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Razão, Natureza e Graça -

Tomás de Aquino em Sentenças

Estudos introdutórios e tradução - Jean Lauand

PARTE I - ESTUDOS INTRODUTÓRIOS

PRÓLOGO

I- O Mundo de Tomás

1. O século XIII
2. A Universidade
3. Aristóteles no Ocidente

II - Nota Sobre o Método de Tomás e o Problema da Tradução

III - O "Ato de Ser" - base do pensamento de Tomás

1. Potência e Ato
2. Ser e essência
3. Tomás do Deus Criador
4. A alma como forma

IV- A Ética de Tomás

V- Nota Sobre a Unidade do Ser Humano

VI- A Graça

VII- Ordo, Ratio, Natura...

1. Ordem
2. Razão e Natureza
3. Medida
4. Transcendentais

VIII- Nota Sobre o Latim de Tomás


PARTE II - TOMÁS DE AQUINO EM
SENTENÇAS

Razão - Natureza

Ordem

Medida

Transcendentais

A alma como forma espiritual

Moral

Virtude e Pecado

PRÓLOGO

Em livro anterior, Tomás de Aquino hoje[1], procuramos oferecer uma


introdução ao pensamento do Aquinate. Já o presente trabalho, Razão,
Natureza e Graça - Tomás de Aquino em Sentenças, tem por objetivo
estabelecer as bases para um primeiro contato com os próprios textos de
Tomás: mais de cem de suas sentenças (algumas lançadas nos comentários
introdutórios; outras, sistematizadas e em formato bilíngüe).

A primeira parte é dedicada a estudos introdutórios: após um par de capítulos


iniciais - um mínimo enquadramento histórico e a discussão de aspectos
metodológicos e de "tradução" -, seguem-se cinco capítulos temáticos e uma
nota final sobre o latim de Tomás.

Na segunda parte apresentamos, selecionadas de diversas de suas obras,


setenta sentenças de Tomás[2] em tradução portuguesa (ao lado do original
latino), classificadas segundo alguns temas filosóficos e teológicos.

Alguns estudos introdutórios são inéditos; outros reproduzem - com ligeiras


alterações - tópicos tratados em Tomás de Aquino, hoje. Dada a importância
da linguagem comum para a metodologia de Tomás e procurando mostrar a
atualidade de seu pensamento, exploramos especialmente este tema, em
diversos desses estudos.

Razão, Natureza e Graça - Tomás de Aquino em Sentenças surgiu da


necessidade de facilitar para orientandos e alunos da FEUSP e da FFLCH-
USP o estudo das obras de Tomás, visando oferecer subsídios para vencer as
naturais dificuldades que o leitor contemporâneo encontra na compreensão de
alguns conceitos-chave do pensamento do Aquinate. Discutidos em
seminários com colegas e estudantes de Pós-Graduação, esses conceitos - e as
sentenças que os veiculam - ganharam corpo e concretizaram-se no presente
volume.

JL, 1995

I - O MUNDO DE TOMÁS[3]

1. O século XIII

Os cinqüenta anos da vida de Tomás de Aquino (1225-1274) estão centrados


no século XIII não só do ponto de vista cronológico: todas as novidades
culturais desse tempo mantêm estreita relação com sua vida e suas lutas. Ao
contrário do clichê que o apresenta como uma época de paz e de equilíbrio
harmônico, esse século é um tempo de agudas contradições, tanto no plano
econômico e social como no do pensamento:

- Intensificam-se os delicados problemas de relação entre o poder temporal e o


espiritual;

- Dá-se a expansão das viagens comerciais e missionárias, que levam os


cristãos a se darem conta das limitações geográficas e culturais de seu mundo;

- A Igreja, cujo poder e influência temporais vinham crescendo desde o século


IX, corre por isso mesmo o risco de contaminar-se por uma mentalidade
alheia a seus ideais. Surgem nessa época, por reação, diversas heresias que
pretendiam opor-se à Igreja por métodos violentos. Os albigenses e os cátaros
- do grego kátharoi, "puros" - renovam a antiga concepção maniqueísta: ante a
presença do bem e do mal no mundo, afirmavam a existência de um duplo
princípio da realidade: por um lado, Deus, criador do espírito e de tudo o que
é luminoso, bom e puro; por outro, o princípio da matéria, origem de todo o
mal. Em conseqüência, afirmavam que o corpo, o matrimônio, os
sacramentos, as instituições visíveis da Igreja eram intrinsecamente maus;

- S. Domingos e S. Francisco haviam fundado as ordens dominicana e


franciscana, rejeitando os erros dos hereges, mas acolhendo o que havia de
legítimo nos ideais de reforma e dando-lhes uma expressão equilibrada e
verdadeira dentro da Igreja e não fora dela. No início do século XIII, o êxito
das duas ordens, englobadas sob a denominação de "mendicantes" por
renunciarem a todo o tipo de posses, é explosivo. Esses frades renunciam à
vida retirada do monacato tradicional, dirigindo-se especialmente à juventude
das cidades. Aliás, o século anterior havia assistido a um verdadeiro
renascimento da vida urbana.

É natural que Tomás se fizesse dominicano: o ideal de São Domingos


coincide perfeitamente com a vocação de Tomás. Está centrado, por um lado,
no retorno ao espírito do Evangelho, numa pobreza e pureza radicais, mas
completadas pela fé e pela humildade; e, por outro, na paixão de anunciar a
verdade, convencendo pela argumentação e não pela violência[4].

Há ainda dois outros fenômenos que caracterizam a ebulição intelectual deste


século: as Universidades e, vinculada a elas, a introdução do pensamento
aristotélico no Ocidente.

2. A Universidade

Em começos do século XIII e, parcialmente já no anterior, tinha-se iniciado


em torno das melhores escolas diocesanas uma espécie de "reação em cadeia":
para lá afluíam os melhores estudantes e lá se formavam e se estabeleciam os
melhores mestres.

Em pouco tempo, estudantes e professores resolveram erigir uma corporação


de ofício própria, que os libertasse da ingerência dos poderes civis e
eclesiásticos. Nascia a universitas, a "totalidade" dos professores e dos
estudantes de determinada cidade. Via de regra, solicitavam ao Papado a
isenção, fórmula jurídica que as ligava diretamente à Santa Sé, desvinculando-
as das tutelas locais. Paris recebe o seu estatuto do próprio Papa em 1215.

Não por acaso a palavra universitas, a agremiação dos professores e alunos,


acumula semanticamente, desde os começos da instituição, também o matiz de
universitas litterarum, "universalidade do conhecimento": podiam-se estudar
ali não só todas as ciências da época, mas pretendia-se estudá-las
"filosoficamente", em confronto com o universum: "o todo das coisas divinas
e humanas em suas conexões globais", segundo o ideal de Platão (República,
486a). Também esta é a perspectiva fundamental do pensamento de Tomás:
abertura para a totalidade do real, o que, afinal, é a própria definição de
espírito. Com Aristóteles, Tomás não se cansa de repetir: anima est
quodammodo omnia, a alma humana está chamada a relacionar-se com o todo
do ser em suas conexões globais.
A Universidade de Paris, então "capital da cristandade", considerava-se
mesmo herdeira da Academia de Atenas. Na época de Tomás, era ela que
dominava o panorama intelectual do Ocidente. É lá que se encontram os
professores mais importantes, as oposições mais radicais e os estudantes mais
turbulentos, vindos de todos os cantos da cristandade. Por isso mesmo, todas
as novidades e todas as questões que lá se discutiam encontravam ressonância
universal. Foi nesse ambiente privilegiado da Universidade de Paris que
Tomás desenvolveu o melhor de sua obra e de sua docência e enfrentou as
mais duras batalhas intelectuais.

3. Aristóteles no Ocidente

A doutrina de Aristóteles invadiu o ambiente intelectual do Ocidente em


meados do século XII com a força de um terremoto. Os primeiros séculos
medievais somente haviam conhecido uma pequena parte dos escritos desse
filósofo, traduzidos para o latim por Boécio (ca. 480-525), em especial das
suas obras sobre Lógica. A filosofia e a teologia da Alta Idade Média haviam
se norteado principalmente pelas obras de Santo Agostinho, na sua maior
parte inspiradas na tradição neo-platônica[5].

Aliás, antes mesmo da queda de Roma, o pensamento aristotélico era visto por
muitos cristãos como algo estranho e alheio à reta doutrina: parecia demasiado
"materialista" em comparação com o espiritualismo de Platão, em aparência
mais próximo do cristianismo. Foram principalmente os hereges nestorianos
que cultivaram as teorias aristotélicas e, quando o Concílio de Éfeso condenou
a cristologia de Nestório, em 431, seus seguidores - agrupados principalmente
em torno da escola de Edessa, na Síria - refugiaram-se na Pérsia, levando
consigo as obras de Aristóteles e textos de matemática, medicina e outras
ciências gregas.

Quando os árabes conquistaram todo o Oriente Médio e o Império Persa, os


sábios aristotélicos foram chamados à corte do califa de Bagdad. Pouco
depois, por volta do ano 800, o árabe já se havia tornado, graças a eles, uma
língua científica internacional, responsável em boa parte pelo brilho da
civilização árabe. E é no âmbito desta civilização que surgem os grandes
comentadores de Aristóteles: Ibn Sina (Avicena), nascido em 980 na Pérsia;
Ibn Rushd (Averróes), nascido em 1126 em Córdova; e Maimônides, um
judeu nascido em 1135, também em Córdova.

Em Toledo, reconquistada aos árabes pelos cristãos, surge no século XII, por
iniciativa do bispo Raimundo, um movimento de traduções[6]. E, na verdade,
o que primeiramente penetra no Ocidente não é Aristóteles, mas uma mistura
de Aristóteles com seus comentadores árabes, o que era diferente do
Aristóteles original... Mas o fato é que, pela primeira vez, a Idade Média se
depara com uma grandiosa interpretação completa e sistemática do mundo à
margem da Revelação cristã.

As primeiras reações que essa filosofia desperta são fáceis de prever: há os


que se entusiasmam e, por assim dizer, se embriagam com a novidade, e
também aqueles que a vêem como algo suspeito e perigoso.

A dinâmica espiritual do século XIII é, pois, dominada por duas forças: um


evangelismo radical do movimento da pobreza, que renova e aprofunda a
piedade e "redescobre" a Sagrada Escritura, e um mundanismo inspirado em
Aristóteles, que confere à razão natural e ao mundo material uma importância
e uma independência de que até então nunca tinham gozado.

É precisamente nisto que reside a grandeza de Tomás: tendo-se defrontado


com estas "visões de mundo", que já então se apresentavam fortemente
antagônicas, não optou por uma delas, mas aceitou-as ambas, ultrapassando-as
ao deslindar o conteúdo de verdade de cada uma. Naturalmente, com isto,
Tomás sofreu inúmeras incompreensões: cada um dos lados em conflito
considera-o um oponente em potencial!

