade
Neste novo eixo correlacionado à dimensão programática da
governamentalidade e às múltiplas racionalidades governamentais, o
problema para Foucault, tal como descrito no resumo do curso, é o
de saber “como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo
dos homens exigiu da parte desses que são dirigidos, além de atos de
obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de
que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas de dizer
a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do
estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos
homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a
manifestar, enunciando-o, aquilo que se é?” (FOUCAULT, 2001b:944)
Para responder a essa questão, Foucault introduziu a noção de regime
de verdade para compreender a maneira pela qual “a verdade está ligada
circularmente a sistemas de poder que a produzem e a sustentam, e
a efeitos de poder que ela induz e que a reconduzem.” (Ibid., p. 114)
Regimes de verdade não são jamais simplesmente ideológicos nem
superestruturais; em todo caso, constituíram uma das condições de
formação do capitalismo tal como se conhece hoje. Por regime de
verdade é preciso entender aquilo que constringe os indivíduos a
um certo número de atos de verdade. Atos de verdade são tomados a
partir da análise do conceito de exomologese do cristianismo primitivo,
que designa “um ato destinado a manifestar ao mesmo tempo uma
verdade e a adesão do sujeito a essa verdade. Fazer a exomologese de
sua crença não é simplesmente afirmar o que se crê, mas afirmar o
fato dessa crença; é fazer do ato de afirmação um objeto de afirmação
e, portanto, autenticá-lo seja em si mesmo, seja diante dos outros. A
exomologese é uma afirmação enfática cuja ênfase se aplica antes de
tudo sobre o fato de que o próprio sujeito liga-se a essa afirmação,
aceitando suas conseqüências.” (Ibid.:945) A exomologese foi indis-
pensável ao cristianismo, na medida em que é através dela que o cristão
aceita as verdades que lhe são reveladas e ensinadas, e estabelece com elas
uma relação de obrigação e de engajamento.“Obrigação de manter suas
crenças, de aceitar a autoridade que as autentica, de fazer eventualmente
196 Travessias 2008
“Para que esse regime de verdade seja aceito é preciso que o sujeito
que pensa seja qualificado de uma certa maneira. Esse sujeito pode
perfeitamente ser submetido a todos os erros possíveis, a todas as ilusões
possíveis dos sentidos; pode até mesmo ser submetido a um raciocínio
imperfeito que o engana. Não obstante, existe uma condição para que
a máquina funcione e para que o ‘logo’ do ‘eu penso, logo, existo’ seja
um valor provável: é preciso que esteja vinculado a um sujeito que possa
dizer: ‘quando isso for verdadeiro, e evidentemente verdadeiro, eu me
inclinarei’. É necessário um sujeito que possa dizer:‘é evidente, logo, eu
me inclino’. É preciso um sujeito que não seja louco.” Daí a exclusão
da loucura como fato fundamental para a organização dos regimes de
verdade no Ocidente. Se não existe soberania em geometria, se para
a prática da geometria não é útil nem mesmo necessário que exista
uma visão principesca e soberana, tampouco “é preciso haver visões
da loucura na filosofia ou em qualquer outro sistema racional. Não é
preciso existir loucos, quer dizer, não é preciso existirem pessoas que
não aceitem o regime de verdade.” (Id.)
Nesse momento, Foucault introduz sua postura anarqueológica
que consiste em, ao invés de tomar a história da ciência para mostrar
como os regimes de saberes têm por função efetivamente coagir os
homens, mas fazendo-o de modo a reduzir neles suas presunções, des-
fazendo seus sonhos e fantasias, celebrando seus desejos ou desenrai-
zando suas representações. Ao contrário, uma história anarqueológica
consiste em negar, de saída, o direito de obrigação e a força de coerção
que o verdadeiro pretende sobre os homens. E para isso, é deslocada
a ação do “é verdadeiro” para a força que ele implica. “Uma história
deste tipo não seria consagrada ao verdadeiro na sua função, digamos,
de desenraizamento do falso e de rompimento com todos os laços que
o encerra, mas seria uma história consagrada à força do verdadeiro e à
ligação pela qual os homens se encerram, pouco a pouco, eles mesmos
na e para manifestação do verdadeiro.” (Id.) Na medida em que a força
de uma verdade não está no seu grau de racionalidade, trate-se ou não
dos atos de fé na exomologese cristã ou da certeza no cogito cartesiano,
uma analítica dos regimes de saberes ou, aquilo que Foucault chamou
de anarqueologia dos saberes e dos conhecimentos científicos e não
científicos, consiste não em “estudar de modo global as relações do poder
político e dos saberes e dos conhecimentos científicos” , mas “estudar
os regimes de verdade, quer dizer, o tipo de relação que vincula entre si
as manifestações de verdade e seus procedimentos, e os sujeitos que são
neles os operadores, as testemunhas e, eventualmente, os objetos.” (Id.)
