Вы находитесь на странице: 1из 50

PARTIDOS POLÍTICOS E CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA∗

Fábio Wanderley Reis

Os partidos políticos no Brasil såo


tradicionalmente criticados por sua falta de
consistência e "autenticidade". Segundo essa
crítica, os partidos seriam demasiadamente amorfos
ou fluidos em sua composiçao e duraçåo e
demasiadamente ralos e precários como instrumentos
de representaçåo da sociedade. Recentemente, a essa
crítica tradicional começa a juntar-se outra, que
(com Wanderley Guilherme dos Santos, por exemplo)
ecoa certas posições ligadas aos novos movimentos
sociais e denuncia o "oligopólio" exercido pelos
partidos.1 Assim, se a idéia tradicional é a de que
temos partidos de menos, agora surge também a idéia
de que, de alguma forma, os temos demais.

A perspectiva envolvida na crítica tradicional


é de longe a dominante. Dois temas recentes da vida
político-partidária brasileira såo manifestações
claras dessa perspectiva: em primeiro lugar, a

*
Este artigo foi originalmente preparado para o volume coletivo A
Democracia no Brasil: Dilemas e Perspectivas, São Paulo, Editora
Vértice/Revista dos Tribunais, 1988, organizado pelo autor em
colaboração com Guillermo O’Donnell.
1
Wanderley Guilherme dos Santos, “O Século de Michels: Competição
Oligopólica, Lógica Autoritária e Transição na América Latina”, Dados,
vol. 28, no. 3, 1985, pp. 283-310.

1
insistente denúncia do MDB (e do PMDB, em seguida)
como um "saco de gatos", cuja heterogeneidade
proibiria falar com propriedade de partido a
respeito dele -- tratar-se-ia antes de uma "frente";
em segundo lugar, a suposta novidade representada
pelo PT (pela extraçåo social de algumas de suas
lideranças mais importantes e pelo apego mais
inflexível a certas posições), bem como os dilemas e
dificuldades decorrentes da necessidade de conciliar
a busca de afirmaçåo da identidade partidária
associada a essa novidade com as imposições
estratégicas do jogo eleitoral.

É fácil mostrar os supostos que se ligam com a


avaliaçåo tradicional dos partidos entre nós. Em seu
aspecto mais geral, eles envolvem certa concepçåo
latente acerca das características que deveria
exibir a "boa" política (a política "genuína",
"autêntica", nåo degenerada ou corrompida): é a
concepçåo da "política ideológica", entendida como
aquela que se desenvolve de acordo com "valores" ou
com interesses concebidos universalisticamente e em
perspectiva de longo prazo, por contraste com o
pragmatismo ou o nefando "fisiologismo" dos
interesses estreitos e imediatistas. A definição
universalística dos interesses, que configura
"valores", é vista como devendo corresponder a
categorias abrangentes tais como, de modo especial,
as classes sociais. Contempla-se um espaço
ideológico que vai da esquerda à direita e onde se
instalaria uma gama de partidos de mensagens nítidas
e lugar inequívoco a atrair setores do eleitorado
distribuídos de maneira estável pela estrutura de

2
classes: comunistas e socialistas, talvez democrata-
criståos, radicais ou liberais, conservadores...
Outros supostos mais específicos igualmente
envolvidos no modelo de política ideológica dizem
respeito nåo ao sistema partidário como tal, mas à
natureza dos próprios partidos políticos, os quais
såo vistos como devendo corresponder, para serem
autênticos, antes ao modelo dos "partidos de massas"
do que ao dos "partidos de quadros". Como se sabe,
na tipologia proposta por Duverger (cujas
designações com frequência dåo margem a confusões)
os partidos de massas såo partidos fundados no
proselitismo ideológico, na atividade contínua de
membros filiados e em formas organizacionais mais
rígidas e complexas, enquanto os partidos de
quadros, baseados em notáveis, se caracterizam por
serem frouxamente organizados e pela orientaçåo mais
marcadamente eleitoral de suas atividades e das
formas de proselitismo empregadas.2

É conveniente, assim, para a adequada avaliaçåo


do papel que poderia caber aos partidos na eventual
consolidaçåo da democracia brasileira, tratar de
considerar certos matizes importantes que escapam a
essa perspectiva dominante. Uma linha mais abstrata
de ponderações refere-se aos supostos que erigem a
política ideológica à condiçåo de ideal, em
particular às relações entre interesses individuais
e coletivos (interesses particularistas e

2
Maurice Duverger, Os Partidos Políticos, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1970. A passagem relativa à distinção entre partidos de massas
e de quadros encontra-se reproduzida em F. H. Cardoso e C. E. Martins
(orgs.), Política e Sociedade, São Paulo, Companhia Editora Nacional,
s.d., vol. 2.

3
universalistas, "interesses" e "valores"). A
perspectiva acima esboçada pode ser questionada, a
este respeito, de alguns ângulos. Normativamente, em
primeiro lugar, cabe assinalar de passagem que o
privilégio por ela concedido ao coletivo, no
confronto coletivo-individual, pode ser colocado em
queståo no plano dos princípios: pois o interesse
individual nåo é em princípio ilegítimo, e mesmo as
doutrinas políticas que ressaltam com força um ideal
solidário fazem-no com frequência (este é certamente
o caso daquelas doutrinas que valorizam o conflito
entre categorias solidárias na política ideológica)
em nome, em última análise, da auto-realizaçåo e
fruiçåo individuais a serem alcançadas num momento
em que se superem as divisões sociais importantes. O
ideal, portanto, nåo é a política ideológica como
tal, com sua confrontaçåo tendencialmente
beligerante de grupos solidários parciais: ele é
antes aquela condiçåo em que, na vigência de um
marco solidário abrangente, os indivíduos
socializados seriam deixados, por assim dizer,
"soltos" para a busca autônoma da livre realizaçåo
individual. Sem dúvida, em qualquer processo que se
possa pretender ver como avançando rumo a esse
ideal, há enfrentamentos e lutas em que a
representaçåo partidária de interesses parciais
agregados tenderá a cumprir papel importante. Mas a
apreensåo analiticamente adequada dos fenômenos que
aí se dåo nåo é ajudada pela falta de clareza na
definiçåo das relações entre as contingências ou
necessidades do processo, por um lado, e a meta a
que se aspira, por outro.

4
Quanto ao aspecto da perspectiva de tempo,
sustenta o modelo de política ideológica que a boa
política é aquela em que ideologias bem estruturadas
definem, especialmente para as classes subordinadas
ou os "setores populares", estratégias que se
desdobram no longo prazo e que orientam a partir daí
o comportamento em cada conjuntura. Pelo ângulo do
ideal normativo em que figura o eleitor ou ator
capaz de se orientar racionalmente no mundo
político, nåo há como negar o acerto, em princípio,
do que propõe neste aspecto o modelo em queståo. Mas
cabe assinalar o que ele contém de irrealisticamente
exigente nåo apenas nas condições da sociedade
brasileira atual, mas talvez nas condições que
definem, em geral, a vida política. É preciso
reconhecer singelamente que, afinal, vivemos no
presente, que o longo prazo nåo é senåo, de certo
ponto de vista, uma sucessåo de curtos prazos -- e
que o realismo impõe, nessa ótica, o reconhecimento
da legitimidade também da demanda imediatista.

Finalmente, ainda do ponto de vista do ideal de


política ideológica e seus traços distintivos, mas
já agora num plano mais decididamente sociológico ou
analítico, cabe fazer uma observaçåo de suma
importância. Ela se refere ao fato básico de que, se
a política se faz de objetivos variados em presença
uns dos outros (quer se prefira vê-los em termos de
"interesses" ou "valores"), o compartilhamento de
objetivos capaz de manifestar-se de maneira
consequente no plano político nåo é um dado da açåo
política, mas é antes um problema a ser resolvido em
larga medida através da própria açåo política. Essa

5
observaçåo aponta para o tema geral que se tornou
conhecido, na literatura recente de Ciência
Política, como o "dilema da açåo coletiva".3
Especificamente no que diz respeito aos partidos,
ela tem pelo menos dois desdobramentos importantes e
relacionados. Em primeiro lugar, o de que a queståo
da correspondência entre partidos e "bases sociais"
(tais como as classes sociais) é uma queståo aberta
e complexa, na qual se acha envolvida a indagaçåo
crucial de saber se existem condições a justificar a
expectativa de que as supostas "bases" de
determinado partido venham, espontânea e
naturalmente, a ser capazes de agir coletivamente em
uníssono e de manifestar-se de maneira organizada.
Em segundo lugar, o de que, se cabe esperar que seja
o próprio partido o agente decisivo dessa ativaçåo
organizada (e necessariamente algo "artificial",
portanto) das bases, nåo há por que esperar também
que tal ativaçåo, com a correspondente mobilizaçåo
de apoio para os diferentes partidos, se faça
estritamente segundo as linhas que separam as
classes sociais. Por um lado, lealdades étnicas,
regionais ou confessionais, por exemplo, representam
bases alternativas óbvias para os partidos. Por
outro lado, mesmo se se toma a estrutura de classes
como referência saliente e natural, a lógica da açåo
partidária nåo é a da mera vocalizaçåo ou expressåo
de interesses dados e claramente identificáveis em
seus contornos sociais, pois tal lógica levaria, no
limite, os partidos a se pulverizarem
indefinidamente em busca da representaçåo

3
Veja-se especialmente Mancur Olson, Jr., The Logic of Collective
Action, Nova York, Shocken Books, 1965.

6
"autêntica". Ao contrário, compete também aos
partidos somar ou agregar interesses diferenciados e
dar-lhes, assim, condições de afirmaçåo eficaz na
cena política. Ora, esse imperativo de agregaçåo
torna extremamente problemática, em particular no
âmbito das disputas eleitorais que constituem o
quadro normal do confronto interpartidário, a
pretensåo de que a agregaçåo se detenha nas
fronteiras das classes sociais -- fronteiras estas
que, ademais, nåo tendem a tornar-se mais nítidas
com a expansåo capitalista.