II - NOTA SOBRE O MÉTODO DE TOMÁS E O PROBLEMA DA


TRADUÇÃO

Tomás dirige sua busca filosófico-teológica[7] para o ser, em abertura para a


máxima totalidade. Tal como Platão, ele, como filósofo, não está preocupado
em saber se o rei de Atenas é feliz ou não, mas em saber o que, afinal de
contas, a felicidade é. O que, em si e em última instância, é isto? O que é o
ente sob todo ponto de vista concebível?

Mas como atingir o ser? Nada mais distante de sua concepção filosófica do
que um discurso apriorístico: Tomás parte da experiência[8], do fenômeno, do
ser tal como ele se manifesta. Daí que dê especial relevo metodológico às
formas de agir humano e à linguagem, enquanto portadores de notícias sobre o
ser.

Destaquemos brevemente um aspecto de seu modo de filosofar: a atenção


dada à linguagem comum. Tomás tem um enorme respeito pela linguagem do
povo. Multitudinis usus, quem in rebus nominandis sequendum, o uso comum
do povo que deve ser seguido... - assim começa ele a Suma contra gentes.
Assim, em Tomás, encontramos a recusa de uma "terminologia"[9] e a
aproximação da linguagem comum, por ele considerada depositária de
sabedoria, quando devidamente trabalhada, "garimpada"[10].
Tomás procura, pois, a realidade, a experiência sobre a realidade do homem.
A sua concepção apóia-se no fato (bastante empírico) de que há na vida
ocasiões especiais em que a realidade perde seu rosto rotineiro e nos apresenta
uma face nova: de repente descobrimos o que é ou o que significa para nós
algo ou alguém. Daí que afirme, com Aristóteles e Platão, que a admiração é o
princípio do filosofar.

Mas essas experiências especialmente densas que o homem tem consigo


mesmo e com o mundo não têm brilho duradouro na consciência reflexiva:
logo se desfazem, escapam-nos. Subjaz a toda a antropologia de Tomás aquela
constatação, axiomática para os antigos: o homem é um ser que esquece! No
entanto, essas experiências não chegam a ser totalmente aniquiladas;
escondem-se, condensam-se, transformam-se, depositam-se... na
linguagem[11]. E o filosofar é, em boa medida, uma tentativa de lembrar, de
resgatar os grandes insights de sabedoria que se encontram encerrados na
linguagem comum.

Por isso, Tomás sempre está atento à linguagem do povo, buscando nela a
transparência. Um exemplo entre tantos: já na primeira questão da Suma
Teológica, ao procurar caracterizar o que é a sabedoria, Tomás explica que a
sabedoria não deve ser entendida somente como conhecimento que advém do
frio estudo, mas como um saber que se experimenta e se saboreia. Sempre
tendo em conta os fenômenos da linguagem, a fala do povo, como fonte de
profundas descobertas filosóficas, encanta-se com o fato - para ele experiência
pessoal vivida - de que em latim sapere signifique tanto "saber" como
"saborear". Esta coincidência de significados na linguagem do povo - Tomás
bem o "sabe" - não é casual: se há quem saiba por que estudou,
verdadeiramente sábio é aquele que sabe porque saboreou...

Aplicando este mesmo procedimento metodológico aos estudos introdutórios


às sentenças de Tomás, freqüentemente remeter-nos-emos à linguagem, como
fator elucidativo da realidade.

A propósito da linguagem e de sua importância, devemos chamar a atenção


para uma especial dificuldade que o leitor contemporâneo encontra na
compreensão dos textos do Aquinate: o conhecido fenômeno de alteração do
sentido das palavras que se manifesta muitas vezes quando lemos um autor de
outra época. E não só alteração; freqüentemente, há uma verdadeira inversão
de polaridade: aquela palavra que originalmente designava uma qualidade
positiva, esvazia-se ou passa até a designar uma atitude negativa.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com a palavra "prudência". Atingida ao


longo dos séculos pelo subjetivismo metafórico e pelo eufemismo, já não
designa hoje uma grande virtude, mas cautela oportunista e egoísta.
Para Tomás, pelo contrário, prudentia expressa exatamente o contrário da
indecisão: é a arte de decidir-se corretamente, isto é, com base não no
oportunismo interesseiro, não em sentimentos piegas, em temores, em
preconceitos etc., mas, unicamente, com base na realidade: pelo límpido
conhecimento do ser[12].

Desse modo, embora os dicionários Latim-Português continuem a trazer


prudência como a tradução de prudentia, esta última designa uma grandiosa
virtude (a primeira entre as virtudes cardeais!), ao passo que a nossa
prudência designa o medíocre vício da indecisão, que pondera tudo, exceto
aquilo que a realidade efetivamente exige de um homem reto.

Certamente, este fenômeno transcende o âmbito da linguagem e remete a um


empobrecimento existencial do próprio homem, na medida em que, como se
sabe, nossa possibilidade de percepção do mundo e de vivência de atitudes
está fortemente condicionada pela existência de uma linguagem viva[13].

III - O "Ato de Ser" - base do pensamento de Tomás

1. Potência e Ato.

Comecemos com o mais decisivo e central tema do pensamento de Tomás.


Ainda muito jovem, com menos de trinta anos, ele realiza, com base na
distinção aristotélica entre potência e ato, uma descoberta revolucionária: a do
ato de ser. Será esta noção que lhe permitirá superar todo tipo de
essencialismo e ser "o mais existencialista de todos os filósofos"[14].

Potência e ato são noções básicas e intuitivas, tão fundamentais que não se
deixam definir[15]. Precisamente uma das grandes contribuições de Aristóteles
para a História da Filosofia foi a de ter ensinado que há diversos modos de
ser; que o ser não é unívoco (nem equívoco), mas análogo. Potência e ato são
dois modos de ser: a potência é um modo fraco; o ato, forte.

O ato é o que, mais propriamente, é. Ato é o que é real, fático, já realizado


(aspecto acentuado pela nossa palavra "atualmente"). É nesse sentido
aristotélico de realidade que a língua inglesa diz actually para indicar que algo
é realmente, de fato[16]. Já potência é o que pode vir a ser real (em ato), mas
de fato não o é; uma semente pode (está em potência de) vir a ser (em ato)
árvore.

Na perspectiva da tradição platônico-agostiniana não ficava clara a distinção


entre João da Silva e um homem simplesmente pensado, ideal. Tomás, pelo
contrário, chama a atenção - com um bom senso notável - para o fato de que
um é, mas o outro não; o ser não é uma atividade a mais que deriva da
natureza de cada coisa. O ser - no sentido de ser-real[17] - está fora e acima da
série de características que compõem a essência. O fato de uma coisa ser, isto
é, exercer o ser em ato, ter ato de ser, é algo único e absolutamente decisivo,
mais importante que o conteúdo, o grau de perfeição que essa coisa possa
apresentar. "O ser é aquilo que há de mais íntimo em cada coisa, e o que mais
profundamente está inserido em todos os entes" (I, 8, 1).

E o que significa ser? Ser é, antes de mais nada, atividade, ato. Todas as
coisas, todos os entes, são, antes de mais nada, aqueles que "exercem o ato" de
ser, fato que já a própria linguagem comum recolhe: se o presidente é aquele
que exerce a atividade de presidir, o gerente a de gerir, o caminhante a de
caminhar, o ente exerce a de ser. Mas justamente por constituir a primeira
atividade, a mais fundamental - e "a mais maravilhosa", dirá Gilson -, o ser
escapa a qualquer definição: "O ato de ser não pode ser definido" (In Metaph.,
9,5.). Não podemos captá-lo pela inteligência e transformá-lo num conceito,
como o fazemos com a essência de qualquer coisa, porque é anterior a
qualquer idéia. O ser é, e sempre será, um mistério que o homem não pode
esgotar.

Ao contrário do pensamento essencialista, Tomás não parte das essências, mas


das coisas, dos entes, da realidade.

2. Ser e essência

O binômio fundamental da metafísica de Tomás é: ato de ser / essência (esse,


actus essendi / essentia). Todo ente é, e é algo: é homem, é cão, é pedra.
Nessa composição, se o responsável pelo é do ente é o ato de ser, seu
complemento necessário, a essência, corresponde ao "quê" que o ente é.

Para entendermos a linguagem de Tomás, lembremos que a essência admite


"sinônimos". Bem entendido: "sinônimo" não significa identidade absoluta,
mas sim que cada "sinônimo" aponta para um determinado aspecto diferente
da mesma e única realidade: tal como quando falamos em "casa", "lar",
"domicílio" ou "residência". Em si, a realidade a que se referem estas palavras
é a mesma e única edificação na Rua Tal, número tal; mas ninguém diz
"domicílio, doce domicílio", nem a Prefeitura cobra impostos sobre meu lar,
etc.[18]

Do mesmo modo que casa, lar, domicílio etc. enfatizam aspectos diferentes,
assim também, falamos em essência como contraponto do ato de ser; em
natureza, quando queremos acentuar o fato de que essa essência é princípio de
operações[19]; ou em qüididade (quidditas), para enfatizar o fato de que a
essência é o que responde à pergunta: "O que é isto?" (o que se torna mais
claro na sugestiva forma francesa: "Qu'est-ce que... ?", "Que é este quê...?").

Ao afirmar a composição essência/ato de ser, Tomás não considera o ser


como algo justaposto, acrescentado a uma essência ideal, como algo separado
a que se agrega o ser; o ato de ser é que é o ponto de partida, o elemento mais
fundamental de todos os entes. E a essência é a medida[20] da recepção do ato
de ser.

Uma comparação pode ajudar-nos a entender isto: nos sons realmente


emitidos por um flautista, podemos distinguir o ato de soar (na comparação: o
ato de ser) e, por assim dizer, o toar (a essência), a particular nota musical que
caracteriza aquele som: soar e toar como dó, ré, mi, sol bemol etc. Na
verdade, o soar e o toar estão em intrínseca união: cada som emitido pelo
instrumento, vem unido a uma determinada freqüência que o define como tal
nota, e, inversamente, cada nota realmente emitida soa.

Ora, também a essência, longe de ser uma realidade isolada à qual se


justaporia o existir, é entendida por Tomás como intrinsecamente unida ao
ente real e concreto: como de-finição, de-limitação, de-terminação, isto é
estabelecendo os limites, o fim, o término, da recepção do ato de ser por este
ente concreto. Assim como o dó, o si bemol e o sol se caracterizam como tais
por receberem o seu soar em tais e tais "medidas", assim também este ente
tem uma essência (é pedra, árvore, cão ou homem) por receber o actus
essendi em tal e tal forma, em tal medida.

