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Favela como patrimônio da cidade?

Reflexões e polêmicas acerca de dois museus


Bianca Freire-Medeiros

Introdllfão
,

"E uma cidade à parte". Esta foi a defmição escolhida pelo poeta e cro-
nista Olavo Bilac para sintetizar, em 1908, o que seria a favela carioca. Não havia
muito, o prefeito Pereira Passos tornara quase real o sonho da burguesia metro­
politana de transformar o Rio de Janeiro na Paris da América do Sul. Extellllina­
ra as "habitações anti-higiênicas" do centro, abrira grandes avenidas com ares de
boulevards, seguira à risca o modelo haussmaniano de urbanização. Mas, para
desgosto seu e da elite que o apoiava, um efeito perverso brotou, morro acima,
com a mesma rapidez e determinação com que a avenida Central (hoje avenida
Rio Branco) assumira ares europeus. Os "resíduos" da modernização - os desa­
lojados dos cortiços e os que haviam migrado de outras regiões para trabalhar nas
obras de remodelamento- encontraram solução para seu problema habitacional

NOJa: Bianca Freire-Medeiros é pesquisadora bolsista do CPDOC/FGY.

Escudos Históricos, Rio de Janeiro, nO 38, julho-dezembro de 2006, p. 49-66.

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na ocupação dos morros do entorno. Seguiam os passos dos soldados provenien­


tes da campanha de Canudos que, ao eleger o Morro da Favela como seu local de
moradia, haviam "fundado", poucos anos antes, a primeira favela,

um novo espaço geográfico e social que desponta pouco


a pouco como o mais recente território da pobreza. O Morro da Favela
(... ) passou a estender sua denominação a qualquer conjunto de barracos
aglomerados sem traçado de ruas nem acesso aos serviços públicos, so­
bre terrenos públicos ou privados invadidos. Conjuntos que então co­
meçam a se multiplicar no Centro e nas Zonas Sul e Norte da cidade do
Rio de Janeiro. (Valladares, 2005: 26)

Ao longo de cem anos de existência e de incontáveis leis, ações e reflexões


que a tomaram por objeto, a favela- telIllO e território- foi ganhando novos signi­
ficados e reverberando em terras insuspeitas. Favela e "favelados" foram se tor­
nando categorias abrangentes a ponto de se colocarem respectivamente como ge­
nérico de lugar da infOlmaJidade total e da pobreza absoluta e como identidade co­
letiva dos marginalizados (Valladares, 2005: 26). Essa dilatação dos alcances se­
mânticos da favela e dos favelados, ao posicioná-los como ícones da pobreza estig­
matizada, teve pelo menos duas conseqüências. Por um lado, as favelas empíricas,
a despeito de suas singularidades, passam a ser tomadas em conjunto como espa­
ços por natureza violentos e, aos seus habitantes (os jovens em particular), é dado o
estigma de potenciais criminosos, ambos devendo ser extirpados do tecido social
quer pela via da remoção, quer pelo extermínio tácito operado pela polícia. Por ou­
tro, passam a ser consideradas possíveis, inteligíveis e até necessárias medidas que
tenham por meta diminuir as distâncias entre favela e asfalto, quer pela via do as­
sistencialismo, quer por práticas de alargamento da cidadania.
Neste artigo, focalizo duas experiências recentes que nos ajudam a refle­
tir sobre uma das ressignificações semânticas por que tem passado a favela cario­
ca: aquela que a sugere como patrimônio da cidade. Para tanto, comparo os pro­
cessos de implementação do Museu a Céu Aberto do Morro da Providência, ins­
tituído pela Prefeitura do Rio de Janeiro em agosto de 2005, e do Museu da Maré,
que, por iniciativa dos moradores locais e com apoio do Governo Federal, veio a
ser inaugurado em maio de 2006.

Patrimônio e museu: novas definições

Em nossa Constituição Federal, são definidos como "patrimônio" os


"bens de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou em con­
junto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes

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Favela como patrimônio da cidade?

grupos formadores da sociedade brasileira" (Brasil, 1988). E óbvio que tal defini-
ção, apesar de aparentemente neutra e inclusiva, está longe de dispensar critérios
políticos que irão determinar o que deve e pode ser preservado. São decisões polí­
ticas que definem quem tem direito à memória, a quem cabe realizar o inventário
de bens que podem gozar do status de patrimõnio e por que caminhos determi­
nado bem cultural será preservado (Stam, 1993; Prentice, 2001). Ademais, a pre­
servação de qualquer objeto, processo ou prática cultural não constitui, pelo ato
,

da palavra e da lei, um patrimõnio: "E preciso que tanto o remetente quanto o


destinatário dessa prática social reconheçam e agreguem valores a esse mesmo
aglomerado de bens" (Chagas, 2003: 97).
A legislação sobre o patrimônio cultural no Brasil é da década de 1930.
Com certo pioneirismo, Mário de Andrade propôs a inclusão dos saberes e mani­
festações populares, mas foram o patrimônio edificado, sobretudo os museus,
que obtiveram a atenção privilegiada de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema.
Desde o século XIX, instituições como o Museu Real (hoje Museu Nacional da
Quinta da Boa Vista) e o Museu Paulista já atuavam nas áreas de pesquisa e pre­
servação patrimonial; porém é nos anos 1930 que os museus passam a ter centra­
lidade na agenda do Estado e que se dá a institucionalização da museologia com a
implementaçao do Curso de Museus em 1934 (Chagas, 1994).
Nos anos 1970, em uma definição de caráter operacional, conceitua­
vam-se os museus como "estabelecimento permanente, sem fins lucrativos, a
serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberto ao público, que coleciona,
conserva, pesquisa, comunica e exibe, para o estudo, a educação e o entreteni­
mento, a evidência material do homem e seu meio ambiente" (Conselho Inter­
nacional de Museus, 1974). Os museus eram tratados, em larga medida, como
entidades neutras, acima das diferenças políticas, capazes de "colecionar, con­
servar e pesquisar" bens de relevância indisputável para "educar e entreter" um
cidadão genérico.
Em início dos anos 1990, sob influência do Movimento Internacional da
Nova Museologia (Minom), os profissionais envolvidos na construção e recons­
trução dos museus brasileiros passaram a buscar novas formas de preservar e
apresentar suas coleções (Chagas, 1994). O Minom propunha que, de institui­
ções a serviço da empresa colonialista, os museus deveriam transmutar-se em lu­
gares nos quais diferentes grupos sociais tivessem expressão e em que fussem
contempladas as responsabilidades educativas da fOlma o mais democrática pos­
sível (Bruno, 19%; Bal, 1992; Jones 1993). Os impactos dessas propostas, entre
nós, podem ser percebidos tanto no âmbito acadêmic01 quanto no campo das de­
cisões e ações políticas. O ministro da Cultura, Gilberto Gil, no relatório da Polí­
tica Nacional dos Museus (gestão 2003-2004), reconhece e legitima o patrimônio
institucionalizado em museus os mais diversos: "Os grandes museus das capitais