200 Travessias 2008
(3) Landry (2007:31-45), escreveu seu artigo apoiando-se na transcrição integral do curso de Foucault, não obstante
não faz menção ao termo. No entanto, é citado como “anarcheology of power” em Szakolczai (1998: 247).
Governamentalidade e Anarqueologia 201
Genealogia da Obediência
A anarqueologia re-atualiza o que foi uma das grandes preocu-
pações na reflexão anarquista de Proudhon (1947:15) e que consiste
no questionamento: “do que procede, na sociedade humana, essa idéia
de autoridade, de poder; essa ficção de uma pessoa superior, chamada
Estado? Como se produz essa ficção? Como se desenvolve? Qual é
sua evolução, sua economia?” Para Proudhon, a filosofia é tão incapaz
de demonstrar o governo quanto de provar a existência de Deus, e a
autoridade política, tanto quanto a divindade religiosa, é matéria de fé.
Então, do que procede, na nossa sociedade, o fato de que os indivíduos
foram constrangidos, em seus discursos e em suas práticas, a declararem
para o poder, pelo poder e com o poder, não simplesmente “sim, eu
obedeço!”, mas foram igualmente constrangidos à acrescentarem a esse
ato de consentimento frágil esse outro ato de convicção que o reforça
e o consolida: “eu que obedeço: eis aquilo que sou, o que quero, o que
faço, o que penso”? (FOUCAULT;1980, loc. cit.) Do que procede esta
predisposição mental que fez, segundo Proudhon (1979:87), com que
“até nossos dias, as revoluções mais emancipadoras, e todas as eferves-
cências da liberdade, terminassem constantemente com um ato de fé
e de submissão ao poder”? Procede do fato, para Proudhon (Ibid.:245),
que o homem, envolvido por um “sistema teológico-político, recluso
nessa caixa hermeticamente fechada, da qual a religião é a tampa e o
governo o fundo, tomou os limites desse estreito horizonte pelos limites
da razão e da sociedade”. Procede, diz Foucault, destas práticas curiosas
encontradas na experiência cristã da carne, descritas por Jean Cassien,
padre do séc. IV, como procedimentos no qual o monge é admitido
no monastério e suas finalidades. Ambos remetem esta procedência
a um tipo de relação coercitiva entre verdade e subjetividade que é
historicamente localizável.
Vejamos. Segundo Cassien (1872:53 et seq.), quando se quer
entrar nas comunidades cenobitas é preciso passar por três momentos
sucessivos. Primeiramente, durante dez dias o noviço deve permane-
cer na porta do monastério onde ele será sistematicamente rejeitado
e desprezado por todos, ele será coberto de injúrias e de reprovações
pelos outros monges. Depois desses dez dias de estágio na humilhação,
202 Travessias 2008
mas que a obediência é e deve ser uma maneira de ser, uma maneira de
ser anterior a qualquer ordem e que é mais fundamental que qualquer
situação de comando. Consequentemente, o estado de obediência
antecipa, de alguma maneira, as relações com o outro, e antes mesmo
que esse outro esteja presente e que ordene, já se estará em estado
de obediência. Na direção entre noviço e mestre, a obediência não é
uma passagem na vida. Não existe uma parte da vida durante a qual se
obedece e depois uma outra parte durante a qual não mais se obede-
ce: a obediência não é uma passagem, mas um estado no qual se deve
permanecer até o fim da vida e sob o olhar de quem quer que seja. Por
essa razão Cassien caracterizou o que ele chamou de submissão como
o fato de ser sujeito. O mundo do monge deve ser uma trama na qual
cada um dos seus feitos e dos seus gestos devem ser inscritos como
respostas a uma ordem ou como respostas a uma permissão.