"O ser é a atualidade de toda forma ou natureza: só se podem dar, em ato,


bondade ou humanidade enquanto se dá o ser. Daí que necessariamente o ser
esteja para a essência como o ato para a potência" (I, 3, 4).

Sem termo de comparação com a flauta (onde não existe o "puro ato de soar"),
no caso de Deus - precisamente por não haver delimitação, determinação,
definição na sua posse do ser - não se pode propriamente falar em essência,
mas em puro ato de Ser. Ele é ato puro, de cujo ser participam todos os entes.

3. Tomás do Deus Criador[21].

Esta afirmação do ato de ser é como que uma prova da existência de Deus, a
não ser que neguemos que as coisas são. A atividade de todos os entes decorre
da sua natureza: a mangueira germina, cresce, floresce e dá mangas porque é
mangueira. Está na sua essência fazê-lo. Todas as mangueiras o fazem. Mas o
ser, apesar de constituir a principal atividade exercida pelos entes - todos os
entes -, não decorre da sua natureza; é "anterior" a ela, só é compreensível se
as coisas o exercem como algo recebido; "assim, o ser que está presente nas
coisas criadas, pode somente remontar-se ao ser divino" (De pot., 3,5 ad 1).

Tomás compara com freqüência o ato criador à luz que o sol emite: o ar só
tem luz na medida em que sobre ele se exerce a presença do sol; se este se
apagasse, imediatamente aquele deixaria de estar iluminado. Da mesma
forma, se Deus deixasse de sustentar todas as coisas no ser, imediatamente
elas recairiam no nada, pois o ser não é algo que decorra delas próprias.

Tal como o fogo ou a luz criam uma dependência contínua nas coisas que
deles participam, sendo por eles aquecidas ou iluminadas, assim também a
criação não é entendida por Tomás simplesmente como um começo, mas
como uma situação: a presença fundante do Criador no ente criado. Ou seja,
se existimos, é porque Deus nos mantém continuamente no ser. Dependemos
dEle da forma mais profunda e absoluta, e tudo nos vem deste primeiro ato
"fundacional". Mesmo quem se volta contra Deus está sendo por Ele
amparado em cada instante e em cada ato que realiza.

Essa intuição de Tomás permite afastar qualquer panteísmo, pois a criação,


sendo ex nihilo, a partir do nada, estabelece um imenso abismo diferencial
entre o ser de Deus e o ser das criaturas, ser recebido por participação. Fica
excluída qualquer possibilidade de um Universo divino, e fica excluída
portanto qualquer visão do ser humano como simples "gota de água" nesse
"oceano de divindade", sem liberdade e sem responsabilidade.

Daí decorre também que todo e qualquer ente espelhe a Deus, pela essência e
pelo ato de ser: "Todas as coisas, na medida em que são, reproduzem de
algum modo a essência divina; mas não a reproduzem todas da mesma
maneira, mas de modos diferentes e em diversos graus. Assim, o protótipo e o
original de cada criatura é o próprio Deus, na medida em que este é
reproduzido de determinada maneira por determinada criatura" (Quodl. 4, 1).
"Todas as coisas, na medida em que são, assemelham-se a Deus, que é o ser
primeiro e principal" (CG 1, 80). "A criatura é trevas na medida em que
provém do nada; mas na medida em que provém de Deus, participa de uma
certa semelhança com Ele e conduz à semelhança com Ele" (De Ver. 18, 2 ad
5).

Esta afirmação encerra em si importantes conseqüências para o pensamento e


para a vida. Ao contrário da teologia "espiritualista" de sua época, que vê na
matéria a fonte da limitação, e portanto recomenda a "negação do mundo"
como atitude necessária para se atingir a Deus, Tomás verá nesse mesmo
mundo - nas coisas criadas - o caminho para se chegar até Ele. "O ser é um
reflexo da divina bondade; assim, quando alguém deseja qualquer coisa,
deseja no fundo assemelhar-se a Deus e, implicitamente, deseja o próprio
Deus" (De Ver. 22, 2 ad 2). "Quando a nossa mente se ocupa das coisas
temporais buscando nelas o seu fim, rebaixa-se a elas; mas quando se ocupa
delas em ordem à bem-aventurança, longe de rebaixar-se a elas, eleva-as a
Deus" (83, 6 ad 3).

Tomás é, portanto, decididamente "materialista". No entanto, essa atitude não


se opõe nele à fé; pelo contrário, ajuda a compreendê-la melhor, e vem
reforçar um aspecto central que desde sempre esteve pressuposto no
cristianismo: o mundo material é criatura de Deus, não algo oposto a Ele.

4. A alma como forma.

Tomás apresenta uma impressionante unidade de visão, quando contempla o


mundo material.

Para analisar a realidade material, ele parte das experiências dos fenômenos da
unidade de cada ente e das mudanças substanciais, nas quais ocorre uma
mudança de sujeito: uma coisa A, deixa de ser o que é e passa a ser outra
coisa, B. Ora, B não proveio do nada (mas, evidentemente, de A) e A não se
reduziu ao nada (deixou de ser A e passou a ser B). Há, portanto, nesses casos
de mudança de substância, algo que permanece e algo que muda (o que está a
indicar que a substância é composta). O que permanece é a pura
potencialidade de ser um ente físico (matéria prima), atualizada, em cada
caso, por um fator determinante dessa potência que faz com que A seja A e B
seja B: a forma substancial.

A matéria é esse modo fraco de ser que é a potência; a forma é que é o


componente decisivo na constituição de um ente: é pela forma que um ente é o
que é. A pedra é pedra porque tem forma de pedra; o homem é homem porque
tem forma de homem.

Assim, para Tomás, todo ente físico é composto de uma intrínseca união de
matéria (a potência de ser ente físico) e forma (o ato que "atualiza" a matéria).
E é tal sua unidade de consideração do cosmos, que emprega o mesmo
binômio matéria/forma para indicar tanto a composição substancial de uma
pedra quanto a de um homem.

Alma, para Tomás, é simplesmente uma forma, a forma dos viventes. Uma
forma muito especial (daí que também receba um nome especial[22]), mas uma
forma. Desse modo, pode-se falar em alma de um vegetal, em alma de uma
formiga ou de um cão e em alma humana (no caso, uma alma espiritual).
A alma (como, aliás, todas as formas substanciais) é um princípio de
composição substancial dos viventes. Ou melhor, um co-princípio (em
intrínseca união com o outro princípio: a matéria). É pela alma que se
constitui e se integra o vivente enquanto tal, e ela é também a fonte primeira
de seu agir.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma


espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união e mútua ordenação de
ambos os princípios.

A seguir, daremos um exemplo - o caso do objeto próprio da potência


espiritual da alma que é a inteligência - que nos ajudará a compreender o
alcance desse "materialismo" de Tomás.

Não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências[23].
Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva
não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.

Dizer que a inteligência é uma faculdade espiritual é dizer que seu campo de
relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas visíveis e invisíveis são
inteligíveis; "calçam" bem, combinam com a inteligência. Contudo, a relação
da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos
entes e diferentes modos de ser, uns são mais direta e imediatamente
acessíveis à inteligência.

É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da


realidade que se ajusta, por assim dizer, sob medida, à potência (ou, melhor
dito, vice-versa). Não que a potência não possa incidir sobre outros objetos,
mas o objectum proprium é sempre a base de qualquer captação: se pela visão
captamos, por exemplo, número e movimento (digamos, sete pessoas
correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão.

Próprio da inteligência humana - potência de uma forma ordenada à matéria -


é a abstração: seu objeto próprio são as essências das coisas sensíveis.

"O intelecto humano, porém - diz Tomás, contrapondo a inteligência do


homem à do anjo -, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a
natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a
natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis" (I,
84, 7). E nesta afirmação, como dizíamos, espelha-se a própria estrutura
ontológica do homem na vida presente.

Esta atitude de reta afirmação da realidade material é tão central em Tomás


que constituiria assunto sem fim. Limitemo-nos a apontar um par de temas
conexos.
Esse posicionamento considera, por exemplo, que mesmo as realidades mais
espirituais são alcançadas através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo
o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas
sensíveis naturais". Esta sentença, além do mais, sugere-nos que o sentido
extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo
e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor.

Consideremos também a liturgia. O que é a liturgia senão a aplicação até as


últimas conseqüências da tese: anima forma corporis (a alma é forma do
corpo)? A realidade mais espiritual vem traduzida em gestos, cores, e cantos.
E a graça sacramental é eficazmente veiculada pela materialidade do vinho e
do pão, "fruto da terra e do trabalho do homem". Fora desse reconhecimento
tanto da realidade natural do homem quanto da realidade sobrenatural da
graça, dão-se duas possibilidades: ou a liturgia desaparece, quando se
considera o homem uma espécie de espírito puro unido acidentalmente à
matéria (para que serviriam sacramentos, gestos, imagens, etc., se a religião é
"espiritual"?); ou se absolutizam os ritos, e ela se torna um mero "happening"
comunitário...

IV- A ÉTICA DE TOMÁS

Decorrente de sua doutrina sobre o ser, o ser do homem em alma e corpo, é a


concepção de moral de Tomás. O homem de hoje tem dificuldades para
compreender a moral porque ao pensar em moral, costuma imaginar alguma
coisa ligada a regras e proibições, imposições mais ou menos incômodas e
arbitrárias procedentes dos pais, professores, ministros religiosos, enfim,
limitações à liberdade feitas pela sociedade.

Totalmente outra é a concepção de Tomás. Ele nem sequer poderia conceber a


moral como algo imposto, nem como "assunto reservado a religiosos" e,
menos ainda, como algo constrangedor ou repressivo da liberdade humana! O
que, sim ele diz, é que a moral é o ser do homem[24], doutrina sobre o que o
homem é e está chamado a ser.

Sim, porque para Tomás a moral é entendida como um processo de auto-


realização do homem[25]; um processo levado a cabo livre e responsavelmente
e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser-homem: "Quando
porém se trata da moral, a ação humana é vista como afetando, não um
aspecto particular, mas a totalidade do ser do homem...; ela diz respeito ao que
se é enquanto homem" (I-II, 21, 2 ad 2).
Note-se que estamos caracterizando a ética falando de realização (no
singular), e não de realizações (plural) nos diversos aspectos setoriais da vida:
financeiro, saúde, status, etc... Pois a moral diz respeito precisamente à
realização; realização não deste ou daquele aspecto parcial, mas a que afeta a
totalidade, o que se é enquanto homem[26].