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e também [os] pequenos museus do interior, e mais ainda [os] museus portáteis,
tão caros aos homens e mulheres do povo" (Gil Moreira, 2005: 7). E o relatório
conclui: "Hoje, o centro de gravidade da política cultural do Brasil passa pelo
território dos museus"2
Os casos que apresento aqui devem ser tomados, portanto, como exem­
plos de uma dupla requalificação recente: da favela, que busca ser vista como par­
te historicamente relevante da cidade, assumindo uma visibilidade distinta daquela
que a associa à violência; e a da própria noção de patrimônio, que se distancia de
suas definiçôes mais cingidas, tem revistas suas instâncias de validação e passa a
qualificativo de um território geográfico e simbólico ainda amplamente estig­
matizado.

o Museu a Céu Aberto do Morro da Providênda

O Museu a Céu Aberto do Morro da Providência foi idealizado pela ar­


quiteta e urbanista Lu Petersen,3 no contexto do Favela-Bairro e do Projeto Cé­
lula Urbana, como parte da revitalização da área portuária que, além do museu,
inclui a Cidade do Samba e a Vila Olímpica da Gamboa. Foram investidos, no
Favela-Bairro da Providência, R$ 14,3 milhões para a construção de redes de
água e esgoto, praças e creche, como acontece em outras favelas, mas também
para viabilizar um "roteiro turístico" que instituiu a localidade como patrimô­
nio. Neste contexto, vários pontos históricos foram recuperados e foi inaugurado
um cybercafé4
A "porta de entrada" do museu é a escadaria d� granito, construída por
escravos no século XIX, que interliga o Livramento ao topo da Providência. S Ao
final da escadaria, o visitante encontra duas edificações sacras do início do século
passado: a igreja de Nossa Senhora da Penha e a capela do Cruzeiro, importantes
locais de sociabilidade da favela. Outro ponto de encontro e referência incorpo­
rado ao museu é o reservatório de água: datado de 1913, o reservatório octogonal
composto de hastes trabalhadas em ferro será transformado em um "Reservató­
rio de Lembranças", instalação acústico-visual onde o visitante poderá ouvir de­
poimentos de antigos moradores e ler a história da favela. A casa de Dodô da Por­
tela, porta-estandarte da escola de samba Vizinha Faladeira - fundada na Provi­
dência e campeã do primeiro desfile oficial de escolas de samba em 1937 , foi re­
-

formada para, na parte de cima, funcionar como museu. Ali estão expostas fanta­
sias, fotografias, adereços e outros objetos que foram coletados por Dodô ao lon­
go de seus 84 anos e que ajudam a constituir a memória do carnaval carioca.
Dos três mirantes que compõem o museu, o visitante tem uma vista pri­
vilegiada da cidade com suas imagens de cartão-postal -Pão de Açúcar, Corcova-

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Favela como patrimônio da cidade?

do, baía de Guanabara - somadas a outras menos convencionais como a Central


do Brasil, o Sambódromo e o Cais do Porto. Pretende-se colocar dois telescópios
e um mapa fixo circularmente em 360 graus que possibilitarão ao visitante ter
uma perspectiva comparada do crescimento de cada ponto da cidade, principal­
mente da Zona Portuária, e das favelas nas encostas dos morros centrais.
Em conjunto, essas iniciativas apontam para uma experiência de "patri­
monialização" da favela diretamente vinculada à sua promoção como destino tu­
rístico. Desde o início da década de 1990, a favela carioca saiu das margens da
cultura turística para tornar-se uma atração lucrativa para os agentes promotores
envolvidos. O caso paradigmático é, sem dúvida, a Rocinha, que recebe cerca de
dois mil turistas por mês levados por uma das sete agências que ali atuam regu­
larmente. Mas em outras favelas - Babilônia (Leme), Prazeres (Santa Tereza) e
Vidigal (São Conrado) -, estratégias e parcerias vêm sendo traçadas Também no
intuito de capitalizar o potencial turístico. Vale lembrar ainda que a "Pousada
Favelinha", inaugurada em janeiro de 2005 no Morro Pereira da Silva, tem se re­
velado um empreendimento muito bem-sucedido (Freire-Medeiros, 2006).
O Museu da Providência, apesar de original na ênfase dada às edifica­
ções históricas como atrativo, não deve, portanto, ser visto como um experimen­
to isolado ou sem precedentes. Seu maior diferencial talvez resida no fato de que,
em contraste com o que ocorre nas demais favelas, ali não são o capital privado,
os moradores ou Ongs os agentes promotores do turismo, mas o próprio poder
público que, ao elevar pela primeira vez uma "área de especial interesse social"
ao status de patrimônio, pretende oferecer "um marco definitivo, comprovador
de que as favelas integram o desenho do Rio de Janeiro" (Secretaria Especial de
Comunicação Social da Prefeitura do Rio de Janeiro, 2003: 42). Parece haver
uma aposta na capacidade do lugar de disponibilizar ao mesmo tempo o generali­
zável- a Providência como "genérico de origem" das demais favelas cariocas - e a
diferença, apreensível no contraste visual que a favela estabelece com o asfalto:
"Aos 105 anos e com cerca de dez mil moradores, [a Providência] representa, do
ponto de vista histórico e urbanístico, a forma característica de ocupação desor­
denada das encostas espalhadas por toda a cidade" (Secretaria Especial de
Comunicação Social da Prefeitura do Rio de Janeiro, 2003: 40).
A paisagem substitui a galeria, mas continuam existindo estratégias de
visibilidade que organizam a exposição das edificações e artefatos que serão alvo
do olhar do turista. Placas estreitas de metal, intercaladas por pedacinhos de
mármore preto, compõem, junto com os blocos de cimento do chao, uma espécie
de trilho que marca todo o trajeto. Emoldura-se a pluralidade empírica que cons­
titui a favela e direciona-se o olhar do turista para aquilo que é previamente sele­
cionado como "atrativo". No processo, uma nova lógica hierárquica é estabeleci­
da: as construções supostamente relevantes são "etiquetadas" com uma placa in-