Foi sobretudo através do domínio da sexualidade que Foucault
demonstrou a força da verdade na problemática do governo de si e
do governo dos outros. É com relação ao sexo que governo e verdade
aparecem constantemente problematizados na experiência do Ociden-
te, na medida em que não foi possível governar o sexo pela força ou
pela violência, mas foi necessário governá-lo, dominá-lo ou limitá-lo
através de uma relação com a verdade. No curso Subjectivité et Vérité,
de 1981, Foucault afirma que a propósito da loucura, da doença e do
crime, os tipos de práticas implicando a existência e o desenvolvimento
de discursos verdadeiros sobre a razão alienada, sobre o corpo doente
e sobre o caráter criminoso, estabeleceram uma relação fundamental-
mente negativa e de rejeição na qual a questão da verdade da loucura,
da doença e do crime, foi colocada unicamente a partir dessa rejeição
e dessa recusa. Com a sexualidade o problema é diferente. Qualquer
que seja o sistema de regulação, o sistema de desqualificação, o sistema
de repressão ou de rejeição no qual a sexualidade foi exposta, ela não é
jamais o objeto de rejeição sistemática, fundamental e constante. Mas,
ela é objeto de um jogo sempre complexo de recusa e de aceitação, de
valorização e de desvalorização. Além disso, nos domínios da loucura,
da doença, do crime, o essencial do discurso verdadeiro é tido como
vindo do exterior sobre o sujeito, por um outro: é na medida em que
não se é louco, é na medida em que o médico não é doente, é na me-
dida em que aquele que fala do crime não é criminoso, é deste modo
que um discurso verdadeiro pôde ser mantido sobre a loucura, sobre
a doença e sobre o crime. Já o discurso verdadeiro sobre a sexualidade
foi institucionalizado, diz Foucault (1981:fita I, lado B, 07/jan.), em
Governamentalidade e Anarqueologia 205
Referências Bibliográficas
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Londres, Routledge.
Sociologia de Cobras e Latão:
Reflexões sobre a Produção de Conhecimento
das Sociedades Africanas
Y
João Feijó
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Resumo
Na produção de conhecimento sobre as sociedades africanas
são utilizados uma série de conceitos que têm carecido de uma devida
problematização. De facto, vulgarizam-se expressões como africanismo,
africanidade ou afrocentrismo, conceitos que são descontextualizados de
inúmeros factores que condicionam a produção de conhecimento, entre
os quais os interesses económicos e as agendas de investigação, questões
políticas e nacionalistas, ou simplesmente os processos de competição
pelo acesso a recursos de poder. O texto em questão pretende analisar
uma série de pressupostos e condições sociais de investigação que es-
truturam a produção de conhecimentos sobre as sociedades africanas.
Trata-se de entender a ciência como um processo de construção social
e de valorizar o processo de auto-reflexão por parte dos actores que
produzem o conhecimento.
(1) Escritor nigeriano, entrevistado por Nelson Saúte e Pedro Rosa Mendes, in Público (1849), 1 de Abril de
1995, p.29 (cf. SERRA, 1997: 141).
210 Travessias 2008
(2) Alain Ricard (2004: 178-179) exalta o exemplo de Dietrich Westermann (1875-1956), missionário no Togo
(1900-1905), na época uma colónia alemã, que aprendeu as línguas locais, realizou uma gramática e um dicionário,
incitando à escrita nesses idiomas. Abrindo caminho à antropologia linguística, tratou-se de uma abordagem que
conferiu particular importância à tradução e alfabetização, proporcionando o reconhecimento e desenvolvimento
de comunidades (e das culturas) africanas.
(3) As sociedades de geografia conferiram fortes impulsos à produção de conhecimentos, mas colocaram a ciência
ao serviço de interesses políticos e nacionalistas, de forma a legitimarem o direito dos diversos países europeus
à administração das colónias africanas. Este processo de colocação da ciência ao serviço da política não deixou
de se prolongar pelo período pós-independência, desta vez ao serviço dos interesses das novas elites dirigentes
africanas ou das novas agendas de desenvolvimento.
(4) Melville Herskovits (1895-1963), fundador do primeiro programa interdisciplinar de estudos africanos nos Estados
Unidos, constitui uma das figuras de referência da antropologia moderna. Na linha de Franz Boas, em Man and His
Works Herskovits (1952) sustenta que as crenças e as actividades Humanas devem ser compreendidas no contexto
212 Travessias 2008
da cultura que lhes dá origem. Incrementando o princípio da subjectividade, à luz do relativismo cultural as
culturas não podem ser avaliadas por um único critério de racionalidade, mas de acordo com o contexto em
que se inserem. Neste novo paradigma está implícito a crítica ao etnocentrismo e a uma suposta superioridade
Ocidental, sublinhando-se a dignidade inerente a cada corpo de costumes e a necessidade de tolerância e de
respeito entre as diversas culturas.