A outra linha de indagações acima indicada se


refere à distinçåo entre partidos de massas e de
quadros e à prescriçåo favorável aos partidos de
massas contida na perspectiva associada ao modelo da
política ideológica. A ponderaçåo decisiva a
contrapor a essa prescriçåo é a de que "partido
forte" nåo significa necessariamente "partido de
massas" -- e que, se se trata de indagar sobre a
contribuiçåo trazida pelos partidos de um tipo ou de
outro para a estabilidade e a solidez das
instituições democráticas, ou sobre a articulaçåo
entre partidos e democracia, a presunçåo deve ser
antes em favor dos partidos de quadros.

O caso dos partidos americanos, com sua


funcionalidade e singular longevidade, fornece um
primeiro tipo de evidência pertinente: ele indica
com clareza que partidos frouxamente estruturados e
de orientaçåo exclusivamente eleitoral podem
revelar-se "fortes" em termos de sua própria lógica,
e contribuir de maneira importante para o jogo

7
político de características democráticas estáveis. A
queståo subjacente se liga com o problema de quais
seriam as tendências evolutivas no que diz respeito
aos dois modelos de partido. Tal problema foi
discutido, como se sabe, por Duverger, que
sustentava em Os Partidos Políticos que o futuro
pertenceria aos partidos de massas. Certamente se
deram influências importantes do modelo
organizacional próprio do partido de massas sobre os
partidos de notáveis criados em conexåo mais
estreita com o mero jogo parlamentar, e cabe falar,
nesse sentido, de uma "massificaçåo" dos partidos de
quadros. Mas os estudiosos convergem hoje em apontar
antes (ou também) a "eleitoralizaçåo" dos partidos
ideológicos de massas e sua progressiva
transformaçåo naquilo que Kirchheimer chamou de
catch-all parties de mensagem diversificada e
pragmática.4 Jogando com as ambiguidades da
terminologia, seria possível, portanto, falar também
de uma espécie de "massificaçåo" dos próprios
partidos de massas, no sentido de que antigos
parties of struggle, originalmente baseados em
membros filiados e na militância aguerrida e
disciplinada, se transformam em partidos eleitorais
de massas.

II

4
Otto Kirchheimer, “The Transformation of the Western European Party
Systems”, em Joseph LaPalombara e Myron Weiner (eds.), Political
Parties and Political Development, Princeton, Princeton University
Press, 1966. Uma discussão mais recente da transformação dos partidos e
sistemas partidários que dá razão a Kirchheimer se tem em Gianfranco
Pasquino, “Per un’Analisi della Trasformazione dei Partiti e dei Sistemi
di Partito”, capítulo 1 de Crisi dei Partiti e Governabilità, Bolonha,
Il Mulino, 1980.

8
Um desdobramento importante da queståo dos tipos
de partido e suas tendências evolutivas tem a ver
com a avaliaçåo do papel dos partidos como
instrumento seja de transformaçåo social radical,
seja de neutralizaçåo ou acomodaçåo dos conflitos e
de preservaçåo do sistema político-econômico. É
expressivo, a respeito, o contraste entre o papel
revolucionário atribuído ao partido da classe
trabalhadora por Marx e especialmente Lenin, de um
lado, e, de outro, as posições sustentadas
contemporaneamente por um Macpherson, que vê na
operaçåo dos sistemas partidários em geral talvez o
principal instrumento de manutençåo de uma sociedade
desigual num contexto em que se tem a vigência do
sufrágio universal.5

Tal queståo coloca diretamente, como é óbvio, o


problema central das relações entre capitalismo e
democracia. A proposiçåo geral a introduzir a
respeito é a de que a vigência estável da democracia
política se associa com um compromisso garantidor do
capitalismo como tal.6 Por outras palavras, o
processo em que se consolida a democracia resulta
ser o mesmo processo em que se estabiliza e
amadurece o próprio capitalismo. Isso se deve a que
o processo de amadurecimento e estabilizaçåo do
capitalismo é que produz as condições nas quais se
torna possível dar soluçåo ao problema
constitucional engendrado pela própria dinâmica
capitalista, isto é, o problema de acomodar através
5
C. B. Machperson, A Democracia Liberal: Origens e Evolução, Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1978, pp. 68 e seguintes.
6
Veja-se “Consolidação Democrática e Construção do Estado”, capítulo 10
do presente volume.

9
do estado a convivência desigual de categorias e
classes sociais novas e marcadas em suas relações,
nåo obstante a desigualdade, pela potencialidade
igualitária e corrosiva do mercado capitalista. Em
última análise, o problema constitucional assim
entendido redunda no desafio de incorporar
politicamente, e ao mesmo tempo conter, a classe dos
trabalhadores "livres" que a afirmaçåo e a expansåo
do capitalismo produzem.

Claro, essa concepçåo implica a idéia marxista


de que a operaçåo do sistema capitalista é
contraditória, e de que a constituiçåo e a
"realizaçåo" crescente da classe trabalhadora
representam ameaça latente à permanência de traços
que såo definidores do sistema. O que se acrescenta
a tal idéia é um ensinamento resultante da
experiência do capitalismo pós-Marx: a maturaçåo do
sistema, ao invés de representar necessariamente a
exacerbaçåo das contradições e a sua eventual
ruptura, redunda antes na viabilizaçåo de um
compromisso no qual, por assim dizer, sua dimensåo
contraditória mesma se institucionaliza. Tal arranjo
se traduz em algo que é antes a exceçåo do que a
regra: a coexistência entre capitalismo e democracia
estável no caso dos países de capitalismo avançado.

Do ponto de vista dos instrumentos político-


organizacionais da classe trabalhadora que vêm a
constituir-se, em particular dos partidos que a ela
se dirigem, a situaçåo assim descrita nåo pode senåo
resultar em ambiguidade. Esta se manifesta
basicamente no fato de que o êxito da atuaçåo dos

10
partidos operários surge como uma espécie de desvio
de rota e, no limite, de traiçåo, ao envolver o
abandono da açåo revolucionária e o convívio
pragmático e no máximo reformista com o sistema. Mas
o que contém de equívoco a avaliaçåo da
"desradicalizaçåo" dos partidos de trabalhadores em
termos de traiçåo ou desvio fica bastante claro na
seguinte passagem de um livro recente de Adam
Przeworski:

O debate sobre a desradicalizaçåo se dirige a


um problema incorretamente formulado. O que ele
pressupõe, como observou Bottomore (...), é que
houve algum passado glorioso no qual a classe
trabalhadora era militante. Mas a classe
trabalhadora simplesmente nåo estava organizada
como classe, e essa ausência de organizaçåo,
associada com uma postura "rápida no gatilho"
por parte da burguesia, levou a casos em que os
trabalhadores se viram forçados a recorrer a
atos de heroísmo em defesa de sua subsistência.
No curso da história a clase trabalhadora se
tornou organizada, principalmente através de
sindicatos e partidos. O dissídio coletivo e as
eleições competitivas tornam desnecessários
tais atos de sacrifício. Os trabalhadores
organizados nåo têm de erguer barricadas cada
vez que o capitalismo experimenta uma crise
econômica, mas isso tem poucas implicações do
ponto de vista de sua "militância".7

Essa passagem evidencia a possibilidade de uma


clara inversåo de perspectivas quanto ao significado
da organizaçåo da classe trabalhadora (incluindo a
organizaçåo partidária) do ponto de vista de sua
militância e das formas que esta venha a assumir. A
perspectiva dominante quanto à queståo da
desradicalizaçåo é a de que a organizaçåo permite ou
7
Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, Nova York, Cambridge
University Press, 1985, p. 77, nota.

11
viabiliza a açåo revolucionária; a idéia proposta
por Przeworski é a de que a organizaçåo torna a açåo
revolucionaria dispensável. Nesta nova ótica,
admite-se a possibilidade de que a classe
trabalhadora e os partidos de trabalhadores busquem
de maneira aguerrida objetivos que lhes såo
igualmente autênticos, embora nåo sejam objetivos
revolucionários. Naturalmente, tais objetivos, e as
formas de açåo correspondentes, ajustam-se ao
mencionado processo de "eleitoralizaçåo" dos
partidos de massas socialistas tal como acima
caracterizados. Daí que a experiência dos países
capitalistas maduros e de tradiçåo liberal-
democrática mais efetiva revele a presença no máximo
transitória de partidos "fortes" no sentido de
revolucionários ou mais intransigentemente
ideológicos. É o que sugere, por exemplo, Alessandro
Pizzorno em texto dedicado ao papel dos partidos no
contexto de pluralismo político dos países da Europa
ocidental:

[Tais partidos] emergem para a um tempo


fortalecer e controlar o acesso das novas
massas ao sistema político, e se tornam
redundantes desde que acesso e controle se
tenham alcançado. Se såo típicos do pluralismo,
portanto, eles o såo apenas de sua primeira
fase "geradora" (generative), quando grandes
atores coletivos såo admitidos ao
compartilhamento do poder num sistema de
representaçåo; eles ainda tendem a controlar
seus adeptos como pessoas totais, nåo apenas a
representá-los em papéis específicos. (...)
Essa fase pode durar mais em certos países
(Itália, França, Áustria) e ser quase
inexistente em outros (os Estados Unidos, por
exemplo), mas cedo ou tarde ela se vê
substituída por uma situaçåo na qual nenhuma

12
identidade política irredutível se acha em jogo
e as reivindicações políticas se tornam todas
negociáveis.8

Introduz-se aqui explicitamente uma dimensåo


analítica de grande importância, a qual se encontra
implícita na passagem reproduzida de Przeworski e na
rápida discussåo anterior do modelo de política
ideológica: a idéia de identidade política e seus
matizes. Do ponto de vista do problema da
"desradicalizaçåo", essa importância pode ser
aquilatada se se ponderam os seguintes aspectos. Em
primeiro lugar, parece indispensável que uma
"identidade política irredutível" -- tomando a
expressåo de Pizzorno -- esteja em jogo para que se
possa ter açåo revolucionária. Com efeito, é a idéia
de uma identidade definida coletiva ou
solidariamente que se encontra subjacente à noçåo da
busca de "valores" que, de acordo com o modelo antes
discutido, se supõe ser própria da política
ideológica, por contraste com o particularismo, o
pragmatismo e o imediatismo a que se acham expostos
os meros "interesses". Se examinarmos com atençåo,
por exemplo, o texto de Przeworski reproduzido
acima, veremos que ele traz implícito que a classe
trabalhadora busca a realizaçåo de seus interesses,
numa atitude básica que pode ser descrita como
envolvendo um cálculo ou como sendo de natureza
instrumental. Daí que atos de heroísmo se revelem,
na perspectiva de Przeworski, como algo em
princípio alheio às disposições da classe -- algo de
8
Alessandro Pizzorno, “Interests and Parties in Pluralism”, em Suzanne
Berger (ed.), Organizing Interests in Western Europe: Pluralism,
Corporatism and the Transformation of Politics, Nova York, Cambridge
University Press, 1981, p. 272.