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dicativa da Prefeitura; as casas mais antigas nao recebem placas, mas são "apre­
sentadas" aos turistas pelos guias; as demais construções, cujo potencial turísti­
co é aparentemente nulo, são ignoradas e convivem com o lixo e o esgoto
não-tratado.
Mundo afora, museus a céu aberto, ecomuseus ou museus vivos são for­
mas híbridas que mesclam características dos museus convencionais com espa­
ços abertos, em que narrativas próprias aos museus imeragem com a paisagem
para construir representações do patrimõnio geográfico e histórico de localida­
des específicas.6 Neste sentido, problematizam dicotomias que tradicionalmen­
te deram norte às políticas de distinção (passado x presente; processo x produto;
popular x erudito, público x privado) e ampliam o repertório de atribuição de va­
lor no campo cultural. Os que lhe fazem oposição apontam para o risco que esses
tipos de museus correriam de reproduzir ambientes ao estilo Hagenbeck, carac­
terístico das exibições coloniais de fins do século XIX em que as sociabilidades
das "culturas primitivas" eram duplicadas em cera ou encenadas por "grupos na­
tivos" para apreciação do olhar europeu (Stam, 1993; Prentice, 2001). No caso da
Providência, o museu corre justamente o risco de promover a favela, sua paisa­
gem, arquitetura, objetos e moradores, não tanto como entidades complexas no
presente, mas como significantes de eventos passados. O projeto prevê o
"congelamento" de barracos de madeira, vielas e becos, o que na prática
significará a desapropriação de algumas casas e a compra de parte de seu
mobiliário para que o turista saiba como é uma "moradia típica da favela".
Antes mesmo da inauguração do museu, alguns turistas visitavam a fa­
vela de maneira esporádica. Um aumento nesse fluxo, conseqüência do estabele­
cimento da Providência como patrimônio, é percebido como potencialmente lu­
crativo pelos moradores, que já produzem artesanatos e camisetas postos à venda

na associação de moradores. E possível perceber uma disposição positiva frente


ao projeto, mas não parece haver muita clareza sobre o que é, de fato, o "Museu a
Céu Aberto". Vários moradores com quem conversamos queixaram-se: "César
Maia disse que a Providência agora é museu, mas ninguém veio aqui construir".
As edificações, que foram elevadas à categoria de patrimônio, há muito faziam
parte da paisagem da favela, o que talvez dificulte sua percepção como "elemen­
tos de museu". Mas o que me parece ser decisivo é que o projeto foi implementa­
do "de cima para baixo", sem que os moradores participassem realmente de sua
elaboração. Houve uma pesquisa anterior à institucionalização do museu, em
que se buscava averiguar a reação dos moradores à idéia/ mas não houve, de fato,
nenhum tipo de parceria sistemática com a população local. Petersen (2006) atri­
bui a opção por esse tipo de intervenção não-dialógica à dificuldade de mobiliza­
ção por parte da associação de moradores, o que, infelizmente, parece não ser
uma característica exclusiva da Providência.

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Favela como patrimônio da cidade?

Examinando o contexto mais geral da mobilização popular nas favelas


cariocas, Pandolfi (2002) chama a atenção para o fato de que a maior presença
do Estado e das Ongs externas coincide com o esvaziamento da capacidade de
mobilização das associações de moradores. Embora, nos anos 1990, muitas fa­
velas se tenham afirmado como gestoras de recursos públicos - repassando fi­
nanciamentos, contratando funcionários e terceirizando serviços -, as associa­
ções de moradores "foram deixando de desempenhar um papel de organização,
mobilização e pressão" (Pandolfi, 2002: 252). Aos moradores da Providência,
pelo que nos foi antecipado por Petersen, está reservado justamente o papel de
gestores do museu: o Programa Agente Jovem Temático da Secretaria Munici­
pal de Assistência Social pretende desenvolver atividades de capacitação de 25
jovens da favela, que receberão uma bolsa auxílio mensal. O coordenador geral
do projeto, morador da Providência e conhecedor da área do Cais do Porto, for­
nece os temas de estudo sobre a cidade, área portuária, samba carioca e blocos
carnavalescos antigos, para a programação de pesquisas, que são realizadas no
Café Internet. Segundo Petersen, a idéia é que "esses agentes repassem aos tu­
ristas que visitam o museu o melhor da história da sua cidade, através da sim­
patia típica carioca".8
Mas, antes mesmo desse treinamento formal, alguns moradores já
acompanhavam os visitantes, contando histórias da favela (nem sempre compre­
endidas pelas distâncias lingüísticas que, na maior parte dos casos, separam mo­
radores e turistas) e mostrando os pontos que julgavam de interesse. Ao nos fala­
rem sobre sua experiência como "guias", estes moradores expunham tensões e
disputas já promovidas pelo museu: se, por um lado, a Prefeitura busca capitali­
zar uma imagem positiva de si através da implementaç�o de um museu de cunho
"inclusivo e democrático", por outro, os moradores querem aproveitar a
presença dos turistas justamente para "mostrar ao mundo que o poder público
não se importa com a gente".
Apesar da forma inovadora do museu, o que se pretende viabilizar é uma
"patrimonialização" da favela baseada nos critérios de longevidade e autentici­
dade, noções que há muito fundam a prática de preservação ocidental e orientam
toda a sua lógica. No DVD promocional do museu feito para o público estrangei­
ro/ o prefeito César Maia introduz o projeto e justifica a escolha da Providência
com base no critério de uma autenticidade longeva supostamente capaz de expor
em síntese a dialética favela-cidade: "Esta é a primeira grande favela do Rio de
,