(5) Sibeud e Piriou (1997: 14) destacam os congressos de 1962 em Accra, capital do primeiro país africano a
tornar-se independente; de 1967 em Dakar, capital da “negritude”; de 1973 em Addis-Abeba, capital do único país
do continente a ter escapado à colonização; ou de 1978 em Kinshasa, capital de “l’authenticité africaine”.
(6) Sobre a definição do conceito de africano poderiam ser colocadas uma série de questões relacionadas com a
territorialidade – o africano constitui unicamente aquele que nasceu em África ou abrange os que nasceram na
diáspora? Os imigrantes europeus que residem em África podem ser considerados africanos? – ou da hereditar-
iedade – o saber dos africanos de descendência europeia pode ser considerado africano?
Sociologia de Cobras e Latão 213
(7) A negritude constitui um conceito de origem francófona, desenvolvido por indivíduos de descendência
africana, nascidos nas ex-colónias francesas (como Léopold Senghor do Senegal, Léon Damas da Guiana francesa
ou Aimée Césaire da Martinica). Estes intelectuais criaram um movimento cujo objectivo se orientava para a
união de todos os “negros”, de forma a combater a discriminação a que eram submetidos e a revalorizar o seu
papel político e sócio-cultural.A negritude constituía uma reacção ao processo de assimilação cultural do período
colonial e traduzia um conjunto de traços que se defendia serem característicos do “negro”, como a solidariedade,
a capacidade de emoção ou a importância conferida ao simbólico e ao sagrado. Defensora da ideia de que a cor
da pele deflagra uma identidade comum, esta ideologia foi criticada pelo facto de veicular um essencialismo
africano, imaginado por uma elite intelectual, alheia à heterogeneidade das populações do continente.A negritude
constitui, por isso, não só uma reacção como uma extensão das ideologias racistas coloniais.
(8) Senghor exprime uma diferença fundamental entre europeus e africanos a partir da oposição destes dois
conceitos. No vocabulário de Senghor, a emoção aparece como a antítese da razão, que traduz, por sua vez, o
materialismo e um instinto de dominação europeu.
(9) Foi precisamente em torno do prefixo “pan”, nomeadamente do objectivo de abarcar todo o continente e de
promover a unidade e a solidariedade entre os Estados africanos, que se constituiu, em 1963, a Organização da
Unidade Africana (OUA). Para além desses objectivos, a OUA pretendia defender a soberania e a independência
dos Estados africanos, bem como erradicar todas as formas de colonialismo no continente.
(10) William Du Bois constituiu um dos grandes precursores da africanidade, ainda em finais do século XIX. Por
essa altura, as ciências sociais encontravam-se marcadas por pressupostos etnocêntricos, registando por isso uma
desvalorização das culturas africanas. No norte dos Estados Unidos, as comunidades de descendência africana
– The Philadelphia Negro (1899) – apresentavam-se segregadas em termos sociais e económicos. O trabalho de
Du Bois foi por isso profundamente político, clamando por uma unidade pan-africana. Ainda que assentando
em dimensões económicas e sócio-culturais, o conceito de classe por si utilizado encontra-se próximo de uma
etno-classe ou de uma classe racial (Monteiro, 2001: 202). O pensamento de Du Bois teve forte impacto nas
ciências sociais, marcando a pesquisa, o activismo e a reflexão ao longo do século XX.
214 Travessias 2008
3. O Afrocentrismo – Perspectivas de
Conhecimento Centradas em África
Um terceiro conceito frequentemente utilizado relaciona-se com
a perspectiva do conhecimento construído sobre África. Nas últimas
décadas têm-se multiplicado trabalhos científicos que fazem a apologia
do conhecimento de África sob o ponto de vista das culturas africanas.
À luz da definição de Molefi Asante (2001: 72), o afrocentrismo sig-
nifica literalmente “placing African ideals and behaviors in the center of any
discourse that involves Africans”. Para o autor, enquanto que a africanidade
se refere, genericamente, à generalidade dos costumes, das tradições e
das características dos africanos na diáspora, o afrocentrismo represen-
ta uma reflexão epistemológica sobre o processo de investigação dos
assuntos, directa ou indirectamente associados aos africanos ou a esse
continente.Ao contrário da africanidade, o afrocentrismo não constitui
uma característica natural das populações africanas, mas antes um pro-
cesso reflexivo que tem em consideração as características da cultura
africana na produção do conhecimento. Nesta perspectiva ser africano
não significa, necessariamente, ser afrocêntrico (ASANTE, 2001: 80).
