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que a oposição esquerda-direita tem insuspeitada relevância no processo
político-eleitoral do país, o qual seria muito mais “ideológico” do que se
costuma imaginar.1 A maneira precária em que o autor procura sustentar tal
proposição, pondo de lado os componentes intelectuais ou cognitivos da idéia
de ideologia em benefício do componente emocional ou valorativo
correspondente à mera identificação com “esquerda” ou “direita” (tratada
como um “sentimento” ideológico “intuitivo” que caracterizaria eleitores que,
em sua grande maioria, nem sequer conhecem o significado das categorias),
realça ela própria, e leva a uma espécie de exasperação, o problema da
conexão entre os dois aspectos acima mencionados, o da capacidade cognitiva
de apreensão e avaliação dos fatos e o das preferências, aspirações ou
orientações valorativas: “esquerda” e “direita” serão nomes para posturas
propriamente “ideológicas”, servindo como rótulos para perspectivas
doutrinárias mais ou menos sofisticadas, ou servirão também para designar
tomadas de posição toscas e desinformadas?
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escada rolante, na imagem de Louis Hartz, em que o socialismo se realizaria
de modo inexorável.
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atual, os processos econômico-tecnológicos ligados à globalização, bem como
a queda do socialismo na ex-União Soviética e na Europa oriental, com o
enfraquecimento que produzem também dos protagonistas sociopolíticos da
afirmação da social-democracia nos decênios anteriores, não podem senão
favorecer a difusão de idéias e valores associados à direita. Criam-se, assim,
“consensos” mais ou menos efetivos, que se vêem, por sua vez, eventualmente
rompidos em função de fatos que desmentem certos aspectos otimistas dos
diagnósticos por eles sustentados. De outra parte, além da convergência
ocasional na apreciação analítica dos fatos, que valores divergentes não
necessariamente impedem, é por certo possível que os fatos venham a permitir
também o aprendizado e a eventual concordância com respeito aos próprios
valores entre os integrantes de campos inicialmente opostos. Assim como o
empenho igualizador do welfare state representou durante longo tempo, em
condições objetivas favoráveis, um foco de convergência para posições
variadas do espectro político, assim também as experiências negativas com o
“socialismo real” e com vários autoritarismos recentes na periferia do
capitalismo mundial propiciaram o difundido aprendizado, no campo da
esquerda, sobre a importância da democracia liberal ou “formal” – e não só
em função de considerações instrumentais, mas em nome dos próprios valores
humanistas mais importantes que tendem a caracterizar aquele campo. Na
verdade, a social-democracia representou ela mesma uma primeira e
importante consequência desse aprendizado, com a ênfase revolucionária em
objetivos socialistas cedendo o passo ao compromisso democrático em que se
buscou conciliar preocupações sociais e igualitárias com a preservação da
autonomia e da liberdade individuais em diferentes esferas e do próprio
capitalismo.
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Como quer que seja, nem a derrocada e aparente inviabilidade futura do
socialismo como meta, nem o reconhecimento da existência de matizes
variados na articulação entre fatos e valores redunda pura e simplesmente em
negar a relevância doutrinária e filosófica da contraposição entre direita e
esquerda como tal. Pois seguem existindo valores também importantes –
talvez os valores mais básicos – de convivência tensa e conciliação
problemática, os quais tendem a disputar prioridade e eventualmente a chocar-
se. Entre nós, Bresser Pereira tem contraposto o compromisso da direita com a
ordem ao apego da esquerda ao ideal de justiça.2 Já Norberto Bobbio formula
o contraste de orientações em termos do maior apego da esquerda à idéia de
igualdade, enquanto a direita se mostra mais pronta a aceitar a desigualdade
não apenas como fato inevitável, mas também como algo desejável.3 Tais
formulações diversas são claramente compatíveis, parecendo natural
contrapor, em certo nível, as afinidades entre a aspiração à justiça e à
igualdade, de um lado, e, de outro, àquelas que se dão entre a idéia de ordem
(que se pode pretender desdobrar na capacidade de agir coletivamente de
maneira eficiente) e a afirmação de um princípio hierárquico.
