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XIX Seminário do CELLIP De 21 a 23 de outubro de 2009

Pesquisa em Língua e Cultura na América Latina UNIOESTE – Cascavel, Paraná

Lima Barreto: um soldado em combate contra a “ideologia do colonialismo”

José Eugênio das NEVES1 (UEL)

RESUMO: Através do domínio mental, o colonialismo buscava obter a “hegemonia”, a dominação


com a concordância do dominado. Para isso, utilizou variados tipos de discursos como o religioso e
o científico, por exemplo, para justificar a dominação européia e branca sobre outros povos não
europeus e não brancos.
No século XIX, a ciência passou a ser considerada o parâmetro mais confiável da verdade. Através
do discurso científico, os colonialistas pregavam a superioridade racial: a dominação que exerciam
estava ligada à superioridade natural dos homens das raças européias sobre os homens de outras
raças, particularmente os negros e os indígenas.
Nos primeiros anos do século XX, Lima Barreto combateu com tenacidade esse discurso em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Esse artigo pretende mostrar os métodos empregados
pelo escritor para fazer isso.
PALAVRAS-CHAVE: hegemonia; ciência; combate.

Introdução

Entre os últimos anos do século dezenove e os primeiros do século vinte, o discurso


científico atingiu a proeminência sobre os demais. No entanto, assim como os outros, serviu como
arma de dominação mental para justificar o domínio branco e europeu sobre os demais povos.
Nessa época em que poucos ousavam questionar o discurso científico, um mulato que
habitava o bairro carioca de Todos os Santos ousou erguer sua voz para questionar o valor das
teorias científicas que pregavam a superioridade da raça européia sobre as demais. Seu nome era
Lima Barreto.
Empregando a literatura como arma de combate, Lima procurou rechaçar os argumentos
racistas que andavam na boca de muitos intelectuais.
Esse artigo pretende mostrar como o escritor empreendeu esse combate. Ele foi dividido
em duas partes. Na primeira, falamos do contexto histórico em que vivia o autor e em que
predominava o discurso científico que contribuía para a justificação do prosseguimento do domínio
colonial, agora sob nova face. Em seguida, mostraremos os métodos utilizados pelo autor para a
efetivação desse combate.

1. O discurso científico e a “ideologia do colonialismo”

Conforme já demonstrado por muitos estudiosos, o colonialismo executava um domínio


de “mão dupla”: físico e mental. O segundo tornava mais fácil a realização do primeiro. Através do
domínio mental, o conquistador obtinha o que Gramsci denomina de “hegemonia”, a dominação
com a concordância do dominado. Daí decorre o fato do colonizador utilizar variados tipos de
discursos como o religioso, o científico e o literário, na tentativa de justificar a dominação européia
e branca sobre outros povos não europeus e não brancos.
Graças à variedade de discursos, o leque de pesquisas possíveis a respeito do assunto é
enorme. Para o objetivo a que nos propomos, nesse artigo, interessa-nos somente o discurso
científico que supostamente justificaria o domínio do branco sobre o negro.
Durante anos, o discurso religioso teve papel de destaque nessa justificação. Como a
religião fosse uma instituição dominante durante um longo período de tempo, seus discursos
adquiriram ares de “verdade”. Um dos discursos empregados pelo colonialismo originava-se da
religião. Ele dizia respeito a uma suposta maldição sobre a raça negra, advinda de um ato insolente