De uma forma geral, a apologia do afrocentrismo tem sido sustentada
por um conjunto de quatro factores: pela sub-representação da produção
científica de autores africanos no contexto mundial; pela necessidade
(11) A maioria dos intelectuais africanos que encabeçaram os movimentos independentistas formaram-se em
universidades europeias ou norte-americanas, expressavam-se fluentemente numa ou mais línguas europeias e
adoptavam hábitos culturais «estrangeiros» à cultura africana.
Sociologia de Cobras e Latão 215
(12) Refira-se, contudo, a existência de uma mudança a este nível, registando-se, nos diversos campos do meio
académico africano, comunidades científicas regionais, sub-regionais e nacionais de renome. Nos últimos 50 anos
multiplicaram-se universidades e centros de investigação no continente africano, alguns dos quais de qualidade
internacionalmente reconhecida.
216 Travessias 2008
(13) Trata-se de uma atitude que se apresenta em continuidade com as críticas que se tecem aos investigadores
europeus da modernidade, que partiam do princípio que os africanos não tinham consciência da sua própria
filosofia e que apenas os analistas ocidentais, que os observavam a partir do exterior, poderiam traçar um
quadro sistemático da sua sabedoria (HOUNTONDJI, 2008: 151). O afrocentrismo representa, por isso, um
mecanismo de reconhecimento e de valorização da cultura e da produção científica africana. Contudo, ao
fazer a apologia de um saber autóctone, o afrocentrismo constitui não só uma reacção, como uma extensão
do etnocentrismo colonial.
(14) Michel Cahen. (2004), Os outros. Basileia, P. Schlettwein Publishing. O comentário de Elísio Macamo
foi publicado no blog Ideias para Debate http://ideiasdebate.blogspot.com/2006/03/macamo-x-cahen.html
(08.03.2006, consultado a 11.10.2008).
(15) Importa, de facto, questionar os critérios subjacentes à definição do que é africano. Quem tem legitimidade
para definir essas características? Quando se escreve sobre um saber ou sobre uma perspectiva africana está-se de
facto a falar sobre o quê? Da perspectiva de um feiticeiro local, de um camponês, de um delegado sindical ou
de um professor universitário? A perspectiva e o saber africano representam, na verdade, uma multiplicidade de
experiências, a maioria das vezes contraditórias.
Sociologia de Cobras e Latão 217
(16) De acordo com Carlos Serra (2000: 102-104), a Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais
(UFICS) da UEM esteve alguns dias de Março de 2000 com as aulas paralisadas pelos professores, em protesto
contra a forma como a reitoria procedeu na sequência de um documento anónimo, por ela recebido, que mais
tarde se provou ter sido escrito por um aluno. O acontecimento, que levou à exoneração da directora foi “mas-
sivamente interpretado por certos sectores públicos como uma luta de ‘brancos’ e ‘mulatos’ (UFICS) contra ‘negros’ (Reitoria)”.
Alexandrino José, na época director interino do CEA, afirmou a um dos investigadores de Serra que a instituição
“(…) está neste momento a ser dirigida por pessoas não negras e que um dos produtos disso é o tipo de problemáticas que
estão a ser pesquisadas naquele centro que visivelmente respeitam a todas as agendas menos a moçambicana”. De acordo
com esta perspectiva, as problemáticas moçambicanas só podem ser definidas por moçambicanos de origem
africana. Esta perspectiva expressa um negrocentrismo, que se traduz na apologia de uma africanização das
ciências sociais em Moçambique.
(17) Para Molefi Asante (2001: 73), o Marxismo não só emergiu de uma consciência ocidental, como é demasiado
mecanicista na compreensão dos fenómenos sócio-culturais.Ainda que o pensamento de Marx tenha resultado de
dinâmicas sócio-económicas decorridas na Europa no século XIX, um facto é que a liberalização dos mercados
africanos e o aumento das assimetrias sociais são convidativos à recuperação desse pensamento.
(18) Inserido num congresso internacional de sociologia, inscrito num grupo maioritariamente constituído
por cientistas sociais africanos, que discutiam a sociologia em África, o sociólogo moçambicano Carlos Serra
(1997:40) testemunhou a defesa, entre os conferencistas, “que devíamos saber criar conceitos africanos «adequados à
nossa realidade»; que devíamos saber, algum dia, recusar os Webers europeus, criando os nossos próprios Webers”. Carlos Serra
considera que esteve confrontado com a “«astúcia da razão», pois cada desses colegas tinha sido formado em universidades
estrangeiras (europeias e norte-americanas), todos vestiam roupas estrangeiras, expressavam-se bem em língua francesa, etc.,
realidades essas que eles não punham em causa”.