Janeiro, berço da organização popular, que abrigou as tropas de Canudos. E o an-


tigo Morro da Favela, nome que passou a designar todas as ocupações em áreas
, ,

de encostas na cidade. E um local que guarda a memória da cidade". A função de


"guardião da memória da favela", o Museu da Providência somaria a de "guar­
dião da memória da cidade", numa interessante inversão da mitologia da "cida-

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estudos históricos. 2006 - 38

de partida". Há, contudo, limites a essa inversão que, sendo possível no nível do
discurso, na prática tem que enfrentar trincheiras violentamente resguardadas
pelo narcotráfico e pela polícia. Assim que a obra da capela centenária ficou
pronta, a edificação foi atingida por mais de 10 tiros. A Casa-Museu Dodô da
Portela amanheceu metralhada após um tiroteio entre traficantes e o Batalhão de
Operações Especiais ocorrido em março de 2006. Petersen (2006) admitiu a ex­
pectativa de que a presença dos turistas no local ajudasse a conter a criminal ida­
de, mas o fato é que essa presença não se viabiliza justamente porque faltam con­
dições de segurança. A solução encontrada até aqui não deixa de ser algo irônica:
operar com visitas agendadas junto ao Célula Urbana a tim de que, comunicadas
previamente ao Comando da PM, não coincidam coln as datas de operações
policiais.

o Museu da Maré

Se o Morro da Providência ostenta o título de "primeira favela carioca",


a Maré ostenta o de primeira favela a ser reconhecida como região administrativa
do município. Formada por 17 "comunidades",lO a Maré divide a área que mar­
geia a pista de subida da avenida Brasil com os quartéis do Exército, da Marinha
e da Aeronáutica, indo da altura da Fiocruz (antigo prédio do Ministério da Saú­
de), em Manguinhos, até a altura da entrada para o Aeroporto Internacional
Antonio Carlos Jobim.
Assim como a Providência, a Maré também cresceu no entorno de uma
antiga região portuária. Os mangues e praias, que lhe inspiraram a alcunha, do­
minavam a paisagem e alimentavam os engenhos de cana-de-açúcar e as olarias
que se instalaram no entorno. Seu perfil urbano começa a esboçar-se nos anos
1940, com a abertura da avenida Brasil, mas é na década de 1970 que a favela
cresce de maneira expressiva, a partir da chegada das populações removidas de
outras favelas, e avança em direção ao mar com suas palafitas - barracos de ma­
deira: construídos sobre a lama e a água que se tornariam "símbolo da miséria na­
cional" (Ceasm, 2006). Na década seguinte, a região passa por uma intervenção
do Governo Federal - "Projeto Rio" do Banco Nacional de Habitação - que
constrói um aterro e substitui as palafitas por edificações pré-fabricadas.
Com o terceiro pior índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Rio,
a Maré passou, nos anos 1990, a freqüentar regularmente as páginas policiais dos
periódicos nacionais em que se relatavam as disputas, no interior do complexo,
entre facções criminosas. A contra-face dessa representação midiática, que reduz
o complexo a um campo de guerra, veio através de um dos projetos coordenados
pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm): 11 a TV Maré. Nessa

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Favela como patrimônio da cidade?

que foi uma das primeiras TVs comunitárias da cidade do Rio de Janeiro, hoje
extinta, eram gravadas entrevistas com os moradores e, em seguida, divulga­
vam-se os depoimentos por meio de telões instalados nas praças e ruas do com­
plexo. Os moradores discutiam, então, as várias versões para acontecimentos
passados, relembravam o processo de ocupação das diferentes localidades e res­
gatavam o surgimento de movimentos populares na região (Cantarino, 2006). A
iniciativa se desdobrou no projeto Rede Memória da Maré, que "funciona como
centro produtor, receptor e difusor de material informativo sobre o bairro"
(Ceasm, 2006). Hoje, a Rede Memória - com seu expressivo acervo de fotos, re­
portagens, depoimentos e trabalhos acadêmicos sobre a localidade - é nacional­
mente reconhecida, tendo recebido o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade
na categoria "salvaguarda de bens de natureza imaterial".12
O Museu da Maré deve ser contextualizado, sem dúvida, no árnbito des­
tas iniciativas levadas a cabo pelo Ceasm e no cenário mais amplo de projetos que
têm a memória das favelas como tema. 13 Cláudia Rose Ribeiro da Silva, historia­
dora e coordenadora da Rede Memória, oferece uma justificativa para essas
ações, que vai ao encontro daquela utilizada pela Prefeitura no caso do Museu da
Providência: "Apesar das distãncias sociais criadas e dos preconceitos, é preciso
lembrar que as histórias dos bairros do subúrbio e das favelas fazem parte da his­
tória da cidade do Rio de Janeiro como um todo" (apud Cantarino, 2006). O texto
afixado na entrada do Museu da Maré também reforça esse argumento, que pre­
tende costurar, com a linha da história, favela e cidade em um tecido contínuo:
"Nesse lugar, onde muitos só enxergam a violência, nasce uma nova maneira de
contar os tempos da cidade, a partir do diálogo, da troca e do respeito à diversida-

de cultural. O Museu da Maré é um convite à construção desse novo tempo".


