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com · ISSN 1749-8457


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25 de Janeiro de 2010 · Ética

Viver bem: a ética de Aristóteles


Christopher Shields
Universidade de Oxford
Tradução de Desidério Murcho

1. O bem final para seres humanos


Os seres humanos entregam-se a comportamentos com propósitos. Fazemos coisas com
razões e agimos tendo fins em vista. Assim, caminhamos para a loja com a intenção de
comprar leite. Se um amigo que encontramos na rua nos perguntar no caminho por que
estamos a caminhar na direcção da loja, a resposta sensata e correcta é a verdadeira:
“Para comprar leite.” Se o nosso amigo for divertido e começar a regalar-nos com
piadas e histórias de modo tão entusiasmante que nos esquecemos de para onde íamos e
porquê, podemos ficar confundidos, esquecendo temporariamente o que estávamos a
fazer e tentando recordar com que propósito estávamos na rua. Se não nos
conseguirmos recordar, deixaremos de caminhar para a loja, pois não teremos qualquer
propósito que nos motive a isso. Quando nos recordarmos do nosso propósito,
retomamos então a nossa actividade com um sorriso nos lábios.

Suponha-se, em contraste, que o nosso amigo não é divertido, mas antes um filósofo de
intenções sérias que quer saber por que queremos comprar leite. Se respondermos séria
e honestamente que queremos comprar leite para comer os nossos flocos de aveia
matinais, e ele insistir, querendo saber por que temos a intenção de comer flocos de

1
aveia de manhã, podemos então muito bem responder que consideramos os flocos de
aveia saudáveis e deliciosos, especialmente com leite, que nos damos então a liberdade
de comprar. Sem dar atenção à nossa falta de interesse, o filósofo pode insistir,
querendo saber por que desejamos comer comida deliciosa e saudável. Uma vez mais,
podemos responder que isso é porque gostamos de comida deliciosa, comê-la dá-nos
prazer, e que desejamos a saúde pela razão óbvia de que a saúde é boa — e, para que
não nos faça essa pergunta, todos desejamos coisas boas para nós. Se até este momento
não nos tivermos escapado, podemos ouvir o filósofo a fazer a mesma pergunta,
seriamente, suponhamos, ad nauseam, ou pelo menos até dizermos, exasperados, que
fazemos todas essas coisas que fazemos em nome da felicidade. Se nos perguntar agora
por que desejamos a felicidade, talvez a má-educação seja apropriada. Podemos limitar-
nos a voltar as costas, encolhendo os ombros e dizendo que temos mesmo de ir comprar
leite.

Apesar de o nosso comportamento ser dotado de propósito, parece que estas perguntas
têm de parar algures. Aristóteles considera haver algo de relevante nestas facetas
relacionadas do nosso comportamento, que fazemos coisas por razões e que as nossas
razões podem subordinar-se a razões de ordem superior até chegarmos a uma razão final
e última subjacente a todas as nossas acções intencionais. Aristóteles abre a sua Ética a
Nicómaco precisamente com este compromisso, apesar de usar o que parece um
argumento desastroso a seu favor:

Toda a arte e toda a investigação, e similarmente toda a acção e escolha, parecem visar
um qualquer bem; de acordo com isto, declarou-se correctamente que o bem é aquilo
que todas as coisas visam. (Ética a Nicómaco 1094a 1-3)

Mesmo que seja verdade que há um qualquer bem último para toda a acção humana,
este argumento, à primeira vista, não permite concluir tal coisa. Pois pode ser verdade
que toda a acção visa um fim, apesar de não haver qualquer fim único que seja visado
por todas as acções. Afinal, todo o arqueiro visa um alvo, apesar de não haver um alvo
único que todos os arqueiros visem. Se Aristóteles está a argumentar assim, então
cometeu uma falácia simples ao fazer notar que tudo tem uma característica e inferindo
nessa base que há apenas uma característica que tudo tem.1

Dito isto, talvez seja possível compreender estas linhas de um modo mais favorável a
Aristóteles, numa de duas maneiras. Primeiro, talvez ele esteja já a pressupor na
primeira linha que toda a acção intencional visa em última análise a um dado fim, o
bem, comentando depois que é então apropriado que se tenha caracterizado o bem como
aquilo que todas as coisas visam.2 Neste modo de compreender estas linhas, Aristóteles
não argumenta falaciosamente, porque nem sequer argumenta.3 Alternativamente,
podemos considerar que Aristóteles está a apresentar um argumento que não fica
imediatamente sujeito à objecção dada. Talvez queira afirmar que porque toda a acção
visa um ou outro género de fim, cada um dos quais é um género qualquer de bem, o que
estes fins têm em comum é o serem bens. Capitalistas diferentes comercializam carros,
cabides e grãos de café, cada um deles visando o lucro no seu sector; assim, chama-se
correctamente ao lucro o fim de todos os capitalistas. Similarmente, o exercício visa a
saúde porque a saúde é um bem, o estudo vida o conhecimento porque o conhecimento
é um bem, e a recreação visa a descontracção porque a descontracção é um bem. O que
estes diferentes géneros de bens têm em comum é precisamente o serem bens. Tal
inferência exige trabalho adicional, e pode não combinar muito bem com os escrúpulos

2
de Aristóteles com respeito à univocidade do bem.4 Mesmo assim, não compromete
Aristóteles com a falácia formal que tantas vezes se pensa que estas linhas cometem.

Em qualquer caso, se concordarmos que as acções dotadas de propósito visam fins bons,
ou pelo menos aparentemente bons, e se além disso concordarmos que estes fins podem
estar subordinados entre si de modo a haver um bem final que todos os seres humanos
procuram, é uma boa ideia reflectir sobre as características que é de esperar que este
bem final tenha.

Para começar, quando se pergunta qual é o seu bem final, é provável que as pessoas
discordem. Algumas, os hedonistas, dirão honestamente que procuram o prazer acima
de qualquer outra coisa. Outras, com prioridades diferentes, podem dizer que desejam
acima de tudo ser amadas, ou que se esforçam por conduzir as suas vidas com honradez,
ou que as riquezas ou o poder são o que mais lhes importa, e assim por diante. É
importante ver que quando discordam deste modo, as pessoas podem estar a discordar
quanto a qualquer um de dois níveis diferentes, ou quanto a ambos. Primeiro, as pessoas
podem concordar quanto às características do bem último, mas discordar quanto aos
estados ou actividades que exibem essas características. Ou a sua discordância pode ser
de ordem superior: talvez estas respostas diferentes resultem de pressupostos não
equivalentes sobre o que seria necessário para que um estado ou actividade fosse
considerado um bem final. Assim, por exemplo, duas pessoas podem discordar quanto
ao que é relaxante, sugerindo uma que ler sossegadamente na biblioteca é relaxante, ao
passo que a outra recomenda o esqui aquático com um barco a motor como a maneira
mais relaxante de passar uma tarde. Ambas podem concordar quanto ao que consiste o
relaxamento, mas discordar quanto à melhor maneira de o alcançar; ou podem discordar
quanto à natureza do relaxamento, supondo uma que qualquer actividade que não se
relacione com o trabalho é relaxante, por mais vigorosa e cansativa que seja, ao passo
que a outra entende que o relaxamento se restringe a pedaços de tranquila inactividade
sossegada e sem tensão. Para resolver a discordância, precisariam, no segundo caso, de
chegar primeiro a um acordo quanto às características gerais do relaxamento.
Similarmente, quem discorda quanto ao bem final para os seres humanos, precisará em
alguns casos de reflectir primeiro sobre os critérios abstractos para que se considere
antes de mais que algo é um bem final.

Aristóteles começa neste nível mais abstracto. O seu método recomenda que para
determinar o bem final, devemos primeiro concordar quanto aos critérios que terá de
satisfazer (Ética a Nicómaco, 1094a 22-27). Só deste modo, supõe, será possível que
uma concordância substancial prepare o caminho para um verdadeiro progresso.
Aristóteles estabelece como condições para o bem final que:

1. Seja procurado por si mesmo (Ética a Nicómaco 1094a 1);


2. Desejemos outras coisas por causa de si (Ética a Nicómaco 1094a 19);
3. Não o desejemos em função de outras coisas (Ética a Nicómaco 1094a 21);
4. Seja completo (teleion), no sentido de ser sempre digno de escolha e de ser
sempre escolhido por si mesmo (Ética a Nicómaco 1097a 26-33); e
5. Seja auto-suficiente (autarkês), no sentido de a sua presença ser suficiente para
que nada falte na vida (Ética a Nicómaco 1097b 6-16).

As primeiras três destas condições são razoavelmente óbvias, apesar de ser necessário
notar que 1 e 3 são distintas, dado que 1 sustenta que o bem seja procurado por si

3
mesmo, ao passo que 3 exige que o bem não seja feito por coisa alguma além de si
mesmo. Uma pessoa pode, por exemplo, procurar a saúde por si mesma, por ser um bem
intrínseco, mas também em função de algo mais final do que a saúde, por ser
considerada uma componente necessária de uma vida feliz, resultando então daqui que
se quer a saúde tanto por si mesma como em função da felicidade. A saúde satisfaria
assim 1, mas não 3, e por isso não poderia ser um fim último, segundo os critérios
dados.

Os últimos dois critérios são um pouco mais difíceis, dado que Aristóteles os caracteriza
muito brevemente. Para que um fim seja completo (teleion, também por vezes traduzido
por “último” ou “perfeito”), não tem apenas de ser desejado por nada além de si, mas
ser sempre tal que seja em si mesmo digno de escolha. Aristóteles sugere que algo
poderá ser desejado por si e por nada além de si, e no entanto não ser completo porque
as circunstâncias poderiam alterar o seu estatuto. Uma maneira de um fim último ser
invulnerável a contingências seria sendo inteiramente abrangente. Assim, se a felicidade
for o bem final, isto pode dever-se ao facto de abranger todos os bens humanos
possíveis. Contraste-se isto com o prazer, que poderia normalmente ser bom, desejado
por si e por nada mais senão por si mas, apesar disso, competir com outros bens, como a
honra, talvez, e assim ser considerado menos digno de escolha nessa circunstância.
Similarmente, um fim considerado auto-suficiente (autarkês) é um critério
extremamente exigente. Algo é auto-suficiente se a sua presença sem mais é suficiente
para que nada falte a uma vida. Uma vez mais, uma coisa poderia ser auto-suficiente por
ser um bem especialmente abrangente, abarcando todas as formas do bem humano.

Poderá parecer, dada a severidade destas exigências, que nada irá emergir que possa
constituir o bem final para os seres humanos. Afinal, que coisa é sempre digna de
escolha por si mesma, fazendo só por si que nada falte à vida? Vistos desta maneira, os
critérios de Aristóteles podem parecer tão austeros que estarão condenados a não se
aplicar a coisa alguma. Vistos de outra maneira, contudo, estas exigências parecem
perfeitamente correctas. Pois nesta fase são apenas hipotéticas. Se há algum bem que
seja final, o bem único e omniabrangente que procuramos em todas as nossas acções,
então deve realmente obedecer aos elevados padrões que estes critérios impõem. Desta
perspectiva, é fácil concordar com estes critérios do bem final, pois até agora não
concordamos que algo os satisfaz realmente. Do mesmo modo, se surgir algum bem que
os satisfaça a todos, teremos uma razão poderosa para concordar que este bem merece o
seu elevado estatuto.

2. O carácter da felicidade humana: considerações


preliminares
Por mais que os critérios de Aristóteles pareçam exigentes, talvez possamos todavia
supor que há um candidato óbvio a bem último para os seres humanos. Esta razão final
e última para toda a nossa acção é simplesmente a nossa felicidade: todos desejamos ser
felizes. Desejamos a felicidade por si mesma, e não em função de qualquer outra coisa
além dela; procuramos outros bens em função da felicidade; se tivermos atingido a
felicidade, a felicidade genuína, então as nossas vidas estão completas e nada lhes falta;
a felicidade, só por si, é suficiente para fazer das nossas vidas vidas boas (Ética a
Nicómaco 1097a 30-b8). É por isso, na verdade, que desejamos a felicidade acima de
tudo o mais. Além disso, é por isso que a pergunta “Sim, mas por que queres ser feliz?”

4
é ociosa. No domínio do comportamento dotado de propósito, as perguntas “por que”
chegam ao fim com a felicidade.

Tudo isto parece aceitável. Desejamos a felicidade. O que é, contudo, que desejamos?
Compete ao filósofo que se entrega à filosofia prática responder a esta pergunta. Pois
apesar de todos concordarmos que procuramos a felicidade, na verdade a nossa
concordância obscurece formas importantes de discordância, porque discordamos afinal
quanto à natureza da felicidade (Ética a Nicómaco 1095a 14-21). Postos perante a
questão, alguns de nós dirão que a felicidade consiste numa auto-estima cálida e vaga;
outros supõem que a felicidade é a fama; outros o poder; e muitos mais estão certos de
que a felicidade é o prazer. Aristóteles argumenta que todas estas respostas estão
erradas.

Para algumas sensibilidades modernas, a sugestão de que alguém possa estar enganado
quanto à sua própria felicidade parece prepóstera à primeira vista. Afinal, eu decido o
que me faz feliz; e eu sei quando estou feliz e quando não o estou. Só eu posso ajuizar
se estou feliz, e sempre que esse é o meu juízo, então estou de facto feliz. Com certeza
que não cabe ao filósofo, sentado no seu gabinete de trabalho da universidade, decidir
essas questões por mim.