Tomás tem da ética uma visão profunda e orgânica, que deriva da própria
natureza ou essência do ser humano. O Aquinate afirma diversas vezes que a
Criação é obra de toda a Santíssima Trindade, e que constitui uma união de
ser, verdade e bem que espelha a Unidade das três Pessoas divinas: Pai, Filho
e Espírito Santo. "Deus Pai opera a Criação pelo seu Verbo, que é o Filho, e
pelo seu Amor, que é o Espírito Santo" (I, 45, 6). O ato de "dar o ser" está
unido ao Pensamento divino, ao Verbo que, juntamente com o ser, dá
"verdade" e inteligibilidade à criatura: ao criá-la, dota-a daquela essência, que
pode ser objeto de análise racional.

Todo ente tem, portanto, uma essência, uma natureza, um modo de ser
pensado, planejado por Deus; está organizado ou estruturado segundo um
"projeto" divino. O homem (e cada coisa criada) é o que é, possui uma
natureza humana, precisamente por ter sido criativamente criado pelo Verbo.
Daí que haja uma verdade e um bem objetivos para o homem, porque seu ser
não é caótico ou aleatório, mas procede de um design divino.

Para estabelecermos uma comparação[27], poderíamos dizer que assim como o


manual de instruções de um complicado aparelho elétrico não é outra coisa
que uma decorrência do design, do processo de criação e de fabricação
daquela máquina, assim também a moral deve ser entendida não como um
conjunto de imposições arbitrárias ou convencionais, mas pura e
simplesmente como o reconhecimento da verdadeira natureza humana, tal
como projetada por Deus. E da mesma forma que não ficamos revoltados
contra o fabricante que nos indica: "Não ligarás em 220V", ou "Conservarás
em lugar seco", mas lhe agradecemos essas informações, assim também
devemos enxergar, digamos, os Dez Mandamentos não como imposições
arbitrárias, mas como verdades elementares sobre o ser do homem.

É, pois, ao homem que se dirige a ética de Tomás; ao homem total, espírito


em intrínseca união com a matéria; ao homem, ser-em-potência, que ainda não
atingiu a estatura a que está chamado e para quem a moral se expressa na
sentença do poeta pagão Píndaro: "Torna-te o que és!".

Nesta perspectiva, toda norma moral deve ser entendida como um enunciado a
respeito do ser do homem; e toda transgressão moral, o pecado, traz consigo
uma agressão ao que o homem é. Os imperativos dos mandamentos ("Farás
x...", "Não farás y...") são, no fundo, enunciados sobre a natureza humana: "O
homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, requer x e é
incompatível com y".

Neste quadro, situa-se a doutrina de Tomás sobre a virtude. A virtude - como


também o seu oposto: o vício - é um hábito (naturalmente, a virtude é um
hábito bom; o vício, mau). Nosso tempo anda tão desorientado no que diz
respeito à Educação Moral que a própria palavra "hábito" nos causa aversão:
associamos hábito a condicionamento, domesticação, etc. Porém, o verdadeiro
sentido do hábito, o que lhe dá Tomás, nada tem a ver com essas deformações.
Hábito é pura e simplesmente uma qualidade adquirida (auto-adquirida e
livremente desenvolvida) que facilita e aperfeiçoa a ação e aperfeiçoa também
o próprio homem.

Antes de falarmos dos hábitos morais, pensemos no hábito em outros campos:


quem censuraria ao pianista o trabalho de procurar adquirir facilidade e
espontaneidade em suas escalas e acordes; ou os esforços de alguém que
busca a fluência no falar uma língua estrangeira, etc.? Naturalmente, num
primeiro momento (quando não há hábito) a ação custa esforço e não se dá
espontaneamente, mas com o tempo e com a auto-educação surge o hábito: a
facilidade.

O mesmo ocorre com a moral: adquire-se, por exemplo, a virtude da justiça na


medida em que não nos custa tanto esforço dar ao outro o que lhe é devido.
Naturalmente, nisso como em tudo, nem sempre a nossa tendência espontânea
é a correta: pode ser que espontaneamente a tendência de alguém fosse a de
explorar, atropelar, desrespeitar o outro. Mas quando esse alguém reconhece
que eticamente, por natureza, há, neste e naquele caso concreto, algo que ele
deve a outrem e efetivamente o dá, não só está praticando um ato de justiça:
está - como no caso da educação musical ou no dos idiomas - adquirindo o
hábito, a facilidade, de ser justo no futuro.

Assim se compreende a sentença de Tomás: "As virtudes nos aperfeiçoam


para que possamos seguir devidamente nossas inclinações naturais" (II-II,
108, 2), uma vez que - e é um ponto fundamental na Antropologia de Tomás -
o homem tende naturalmente à felicidade; por criação está indelevelmente
inscrito em seu coração o desejo de ser feliz. A aquisição de virtudes é auto-
educação para aquilo que objetivamente é bom (coincida ou não com a
espontaneidade).

V- Nota sobre a unidade do ser humano

Falávamos do ser do homem, do que o homem é. Sobre isto deu-se uma das
maiores disputas de Tomás em Paris: sua defesa da unidade do ser humano.
Seus adversários afirmavam a existência de uma alma espiritual humana
"separada", situada acima da realidade corpórea, sendo a dimensão sensível e
a fisiológica do homem regidas por outros princípios, por uma "alma
sensitiva" e outra "vegetativa"; só a "alma espiritual" seria objeto da teologia,
e o resto não teria interesse algum. Já o universalismo de Tomás recusava-se a
estreitar o âmbito da teologia, reduzindo-a ao que é puramente espiritual,
como se o corpo não tivesse sido criado por Deus, como se o Verbo não se
tivesse feito carne.

A posição contrária refletia a tendência de reduzir a Criação a um dos seus


aspectos, o espiritual: nesta perspectiva torna-se muito difícil entender qual o
papel do corpo no que diz respeito à Salvação. Quando muito, será um
obstáculo, mera ocasião de pecado. E já se vê que não estamos longe da
tremenda negação maniquéia do corpo e da alegria de viver.

Tomás, pelo contrário, aceita tão completamente o corpo como integrante


essencial da realidade do ser humano, tal como criado por Deus, que chega a
afirmar que "a alma unida ao corpo é mais semelhante a Deus do que a alma
separada dele, porque possui com mais perfeição a sua própria natureza. Cada
coisa é semelhante a Deus na medida em que é perfeita, mesmo que a
perfeição de Deus e a da criatura sejam diferentes entre si" (De Pot. 5, 10 ad
5). E "a alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que,
é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude" (CG 3,
144).

Tomás afirma, sem dúvida, que a felicidade definitiva do homem reside na


posse de Deus pela contemplação, pelo olhar de amor - "que, vendo o teu
rosto, seja eu feliz contemplando a tua glória", diz o hino Adoro te devote -;
mas prossegue dizendo que esta felicidade não é algo "transferido" para
depois da morte, e sim algo que irrompe, que já se inicia nesta vida, pela
fruição dos bens do mundo, até mesmo de um copo de água fresca num dia de
calor: "Assim como o bem criado é uma certa semelhança e participação do
Bem Incriado, assim também a consecução de um bem criado é uma certa
semelhança e participação da bem-aventurança final" (De malo 5, 1 ad 5).

É nesse enquadramento que se compreendem certos aspectos da filosofia e da


teologia de Tomás, notáveis pelo senso comum, que poderiam talvez parecer
episódicos ou secundários, mas que lançam luz sobre seu posicionamento.
Alguns exemplos:

- entre os remédios contra a tristeza - que é muito perniciosa, pois "dentre


todas as paixões da alma é a que mais dano causa ao corpo" (I-II 37, 4) -,
inclui os banhos e o sono (I-II 3, 8), que combatem a tristeza porque
"restabelecem a natureza corporal", como Deus manda.
- Tomás defende e preconiza o brincar (ludus) - "O brincar é necessário para a
vida humana" (II-II 168, 3 ad 3) - tanto no Comentário à Ética[28] como na
Summa.

- Tomás nunca fala do sexo como de algo vergonhoso ou pecaminoso; pelo


contrário, afirma que a força sexual é não só um bem, mas um bonum
superior : "As inclinações naturais estão inscritas nas coisas por Deus, que a
todos move. Assim, é impossível que qualquer inclinação natural seja algo
mau em si. Ora, em todos os animais reside a inclinação para a união carnal, e
portanto é impossível que a união carnal seja má em si mesma" (CG 3, 126).
Neste campo, como em todos os outros, o pecado reside no afastamento do
reto uso da natureza previsto pelas leis de Deus - num sexo "coisificado",
como ocorre no adultério etc.

VI - A GRAÇA

É impossível tentar fazer aqui um resumo ou sequer uma enumeração dos


principais temas da vasta e profunda teologia de Tomás. Limitemo-nos,
portanto, a algumas indicações sobre a doutrina teológica que melhor resume
e mostra a sua unidade de pensamento: a doutrina da graça.

Ao examinar essa doutrina, Tomás lança mão amplamente do conceito de


participação, que permitirá compreender em grande profundidade - ainda que
não "esgotar" - essa presença especial do divino no humano inaugurada pela
Encarnação e característica da ordem sobrenatural.

Na linguagem comum, "participar" significa - e deriva de - "tomar parte"


(partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse "tomar parte". Um
primeiro é o de "participar" de modo quantitativo, caso em que o todo
"participado" é materialmente subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas
participam de uma pizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a
sua parte. Num segundo sentido, "participar" indica "ter em comum" algo
imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada; é
assim que se "participa" a mudança de endereço "a amigos e clientes", ou
ainda que se "dá parte à polícia". O terceiro sentido, mais profundo, é o que é
expresso pela palavra grega metékhein, que indica um "ter com", um "co-ter",
ou simplesmente um "ter" em oposição a "ser"; um "ter" pela união
(participação) com outro que "é".

Já ao tratar da Criação, Tomás havia utilizado este conceito, que é platônico e


não aristotélico, mas que foi pouco trabalhado por Agostinho. O ser criado
tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. Lembramo-nos de que
Tomás comparava o ato de ser das criaturas à luz e ao fogo: um ferro em brasa
tem calor porque participa do fogo, que "é calor"[29]; um objeto iluminado
"tem luz" por participar do brilho que emana de uma fonte luminosa. Ora,
quando Tomás fala da graça, vale-se exatamente das mesmas comparações. O
próprio conceito de participação, utilizado neste sentido, encontra-o em textos
do Novo Testamento, por exemplo em Heb 3, 14: "somos participantes de
Cristo".

No plano natural, todas as criaturas, quer materiais, quer racionais, participam


do ser e, portanto, da natureza divina; toda a criação, e o homem
especialmente, por sua perfeição própria, reflete no seu ser a Bondade, a
Verdade, a Beleza de Deus. No plano sobrenatural, porém, ocorre uma
participação da natureza divina como divindade, uma participação de Deus
enquanto Deus, um tornarmo-nos Deus; passamos a ser divinae naturae
consortes, como diz São Pedro (2 Pe 1, 4), participantes da própria vida íntima
de Deus. E isto, diz Tomás, é a graça.