1José Eugênio das Neves, doutorando. Universidade Estadual de Londrina – UEL – joseeugenioneves@uol.com.br
de Cã, um dos filhos de Noé, patriarca bíblico. Por conta de uma desonra feita a seu pai, ele e seus
descendentes teriam sido condenados a ser escravos de seus irmãos. Os descendentes de Cã seriam
os da raça negra e, assim, estaria justificada a sua condição de escravos dos brancos, que
descenderiam de outro filho de Noé.
Com o passar do tempo, porém, o conjunto de discursos da religião começou a ser
questionado. No século XIX, a ciência e seus discursos passaram a predominar como parâmetro
mais confiável da verdade. O discurso religioso já não tinha mais a força necessária para justificar a
dominação européia sobre os demais povos. Era preciso colocar essa dominação sob a cobertura do
discurso científico para preservar a sua potência. Assim, foram realizadas muitas experiências, na
tentativa de provar a preponderância da raça branca sobre as demais. O resultado dessas pesquisas
foi transformado em uma série de discursos que, segundo SODRÉ (1988, p. 49-50), constituiu a
“ideologia do colonialismo”, um amontoado de preconceitos supostamente científicos que
justificavam a exploração e dominação colonialista. O mais divulgado deles pregava a
superioridade racial: a dominação colonialista estava ligada à superioridade natural dos homens das
raças européias sobre os homens de outras raças, particularmente os negros e os indígenas. Logo, o
domínio dos brancos era uma conseqüência dessa superioridade, tendo em vista que, os indígenas
eram imprestáveis para as tarefas típicas da “civilização”, físicas ou mentais; enquanto que, os
negros eram destinados apenas ao trabalho braçal.
No Brasil, a “ideologia do colonialismo” teve presença marcante em fins do século XIX
e início do século XX. Essa presença tinha uma razão de ser: a elite que substituíra o colonizador no
exercício do poder precisava de uma justificativa para as gritantes diferenças sociais, que aqui se
verificavam e que, através dessas teorias, eram atribuídas às variações raciais existentes. No caso do
afro-descendente, isso implicava na manutenção de sua inferioridade no quadro social pós-
libertação do regime escravocrata. Dessa forma, tais teorias geraram, em terras tupiniquins, um
“imperialismo interno” para consumo das elites dominantes (SCHWARCZ, 1993, p. 28).
Havia, no entanto, um problema para a aceitação de tais teorias: a condenação da
mestiçagem, que se observava em nosso país. Louis Agassiz, cuja obra Journey in Brazil foi
amplamente citada em nosso país, divulgava, não somente, a idéia de diferenças raciais inatas, mas
também da “degenerescência” dos mulatos (SKIDMORE, 1976, p. 67). Após uma viagem ao
Brasil, AGASSIZ (apud SCHWARCZ, op.cit., p. 13), que defendia uma versão etnológica de
racismo, deixou-nos uma visão acerca da miscigenação que havia observado em terras tupiniquins:

[...] qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por mal
entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam, venha ao
Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais
geral aqui do em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as
melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido,
híbrido, deficiente em energia física e mental.

Outro que exerceu influência no pensamento nacional foi o francês Conde de Gobineau,
representante de um segundo bloco do pensamento racista, o da escola histórica. Esse estudioso
também visitou nossa terra e descreveu sua população como sendo “[...] totalmente mulata, viciada
no sangue e no espírito e assustadoramente feia” (apud SCHWARCZ, loc. cit.).
Se teorias tais como estas justificavam cientificamente as diferenças sociais,
simultaneamente, inviabilizavam um projeto de desenvolvimento nacional, por conta da alta taxa de
mestiçagem existente no Brasil. A solução encontrada foi a da combinação de uma teoria que
comprovasse a existência de diferenças inatas entre as raças humanas com outra que fizesse o
elogio do cruzamento. As duas teorias escolhidas foram: o darwinismo social e o evolucionismo
social. Da primeira, aproveitou-se a parte que destacava a suposta existência de uma diferença entre
as raças, excluindo as implicações negativas da miscigenação. Já da segunda, retirou-se a noção de
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que as raças sofreriam, com o passar do tempo, um processo de “aperfeiçoamento”, omitindo-se a