Pelo contrário, contesta Aristóteles, cabe ao filósofo determinar a natureza da felicidade,


dado que esta, como outros conceitos éticos centrais, é susceptível de análise. Duas
características desta abordagem ajudam a explicar por que razão Aristóteles dá
continuidade ao seu trabalho partindo deste pressuposto.

Para ver correctamente a explicação de Aristóteles, é primeiro de tudo necessário


compreender uma característica central da sua abordagem. Aristóteles está
comprometido com uma concepção objectiva da felicidade. Podemos contrastar dois
modos de pensar sobre a felicidade.5 Digamos que uma concepção de felicidade é
subjectiva se pressupõe que a felicidade consiste na satisfação dos desejos do agente,
sejam esses desejos o que forem. Tipicamente, suponhamos, a satisfação de desejos tem
como resultado um sentimento de satisfação cálida ou mesmo ardente, e cálida auto-
estima. Assim, numa concepção subjectiva de felicidade, é de esperar que um agente
saiba quando é feliz e que tenha autoridade quanto à sua própria felicidade. Se ele se
sente feliz, então é feliz, e não o é caso contrário. Numa concepção subjectiva da
felicidade, dificilmente faz sentido imaginar alguém a dizer: “Pensava que era feliz, mas
estava enganado.” Em contraste, uma concepção objectiva de felicidade sustenta que
esta consiste em satisfazer alguns critérios que não são determinados pelos desejos do
agente. Ser feliz, na concepção objectiva, exige que uma pessoa tenha uma vida bem-
sucedida e de florescimento, na qual, uma vez mais, as condições de uma vida bem-
sucedida ou de florescimento não competem ao agente. Com respeito a este aspecto, é
proveitoso pensar sobre juízos de felicidade do ponto de vista da terceira pessoa.
Podemos considerar que um vizinho ou familiar vive bem, e tem uma vida humana de
florescimento, mesmo sem saber muitas coisas sobre a sua vida interior. Ademais,
podemos ajuizar prontamente que um amigo ou pessoa próxima não está a viver a
melhor vida ao seu alcance, podemos lamentar que estejam num caminho de
autodestruição porque, digamos, abusam de drogas, ainda que, se lhes perguntarmos,
respondam sinceramente que se sentem muitíssimo bem, que são felizes. Na concepção
objectiva da felicidade, temos em princípio o direito, em alguns casos, de concluir que
as pessoas estão enganadas quanto às suas próprias auto-atribuições de felicidade. Do

5
mesmo modo, podemos olhar para um período anterior das nossas vidas e ajuizar
correctamente que apesar de pensarmos que éramos felizes, estávamos enganados.

Ora bem, a este respeito faz-se muitas vezes notar que aquilo a que temos vindo a
chamar “felicidade” é por estas razões uma tradução infeliz da palavra eudaimonia de
Aristóteles, que seria mais adequadamente traduzida por “florescimento” ou “vida boa”
ou “vida bem-sucedida.” Esta questão quanto à tradução pode contudo tornar-se
facilmente um exagero: Aristóteles tem consciência de que as pessoas discordam quanto
à natureza da eudemonia, que “a multidão não responde como os sábios” (Ética a
Nicómaco 1095a 21-22), porque pensam que “é uma coisa óbvia e manifesta” (Ética a
Nicómaco 1095a 22). Ora, isto é o mesmo que dizer que as pessoas discordam quanto
ao que é a felicidade, e que algumas pessoas, irreflectidas, presumem pura e
simplesmente, sem qualquer garantia, que a sua natureza é simples e visível para todos.
Da perspectiva de Aristóteles, não se deve aceitar esta posição sem debate.

O que realmente conta nesta discussão não é se traduzimos eudaimonia por “felicidade”
nem se não, mas se, concordando chamar “felicidade” a seja o que for que satisfaça os
critérios do bem último, podemos evidenciar um estado ou actividade à altura desse
papel. A primeira posição de Aristóteles com respeito a isto é que as concepções
subjectivas de felicidade não cumprem este papel. Por vezes os nossos desejos são
satisfeitos, mas em vez de sentirmos prazer ou satisfação, ficamos na verdade perplexos
connosco mesmos, por vezes até ao ponto de nos alienarmos de nós mesmos. Um
homem que deseja mais do que tudo um carro desportivo amarelo, tudo sacrificando
para o obter, pode perguntar-se, depois de o ter, por que razão exactamente o queria
com tanta intensidade. Além disso, mesmo quando nos sentimos realmente satisfeitos
por satisfazer os nossos desejos, podemos na verdade ter desejos que não são dignos de
nós. Este aspecto é menos óbvio, mas uma vez mais pode valer a pena adoptar a
perspectiva da terceira pessoa para ver por que razão Aristóteles procede deste modo.
Uma mulher pode estar preocupada com o seu filho querido, porque ele não está a viver
de modo a fazer jus ao seu potencial. Ela sabe de modo imparcial que o seu filho é
muito inteligente, excepcionalmente talentoso, e superior nas suas capacidades atléticas
naturais. Contudo, também vê que o seu filho está tão ansioso por impressionar os seus
amigos boémios que está propositadamente a ter maus resultados, por desejar
ardentemente sentir-se aceite. Uma mãe assim ajuizará correctamente que o seu filho
não está a florescer, que não está a viver a vida rica que poderia viver. Se o filho a
considerar intrometida e lhe disser que é feliz e que quer que o deixem em paz, poderá
muito bem não estar em posição de ajuizar correctamente a sua circunstância, em
virtude da sua obstinação cega. Se alguém agora quiser insistir que o adolescente é
contudo feliz, então basta sublinhar que não está em condição de satisfazer os critérios
do bem último que aceitámos. Uma vez mais, não vale a pena fazer uma questiúncula
sobre se devemos traduzir eudaimonia por felicidade. O que conta quanto ao caso em
questão é se o rapaz está a ter a melhor vida que pode, se aquilo a que chama felicidade
satisfaz de facto os critérios do bem humano último que aceitámos.

Na verdade, insiste Aristóteles, podemos ver que algumas concepções comuns de


felicidade não obedecem a estes critérios, e consequentemente têm de ser postos de
lado. Um desses é obviamente a vida de quem se dedica a fazer dinheiro (Ética a
Nicómaco 1096a 6-11). Aristóteles não desacredita neste contexto o dinheiro em si mas
observa, correctamente, que é um bem instrumental. Se é meramente um instrumento,
então o dinheiro não é digno de escolha em si mesmo e portanto viola o primeiro dos

6
nossos critérios, nomeadamente que o bem último seja escolhido por si. Caso se
responda que o dinheiro é mesmo assim uma coisa boa, em virtude do que permite
obter, Aristóteles poderá estar disposto a concordar; mas então teremos de voltar a
nossa atenção para as coisas que o dinheiro compra para determinar se podem constituir
o bem último. Aristóteles tem outras reservas sobre a vida de honra (Ética a Nicómaco
1095b 23-1096a 4). Certamente que viver honradamente é uma coisa boa. Mesmo
assim, se procurarmos a honra como um bem em si, estaremos a ceder a nossa
felicidade aos caprichos alheios: as pessoas podem ser volúveis e tolas, honrando por
vezes quem não tem valor e não honrando quem o tem. O bem final, em contraste, é
algo “genuinamente nosso e difícil de nos ser tirado” (Ética a Nicómaco 1095b 24-26).
Parece, então, que a honra não é completa (teleion) nem auto-suficiente (autarkês). Em
qualquer caso, a sua presença, que poderá ser ardilosa, não é suficiente para que nada
falte a uma vida.

Talvez o candidato mais forte ao estatuto de bem final seja o prazer. Afinal, o prazer é
uma coisa boa, e é escolhido por si mesmo e não por qualquer outra coisa além de si.
Além disso, é geralmente encarado como a melhor coisa da vida, aquilo que na verdade
procuramos acima de qualquer outra coisa. Para compreendermos a atitude de
Aristóteles perante o prazer é necessário e instrutivo reconhecer até que ponto o seu
objectivismo ético se baseia na sua teoria psicológica subjacente.6 Vimos que
Aristóteles reconhece que todos os seres vivos têm alma, mas supõe também haver uma
hierarquia entre os seres vivos, começando com as plantas, que têm apenas nutrição,
passando pelos animais inumanos, que acrescentam a percepção à nutrição, e acabando
nos seres humanos, que são também racionais. Isto explica por que razão Aristóteles usa
uma linguagem bastante dura com respeito aos hedonistas:

A multidão mais grosseira considera que o bem e a felicidade é o prazer, e


consequentemente adoram uma vida de gratificação […] Assim, parecem
completamente escravizados, dado escolherem uma vida que pertence aos ruminantes.
Mas têm realmente um argumento em sua defensa, dado que muitos dos poderosos […]
têm a mesma convicção. (Ética a Nicómaco 1095b 16-23)

Os hedonistas encaram-se como vacas, ruminando nos campos, vivendo pelo prazer e
por nada mais.

Ao rejeitar a perspectiva da multidão, Aristóteles não está apenas a ser desdenhoso com
a sua retórica arrogante. O que ele quer dizer é que quem procura apenas o prazer ignora
o facto de serem animais racionais, dando-se ao invés a si mesmos o género de
gratificação possível para quem é destituído de mente. Ao falar desse modo, Aristóteles
parece sublinhar o prazer físico em detrimento do intelectual, e parece sugerir que quem
procura o prazer se situa numa posição inferior na hierarquia das almas, pois limita-se à
gratificação sensual na ausência de actividade intelectual. Um modo de ajuizar a
correcção da perspectiva de Aristóteles é conceber a possibilidade (talvez não muito
distante) de um comprimido cor-de-rosa do prazer. Dão-nos a possibilidade de tomar
um comprimido cor-de-rosa do prazer. Se o fizermos, sentiremos prazer físico para o
resto dos nossos dias. Contudo, nada faremos, não formaremos planos, não
procuraremos atingir fins. Limitar-nos-emos a sentar-nos num sofá para o resto dos
nossos dias, sentindo prazer, sendo alimentados, e sendo lavados uma vez e outra.
Todos os nossos dias serão de prazer, apesar de termos abdicado de toda a actividade e
de toda a associação autêntica.

7
Escolhemos tomar o comprimido cor-de-rosa do prazer ou não?

A pergunta não é, é claro, um argumento, mas um simples apelo à intuição. Mesmo


assim, se não escolhemos tomar o comprimido cor-de-rosa do prazer, isso indica que
não estamos inclinados a encarar pelo menos esta forma de prazer como o melhor que a
vida tem para oferecer. Pensamos que as nossas vidas têm possibilidades mais elevadas,
que o bem final para os seres humanos nos leva para lá do domínio do prazer físico. O
prazer, note-se de novo, é de facto bom. Não é isso que está em questão. O que está em
questão é saber se é o bem último para os seres humanos. A teoria psicológica de
Aristóteles fornece razões para adoptar uma teoria ética que não eleve o prazer a essa
posição.

Vimos assim até agora Aristóteles fazer o seguinte: argumentou que há um bem último
para os seres humanos; estabeleceu critérios pelos quais quaisquer pretendentes a este
papel possam ser avaliados; e permitiu que possamos considerar que o bem último é a
felicidade, ou eudemonia, mas insistindo que algumas concepções de felicidade,
consideradas como o bem humano último, podem ser superiores a outras; insistiu que as
concepções subjectivas de felicidade devem ser rejeitadas a favor de concepções
objectivas; e argumentou que, dadas estas exigências, há três concepções amplamente
aceites de felicidade — vidas de dedicação ao dinheiro, à honra e ao prazer físico —
não estão à altura do que se pretende. A sua rejeição do prazer físico foi especialmente
importante na medida em que usou livremente a metafísica da psicologia humana
desenvolvida no enquadramento hilomórfico do seu De Anima. Neste ponto, Aristóteles
pressupõe que tem justificação para apelar às características essenciais dos seres
humanos para tentar explicar qual é a melhor forma de vida à nossa disposição.
Aristóteles não tenta mostrar que devemos de facto desejar a melhor forma de vida à
nossa disposição, pois dá como garantido que as pessoas querem o que é de facto bom
para elas e não apenas o que parece bom sem que o seja de facto. O que é realmente
bom para os seres humanos, contudo, é determinado pelo que os seres humanos são por
natureza. A natureza dos seres humanos só se revela, contudo, reflectindo nas estruturas
teleológicas em termos das quais a função humana pode ser especificada e
compreendida.

3. Felicidade e a função humana


Pode ser surpreendente que os seres humanos tenham uma função. Os computadores e
os abre-latas têm funções: computar e abrir latas. Sabemos que estes tipos de artefactos
têm funções, e não temos dificuldade em identificá-las, pela simples razão de que lhes
demos as suas funções. Concebemo-los com os propósitos que têm.7 Aristóteles nega
que os seres humanos tenham sido concebidos por qualquer forma de agente
intencional; mas insiste mesmo assim que as causas finais ocorrem na natureza na
ausência de desígnio inteligente.8 Sendo assim, deverá ser possível identificar uma
função humana, que por sua vez forneça uma base de uma concepção funcional do bem
humano. Isto é, tal como podemos facilmente dizer que um bom abre-latas é um abre-
latas que abre latas bem, deveremos igualmente ser capazes de dizer que um bom ser
humano é um ser humano que executa bem a função humana. A chave é, então,
especificar a função humana.