A participação sobrenatural atinge por inteiro o ser humano, de tal forma que
se pode falar de uma "nova geração" ou "re-criação" (I-II, 110, 4); torna o
cristão "filho de Deus" de uma maneira totalmente nova: o cristão participa da
Filiação do Verbo - Cristo é Filho de Deus, e o cristão, que participa de Cristo,
tem a filiação divina. Esta filiação divina distingue-se absolutamente daquela
pela qual todos os homens são filhos de Deus, porque participam, ao
existirem, do ser de Deus. Também neste ponto Tomás se aproxima muito
mais dos Evangelhos do que inúmeros comentaristas anteriores: Cristo nunca
põe a sua Filiação divina (natural) no mesmo plano da nossa (participada);
assim, nunca diz, referindo-se a si mesmo e aos outros, "nosso Pai", mas
sempre "meu Pai" ou "vosso Pai", ou "meu Pai e vosso Pai" (cfr. por exemplo
Jo 20, 17).

Tomás insiste nesse participar de Deus: "A graça é uma certa semelhança com
Deus de que o homem participa" (III, 2, 10 ad 1); "O primeiro efeito da graça
é conferir um ser de alguma forma divino" (III, 2 d. 26, 155); "Pela graça
santificante, toda a Trindade passa a morar na alma" (I, 43, 5).

A teologia agostiniana, na medida em que tinha em pouco a realidade material


e objetiva do mundo, tendia a considerar a graça não como uma realidade, um
fato objetivo, mas como uma simples benevolência divina - um "cair nas
graças de Deus" - que, no homem, não corresponderia a nada de real. Tomás,
pelo contrário, mesmo afirmando que o mundo é mundo; o corpo, corpo; o
homem, homem; lembra que estas são realidades distintas de Deus, e que a
graça não destrói nem altera essencialmente nenhuma delas, permite-nos
compreender que elas são, na íntegra e completamente, assumidas por Deus e
elevadas a uma realidade superior[30].
A graça nos foi dada pelo Verbo, que se fez carne e morreu por nós sem que o
merecêssemos. A doutrina da participação sobrenatural nada mais é que a
formulação teológica do que sabemos pela fé: que Cristo é a videira, nós os
ramos (Jo 15, 5), ou que Ele é primogênito entre muitos irmãos (Rom 8, 29),
Pontífice e Mediador, etc. E se essa vida de Cristo se estende, pelo Batismo, a
todos os cristãos, estende-se também de algum modo ao mundo todo: Por Ele
aprouve ao Pai reconciliar todas as coisas consigo (Col 1, 20); tudo atrairei a
Mim (Jo 12, 32).

No capítulo seguinte, trataremos de alguns aspectos da filosofia de Tomás,


diretamente contemplados nas Sentenças da Parte-II.

VII- ORDO, RATIO, NATURA...

1. Ordem

Ordem, uma palavra que, em Tomás, expressa relação e dinamismo de


realidade. Curiosamente, porém, no uso comum, ordem passou a significar
principalmente um estado imóvel, estático: "Ordem na corte!", impera o juiz,
quando ao som do martelo impõe emudecimento e imobilidade; a "ordem" dos
livros numa estante é um arranjo estático; dizer que Fulano é um homem
muito "ordenado" é dizer que ele tem uma rotina de vida de pessoa pacata e
metódica; sem falar na "ordem política e social" das agências de repressão.

Que ordem, classicamente, guarde relação com "estar certo", de acordo com a
dinâmica que deve ser, expressa-se, por exemplo, no nosso "tudo em ordem",
resposta à pergunta: "Como vai?". "Tudo em ordem" significa que a saúde, as
finanças, a família etc. estão cumprindo bem seu papel na dinâmica
existencial de minha vida.

Os antigos falam de ordem também como ordem moral, a dinâmica do agir


humano de acordo com a realidade, de acordo com a natureza. E, portanto, o
pecado aparece como um ato desordenado, ao qual falta ordem (actus
inordinatus I-II,71,1); um ato não só contrário à ordenação de Deus, mas em
que o próprio homem - em si mesmo, em seu interior - se desordena. Pois,
como dissemos, ordo é algo dinâmico, "em direção a", ordo ad...: ordo ad
finem, ordo ad invicem, ordo ad alterum (dirigido a um fim, dinâmica
recíproca, dirigido a outrem). O sentido de ordo que se aplica à moral é, pois,
o de boa integração e estruturação dinâmica[31]. Nesse sentido, o discurso
ecológico contemporâneo, simplesmente está recuperando o conceito clássico
de ordo, aplicado à natureza.
A ordem é, pois, uma relação: Ordo non est substantia, sed relatio
(I,116,2ad3). Daí que, no âmbito moral, o pecado seja um ato a que falte esta
relação: passa à margem ou agride a dinâmica existencial do homem em
ordem a (in order to) sua realização e plenitude.

O homem e todas as coisas do mundo (cada qual a seu modo) ordenam-se,


dirigem-se a Deus, seu fim último: Tomás vê no movimento de cada coisa
criada (e na interação dos entes) um processo de "retorno" ao Criador. No
vértice do mundo material, o homem - que se assemelha a Deus pelas suas
duas potências espirituais: a inteligência e a vontade - é a cabeça deste
processo[32], levando consigo as outras realidades da Criação.

2. Razão e Natureza.

Na concepção de Tomás, como dizíamos, ordo indica uma dinâmica em


direção à plenitude. A realidade, vista de outro ângulo[33], configura outro
conceito fundamental: ratio.

Ratio, razão, não deve aqui ser entendida como a razão do "racionalismo",
nem sequer somente como a faculdade racional humana. Dentre os múltiplos
significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos diversos
sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente dois: um
que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro, para um
peculiar relacionamento da razão humana com a realidade.

Ratio é derivado do verbo reor, contar, calcular[34]. Ratio originalmente é


conta; rationem reddere é prestar contas. Mas ratio significa também: razão,
faculdade de calcular e de raciocinar; juízo, causa, porquê; essência[35]; lista;
título, caráter[36] etc.

Em filosofia, aparece como tradução de logos que, como ensina Pierre


Chantraine[37], entre muitos outros significados: "acabou por designar a razão
imanente", isto é: a estruturação interna de um ente, e este é o primeiro
significado que nos interessa neste estudo sobre Tomás; o segundo é a
capacidade intelectual humana de abrir-se à ratio das coisas e captá-la[38].

No âmbito da fé, não é por acaso, portanto, que S. João emprega, em seu
Evangelho, o vocábulo grego Logos (razão, palavra) para designar a segunda
Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos não só
é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Apo 3, 14), o
responsável pela articulação intelectual das coisas. Pois a Criação deve ser
entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, design das
formas da realidade, feito por Deus através do Verbo, Logos. E em seu
Comentário ao Evangelho de João, Tomás chega a discutir a questão da
conveniência de traduzir Logos por Ratio em vez de Verbum. Esta última
forma parece-lhe melhor, pois se ambas indicam pensamento, Verbum
enfatiza a "materialização" do pensamento (em criação/palavra)[39].

Assim, para Tomás, a criação é também "fala" de Deus: as coisas criadas são
pensadas e "proferidas" por Deus[40]: daí decorre a possibilidade de
conhecimento do ente pela inteligência humana[41].

É nesse sentido que a Revelação Cristã fala da "Criação pelo Verbo"; e a


Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini - afirma o
"caráter verbal" (Wortcharakter) de todas as coisas criadas. Ou, em sentença
de S. Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior[42],
assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são
como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad 3).

Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente
de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta
negá-la: "Não há natureza humana porque não há Deus para concebê-la". De
um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode
falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há
um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as[43].

Próximo do conceito de razão está o de natureza. Se ratio acentua o caráter de


pensamento, estruturação racional do ser; natureza indica o ser enquanto
princípio de operações (falar, pensar, amar, germinar, digerir, latir, etc.).

Não por acaso natureza deriva de natus, do verbo nascer (nascor). Se agimos
como homens é porque nascemos homens e não ratos. Natureza humana é,
assim, o ser que o homem recebe de nascença.

A "natureza", especialmente no caso da natureza humana, não é entendida por


Tomás como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um
projeto vivo, um impulso ontológico inicial (ou melhor, "principial"), um
"lançamento no ser", cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente
pelo ato criador que, no entanto, tem de ser completado pelo agir livre e
responsável do homem.

Assim, todo o agir humano (o trabalho, a educação, o amor, etc.) constitui


uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus -
cuja ordem conta com as causas segundas - quis contar com essa cooperação.

Esse caminho moral é percorrido, exercendo a liberdade de praticar o bem e,


assim realizando sua própria natureza. Mas, o bem remete à verdade: à ratio
da realidade que a razão capta, propondo à vontade sua realização.
3. Medida

Embora quantidade e qualidade sejam categorias distintas, a linguagem atesta


uma certa permeabilidade entre o quantitativo e o qualitativo.

Assim, por exemplo, para dizer "na qualidade de", dizemos "enquanto",
palavra que obviamente significa "em-quanto", "in-quantum" ("respeito-o
enquanto ser humano")[44]. Já "tal", originalmente qualitativo tem também seu
uso quantitativo: "Ela tem já seus trinta e tal anos de idade"[45].

Seja como for, na filosofia de Tomás, encontramos um uso qualitativo da


palavra mensura. "Medida" como conceito ontológico - ensina Pieper -,
significa algo qualitativo, algo que pertence ao âmbito da forma substancial.
Além disso, encerra uma espécie de causalidade". Essa causalidade é a
causalidade formal externa, a do modelo, a do projeto, prévia, primeira, da
qual o objeto produzido de acordo com o projeto é algo segundo, segundo o
projeto.

Assim, a forma na coisa é somente causa formal interna (daí que Tomás fale
de imitatio), segundo, de acordo com a causa formal externa.

4. Transcendentais

Um dos pontos mais centrais na visão-de-mundo de Tomás é a afirmação do


mistério: as coisas não são, para nós, totalmente cognoscíveis.

Longe de qualquer ceticismo, o que Tomás afirma é que as coisas são


cognoscíveis porque são criadas por Deus e, precisamente por isso (por
procederem da Inteligência de Deus), as coisas também são inabarcáveis pelo
nosso conhecimento. Daí as sentenças de sua filosofia (e teologia) negativa,
tão surpreendentes para certos setores do tomismo que ignoram Tomás:
"Nenhum filósofo até hoje foi capaz de abarcar sequer a essência de uma
mosca" (In Symb. 1). O Tomás que diz "intellectus... penetrat usque ad rei
essentiam" (a inteligência penetra até a essência das coisas) (I-II, 31, 5) é o
mesmo que afirma "rerum essentiae sunt nobis ignotae" (as essências das
coisas nos são desconhecidas) (De Ver. 10, 1).
Ao tratar dos transcendentais, interessa-nos um particular aspecto dessa
limitação do conhecimento humano. Um aspecto que Tomás aponta como
uma das diferenças entre o pensar/falar humano e o divino: se a palavra
(Verbo) de Deus expressa perfeita e plenamente o conhecimento divino; a
nossa palavra expressa só fragmentária e setorialmente (divisim) o nosso
conhecimento (De differentia verbi divini et humani V, 1.).