13
que ela se valeu somente em circunstâncias em que
nåo havia outro recurso.9 A disposiçåo
revolucionária e eventualmente heróica requereria a
identidade, e nåo a mera instrumentalidade dos
interesses.

Por outro lado, contudo, um tema importante da


literatura dedicada aos partidos de massas
socialistas é o que aponta o papel cumprido pelo
aspecto da identidade precisamente como fator de
desradicalização. É este o caso, por exemplo, do
importante estudo de Guenther Roth sobre o Partido
Social-Democrata da Alemanha imperial, talvez o caso
mais clássico de partido socialista que se organiza
como partido de massas revolucionário.10 O estudo de
Roth destaca a relevância adquirida pela soluçåo
representada pelo partido para o problema da
identidade pessoal de seus membros, através da fusåo
com o foco de identidade coletiva partidária. A
consequência, em linguagem de Robert Merton, é que
essa "funçåo latente" do partido vem a predominar
sobre a "funçåo manifesta" correspondente aos
objetivos revolucionários expressos em sua
ideologia. O partido redunda, entåo, num fator de
integração social,11 ainda que se trate, na expressåo
9
Na verdade, a formulação de Przeworski avilta um pouco a própria idéia
de heroísmo ao colocar os atos de heroísmo dos membros da classe
trabalhadora em conexão com a defesa de sua subsistência. O que
normalmente se descreve como heroísmo envolve a idéia da defesa de
valores mais altos ainda que ao preço ou ao risco da subsistência. Por
certo, um trabalhador pode agir heroicamente para o outro subsista.
10
Guenther Roth, The Social Democrats in Imperial Germany, Totowa,
N.J., Bedminster Press, 1963.
11
Essa expressão é usada por Sigmund Neumann (Modern Political Parties,
Chicago, Chicago University Press, 1956) para indicar justamente os
partidos socialistas de massas, chamados “partidos de integração
social”, por contraste com os partidos burgueses, chamados “partidos de
representação individual”.

14
de Roth, de uma "integraçåo negativa", ou seja,
associada com a alienaçåo ou hostilidade ideológica
do partido perante o sistema político-econômico como
tal. Na verdade, no caso particular dos social-
democratas alemåes, esse processo terminou por
produzir mais ou menos rapidamente o abandono da
própria ideologia revolucionária e a adesåo
explícita a uma postura reformista. Em outros casos,
de que o exemplo por excelência é o Partido
Comunista Italiano, o partido como provedor de
identidade coletiva resultou no fenômeno da
constituiçåo de "subculturas" políticas em que,
mantendo-se a retórica revolucionária para efeitos
internos (para efeitos de identidade, justamente),
"mumificam-se" os objetivos revolucionários, que såo
remetidos a um futuro indeterminado, e estabelece-se
a convivência realista com o sistema e com as
imposições do jogo eleitoral.12 Sem falar do
movimento posterior do "eurocomunismo" e da revisåo
ideológica que acarretou mesmo em casos como o
italiano.

De um ponto de vista teórico mais abstrato, essa


ambivalência dos aspectos de identidade quanto à
açåo política dos partidos de massas, com suas
consequências para o papel transformador ou
conservador destes, indica a necessidade de se
atentar para a articulaçåo complexa entre a
identidade (a solidariedade, o "expressivo", os
valores) e a instrumentalidade (os interesses) no
12
Sobre a idéia de subculturas políticas nesse sentido, veja-se
Alessandro Pizzorno, “Introduzione allo Studio della Partecipazione
Politica”, Quaderni di Sociologia, vol. 15, no. 3-4, julho-dezembro de
1966, pp. 235-288.

15
processo político em geral. A título de breve
indicaçåo dos meandros de uma temática que nåo se
podem perseguir aqui, assinale-se que a análise
marxista, por exemplo, dando ênfase a aspectos de
identidade em conceitos cruciais como o de
"consciência de classe", destaca e favorece o
"realismo" dos interesses e a lucidez em sua
avaliaçåo; que a idéia de uma açåo instrumentalmente
orientada pela consideraçåo "estratégica" e
eventualmente "fria" dos interesses de longo prazo é
parte saliente da noçåo de ideologia política e
ajuda a compor, como vimos, as ambiguidades do
modelo corrente de política ideológica; que a
projeçåo política de identidades coletivas "dadas"
ou solidariedades "naturais", se nåo deve
representar apenas a adesåo submissa e passiva a
difusas ideologias dominantes, supõe a possibilidade
de, através da açåo política e da reflexåo
doutrinária, redefini-las instrumentalmente em
termos de objetivos (interesses) a serem alcançados
ou de tarefas a serem cumpridas.13

Segue-se que, se a queståo da identidade está


sempre presente no jogo político, essa queståo terá
"soluções" as mais diversas em conexåo precisamente
com os aspectos de instrumentalidade da açåo
política -- e que tais soluções variadas
constituiråo uma dimensåo importante de qualquer
configuraçåo de relações políticas. Em particular,
importa ressaltar que a dialética entre o
13
Elaboração mais detida das relações entre os aspectos de
instrumentalidade e identidade em conexão com movimentos e partidos
políticos pode ser encontrada em “Identidade, Política e a Teoria da
Escolha Racional”, capítulo 6 do presente volume.

16
"instrumental" e o "expressivo" na açåo política
transita sempre, de alguma forma, pelo plano do
cognitivo: é o elemento cognitivo ou intelectual que
recebe ênfase, em última análise, na valorizaçåo
corrente do papel da ideologia na política, onde a
capacidade de percepçåo estruturada e coerente do
universo político e de definiçåo lúcida dos
interesses a serem perseguidos e das lealdades a
serem cultivadas é contraposta à suscetibilidade à
manipulaçåo que caracterizaria os agentes políticos
desprovidos daquela capacidade e presos à urgência
ou à fluidez de interesses imediatos ou
circunstanciais. Nesse sentido, e em contraste
aparente com certa aproximaçåo antes indicada entre
ideologia e identidade, atuaçåo política ideológica
seria, a rigor, atuaçåo política issue-oriented --
ou seja, aquela em que o agente se encontra
informado sobre os diversos aspectos do sistema
político em que atua e situa-se perante as questões
de cada conjuntura política através do empenho de
estabelecer suas conexões com o diagnóstico dos
aspectos mais estáveis e essenciais daquele sistema.

Apreciado nessa ótica o jogo acima indicado


entre o estratégico ou instrumental (os interesses)
e o expressivo ou simbólico (a identidade), vê-se
que é possível distinguir algumas configurações mais
ou menos claras a respeito: (a) uma condiçåo em que
se trata de identidades "dadas", cognitivamente
ingênuas e "acríticas", que nåo såo como tal o
objeto de açåo instrumental ou estratégica (digamos,
a classe trabalhadora enquanto destituída de
"consciência de classe"); (b) outra em que tais

17
identidades, reflexivamente tomadas, passam
precisamente a constituir o objeto de açåo política
estrategicamente orientada, caso em que a
articulaçåo cognitiva, nos planos sincrônico e
diacrônico, dos diversos aspectos do ambiente em que
a açåo se desenvolve se torna crucial, prevalecendo
a conduta issue-oriented; e (c) outra em que o
próprio instrumental da açåo política, em particular
o partido ou o movimento organizado em torno de um
ideário de maior ou menor sofisticaçåo, se torna um
ponto de referência importante ou mesmo decisivo
para a conformaçåo da identidade coletiva e pessoal
(caso em que teríamos tanto fenômenos como a
"subculturalizaçåo" mencionada quanto a "identidade
partidária" dos estudos eleitorais, a qual pode ser
politicamente desinformada e ideologicamente
tosca).14 Naturalmente, outras possibilidades e
mesclas se dåo, e podem eventualmente mostrar-se
relevantes em diferentes contextos. Mas o exame dos
problemas ligados à atuaçåo partidária e a avaliaçåo
do seu papel em termos de mudança e acomodaçåo devem
estar atentos para o desafio que essa complexidade
representa.

Ainda uma palavra, a este ponto, sobre os


partidos no quadro da evoluçåo do capitalismo e seu
eventual papel transformador ou conservador. Trata-
se de destacar que a atuaçåo dos partidos ocorre em
circunstâncias em que com frequência surgem também
como atores importantes os sindicatos de
trabalhadores, o que altera os termos dos problemas
14
Um rico levantamento e a correspondente avaliação dos temas ligados a
“identidade partidária” se tem em I. Budge, I. Crewe e D. Farlie (eds.),
Party Identification and Beyond, Londres, Wiley, 1976.