Aristóteles tem consciência de que poderá haver dúvidas quanto a isto, mas pensa que
as podemos ultrapassar:

8
Dizer que a felicidade é o bem mais elevado talvez pareça uma trivialidade e o que se
quer é uma expressão muito mais clara do que é tal coisa. Talvez isto surja caso se
identifique a função [ergon] de um ser humano. Pois tal como o bem, e o bom sucesso,
de um flautista, de uma estátua e de todo o tipo de profissão — e, em geral, de seja o
que for que tenha uma função e uma acção característica — parece depender da função,
o mesmo parece verdade no que respeita ao ser humano, se de facto um ser humano
tiver uma função. Ou terão o carpinteiro e o sapateiro as suas funções, ao passo que um
ser humano nenhuma tem, sendo ao invés naturalmente sem função [argon]? Ou então,
tal como parece haver uma função particular para o olho e para a mão e em geral para
cada uma das partes de um ser humano, deveremos igualmente postular uma função
particular para o ser humano, além de todas essas funções particulares? O que poderia
ser tal coisa? Pois viver é comum até às plantas, ao passo que queremos algo
característico [idion]; assim, devemos pôr de lado a vida de nutrição e crescimento.
Depois viria um género qualquer de vida de percepção, mas também isto é comum ao
cavalo e ao boi e a todos os animais. O que resta, consequentemente, é uma vida de
acção que pertença ao género de alma que tem razão. (Ética a Nicómaco 1097b 22-
1098a 4)

Aristóteles começa por fazer notar que tal como os artesãos têm funções (um
canalizador trata dos canos, um programador faz programação), também as partes do
corpo as têm; além disso, quanto às coisas que têm funções, ajuizamos o seu bem em
termos funcionais (um bom canalizador trata bem dos canos, um mau trata mal deles, e
um bom olho vê bem, e um mau vê mal). Consequentemente, se os seres humanos têm
uma função, saberemos qual é o seu bem quando soubermos qual é essa função. E
sabemos que função é essa, defende Aristóteles, quando sabemos o que é único ou
característico (idion) dos seres humanos — sendo que, contudo, o que se admite como
peculiar ou único irá receber um tratamento técnico.

A identificação do bem humano assume por isso a forma do seu argumento da função
(AF):

1. A função de qualquer categoria x é determinada isolando a sua actividade única


e característica;
2. A actividade única e característica do ser humano é o raciocínio;
3. Logo, a função dos seres humanos é (ou envolve principalmente) o raciocínio;
4. Exercer uma função é uma actividade (sendo que, nos seres humanos, isto será a
actualização de uma capacidade da alma);
5. Logo, o exercício da função humana é uma actividade da alma de acordo com a
razão.

O argumento da função revelou-se controverso, nomeadamente porque muitas pessoas


pensam que não é persuasivo. Algumas das dificuldades do argumento — mas nem
todas — resultam de incompreensões.

Tratando primeiro de objecções que se baseiam em incompreensões, deve-se ter


consciência primeiro de tudo que o AF não está em si a tentar provar que os seres
humanos têm uma função. Pelo contrário, nesta parte da Ética a Nicómaco Aristóteles
está a usar a análise hilomórfica dos seres humanos como substâncias, análise articulada
e defendida na sua Física, Metafísica e De Anima. Um aspecto central desta concepção
é que os tipos, incluindo os organismos, são individuados funcionalmente em virtude de

9
terem causas finais. O argumento pressupõe, mas não tenta apoiar, o esquema
explicativo de Aristóteles baseado nas quatro causas, fazendo um uso especial do papel
nele desempenhado pela explicação teológica. Assim, o argumento propõe-se
identificar a função que a teleologia de Aristóteles lhe dá autorização para pressupor
que temos.

Podemos reconhecer isto, ou pelo menos conceder os pressupostos teleológicos do


argumento, mas considerar que é objectável nos seus próprios termos. Em particular,
AF-1, a afirmação de que a função de qualquer categoria dada x se determina isolando a
actividade única e característica de x, parece perversa. Um tipo de entidade pode
obviamente fazer várias coisas únicas sem que essa actividade seja considerada a sua
função. Só os seres humanos, ao que parece, conduzem Cadillacs enormes. Sendo
assim, será conduzir Cadillacs a função humana? Outro exemplo: talvez só os membros
da espécie humana troquem dinheiro pela gratificação sexual. Se da AF-1 se segue que
a função dos seres humanos é a prostituição, então o AF já descarrilou mesmo antes de
começar.

Mas a AF-1 não implica tal coisa. Ao defender que procuramos a actividade única ou
característica de uma categoria, Aristóteles tem em mente algo muitíssimo mais forte.
Primeiro, que alguns membros de uma espécie se entreguem a actividades que nenhuns
membros de outras espécies executem dificilmente faz dessa uma actividade
característica da primeira espécie. Na verdade, a palavra que foi parafrasticamente
traduzida por “único ou característico” em FA-1, nomeadamente idion, é algo que já
vimos a desempenhar o seu trabalho técnico na teoria da essência de Aristóteles.9
Recorde-se que um idion é um género especial de propriedade, uma propriedade
necessária mas não essencial que emana da essência de uma coisa; por exemplo, é um
idion dos seres humanos o serem capazes de entender gramáticas ou de rir, sendo que
ambos estes traços são explicáveis pela essência dos seres humanos, nomeadamente a
racionalidade. Neste contexto, é duvidoso que Aristóteles esteja a apelar ao sentido
técnico completo do termo, mas é claro que tem em mente consideravelmente mais do
que seja o que for de único que por acaso, contingentemente, algo faz. Ao invés,
Aristóteles visa identificar a função quando nos concentramos no que a coisa faz
caracteristicamente, de modo central. Os abre-latas podem também servir de pesa-
papéis, mas o seu idion não é desempenhar este papel. Se por acaso acontecesse que
todos os ruivos e só eles fossem flautistas profissionais, não seria mesmo assim idion
dos flautistas ter cabelo ruivo. No mínimo, temos a expectativa de que o que é
característico de uma categoria F funcionalmente determinada tenha conexão com a
função e essência dessa categoria. É por isso que Aristóteles recomenda que quando
estamos interessados em identificar a função dos seres humanos devemos dar atenção ao
que é peculiar ou característico dos seres humanos. Fazê-lo fornecerá uma via para a
essência, e assim uma via para a causalidade final.

AF-2 afirma que o que fazemos permite-nos identificar a actividade única e


característica dos seres humanos como raciocínio. De um certo ponto de vista mais
distanciado, podemos perguntar-nos se Aristóteles não estará a ser injusto para com os
animais inumanos, dado que como aprendemos com a etologia cognitiva, há muitas
outras espécies que se entregam a todo o tipo de raciocínio meios-fins, podem
manipular símbolos simples, etc. Ora, Aristóteles simpatiza afinal com estes géneros de
sugestões, dado ter ficado tão impressionado com o comportamento animal que
considera que as suas actividades perceptuais são cognitivamente ricas (De Generatione

10
Animalium 733a 1); mas por outro lado Aristóteles não simpatiza com tais ideias, pois
aceita que é óbvio que só os seres humanos se entregam à filosofia natural, à
matemática superior e à especulação metafísica. Não é preciso aceitar que há uma
distinção radical entre actividades cognitivas superiores e inferiores para aceitar que há
uma distinção relevante a fazer. Além disso, dada a tese da determinação funcional de
Aristóteles, caso se viesse a revelar que alguns animais inumanos, fossem animais ou
alienígenas, eram racionais, então eles partilhariam simplesmente o bem humano
funcionalmente determinado. A plasticidade da sua concepção de pertença a uma
categoria combate automaticamente o provincianismo.

Em qualquer caso, o bem humano é o raciocínio. AF-3 usa esse compromisso, mas está
concebida para não se comprometer quanto à questão de como compreender o exercício
da função humana, em termos estritos ou latos. Ou seja, tal como está formulada, esta
conclusão provisória sustenta que a função dos seres humanos é idêntica ao raciocínio
ou apenas o envolve centralmente. Em termos estritos, isto seria o mesmo que afirmar
que o bem humano se esgota na actividade racional, que o bem humano consiste no
raciocínio matemático ou em filosofar. Tomado de modo abrangente, o bem humano
pode ser simplesmente uma expressão da razão numa vida bem ordenada, de modo que,
por exemplo, uma vida dedicada à política pode ser conduzida racional ou
irracionalmente, sendo que a realização racional de uma vida política seria considerada
uma expressão admirável do bem humano. Neste ponto, não precisamos de decidir
como Aristóteles poderá estar a conceber a actividade racional,10 notando apenas que
AF tem como resultado a conclusão de que a função humana é uma actividade da alma
conduzida de acordo com a razão, ou seja, consiste em viver uma vida que seja uma
expressão da natureza essencial do género humano, nomeadamente a racionalidade.

Assim, conclui Aristóteles, o bem humano consiste em conduzir um género de vida


característica e completamente humano. Esta conclusão sublinha três características
distintivas da concepção que Aristóteles tem da felicidade humana. Primeiro, a
felicidade humana é um tipo de vida e é por isso uma actividade e não um estado
passivo ou uma experiência de afecção; a felicidade é um fazer e não um ser. Isto é, a
melhor forma de vida é activa e não passiva. Esta é outra razão pela qual um ser
humano não aceitaria, depois de reflectir, um comprimido cor-de-rosa do prazer: sentir
prazer é um estado de afecção, ao passo que a melhor forma de vida humana envolve a
execução de planos e projectos. Se nos parece que não estaríamos a viver a melhor vida
que podemos viver ficando sentados num sofá, catatónicos, mas sentindo-nos bem,
então isto pode reflectir alguma aceitação do pensamento de Aristóteles de que a melhor
vida consiste em ter uma actividade e não em ser afectado.

A segunda característica distintiva já a encontrámos, mas podemos agora compreendê-la


melhor: as condições da felicidade são objectivamente dadas. Não escolhemos as nossas
essências. Se um existencialista tentasse inverter esta ordem sugerindo com bravura que
“a existência precede a essência,”11 Aristóteles objectaria apenas que chegamos a este
mundo como seres racionais, capazes de nos entregarmos às actividades características
do nosso género. Dado que não escolhemos o nosso género, não escolhemos os nossos
fins; e dado que não escolhemos os nossos fins, não escolhemos o nosso bem mais
elevado. Claro que Aristóteles não sugeriu em lugar algum que não podemos escolher
como queremos procurar o nosso bem. Pensando no bem humano em termos
abrangentes, vemos que há miríades de caminhos para exprimir a nossa essência, em

11
filosofia, nas artes, na política, na engenharia, e assim por diante. Há muitas maneiras
de um harpista tocar harpa bem, mas soprar numa tuba não é uma delas.

Finalmente, estas duas características distintivas combinam-se para dar origem a uma
terceira. Aristóteles pensa que a felicidade humana abrangerá grandes porções da vida,
talvez até toda uma vida. Cita aprovadoramente um dictum famoso de Sólon: “Olha para
o fim” (Ética a Nicómaco 1100a 10-11). Apesar de ser possível ajuizar um estado de
afecção episodicamente, a expressão de uma essência parece prolongar-se
necessariamente no tempo. Isto é, podemos dizer, sem temer a contradição, que tivemos
uma experiência de prazer ontem à noite às 22:15 quando comíamos a sobremesa. A
felicidade, enquanto expressão activa de um fim objectivamente dado, não é desse
modo. Não consideramos que alguém é um grande violinista com base em algumas
notas bem interpretadas, mesmo que consideremos que foram excepcionalmente bem
interpretadas; o juízo de que alguém é um grande violinista exige mais. Nem diremos
que alguém é vegetariano por não ter comido carne no período entre o pequeno-almoço
e o almoço, especialmente se comeu salsichas ao pequeno-almoço e conta comer um
hambúrguer ao almoço. Tal juízo só pode ser feito na base de um padrão estável de
actividade ao longo de um período adequadamente longo de tempo. O mesmo ocorre
com os juízos de felicidade. Se esta sugestão provoca alguma indignação, trata-se na
verdade apenas de uma consequência do carácter objectivo da felicidade aristotélica.
Dizemos na verdade, por exemplo, “Estava feliz antes de teres telefonado esta manhã.”
Uma vez mais, não vale a pena ser picuinhas quanto à nossa maneira irreflectida de
falar. Contudo, para captar o modo como Aristóteles concebe a felicidade como a
melhor vida para os seres humanos, podemos fazer notar que seria estranho dizer
“Estava a ter uma vida que era a expressão activa da minha essência enquanto ser
racional antes de teres telefonado esta manhã.” Claro que podemos imaginar uma
situação em que alguém poderia ser induzido a proferir tal frase, mas não é fácil.

Em qualquer caso, uma vez identificada a função humana nestes termos, é um pequeno
passo para Aristóteles caracterizar o bem humano na sua expressão canónica (Ética a
Nicómaco 1098a 161-17):

O bem humano =df uma actividade da alma que exprime a razão de um modo virtuoso.

