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I
O legível: à sombra das sobrevivências
II
O invisível dos gestos: dos rastros ao resto
III
O inaudível: a memória como murmúrio da multidão
Não cessamos de murmurar pelos cantos aquilo que nos é impossível dizer. O
murmúrio é o signo do discurso possível e, no entanto, irrepresentável da memória que
coincide sem resíduos com o real. E os homens não deixam de murmurar, assim como os
rios e as pedras, nas quais ressoam os murmúrios da água que as rasgam e arrastam com
uma violência gentil. O murmúrio de uma memória inconsciente que não cessamos de
repetir é o que nos permite resistir, criar, é o que nos afeta como um golpe dado “na nuca e
no escuro”, como dizia Freud; irrepresentável, inconsciente, e no entanto polifônico e
ruidoso, porque a memória é sempre o rumor da multidão.
Ao apropriarem-se desse que é um dos mais belos conceitos de Espinosa, Negri e
Hardt (2005) afirmam que a multidão não passa de uma legião demoníaca, de uma
multiplicidade de singularidades para além da identidade ou da classe; e são precisamente
os murmúrios dessa multidão que poderiam resgatar, desde uma ontologia da memória,
aquilo que nos resta de comum. A imagem negriana da multidão é o enxame – e um
enxame não atravessa os territórios sem uma nota musical, o ritornelo de seu rumor
incômodo.
Quando hoje repetimos sem pensar que se esfacelou a comunidade, não significa
que ela tenha deixado de existir, mas, simplesmente, que aquilo que antigamente constituía
o comum diferiu; a comunidade pode ter se tornado inconsciente e, por isso mesmo,
“impossível”, impredicável, potente e selvagem. Abertos a uma micropolítica de
intensidades sem sujeitos, cujo “discurso” possível destrói a ordem enunciativa oficial e
aplica-se àquilo que permanece irrepresentável na memória, a memória e o Ingovernável
(AGAMBEN, 2009, p. 51) são aquilo que dizem uma multidão hoje incapaz do simbólico
e, no entanto, resistente no seio comum do rumor de seu murmúrio.
IV
Afectos, ressonâncias, rumores
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Homo sacer II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti. 2.
ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
_____. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007.
8
_____. O que resta de auschwitz: o arquivo e a testemunha. (Homo sacer III). Tradução de
Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
BARBOSA, Rui. Anistia Inversa: caso de teratologia jurídica. In: Obras Completas de
Rui Barbosa. Volume XXIV (1987), Tomo III. Trabalhos Jurídicos. Rio de Janeiro:
Ministério de Educação e da Cultura, 1955.
_____. Sobre o conceito da História.In: _____. Obras escolhidas I: Magia e técnica. Arte e
política. 7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-
232.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de José Carlos Rodrigues. Lisboa: Vega, 1998.
______. História da sexualidade 1. A vontade de saber. 19. ed. Tradução de Maria Thereza
da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2009.
MANZINI, Vincenzo. Tratato di diritto penale italiano. Tomo III. Torino: Unione
Tipografico Editrice Torinense, 1950.
V
Notas
i
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina (CPGD/UFSC/2009). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR/2007). Atualmente, é Professor Titular de Filosofia do Direito, vinculado ao Departamento de
Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito de Curitiba (DPD/FD/UNICURITIBA) e Professor Adjunto
da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do
Paraná (FD/CCSA/FESP-PR). Contato: <http://murilocorrea.blogspot.com>.
ii
Aquelas que passaram à lenda por seu próprio excesso, à la Battaille, aquelas que só passaram à lenda por
força de uma narrativa que lhes exaure o possível, à la Borges, e, finalmente, aquelas que são infâmias de
raridade, de homens simples, obscuros, iluminados por apenas um instante em sua absoluta insignificância
pelos relatórios de polícia grandiloqüentes demais, à la Tchekov. Deleuze, 1998, p. 129.
iii
[Orig :] “Le point le plus intense des viés, celui où se concentre leur enérgie, est bien là où elles se heurtent
au pouvoir, se débattent avec lui, tentent d‟utiliser ses forces ou d‟echapper à ses pièges.” Foucault, 2001, p.
241.
iv
[Orig :] “[...] il est sans doute impossible à jamais de les ressaisir en êlles-mêmes.” Foucault, 2001, p. 241.
v
[Orig :] “Des vies qui sont comme si elles n‟avaient pas existé, des vies que ne survivant que du heurt avec
un pouvoir qui n‟a voulu que les anéantir ou du moins les effacer, des vies que ne nous reviennet que par
l‟effet des multiples hasards [...].” Foucault, 2001, p. 243.
vi
Trata-se de uma célebre entrevista que Hannah Arendt concedera a Günter Gaus, no ano de 1964, na qual,
perguntada sobre aquilo que resta do período pré-hitlerista, e qual seu sentido na Alemanha contemporânea,
Arendt hesita, repergunta-se “O que resta?”, e responde “Resta a língua materna”. Os vídeos estão
disponíveis em língua alemã, com legendas em espanhol, repartidos em três endereços:
http://www.youtube.com/watch?v=pfFwIuTckWw; http://www.youtube.com/watch?v=WrwjBrw-AOQ; e
http://www.youtube.com/watch?v=AXB5zxK_Hgk. (Acesso em: 07.09.2010). O gesto de perguntar-se sobre
aquilo que resta das experiências totalitárias é complexo e, remontando à citada entrevista de Arendt, inspira
o gesto de Giorgio Agamben – que devota uma interessante análise da entrevista arendtiana em Agamben,
2008, p. 159-162. O mesmo gesto filosófico encontra ressonância, entre nós, no livro organizado por
Vladimir Safatle e Edson Teles, intitulado “O que resta da ditadura”. Nesse sentido, Cf. a apresentação de
Safatle; Telles, 2010, p. 09-12.
vii
É o caso, por exemplo, de Manzini, 1950, p. 412.
viii
Cf. Maximiliano, 1954, p. 155. No mesmo sentido, Rui Barbosa assegurava a conexão entre amnestía e
soberania: “uma vez desencadeada, a soberania da conveniência política não conhece limites: rôta a cadeia
das garantias, não há uma só que não se perca”. Barbosa, 1955, p. 158.
ix
“A anistia, que é o olvido, a extinção, o cancelamento do passado criminal, não se retrata. Concedida, é
irretirável, como é irrenunciável. Quem a recebeu, não a pode enjeitar, como quem a liberalizou, não a pode
subtrair. É definitiva, perpétua, irreformável. Passou da esfera dos fatos alteráveis pelo arbítrio humano para
a dos resultados soberanos e imutáveis, que ultimam uma série de relações liquidadas, e abrem uma cadeia de
relações novas. De todos os direitos adquiridos este seria, por assim dizer, o tipo supremo, a expressão
perfeita, a fórmula ideal: seria, por excelência, o direito adquirido. Ninguém concebe que se desanistie
amanhã o indivíduo anistiado ontem. Não há poder, que possa reconsiderar a anistia, desde que o poder
competente uma vez a fez lei.” Barbosa, 1955, p. 38-39.