18
que se põem para a açåo dos partidos. Em primeiro
lugar, a emergência e o fortalecimento dos
sindicatos de trabalhadores se dá como parte de um
processo caracterizado por fenômenos como o da
corporativizaçào e oligopolizaçåo, de um lado, e o
da constituiçåo do welfare state, de outro. Esse
conjunto de aspectos nåo faz senåo favorecer a
lógica de "mercado político" em que predominam os
interesses: como salienta, por exemplo, Norberto
Bobbio, é a lógica da barganha em que um
"empresariado político" promove os interesses de
diferentes clientelas que impera tanto no processo
de "corporativizaçåo" quanto no da "massificaçåo" ou
eleitoralizaçåo dos partidos -- e a expansåo do
estado de bem-estar surge como consequência da
própria operaçåo da democracia e de sua lógica de
mercado político, e nåo do movimento socialista ou
social-democrata como tal. Apesar da menor
intensidade da afirmação da face social do estado, o
caso dos Estados Unidos, onde tal movimento nunca
existiu, corrobora essa afirmaçåo.15

Além disso, porém, a existência e a eventual


efetividade especificamente dos sindicatos permite
mitigar os efeitos do trade-off ou da escolha em que
os partidos de trabalhadores fatalmente se vêem
envolvidos entre manter a nitidez de seu apelo
classista e de sua identidade de classe ou ganhar
viabilidade eleitoral. Com efeito, como mostram Adam
Przeworski e John Sprague, os partidos socialistas
europeus tendem a perder votos entre os

15
Veja-se Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1986, pp. 122 e seguintes.

19
trabalhadores na medida em que seus esforços para
ampliar a atraçåo eleitoral junto a outras
categorias da populaçåo fazem diminuir a saliência
da classe social como determinante do comportamento
político-eleitoral dos trabalhadores. Essa
estratégia, nåo obstante, é eleitoralmente
recompensadora na medida em que, contra as
expectativas explícitas de Marx, os trabalhadores
nåo vieram a constituir-se em maioria no eleitorado
dos países em queståo.16 De qualquer forma, o trade-
off aí envolvido é menor, segundo Przeworski e
Sprague, nos casos dos países em que, na falta de
organizaçåo eleitoral de identidades confessionais,
linguísticas ou étnicas, "a escolha dos
trabalhadores é ou a identidade de classe ou a
ideologia universalística dos indivíduos-cidadåos".
Ademais,

Os países em que o trade-off é mais moderado


såo também aqueles em que desde cedo os
sindicatos eram amplos e concentrados e o
processo de barganha era centralizado. Os
países em que a esquerda como um todo teve de
enfrentar um trade-off mais agudo såo aqueles
onde ou os sindicatos se mostram fracos ou
divididos ou o processo de barganha é
descentralizado. Assim, o trade-off é menos
intenso nos sistemas corporativos, pois em tais
sistemas os sindicatos exercem muitos dos
encargos de organizar os trabalhadores como
classe, enquanto nos países onde os arranjos
corporativos såo mais fracos os partidos
políticos enfrentam sozinhos os efeitos
individualizantes das estratégias supra-
classe.17

16
Veja-se Adam Przeworski e John Sprague, “Party Strategy, Class
Organization, and Individual Voting”, capítulo 3 de Przeworski,
Capitalism and Social Democracy.
17
Ibidem, pp. 109-10.

20
III

Tomemos agora diretamente a queståo dos partidos


no Brasil e de seu possível papel na consolidaçåo da
democracia. Um ponto de partida pode ser a relaçåo,
sugerida na passagem de Pizzorno que se reproduziu
acima, entre tipos de partidos e fases do processo
de mobilizaçåo e integraçåo das massas. A idéia que
ocorre de imediato é afim à posiçåo defendida pela
crítica aos partidos brasileiros que se baseia no
modelo de política ideológica: como se trata, no
caso brasileiro, de etapas supostamente incipientes
da mobilizaçåo e integraçåo das massas ao processo
político, seria necessário procurar contar com
partidos ideológicos de massas efetivamente
consistentes. Contudo, diversos aspectos das
ambiguidades antes apontadas nas relações entre
partidos, democracia e capitalismo têm aqui
consequências importantes.

A observaçåo principal, na ótica do problema da


consolidaçåo da democracia, é a de que a queståo das
formas de mobilizaçåo e integraçåo das massas
populares é a própria queståo crucial a configurar a
crise constitucional -- da qual o pretorianismo, os
surtos de autoritarismo político e a instabilidade
institucional geral såo expressões. Assim, uma
indagaçåo da maior importância é a da percepçåo que
tenha ou venha a ter o establishment brasileiro dos
riscos contidos na atuaçåo consequente de um partido
ideológico de massas capaz de contar com o respaldo
efetivo das camadas populares. A literatura sobre a

21
evoluçåo dos partidos europeus assinala a mudança de
perspectiva do establishment -- a perda do temor da
atuaçåo revolucionária dos partidos de massas
socialistas -- como parte (ou resultado) do
processo de "eleitoralizaçåo" mencionado acima.18 Que
dizer quanto ao caso brasileiro? Cabe apostar na
"traiçåo" de partidos populares que venham a lograr
penetraçåo "autêntica" nas massas? Ou na
expectativa, por parte do establishment, da eventual
acomodaçåo ou “desradicalização” de partidos desse
tipo a partir de um momento inicial de aguerrida
afirmaçåo ideológica?

Nåo há como escapar aqui da escolha entre duas


possibilidades alternativas. Na primeira, a opçåo
por partidos populares ideológicos envolve uma
aposta ou disposiçåo efetivamente revolucionária.
Neste caso, cabe naturalmente esperar a reaçåo dos
setores aos quais essa disposiçåo ameaça; tudo se
transforma entåo numa queståo de poder entre forças
sociais que se confrontam, e nåo há lugar para a
discussåo consequente a respeito da democracia até
que o conflito fundamental se resolva. Na segunda, o
objetivo de construçåo partidária, embora empenhado
na promoçåo real dos setores populares, surge como
envolvendo, ao contrário, a disposiçåo ao
compromisso perante os interesses inegociáveis dos
titulares do poder sócio-econômico. Neste caso, o
problema é, naturalmente, o de atuar de maneira a
transmitir com eficácia a mensagem correspondente. A
premissa subjacente a tal avaliaçåo do problema

18
Veja-se, por exemplo, Kirchheimer, “The Transformation of Party
Systems in Western Europe”.

22
geral é a de que há atores poderosos para os quais a
democracia política não é o valor decisivo -- e a
cujos olhos a atuaçåo efetiva de partidos populares
ideológicos representa, em princípio, importante
ameaça a valores que são decisivos.

Nåo é o caso de reproduzir aqui o diagnóstico da


atualidade política brasileira esboçado em outros
textos deste volume.19 Contudo, se o compromisso
através do qual se acoplam capitalismo e democracia
justifica a presunçåo da existência de reservas na
adesåo à democracia por parte do establishment
capitalista mesmo nos países de capitalismo
avançado, essa presunçåo se aplica com muito maior
razåo num caso como o brasileiro, onde o
desenvolvimento capitalista nåo chegou ainda, de
acordo com a lógica acima explicitada, a mitigar e
acomodar a crise constitucional que ele próprio
deflagra. Ao contrário, o regime autoritário de que
o país mal saiu é patentemente a expressåo direta
dessa crise, tendo se implantado como consequência
de eventos que surgiram aos olhos do establishment
como ameaças de subversåo do sistema sócio-econômico
vigente. Apesar do desgaste sofrido pelos
protagonistas principais do regime ao cabo de duas
décadas de autoritarismo, nåo há razões para se
acreditar que um partido de bases populares e
ideologicamente aguerrido e afirmativo pudesse ser
assimilado sem problemas, no momento atual do
processo político brasileiro, caso viesse a contar
com chances reais de afirmar-se eleitoralmente e

19
Veja-se especialmente o capítulo 10, “Consolidação Democrática e
Construção do Estado”.

23
eventualmente de chegar ao poder pela via eleitoral.
Nessa eventualidade, a experiência recente de
prolongado e, afinal, tranquilo controle autoritário
do país por uma coalizåo de forças conservadoras
viria ela própria a representar, com toda a
probabilidade, um estímulo adicional a que se
tratasse de recorrer de novo ao modelo autoritário
de controle político. A expectativa de que o próprio
suporte eleitoral de tal partido popular viesse a
representar um obstáculo real ao êxito de novos
surtos autoritários envolveria, para justificar-se,
o requisito de que as condições que caracterizam a
vasta maioria do eleitorado popular brasileiro se
tivessem modificado profundamente com relaçåo ao
passado recente. Nada parece indicar que
modificações de tal monta venham a ocorrer no curto
prazo.

Justamente essa queståo da avaliaçåo das


condições prevalecentes no país no que diz respeito
aos setores populares, e em particular de saber se
essas condições justificam esperar (quaisquer que
sejam as eventuais disposições do establishment a
respeito) a constituiçåo e o enraizamento de
autênticos partidos ideológicos de massas, abre
outra importante linha de considerações. A resposta
a essa queståo deveria considerar vários aspectos
pertinentes.

Um primeiro aspecto redunda na retomada da


queståo de tipos de partidos e sua relaçåo com as
fases do processo geral de transformaçåo, tendo a
ver com a oportunidade de certos desenvolvimentos na

24
esfera partidária quando considerados do ângulo de
suas relações com desenvolvimentos ocorridos em
outras esferas. Exemplo dessa perspectiva é a
análise que faz Robert Dahl das razões para o nåo
aparecimento de um partido especial da classe
trabalhadora nos Estados Unidos.20 Como sintetiza
Hans Daalder, isso se deveu em grande medida ao fato
de que

o governo representativo e o sufrágio amplo


foram introduzidos antes que um proletariado
urbanizado viesse a apresentar novas demandas
ao sistema. Como consequência, partidos e
técnicas políticas afins à atuaçåo dos partidos
desenvolveram-se a tempo de enfrentar esse novo
desafio e de acomodar os trabalhadores no
sistema existente. Por contraste, na Grå-
Bretanha o governo representativo veio cedo, o
proletariado urbano em seguida e o sufrágio
universal somente no fim. Embora os
desenvolvimentos tenham sido de molde a manter
os grupos emergentes dentro da ordem
constitucional, os partidos existentes nåo
foram bastante elásticos para acomodar as
demandas crescentes das classes trabalhadoras.
Já na Alemanha, a urbanizaçåo e o sufrágio
universal precederam o governo representativo,
esterilizando, assim, a atividade político-
partidária sob a forma de atitudes
necessariamente pouco efetivas. 21

Examinado nessa perspectiva, o caso brasileiro


pode talvez ser descrito como segue. Em primeiro
lugar, o sufrágio universal se acha formalmente
assegurado há bastante tempo, seu estabelecimento
podendo ser visto como pelo menos concomitante à
20
Robert A. Dahl (ed.), Political Opposition in Western Democracies,
New Haven, Yale University Press, 1966, cap. 13 (citado de acordo com
Hans Daalder, “Parties, Elites, and Political Development”, em
LaPalombara e Weiner, Political Parties and Political Development, p.
62).
21
Daalder, “Parties, Elites, and Political Development”, p. 62.