O súbito aparecimento de um apelo à virtude pode ser perturbador. Até agora temos
falado do bem humano e do nosso impulso para a felicidade sem mencionar de modo
algum a conduta virtuosa. Na verdade, o apelo de Aristóteles à virtude neste contexto
não é de modo algum deslocado. Ao falar de “virtude” neste contexto, Aristóteles está
antes de mais a pensar em virtude no sentido de excelência. Isto é, a palavra de
Aristóteles para “virtude,” aretê, permite-lhe facilmente conceber a virtude não apenas
no sentido moral estrito, mas também num sentido não moral mais lato também
presente na semântica da língua portuguesa, apesar de não tão proeminentemente quanto
em grego (“Uma das suas virtudes como médica era que a sua técnica de diagnostico era
rápida e irrepreensível.”) Assim, a sua concepção do bem humano é equivalente à
afirmação de que consiste na mais excelente expressão das características racionais
essenciais à alma humana. A melhor vida para os seres humanos é uma vida que
exprime, do modo mais excelente, aquelas características que nos fazem distintamente
humanos. Dado que a felicidade, ou eudemonia, é este bem mais elevado, é de esperar
que seja desejado por si mesmo e por nenhuma outra coisa, ao passo que os outros bens
são desejados pela felicidade, e é de esperar que a sua presença torne a vida completa e

12
sem nada lhe faltar. Pois estas são, afinal, as condições estabelecidas para a felicidade, e
em termos das quais outros candidatos foram afastados.

4. As virtudes de carácter
Uma vida feliz é uma vida excelentemente, ou virtuosamente, vivida. Segue-se, sugere
Aristóteles, que uma concepção da felicidade exige uma concepção da virtude ou
excelência (aretê) (Ética a Nicómaco 1102a 5-7). Visto que, contudo, a felicidade é
uma expressão das faculdades da alma, as formas da excelência a investigar não
abrangem as que dizem respeito ao corpo. Um corpo excelente poderá ser o que tem um
bom sistema cardiovascular ou um tracto digestivo eficiente, mas temos estes géneros
de excelências em comum com os animais inumanos, de modo que dificilmente são
únicos ou característicos dos seres humanos. As formas da excelência ou da virtude que
exigem consideração são as que dizem respeito à alma humana, que é uma alma
racional. Uma concepção da felicidade irá dar lugar a uma concepção das virtudes que
pertencem à alma racional (Ética a Nicómaco 1106a 16-26).12

É um lugar-comum que a alma humana não é pura ou exaustivamente racional. É


natural e fácil distinguir entre a razão e a paixão, entre a razão e o desejo ou apetite, ou
entre a cabeça e o coração, para usar uma expressão popular. Estes contrastes não são
idênticos; e carecem de precisão. Pelo contrário, cada um exige clarificação e defesa,
especialmente quando os agentes fazem apelo a tais distinções ao procurar
desculpabilizar a sua má conduta (“Desculpa. Não sei o que me deu. Estava tão
zangado. Não estava em mim.”). No entanto, é natural supor, como Platão insistiu na
República, que diferentes partes da alma podem entrar em conflito e dar origem a
diferentes géneros de acções. O apetite impele-me a beber esta água, ao passo que a
razão me faz parar para considerar se esta água estará contaminada. Outros tomaram de
assalto este pensamento popular e filosófico insistindo, com Hume,13 que a razão e as
paixões não podem entrar em conflito, porque a razão é motivacionalmente inerte, ao
passo que as paixões compelem por natureza. Os indícios favoráveis a este modo de
pensar surgem supostamente do facto de que podemos raciocinar correctamente que
uma mudança quase imperceptível nos padrões de vida do primeiro mundo poderia
eliminar a pobreza do terceiro sem que se faça algo nessa direcção. A razão calcula mas
não dirige; as paixões motivam, mas não reflectem sobre os seus fins.

Estas atitudes diferentes perante a motivação humana evidenciam as areias movediças


da psicologia moral. Aristóteles aceita uma posição moderada, afastando-se dos
extremos de Hume, mas reconhecendo a perspectiva popular de que algumas partes da
alma são racionais e outras não. É fácil ver que algumas partes não são racionais, dada a
teoria proposta no De Anima: a alma nutritiva não é racional nem irracional, mas apenas
arracional. Mesmo assim, sugere Aristóteles, podemos identificar correctamente uma
parte arracional da alma, o lugar do apetite e do desejo, que pode realmente entrar em
conflito com a razão, apesar de poder também responder à razão e ser integrada nos seus
planos práticos numa vida bem ordenada. Aristóteles oferece como indício a favor desta
perspectiva o facto de falarmos livremente de pessoas que controlam os seus impulsos e
desejos, contrastando-as com quem sucumbe habitualmente às pontadas do desejo,
ficando depois cheios de arrependimento e remorsos (Ética a Nicómaco 1102a 28-
1103a 3).14 Aristóteles sugere que a menos que estejamos prontos a rever fortemente o
modo como encaramos a psicologia motivacional, devemos aceitar tanto as partes

13
racionais quanto as partes arracionais da alma, aceitando que podem entrar em conflito
mas que podem também ser harmonizadas entre si num agente unificado.

Estas distinções no seio da alma encontram correlatos na nossa concepção da virtude.


Dado que identificámos uma parte da alma que é puramente racional e outra que é
arracional mas que pode ouvir a razão, é de prever que os tipos de virtude atribuídos a
cada uma delas são diferentes. Em geral, vemos no De Anima que a razão pode ser
teórica ou prática (De Anima 431a 8-17, 432b 27-433a 1, 433a 14-16), e Aristóteles
reafirma-o na Ética a Nicómaco (1139a 26-35). A esfera teórica não lida com a acção,
mas antes com a compreensão; a esfera prática, em contraste, diz respeito ao que fazer,
à acção a levar a cabo e quando. Assim, conclui Aristóteles: “A virtude é de dois
géneros, intelectual e moral” (Ética a Nicómaco 1103a 14-16). As virtudes morais são
as que dizem respeito ao carácter,15 mas não se limitam à parte arracional da alma
tomada isoladamente da racional. Pelo contrário, uma pessoa que seja totalmente
virtuosa em termos do seu carácter integrará na sua parte arracional os fins da sua parte
racional. Centrando-se primeiro nas virtudes de carácter, Aristóteles desenvolve uma
análise geral da virtude moral visando não a análise teórica como fim em si, mas a
melhor rota para nos tornarmos pessoas melhores. Afinal, argumenta, o propósito da
teoria ética é ajudar-nos a tornarmo-nos bons (Ética a Nicómaco 1103b 26-34). Tendo
este fim em vista, Aristóteles apela a uma doutrina sui generis ancorada no pensamento
de que a virtude visa um tipo de habituação, o inculcar de estados de carácter fortes e
profundamente enraizados, de um modo semelhante ao que encontramos na produção
dos diferentes ofícios. Isto é, se o nosso objectivo for produzir pessoas boas e decentes,
e se a sua bondade e decência de carácter consiste em exprimir virtudes estáveis de
carácter, podemos guiar-nos pelo que acontece na produção de ofícios para ver a melhor
maneira de sermos bem-sucedidos. Aristóteles observa que quando vemos a produção
bem-sucedida de um ofício qualquer, digamos uma mesa bonita executada com mestria
por um carpinteiro jornaleiro, vemos que concordamos que se atingiu um tipo de
equilíbrio ou proporção: acrescentar ou subtrair algo iria piorar o produto (Ética a
Nicómaco 1106b 8-16). Assim, talvez com base nesta analogia demasiado ténue,
Aristóteles argumenta que uma virtude realizada alcança um meio-termo entre o excesso
e a deficiência.

Juntando estes diferentes aspectos, Aristóteles oferece uma concepção geral da virtude
moral, ou da virtude de carácter:

A virtude é um estado do género que emite decisões, consistindo no meio-termo relativo


a nós, determinado por um raciocínio do género certo, que é a razão em termos da qual
uma pessoa sábia (o phronimos) o determinaria. É um meio-termo entre dois vícios, o
do excesso e o da deficiência. (Ética a Nicómaco 1106b 36-1107a 6; cf. 1138b 18-20)

Apesar de Aristóteles não apresentar um argumento cuidadoso a favor da sua


concepção, oferece considerações a favor de cada uma das suas componentes. Para
compreender a sua concepção temos de ter em consideração pelo menos brevemente
cada um dos seguintes aspectos:

• A primeira componente é que a virtude é um estado (hexis). Aristóteles


argumenta brevemente que a virtude tem de ser ou um sentimento (pathos), ou
uma capacidade (dunamis) ou um estado (hexis). Não pode ser um sentimento,
porque se considera que as pessoas são excelentes ou terríveis com base na sua

14
manifestação da virtude ou do vício, mas não por terem sentimentos de um ou
outro género. Além disso, a virtude não pode ser uma mera capacidade, dado
que somos por natureza dotados de capacidades e só nos tornamos virtuosos
pelo exercício e pela habituação. Logo, a virtude tem de ser um estado (hexis),
uma condição de carácter adquirida mas enraizada, que se alcança por meio do
desenvolvimento guiado e da habituação (Ética a Nicómaco 1105b 20-1106a
13).
• A virtude é o tipo de estado que emite decisões (hexis prohairetikê). Aristóteles
está aqui a falar de um modo bastante técnico, usando um termo que noutros
passos indica que envolve estarmos num estado que pressupõe uma deliberação
anterior (Ética a Nicómaco 1112a 14-16). Não está a sugerir, contudo, que a
conduta virtuosa exige deliberação imediatamente antes da acção. Pelo
contrário, a acção virtuosa resulta directamente de um estado enraizado. O que
Aristóteles quer dizer é que um estado virtuoso é aquele que, tendo sido guiado
pela deliberação ao ser inculcado, é o género de estado que tem como resultado
a acção decisiva.
• A virtude é determinada pelo raciocínio do género certo (orthos logos),
raciocínio que pode ter como resultado uma direcção geral da conduta numa
situação geral, apesar de não numa regra determinada ou de pormenor para todas
as situações (cf. Ética a Nicómaco 1138b 18-1140b 24).
• Este género de raciocínio certo é precisamente o que uma pessoa inteligente, ou
uma pessoa de entendimento ou de sabedoria prática (phronimos), faria na
situação em causa. Tal pessoa consegue apreender o que é realmente verdadeiro
quanto ao que é bom ou mau para um ser humano, de modo que não será vítima
de confusões imprudentes. Aristóteles não está a dizer que a pessoa inteligente
determina por fiat o que é certo, mas antes que, dado que essa pessoa inteligente
caracteristicamente reconhece o que é certo, é uma boa ideia seguir na sua
peugada (cf. Ética a Nicómaco 1140a 25-b6).
• Finalmente, a virtude é o meio-termo (mesotês) entre extremos, mas apenas
relativamente a nós. Ao falar de um meio-termo relativo a nós, Aristóteles está a
sugerir que um agente tem de olhar para si mesmo e para o seu contexto ao fazer
uma determinação. Assim, seria errado apoiar-se numa fórmula puramente
quantitativa. Se seis é o meio-termo entre dez e dois, não devemos inferir que
devemos comer seis pedaços de pizza, com base na ideia de que dez seria
excessivo e duas seria pouco. O que devemos comer depende dos factos que nos
são peculiares, do nosso peso, da rapidez do nosso metabolismo e assim por
diante. Talvez o lutador Milo deva comer seis pedaços de pizza, porque isso
seria saudável para ele; mas isto não seria a quantidade média para a maior parte
das pessoas. Aplicada às virtudes de carácter, a sugestão de Aristóteles seria que
não há, por exemplo, uma quantidade determinada de indignação moral
adequada a todos os agentes em todos os contextos. Uma grande indignação é
excessiva quando um criado nos dá uma colher errada para comer uma toranja,
mas não é inadequada se o mesmo criado, sem qualquer provocação, nos disser
que gostaria de abusar sexualmente da nossa filha.

Entre estas componentes, a mais peculiar é a doutrina do meio-termo, que por isso
requer mais desenvolvimentos.

Aristóteles observa que não procuramos o meio-termo em todas as circunstâncias, nem


procuramos o meio-termo sob qualquer descrição possível da acção em causa. Algumas

15
acções são vis, independentemente do resto: não praticamos adultério com a vizinha
certa no momento certo e na quantidade certa. Como o seu próprio nome sugere, o
adultério é um vício (Ética a Nicómaco 1107a 9-25). O que Aristóteles tem em vista
aqui tem uma dimensão substancial e outra não substancial. No lado não substancial,
Aristóteles está pura e simplesmente a assinalar que um meio-termo só existe
relativamente a algumas descrições de acções, mas não a outras. Apesar disso, um juízo
sobre que descrições se deve usar reflecte já um juízo sobre o que se deve considerar
bom ou não — tal como o adultério é sempre considerado vil. Talvez, contudo,
aceitemos o que Aristóteles pensa quando discutimos, por exemplo, se uma morte foi
homicídio voluntário ou involuntário, pressupondo-se nesse caso que se foi voluntário é
mais repreensível do que se foi involuntário. Mesmo assim, há alguma dificuldade sobre
quando é apropriado seleccionar descrições que pressupõem que uma acção é tão
completamente viciosa que não se situa em qualquer contínuo no qual a virtude ocupe a
posição do meio.