Assim, a linguagem não só reflete a limitação do conhecimento humano (não


podemos expressar o que as coisas são, na medida em que não sabemos
completamente o que elas são), como também, freqüentemente, expressa
fragmentariamente aquilo que sabemos sobre as coisas. Ao discutir se os
nomes essenciais de Deus se aplicam singularmente às pessoas, Tomás
começa por citar a objeção que aponta que a palavra hebraica Elohim (deuses)
indica pluralidade. Mas, em resposta à objeção, Tomás faz notar que
"diversae linguae habent diversum modum loquendi (I, 39, 3 ad 2)" cada
língua tem seu particular (e fragmentário) modo de incidir sobre a realidade:
daí que os gregos com o plural hypostases, tal como a palavra hebraica
Elohim, indicam a pluralidade de pessoas; já o modo latino de se referir a
Deus (com o substantivo Deus) acentua a unicidade da substância divina.

O que Tomás está a indicar é o já referido caráter fragmentário que


freqüentemente a linguagem apresenta: incapazes que somos de expressar
numa palavra todo o conteúdo essencial de algo, a palavra constitui, por assim
dizer, um "gancho" que se fixa num único aspecto da realidade, enfatizando-o
e como que deixando à margem outros aspectos da coisa.

Exemplifiquemos com uma análise do próprio Tomás: ao tratar da gratidão,


ele ensina que essa é uma realidade humana complexa. Mais precisamente,
admite três níveis: "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro
consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em
louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de
acordo com as próprias possibilidades e segundo as circunstâncias mais
oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).

A expressão verbal da gratidão em cada língua - diversae linguae habent


diversum modum loquendi - enfatizará um e apenas um desses níveis que
compõem a gratidão: é conhecido fato de linguagem que o inglês to thank
(como o alemão zu danken), está etimologicamente próximo de to think (zu
denken), incidindo assim sobre o primeiro nível do agradecimento: o do
pensar, reconhecer (reconnaissance) o favor. Já o castelhano (gracias), o
italiano (grazie), o francês (merci, mercê), o árabe (shukran é
agradecimento/louvor) e o próprio latim (gratias tibi ago) caem no segundo
nível; enquanto o português ("obrigado, muito obrigado") expressa somente o
terceiro e mais profundo nível da gratidão: o da obrigação de retribuir.
É nesse contexto do caráter fragmentário da linguagem que se pode entender
um dos significados mais freqüentes da palavra ratio em Tomás e que é
essencial para a compreensão dos transcendentais. Ratio, no caso, indica
precisamente o particular aspecto sob o qual a coisa é considerada. No
exemplo acima, a ratio do modo português de agradecer é a retribuição; a do
inglês, o re-conhecimento. Nos dois casos é gratidão, mas cada forma verbal
tem um caráter, um título, uma ratio própria. A ratio das palavras é, assim,
conseqüência daquele caráter fragmentário da linguagem humana.

Apliquemos essas considerações aos transcendentais do ente.

Ente, do latim ens-entis, é o particípio presente do verbo ser, esse. Ente é


aquele que exerce o ato de ser. Ente é, pois, esta árvore, aquela pedra, este
cachorro.

Os seis transcendentais do ente são, por assim dizer, seis "sinônimos"[46] do


ente: cada um apontando para um determinado aspecto diferente da mesma e
única realidade.

São eles: verum, bonum, pulchrum, res, aliquid, unum; verdadeiro, bom, belo,
coisa[47], quê[48] e um[49].

O que se afirma com os transcendentais é que tudo que é, é bom; tudo que é, é
verdadeiro; etc. A identidade (na coisa) entre ente, verdadeiro, bom, etc. é
uma das afirmações mais fundamentais da filosofia de S. Tomás: o ente,
enquanto diz respeito à inteligência, diz-se verdadeiro; com relação à vontade,
bom; etc.

Afirmar a relação do real com uma inteligência e uma vontade é, no caso,


primária e principalmente afirmar a dependência do ente para com Deus: criar
inclui pensar e querer a criatura com seu ser e essência. Por isto o real é
inteligível e apetecível para o homem: tudo que é, traz a marca do ato criador
de Deus.

Assim, verdadeiro (e o mesmo vale para o bom) é algo próprio do ente, no


sentido profundo de que o ente enquanto tal supõe uma relação com a
Inteligência que o cria e, então, secundariamente, com a inteligência humana
que a ele se abre.

Não pretendemos aqui explorar as ricas conseqüências filosóficas e relações


teológicas que se encerram na doutrina dos transcendentais, mas somente
indicar que, por mais estranho que à primeira vista possa parecer, é-nos, no
entanto, altamente familiar este trânsito e reciprocidade entre os
transcendentais.
Como sempre, voltemo-nos para a linguagem comum. Nela encontraremos,
em todas as línguas, intuída e legitimada alguma equivalência entre ser,
verdade, bem etc.

Assim, quando algo é, mas é realmente[50], dizemos que é "de verdade", ou


que é bom[51], ou belo, empregados no sentido de plenitude[52].

E se algo não vale a pena, "não adianta", o inglês diz no good. Fala-se nos
bens de uma pessoa (paralelo ao goods do inglês): "Fulano, com o incêndio,
perdeu todos os seus bens". E "bem" na expressão "se bem que" (obwohl em
alemão; ben che em italiano; bien que em francês) equivale à ressalva: "é
verdade que" ou, simplesmente, "é que"[53]. E "também" significa tão-bem, ou
seja, "igualmente é" (em alemão há, por exemplo, ebensogut e, em inglês, as
well: He is rich, my friend is rich as well). O espanhol tem a expressão más
bien[54].

E quando algo é (é mesmo, para valer) diz-se em francês pour de bon


(próximo do inglês for good, definitivo) ou pour de vrai, e dizemos que um
bife está bem passado, well done. Para não falar do tout bonnement: Elle est
tout bonnement insuportable! Distinguimos moeda falsa de dinheiro bom;
dizemos que o cheque é bom para depois de amanhã (un assegno buono per
dopo domani; good for 30 days, etc.); e temos bônus desta ou daquela
companhia, etc.[55]

Para designar um ente ou uma ação qualquer, o italiano vale-se do


transcendental coisa em lugar do nosso que: Cos'é? Cosa vuoi?, Cosa fai? ou,
com sua especial sensibilidade para o transcendental belo: Cosa fai di bello?
[56]. Já o alemão para certos casos em que nós empregamos bem, diz schön
(belo): also schön (pois bem), schön und gut (muito bem), etc.

O transcendental unum é preferentemente restrito ao humano, no sentido


genérico de "alguém": uno (espanhol), einer (alemão), one (inglês),
principalmente nos compostos someone, no one, etc. (ainda que one possa
referir-se a qualquer ente: "the next one, please", pode dizer também o
operário que acaba de montar uma peça pedindo a próxima)[57].

Concluamos, indicando um caso especial em que é particularmente visível a


equivalência dos transcendentais: seu uso significando "muito": podemos usar
bom, belo, verdadeiro, coisa, que e um para indicar que algo é com
intensidade[58].

Estes e tantos outros fenômenos da linguagem comum estão aí a comprovar


que o povo continua na clave de Tomás.
VIII- NOTA SOBRE O LATIM DE TOMÁS

Uma coisa é a história; outra, a historiografia: há paixões pelo tempo tão


veementes - e, por vezes, tão pouco objetivas - quanto as que animam as
turbas em estádios. E não é raro que entre os historiadores ocorra aquilo que
Maritain chamou de chronolâtrie, uma adoração cega do modo de ser do
próprio tempo, que, afinal, não passa de uma forma de egolatria.

Não só os indivíduos singulares, mas também as épocas, têm, por vezes, uma
necessidade adolescente de auto-afirmação que se compraz em menosprezar o
que as antecede imediatamente no tempo.

O Renascimento apresenta, em relação à Idade Média, sinais dessa crise de


adolescência. A própria expressão "Idade Média"[59] (media aetas, medium
aevum) - expressão historiográfica que exprime a necessidade de auto-
afirmação do Renascimento - é pejorativa: pretende indicar uma época sem
personalidade, um grande "ponto morto" da História, em que nada de
significativo teria ocorrido, uma época inautêntica, um compasso de espera
entre duas épocas, estas sim, valiosas: a Antigüidade e o próprio
Renascimento.

O outro lado da moeda é que também o termo Rinascitá (já em curso em


meados do século XVI) expressa a auto-estima de uma época, tanto quanto
"Idade Média" expressa o desprezo pela anterior. Desprezo passional, sem
razões - diz Ortega y Gasset[60] - o que não impediu que a "opinião reinante",
ainda no começo de nosso século, pudesse ter sido a de ostentação de uma
gran beatería ("y la beatería es, por esencia, ofuscación") para com o
Renascimento e o Humanismo.

Este preconceito anti-medieval não diz respeito somente à cultura e à ciência


em geral, mas refere-se, sobretudo, à língua latina[61]. E, de fato, um é o latim
clássico; outro, o medieval, "bárbaro" e popular.

Cícero escreve em uma língua viva, sua língua materna. Tomás escreve numa
língua que não era sua língua materna, mas que lhe era extremamente natural.
O latim medieval alimenta-se não só do latim da Antigüidade clássica, mas
também da vida litúrgica; não era uma língua morta, continuava
desenvolvendo-se vivamente: "une langue vivante, sans être la langue d'une
communauté ethnique" (Chr. Mohrmann).

É no Renascimento que o latim se torna língua morta, objeto de imitação


servil, peça de museu totalmente separada da vida e do pensamento, enquanto
o latim da Escolástica era uma língua viva, la langue vivante de l'Université
(Chenu).
Evidentemente, a expressão "latim medieval" é muito ampla: abrange de
Boécio a Duns Escoto, passando por Isidoro ou Alcuíno etc. Em todo caso,
para além das características comuns, o latim de Tomás é a língua viva da
Universidade, uma língua voltada para a clareza do ensino e da reflexão. E
Tomás cuida de não empregar essa língua com caráter técnico, artificial,
terminológico, mas mantê-la com a viveza de uma linguagem corrente,
natural. Seja como for, no campo da Filosofia (e no da Teologia), o latim
sempre foi um idioma dependente, com léxico "traduzido" do grego[62].

Precisamente a alguns desses conceitos filosóficos principais de que se vale


Tomás, dedicamos a seguinte coletânea de sentenças.