25
afirmaçåo mais efetiva dos processos que levam à
constituiçåo de um proletariado urbano significativo
e capaz de pressionar politicamente com demandas
reais. Se isso representa por si só, na ótica de
Dahl e Daalder, estímulo a uma inserçåo
individualista "prematura" no processo político (com
a ausência dos mecanismos excludentes favoráveis à
definiçåo negativa da identidade coletiva de que se
falou antes), vários outros fatores concorrem na
mesma direçåo. No interior do país, como se sabe, a
vigência do sufrágio universal resulta na
manipulaçåo clientelística típica do nosso
famigerado "coronelismo". No setor urbano, por sua
vez, esse traço encontra correspondência nos
mecanismos próprios do populismo, que se vale da
conjugaçåo entre concessões sociais mais ou menos
precárias ou efetivas do estado e certo paternalismo
carismático para obter controle político. Tais
aspectos såo abundantemente destacados em toda e
qualquer caracterizaçåo do processo político
brasileiro das décadas recentes. Menos frequente é a
atençåo para um outro aspecto: a transposiçåo para a
cidade das redes de relações clientelísticas
subjacentes ao coronelismo rural ou semi-rural, com
a preservaçåo de fatores de deferência ou submissåo
que concorrem para o quadro geral de relativa
passividade política dos setores populares.22

Tudo isso tem como lastro decisivo as marcas


profundas que a experiência da escravidåo ainda hoje
22
Veja-se a respeito Fábio W. Reis, “Participación, Movilización e
Influencia Política: “Neocoronelismo” en Brasil”, Revista
Latinoamericana de Ciencia Política, vol. II, no. 1, abril de 1971, pp.
73-102.

26
imprime na estrutura social do país, configurando o
panorama de grande desigualdade e heterogeneidade
sociais. Sua consequência política mais geral såo o
desinteresse, o alheamento e a desinformaçåo perante
a vida política, e a resultante falta de qualquer
sentido de relevância da política para os problemas
que se apresentam na vida cotidiana. Tais traços
tendem a associar-se com uma fluidez cujo único
ponto consistente parece ser a contraposiçåo
simples, na consciência popular, entre o popular e o
elitista, com a consequente opçåo pelo lado popular.
Este último, contudo, pode concretizar-se em formas
as mais variadas na visão dos setores populares do
eleitorado, dadas as deficiências intelectuais e a
precariedade da percepção das questões em jogo e de
suas relações.23

Do ponto de vista das conexões acima esboçadas


entre os aspectos de identidade e de interesses e da
maneira pela qual o aspecto cognitivo interfere em
tais relações, a queståo é, naturalmente, a de como
avaliar a síndrome representada por esse conjunto de
características do eleitorado popular brasileiro. A
resposta começa pela constataçåo de que é certamente
possível, e mesmo necessário, falar de uma
identidade coletiva em operaçåo no comportamento
eleitoral dos setores populares brasileiros, da
mesma forma que no caso dos adeptos dos partidos de
23
Alguns textos do autor em que se discutem os dados nos quais se
baseia o breve diagnóstico esboçado são: “Classes Sociais e Opção
Partidária”, em Fábio W. Reis (org.), Os Partidos e o Regime, São Paulo,
Símbolo, 1978; “O Eleitorado, os Partidos e o Regime Autoritário
Brasileiro”, capítulo 12 do presente volume; e (em colaboração com
Mônica Mata Machado de Castro) “Regiões, Classe e Ideologia no Processo
Eleitoral Brasileiro”, Lua Nova: Revista de Cultura e Política, no. 26,
1992, pp. 81-133.

27
massas europeus mais conformes ao figurino da
política ideológica. Pois a idéia de que o eleitor
expressa uma identidade ao votar é a única maneira
de dar conta da curiosa mescla de amorfismo e
consistência encontrada na síndrome populista: como
seu voto ou opçåo partidária nåo tende a estar
correlacionado com issues ou questões específicas de
qualquer natureza, tudo se passa como se o eleitor
simplesmente "torcesse" pelo time com que simpatiza
ou se identifica, donde a designaçåo de "síndrome do
Flamengo" que propusemos em outro lugar para a
configuraçåo de traços descrita.24 Como se disse
antes, a identidade está sempre presente na
política.

Contudo, a enorme e inequívoca deficiência


manifestada pelos eleitores em queståo no que diz
respeito ao aspecto cognitivo -- ou ao envolvimento
intelectual com o processo político, e ao
correspondente grau de clareza na percepçåo dos
interesses em jogo -- acarreta que a identidade
envolvida na síndrome populista deva ser vista como
uma espécie de matéria prima sociológica toscamente
trabalhada do ponto de vista político. Mais que
isso: tal identidade é, por sua natureza mesma,
pouco passível de ser trabalhada segundo a proposta
de partidos de massas ideológicos. Estes, se såo
ocasionalmente atraentes para o eleitorado popular,
parecem sê-lo pelas mesmas razões que tornam
atraente qualquer partido ou liderança que se possa
identificar como "dos pobres" ou, eventualmente,

24
Fábio W. Reis, “Mudança Política no Brasil: Aberturas, Perspectivas e
Miragens”, Cadernos DCP, no. 7, setembro de 1985, pp. 11-36.

28
"dos trabalhadores".

De tudo isso parece derivar a constataçåo de que


såo precárias as chances de que o processo político-
partidário brasileiro venha a tomar, no que se
refere aos partidos populares, a forma do predomínio
de partidos de massas mais afins ao previsto pelo
modelo de política ideológica anteriormente
apresentado. (Dada a natureza do problema geral
envolvido na dinâmica partidária brasileira,
certamente há ainda menos razões para esperar a
"ideologizaçåo", no mesmo sentido, dos partidos
"nåo-populares": as próprias características das
parcelas majoritárias do eleitorado popular
brasileiro parecem tornar "dispensáveis", na ótica
dos interesses conservadores, os partidos
abertamente fascistas.) Além disso, consideradas as
coisas do ponto de vista do problema constitucional
básico, a análise indica ser altamente duvidoso que
o eventual êxito de um partido popular ideológico,
que se tornasse capaz de real mobilizaçåo político-
eleitoral, nåo resultasse, de parte do
establishment, em reações desfavoráveis às
perspectivas de consolidaçåo democrática. Assim,
razões tanto fatuais quanto "normativas" (pelo menos
num sentido afim ao da "ética da responsabilidade"
de que fala Weber, por oposiçåo à "ética dos valores
absolutos") levariam à aposta de que a participaçåo
política das massas populares continue a dar-se, no
Brasil, através de partidos de "representaçåo
individual" marcados pela frouxa estrutura própria
dos partidos de quadros.

29
IV

Se se admite isso, ao menos de maneira


preliminar, restam algumas questões: (a) Caberia
esperar que os partidos brasileiros, ainda
preservando o formato básico de partidos de quadros
frouxamente estruturados, viessem a "fortalecer-se"
e a ganhar pelo menos o tipo de consistência que
caracteriza os partidos americanos e os partidos
catch-all europeus? (b) Revelar-se-iam eles, nesse
formato, instrumentos capazes de ajudar a dar
soluçåo hábil e duradoura ao problema
constitucional, viabilizando a incorporaçåo política
efetiva das massas populares e a eventual superaçåo
da alternância entre fluidez populista e
autoritarismo militarista (qualquer que seja a
ambiguidade que cumpra reconhecer nessa incorporaçåo
quanto à alternativa representada pelo avanço real
dos setores populares em contraste com a manipulaçåo
e o controle por parte do establishment)? (c)
Haveria alternativas ou complementos institucionais
aos partidos no que se refere a esse processo de
incorporaçao das massas populares?

Esta última indagaçåo se refere à denúncia do


suposto oligopólio exercido pelos partidos,
mencionada no início, e coloca a queståo das
relações atuais e possíveis entre partidos e grupos
de interesses de tipos variados (associações
profissionais, vicinais, diversos movimentos
sociais). Tomá-la-emos nesta seçåo, para considerar
adiante, a partir dela, as demais questões
formuladas.