218 Travessias 2008
(19) Os textos incluem aquilo que Karenga (cf Lehman, 2001: 329-330) designa de Sebait (livros de Kagemni,
Kheti, Khun-Anup e Ptah-Hotep). O livro de Khun-Anup também é conhecido, na literatura anglo-saxónica,
por The story of the Eloquent Peasant.
(20) Na análise da retórica Kemet, Asante (1990) destaca o conceito filosófico e espiritual Maat, construção
filosófica central e base das preocupações humanas, sobrenaturais e ecológicas. O Maat constitui um ideal moral
do antigo Egipto que representa a figura do Bem, a concessão da vida, a fundação da ordem e da responsabilidade,
assentando em valores como a justiça, a harmonia, o equilíbrio e a verdade.
Sociologia de Cobras e Latão 219
(21) Taylor e Nwosu (2001: 300) alertam para o perigo dos métodos de pesquisa que aliciam as opiniões
dos respondentes acerca de atitudes, crenças e comportamentos, em contextos africanos onde a expressão de
opiniões pessoais não constitui uma característica pacífica no processo de comunicação. As opiniões são gran-
demente influenciadas pelas normas do grupo, pelo género ou pelo estatuto social. Os autores sintetizam outros
problemas, incluindo as dificuldades ao nível das traduções de entrevistas e questionários num continente que
conhece elevadas índices de iliteracia nas línguas europeias. Taylor e Nwosu referem também dificuldades no
questionamento de assuntos sensíveis, a inexistência de dados e de fontes a partir dos quais se possam constituir
amostras relevantes; bem como as dificuldades de aplicação de questionários de escolha forçada, que obrigam a
um pensamento dicotómico nos inquiridos.
(22) Pela forma distinta como se têm desenvolvido importa realçar o carácter plural do conceito de realidades
pós-coloniais. A diversidade na América do Sul é distinta da que ocorre no continente africano ou nos contex-
tos europeus e, dento de cada um destes macrocosmos, existe uma infinidade de microcosmos, infinitamente
distintos entre si. Se esta diversidade apela para a diferença dentro do Sul, um facto é que uma experiência
colonial comum permite a constituição de um Sul global, onde essa condição pós-colonial adquire destaque na
compreensão das especificidades políticas, económicas e sociais.
(23) Como analisa Boaventura de Sousa Santos (2007), o projecto imperial do colonialismo e do capitalismo
global desencadearam uma divisão abissal entre o que hoje é designado de “Norte global” e de “Sul global”, divisão
que se transformou, ela própria, numa condição epistemológica.
220 Travessias 2008
(24) Quando se fala em reencontro com a história falamos exactamente de quê? De uma história africana conge-
lada pelos retratos etnográficos da primeira metade do século XX? Dos costumes recriados nos espectáculos de
companhias de canto e dança africanas? Como reagem os jovens africanos, em plena era de globalização cultural,
relativamente a esses valores e costumes de períodos pré-coloniais?
Sociologia de Cobras e Latão 221
(25) Destaque-se que estes valores estão presentes nos textos judaico-cristãos e não foi por isso que, nos últimos
200 anos, as grandes potencias europeias não foram promotoras de uma intensiva colonização do continente
africano, de duas guerras mundiais e de sanguinários conflitos étnicos e raciais. Do mesmo modo, o continente
africano foi, no pós-independência, marcado por violentas guerras civis e catástrofes humanitárias, por processos
de corrupção e de aumento de desigualdades sociais. Em África ou na Europa, o discurso moral da justiça ou
da solidariedade é acompanhado por um outro processo de competição pela posse de recursos de poder, por
vezes de forma bem violenta.
(26) A propósito das características do artesanato e da arte tradicional africana (estatuetas, batiks, adornos,
etc.), invariavelmente procurada por estrangeiros (em especial os de descendência europeia), um pouco
por todas as cidades africanas, considera-se oportuno transcrever o seguinte comentário de Carlos Serra
(1997: 151): “Quantas vezes não encontro nos aviões, girafas, camponesas com filhos às costas, pilões, dentes de
marfim, etc., e sinto a alegria dos seus proprietários na fórmula fatal: «Isto é África!». Mas temos, ainda, as artes
maiores, as artes plásticas, aquelas que estão nas exposições onde, não menos invariavelmente, abundam os Europeus.