Novamente está em jogo a possibilidade de, pela via da "patrimonializa­
ção", redefmir a chave de interpretação sobre as favelas, problematizando o ar­
gumento que as coloca como a "anti-cidade", como o avesso perverso da lógica
urbana. Só que, na Maré, o protagonismo não se encontra no poder público e
seus agentes, mas nos próprios moradores organizados em torno do Ceasm.
Obviamente, nos dois casos estas pontas se encontram: o Museu da Providência
necessita do engajamento dos moradores locais (aqui incluídos os traficantes)
para sua efetivação, assim como O Museu da Maré depende das articulações que o
Ceasm é capaz de estabelecer com agentes externos de envergadura.l4 A viabili­
dade do projeto deve-se, em larga medida, à sua inserção no Programa Cultura
Vivals do MinC, que investiu R$ISO mil no espaço. A presença do ministro Gil­
berto Gil e de seus assessores na inauguração garantiu que os mais importantes
jornais cobrissem o evento e que o Museu da Maré alcançasse visibilidade nacio­
nal como o "primeiro museu instalado numa favela brasileira" a despeito de seu
antecessor na Providência. Voltarei a esta controvérsia mais adiante.

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estudos históricos e 2006 - 38

o museu fica num galpão de 600 metros quadrados cedido pela antiga
Companhia Libra de Navegação, desativada há 25 anos. O espaço divide-se em
galerias que tematizam diferentes "tempos" - casa, água, resistência, trabalho,
criança, cotidiano, feira, festa, fé, medo e memória - e contam quase 70 anos de
história através de fotografias, objetos e documentos. Este acervo foi, em boa par­
te, doado pelos próprios moradores, como a imagem de São Pedro, que enfeita o
barco de pesca exposto na "seção água", doada pela filha do pescador Jaqueta, fi­
gura tradicional da localidade. "Recebemos de tudo", explica o coordenador
Luiz Antônio, "desde fotos até objetos antigos. Mas damos preferência àqueles
de 30, 40 anos atrás, pois têm um apelo maior" (apud O Globo, 9/5/2006). Que
"apelo maior" é esse ao qual Luiz Antônio se refere? Com seu estilo interrogati­
vo, Heidegger (2001 [1957]) problematiza as relações entre objetos, historicida­
de e tempo, sugerindo caminhos que me parece apropriado trilhar aqui.
Vejamos:

As antiguidades conservadas no museu, os utensílios


domésticos, pertencem a um "tempo passado" e se encontram, também,
simplesmente dadas no "presente". Se esse instrumento ainda não pas­
sou, em que medida ele é histórico? Será apenas porque ele se tornou um
objeto de interesse historiográfico (... )? Este instrumento, no entanto, só
pode ser um objeto historiográfico porque é, em si mesmo, já, de algum
modo, histórico. A questão se repete: com que direito chamamos esse ente
de histórico se ele ainda não passou? Ou será que essas "coisas" possuem
em si "algo passado", não obstante serem, ainda hoje, simplesmente da­
das? (...) Com o correr do tempo, o utensílio tornou-se frágil e deteriora­
do. Mas o caráter especificamente passado, que faz dele algo histórico,
não reside nesta contingência que continua se dando no museu. O que
então passou no instrumento? (... ) Em uso ou fora de uso, elas [as coisas]
não são mais o que foram. O que então "passou"? Nada mais do que o
mundo, no seio do qual, pertencendo a um nexo instrumental, vinham ao
encontro da mão e eram utilizadas por um Dasein no mundo de suas
ocupaçôes. O mundo não é mais.

Uma vez trazidos para o âmbito do Museu da Maré, utensílios domésti­


cos, objetos ordinários, porém longos no tempo - bonecas, chinelos, panelas, moe­
das, móveis, tapetes - convertem-se em documentos. Se antes cumpriam funções
de resguardo da memória individual e afetiva de quem os possuía, agora deverão
ajudar a construir, conservar e expressar significados poderosos, capazes de for­
jar uma desejada identidade mareense. Se o mundo em que suas funções utilitárias

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Favela como patrimóllio da cidade?