Reconhecendo isso, a doutrina do meio-termo de Aristóteles compreende-se melhor em


relação às virtudes individuais, como ele mesmo insiste. Ao apresentar a sua teoria,
Aristóteles descobre ser necessário recorrer a neologismos e apropriações da linguagem
comum. Aristóteles não pensa que isto é problemático, dado comentar que em alguns
casos os extremos não têm nome (Ética a Nicómaco 1107b 2). Isto pode resultar
simplesmente do facto de que raramente ou nunca encontramos pessoas com
deficiências em algumas dimensões. Em qualquer caso, Aristóteles irá sugerir que onde
a temeridade e a cobardia são a deficiência e o excesso, a coragem é o meio-termo;
entre a autocomplacência e a privação, a moderação é o meio-termo; onde se controlam
grandes somas de dinheiro, entre os excessos da ostentação e da avareza está o meio-
termo da magnificência; mas quando estão em causa somas menores, entre o
esbanjamento e a sovinice está a generosidade (Ética a Nicómaco 1107a 32-1108a 31).
Nestes e noutros casos semelhantes Aristóteles pensa que é em princípio possível pôr a
acção virtuosa num contínuo, ainda que as suas extremidades não sejam reconhecidas
no discurso popular.

Consequentemente, a doutrina do meio-termo de Aristóteles foi objecto de críticas, por


vezes com base na ideia de que é forçada ou artificial, e consequentemente talvez
insuficientemente geral. O primeiro tipo de crítica nesta direcção não tem grande peso.
O facto simples de não termos nomes para alguns dos excessos ou deficiências tem
pouca importância a menos que se possa mostrar que os únicos excessos ou deficiências
de carácter são as que por acaso reconhecemos ou nomeámos. O segundo género de
crítica tem mais repercussões.16 Para ver o problema, considere-se a virtude da
honestidade. Se concordarmos que é uma virtude, então não parece haver um excesso
óbvio relativamente ao qual a deficiência correspondente seja um vício. Isto é, o vício
associado à honestidade é mentir, que é o seu oposto. Assim, mesmo que se inventasse
um excesso, como dizer verdades dolorosas (“Meu Deus, engordaste imenso”), por
exemplo, não parece haver qualquer contínuo que não seja forçado e no final do qual
esteja a mentira. Ora bem, saber quão sério é este problema depende em parte do âmbito
das virtudes que estamos dispostos a ter em consideração. O género de honestidade que
Aristóteles discute na Ética a Nicómaco é apenas um tipo de honestidade relacionada
com a auto-estima, que parece razoavelmente adequada ao seu tratamento preferido.
Trata-se de honestidade relativa aos nossos próprios feitos, caso em que os excessos são
a gabarolice e a autodepreciação (Ética a Nicómaco 1108a 20-23). Contudo, é difícil
determinar que virtudes afinal de contas devemos ter em conta. Numa certa direcção,

16
seria inapropriado permitir que Aristóteles seleccionasse apenas as virtudes passíveis de
tratamento usando a noção de meio-termo; noutra direcção, sem garantia externa, seria
prematuro concluir que o seu enquadramento desaba por não poder lidar com algumas
virtudes aparentes às quais não se adequa. Em qualquer caso, contudo, cabe a
Aristóteles o ónus de fornecer um processo de decisão legítimo para lidar com os casos
disputados. Sem isso, Aristóteles será no mínimo culpado de um infeliz provincianismo
de vistas curtas.17

5. Um quebra-cabeças sobre a acrasia


As virtudes de carácter não esgotam a virtude humana, dado haver igualmente virtudes
do intelecto, que pertencem à parte racional da alma, e que serão também tidas em
consideração. Aristóteles dedica o livro VI de Ética a Nicómaco a esta tarefa, dando
lugar no livro seguinte a uma emaranhada e cativante discussão da acrasia —
incontinência ou fraqueza da vontade, ou simplesmente falta de autodomínio. Recorde-
se que nas suas discussões das virtudes de carácter Aristóteles insistiu que há duas
partes da alma, uma racional e uma receptiva à razão. Um pequeno indício a favor dessa
distinção apelava à experiência comum, em que por vezes damos connosco a violar as
nossas próprias decisões racionais, a ponto de darmos connosco a fazer coisas que
decidimos não fazer (Ética a Nicómaco 1102a 28-1103a 3). Apesar de comuns, tais
experiências são enigmáticas, em parte porque levantam questões sobre as relações
entre as diferentes partes das nossas almas ou dos nossos eus. Suponha-se que decido
fazer exercício físico hoje. Visto o fato de treino e dirijo-me ao ginásio — mas então
decido, a meio do caminho, entrar num bar para tomar uma bebida. Acabo por socializar
em vez de fazer exercício, e de manhã arrependo-me de não ter cumprido, uma vez
mais, o que tinha decidido fazer. Podemos muito bem perguntar-nos: se decidi
anteriormente fazer Φ e agora me arrependo de não ter feito Ψ, que relação tenho com a
pessoa que decidiu, entre antes e depois, fazer Ψ em vez de Φ? Certamente que sou a
mesma pessoa (daí que me arrependa), e entretanto limitei-me a abandonar a minha
decisão anterior de fazer Φ (mas então porquê arrepender-me?). Talvez eu deseje não
ser o género de pessoa que sou; mas então compete-me a mim não ser tal pessoa.

Estes géneros de questões são importantes para Aristóteles porque ele tem a esperança
de captar os fenómenos das nossas vidas tal como as vivemos e porque precisa de
mostrar como as faculdades racionais e não racionais das nossas almas se intersectam
para tornar praticável uma vida humana plena de florescimento. Aristóteles tem
algumas dificuldades na caracterização da acrasia, e exibe alguma ambivalência quanto
à melhor maneira de a conceber. Por um lado, critica Sócrates, que tinha argumentado
no Protágoras contra a possibilidade da acrasia, pelo menos contra o pano de fundo de
um certo tipo de agência muitíssimo unificada.18 O argumento de Sócrates nesta
direcção, adverte Aristóteles, “contradiz as aparências manifestas” (Ética a Nicómaco
1145b 27-28). Isto pode parecer razoável: certamente que temos por vezes falta de força
de vontade. Na verdade, para muitos de nós, o ciclo da acrasia é infelizmente bem
conhecido: resolvemos adoptar um curso de acção a de preferência a b porque
acreditamos que a é, tendo tudo o resto em consideração, preferível a b, e no entanto,
quando chega o momento da acção, escolhemos b, para logo de seguida nos
recriminarmos e arrependermos duramente, resolvendo então uma vez mais ser mais
fortes e melhores na próxima oportunidade. Certamente que se Sócrates quisesse negar
este género de experiência teria de explicar eliminativamente grande parte da nossa
experiência comum. É isto que Aristóteles tem em mente quando o critica por negar os

17
fenómenos. Contudo, curiosamente, no final do seu tratamento da acrasia, Aristóteles
acaba por fazer um juízo bastante mais amigável de Sócrates. De certo modo, afirma, a
sua própria concepção parece dar a Sócrates o que este procurava: que o conhecimento
não pode ser arrastado como um escravo pelas paixões senhoriais (Ética a Nicómaco
1145b324-25, 1147b15). Uma maneira de compreender a posição de Aristóteles é,
então, determinar como Sócrates tem e não tem razão quanto à acrasia.

A questão é complicada porque temos duas camadas de interpretação em interacção,


nomeadamente a nossa perspectiva do que Sócrates defende no Protágoras e o modo
como Aristóteles o apresenta, talvez com base no mesmo diálogo.19 Tal como
Aristóteles o apresenta, Sócrates negava o fenómeno da acrasia por tratar todos os casos
de fraqueza como casos de imperfeição cognitiva. Aceitaremos fundamentalmente o
modo como Aristóteles o apresenta, dado que neste contexto queremos compreender a
perspectiva de Aristóteles sobre a questão. Segundo Sócrates, não devemos atribuir a
uma deficiência da vontade as causas da nossa fraqueza, nem a um desejo dominador de
qualquer tipo, mas a um erro de cálculo. Na verdade, relativamente a um certo grupo de
pressupostos de fundo, isto pode parecer perfeitamente correcto. Suponha-se que
estamos muitíssimo unificados, no sentido em que submetemos todas as decisões a uma
única faculdade inconsútil que rege as acções. Além disso, se somos hedonistas
egocêntricos sempre preocupados com a maximização do nosso próprio prazer, e
fixando sempre a atenção no único género de prazer que há, é difícil ver como podemos
errar — a menos que não compreendamos os resultados prováveis das nossas acções. É
como se fôssemos investidores dedicados da bolsa de valores que, tendo determinado a
melhor maneira de maximizar os lucros, decidíssemos contudo investir o nosso dinheiro
em acções que prevemos que não darão os melhores resultados. Tal conduta seria
estranha. No mínimo, exigiria explicação. Afinal, não teríamos motivo para nos
entregarmos a tal conduta nessas circunstâncias. Mais provável é o pensamento de que
se de facto comprámos as piores acções, a única explicação plausível para isso reside no
erro de cálculo. Mas isso é um erro cognitivo.

É muito fácil ver por que pensa Aristóteles que esta imagem socrática está errada. Será
menos fácil ver como pode estar certa. Para começar, segundo Aristóteles, a imagem
socrática baseia-se numa psicologia moral falsa, segundo a qual somos de facto agentes
muitíssimo unificados. Na verdade, não o somos. Como vimos, as nossas almas têm
facetas racionais e arracionais e estas podem entrar em conflito ao compelir-nos a agir.
Assim, Aristóteles começa por objectar à psicologia subjacente que dá origem à
impossibilidade da acrasia.

Aristóteles argumenta que há mais complexidades que têm também de entrar na nossa
concepção. Para começar, é preciso observar duas distinções de fundo. Primeiro, tanto
podemos falar de ter como de usar conhecimento, uma distinção já presente no De
Anima (417a 21-b1), no qual foi feita em termos de primeira e segunda efectividade
(Ética a Nicómaco 1146b 31). Claire pode ter conhecimento da existência de um desvio
no seu caminho para casa, mas não o usar, no sentido em que não está agora a pensar
nele, por várias razões. Essas razões não são relevantes se ela agora não está a dirigir-se
para casa, estando antes na sua clínica, recebendo os seus doentes e concentrando-se no
seu cuidado e tratamento. Tornam-se relevantes se, ao dirigir-se para casa, estiver tão
distraída debatendo de si para si se terá prescrito o melhor tratamento para um dado
paciente que não usa o seu conhecimento; é então plausível que se culpe a si mesma, ao

18
ficar presa no trânsito, lamentando-se por saber que havia um desvio que poderia ter
usado.

A segunda distinção preliminar é um pouco mais complexa, envolvendo o que no


espírito de Aristóteles parece uma reconstrução racional dos antecedentes da nossa
acção. De cada vez que fazemos algo intencionalmente, sugere, podemos encarar a
nossa acção como se fosse precedida, pelo menos implicitamente, por um tipo de
silogismo prático, feito de uma premissa universal e outra particular.20 A premissa
universal recomenda um dado fim, por exemplo, que se coma coisas doces (Ética a
Nicómaco 1144a 31-33). A premissa particular situa quem age na situação a que a
premissa universal se aplica, por exemplo, isto é doce. Na melhor das hipóteses,
Aristóteles está a oferecer uma reconstrução racional, pois não ensaiamos efectivamente
tal silogismo de nós para nós de cada vez que agimos. Mesmo assim, num vasto
domínio de casos, é plausível que tal representação seja possível e adequada.

Com estas distinções, o perfil básico da abordagem de Aristóteles da acrasia é claro,


apesar de os pormenores serem depois objecto de intensos debates. A ideia básica de
Aristóteles é que, combinando estas duas distinções preliminares, os erros de
conhecimento podem assumir diferentes formas. Podemos 1) ter conhecimento da
premissa universal mas não o usar, 2) ter conhecimento da premissa particular mas não
o usar; ou em princípio 3) ter e usar o conhecimento das duas premissas, mas não as
usar simultaneamente. Esta última sugestão pode ser algo surpreendente, mas a ideia
tem um análogo lógico natural. O Rafael pode saber que todos os mamíferos têm
pulmões e que este golfinho é um mamífero, mas ficar surpreendido que o veterinário se
proponha fazer um transplante de pulmão no seu golfinho por não ter de algum modo
conectado os dois pedaços de informação, não se tendo por isso dado conta de que este
golfinho tem pulmões. Se isto é possível, então o seu erro de conhecimento é de algum
modo uma questão de gestalt e não uma questão localizada.

Aristóteles chama a atenção para este tipo de questão de gestalt (Ética a Nicómaco
1147a 31-b 5), e também para ambas as premissas individualmente, sublinhando por
vezes erros de conhecimento que dizem respeito à particular e outras vezes à universal.
Seja onde for que localizemos o erro de conhecimento em causa, a acrasia é possível,
sugere, porque “sabemos e não sabemos” (Ética a Nicómaco 1147b 17-18). Nesta
medida, Sócrates fica afinal vindicado: a acrasia envolve realmente um erro de
conhecimento, ainda que não o erro simples de conhecimento que ele tinha em mente
(Ética a Nicómaco 1147a 14-19).