E aí, sempre me admirará a ubuesca mania de se ter por arte «tradicional» uma multidão de quadros onde máscaras,
olhos esbugalhados, anatomia transfigurada, etc., expressam, afinal, desolação, tormento, tragédia, fenocídio (sic),
desemprego, guerra, tristeza, etc., quer dizer, sentimentos, percepções perfeitamente universais, rigorosamente humanos,
identificadamente históricos, epocalmente reconhecíveis” (Serra, 1997: 151). A pergunta central é, portanto, a
seguinte: quando se vende, na moeda local ou em moeda estrangeira, este tipo de arte está-se realmente
a vender tradição? Que tipo de tradição?
222 Travessias 2008
4. Conclusão
Ao salientarem a especificidade de uma cultura e de uma sensi-
bilidade africana, a africanidade e o afrocentrismo não deixam de partir
de uma concepção essencialista e fortemente politizada do conceito de
cultura. Qualquer forma de conhecimento da realidade social africana
(como aliás de qualquer outra) não pode debruçar-se apenas sobre o que
é definido a priori como eternamente africano, mas assumir uma lógica
processual, considerando as transformações e as contradições que ocorrem
no que pode ser considerado um espaço social africano. É neste contexto
que importa analisar os processos de conhecimento destas sociedades ou,
inclusive, a relevância da constituição de uma sociologia das sociedades
africanas.A tónica geral do argumento que sustenta esta última ideia reside
na existência de uma particularidade africana, fundamentalmente dife-
rente da dos outros continentes, que exigiria a utilização de instrumentos
analíticos apropriados. Para Elísio Macamo (2002: 5), a particularidade
africana seria o resultado da complexidade do social em África27, das
relações e dos factos sociais, caracterizados por uma oscilação entre um
mundo irreal dos espíritos e um mundo real de uma existência social
precária. A complexidade resultaria, portanto, de uma relação ambígua
que o continente estabelece com a modernidade (KANE, 1995).Trata-se
de uma perspectiva que, ainda que tenha subjacente uma lógica unilinear
da história e do progresso da humanidade28, não ignora a coexistência
de distintos aspectos culturais, supostamente característicos de períodos
históricos diferentes (modernidade e pré-modernidade), bem como as
(27) Macamo (2002: 5-6) ilustra este ponto com um exemplo do músico moçambicano Xidimingwana 1997,
no seu tema intitulado “Djoni” (minas da África do Sul, na designação popular no Sul de Moçambique. Na
letra da música, o cantor canta “as aventuras de um homem que, sob a insistência da mulher, se alista na companhia de
contratação de mineiros moçambicanos para ir trabalhar nas minas de ouro da África do Sul. Todavia, logo no seu primeiro
dia de trabalho cai-lhe uma pedra sobre as mãos que são imediatamente amputadas. Na impossibilidade de continuar a tra-
balhar nessas circunstâncias, o homem é despedido com uma compensação avultada [literalmente, “um saco de randes”] que
leva consigo para Moçambique. De regresso a casa, é recebido efusivamente pela mulher que nem sequer lhe pergunta o que
aconteceu às mãos. Diariamente ela subtrai 200 contos para gastar em bebida e dar à sua mãe. Pouco depois o dinheiro acaba
e, segundo o cantor, ela começa a ‘faltar ao respeito ao marido’. Um exemplo dessa falta de respeito é a solicitação que, certa
manhã, ela faz ao marido. Pede-lhe que vá cortar estacas no mato para reparar o telhado, sabendo muito bem que o pobre
homem perdeu as mãos nas minas da África do Sul e não pode, evidentemente, fazer esse trabalho. Frustrado, ele agride a
mulher com o coto do braço amputado. A mulher corre à polícia a fazer queixa e esta envia uma força de intervenção rápida
para prender o marido. Na esquadra a mulher diz que o marido a agrediu com um pau. Ele desmente, alegando que foi com
o coto. Ela rompe aos gritos e diz que o marido perdeu as mãos e que estas foram enterradas na África do Sul. Segundo ela, o
que a agrediu não foi o coto mas sim algo ‘invisível’, do reino dos espíritos. Exige que lhe seja feito um diagnóstico tradicional
para saber se estará ou não enfeitiçada”.
(28) Esta perspectiva adquiriu maior popularidade no período pós-guerra fria com o best-seller “The end of his-
tory and the last man”. Francis Fukuyama (1992) previa que os movimentos reformistas na ex-União Soviética
e na Europa de Leste viessem a resultar na propagação, à escala mundial, das democracias liberais, do regime
económico capitalista e de uma cultura de consumo de massas. Fukuyama toma como referência o pensamento
de Hegel e de Marx, para quem a evolução das sociedades humanas não era ilimitada, mas terminaria quando a
humanidade alcançasse uma forma de sociedade que pudesse satisfazer as suas aspirações ou as suas contradições:
o estado liberal ou a sociedade comunista.