Parte II

TOMÁS DE AQUINO EM SENTENÇAS[63]

RAZÃO - NATUREZA

1. A razão reproduz a natureza.

Ratio imitatur naturam (I,60,5).

2. A causa e a raiz do bem humano é a razão.

Causa et radix humani boni est ratio (I-II,66,1).

3. "Natureza" procede de nascer.

Natura a nascendo est dictum et sumptum (III,2,1).

4. A palavra natureza se impôs primeiramente para significar a geração dos


seres vivos, que se chama nascimento. E como tal geração provém de um
princípio intrínseco, estendeu-se o uso da palavra para significar princípio
intrínseco de qualquer mudança. Sendo tal princípio formal ou material, tanto
a matéria quanto a forma são comumente chamadas natureza. Mas como é
pela forma que se perfaz a essência de uma coisa qualquer, a essência, que é
expressa na definição, é comumente chamada natureza.

Nomen naturae primo impositum est ad significandam generationem


viventium, quae dicitur nativitas. Et quia huiusmodi generatio est a principio
intrinseco, extensum est hoc nomen ad significandum principium intrinsecum
cuiuscumque motus. Et quia huiusmodi principium est formale vel materiale,
communiter tam materia quam forma dicitur natura. Et quia per formam
completur essentia uniuscuiusque rei, communiter essentia uniuscuiusque rei,
quam significat eius definitio, vocatur natura (I,29,2 ad 4).

5. A reta ordem das coisas coincide com a ordem da natureza; pois as coisas
naturais se ordenam a seu fim sem qualquer desvio.

Rectus ordo rerum convenit cum ordine naturae; nam res naturales
ordinantur in suum finem absque errore (CG 3,26).

6. O intelecto é naturalmente apto a entender tudo o que há na natureza das


coisas.

Intellectus... natus est omnia quae sunt in rerum natura intelligere (CG 3,59)

7. Os princípios da razão são os mesmos que estruturam a natureza.

Principia... rationis sunt ea quae sunt secundum naturam (II-II,154,12).

8. Assim como a ordem da razão reta procede do homem, assim também a


ordem da natureza procede do próprio Deus.

Sicut ordo rationis rectae est ab homine, ita ordo naturae est ab ipso Deo (II-
II,154,12 ad 1).

9. O primeiro princípio de todas as ações humanas é a razão e quaisquer


outros princípios que se encontrem para as ações humanas obedecem, de
algum modo, à razão.
Omnium humanorum operum principium primum ratio est, et quaecumque
alia principia humanorum operum inveniantur, quodammodo rationi obediunt
(I-II,58,2).

10. O ser do homem propriamente consiste em ser de acordo com a razão. E


assim, manter-se alguém em seu ser, é manter-se naquilo que condiz com a
razão.

Homo proprie est id quod est secundum rationem. Et ideo ex hoc dicitur
aliquis in seipso se tenere, quod tenet se in eo, quod convenit rationi (II-
II,155, ad 1).

11. Aquilo que é segundo a ordem da razão quadra naturalmente ao homem.

Hoc... quod est secundum rationem ordinem est naturaliter conveniens


homini (II-II,145,3).

12. A razão é a natureza do homem. Daí que tudo o que é contra a razão é
contra a natureza do homem.

Ratio hominis est natura, unde quidquid est contra rationem, est contra
hominis naturam (Mal. 14,2 ad 8).

13. O que por natureza é dado imediatamente à razão é verdadeiríssimo, a tal


ponto que nem sequer é possível pensar que seja falso.

Ea... quae naturaliter rationi sunt insita verissima esse constat, in tantum ut
nec ea esse falsa sit possibile cogitare (CG 1,7).

14. Todos os atos da vontade têm como que sua primeira raiz, naquilo que o
homem naturalmente quer.

Omnes actus voluntatis reducuntur, sicut in primam radicem, in id, quod


homo naturaliter vult (Car. I).

15. A vontade por sua natureza é boa, daí que também seu ato natural sempre
é bom. E ao dizer ato natural da vontade refiro-me a que o homem por
natureza quer a felicidade, ser, viver e a bem-aventurança. Quando porém se
trata do bem moral, a vontade em si considerada não é boa nem má, mas
mantém-se em potência para o bem ou para o mal.

Voluntas secundum suam naturam est bona, unde et actus eius naturalis
semper est bonus; et dico actum naturalem voluntatis, prout homo vult
felicitatem naturaliter, esse, vivere, et beatitudinem. Si autem loquamur de
bono morali, sic voluntas secundum se considerata nec est bona nec mala:
sed se habet in potentia ad bonum vel malum (Mal. 2,3 ad 2).

16. O primeiro ato da vontade não procede de ordem da razão, mas de instinto
da natureza ou de uma causa superior.

Primus ... voluntatis actus ex rationis ordinatione non est, sed ex instinctu
naturae aut superioris causae (I-II,17,5 ad 3).

17. Assim como o conhecimento natural é sempre verdadeiro, assim também


o amor natural é sempre reto, pois o amor natural não é senão a inclinação da
natureza, inserida pelo autor da natureza. Portanto, afirmar que a inclinação
natural não é reta é desacreditar o autor da natureza.

Sicut cognitio naturalis semper est vera; ita dilectio naturalis semper est
recta: cum amor naturalis nihil aliud sit quam inclinatio naturae indita ab
auctore naturae. Dicere ergo quod inclinatio naturae non sit recta, est
derogare auctori naturae (I,60,1 ad 3).

18. A vontade não tem caráter de regra suprema, mas é uma regra que recebe
sua retidão e orientação da razão e do intelecto não só em nós, mas também
em Deus; se bem que, em nós, entender e querer as coisas são atos diferentes,
e, por isso, não se identificam vontade e retidão da vontade. Em Deus, porém,
é o mesmo e único ato entender e querer algo: daí que vontade e retidão da
vontade se identifiquem.

Voluntas... non habet rationem primae regulae, sed est regula recta; dirigitur
enim per rationem et intellectum, non solum in nobis sed et in Deo; quamvis
in nobis sit aliud intellectus et voluntas secundum rem; et per hoc nec idem
est voluntas et rectitudo voluntatis; in Deo autem est idem secundum rem
intellectus et voluntas; et propter hoc est idem rectitudo voluntatis et ipsa
voluntas (Ver. 23,6).

19. A regra para a vontade humana é dúplice: uma próxima e homogênea: a


própria razão humana; a outra, que é a regra primeira, é a lei eterna, que é
como que a razão de Deus.
Regula... voluntatis humanae est duplex: una propinqua et homogenea,
scilicet ipsa humana ratio; alia vero est prima regula, scilicet lex aeterna,
quae est quasi ratio Dei (I-II,71,6).

20. O bem do homem enquanto homem está em que a razão seja perfeita no
conhecimento da verdade e em que os apetites inferiores se regulem pela regra
da razão. Pois, se o homem é homem, é por ser racional.

Bonum hominis, inquantum est homo, est: ut ratio sit perfecta in cognitione
veritatis et inferiores appetitus regulentur secundum regulam rationis. Nam
homo habet, quod sit homo, per hoc, quod sit rationalis (Virt. comm., 9)

ORDEM

21. O que é próprio do sábio é ordenar.

Sapientis est ordinare (CG I,1).

22. Fala-se de ordem sempre com relação a algum princípio.

Ordo semper dicitur per comparationem ad aliquod principium (I,42,3).

23. A ordem sempre implica anterioridade e posterioridade. Daí que,


necessariamente, onde quer que haja um princípio, aí haverá também alguma
ordem.

Ordo autem includit in se aliquem modum prioris et posterioris. Unde


oportet quod ubicumque est aliquod principium, sit etiam aliquis ordo (II-
II,26,1).

24. Tudo o que é imperfeito tende à perfeição.

Omne autem imperfectum tendit in perfectionem (I-II,16,4).

25. A ordem que se dá reciprocamente entre as partes do todo existe pela


ordem global do todo para Deus.

Ordo, qui est partium universi ad invicem, est per ordinem qui est totius
universi ad Deum (Pot. 7,9).

26. Deus age perfeitamente como causa primeira, mas requer o agir da
natureza como causa segunda. Embora Deus pudesse produzir o efeito da
natureza, mesmo sem a natureza, Ele quer agir mediante a natureza, para
observar a ordem das coisas.

Deus perfecte operatur ut causa prima; requiritur tamen operatio naturae ut


causae secundae. Posset tamen Deus effectum naturae etiam sine natura
facere. Vult tamen facere mediante natura, ut servetur ordo in rebus (Pot. 3,7
ad 16).

27. A ordem se encontra primariamente nas próprias coisas e delas é que passa
para nosso conhecimento.

Ordo autem principalius invenitur in ipsis rebus et ex eis derivatur ad


cognitionem nostram (II-II,26,1 ad 2).

28. "O que procede de Deus é ordenado" (Rom 13, 1). E a ordem das coisas
consiste em que algumas sejam por outras reconduzidas a Deus.

"Quae a Deo sunt, ordinata sunt" (Rom 13, 1). In hoc autem ordo rerum
consistit, quod quaedam per alia in Deum reducuntur (I-II,111,1).

29. Daí que... haja criaturas espirituais, que retornam a Deus não só segundo a
semelhança de sua natureza, mas também por suas operações. E isto,
certamente, só pode se dar pelo ato do intelecto e da vontade, pois nem no
próprio Deus há outra operação em relação a Si mesmo.

Oportuit... esse aliquas creaturas quae in Deum redirent non solum


secundum naturae similitudinem, sed etiam per operationem. Quae quidem
non potest esse nisi per actum intellectus et voluntatis: quia nec ipse Deus
aliter erga seipsum operationem habet (CG 2,46).

30. A lei divina ordena os homens entre si, de tal modo que cada um guarde
sua ordem, isto é, que os homens vivam em paz uns com os outros. Pois a paz
entre os homens não é senão a concórdia na ordem, como diz Agostinho.

Lex... divina sic homines ad invicem ordinat, ut unusquisque suum ordinem


teneat, quod est homines pacem habere ad invicem. Pax enim hominum nihil
aliud est quam ordinata concordia, ut Augustinus dicit (CG 3,128).

31. Aproximamo-nos de Deus não por passos corporais, mas pela


consideração da mente.

Ad Deum non acceditur passibus corporalibus ... sed affectibus mentis (I,3,2
ad 5).

32. Pode-se considerar de dois modos a ordem entre as criaturas e Deus. Um é


aquele segundo o qual as criaturas, sendo causadas por Deus, dependem dele
enquanto princípio do seu ser. E, assim, pela infinitude de seu poder, Deus
atinge cada coisa, causando-a e conservando-a e é nesse sentido que se afirma
que Deus está imediatamente em todas as realidades por essência, por
presença e por potência. Há, porém, uma outra ordem: pela qual uma
realidade tende para Deus como fim e aí, como diz Dionísio, há mediação
entre as criaturas e Deus: porque as inferiores são conduzidas a Deus pelas
superiores.