O tratamento que Aristóteles dá à acrasia resiste a uma interpretação fácil;


consequentemente, também é difícil avaliar a sua defensibilidade. Há pouco consenso
académico quanto aos contornos precisos da sua perspectiva, apesar de isto se dever em
parte à falta de clareza com que tanto ele como nós vemos os fenómenos em causa. Não
é pedir uma especial benevolência em nome de Aristóteles se notarmos que os quebra-
cabeças sobre a acrasia admitem várias formulações, algumas das quais recônditas e
longe da experiência e outras surpreendentes pela sua simplicidade. Assim, se algumas
das dificuldades com o tratamento de Aristóteles resultam da sua própria hesitação e
falta de clareza, parece justo concluir que algumas dificuldades resultam também do
carácter permanentemente enigmático do fenómeno.21

6. Amizade

19
Aristóteles ocupa-se de muitas virtudes, tanto morais quanto intelectuais, ao longo da
Ética a Nicómaco. Um género de virtude, ou concomitante da virtude (Ética a
Nicómaco 1155a 3-5), merece especial atenção porque tem tendência para corrigir uma
impressão errada que se poderá formar quanto à teoria ética de Aristóteles. A impressão
errada é que a teoria de Aristóteles é completamente egoísta: centrámo-nos na felicidade
(eudemonia) e na melhor maneira de a assegurar. Seria natural concluir, nesta base, que
a teoria ética começa e acaba com uma concepção das atitudes que se referem a nós
mesmos. Para corrigir esta impressão errada o melhor é ver o tratamento dado por
Aristóteles à amizade (philia).

Podemos muito bem perguntar, de um modo interesseiro, por que haveremos de querer
amigos, se tê-los exige que cuidemos do seu bem-estar mesmo que isso signifique em
alguns casos o sacrifício do nosso bem-estar. Mesmo que consideremos que os amigos
são necessários para a nossa felicidade, poderia no entanto parecer que é melhor encarar
os amigos como meros instrumentos do nosso próprio prazer, brinquedos para usar
quando isso nos interessa e para pôr na prateleira caso contrário. Aristóteles identifica
tipos diferentes de amizade (Ética a Nicómaco 1156a 6-b33), alguns dos quais podem
parecer nada esperar senão este género de instrumentalismo:

• Amizades baseadas na utilidade, onde um laço se forma primariamente na base


do benefício mútuo, do género que caracteriza as relações profissionais.
• Amizades baseadas no prazer, sendo a base do prazer os prazeres partilhados,
como quando pessoas de espírito gostam de trocar comentários astutos.
• Amizades baseadas na bondade, amizades completas ou perfeitas, nas quais
duas pessoas iguais em virtude gostam uma da outra por elas mesmas, e formam
as suas amizades na base do carácter.

Aristóteles observa que as primeiras duas formas de amizade, que considera


secundárias, se dissolvem facilmente e tendem a desaparecer quando a fonte da amizade
se esgota.

Se estes tipos de relações são casos de amizade, então a amizade não exige cuidado pelo
outro por si mesmo (cf. Ética a Nicómaco 1155b 31-1156a 5, onde Aristóteles todavia
parece sugerir que toda a amizade exige tal cuidado). Pois nem as amizades utilitárias
nem as amizades do prazer parecem exigir qualquer consideração referente ao outro por
parte dos envolvidos. Sugere-se por vezes que a estranheza que esta posição nos faz
sentir resulta do âmbito muito vasto que Aristóteles tem em mente com a philia, que
ultrapassa a amizade num sentido moderno e reconhecível. A tradução, contudo, não
parece má, dado que também falamos de amizades nas relações empresariais (“Tenho
um amigo no serviço de transportes que pode verificar o estado da encomenda”) e nas
relações baseadas no prazer (“O Marco era o género de amigo que eu procurava quando
estava em baixo e queria esquecer os meus problemas”). A questão principal destas
amizades é que são formas secundárias de amizade, como Aristóteles sugere: apesar de
úteis, ou até mesmo necessárias, para uma vida agradável, não representam o interesse
primário de Aristóteles na amizade, que ele restringe ao tipo melhor, as amizades
baseadas na bondade. Na sua melhor forma, a amizade perdura enquanto perdurar a
virtude; mas dado que a virtude é um estado de carácter estável e se alarga
essencialmente no tempo, as verdadeiras amizades não são fáceis de dissolver.

20
Na verdade, na amizade perfeita, é de esperar que os amigos se encarem entre si como
segundos eus. Parcialmente nesta base, Aristóteles argumenta que temos razão para
amar os outros como nos amamos a nós — e temos realmente razão para nos amarmos a
nós. Uma vez feita a distinção entre a auto-estima apropriada, que se funda numa
concepção correcta do eu como ser racional, e não como um egocêntrico que procura o
prazer, o dinheiro ou a honra, temos razão para considerar que temos valor intrínseco
(Ética a Nicómaco 1168b 11-1169a 7). Nas amizades perfeitas entre parceiros
igualmente virtuosos, contudo, um amigo irá partilhar o carácter do outro, de modo que
o que um valoriza em si reconhecerá também no outro. O bem amado em nós será então
igualmente realizado e amado no nosso segundo eu. Não havendo qualquer distinção
relevante entre estas formas de bondade, um amigo, sugere Aristóteles, terá razão para
sacrificar bens, riqueza e até a vida, pelo outro. Isto, é claro, é a passagem crucial, ou
tentativa de o fazer, do eu para o outro, e portanto do egoísmo estrito para uma forma
inegável de altruísmo, envolvendo um amigo na conduta centrada no outro.

Aristóteles sustenta esta sugestão apelando às condições originais do bem mais elevado,
argumentando que a amizade é necessária para a auto-suficiência, a condição que
quando é satisfeita dá origem a uma vida a que nada falta (Ética a Nicómaco 1097b 6-
16).22 Como eudemonistas temos então motivação para procurar a nossa própria
felicidade; alcançamos o florescimento humano, contudo, apenas na companhia de
amigos indispensáveis. Quando temos amigos de grande bondade e carácter,
reconhecemos previamente o seu valor: não são bons por serem nossos amigos, são
nossos amigos por serem bons, e manifestam os traços que correctamente reconhecemos
como bons em nós mesmos. Objectar que estaríamos assim a usar tais amigos em
virtude da nossa própria felicidade é confundir a amizade perfeita com as amizades
utilitárias.

De facto, o tratamento que Aristóteles dá ao fundamento filial do altruísmo tem dois


aspectos discerníveis, que dependem talvez um do outro. Não os apresenta como
argumentos diferentes, apesar de parecer que dependem de considerações crucialmente
diferentes. É melhor apresentá-los emparelhados, de modo a sublinhar as suas diferentes
fontes. Este processo ajuda também a destacar uma componente dos seus argumentos
que muitas vezes passa despercebida, nomeadamente que se apoiam no que Aristóteles
encara agora como doutrinas estabelecidas nas suas teorias metafísicas e psicológicas.

O primeiro argumento leva a sério a linguagem dos amigos como segundos eus (SE)
(Ética a Nicómaco 1107b5-14):

1. Se somos bons e virtuosos, então encaramo-nos adequadamente com amor-


próprio.
2. Se essas características são dignas de amor tal como ocorrem em nós, então não
são menos dignas de amor se ocorrerem nos nossos amigos, que são os nossos
segundos eus.
3. Porque são nossos iguais em virtude, os nossos amigos manifestam na verdade
as mesmas boas características que nós manifestamos.
4. Logo, as boas características manifestadas pelos nossos amigos são dignas de
amor.
5. Se as suas características são dignas de amor, então isto dá-nos razão para cuidar
dos nossos amigos por causa de quem são.

21
6. Logo, temos razão para cuidar dos nossos amigos por causa de quem são (Ética
a Nicómaco 1156a 19-11, 1156b 10, 1156a 17-18).

Com este género de base, Aristóteles conclui que “tal como o ser de cada pessoa é digo
de escolha, também o ser de um amigo o é” (Ética a Nicómaco 1170b 7-8).

A primeira premissa, SE-1, reafirma que o amor-próprio apropriado é perfeitamente


virtuoso. Se negarmos falsamente o nosso valor racional, então estaremos a vilipendiar-
nos; se exagerarmos o nosso valor, então seremos fanfarrões com a mania das
grandezas. Se é realmente verdade que estamos em condições de responder aos critérios
estabelecidos para a melhor vida humana, então é trivial que atingimos uma condição
boa em si, e apropriadamente reconhecida como tal. SE-2 defende que os traços
virtuosos não são melhores pelo facto de serem nossos, nem piores por serem dos
outros. Sobretudo se o outro for o meu segundo eu. Ora, é tentador insistir neste ponto
que a conversa sobre “segundos eus” é um oximoro: um eu é necessariamente um
indivíduo e não pode haver mais de um de cada. É duvidoso que Aristóteles esteja a
tentar negar isto. Ao invés, os amigos de igual virtude são exemplificações de um tipo; e
o tipo é algo digno de amor. É difícil determinar por que não seria arbitrário amar uma
exemplificação de um tipo mas não outra. Se um compositor considera correctamente
que a sua obra-prima exemplifica uma grande beleza, mas reconhece esta mesma beleza
na composição de outro, parece haver pouco espaço para insistir que a beleza da sua
obra é mais bela, ou mais valiosa, porque se manifesta na sua obra.

Ao avaliar SE-2 e as premissas seguintes é importante darmo-nos conta de que neste


argumento Aristóteles se apoia na sua concepção geral da felicidade humana, como algo
objectivamente dado e determinado pela essência dos seres humanos. Se neste ponto
recordarmos a concepção objectiva que Aristóteles tem da felicidade,23 então podemos
ver que os juízos sobre a felicidade são juízos sobre o florescimento humano. Se
pensarmos que o florescimento humano é uma coisa boa, então considerá-la-emos uma
coisa boa tanto nos nossos amigos como em nós mesmos. Segue-se, é claro, que quando
mostramos cuidado pelos nossos amigos não estamos interessados em ajudá-los a
garantir os fins dos seus desejos, independentemente do que forem. Pelo contrário, se os
nossos amigos desejarem coisas más para o seu florescimento, então dizemos-lhes isso
mesmo, precisamente porque são nossos amigos e nos preocupamos com eles.

O segundo aspecto da defesa da amizade levada a cabo por Aristóteles faz também uso
da sua concepção geral de felicidade e das suas bases metafísicas. Aristóteles argumenta
que uma condição estabelecida para a melhor vida é especialmente significante quando
ponderamos sobre a razão de ser da amizade. O bem final para os seres humanos tem de
ser auto-suficiente (autarkês), de tal modo que a sua presença seja suficiente para que
nada falte na vida (Ética a Nicómaco 1097b 6-16). Aristóteles argumenta agora
corajosamente que não se pode ser auto-suficiente sem amizade:

Se o ser é de valor em si para a pessoa abençoada, por ser naturalmente bom e


agradável, e se o ser do seu amigo é muito semelhante ao seu, então também o seu
amigo será de valor. O que for de valor para si, seja isso o que for, ele tem de ter, dado
que de outro modo terá falta de algo. Logo, para qualquer pessoa ser feliz é necessário
ter amigos excelentes. (Ética a Nicómaco 1170b 14-19)

22
Em alguns aspectos, este argumento depende da perspectiva de Aristóteles de que os
amigos são segundos eus; mas também acrescenta uma afirmação mais forte.

A afirmação que acrescenta é que quem não tem amigos não tem auto-suficiência
(FSE):

1. Se S não tem um amigo de valor, então falta-lhe algo de valor.


2. Se a S lhe falta algo de valor, então não é auto-suficiente.
3. Se S não é auto-suficiente, então não é feliz.
4. Logo, se S não tem um amigo de valor, não é feliz.

FSE-1 parece basear-se nas reflexões de Aristóteles sobre a interacção entre o amor-
próprio adequado e o reconhecimento dos fundamentos desse amor tal como este se
manifesta noutra pessoa. Aristóteles volta uma vez mais ao enquadramento geral da sua
concepção objectiva da felicidade recordando que a melhor vida, seja ela qual for, será a
que for auto-suficiente. Se os amigos são necessários para a auto-suficiência, então os
amigos são igualmente necessários para a felicidade.

Num certo sentido, FSE-4 não parece levar-nos do egoísmo estrito para uma forma
qualquer de altruísmo. Afinal, quando alguém tem um amigo, poderá observar-se, essa
pessoa poderá ser feliz; caso exista a ameaça de perder esse amigo a menos que se faça
sacrifícios, então bastará substituir esse amigo por outro. Assim, a exigência de auto-
suficiência, mesmo interpretada deste modo, continua a ser compatível com um
instrumentalismo indecente.

A atitude de Aristóteles perante este género de crítica tem várias partes. Para começar,
Aristóteles sugere que este género de queixa pode trair simplesmente uma espécie
especialmente fátua de egoísmo psicológico: parece pressupor que é sempre possível,
ou talvez até necessário, encarar os outros em termos inteiramente instrumentais.
Aristóteles põe isto em dúvida, porque depois de se concordar que um amigo, por ser
virtuoso, adquiriu valor objectivo intrínseco, torna-se difícil imaginar por que razão se
deveria pôr isto de lado quando vamos agir, ou na verdade como poderíamos pôr isso de
lado — se, bem entendido, formámos uma amizade perfeita com essa pessoa. Se temos
razão para sermos virtuosos, e se a amizade é uma virtude, então temos uma razão para
desenvolver amizades perfeitas. Tendo desenvolvido tais laços, iremos agir pelos outros
como expressão da amizade que nutrimos por eles. Se estivermos a pensar na sua
utilidade para nós, então estaremos também a pensar neles não em termos da amizade
perfeita, mas em termos da utilidade. Parece desnecessário concordar que todas as
amizades têm de se restringir a meras amizades de utilidade. Além disso, parece
implausível que um ser humano em pleno florescimento no sentido aristotélico estivesse
disposto a encarar todos os outros — todos os amigos íntimos, todos os membros da
família, todas as pessoas que ama — nesses termos estritamente instrumentais.

