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O Amolador

TRATADO DE NECROLOGIA.
OU ARTE E CIÊNCIA DE EMBALSAMAR
OS CADÁVERES, COM ENSINAMENTOS PRECIOSOS
SOBRE A CORRUPÇÃO DAS PARTES E ORGÃOS E DOS SEUS
PRINCÍPIOS.
Os fundamentos da arte da dissecação,
as drogas e espécies animais e vegetais antissépticas
e odoríferas;
e um método seguro para vaticinar e adivinhar,
pela observação das entranhas.
A Medicina Forense e
métodos para decifrar a conjuntura,
na ocorrência da morte.
Segue paralelo ao discurso e exposição da doutina
o relato de três casos,
que dão corpo e contexto a todos
os ensinamentos.
E serve para contestar a
ANDREA VESALIO.
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PRÓLOGO

Diglutidores de cartapácios e roedores de notas de rodapé, em afã


quotidiano e tenaz mas sempre pouco gratificante, serenos na sua humildade e
cultores de génio e diligência alheia, os compiladores foram no passado os
imprescindíveis testemunhos de uma transmissão ininterrupta dos saberes e das
culturas. Sábios de coisa nenhuma, mas manipuladores intrépitos de todas as artes
e ciências, a sua colossal erudição foi sempre proporcional de uma discrição
cultivada quase até ao anonimato. Quando todos se alucinavam com o novo,
dedicaram-se com empenho sereno mas desempoeirado a salvar o antigo, a
assegurar que com uma biblioteca escorreita e seleccionada com astúcia qualquer
ignorante pudesse fazer figura de sábio.
Num só volume, um compilador adestrado podia reunir quanto bastasse de
Hipócrates, Galeno, Averrois, Avicena, Aristóteles, Homero, Xenofonte, Cícero,
Plínio, Ovídio, Aulo Gélio, Dante e Santo Isidoro para que qualquer estudante
cábula de Coimbra ou Salamanca se pudesse alçar a Físico Mor do Reino e ainda
fosse apto a escrever uns vilancetes e animar um sarau de academia de curiosos. Se
diligente e aventureiro, ainda escreveria um libelo e corrigiria a alguns mestres.
Em verdade, foi o que se passou com Andrea Vesalio. Quando escreveu o
De Humana Corporis Fabrica, era um jovem empreendedor e sanguíneo, com o
génio suficiente para revolver as mentalidades de contemporâneos e coevos com a
sua irreverência e espírito quesilento. Com imperturbável falta de escrúpulos e
horizontes de referência éticos e morais, alguma esperteza saloia mas muito mais
estultícia e umas tantas tesouras e facalhões, julgou-se capaz de observar nos
corpos alheios tudo o que os outros não houveram enxergado.
Qualquer gourmand bem ilustrado e exercitado, habituado a usar o florete
para esfolar e trinchar uma lebre ou uma perdiz, a procurar nelas as partes mais
gostosas e mais estimulantes ao paladar e aquelas que se hão de deitar fora, a
seleccionar os ossos para a sopa e as tripas para as galinhas, faria uma
demonstração mais exuberante da arte e prudência no usar das lâminas. Nem lhe
seria preciso ler o grego e o latim, nem conhecer as máximas da dialética de
Platão.
Vesalio inaugurou então uma disciplina nova por ignorância ou falta de
complacência pela prudência dos saberes antigos, porque dispunha concerteza de
más compilações, traduções e resumos deficientes. E não chegara a compreender
as razões porque os seus mestres não tinham usado ainda de uma consciência tão
liberal quando se tratava de meter as facas às carnes, músculos e tendões dos seus
conterrâneos. Porque não puderam tratar com a sua lógica profana um objecto que
continuavam a ter por sagrado.
Este tratado não resulta então do trabalho de um sábio ou de um mestre,
mas tão só de um compilador. Movido das preocupações que já ficaram enunciadas
e não mais.

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E quer apenas enunciar e concluir que a necrologia é uma arte prudente;
quero dizer de prudência. E quanto a ciência usa de toda aquela que os
compiladores reuniram em cartapácios e colecções, mais algumas descobertas que
vão saindo, como qualquer um pode usar para os seus fins próprios.

E propõe-se já no primeiro capítulo a doutrina que estrutura a intenção:


A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou
arte de manter os mortos bem viçosos.

LIBELO BREVE,
que serve exclusivamente de introdução
ao assunto do primeiro capítulo.