noção do caráter uno da humanidade (SCHWARCZ, op. cit., p. 18)
Em meio a esse cenário, a literatura exerceu um importante papel na disseminação de
teorias científicas. Na época do Realismo/Naturalismo, foram produzidos muitos “romances de
tese”, cujas páginas foram freqüentadas por teses científicas da época, conforme testemunha
SCHWARCZ (op. cit., p. 32). A autora chama a atenção para o fato de que a moda cientificista foi
introduzida no Brasil através da literatura e não da ciência. As doutrinas deterministas de estudiosos
como Darwin e Spencer ou as teorias científicas raciais influenciavam na construção das
personagens e do conteúdo do enredo. Como exemplos desse tipo de influência, ela cita os casos da
personagem Lenita do romance A carne, de Júlio Ribeiro, que chegou a ser comparada por certo
crítico a um “Herbert Spencer de saias”; do naturalista Hartt que é citado no decorrer da narrativa
de O Ateneu, romance de Raul Pompéia, publicado no ano de 1888. Essa moda prolongou-se até os
primeiros anos do século XX, conforme exemplificado pela publicação em 1911 da obra A esfinge,
de Afrânio Peixoto, que contém um discurso cujo tema é a concorrência e a luta pela correção de
uma imperfeição natural de nossa nação.

2. O contradiscurso barretiano

É nesse contexto histórico que Lima Barreto irá produzir a sua obra.
Dessemelhante de seus colegas literatos que se dedicavam à produção de “romances de
tese”, em que defendiam certas teorias científicas, Lima Barreto via a ciência com um olhar crítico.
O seguinte trecho da obra Cemitério dos vivos é bem esclarecedor quanto ao
posicionamento do autor com relação à questão científica:

[...] é bem sabido que os especialistas, sobretudo de países satélites, como o nosso,
são repetidores de asserções das notabilidades européias, dispensando-se do dever
mental de examinar a certeza das suas teorias, princípios, etc., mesmo quando
versam sobre fatos ou fenômenos que os cercam aqui, dia e noite, fazendo falta,
por completo, aos seus colegas da estranja. Abdicam do direito de crítica, de
exame; e é como se voltássemos ao regímen da autoridade. (BARRETO apud
FANTINATI, 1978, p. 139)

Lima critica os estudiosos brasileiros por sua aceitação cega de teorias provindas da
Europa, mesmo quando envolviam fatos que ocorriam à volta deles e que, portanto, poderiam ser
observados de perto. Ele sugere a crítica e o exame e não a mera aceitação por conta da suposta
autoridade dos sábios europeus. Em suma, prega o questionamento da “ideologia do colonialismo”.
O autor estava ciente do perigo dessa aceitação passiva quando dizia respeito às teorias
racistas, conforme se pode depreender da seguinte anotação não datada de seu diário:

Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e
umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e
intrínseca à própria estrutura da raça.
Diz-se ainda mais: que a mistura entre essas raças são um vício social, uma praga e
não sei que coisa feia mais.
Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães.
[...] E assim a coisa vai se espalhando, graças à fraqueza da crítica das pessoas
interessadas, e mais do que à fraqueza, à covardia intelectual de que estamos
apossados em face dos grandes nomes da Europa. Urge ver o perigo dessas idéias,
para nossa felicidade individual e para a nossa dignidade superior de homens.
(BARRETO, 2001, p. 1267)
O escritor reconhece o perigo da disseminação de tais idéias e a necessidade de
combatê-las com vigor. Constata também a falta de um combate mais firma a tais idéias.
Verificamos, então, que o escritor discorda totalmente das teorias raciais da época que
afirmavam a inferioridade de uma raça em relação à outra. Diverge também de idéias como as de
Agassiz e Gobineau em relação ao mestiço.
Diante do silêncio dos “homens da ciência” e da covardia intelectual de quantos se viam
prejudicados por tais teorias, Lima resolve agir, apesar de reconhecer as dificuldades que
envolveriam sua atuação, conforme se pode depreender dessa citação também retirada de seu diário:

Oh! A ciência! Eu era menino, tinha aquela idade, andava ao meio dos
preparatórios, quando li, na ‘Revista Brasileira’, os seus esconjuros, os seus
anátemas... Falavam as autorizadas penas do senhor Domício da Gama e Oliveira
Lima...
Eles me enchiam de medo, de timidez, abateram-me; a minha jovialidade nativa, a
satisfação de viver nesse fantástico meio tropical, com quem tenho tantas
afinidades, ficou perturbada pelas mais degradantes sentenças.
Desviei a corrente natural de minha vida, escondi-me em mim mesmo e fiquei a
sofrer para sempre.
Mas, hoje! Hoje! Já posso alguma coisa e amanhã poderei mais e mais. Não pararei
nunca, não me deterei; nem a miséria, as perseguições, as descomposturas me
deterão. Sacudi para longe o fantasma do medo; sou forte, penso, tenho coragem...
Nada! Nada! Nada!
É que senti que a ciência não é assim um cochicho de Deus aos homens da Europa
sobre a misteriosa organização do mundo (BARRETO, op.cit., p. 1268)

O autor foi atingido em cheio pelas teorias racistas que eram veiculadas na época. De
início, deixou-se perturbar por elas. Mas, posteriormente, fez da luta contra tais teorias uma
profissão de fé de sua vida.
Vale destacar ainda que a última frase da citação revela-nos como Lima Barreto tinha
uma compreensão correta da utilização das teorias raciais pelos europeus para servir a seus
interesses de dominação mundial.
Livre do culto opressivo às idéias científicas, o mulato de Todos os Santos utiliza a
única arma da qual poderia dispor para realizar esse combate: a literatura. É o que pretendemos
exemplificar através de uma análise sucinta de sua obra de estréia, o romance Recordações do
escrivão Isaías Caminha.
Dessemelhante dos romances de tese em que o escritor criava figuras que se
enquadravam nos modelos científicos que pretendia exaltar, para compor seu romance, Barreto
buscou um caso real que pudesse servir de modelo para sua obra. Não era difícil perceber quem
havia fornecido esse modelo, como atestou VERÍSSIMO (1961, p. 204-205), que, através de carta
endereçada ao autor, assim se expressou sobre a obra:

Há nele, porém, um defeito grave, julgo-o ao menos, e para o qual chamo a sua
atenção, o seu excessivo personalismo. É pessoalíssimo, e, o que é pior, sente-se
demais que o é.
[...] A sua amargura, legítima, sincera, respeitável como todo nobre sentimento,
ressumbra de mais no seu livro, tendo-lhe faltado a arte de a esconder quanto talvez
a arte o exija. E seria mais altivo não a mostrar tanto.

O fato de Lima empregar seu próprio drama como base para a composição de sua obra
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poderia levantar a suspeita de que ela estivesse impregnada de subjetivismo, o que comprometeria
sua fidelidade aos fatos. Não é isso o que acontece, como reconhece BOSI (1999, p. 318), para
quem as realidades sociais, ou seja, o conteúdo pré-romanesco selecionado pelo autor para a
composição de suas obras ainda que escolhidas e elaboradas sob um ponto de vista afetivo e
polêmico não são forçadas a ilustrar inclinações puramente subjetivas. Em outras palavras, ainda
que fale de seu próprio drama, o autor não permite que o subjetivismo distorça a fidelidade dos
fatos narrados.
Dessa forma, valendo-se de sua própria dor, serve-se das páginas de seu primeiro
romance para criar “[...] uma explícita polêmica contra as doutrinas racistas, em voga no Brasil e no
mundo desde a segunda metade do século XIX” (REIS, 1989, p. 190), conforme ele próprio
confessa em uma correspondência enviada a Esmaragdo de Freitas, jornalista residente em Recife e
que havia feito um comentário favorável a sua obra:

O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com todas as
disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido,
esmagado, prensado pelo preconceito com o seu cortejo, que é, creio, cousa fora
dele. (BARRETO, 1961, p. 238)

Palavras semelhantes são colocadas por autor na boca de sua personagem principal e
narradora da obra, que reproduzimos em seguida, pois lançam mais luz sobre o objetivo da escrita:

Eu me lembrei de escrever [...], há dois anos, quando, um dia, por acaso agarrei um
fascículo de uma revista nacional, esquecida sobre o sofá de minha sala humilde,
pelo promotor público da comarca.
Nela um dos seus colaboradores fazia multiplicadas considerações desfavoráveis à
natureza da inteligência das pessoas do meu nascimento, notando a sua brilhante
pujança nas primeiras idades, desmentida mais tarde, na madureza, com a fraqueza
dos produtos, quando os havia, ou em regra geral, pela ausência deles.
[...] O melhor, pensei, seria opor argumentos a argumentos, pois se uns não
destruíssem os outros, ficariam ambos face a face, à mão de adeptos de um e de
outro partido.
[...] mostrar ao tal autor do artigo, que, sendo verdadeiras as suas observações, a
sentença geral que tirava, não estava em nós, na nossa carne e nosso sangue, mas
fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins de tão belos
começos. (BARRETO, 1989, pg. 9-10)

O objetivo do romance, conforme se pode perceber, é negar uma idéia e afirmar outra
acerca dos fracassos experimentados por pessoas na mesma situação de Isaías: pobres e mestiças.
Na correta visão de Barreto, as causas do insucesso de um cidadão desse tipo não residiriam em sua
carne e seu sangue, mas sim no exterior: seriam causas sociais e não atávicas, psicológicas ou
antropológicas, conforme sugeriam algumas teorias científicas (LINS, 1997, p. 512).
Para demonstrar isso, Lima narrará o exemplar caso de Isaías Caminha, um mulato
interiorano, filho de um padre branco e de sua empregada negra, cujo início nos estudos mostra-se
promissor: “dediquei-me açodadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se desdobrando as
minhas primitivas noções sobre o saber”. (BARRETO, 1989, p. 13)
É importante destacarmos a motivação por detrás desse interesse pelos estudos:

A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar,


agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência.
/.../ O espetáculo de saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de
outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.
Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu
desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-
las, constituíam, não só uma razão de ser, mas também um título para o superior
respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente. (BARRETO,
loc. cit.)

Como mestiço, desde cedo, Isaías confronta-se com a visão de dois mundos: o branco e
letrado e o negro e iletrado, mostrando-se atraído pelo primeiro, representado pela figura do pai
branco. Nesse aspecto, é bom lembrar que o pai é branco e a mãe é negra. Numa sociedade
patriarcal como era a da época do autor, essa escolha é significativa. Ela indica que a liderança
estava em mãos brancas, enquanto que os afro-descendentes exerciam um papel subalterno na
sociedade.
Essa atração de Isaías é similar àquela demonstrada pelo colonizado de outra raça em
relação ao colonizador europeu. MEMMI (1977, p. 106-107) indica que o colonizador se constitui
em um modelo tentador para o colonizado, que verifica que aquele não sofre nenhuma das carências
que o afetam, tem todos os direitos, possui muitos bens e conta com grande autoridade. Diante
disso, o desejo do colonizado será o de se igualar a esse modelo que tanto admira até desaparecer
nele.
Caminha pretende igualar-se ao modelo de seu pai branco e julga que o único caminho
para alcançar esse objetivo será o da educação. Isso fica bem claro em outro trecho da obra em que
a personagem declara que o título de doutor resgataria o pecado de seu nascimento humilde,
amaciaria o suplício de sua cor (BARRETO, op. cit., p. 19).
Para atingir esse objetivo, o mulato pretende fazer um curso de Medicina na cidade
grande. Para alcançar sucesso nessa intenção, no entanto, terá de contar com um apoio maior do que
o vinha recebendo até então de sua parentela e de seus professores. Nesse momento crucial, terá de
unir à sua inteligência um apadrinhamento apropriado (BOSI, 2002, p.188). Em outras palavras, o
sucesso ou insucesso do afro-descendente não repousava em suas mãos, mas no apoio de alguém
poderoso, que, muitas vezes, era branco.
Utilizando-se do velho arranjo oligárquico da troca de favores, por meio de seu tio,
Isaías obtém uma carta de um chefe político da região, o Coronel Belmiro, destinada ao Deputado
Castro, solicitando-lhe que lhe arrume um emprego na capital.
Castro, no entanto, nega-se a atender esse pedido, obrigando Isaías a contar somente
com suas próprias forças para atingir seu objetivo. É nesse momento que ele se deparará com um
grande obstáculo, o preconceito.
A passagem do livro que narra o insucesso de Isaías em sua tentativa de arrumar um
emprego que exigia pouca qualificação ilustra bem quão grande era esse obstáculo:

Pus-me a ler o jornal, os anúncios de “precisa-se”. Dentre eles, um pareceu-me


aceitável. Tratava-se de um rapaz, de conduta afiançada para acompanhar um cesto
de pão. Era nas Laranjeiras. Estava resolvido a aceitar; trabalharia um ano ou mais;
guardaria dinheiro suficiente que me desse tempo para pleitear mais tarde um lugar
melhor. /.../ Falei ao gordo proprietário do estabelecimento.
/.../ - Foi o senhor que anunciou um rapaz para...
- Foi; é o senhor? Respondeu-me logo sem me dar tempo de acabar.
- Sou, pois não.
O gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos olhos
perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse por fim,
voltando-me as costas com mau humor:
- Não me serve.
- Por quê? atrevi-me eu.
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- Porque não me serve.


E veio vagarosamente até uma das portas da rua, enquanto eu saía literalmente
esmagado. (BARRETO, op. cit., p. 71)

O preconceito já não serve como obstáculo apenas para a ascensão social, mas até
mesmo à obtenção de condições mínimas para que se possa viver com dignidade.
Logo após, Isaías obterá um emprego humilde de contínuo no jornal O Globo, graças à
amizade que fizera com Gregorovitch (um apadrinhamento de um branco), mas o preconceito
continuará a prejudicá-lo:

/.../ dês que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser meu de dever ocupar,
não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida má vontade me veio ao
encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda
aquela soma de idéias e crenças que me alentaram na minha adolescência e
puerícia.
/.../ achei tão cerrado o cipoal, tão intrincada a trama contra a qual me foi debater,
que a representação da minha personalidade na minha consciência, se fez outra ou
antes esfacelou-se a que tinha construído. (Barreto, op. cit., p. 9)

Por influência do preconceito, Isaías troca suas grandes ambições anteriores por outras
diminutas, limitando-se em certo ponto do romance a contentar-se com o pão de cada dia e uma
sobrevivência passiva em meio ao sucesso de outras personagens (LINS, 1997, p. 297).
Mesmo a vitória final constitui-se em derrota aos olhos do protagonista, pois, foi obtida
à custa de um sacrifício moral.
Isaías jamais será doutor, assim como Lima jamais o foi, seu caso, entretanto, ilustrará
com perfeição aquilo que o autor pretendia demonstrar, conforme vimos acima.
Diante de seu fracasso, o mestiço interiorano constatará, assim como o colonizado
citado por Memmi, a impossibilidade de “mudar de pele”, branqueando-se através do título de
doutor.
É interessante notar que na maior parte da obra, o autor não faz nenhuma citação
explícita a qualquer tipo de teoria científica. Há, no entanto, certa passagem, em que faz uma crítica
direta à ciência. Essa crítica é efetuada através da personagem Franco de Andrade, que é assim
descrita:

/.../ literato, alienista e clínico ao mesmo tempo. Viera na comitiva na comitiva de


um ministro baiano e já possuía quatro empregos. Além de lente substituto, era
médico do hospício, legista da polícia e subdiretor da Saúde Pública. Escrevera um
volume de poesias místicas e espalhava nas aulas o mais vulgar materialismo. Era
idealista em verso; em prosa, positivista (BARRETO, op. cit., p. 134).