Parte da razão pela qual isto parece implausível a Aristóteles é que é provável que
tenhamos géneros bastante diferentes de respostas afectivas às amizades baseadas na
utilidade e às amizades baseadas na bondade. Para ilustrar os géneros de respostas
afectivas que é de esperar que os amigos perfeitos invoquem entre si, Aristóteles apela
frequentemente ao género de cuidado terno que uma mãe tem pelos seus filhos (Ética a
Nicómaco 1159a 28, 1161b 27, 1166a 5-9). É um lugar-comum que os pais sofrem e
sacrificam-se voluntariamente pelo bem-estar dos seus filhos. Do ponto de vista do

23
objector, talvez o comportamento dos pais seja irracional. Do ponto de vista de
Aristóteles, representa a resposta afectiva humana normal a um objecto de amor.

7. O bem final para os seres humanos reconsiderado


Depois de completar as suas concepções das virtudes, Aristóteles regressa no último
livro da Ética a Nicómaco à questão da melhor vida para os seres humanos, como tinha
feito no primeiro livro. Apesar de começar como um resumo reconhecível, a
recapitulação traz consigo uma surpresa. À medida que Aristóteles expõe a sua
perspectiva, introduz elementos que não só não foram mencionados no seu tratamento
anterior, como são tão singulares e distintivos que ameaçam contradizer directamente a
concepção anterior. Para alguns académicos, a contradição é tão óbvia e palpável que
mostra claramente que o livro X da Ética a Nicómaco não pode ser parte de uma única
obra, juntamente com os outros nove. Para outros, as coisas parecem menos extremas;
apesar de parecer haver alguma tensão, é possível reconciliar o que se diz nestas
diferentes partes da obra se atendermos ao modo como Aristóteles apresenta as
questões.

O problema surge mais directamente quando Aristóteles revisita a sua concepção da


melhor vida:

Se a felicidade é uma actividade de acordo com a virtude, é razoável que isto seja a
virtude suprema; mas esta será a virtude do que é melhor. Se isto será a razão ou outra
coisa que por natureza pareça governar e conduzir e ter pensamentos de coisas
excelentes e divinas — seja ela mesma divina ou o mais divino elemento em nós — a
sua actividade própria será a felicidade completa. Como foi dito, esta actividade é a
actividade da contemplação. Isto concordaria com o que se disse antes, e também com a
verdade. (Ética a Nicómaco 1177a 12-19)

É surpreendente ver Aristóteles defender que a perspectiva aqui expressa se harmoniza


com o que foi dito alhures. Pois, pelo contrário, independentemente de saber se o que
aqui afirma está de acordo com a verdade, não parece estar de acordo com o que se
disse antes, pois não se disse que o bem humano consiste na contemplação. Ao invés,
tendo dividido a alma racional no racional e no arracional, o grosso da Ética a
Nicómaco dedicou-se à discussão das virtudes morais, ou virtudes de carácter, seguida
de uma discussão das virtudes teóricas. Se a expressão de tais virtudes se exclui agora
do domínio da felicidade, então esta afirmação não só não se harmoniza com o que se
disse anteriormente, como não poderá sequer reconciliar-se com isso.

Vê-se de modo mais nítido o problema que Aristóteles enfrenta ao aceitar o seguinte par
de proposições inconsistentes, sendo uma delas uma concepção abrangente do bem e a
outra uma concepção restrita:

• Um bem abrangente: o bem humano consiste na expressão da virtude humana,


incluindo esta um vasto domínio de actividades, abrangendo todo o domínio de
virtudes morais e intelectuais.
• Um bem restrito: o bem humano consiste na expressão da virtude humana,
limitando-se esta à melhor virtude intelectual, nomeadamente a contemplação.

24
Expresso nestes termos, se Aristóteles sustenta que o bem humano é um bem
abrangente ao longo da maior parte da Ética a Nicómaco afirmando depois no último
livro uma concepção restrita, encontra-se numa situação desconfortável.

Ainda antes de levantarmos questões de consistência, contudo, a concepção restrita do


bem humano é motivo de preocupação em si mesma. Certamente que se pode temer que
a concepção restrita seja excessivamente restrita. Afinal, é de esperar que a pessoa
virtuosa tenha amigos, e que seja justa, e que o faça porque a realização humana
consiste na expressão de virtudes que têm um carácter inevitavelmente social. Alhures,
Aristóteles afirma, em harmonia com a sua concepção lata de bem humano, que os seres
humanos são por natureza animais políticos, que na verdade os seus traços essenciais os
levam a formar associações sociais (Política 1353a 7-18, 178b 15-30).24 Mas se agora,
afinal de contas, o bem humano é apenas a contemplação, e se tudo o que fazemos o
fazemos pela contemplação, então quase todas as nossas acções visarão em última
análise algo solitário e fundamentalmente associal, algo mais próprio de deuses do que
de seres humanos.

De facto, Aristóteles parece realmente asserir que devemos tentar ser tão parecidos com
os deuses quanto possível (Ética a Nicómaco 1177b 26-1178a 2), concebendo a
actividade dos deuses como algo que se restringe a uma forma curiosamente austera de
contemplação auto-referencial (Metafísica 1074b 29-30). Se tudo é feito em nome
desses raros momentos em que podemos erguer-nos e ultrapassar o limiar intelectual,
entrando no domínio do divino, então raramente podemos florescer, dado que os nossos
momentos de contemplação só raramente irão interromper o restante das nossas vidas
animais que consistem em comer, beber e socializar. Além disso, parecerá que nesta
concepção restrita nada senão esta forma majestosa de actividade será intrinsecamente
valiosa, dado que tudo será feito em nome de outra coisa. E isto parece ignorar que
somos animais, preferindo ao invés fingir que somos deuses humanos menores.

Ora bem, a tensão geral presente nas concepções lata e restrita do bem humano deu
origem a uma vasta bibliografia.25 Não podemos fazer mais aqui do que apontar para
dois géneros de resoluções, dando a primeira lugar às complexidades da segunda. Estas
resoluções tentam evitar a conclusão directa de que Aristóteles se contradisse. Coisa que
é, evidentemente, possível. Outra possibilidade dentro da mesma tendência geral não
atribuiria uma contradição a Aristóteles mas permitiria que ele teria simplesmente
mudado de ideias a dado ponto, como muitas vezes nos acontece, dado que as
perspectivas são inconsistentes entre si, e temos em qualquer caso razões independentes
para pensar que o último livro de Ética a Nicómaco não pode fazer parte de uma obra
unitária cujas outras partes incluam os primeiros nove livros.26 Independentemente do
peso dessas razões independentes, devemos dar-nos conta de que o problema aqui
introduzido admite em princípio várias resoluções.

Isto pode acontecer porque a (aparente) contradição entre a concepção abrangente e a


restrita dá origem a vários problemas diferentes. O primeiro género de resolução é
bastante deflacionária, apesar de isso não ser em si mau. É imediatamente visível que
Aristóteles está ciente de alguma tensão nesta direcção e que está disposto a classificar
simplesmente formas de felicidade. Depois do capítulo 7 do livro X da Ética a
Nicómaco, insistindo que a vida de contemplação “será a mais feliz” (1178a 8),
Aristóteles começa o capítulo seguinte com a seguinte observação:

25
A segunda vida mais feliz é a que está de acordo com o outro género de virtude; pois as
actividades deste género são humanas. Pois fazemos apenas coisas justas e corajosas e
os outros tipos de coisas de acordo com este género de virtude em relação uns aos
outros […] e todas parecem humanas. (Ética a Nicómaco 1178a 9-14)

Um pensamento simples seria então o seguinte: a felicidade admite graus, sendo a


melhor felicidade a contemplação, mas a segunda melhor felicidade, que é à mesma
genuína, é o género de felicidade que abrange todas as formas de virtude humana, tanto
intelectuais quanto morais. Haverá então um limiar a ultrapassar para ser feliz, a partir
do qual algumas vidas serão mais felizes do que outras apesar de todas serem, digamos,
totalmente felizes. Suponha-se que para obter nota A um aluno tem de ter mais de 95%
nos seus exames finais. Um estudante tem uns admiráveis 95,1% e outro uns incríveis
99,9%. Ambos ganharam total e completamente a nota A; nenhum pode ser mais
classificado como nota A do que qualquer outro. Todavia, há um sentido correcto em
que um deles foi mais longe do que os outros, sendo por isso mais digno. No caso da
felicidade humana, os juízos de escala são totalmente apropriados, pois a felicidade
consiste na efectivação de um bem final funcionalmente específico, e as categorias
funcionais são categorias com escalas.

Claro que este género de resolução deflacionária é boa em certa medida, mas não vai
suficientemente longe. Isto é, mesmo que esteja correcta, não dá conta de uma
preocupação subjacente quanto à questão de as acções feitas por causa da felicidade
terem ou não de ser encaradas como tendo um valor meramente instrumental. Pois
certamente que as acções feitas por causa de um fim além de si mesmas podem também
ser valorizadas em si. Além disso, é de esperar que uma vida humana abranja todo o
género de actividades boas, coisas feitas por causa de si mesmas, não se subordinando
todas exclusivamente a um objectivo unificado. Neste sentido, a nossa preocupação
quanto às concepções restritas e abrangentes do bem dá lugar a uma preocupação que
talvez venha já a incomodar-nos desde as primeiras frases da Ética a Nicómaco: na
abertura da obra, afirma-se que toda a acção visa, em última análise, um bem qualquer.27
Qual é então a relação entre as coisas feitas por causa deste bem e o bem em si?

Já no primeiro livro da Ética a Nicómaco Aristóteles tinha sustentado que o bem


humano é “uma actividade da alma de acordo com a virtude (ou excelência, aretê) e, se
houver muitas virtudes, então de acordo com as melhores e mais completas” (Ética a
Nicómaco 1098a 16-18). Vista de uma maneira, isto pode ser parafraseado como “… e,
se houver muitas virtudes, então o bem humano será uma actividade identificada com
aquela que for a melhor e a mais completa de entre elas.” Mas vista de outra maneira
pode querer dizer “… e, se houver muitas virtudes, o bem humano é uma actividade
identificada com as melhores e as mais completas virtudes.” Do ponto de vista da
primeira paráfrase, há uma só virtude, seleccionada entre as melhores, e o bem humano
consistirá na sua expressão. Do ponto de vista da segunda, a melhor virtude não está em
competição, digamos, com as outras. Ao invés, há uma pluralidade de virtudes, e o
pacote mais completo delas será o bem humano. Esta é aproximadamente a diferença
entre dizer que se há muitas flores bonitas, a melhor será a flor única mais bonita de
entre elas, em vez de dizer que a melhor será o mais bonito bouquet de todas, que
seguramente incluirá as mais bonitas.

Qual delas tinha Aristóteles em mente? A questão é muito disputada, e de certo modo
depende de uma questão linguística sobre o que significa dizer que S faz a por causa de

26
b.28 Parece haver pelo menos duas maneiras de S poder fazer a por causa de b. S pode
perfurar os dentes de um modo doloroso por causa da saúde mental. Neste caso, o
objectivo é extrínseco à acção levada a cabo. Por outro lado, S pode ir à ópera, ter
depois um agradável jantar e passar o dia seguinte visitando uma grande catedral —
tudo isto por causa de querer ter umas boas férias. Quando S faz estas coisas, não as faz
por causa de algo extrínseco às próprias acções; as actividades são pelo contrário em
parte constitutivas de umas boas férias.

Dado que alguns meios são constitutivos dos seus fins, fica em aberto se Aristóteles está
a pensar numa série de bens humanos realizados tanto por causa da felicidade como por
serem desejáveis em si. Presumivelmente, dada a ênfase inconfundível de Aristóteles na
centralidade da racionalidade na sua caracterização do bem humano, é de esperar que
qualquer colecção de meios constitutivos será, no mínimo, forçosamente, uma
expressão bem estruturada da virtude intelectual, e não uma misturada sortida
amontoada sem qualquer ordem interna. Neste caso, pode-se considerar a concepção de
Aristóteles do bem humano como simultaneamente intelectual e abrangente: intelectual
no sentido de dar prioridade à contemplação e abrangente no sentido em que a
actividade virtuosa não contemplativa exibirá uma estrutura racionalmente equilibrada,
resultando presumivelmente da deliberação quanto à forma de vida óptima para
criaturas com as características do género que os seres humanos manifestam
essencialmente.

Claro que estas sugestões iniciais visam abrir e não fechar a controvérsia central que
rodeia a teoria da felicidade humana proposta na Ética a Nicómaco de Aristóteles.
Quando se investiga estas matérias mais profundamente, tem o efeito de fazer reflectir
sobre um aspecto por vezes injustamente negligenciado da teoria que Aristóteles
desenvolve nessa obra, nomeadamente que a sua concepção do bem humano não está
apartado da psicologia metafísica que lhe subjaz. A questão da felicidade humana, tal
como Aristóteles a entende, é sobre seres humanos, e por isso é uma questão cuja
resposta tem de estar enraizada em factos sobre tais seres, incluindo crucialmente o
facto de os seres humanos serem agentes intencionais que agem em função de fins. Do
seu essencialismo resulta que os fins humanos não são escolhidos em função de
caprichos humanos, sendo antes dados pela natureza humana. Consequentemente,
conclui Aristóteles, quem procura a felicidade descobre os seus fins humanos, mas não
os engendra; quando o fazem, podem ordenar as suas acções correctamente, isto é, em
direcção à efectivação das suas capacidades especificamente humanas.