30
A indagação certamente nåo admite resposta
positiva no que diz respeito à idéia de que os
grupos de interesses podem representar alternativas
aos partidos, no sentido de entidades que se
substituíssem aos partidos e os tornassem
dispensáveis. Como se assinalou antes, há funções de
agregaçåo de interesses, necessárias ao processo
político-eleitoral, que nåo podem ser cumpridas por
tais grupos -- a menos que venham a transformar-se
eles próprios, mesmo a contragosto, em verdadeiros
partidos. É interessante observar a respeito algo
que surge em discussões recentes do problema feitas
por Claus Offe, um dos analistas europeus mais
simpáticos aos novos movimentos sociais: aponta ele
os riscos de solipsismo a que se expõe o movimento
operário na medida em que nåo venha a se mostrar
capaz de se tornar mais do que um movimento operário
e de estabelecer elos com interesses nascidos dos
conflitos de outras categorias (consumidores,
habitantes de um ecossistema, cidadåos).25 Ora, os
mesmos riscos de solipsismo ocorrem, naturalmente,
do ponto de vista de qualquer categoria tomada
isoladamente -- e a necessidade de generalizaçåo e
agregaçåo aí reconhecida implica o reconhecimento da
necessidade dos partidos, seja qual for a suspeita
com que certos porta-vozes dos novos movimentos
sociais tendam a percebê-los.26
25
Veja-se Claus Offe, “Reflections on the Welfare State”, em Claus
Offe, Contradictions of the Welfare State, Boston, MIT Press, 1985, p.
285.
26
As categorias recém-mencionadas a propósito dos riscos de solipsismo
que Offe aponta ao movimento operário (consumidores, habitantes de um
ecossistema, cidadãos) permitem destacar rapidamente uma questão geral
que seria impróprio pretender tratar mais extensamente aqui, apesar de
sua relevância para o problema das relações entre partidos e movimentos

31
Já a visåo dos grupos de interesses -- novos ou
velhos -- como complemento institucional dos
partidos é certamente adequada. E, na ótica do
problema das perspectivas de consolidaçåo
democrática, a idéia da concatenaçåo das duas
dimensões aponta, na verdade, para questões de suma
importância.

sociais. Com efeito, vê-se que tais categorias diferem quanto a um


aspecto importante, que se refere ao maior ou menor alcance da condição
ou dos atributos por referência aos quais se define cada uma delas. A
especificidade dos interesses a que corresponde a condição de
consumidor, por exemplo, contrasta bem nitidamente com a abrangência da
condição de cidadão: como cidadão, cada qual é afetado por uma gama
muito mais variada de questões do que como consumidor. Isso tem
consequências imediatas para a própria idéia dos riscos de solipsismo,
aos quais, naturalmente, estará muito menos exposto um movimento que se
dirija aos cidadãos enquanto tal do que outro que se dirija a categorias
definidas de maneira mais estreita. Mas um desdobramento especialmente
interessante do assunto é o de que ele pode ser ligado ao tema
identidade versus interesses que nos ocupou anteriormente. Assim, se se
tomam movimentos sociais variados, vê-se que a questão da identidade
está centralmente envolvida num movimento como o dos negros americanos
pelos direitos civis; em contraste marcado com esse caso estaria o de
single-issue movements tais como os movimentos ecológico e pacifista,
onde se trata apenas, em princípio, de obter a eliminação de um risco ou
a correção de uma situação percebida como perversa ou inconveniente e
onde se poderia com maior propriedade falar de “interesses” em sentido
mais estrito. Já casos como o movimento jovem ou o movimento feminista
corresponderiam a um ponto intermediário. Uma forma de distinguir esses
diversos casos seria assinalar que movimentos como o dos direitos civis
envolvem, precisamente, uma questão de cidadania, diferentemente dos
demais. Outro enfoque, analiticamente talvez mais rico, é o de indagar
até que ponto as categorias sociais a que correspondem os movimentos são
grupos multifuncionais (um grupo étnico ou uma classe social, por
exemplo).
Naturalmente, uma questão crucial é a das consequências de tais
características para outros aspectos relevantes dos diversos tipos de
movimento. Parece claro, por exemplo, que os movimentos que envolvam em
maior medida um problema de identidade e de cidadania tenderão também a
envolver coisas como a questão da dignidade das identidades em jogo e o
sentimento da busca de direitos ou de justiça. Em conjunto, tais traços
fornecerão provavelmente base mais adequada para que os movimentos se
estabilizem e eventualmente se cristalizem em partidos viáveis. Por
contraste, quanto mais nos aproximemos do modelo estrito dos single-
issue movements, tanto mais se imporá superar os obstáculos associados
ao solipsismo de que fala Offe para a eventual transformação do
movimento em partido estável –- e os partidos “verdes”, por exemplo,
terão de ser mais do que verdes se quiserem ser efetivamente partidos,
ou partidos viáveis.

32
A queståo crucial é, obviamente, a das relações
de partidos e grupos de interesses com o estado, e
das formas em que se dará a recém-mencionada
concatenaçåo entre ambos no estabelecimento dessas
relações. Apesar do ideário espontaneísta e
autonomista dos novos movimentos sociais (ou das
manifestações novas de movimentos sociais
"tradicionais", como o operário), tais movimentos,
na medida mesma em que venham a fortalecer-se e
eventualmente a afirmar-se de maneira consequente,
defrontar-se-åo inevitavelmente com o imperativo
organizacional e com o desdobramento natural dele no
plano das relações com o estado enquanto agência
efetiva de decisões que nåo pode ser ignorada.

Pelo ângulo específico dos sindicatos, essa


proposiçåo redunda na queståo do corporativismo e do
"neocorporativismo". Nåo é o caso de tomar
detidamente aqui esse tema em si mesmo, mas é
certamente oportuno destacar de passagem dois
aspectos do problema geral envolvido. Do lado mais
estritamente analítico, em primeiro lugar, saliente-
se o caráter aparentemente inexorável dos
desenvolvimentos correspondentes. Tal caráter se
ilustra com as observações relativas às tendências
corporativizantes que resultariam, como demonstra a
experiência de diversos países da Europa ocidental,
mesmo da operaçåo dos mecanismos próprios das
estruturas pluralistas tradicionais.27 Essa maneira
de ver o problema encontra importante respaldo em

27
Veja-se especialmente Berger (ed.), Organizing Interests in Western
Europe.

33
avaliaçåo recente de Robert Dahl. Referindo-se ao
mesmo fenômeno do "neocorporativismo" europeu, que
denomina "pluralismo corporativo" e vê como
especialmente relevante no caso dos países
escandinavos, escreve Dahl:

Naqueles países, um grau significativo de


controle sobre decisões econômicas cruciais,
que, na teoria democrática convencional,
deveria permanecer com os representantes dos
cidadåos no parlamento e no gabinete, foi
simplesmente transferido para uma espécie de
parlamento industrial nåo-eleito constituído
pelos líderes das associações centrais. Esse
deslocamento do poder para fora do controle dos
representantes eleitos parece irreversível,
pelo menos no quadro das instituições da
poliarquia -- na verdade, a menos que se
estabeleça um regime autoritário. Acho difícil
resistir à conjectura de que estamos
testemunhando uma transformaçåo na democracia
tåo fundamental e duradoura quanto a mudança
que levou das instituições do governo popular
na cidade-estado às instituições da poliarquia
no estado-naçåo.28

O segundo aspecto diz respeito à postura


normativa a adotar diante do fenômeno do
corporativismo, aspecto este perante o qual,
naturalmente, o diagnóstico de sua aparente
inexorabilidade nåo é irrelevante. Contra a
tendência corrente a denunciar o corporativismo
brasileiro, trata-se aqui de reconhecer, diante da
importância da atuaçåo dos sindicatos do ponto de
vista das constrições econômicas do sistema, ser
indispensável buscar formas adequadas de integraçåo
da estrutura sindical com o aparelho do estado para
garantir um duplo objetivo: por um lado, o que diz
28
Robert A. Dahl, Dilemmas of Pluralist Democracy, New Haven, Yale
University Press, 1982, p. 80.

34
respeito à regulaçåo dos conflitos entre interesses
decisivos e ao estabelecimento, em última análise,
do "pacto social" que reúna trabalhadores,
empresários e estado; por outro, o de corrigir a
parcialidade do estado contida na fatal
representaçåo corporativa dos interesses
empresariais, a qual, mesmo se informalmente, sempre
se dá. Análoga articulaçåo com a aparelho do estado
caberia também buscar no que se refere a grupos de
interesses de outros tipos que apresentem a
característica de serem suficientemente
circunscritos ou específicos (associações vicinais,
por exemplo), ainda que tal articulaçåo devesse
provavelmente dar-se em formas ou níveis distintos
(local ou regional, por contraste com federal).
Naturalmente, propor a articulaçåo corporativa de
interesses como os trabalhistas ou vicinais nåo
equivale a propor que tais interesses nåo devam ou
possam ser processados igualmente por meio da
estrutura partidária. Já outros interesses mais
difusos ou abrangentes (ou que afetem a generalidade
dos cidadåos, ainda que se refiram a questões
específicas como as que concernem em princípio aos
movimentos pacifista e ecológico, por exemplo)
teriam que depender talvez de maneira mais exclusiva
do processamento que os partidos se mostrem capazes
de efetuar na arena eleitoral.

Como quer que nos situemos, porém, diante de


variadas feições particulares que poderia
eventualmente exibir a articulaçåo entre partidos e
grupos de interesses, uma importante proposiçåo de
alcance mais geral parece impor-se. Trata-se de que

35
a natureza flexível e catch-all dos partidos (por
contraste com os vínculos mais estreitos com
determinados segmentos do eleitorado, que seriam
característicos do modelo de partidos ideológicos)
parece a forma mais adequada a ser assumida pela
estrutura partidária na suposiçåo de sua
concatenaçåo com uma estrutura paralela em que a
máquina burocrática de um Executivo complexo acolha
e represente corporativamente vários interesses
sociais específicos. Do ponto de vista da estrutura
geral de representaçåo de interesses, em primeiro
lugar, o alcance dessa proposiçåo parece bastante
claro. Com efeito, se interesses funcionais ou
setoriais específicos encontram representaçåo
adequada numa estrutura de tipo corporativo, é
patente que nåo haveria por que pretender duplicar a
representaçåo de tais interesses através da
estrutura partidária, e haveria fortes razões para
que os partidos exibissem, em sua açåo, uma
perspectiva abrangente e territorial (pelo menos
enquanto se trate do contraste entre representaçåo
territorial e funcional: naturalmente, poderia haver
razões para que certos partidos buscassem
representar eventuais interesses particulares de
algum tipo, como os interesses étnicos ou
confessionais). Um ângulo adicional pelo qual se
pode visualizar o sistema assim constituído é o de
que ele consistiria numa forma talvez adequada de
dar soluçåo ao clássico problema da opçåo ou do
convívio entre mandato livre e mandato imperativo:
com efeito, a área da representaçåo corporativa de
interesses funcionais provavelmente se presta melhor
a que os representantes sejam vistos como

36
"delegados" de mandato mais estreito e mais
facilmente revogável, enquanto os mecanismos de
representaçåo partidária, especialmente em sua
associaçåo com a idéia do partido catch-all,
corresponderiam antes à representaçåo através de
"fiduciários" de mandato livre.29

Mas a articulaçåo específica proposta entre


partidos catch-all e representaçåo corporativa é
defensável mesmo do ponto de vista dos interesses
dos próprios partidos de trabalhadores e dos
problemas com que se debatem. Temos em mente aqui
sobretudo a constataçåo de Przeworski e Sprague
acima citada, em que se demonstra que o processo de
fortalecimento da estrutura sindical e de sua
vinculaçåo corporativa com o estado favorece a
viabilizaçåo eleitoral de partidos da classe
trabalhadora a um menor custo em termos de diluiçåo
da identidade de classe. Essa constataçåo
permitiria esperar, por exemplo, que, na hipótese do
fortalecimento do papel de uma entidade como a CUT
no processo corporativo de tomada de decisões de
política sócio-econômica, o dilema defrontado por um
partido como o PT entre nitidez de postura e
viabilidade eleitoral viesse a resolver-se em favor
de uma linha de açåo mais capaz de mostrar-se
atraente para o difuso foco de identidade que
caracteriza a massa popular majoritária no Brasil.
Além disso, essa articulaçåo de um partido
trabalhista ou popular eleitoralmente forte (o que,
nas condições brasileiras e nos termos gerais desta
análise, implica um partido de natureza catch-all) e
29
Cf. Bobbio, O Futuro da Democracia, pp. 46-7.