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Ao conceber o universo inteiro do homem como um contencioso
mutuamente exclusivo entre a vida e a morte, que é a suma de toda a sua dialética,
Karl Marx e Friedrich Engels reenunciaram a trave mestra que ininterruptamente
firmou o edifício das ideias e conceitos sobre a vida humana. Podê-las-ia compilar
nesta máxima: a morte inicia-se exactamente no primeiro instante da vida, pelo que
toda a medicina se pode julgar como um esforço estulto e vão para dar aparência
de vida exultante aos corpos moribundos. Se a morte não fosse o vector axial de
toda a vida, a reprodução, que é um mecanismo compensatório da necrose, seria
uma função catastrófica.
O fim próprio da vida é realizar a morte. E o da reprodução realizar mais
morte, para que o processo de necrose que fundamenta e justifica o universo não
se interrompa. A própria história do cosmos é a história do envelhecimento ou
necrose e morte das estrelas e galáxias. É a razáo porque todo o pensamento
religioso projecta a exultação do homem nos seus fins próprios, para a morte que,
quando as mentalidades dominantes passaram a sobrevalorizar a vida, nomeou
ainda de vida eterna.
Ora, todas as cièncias da vida descendem de artes da morte e de operar
com ela. Quando, onde e porquê ocorreu a subversão nestes princ¡pios que
nortearam todo o pensamento humano, é o que pretendemos determinar. Porque é
que a necrologia se subverteu em medicina e cirurgia?
No século XVI e durante os seguintes, amadurecera uma bizarra e
interminável disputa entre médicos e cirurgiões. Cada uma das corpora,ões tratava
de reivindicar para si a origem da outra.
Em verdade, aos cirurgiões competia nesta querela o papel mais
quesilento, porque se tratava de obrigar aos médicos a reconhecer-lhes um estatuto
nem que fosse paritário. Foi neste contexto que eles próprios propuseram remontar
a sua antiguidade e origem até aos antigos sacerdotes egípcios, mestres da arte de
embalsamar os cadáveres e a outros necrólogos.
A reputação transcendente e divina da sabedoria egípcia, bem como a ideia
de que nela se fundamentara o melhor do lustro helénico, estava então em franca
ascensão depois que Marsilio Ficino editara os fragmentos alexandrinos que a
tradição remontava a Hermes Trimegisto. E a obra de Jamblico De Mysteryiis
Aegypciorum tornara-se um breviário. Como se os vestígios materiais das suas
intervenções operatórias pudessem ser um medium que transportasse pelos séculos
as virtualidades mágicas das suas mãos, o pó de múmia tornara-se uma mezinha
(medicina) tão disputada entre os pategos, que os viajantes acusavam as cáfilas
magrebinas de acarvarem os cadáveres dos prisioneiros de guerras e rasias nas
areias do deserto, para impingirem aos estultos venezianos as cinzas.
Era ainda à tradição necrológica antiga, que a cirurgia fazia remontar a
escola galénica e a sua iniciação operatória. Na época de Vesalio, o melhor do
génio de Galeno deixara de se reconhecer no trabalho ordenador que empreendera

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ao classificar os humores universais; na sua farmacologia ou no papel axial da
observação das urinas como ordenador do diagnóstico.
O que de Galeno agora se reclamava era a sua anatomia e o método de
observação anatómica, que reproduzia as cerimónias e os rituais necrológicos dos
sacerdotes do Nilo. Desde o século XII que em Salerno a dissecação de um cadáver
se constituíra na cerimónia de consagração e no ritual de iniciação de qualquer
magarefe. Tratava-se de superar o timor mortis; a partir de então qualquer cirurgião
estava preparado, mesmo para assumir o homicídio como consequêcia indeclinável
do exercício do ofício.
O papel sádico e esconjuratório que a anatomia parece ter na configuração
da mentalidade médica e mesmo da sua iconografia desde o século XIV, denuncia
a corrupção do saber necrológico num espírito de necrofilia mórbida. Anda em
todos os manuais de história da medicina, todavia representado como epopeia
heroicotrágica que ainda retomarei, o episódio de um médico austríaco que no
século XVII dissecou o cadáver do filho, que assassinou no êxtase da alucinação
por não encontrar outro disponível para o escalpelo.
A própria cirurgia amadureceu consciente de ser a corrupção da antiga
tradição necrológica do saber humano, num mórbido e alucinatório espírito
necrofílico. E o clímax do meu tratado ocorrerá quando demonstrar que, na
alucinação esquizofrénica de realizar o paradoxo da vivissecação, Vesalio se
constituíra no mais insigne monumento da necrofilia.
O que não diria ainda da vivissecação do cérebro?!

CAPÍTULO PRIMEIRO
A cirurgia e ciência de manter vivos os corpos descende da necrologia ou arte
de manter os mortos bem viçosos.