eram realizadas "não é mais", abre-se um novo espaço para seu Dasein: alimen­
tam o mito de origem comum que a identidade mareeme necessita para ganhar for­
ça e se tornar capaz não apenas de encompassar as várias identidades locais, mas
também de ultrapassar as fronteiras impostas pelas diferentes facções do tráfico.
Porém, como se dão na prática essas intenções?
Na manhã em que fui à Maré, com minhas duas assistentes de pesqui­
sa,16 o museu nem de perto lembrava a agitação dos dias anteriores.l7 Resol­
vemos as três nos dividir. Eu já tinha dado por certo que faria a visita sozinha,
quando Rita se chegou ao meu lado. Moradora da Maré há 10 anos, desde que
migrou do Piauí com o marido e a filha mais velha, ela já tinha visitado o mu­
seu guiada "por um rapaz que explica tudinho sobre essas fotos". Com dupla
autoridade - de moradora e de quem já conhecia a exposição -, Rita foi me
guiando na visita, reproduzindo o que ouvira antes, situando a própria bio­
grafia na narrativa maior que lhe haviam contado. O dedo indicador ia encos­
tando-se às fotos, imprimindo-lhes sua digital: "a minha primeira casa ficava
aqui", "da minha casa dava pra ver essa pracinha que não existe mais", "aqui
pra essas bandas fica a escola das meninas". Ela não se preocupava com as le­
gendas e ia interpretando o preto-e-branco das fotos contemporâneas como
sinal de tempo passado. Procurava com atenção a foto de uma vizinha - "ela
me pediu pra ver se tem foto dela" -, mas o interesse maior de Rita estava na
instalação que reproduzia a casa de palafita. "Você tem que ir lá em cima ver a
casinha!", ela insistia. E eu, com todas as etiquetas introjetadas, resistia a mu­
dar o roteiro previsto. Quando entrei no Espaço do Medo - nas paredes, teci­
do preto e prateleiras com cápsulas de vários calibres recolhidas nas ruas da
Maré; no chão, tábuas mal alinhadas reproduzindo as palafitas18 - e por ali
me detive, Rita saiu apressada porque "tinha que pegar a menor em casa e le­
var pro colégio". Mas não demora e Rita reaparece com Janaína, de 8 anos, e
uma amiguinha um pouco mais velha: "Trouxe as meninas pra ver a casinha".
Acompanhei. Mal entraram, Janaína e Tatiana foram mexendo no fogão,
abrindo a caixinha que revelava brincos e broches, bisbilhotando a gaveta
que guardava cartas antigas - lugares que eu não pensara em tocar. "Meu pai
tinha um rádio desse... tinha que passar o dia todinho no sol pra poder ligar",
Rita lembrava alto. As meninas continuavam mexendo em tudo, experimen­
tando os sapatos, brincando com as bonequinhas de pano que enfeitavam a
cama. Rita ia pontuando com "cuidado aí!", mas também abria os armários e
folheava os livros. Eu me comportava como visita, Rita e as meninas eram de
casa. Para elas, os objetos expostos e as fotografias inspiravam lembranças,
permitiam-lhes interrogar a própria experiência, faziam convergir passado e
presente sob a perspectiva do futuro: "Como vai ser a Vila do João quando a
gente crescer?", Janaína perguntou sorrindo.

59
estudos históricos e 2006 - 38

Algumas polêmicas e três conclusões

Ao fim e ao cabo, todos os museus são lugares de classificação. Porque


suas premissas classificatórias são tidas como legítimas, museus tornam-se, nos
termos de Foucault, instituições de saber e tecnologias de poder: cabe aos mu­
seus selecionar determinados objetos, descrevê-los, nomeá-los, bem como criar e
impor uma "ordem racional" para sua exibição. Essas premissas práticas e teóri­
cas, como exposto anteriormente, passaram por severas revisões no bojo do Mo­
vimento Internacional da Nova Museologia que propunha, em última instáncia,
o alargamento das funções sociais dos museus. As duas experiências analisadas
aqui devem, portanto, ser posicionadas nesse contexto mais amplo de revisão
crítica dos fundamentos ideológicos dos museus como instituição. Mas não ape­
nas. Como argumentei no início deste artigo, trata-se de uma dupla requalifica­
ção: dos museus e da favela. A que envolve o segundo fator da equação tem causa­
do polêmicas as mais calorosas. Cito, a título de ilustração, as reações registradas
no periódico eletrõnico Nominimo.19 Sob o título de "O museu do PT na favela",
Xico Vargas (2006) provocava:

Pode até ser bonito, organizado e contar a história da fa­


vela da Maré o museu inaugurado ontem pelo ministro Gilberto Gil.
Mas já está sendo chamado de Museu do PT. Primeiro porque é grande o
número de figuras do partido que passou a circular na favela a partir do
convênio feito com o Governo Federal para a organização do museu. Se­
gundo, porque o primeiro museu criado no Rio para contar a história
das favelas da cic\ade (e não apenas a da Maré) está no morro da Provi­
dência. Foi inaugurado pela Prefeitura no ano passado e está sendo recu­
perado, depois da passagem do Exército Brasileiro (...). E terceiro, por­
que a Providência é a primeira favela do Rio de Janeiro. Para lá foram os
soldados que voltaram do conflito de Canudos (...). Ali, a história é con­
tada em painéis, paredes de casas, escadas de granito e oratórios constru­
ídos por escravos libertos.

A pequena nota gerou nada menos que 26 comentários que, em sua abso­
luta maioria, ignoraram o argumento central de Vargas, isto é, se recusaram a
discutir que museu merecia o título de originalidade ou qual era o mais eficiente
em suas estratégias de exposição. O tema em torno do qual gravitaram, com me­
nos ou mais indignação, para criticar ou para defender, foi o da legitimidade da
favela como patrimônio: "Esse negócio de glamourizar favelas, em vez de pro­
mover a sua extinção via remoções ou reurbanização, levou o Rio à situação que

60
Favela como patrimônio da cidade?

se vê hoje", resumiu um dos leitores. Outro se perguntava: "Que lembranças


terríveis são essas que as pessoas querem tanto guardar na memória? Morar em
palafitas, sem rede de esgoto e inúmeras dificuldades enfrentadas. ( ...) Com a
insegurança predominante nas favelas, quem irá visitar esse museu?". Ambas
as iniciativas eram vistas pela maioria como tributárias da "apologia da faveli­
zação", do "favela is beau tiful", que vêm transformando o Rio de Janeiro em
uma "nova Bombaim". Quando um leitor se expressou a favor da iniciativa da
Maré (ninguém defendeu o Museu a Céu Abeno da Providência), foi acusado
de defender "uma região geograficamente absurda" que "está sufocando a cida­
de".
Ao revisitar esses comentários, nao pretendo, por ceno, estabelecer ne­
nhuma generalização sobre a opinião das camadas médias acerca da "patrimoni­
alização" da favela carioca, e sim sugeri-los como indícios do choque cognitivo
que a associação "favela/museu" - ou mesmo "favela/cidade" - ainda é capaz de