37
o sistema de representaçåo corporativa seria a
condiçåo (ou uma condiçåo, pelo menos) para que se
possa eventualmente transformar nosso corporativismo
tradicional num instrumento mais efetivo dos
interesses populares -- ajudando a criar, por
exemplo, um estado de bem-estar que substitua a
caricatura onerosa, emperrada e ineficiente
atualmente existente no país. Uma corroboraçåo
adicional dessa perspectiva se tem com a avaliaçåo
que faz Klaus von Beyme das relações entre partidos
e sindicatos no quadro do neocorporativismo europeu,
onde se destaca a contribuiçåo dos partidos para a
soluçåo de conflitos associados com a estrutura
neocorporativa e se sustenta a tese de que "o
corporativismo nåo acaba necessariamente com o
estado de partidos, tal como parecem temer alguns
analistas e esperam alguns autores da escola
dialética, mas, ao revés, os grupos de interesses
necessitam a ajuda dos partidos para dotar de
operacionalidade as estratégias neocorporativistas"
-- dentre as quais, como surge de maneira explícita
e enfática na análise de von Beyme, as prestações
sociais do estado såo um componente decisivo.30

30
Klaus von Beyme, Los Partidos Políticos en las Democracias
Occidentales, Madri, Siglo XXI, 1986, p. 429. A alusão a “autores da
escola dialética” remete a um artigo de Claus Offe que se difundiu no
Brasil: “A Democracia Partidária Competitiva e o ‘Welfare State’
Keynesiano”, em Claus Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. Na verdade, a posição de Offe
sobre o assunto não é de todo consistente, pois, apontando o que lhe
parece a perda de função do sistema partidário em conexão com o
desenvolvimento dos arranjos corporativos, assinala também (p. 369) que
o desenvolvimento desses arranjos ocorreu “especialmente em países com
fortes partidos social-democratas (tais como, na Europa, a Suécia, o
Reino Unido, a Áustria e a Alemanha)”.

38
Nosso argumento tem como ponto central, assim, a
defesa dos partidos catch-all -- ou dos "partidos-
frente", para tomar diretamente uma expressåo que
tem sido usual nos debates brasileiros. Por certo,
fazer tal defesa nåo significa que se considere
adequado o grau extremo de fluidez e oportunismo que
tem caracterizado a vida partidária brasileira no
que diz respeito à conduta dos políticos
profissionais e à dinâmica do jogo parlamentar. Isso
nos leva à queståo formulada no início da seçåo
anterior relativamente a maneiras diversas de
entender a idéia de partidos "fortes" e a possíveis
tipos diferentes de consistência partidária.

Uma observaçåo inicial é a de que a especial


fluidez que tem vindo marcando recentemente a vida
partidária brasileira é, em ampla medida,
consequência direta da atuaçåo do regime autoritário
até há pouco em vigor no país. Ela está longe de
corresponder ao relativo amadurecimento da estrutura
partidária que foi possível no período de l945 a
l965, quando, nåo obstante as críticas frequentes ao
"amorfismo" ideológico dos partidos entåo
existentes, o trânsito dos políticos de uma legenda
a outra era certamente muito mais limitado, havendo
maior consistência e persistência das lealdades
partidárias e das imagens dos políticos em funçåo de
sua identificaçåo com determinado partido. Afinal,
nåo é outra senåo a "realidade" dos partidos do
período anterior a razåo essencial de que o regime
autoritário tenha logo sentido a necessidade de
extingui-los pela força, mesmo preservando a

39
possibilidade da operaçåo de uma nova estrutura
partidária que se esperava viesse a ser mais dócil e
compatível com os desígnios do regime.

Um importante aspecto associado com isso é o de


que a consistência dos partidos tem decisiva e
indispensável base nas percepções e identificações
do eleitorado, as quais, como vimos, apresentam
inegavelmente certo tipo de consistência
"populista", nåo obstante as deficiências quanto a
informaçåo sobre política e envolvimento com
assuntos políticos que caracterizam majoritariamente
os eleitores. Daí que a estrutura partidária se
tenha transformado no alvo de medidas frequentes e
contraditórias do regime autoritário em sua busca de
apoio eleitoral -- e que tais esforços tenham sido
baldados desde que se desnudou aos olhos do
eleitorado a marca essencialmente antipopular do
regime. Daí também que, com a perturbaçåo do lastro
eleitoral das identidades partidárias derivada da
frequente manipulaçåo da estrutura partidária, se
torne mais "natural" o incremento recente da
movimentaçåo dos políticos entre partidos que, em
vários casos, nåo chegaram ainda a ganhar qualquer
densidade perante o público.

Pelo menos dois outros aspectos merecem mençåo


neste contexto. O primeiro é o de que a parte mais
substancial do "transformismo" recente ocorre entre
figuras ligadas à estrutura de poder do regime
autoritário que tratam de sobreviver eleitoralmente
buscando vincular-se a partidos de penetraçåo
popular, especialmente o PMDB. Ora, nada há de

40
surpreendente ou singular no fato de que essa fraçåo
da classe política se mostre especialmente
"pragmática", e a indagaçåo de interesse que essa
constataçåo suscita é a das razões que levam, nas
circunstâncias em que se dá a superaçåo do
autoritarismo no caso brasileiro, a que um partido
como o PMDB se mostre receptivo a tais trânsfugas.

O segundo aspecto, nåo sem relaçåo com o


anterior, é a queståo de por que nåo se deu no caso
brasileiro, como em outros casos, a restauraçåo
pronta da estrutura partidária prévia -- sobretudo
se se sustenta, como se disse acima, que esta
contava com relativa consistência e "realidade". A
resposta passa, naturalmente, pelo fato de que, como
consequência da possibilidade legal da atuaçåo
partidária, e em particular da atuaçåo de um partido
de oposiçåo, a história partidária brasileira nåo
esteve, em contraste com a de outros países, como
que suspensa durante a vigência do autoritarismo. Ao
contrário, a experiência da luta antiautoritária
conduzida abertamente em termos partidários se torna
um capítulo crucial da história dos partidos no
país, e nåo pode senåo condicionar de maneira
importante a dinâmica partidária no pós-
autoritarismo. Além disso, o caráter particularmente
"agregador" que distingue aquela luta fatalmente
condiciona, por sua vez, a natureza do próprio
partido que a empreende. Este é certamente um
aspecto com respeito ao qual caberia esperar que a
"decantaçåo" decorrente da operaçåo continuada do
processo democrático viesse a acarretar mudanças.

41
Tudo isso dito, reitere-se que nåo se trata aqui
de fazer o elogio das condições atualmente
existentes no país no que se refere à estrutura
partidária. Sem dúvida seria de desejar, por
exemplo, que se procurasse fortalecer essa estrutura
por meios legais. As idéias que proporíamos a
respeito såo convergentes com as que expõem Bolivar
Lamounier e Rachel Meneguello em livro recente,
denunciando a excessiva permissividade da legislaçåo
partidária em vigor e destacando a necessidade de
opor obstáculos à proliferaçåo de partidos e de
estimular legalmente a "fidelidade partidária".31 Em
particular, a criaçåo de restrições a um
multipartidarismo exacerbado é congruente com o
tosco bipartidarismo que parece caracterizar
latentemente as percepções dominantes no eleitorado
popular.

Algumas outras qualificações seria preciso


acrescentar a esta defesa do partido flexível e
catch-all. Por um lado, ela decerto nåo envolve a
prescriçåo de um partido popular sem qualquer
espinha ideológica e perspectiva de tempo e entregue
a um mero jogo "fisiológico" de clientelas ou
populista. Mas ela envolve, sim, o reconhecimento de
que, nas condições da atualidade brasileira, um
partido que se pretenda popular e que nåo abra måo
de ser eleitoralmente viável, se deve ter espaço
para uma espécie de "coraçåo"32 ideológicamente

31
Bolivar Lamounier e Rachel Meneguello, Partidos Políticos e
Consolidação Democrática, São Paulo, Brasiliense, 1986.
32
Essa expressão foi utilizada por Maria Hermínia Tavares de Almeida
nas discussões relacionadas com a preparação do volume coletivo em que
se publicou originalmente o presente texto.

42
requintado e estrategicamente orientado, deve também
ajustar-se ao gosto e à avaliaçåo dos seus próprios
interesses que tem o cidadåo em princípio mais
facilmente recrutável pelas estruturas
clientelísticas, máquinas políticas ou movimentos
populistas. Na convivência assim obtida da
sofisticaçåo e consistência ideológicas com o
"realismo" e ocasionalmente a miopia dos interesses,
seria possível tratar de buscar a eventual definiçåo
universalística e lúcida de identidades políticas
cuja operaçåo ajudasse a compor um processo
democrático estável.