Sociologia de Cobras e Latão 223
(29) Lévi-Strauss (1995: 30-31) compara os processos múltiplos de mudança da humanidade aos movimentos de
um cavalo de xadrez. Para o antropólogo francês “a humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe
uma escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo degrau a todos aqueles já anteriormente conquistados,
evoca antes o jogador cuja sorte é repartida por vários dados e que, de cada vez que os lança, os vê espalharem-se no tabuleiro
formando outras tantas somas diferentes”.
(30) Saliente-se que as epistemologias do Sul não são unicamente formuladas por saberes autóctones. Referiu-
se anteriormente o carácter complexo que pode adquirir o conceito de africano, pois pode englobar actores
sociais que estudaram na Europa ou populações de descendência europeia que nasceram ou viveram muitos
anos no continente africano.
(31) Nesta perspectiva, torna-se natural que muitos europeus residentes em África se assumam como africanistas
perante um aumento da concorrência europeia, mas que se sintam europeus quando em competição directa
com populações africanas. A mesma atitude pode ser estruturada por um africano, no seu relacionamento
estratégico com europeus.
224 Travessias 2008
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Y
Letícia de Faria Ferreira
CPDA – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
de alto nível, aqui para nós, diz Martins, temos outra situação.“O traba-
lhar e o morar disputam os mesmos espaços em áreas supervalorizadas
pelas funções rentistas do ganhar”, e ainda, é a presença da renda da
terra urbana que entre nós agrava as condições de moradia, devido o
tributo pago ao dono da terra que vive da especulação imobiliária.
Esse é um tema bastante debatido por Martins em livros anteriores
– a renda da terra, a novidade deste texto consiste em falar da renda
da terra urbana (MARTINS, 2008:49). Ainda, dentro dessa temática
da renda, Martins distingue o conceito de subúrbio de “periferia,”
esta última, segundo ele significa a vitória da renda da terra sobre a
cidade, resultando em moradias precárias e confinadas; já subúrbio
tem uma concepção positiva, sua história é a história de um modo
de vida relacionada com o trabalho, e que têm nesse lugar relações
sociais, cotidiano, memória, que por vezes, desmente a história oficial;
enfim, é para a confusão conceitual que Martins chama atenção, pois
percebe periferia e subúrbio como espaços com problemas socioló-
gicos de diferente ordem (MARTINS, 2008:60).
O subúrbio como lugar de viver é o que inspira Martins a es-
crever o texto Odores, sons e cores: mediações culturais do cotidiano
operário - onde esses elementos dão e criam significados para a vida
cotidiana, expressam mentalidades e fundam a sociabilidade dos grupos
de convivência. O que esta sendo proposto “é uma breve etnografia
de costumes relativos a cores, odores e ruídos cotidianos, em particu-
lar os do corpo ou com o corpo relacionados. Constituem eles uma
interferência mediadora no desenrolar cotidiano das relações sociais
e variam conforme a situação social e a situação de classe social dos
agentes.”(MARTINS, 2008:64) No entanto, essa etnografia propos-
ta por Martins tem um componente especial, pois usa suas próprias
lembranças como fonte de dados, vindo a se chamar de “etnógrafo
espontâneo”.(idem:148). Recupera o que faz parte de sua memória
(trata especialmente dos anos 40 e 50) como morador e trabalhador do
subúrbio de São Caetano, dentro de uma idéia de Peter Berger – de
uma alternação biográfica, onde o tempo lhe permite um olhar crítico,
“observo sociológica e participativamente através do informante que
é o outro que fui”( MARTINS, 2008:64).
O desenvolvimento da urbanização transformando-se em um
“modo de vida” se institui sem anular às condutas respectivas a um certo
jeito de ser rural, da sociedade tradicional, mas institui uma censura
a esses hábitos, jeitos e costumes. Ainda, nos diz Martins, “limitou a
As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias 231
Referências Bibliográficas
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Albany. NY : State University Press.
Este livro acabou de se imprimir em janeiro de 2009, com tiragem de 500 exemplares. A fonte utilizada para a
composição do texto foi o Bembo Regular corpo 12/13,5. A produção gráfica ficou a cargo da Sir Speedy, com
impressão digital sobre papel “Pólen bold” 90g (miolo) e cartão “Supremo” 250g (capa). Coordenação Editorial:
Raul Coachman – Projeto gráfico: Ricardo Barrocas – Editoração Eletrônica: Silvio Luis da Silva Neto.