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TRATADO DE NECROLOGIA.
OU ARTE E CIÊNCIA DE EMBALSAMAR
OS CADÁVERES, COM ENSINAMENTOS PRECIOSOS
SOBRE A CORRUPÇÃO DAS PARTES E ORGÃOS E DOS SEUS
PRINCÍPIOS.
Os fundamentos da arte da dissecação,
as drogas e espécies animais e vegetais antissépticas
e odoríferas;
e um método seguro para vaticinar e adivinhar,
pela observação das entranhas.
A Medicina Forense e
métodos para decifrar a conjuntura,
na ocorrência da morte.
Segue paralelo ao discurso e exposição da doutina
o relato de três casos,
que dão corpo e contexto a todos
os ensinamentos.
E serve para contestar a
ANDREA VESALIO.
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PRÓLOGO
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E quer apenas enunciar e concluir que a necrologia é uma arte prudente;
quero dizer de prudência. E quanto a ciência usa de toda aquela que os
compiladores reuniram em cartapácios e colecções, mais algumas descobertas que
vão saindo, como qualquer um pode usar para os seus fins próprios.
LIBELO BREVE,
que serve exclusivamente de introdução
ao assunto do primeiro capítulo.
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Ao conceber o universo inteiro do homem como um contencioso
mutuamente exclusivo entre a vida e a morte, que é a suma de toda a sua dialética,
Karl Marx e Friedrich Engels reenunciaram a trave mestra que ininterruptamente
firmou o edifício das ideias e conceitos sobre a vida humana. Podê-las-ia compilar
nesta máxima: a morte inicia-se exactamente no primeiro instante da vida, pelo que
toda a medicina se pode julgar como um esforço estulto e vão para dar aparência
de vida exultante aos corpos moribundos. Se a morte não fosse o vector axial de
toda a vida, a reprodução, que é um mecanismo compensatório da necrose, seria
uma função catastrófica.
O fim próprio da vida é realizar a morte. E o da reprodução realizar mais
morte, para que o processo de necrose que fundamenta e justifica o universo não
se interrompa. A própria história do cosmos é a história do envelhecimento ou
necrose e morte das estrelas e galáxias. É a razáo porque todo o pensamento
religioso projecta a exultação do homem nos seus fins próprios, para a morte que,
quando as mentalidades dominantes passaram a sobrevalorizar a vida, nomeou
ainda de vida eterna.
Ora, todas as cièncias da vida descendem de artes da morte e de operar
com ela. Quando, onde e porquê ocorreu a subversão nestes princ¡pios que
nortearam todo o pensamento humano, é o que pretendemos determinar. Porque é
que a necrologia se subverteu em medicina e cirurgia?
No século XVI e durante os seguintes, amadurecera uma bizarra e
interminável disputa entre médicos e cirurgiões. Cada uma das corpora,ões tratava
de reivindicar para si a origem da outra.
Em verdade, aos cirurgiões competia nesta querela o papel mais
quesilento, porque se tratava de obrigar aos médicos a reconhecer-lhes um estatuto
nem que fosse paritário. Foi neste contexto que eles próprios propuseram remontar
a sua antiguidade e origem até aos antigos sacerdotes egípcios, mestres da arte de
embalsamar os cadáveres e a outros necrólogos.
A reputação transcendente e divina da sabedoria egípcia, bem como a ideia
de que nela se fundamentara o melhor do lustro helénico, estava então em franca
ascensão depois que Marsilio Ficino editara os fragmentos alexandrinos que a
tradição remontava a Hermes Trimegisto. E a obra de Jamblico De Mysteryiis
Aegypciorum tornara-se um breviário. Como se os vestígios materiais das suas
intervenções operatórias pudessem ser um medium que transportasse pelos séculos
as virtualidades mágicas das suas mãos, o pó de múmia tornara-se uma mezinha
(medicina) tão disputada entre os pategos, que os viajantes acusavam as cáfilas
magrebinas de acarvarem os cadáveres dos prisioneiros de guerras e rasias nas
areias do deserto, para impingirem aos estultos venezianos as cinzas.
Era ainda à tradição necrológica antiga, que a cirurgia fazia remontar a
escola galénica e a sua iniciação operatória. Na época de Vesalio, o melhor do
génio de Galeno deixara de se reconhecer no trabalho ordenador que empreendera
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ao classificar os humores universais; na sua farmacologia ou no papel axial da
observação das urinas como ordenador do diagnóstico.
O que de Galeno agora se reclamava era a sua anatomia e o método de
observação anatómica, que reproduzia as cerimónias e os rituais necrológicos dos
sacerdotes do Nilo. Desde o século XII que em Salerno a dissecação de um cadáver
se constituíra na cerimónia de consagração e no ritual de iniciação de qualquer
magarefe. Tratava-se de superar o timor mortis; a partir de então qualquer cirurgião
estava preparado, mesmo para assumir o homicídio como consequêcia indeclinável
do exercício do ofício.
O papel sádico e esconjuratório que a anatomia parece ter na configuração
da mentalidade médica e mesmo da sua iconografia desde o século XIV, denuncia
a corrupção do saber necrológico num espírito de necrofilia mórbida. Anda em
todos os manuais de história da medicina, todavia representado como epopeia
heroicotrágica que ainda retomarei, o episódio de um médico austríaco que no
século XVII dissecou o cadáver do filho, que assassinou no êxtase da alucinação
por não encontrar outro disponível para o escalpelo.