Por outro lado, nåo se pretende propor uma


estrutura partidária que de alguma forma exclua a
existência e a atuaçåo de partidos populares
ideologicamente orientados e combativos. A
existência de um partido como o PT, por exemplo, ao
lado de um partido que combine orientaçåo popular e
maior preocupaçåo com a viabilidade eleitoral, nåo
pode ser senåo positiva, servindo de "aguilhåo" ao
núcleo ideológico deste e representando um
competidor virtual dele que, por assim dizer, põe à
prova permanentemente os limites e o potencial
eleitorais de uma postura mais principista. O cerne
da idéia geral proposta, contudo, é o de que nåo
cabe, em funçåo de arrogâncias e ilusões
vanguardistas, abandonar ao pragmatismo ou mesmo ao
cinismo das lideranças "fisiológicas" e mais
negativamente populistas o campo correspondente ao
eleitorado de tipo "Flamengo" que acima se
descreveu.

43
Finalmente, uma temática de certa forma
adjacente à da consistência partidária merece breve
mençåo aqui: a da distinçåo entre os sistemas
eleitorais majoritário e de representaçåo
proporcional e suas consequências para os partidos e
sistemas partidários. Um primeiro aspecto,
relativamente consensual, dessa temática é o que se
refere às condições mais propícias ao bipartidarismo
que seriam produzidas por sistemas eleitorais de
tipo majoritário. Em consonância com isso, parece
claro que a opçåo por uma dinâmica partidária mais
"agregadora" que vimos defendendo redunda, por si
mesma, numa inclinaçåo favorável a que se dê maior
peso à escolha majoritária no conjunto do sistema
eleitoral. Daí que a proposta de experimentaçåo com
alguma forma de voto distrital surja como
decorrência natural do que se sustenta acima. Além
disso, ela pode contar com argumentos em seu favor
mesmo numa perspectiva que se oponha à que aqui
adotamos e se preocupe antes com a consistência dos
partidos, pois a maior proximidade entre eleitor e
representante que a eleiçåo em bases distritais
permitiria seria provavelmente favorável a tal
consistência.

Mas outro aspecto em princípio relevante é o da


ligaçåo que se poderia pretender estabelecer entre a
idéia da representaçåo proporcional e a queståo da
identidade dos focos de interesses a serem
proporcionalmente representados, identidade esta com
base na qual se pretende nåo raro afirmar o caráter
mais democrático da representaçåo proporcional. A
noçåo mesma de proporcionalidade na representaçåo

44
envolve patentemente a suposiçåo de que há um certo
conjunto ou universo "real" de entidades a ser
adequadamente representado em termos proporcionais.
Nåo admira, assim, que questões como a da
"autenticidade" surjam em conexåo com a
representaçåo permitida pelos sistemas eleitorais e
partidários da mesma forma que a respeito dos
partidos como tais.

O interesse de destacar aqui o paralelismo das


duas temáticas é o de evitar certas confusões que
pareceriam naturais: numa palavra, alertar para o
fato de que a maior ou menor autenticidade e
representatividade de um sistema eleitoral e
partidário, tal como essas noções surgem na
literatura relacionada com representaçåo
proporcional ou majoritária, não se confundem com a
queståo da autenticidade dos partidos no sentido em
que essa queståo se encontra envolvida, por exemplo,
no confronto entre partidos de massas e partidos de
quadros. O que o ideal da representaçåo proporcional
exige é que os partidos existentes se vejam
representados nas esferas institucionais de decisåo
(particularmente no parlamento ou congresso)
proporcionalmente aos votos obtidos nas eleições --
sem cogitar de saber se os partidos que assim se
representam såo deste ou daquele tipo, ou se mostram
maior ou menor consistência ou densidade em termos
sociológicos, ideológicos ou outros. Assim, em
livro recente de Wanderley Guilherme dos Santos
encontramos a autenticidade de um sistema eleitoral
e partidário definida em termos que se referem à
legalidade da conquista dos mandatos e à

45
inexistência de fraudes nos processos de votaçåo e
apuraçåo, enquanto se define "representatividade"
como "o grau de correspondência entre a distribuiçåo
de preferências partidárias entre os eleitores e a
distribuiçåo de poder parlamentar entre os
partidos".33 Como é notório, tais definições permitem
que eventualmente se apontem como altamente
representativos e autênticos sistemas cujos partidos
componentes sejam eles próprios totalmente carentes
de consistência ideológica ou de correspondência com
identidades coletivas reais de qualquer tipo -- e
Santos, no livro mencionado, termina ele mesmo por
contrapor a noçåo de uma representatividade
"substantiva" à representatividade "formal"
capturada na definiçåo transcrita.34

Do ponto de vista da queståo da consistência


dos partidos que nos tem ocupado, isto é, do ponto
de vista dos partidos enquanto possíveis
instrumentos de representaçåo de eventuais
identidades coletivas reais e dos interesses
correspondentes, essa linha de considerações encerra
claramente um reparo importante à idéia de
"proporcionalidade" da representaçåo. Pois a
representaçåo, mesmo proporcional, pode obviamente
ser destituída de fundamento sociológico ou sócio-
psicológico na medida em que os partidos a serem
proporcionalmente representados nåo adquiram maior
densidade junto ao eleitorado. Por outro lado,
contudo, mesmo as bases territoriais da
representaçåo podem igualmente carecer, no mesmo
33
Wanderley Guilherme dos Santos, Crise e Castigo: Partidos e Generais
na Política Brasileira, São Paulo, Vértice, 1987, p. 37.
34
Ibidem, p. 113.

46
sentido, de realidade sociológica. O traçado
artificial de distritos eleitorais que se tornou
conhecido como gerrymandering é a ilustraçåo mais
óbvia dessa segunda possibilidade. Mas outra
ilustraçåo se tem com o artificialismo também
presente, em algum grau, na própria definiçåo das
unidades de uma federaçåo como a brasileira: como
deixam claro as discussões atuais, na Assembléia
Constituinte, em torno de propostas que visam a
redesenhar o mapa dos estados, as unidades da
federaçåo brasileira -- que devem naturalmente
constituir, em princípio, um ponto de referência
crucial na definiçåo do âmbito de operaçåo de
critérios de representaçåo tanto majoritária quanto
proporcional -- eståo longe de corresponder, em
muitos casos, a fundamentos intocáveis de
identidades coletivas. Isso permite reiterar com
vigor a idéia, anteriormente proposta, de que as
próprias identidades coletivas såo com frequência
politicamente produzidas -- e lembrar de novo que os
partidos, se se dirigem por vezes a identidades
socialmente "dadas", såo também instrumentos dessa
conformaçåo mais ou menos artificial de identidades
que se definem em torno de objetivos a serem
alcançados ou interesses a serem promovidos.

VI

As linhas ao longo das quais se poderia


pretender responder às cruciais questões formuladas
no início da seçåo IV estaråo assim, espera-se,
esboçadas com alguma clareza. Elas se assentam numa
premissa pessimista quanto às possibilidades e às

47
consequências presumíveis do eventual
desenvolvimento de efetivos partidos ideológicos de
massas nas condições brasileiras da atualidade:
quanto às possibilidades, já que tais partidos nåo
parecem contar com lastro social nos traços que
distinguem majoritariamente o eleitorado popular;
quanto às consequências, já que os termos em que se
coloca presentemente o que chamamos o "problema
constitucional" brasileiro nåo parecem compatíveis
com a atuaçåo efetiva de um partido popular
revestido de tais características sem comprometer as
perspectivas de continuidade do próprio processo
democrático.

As consequências que derivam dessa premissa


redundam na proposiçåo de que, se cabe esperar que o
sistema partidário brasileiro venha a fortalecer-se
e ganhar consistência e a auxiliar eventualmente o
encaminhamento da soluçåo do próprio problema
constitucional, tal expectativa só se justificará na
medida em que inclua como componente importante a
idéia de tornar instrumental para aqueles objetivos
a própria estrutura plástica e flexível de partidos-
frente que tem sido alvo permanente de críticas
fundadas no apego a um modelo idealizado de política
ideológica. Note-se que nåo se trata de afirmar
positivamente que, nesses termos, a transiçåo a uma
democracia consolidada estará assegurada. Ao
contrário, parece haver boas razões para que o
pessimismo da premissa recém-mencionada se estenda
de maneira mais geral à avaliaçåo do desdobramento
visível do processo político brasileiro: este pode
muito bem vir a desenrolar-se sob a forma de

48
sobressaltos e trambolhões autoritários continuados
que se alternem com esforços renovados de
institucionalizaçåo democrática, e na verdade parece
ser esta a hipótese mais plausível até que a
dinâmica geral do processo de transformaçåo sócio-
econômica resulte em condições sociais mais
igualitárias, "acomodadas" e propícias. O que se
propõe, nåo obstante, é que, se se trata de agir no
plano político-institucional e esperar assim influir
sobre o processo geral e talvez apressá-lo, a melhor
aposta no que diz respeito aos partidos como
instrumento de incorporaçåo das massas populares ao
sistema político -- sobretudo na hipótese de seu
acoplamento com uma estrutura adequadamente
reformulada de representaçåo funcional de interesses
-- é a que se faça sobre partidos-frente
heterogêneos. Uma estrutura partidária centrada num
partido popular de tais características é
provavelmente a que melhores garantias traria de que
se pudesse esperar a eventual conciliaçåo do
objetivo de aplacamento dos riscos maiores da
dinâmica política "constitucional" com o objetivo de
fazer do sistema de partidos algo mais do que a
combinaçåo de instrumentos eleitoreiros e
"fisiológicos", de um lado, e, de outro,
agrupamentos talvez puros e "autênticos", mas sem
eleitores. Assim, nas condições do eleitorado
brasileiro da atualidade e diante dos dilemas de
nosso problema constitucional, uma estrutura
partidária daquele tipo parece ser a melhor forma de
fazer avançar os prospectos de uma democracia
política estável -- condiçåo, por sua vez, do
esforço necessariamente perseverante de construçåo

49
de uma democracia social.

50

Вам также может понравиться