Ele realiza sua aparição no momento em que ocorre o achado de dois cadáveres
decapitados. Em visita ao local de trabalho de Isaías, o jornal O Globo, demonstra toda a sua
sabedoria:

- Penso que o exame médico-legal não se deve limitar a uma simples autópsia...
Convinha que se fizesse o fizesse mais amplo... A exemplo do que se procede na
Índia, onde a confusão de raças é imensa e, portanto, a raça é um bom dado para
identificar, seria bom que se fizesse mensurações antropológicas...
- Sem a cabeça, é possível doutor? perguntou Losque.
- Perfeitamente. /..../ O professor Broca indicava trinta e quatro mensurações de
primeira ordem; Topinard era de opinião que havia dezoito necessárias e quinze
facultativas; mas Quetelet, na sua ‘Anthropométrie”, exige quarenta e duas. /.../
Dessas, muitas são tomadas nos membros e no tronco: o talhe, a bacia, o fêmur,
etc., etc. Demais, ainda se têm outros dados auxiliares: a seção dos cabelos, o
exame microscópico do pigmento... Um operador hábil pode com tais meios
indicar perfeitamente a raça e a sub-raça do indivíduo... (Barreto, op. cit., p. 135)

Conforme se pode observar, Lima faz referência a muitos estudos científicos da época,
que pretendiam provar a existência de uma diferença biológica entre as raças.
Graças à ajuda do jornal, o “sábio” é encarregado pelo governo de proceder ao estudo
antropológico dos cadáveres, visando descobrir algum detalhe que possa ajudar no reconhecimento
das vítimas.
Empregando todo o arsenal de conhecimento científico citado, apresentou seu laudo: o
cadáver do sexo masculino era o de um mulato com grandes sinais da raça negra.
Oito dias depois, a polícia consegue descobrir quem era a vítima masculina,
identificando-a como um cidadão italiano. Um dia antes dessa descoberta, o Dr. Franco era
nomeado diretor do Serviço Médico-Legal da Polícia da cidade do Rio de Janeiro. (Barreto, op. cit.,
p. 135-136).
Através desse episódio, o romancista demonstra que a ciência é suscetível a erros no
que tange aos estudos raciais, revelando a fragilidade da “ideologia do colonialismo”.

Considerações finais

Como se pode perceber através do exemplo acima, Barreto combateu sem tréguas esse
tipo de ideologia. Esse combate não se restringiu às páginas de sua obra de estréia, estendendo-se a
outros textos, como, por exemplo, algumas crônicas e a obra inacabada Cemitério dos vivos, já
mencionada acima.
Por fim, queremos ressaltar a importância dessa constatação, desconhecida para muitos
analistas da obra do autor carioca. Assim, acrescentamos algo de novo ao já dito acerca do trabalho
de Lima Barreto.

Referências
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______________. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. São Paulo: Círculo do Livro,
1989.
______________. Diário íntimo. In: ___________. Lima Barreto: prosa seleta. Org. de Eliane
Vasconcelos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
FANTINATI, Carlos Erivany. O profeta e o escrivão: estudo sobre Lima Barreto. São Paulo:
Hucitec; Assis: Instituto de Letras, História e Psicologia de Assis, 1978.
LINS, Osman. Lima Barreto: o romancista. In: BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo
Quaresma. 1. ed. crítica. Coord. de Antônio Houaiss e Carmem Lídia Negreiros de Figueredo.
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LINS, Ronaldo Lima. O “destino errado” de Lima Barreto. In: BARRETO, Lima. Triste fim de
Policarpo Quaresma. 1. ed. crítica. Coord. de Antônio Houaiss e Carmem Lídia Negreiros de
Figueredo. Madri; Paris; Cidade do México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Guatemala; São José
da Costa Rica; Santiago do Chile: ALLCAXX, 1997.
REIS, Zenir Campos. Isaías Caminha, ontem e hoje. In: BARRETO, Lima. Recordações do
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SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro.
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SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira. 15. ed. Rio de Janeiro:
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