8. Conclusões
Comparada com outras obras menos amigáveis de Aristóteles, a Ética a Nicómaco pode
parecer relativamente acessível e não técnica. Em alguns aspectos, esta aparência é
correcta. A obra não está pesadamente repleta da terminologia característica de
Aristóteles, como acontece noutros casos. Além disso, em parte porque se baseia na
observação cuidada das psicologias morais efectivas, algumas passagens da Ética a
Nicómaco encontram rapidamente eco nas nossas próprias observações do virtuoso e do
vicioso. Até certo ponto, o carácter não técnico da obra reflecte o próprio juízo de
Aristóteles de que a precisão indevida é inapropriada na ética, dado que a exactidão
excessiva impõe exigências nas ciências humanas que são mais apropriadas apenas para
outras empresas mais austeras e abstractas, como a matemática (Ética a Nicómaco
1094b 11-14, 1098a 28-34). O estudo da ética tem de responder às vicissitudes

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contingentes que resultam da acção humana; ter a expectativa de produzir fórmulas
precisas adequadas a qualquer circunstância possível irá predispor-nos a perder tempo
em digressões ociosas incapazes de nos fornecer os princípios orientadores da acção que
procuramos.

Aceitando isto, é também necessário dizer que em muitos mais aspectos importantes a
aparência de acessibilidade e não tecnicismo da Ética a Nicómaco é ilusória e
enganadora. Apesar de Aristóteles não parar para chamar atenção para isso, a sua teoria
ética faz um uso intenso das suas teorias metafísicas e psicológicas. Porque Aristóteles
está interessado na melhor vida para seres humanos, toma como garantido que isso será
a vida daqueles seres cujas essências e naturezas já explorou e caracterizou alhures. Na
verdade, no primeiro caso, a teoria ética de Aristóteles pressupõe que os seres humanos
têm uma essência de um género determinado e estável, e que consequentemente quando
é chegado o tempo de determinar o que é melhor para tais criaturas será necessário
chamar a atenção para as suas características nucleares, essenciais. É por isso que
Aristóteles não sente necessidade de invectivar longamente contra as concepções
subjectivistas da felicidade: dado estarmos a falar do bem para os seres humanos, e dado
que os seres humanos são de um certo modo por natureza, quem supõe que a felicidade
consiste na simples satisfação do desejo não conseguirá dar conta de um facto central e
inevitável quanto ao desejo: as pessoas podem desejar, e desejam, coisas que são más
para elas, e o resultado infeliz disso é que podem viver, e vivem, vidas abaixo do que
para elas seria o melhor. Estas são, pois, vidas que seria melhor não viverem desse
modo, vidas que não teriam desejado caso tivessem apreendido a melhor maneira de
procurar o seu próprio florescimento.

Deste ponto de vista, o célebre argumento da função de Aristóteles é ao mesmo tempo


menos ambicioso e mais bem-sucedido do que por vezes se pensa. Aristóteles não
presume que com este argumento pode provar que os seres humanos têm uma natureza
determinada, uma função especificável e um bem característico. Ao invés, procura
principalmente identificar com este argumento a função humana que já analisou alhures
e assim caracterizar esse bem que é o melhor para os seres humanos. Este bem,
argumenta, será o que for um bem em si, um bem para nada senão ele mesmo, completo
e tal que a sua presença faz que nada falte a uma vida. Podemos chamar a tal bem
eudemonia — felicidade ou florescimento humano. Sem explicação, contudo, nenhum
termo desses é particularmente informativo. Todos dizemos que queremos a felicidade.
Se discordamos quanto ao que é a felicidade, então a nossa concordância verbal limita-
se a esconder outras discordâncias profundas e importantes quanto à mais preciosa
conquista da vida. Se aceitarmos uma concepção objectiva da felicidade enraizada nas
características da essência humana, então faz sentido investigar, como Aristóteles, essas
características humanas de cuja melhor expressão resulta o género óptimo de vida
disponível para nós.

Aristóteles considera óbvio, quase inquestionável, que cada um de nós deseja a melhor
vida que podemos assegurar para nós mesmos. Assim, uma vez ultrapassado o
pensamento simplista de que a melhor vida é seja o que for que supomos que é, então as
investigações sobre a virtude humana (ou excelência; aretê) do género a que Aristóteles
se entrega na Ética a Nicómaco fazem perfeito sentido e são, para quem é iluminado
pela reflexão, quase inevitáveis. Afinal, sugere Aristóteles, se queremos o que é bom
para nós, o que é realmente bom e não o que por acaso é atraente à luz do capricho do
momento, então compete-nos explorar o que esse bem poderá ser. Qualquer dessas

28
explorações conduzir-nos-á para lá das nossas preferências subjectivas actuais, que
podem ser iluminadas ou não, fazendo-nos considerar qual será o carácter da excelência
humana.

Dado que tal excelência é trivialmente a excelência dos seres humanos, seria sábio
começar a nossa investigação do bem humano com uma concepção bem delimitada do
carácter da natureza humana. Ao entregar-se a esta investigação, Aristóteles pressupõe
um enquadramento essencialista articulado no seio do seu esquema explicativo das
quatro causas, com as suas componentes teleológicas que não podem ser eliminadas.
Apesar de quase nada fazer para defender este enquadramento na Ética a Nicómaco,
Aristóteles pressupõe claramente uma familiaridade com os seus preceitos básicos
quando defende este tipo de ética das virtudes. Por esta razão, a Ética a Nicómaco é,
digamos, uma obra sub-repticiamente técnica. Consequentemente, uma eventual
avaliação da teoria ética de Aristóteles irá envolver igualmente o crítico compreensivo
numa consideração das teorias psicológicas e metafísicas que lhe subjazem e a
caracterizam. Na medida em que tais teorias forem defensáveis, a teoria ética de
Aristóteles terá muito de recomendável. Do mesmo modo, onde essas teorias não
resistem à crítica, podem tender a deixar o eudemonismo ético de Aristóteles encalhado,
à procura de um ancoradouro sem o qual será melhor abandoná-la.

Christopher Shields
Tradução de Desidério Murcho
Retirado de Aristotle, de Christopher Shields (Londres: Routledge, 2006)

Notas
1. Na lógica de predicados contemporânea, o erro analisa-se facilmente: consiste
em trocar ilicitamente os quantificadores, afirmando (∀x)(∃y), e inferindo (∃y)
(∀x). Uma vez mais, na linguagem natural este é o erro de defender que tem de
haver uma rapariga na turma que beijou muitos rapazes diferentes porque todos
os rapazes da turma beijaram uma rapariga.
2. Uma pessoa que Aristóteles pode ter em mente é Eudoxo, que depois identifica
como a pessoa que defende tal perspectiva (Ética a Nicómaco 1172b 9-10).
3. Pode contar a favor desta interpretação o facto de Aristóteles sentir necessidade
de oferecer um argumento a favor desta conclusão no próximo capítulo, Ética a
Nicómaco I2, menos de vinte linhas depois de fazer a afirmação.
4. Aristóteles argumenta contra a univocidade do bem em Ética a Nicómaco I6.
5. Veja-se Kraut (1979) para uma excelente e completa discussão da distinção
entre duas concepções rivais de felicidade. A concepção aqui oferecida é
próxima da de Kraut mas difere dela em vários aspectos.
6. Sobre a alma e as suas capacidades, veja-se §§7.4 e 7.6.
7. Sobre a teleologia de Aristóteles veja-se §§2.7 e 2.8.
8. Para compreender a concepção da função humana que tem Aristóteles é
consequentemente importante compreender a sua concepção geral da
causalidade inintencional teleológica. Veja-se §2.7 e 2.8 para uma elucidação e
defesa parcial da sua perspectiva, dando-se especial atenção à sua tese da
determinação funcional.
9. Veja-se §3.2.
10. Este tema é retomado em §8.7.
11. Sartre, Jean-Paul (1993) Being and Nothingness, trad. H Barnes (Nova Iorque).

29
12. Adoptarei a partir daqui a tradução comum de aretê, mas deve-se ter em mente
que no grego de Aristóteles esta palavra tem um âmbito mais lato do que as
virtudes morais, apesar de as incluir. O mesmo acontece, como sugerimos, com
a palavra portuguesa “virtude”; apesar disso, é fácil deixar passar este facto.
13. Hume, Tratado da Natureza Humana II.iii: “A razão é, e deve apenas ser, a
escrava das paixões, e nunca pode pretender qualquer outra função senão servi-
las e obedecer-lhes.”
14. Estas duas características são: a pessoa encrática, dotada de autodomínio, e a
acrática, a incontinente. Veja-se §8.5 para uma discussão da acrática.
15. Assim, a noção da virtude “moral” tratada por Aristóteles é razoavelmente lata,
correspondendo à noção de “moral” no inglês antiquado, dizendo em geral
respeito ao carácter e hábitos de conduta. Assim, Shakespeare, All's Well That
Ends Well I. Ii. 2: “Youth, thou bear'st thy father's face […] thy father's moral
parts may'st thou inherit too.”
16. Bostock (2000, 50, 70-1) conclui nesta base que a doutrina do meio-termo “não
pode ser mantida.”
17. Este parece o juízo de Ross, David (1949) Aristotle (Methuen): “Esta parte da
Ética apresenta uma concepção vivaz e muitas vezes divertida das qualidades
admiradas ou desprezadas pelos gregos cultos do tempo de Aristóteles.” (p. 202)
18. Veja-se Shields, Christopher (2005) "Aristotle: Psychology," Stanford
Encyclopedia of Philosophy.
19. Note-se, contudo, que algumas características da linguagem de Aristóteles
sugerem fortemente que não está a falar da personagem do diálogo mas antes da
própria figura histórica.
20. Sobre a silogística de Aristóteles veja-se §3.4.
21. Para uma excelente visão geral de alguns dos pormenores na discussão
subsequente de Aristóteles veja-se Mele, Alfred (2004) "Motivated Irrationality"
in A. Mele e P. Rawlings, orgs., The Oxford Handbook of Rationality (Oxford
University Press), pp. 240-56. Para um tratamento invulgarmente claro de
Aristóteles, veja-se Dahl, Norman (1984) Pratical Reason, Aristotle and
Weakness of Will (University of Minnesota Press).
22. Sobre os critérios do bem mais elevado, veja-se §8.1 e 8.2.
23. Sobre a concepção objectiva de felicidade veja-se §8.2 e 8.3.
24. Sobre os seres humanos como animais políticos, veja-se §9.2.
25. Contribuições especialmente valiosas são as de Hardie, W. E. R. (1980)
Aristotle's Ethical Theory, segunda edição (Clarendon Press), que estabeleceu os
termos do debate dos tempos modernos, Ackrill, J. L. (1997) "Aristotle on
Eudaimonia," Essays on Plato and Aristotle (Oxford University Press), pp. 179-
200, e Kraut, Richard (1989) Aristotle on the Human Good (Princeton
University Press).
26. Barnes, Jonathan (1997) "Roman Aristotle", in Philosophia Togata II, org. J.
Barnes e M. Griffith (Oxford University Press) afirma que a “Ética a Nicómaco
é um absurdo, sem dúvida amontoado por um escriba desesperado ou um
livreiro sem escrúpulos e não por um autor ou um organizador,” insistindo “Que
a nossa Ética a Nicómaco não é uma unidade está para lá de qualquer
controvérsia — a existência de dois tratamentos do prazer é suficiente para
provar o facto. As únicas questões dizem respeito a saber quem inventou o nosso
texto, e quando, e com base em que materiais, e por que motivos.” (pp. 58-9)
27. Sobre as frases de abertura veja-se §8.1.

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28. Há, pois, uma questão académica quanto à linguagem de Aristóteles que não
iremos abordar. Veja-se Kraut, Richard (1989) Aristotle on the Human Good
(Princeton University Press), pp. 200-25, inteligentemente discutido de um
modo acessível por Hughes, Gerald (2001) Aristotle on Ethics (Routledge), pp.
27-31.

Leituras complementares
Assinala-se com asterisco as leituras especialmente adequadas para iniciantes, em
termos de clareza e acessibilidade.

Fontes primárias

• Aristóteles, Ética a Nicómaco, esp. I, II 1-6, III 1-7, V 1-2, 7-10, VI 1-8, 12-13,
VII 1-3, VIII 1-3, 9, IX 4, 7-9, 12, X 4-9.

Fontes secundárias

• Bostock, David, Aristotle's Ethics (Oxford University Press: 2000)


• Broadie, S. e Rowe, C. J., Aristotle: Nicomachean Ethics, tradução, introdução e
comentário (Oxford University Press: 2002)
• *Hughes, Gerald J., Aristotle on Ethics (Routledge: 2001)
• Irwin, Terence, Aristotle, Nichomachean Ethics, com notas e glossário anotado
(Hackett: 1985)
• *Kraut, Richard, “Aristotle: Ethics”, Stanford Encyclopedia of Philosophy
• Kraut, Richard, “Two Conceptions of Happiness”, Philosophical Review 88
(1979), pp. 167-97
• Kraut, Richard, org., The Blackwell Guide to Aristotle's Ethics (Blackwell:
2005)
• Pakaluk, Michael, Aristotle: Nicomachean Ethics Books VIII and IX, tradução e
comentário (Clarendon Press: 1998)
• Woods, Michael, Aristotle's Eudemian Ethics Books I, II and VIII, tradução e
comentário (Clarendon Press: 1982)

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