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Ver, por exemplo, Luiz Carlos Bresser Pereira, “Por um Partido Democrático, de
Esquerda e Contemporâneo”, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, no. 39, 1997.
3
Norberto Bobbio, Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política,
São Paulo, Editora UNESP, 1995 (edição italiana original de 1994).
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mais, com as posições tradicionais quer da direita ou da esquerda, negando sua
importância na perspectiva oposta. De um lado, temos, à direita, o liberalismo
econômico e sua associação com a valorização do mercado e da competição.
Assimilada à eficiência da dinâmica do capitalismo, a ordem é aqui percebida
como envolvendo a afirmação da autonomia dos agentes na crucial esfera
econômica, ainda que deva conciliar-se com a afirmação também da
hierarquia, seja no plano dos instrumentos mobilizados pelos agentes
dispersos ou da desigualdade que emerge nos resultados agregados da
operação do mercado, seja no plano da implantação das condições político-
institucionais gerais da competição regrada. De outro lado, à esquerda, embora
a solidariedade deva contrapor-se à mecânica cega dos mercados para
traduzir-se em igualdade e justiça, ela trairia esses objetivos se, ao invés de ser
a condição e o instrumento da autonomia dos indivíduos, redundasse em
favorecer a sujeição de uns a outros. Basta evocar, a propósito, o modo pelo
qual o solidarismo projetado por Marx na sociedade comunista resulta, na
verdade, em passagem famosa da Ideologia Alemã, em viabilizar um
individualismo exacerbado: toda e qualquer restrição da autonomia individual
decorrente da vinculação adscritícia das pessoas a determinada categoria
(como consequência sobretudo da divisão social do trabalho e das relações de
classes, mas o princípio tem naturalmente de ser generalizado para qualquer
outro fator de adscrição e domínio: raça, gênero, etnia etc.) é aí negada numa
condição em que os indivíduos se tornam plenamente os autores de si mesmos
ao exercer uma liberdade levada ao ponto do capricho.
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imperativos de produção coletiva de poder, até mesmo para que haja
instrumentos capazes de garantir sua distribuição adequada e a autonomia de
cada um. Essa exigência se coloca de maneira menos aguda para a direita, na
qual o que se espera do poder coletivo (do estado) é apenas o estabelecimento
de parâmetros para um jogo competitivo a desenrolar-se na esfera privada e
cujos resultados desiguais são vistos, em larga medida, como aceitáveis. Para
a esquerda, porém, os valores solidários e igualitários remetem a um desafio
de racionalidade e eficiência muito mais exigente no plano coletivo, ou seja,
na realização de desígnios que não são mais dos meros atores individuais, mas
da própria coletividade como tal, ou do instrumento de coordenação e ação
coletiva representado pelo estado, o qual forçosamente adquire aqui muito
maior importância.
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do mercado. Daí que o movimento atual, em que tendências fatuais
supostamente inexoráveis (é a direita, agora, a recorrer à escada rolante...) são
apontadas como tornando inócua a disputa sobre valores, deva ser visto como
triunfo ideológico, em sentido em que sobressai a acepção de “ideologia” na
sociologia do conhecimento e que indica conexão problemática com os fatos.
Em particular, fica em aberto a questão de até que ponto as supostas
tendências (que, ainda que verdadeiras, podemos, naturalmente, ter bons
motivos para perceber como ruins e como requerendo ações contrárias a elas,
ao invés de acomodação a elas) constituem razão bastante para que nos
despojemos da concepção rica e social da cidadania – e se estamos realmente
condenados à busca resfolegante de eficiência que pretende valer-se da
autonomia, mas que a nega na verdade para muitos em circunstâncias em que
a solidariedade e a igualdade surgem como peças retóricas corroídas pelos
fatos.