provocar. Passados quase cem anos, a definição de Bilac- "E uma cidade à parte"
- parece ainda fazer sentido para muitos entre nós.
Apesar de baseado em observações de campo, entrevistas com infor­
mantes qualificados e estudos anteriores sobre favela e sobre patrimônio, este
anigo, dado o caráter recente e o perfil polêmico de seu objeto, não pôde mais
do que apresentar algumas reflexões em torno do tema. A situação de conflito
que se instaurou no Morro da Providência nos últimos meses impediu um
acompanhamento mais sistemático do nível de envolvimento dos moradores
locais com o museu. No caso da Maré, também é preciso aguardar e ver se o en­
tusiasmo inicial dos moradores terá fôlego longo e se a idéia será capaz de con­
taminar outras iniciativas. De todo modo, me parece pertinente arriscar três
modestas conclusões:
- Apesar de a evocação da memória seguir estratégias distintas nos dois
museus, ambos buscam absorver e superar a heterogeneidade social da favela.
Ou melhor dito: os museus procuram restituir unidade e inteligibilidade às dis­
sonâncias, afastamentos e disputas que inevitavelmente marcam territórios de
sociabilidade complexa como as favelas. Na Providência, criando-se um genérico
de origem; na Maré, alimentando-se o mito da idelllidade mareense .

- E difícil mostrar os processos de transformação histórica tendo por


base somente objetos da cultura material (Harms, 1990). O Reservatório de
Lembranças, no caso da Providência, ajudaria a superar essa limitação, fazendo a
ponte entre o passado mítico das edificações sacras e o cotidiano dos que ali vi­
vem e que, pela narrativa, posicionariam suas trajetórias pessoais no contexto da
história da localidade. No que se refere à Maré, as "contações de histórias",2o já
incorporadas esporadicamente à dinâmica do museu, são fundamentais nessa
"presentificação" do passado.

61
estudos históricos e 2006 - 38

- Enquanto a violência estiver presente no cotidiano dessas localidades,


ela demandará visibilidade nos museus e, em larga medida, determinará a possi­
bilidade de consumo de seu acervo por parte dos cidadãos em geral. O Museu a
Céu Aberto da Providência silencia sobre a violência, que acaba se fazendo pre­
sente na radicalidade dos furos de bala que marcam suas edificações. Por mais in­
clusivo que o Museu da Maré se pretenda, o fato é que muitos deixarão de visi­
tá-lo por sentirem-se ameaçados pelos conflitos violentos que se dão em seu en­
torno.

Notas

l. Para um balanço dessa produção, cf. 4. O Café Internet da


Abreu e Chagas (2003). Providência, iniciado em janeiro de 2006,
replica a metodologia desenvolvida pelo
2. Segundo o Ministério da Cultura, Célula Urbana para o Internet Café do
existem hoje no país cerca de dois mil Jacarezinho, que hoje é um importante
museus, sendo que apenas 40 estão centro de referência na localidade tanto
vinculados ao Mine e o restante a em termos educativos quanto de
entretemmento.

governos estaduais ou municipais, ou ao


setor privado.
5. Segundo PeterseD, está prevista a
construção de "um centro de informações
3. A biografia de Lu Petersen está
e venda do museu" na base da escadaria
diretamente ligada a vários projetos
e, ao longo de sua extensão, de "estações
urbanísticos em áreas pobres da cidade:
de descanso" com pequenas galerias de
foi uma das idealizadoras e responsáveis
arte, cafés e livrarias temáticas. A história
pela implementação do Projeto Mutirão
da favela será contada através de placares
Remunerado, da Secretaria Municipal de
e de esculturas de figuras humanas em
Desenvolvimento Social (SMDS), por
bronze ali dispostos.
quase uma década (I984-92); trabalhou
no Programa de Favelas da 6. No Brasil, há pelo menos duas
Cedae-Proface (1986-87); foi lima das experiências recentes de
responsáveis pela concepção e insrirucionalização de museus abertos,
implementação do Programa uma na cidade de Ouro Prem e outra no
Favela-Bairro (1994-2000). Desde 2001, Paraná. Ouro Preto, um dos mais
coordena o Célula Urbana, projeto importantes conjunms barrocos
experimental definido pela própria preservados, recebeu o útulo de Museu
Petersen (2006) como "um Aberto - Cidade Viva em 2005. Uma
pós-Favela-Bairro em que se criam pesquisa histórica, oral e arquivística
elemenws de desenvolvimento possibilimu o levantamento do acervo
econômico e cultural para que a própria residencial e o registro de três séculos
comunidade dali caminhe por suas estampados em selos e painéis
pernas", interpretativos nas fachadas do casario e