A própria cirurgia amadureceu consciente de ser a corrupção da antiga
tradição necrológica do saber humano, num mórbido e alucinatório espírito
necrofílico. E o clímax do meu tratado ocorrerá quando demonstrar que, na
alucinação esquizofrénica de realizar o paradoxo da vivissecação, Vesalio se
constituíra no mais insigne monumento da necrofilia.
O que não diria ainda da vivissecação do cérebro?!
CAPÍTULO PRIMEIRO
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte
de manter os mortos bem viçosos.
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que, mesmo após a morte do organismo considerado como um todo e um universo,
continuam vivos. Mesmo um labrego sabe que a morte de um organismo não
determina o cessar imediato e súbito da vida em cada uma das partes, cuja necrose
prossegue por tempos ainda difíceis de determinar; basta que se tenha, um dia,
vivido o espectáculo sempre hilariante e patético de ver uma galinha correr
desenfreada por um terreiro com o pescoço pendurado.
Os leigos observam sempre as coisas com tanta atenção e astúcia como um
sábio; a sua condição revela-se quando passam a julgar sobre aquilo que
observaram.
Se o processo de embalsamar um cadáver consistisse em interromper a
necrose de cada orgão, sistema, ou tecido do organismo já morto como tal, só
garantiria que a contradição estrutural entre a vida e a morte iria prosseguir
indeterminadamente e de forma muito mais violenta. A condição que daí adviria ao
cadáver é impossível de imaginar, mas parece-me que toda a sua massa reverteria
numa chaga viva, informe e incontrolável, já incapaz de se sarar.
O que o embalsamador pretende é reduzir toda a massa do cadáver ao
estado de morte definitivo e radical, precipitando uma morte violenta de cada parte
e sistema. A necrologia opera a morte e não a vida, é a ciência ou arte da morte e
prossegue o estudo minucioso do processo de necrose dos organismos, para o
controlar e precipitar, impedindo que a renitência da vida em não reconhecer a sua
precariedade perturbe o repouso da morte no seu triunfo, que é o fim e a causa
inexorável de todo o universo. A vida exultante ou renitente é um estado
patológico crítico da morte, inadmissível no equilíbrio do cosmos, pelo que deve
ser corrigido e sarado.
Quando um embalsamador retalha um corpo, é a morte que observa e
contempla e o repouso que celebra. Onde encontra o mínimo sintoma de vida,
incomoda-se e alarma-se, trata imediatamente de o erradicar, nem que para isso
tenha que separar o abcesso do são até que reste exclusivamente o invólcuro
ressequido e imune. È por isso que as vísceras, onde sob várias formas mesmo
aliógenas como as bacterianas ou microbianas a vida parece mais renitente, depois
de várias ablacções e esconjuras são em geral incineradas ou lançadas aos mais
necrófilos bichos, como as hienas ou abutres. A incineração é a resolução mais
radical dos necrólogos e merecer-me-á ainda comentários detalhados.
Porque contemplou o mistério supremo da morte no seu triunfo e foi o seu
sacerdote e o agente da resolução definitiva, o embalsamador está prestes a
transportar-se para o lado da transcendência, ganha e opera poderes insuspeitados,
adivinha e vaticina.
Os primitivos cristãos eram ainda sacerdotes necrófagos e necrólogos. Eles
ingeriam simbolicamente a carne e o sangue do cordeiro imolado para participar da
necrose cósmica e celebravam o Filho de Deus na sua apoteose de cadáver, pois
não pode ser outro o sentido da Sua ressurreição e do Seu triunfo na vida eterna. A
própria religião cristã subverteu o profundo sentido necrológico da sua teologia,
numa paródia de rituais e práticas sociais e culturais de uma necrofilia aberrante.
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São sintoma disso as crises cíclicas de pânico e histerismo perante a morte com
que foi regenerando o seu papel dirigente numa sociedade leviana que celebra
estultamente o triunfo da vida; e que esconjura a morte através de rituais de
alucinação estética pela necrose e sua contemplação.
A arte de embalsamar é pois substancialmente uma necrologia, no sentido
mais radical da disciplina.
É sabido e não merece ser disputado, todavia ainda tratarei de o explicitar
mesmo recorrendo ao paradoxo, que os médicos da antiguidade só puderam
configurar algumas ideias relativamente operacionais sobre a morfologia do corpo
humano e das suas partes, os estados patológicos da vida dos organismos, orgãos
ou sistemas e sobre a relação violenta e omnipresente entre a necrose e a vida, no
contacto com os sacerdotes necrólogos que dissecavam, estudavam e
embalsamavam os cadáveres. Aos poucos foram-se apropriando dos segredos do
seu saber e dos seus rituais, para os subverter em medicina.
O que tratarei a seguir é de demonstrar que o insucesso na aplicação de
todo esse saber hermético à medicina, que é toda a sua história, advém do simples
facto de os médicos nunca terem assumido ou querido assumir a consciência de
que os conhecimentos de que se serviam para prorrogar a vida tinham sido
ordenados para precipitar a morte na sua exultação radical.
Para compreender a vida e os seus princípios, os médicos e cirurgiões
tratavam de contemplar a morte e os cadáveres, segundo os métodos e os ritos que
haviam aprendido dos sacerdotes necrólogos embalsamadores. Que poderia
decorrer de um tal paradoxo, senão a aberrante precipitação na alucinação
necrofílica?