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de poder e organização na própria escala transnacional em que se fazem sentir
os efeitos de uma autonomia nova dos agentes dispersos do mercado (e que
fazem da globalização, como destaca Wolfgang Reinicke, um processo
microeconômico, referido à reorganização espacial da atividade das
corporações e obediente à lógica estreita dos seus interesses4). E isso não só
com vistas a assegurar o controle racional dos mecanismos “sistêmicos” do
mercado e seus possíveis efeitos negativos mesmo no plano econômico, mas
também, quem sabe, em nome de sua eventual conciliação, em escala
planetária, com os valores solidários e igualitários. Não há como evitar a
utopia de uma espécie de social-democracia de alcance mundial, e cumpre
reconhecer que os estados nacionais, não importa sua debilidade, serão
instrumentos indispensáveis nos esforços a que ela incita e no inevitável
formato federativo de organização que ela contempla. Como quer que seja,
existe, sem dúvida, no mundo novo com que nos defrontamos, amplo espaço
para os valores que a esquerda tem defendido. Se as tarefas a enfrentar são
certamente mais complicadas, tanto pior: os riscos sistêmicos e a perversidade
social dos automatismos estúpidos que resultam do jogo livre de autonomias
dispersas e agora mais poderosas não são alternativas aceitáveis à busca de
coordenação e racionalidade, ou ao empenho de encontrar o equivalente
funcional do estado – e do estado democrático e social – em plano mundial.
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do aspecto crucial recém-assinalado, correspondente à necessidade que se cria
de ação coordenada em escala apropriada e, em última análise, de governo
mundial, Giddens tem o mérito de reconhecê-la e afirmá-la com força,
advertindo que não faz sentido “contestar o fundamentalismo de mercado no
nível local mas permitir que ele reine no nível global” e chegando mesmo a
examinar brevemente, com base em experiências como a da União Européia,
formas de arranjo institucional com as quais passos concretos rumo ao
governo global se poderiam dar nas condições da atualidade. Mas, entendida a
“velha” social-democracia como definida, em seu cerne, pelas posições quanto
às relações entre estado e mercado e suas conexões com os ideais de
autonomia e igualdade, as propostas de Giddens não chegam a representar
novidade ou solução realmente original para os problemas. Há, certamente,
posições sensatas quanto a uma série de questões do mundo novo que não
dizem respeito àquele cerne – ecologia, criminalidade intensificada,
sociedades nacionais que se tornam cultural e etnicamente plurais, mudanças
na família... Depositam-se, além disso, esperanças difusas na “sociedade
civil”, as quais não impedem, porém, que Giddens afirme com clareza a
incapacidade dos movimentos sociais e outros tipos de organização não-
governamental para substituir o estado nas numerosas e decisivas funções que
continua a reconhecer-lhe. Resta, assim, a acolhida dada a certa crítica de
direita ao welfare state, descrito como “essencialmente não-democrático” por
depender da “distribuição de benefícios de cima para baixo”, característica à
qual se procura contrapor a diretriz de “investimento em capital humano
sempre que possível, em vez de fornecimento direto de sustento econômico”.
Se isso sugere certa ênfase no valor da autonomia que se poderia pretender
afim ao “neoliberalismo”, é difícil ver em que sentido o “estado de
investimento social” ou em “capital humano” deixaria de corresponder a
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benefícios vindos “de cima”, se é que a caracterização é adequada para o
welfare state em geral. E a lista que Giddens apresenta dos valores da terceira
via situa não apenas a igualdade, mas também a “proteção aos vulneráveis”,
em plano até mais destacado que o da liberdade como autonomia, além de se
fazer acompanhar de extensa elaboração da idéia de que não é sustentável
tomar a igualdade apenas em termos de igualdade de oportunidades, ou
meritocracia, como seria próprio dos neoliberais. Assim, se lemos Giddens, a
terceira via não parece ser mais que a social-democracia de sempre, apenas
agora assustada e em grande medida perplexa diante de um mundo mais
complicado e em fluxo. Tais inconsistências e dificuldades do que é talvez a
tentativa mais explícita de redefinir a social-democracia em função dos
desafios novos indicam que o que se pode conceber como necessário é, em
pontos essenciais, mais do mesmo – ainda que as brumas que nos cercam
sejam espessas.
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encontrar os meios para fazer que a busca de ordem e eficiência redunde
também em produzir solidariedade e mitigar a desigualdade. Com a reserva de
que, dada a natureza dos problemas, a perspectiva de tempo, que ensina
paciência, tem de combinar-se como for possível com o também necessário
sentido de urgência.
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