62
Favela como patrimô"io da cidade?

em pontos estratégicos da cidade. Em reservatório aparecem rapidamente. A


2006, foi criado o Projeto Museu Vivo do ênfase está não tanto nos elementos do
Fandango, patrocinado pela Petrobrás, museu, mas no que pode ser visto a partir
que estabeleceu um circuito de visitação dele: a cidade cartão-postal que se
com diversos atrativos culturais em três derrama aos pés do turista.
municípios do litoral sul do Paraná­
10. O Censo Maré 2000, realizado pelo
Paranaguá, Guaraqueçaba e Morreles - e
IBGE em parceria com Centro de
dois do litoral norte de São Paulo -
Estudos e Ações Solidárias da Maré
19uape e Cananéia. O museu nâo tem
(Ceasm), contabilizou 132.176 pessoas
uma sede Única, mas está distribuído
distribuídas pelas seguintes localidades:
pelas cidades, envolvendo casas de
Conjunto Esperança, Vila do 10ão, Vila
fandangueiros c construtores de
do Pinheiro, Salsa e Merengue, Conjunto
instrumentos, clubes e casas de fandango,
Pinheiros, Bento Ribeiro Dantas, Morro
museus, centros culturais e pontos de
do Timbau, Baixa do Sapateiro, Parque
consulta.
Maré, Nova Maré, Nova Holanda,
7. A pesquisa ouviu moradores com idade Rubens Vaz, Parque União, Roquete
entre 50 e 70 anos. A responsável pelas Pinto, Praia de Ramos, Marcílio Dias e
entrevistas foi a antropóloga 1ulie Metais, Mandacaru.
do Instituto de Esrudos de
11. O Ceasm se autodefine como "uma
Desenvolvimento Urbano e Social­
associação civil, sem fins lucrativos,
Universidade Sorbonne/Paris 5, que
criada em 15 de agosto de 1997" cuja
estagiou na Assessoria Especial Célula
proposta é "desenvolver atividades que
Urbana em 2003.
possam ser não apenas assimiladas, mas
8. Após seis longos depoimentos dados ao também executadas pelos próprios jovens
CPDOC, em que estivemos presentes e demais moradores da Maré. Para tanto,
Américo Freire e eu, Lu Perersen eles recebem auxílio financeiro - sob a
prontificou-se a esclarecer, por forma de bolsas, orientação e formação
correspondência eletrônica, as dúvidas profissional, ética e cidadã -, além de
que me haviam ficado pendentes. outros estímulos, que fortalecem o
Agradeço-lhe a generosidade em envolvimento com sua comunidade".
compartilhar as informações e a Cr. www. ceasm.org.br
disposição sempre bem-humorada para o
12. Criada em 1987 pelo Iphan, a
debate.
premiação tem como objetivo reconhecer
9. Produzido pela "Cara de Cão Filmes" ações de preservação do patrimônio
sob encomenda da Prefeitura do Rio, o cultural brasileiro.
DVD abre com imagens aéreas do
13. A publicação A memória das favelas
Corcovado ao som de um sambinha
(Comunicações do Iser, n. 59, ano 23,
discreto e segue com lima
2004) lista as seguintes iniciativas:
contexrualização histórica feita por César
Condutores de Memórias
Maia em seu gabinete. Em tom didático,
(BoreVIndiana/Casa Branca), Centro
reforça a inserção do museu no contexto
Histórico da Rocinha, Casarão dos
do Favela-Bairro e da revitalização da
Prazeres, Favela Tem Memória, Centro
área portuária. Há, ainda, depoimentos
de Memória do 10ngo (Grupo Culrural
de três moradores e de Lu Petersen sobre .
10ngo da Serrinha).
a urbanização da Providência, mas pouco
se vê do próprio morro. Há tomadas 14. Entre as entidades que apóiam o
interessantes de Dodô da PorteIa em sua Ceasm estão: Light, Petrobras, BNDES,
Casa-Museu, mas a igreja, a capelinha e o Prefeirura (Secretarias do Trabalho, da

63
estudos históricos e 2006 - 38

Saúde e de Educação), Fiocruz / Museu Ventania, tempestade, raros,


da Vida, Lamsa, Embaixada do Canadá. remoções .. ./No tempo do medo, existe a
15. ° objetivo deste programa é estimular bala perdida, Niolência, morte bruta.. .! °
a criação de empreendimentos culturais medo que nos assombra pode nos
em comunidades de todo o Brasil. Não paralisar! Tanto quanro nos motivar a
está prevista a criação de museus em lutar/ Pela transformação da realidade."
outras favelas, mas há previsão de novas
instalações em comunidades indígenas e 19. Nominimo.com.br é um periódico
em municípios do Nordeste. elerrônico com sede no Rio. Conta, entre
16. Agradeço a Palioma Menezes e seus articulistas fixos, com nomes como
Juliana Farias a colaboração sempre fiel e Marcos Sá Correia, Villas- Bôas Corrêa e
competente ao longo de todo o projeto de Zuenir Ventura.
pesquisa "A construção da favela carioca
como destino turístico", no qual a
presente reflexão se insere.
20. Sob coordenação do Grupo Maré de
Histórias - Contadores de Histórias da
1 7. ° museu tinha sido inaugurado há Maré. ° grupo é formado por moradores
poucos dias e o livro de registro já do complexo, que contam histórias sobre
contava com folhas e folhas de o cotidiano e o imaginário das
assinaturas. Segundo Luiz Antônio, a comunidades locais e desenvolvem um
média de visitações era, então, de 91 trabalho a partir das narrativas dos
pessoas por dia (cf. O Globo). moradores mais velhos, explorando seu
18. Em cada sala, há um painel com aspecto lúdico. Histórias como "O
dizeres introdutórios. No painel afixado ensopado de cobra", "O porco com cara
na Sala dos Medos, lê-se: "Quais são os de gente", "O casamento na palafita" e "A
nossos medos? /No tempo do medo havia figueira mal-assombrada" fazem parte do
tábua podre,! Criança caindo na água! repertono.

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estudos históricos e 2006 - 38

Resumo
Este artigo examina e problematiza o processo de elaboração da favela como
patrimônio da cidade a partir da análise comparativa de duas experiências
recentes: a do Museu a Céu Aberto do Morro da Providência, instituído pela
Prefeitura do Rio de Janeiro em agosto de 2005, e a do Museu da Maré que,
por iniciativa dos moradores locais e com apoio do Governo Federal, veio a
ser inaugurado em maio de 2006.
Palavras-chave: favela, patrimônio, Museu da Maré, Museu a Céu Aberto do
Morro da Providência

Abstract
This article examines and discusses the process of elaborating the favela as an
urban patrimony by comparing two recent experiences: the Museu a Céu
Aberto do Morro da Providência, created by the government of Rio de Janeiro
in August 2005, and the Museu da Maré, a project conducted by the local
residents with the support of the Federal Governrnent, opened in May 2006.
Key words: favela, patrimony, Museu da Maré, Museu a Céu Aberto do
Morro da Providência

Résumé
Cet article se penche sur le processus d'élaboration de la favela en tant que
patrimoine de la ville. Dans une perspective comparatiste on analyse deux
essais récents: le "Museu a Céu Aberto" au Morro da Previdência, crée par la
Mairie de la ville de Rio de Janeiro, et le "Museu da Maré", fondé en mars
2006 par les habitants eux-mêmes, avec soutien du gouvernement fédéral.
Mots-clés: favela, patrimoine, Museu da Maré, Museu a Céu Aberto do Morro
da Providência

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