O mais natural é que qualquer leigo julgue que o exercício de embalsamar


um cadáver consiste em interromper o processo de necrose dos tecidos e orgãos

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que, mesmo após a morte do organismo considerado como um todo e um universo,
continuam vivos. Mesmo um labrego sabe que a morte de um organismo não
determina o cessar imediato e súbito da vida em cada uma das partes, cuja necrose
prossegue por tempos ainda difíceis de determinar; basta que se tenha, um dia,
vivido o espectáculo sempre hilariante e patético de ver uma galinha correr
desenfreada por um terreiro com o pescoço pendurado.
Os leigos observam sempre as coisas com tanta atenção e astúcia como um
sábio; a sua condição revela-se quando passam a julgar sobre aquilo que
observaram.
Se o processo de embalsamar um cadáver consistisse em interromper a
necrose de cada orgão, sistema, ou tecido do organismo já morto como tal, só
garantiria que a contradição estrutural entre a vida e a morte iria prosseguir
indeterminadamente e de forma muito mais violenta. A condição que daí adviria ao
cadáver é impossível de imaginar, mas parece-me que toda a sua massa reverteria
numa chaga viva, informe e incontrolável, já incapaz de se sarar.
O que o embalsamador pretende é reduzir toda a massa do cadáver ao
estado de morte definitivo e radical, precipitando uma morte violenta de cada parte
e sistema. A necrologia opera a morte e não a vida, é a ciência ou arte da morte e
prossegue o estudo minucioso do processo de necrose dos organismos, para o
controlar e precipitar, impedindo que a renitência da vida em não reconhecer a sua
precariedade perturbe o repouso da morte no seu triunfo, que é o fim e a causa
inexorável de todo o universo. A vida exultante ou renitente é um estado
patológico crítico da morte, inadmissível no equilíbrio do cosmos, pelo que deve
ser corrigido e sarado.
Quando um embalsamador retalha um corpo, é a morte que observa e
contempla e o repouso que celebra. Onde encontra o mínimo sintoma de vida,
incomoda-se e alarma-se, trata imediatamente de o erradicar, nem que para isso
tenha que separar o abcesso do são até que reste exclusivamente o invólcuro
ressequido e imune. È por isso que as vísceras, onde sob várias formas mesmo
aliógenas como as bacterianas ou microbianas a vida parece mais renitente, depois
de várias ablacções e esconjuras são em geral incineradas ou lançadas aos mais
necrófilos bichos, como as hienas ou abutres. A incineração é a resolução mais
radical dos necrólogos e merecer-me-á ainda comentários detalhados.
Porque contemplou o mistério supremo da morte no seu triunfo e foi o seu
sacerdote e o agente da resolução definitiva, o embalsamador está prestes a
transportar-se para o lado da transcendência, ganha e opera poderes insuspeitados,
adivinha e vaticina.
Os primitivos cristãos eram ainda sacerdotes necrófagos e necrólogos. Eles
ingeriam simbolicamente a carne e o sangue do cordeiro imolado para participar da
necrose cósmica e celebravam o Filho de Deus na sua apoteose de cadáver, pois
não pode ser outro o sentido da Sua ressurreição e do Seu triunfo na vida eterna. A
própria religião cristã subverteu o profundo sentido necrológico da sua teologia,
numa paródia de rituais e práticas sociais e culturais de uma necrofilia aberrante.

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São sintoma disso as crises cíclicas de pânico e histerismo perante a morte com
que foi regenerando o seu papel dirigente numa sociedade leviana que celebra
estultamente o triunfo da vida; e que esconjura a morte através de rituais de
alucinação estética pela necrose e sua contemplação.
A arte de embalsamar é pois substancialmente uma necrologia, no sentido
mais radical da disciplina.
É sabido e não merece ser disputado, todavia ainda tratarei de o explicitar
mesmo recorrendo ao paradoxo, que os médicos da antiguidade só puderam
configurar algumas ideias relativamente operacionais sobre a morfologia do corpo
humano e das suas partes, os estados patológicos da vida dos organismos, orgãos
ou sistemas e sobre a relação violenta e omnipresente entre a necrose e a vida, no
contacto com os sacerdotes necrólogos que dissecavam, estudavam e
embalsamavam os cadáveres. Aos poucos foram-se apropriando dos segredos do
seu saber e dos seus rituais, para os subverter em medicina.
O que tratarei a seguir é de demonstrar que o insucesso na aplicação de
todo esse saber hermético à medicina, que é toda a sua história, advém do simples
facto de os médicos nunca terem assumido ou querido assumir a consciência de
que os conhecimentos de que se serviam para prorrogar a vida tinham sido
ordenados para precipitar a morte na sua exultação radical.
Para compreender a vida e os seus princípios, os médicos e cirurgiões
tratavam de contemplar a morte e os cadáveres, segundo os métodos e os ritos que
haviam aprendido dos sacerdotes necrólogos embalsamadores. Que poderia
decorrer de um tal paradoxo, senão a aberrante precipitação na alucinação
necrofílica?

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