Duplex ordo considerari potest inter creaturarum et Deum. Unus quidem,


secundum quod creaturae causantur a Deo et dependent ab ipso sicut a
principio sui esse; et sic propter infinitatem suae virtutis Deus immediate
attingit quamlibet rem, causando et conservando; et ad hoc pertinet, quod
Deus immediate est in omnibus per essentiam, praesentiam et potentiam.
Alius autem ordo est, secundum quod res reducuntur in Deum sicut in finem;
et quantum ad hoc invenitur medium inter creaturam et Deum, quia inferiores
creaturae reducuntur in Deum per superiores, ut dicit Dionysius (III,6,1 ad 1).

MEDIDA

33. Deus é a medida de todos os entes.

Deus omnium entium est mensura (CG 2,12).

34. As próprias coisas são causa e medida de nosso conhecimento.

Ipsae res sunt causa et mensura scientiae nostrae (Pot. 7,10 ad 5).

35. A verdade do intelecto humano tem sua regra e medida na essência da


coisa. Uma opinião é verdadeira ou falsa de acordo com o que a coisa é ou
não é.

Veritas intellectus humani regulatur et mensuratur ab essentia rei; ex eo


enim quod res est vel non est, opinio est vera vel falsa (Spe I ad 7).

36. O intelecto humano recebe sua medida das coisas, de tal modo que um
conceito do homem não é verdadeiro por si mesmo, mas se diz verdadeiro
pela consonância com a realidade. O intelecto divino, porém, é a medida das
coisas, já que uma coisa tem tanto de verdade quanto reproduz em si o
intelecto divino.

Intellectus humanus est mensuratus a rebus: ut scilicet conceptus hominis


non sit verus propter seipsum; sed dicitur verus ex hoc quod consonat rebus.
Intellectus vero divinus est mensura rerum: quia unaquaeque res intantum
habet de veritate, inquantum imitatur intellectum divinum (I-II,93,1 ad 3).
37. As coisas naturais estão no meio entre o conhecimento de Deus e o nosso.
Pois nós recebemos o conhecimento das coisas naturais, das quais, Deus, pelo
seu conhecimento, é a causa. Daí que: assim como o cognoscível das coisas
antecede o nosso conhecimento e é a sua medida; assim também o
conhecimento de Deus antecede as coisas naturais e é medida para elas. Do
mesmo modo que uma casa está entre o conhecimento do arquiteto que a
projetou e o conhecimento que dela adquire alguém, uma vez construída a
casa.

Res naturales sunt mediae inter scientiam Dei et scientiam nostram. Nos
enim scientiam accipimus a rebus naturalibus, quarum Deus per suam
scientiam causa est. Unde, sicut scibilia naturalia sunt priora quam scientia
nostra, et mensura eius; ita scientia Dei est prior quam res naturales, et
mensura ipsarum: sicut etiam aliqua domus est media inter scientiam artificis
qui eam fecit, et scientiam, illius qui eius cognitionem ex ipsa iam facta capit.
(I,14,8 ad 3).

38. (Qualquer criatura...) Por ter uma certa forma e espécie representa o
Verbo, porque a obra procede da concepção de quem a projetou.

(Quaelibet creatura... secundum quod) habet quamdam formam et speciem,


repraesentat Verbum: secundum quod forma artificiati est ex conceptione
artificis (I,45,8).

39. O conhecimento de Deus é a medida das coisas: não quantitativa, mas


porque mede a essência e a verdade da coisa. Pois uma coisa tanto tem de
verdade em sua natureza, quanto reproduz o conhecimento de Deus; do
mesmo modo que um objeto artificial em relação a seu projeto.

Scientia Dei est mensura rerum: non quantitativa (...) sed quia mensurat
essentiam et veritatem rei. Unumquodque enim intantum habet de veritate
suae naturae, inquantum imitatur Dei scientiam: sicut artificiatum,
inquantum concordat arti (I,14,12 ad 3).

TRANSCENDENTAIS

40. O bom, o verdadeiro e o ente coincidem na coisa, mas diferem pelo título.

Bonum et verum et ens sunt idem secundum rem, sed differunt ratione (I-
II,29,5).
41. O verdadeiro e o bem estão incluídos um no outro. Pois o verdadeiro é um
certo bem, senão não seria apetecível; e o bem, um certo verdadeiro, senão
não seria inteligível.

Verum et bonum se invicem includunt. Nam verum est quoddam bonum


alioquin non esset appetibile; et bonum est quoddam verum, alioquin non
esset intelligibile (I,79,11 ad 2).

42. Na realidade objetiva das coisas, o bem e a verdade são permutáveis. Daí
que o bem seja entendido pelo intelecto a título de verdade; e o verdadeiro,
apetecido pela vontade a título de bem.

Quia bonum et verum convertuntur secundum rem: inde est quod et bonum
ab intellectu intelligitur sub ratione veri, et verum a voluntate appetitur sub
ratione boni (I,59,2, ad 3).

43. Qualquer criatura participa da bondade, tanto quanto participa do ser.

Unaquaeque creatura quantumcumque participat de esse, tantum participat


de bonitate (Ver. 20,4).

44. Deus, sendo uno, produz o uno: não só porque qualquer coisa é em si una,
mas também porque, de certo modo, a totalidade das coisas, encerra unidade
de perfeição.

Sicut Deus est unus, ita et unum produxit, non solum quia unumquodque in se
est unum, sed etiam quia omnia quodammodo sunt unum perfectum (Pot. 3,16
ad 1).

45. Quanto mais algo é uno, tanto mais perfeita sua bondade e força.

Quanto aliquid magis unitum est, tanto bonitas eius et virtus perfectior est
(CG I,102).

46. Diz Avicena que "a verdade de uma coisa é a característica própria do ser
que lhe foi estabelecida" ... enquanto segue a razão própria que dela existe na
mente divina.

Dicit Avicenna quod "veritas rei est proprietas esse uniuscuiusque rei quod
stabilitum est ei"... inquantum propriam sui rationem quae est in mente
divina, imitatur (CG I,60).

47. A própria realidade da coisa é, de certo modo, sua luz.

Ipsa actualitas rei est quoddam lumen ipsius (Comentário ao Liber de causis
I,6).
A ALMA COMO FORMA ESPIRITUAL

48. Sempre se verifica o fato de que o ínfimo de uma ordem de ser superior é
limítrofe ao supremo da ordem inferior. Assim, certos ínfimos do gênero
animal, mal superam a vida das plantas, como é o caso da ostra, que é imóvel,
só tem tato e está fixa como as plantas. Daí que S. Dionísio diga que "a
sabedoria divina enlaçou os fins dos superiores com os princípios dos
inferiores". No âmbito corporal há também algo, o corpo humano,
harmonicamnete disposto, que também se enlaça com o ínfimo do superior, a
alma humana, que está no último grau das realidades espirituais. Tal enlace
manifesta-se no próprio modo de conhecer da inteligência humana. Daí que a
alma espiritual humana seja como que um certo horizonte e fronteira entre as
realidades corpóreas e as incorpóreas: ela mesma é incorpórea e, no entanto, é
forma de corpo.

Semper invenitur infimum supremi generis contingere supremum inferioris


generis; sicut quaedam infima in genere animalium parum excedunt vitam
plantarum, sicut ostrea, quae sunt immobilia et solum tactum habent et terrae
in modum plantarum affiguntur; unde et beatus Dionysius dicit, quod "divina
sapientia coniungit fines superiorum principiis inferiorum". Est igitur
accipere aliquid in genere corporum, scilicet corpus humanum, aequaliter
complexionatum, quod attingit ad infimum superioris generis, scilicet ad
animam humanam, quae tenet ultimum gradum in genere intellectualium
substantiarum, ut ex modo intelligendi percipi potest. Et inde est quod anima
intellectualis dicitur esse quasi quidam horizon et confinium corporeorum et
incorporeorum, in quantum est substantia incorporea, corporis tamen forma
(CG 2,68).

49. Deve-se considerar que a natureza de algo é principalissimamente a forma


segundo a qual se constitui a espécie da coisa. Ora, o homem é constituído em
sua espécie pela alma racional. Daí que aquilo que é contra a ordem da razão
seja propriamente contra a natureza do homem enquanto tal.

Considerandum est quod natura uniuscuiusque rei potissime est forma,


secundum quam res speciem sortitur. Homo autem in specie constituitur per
animam rationalem. Et ideo id quod est contra ordinem rationis, proprie est
contra naturam hominis, inquantum est homo (I-II,71,2).

50. Para cada ente, bom é aquilo que é adequado à sua forma; mau, o que fica
fora da ordem de sua forma.
Unicuique ... rei est bonum, quod convenit ei secundum suam formam; et
malum, quod est ei praeter ordinem suae formae (I-II,18,5).

51. Diferem a apreensão dos sentidos e a do intelecto: ao sentido compete


apreender este colorido; ao intelecto, a própria natureza da cor.

Et sic differt aprehensio sensus et intellectus; nam sensus est apprehendere


hoc coloratum, intellectus autem ipsam naturam coloris (Ver. 25,1).

52. É conatural ao homem atingir o conhecimento do inteligível pelo sensível.


E é pelo signo que se atinge o conhecimento de alguma outra coisa.

Est autem homini connaturale ut per sensibilia perveniat in cognitionem


intelligibilium. Signum autem est per quod aliquis devenit in cognitionem
alterius (III,60,4).

53. A plenitude de toda a natureza corporal depende, de certo modo, da


plenitude do homem.

Ex consummatione igitur hominis consummatio totius naturae corporalis


quodammodo dependet (Comp. Theol. I,148).

54. As naturezas intelectuais, porém, têm maior afinidade com o todo do que
as outras naturezas; pois, uma substância intelectual qualquer é, de certo
modo, todas as coisas, já que pode apreender a totalidade do real pelo seu
intelecto; ao passo que qualquer outra substância participa apenas de um setor
particular do ser.

Naturae... intellectuales maiorem habent affinitatem ad totum quam aliae


naturae; nam unaquaeque intellectualis substantia est quodammodo omnia,
inquantum totius entis comprehensiva est duo intelllectu; quaelibet autem alia
substantia particularem solam entis participationem habet (CG 3, 112).

55. Ver a verdade é possuí-la.

Veritatem enim videre, est ipsam habere (II-II,4,1).

56. Diz-se que a alma é de certo modo todas as coisas porque é naturalmente
apta para conhecer tudo. E, desse modo, é possível que num único ente esteja
toda a perfeição do universo. Daí que esta seja, segundo os filósofos (pagãos),
a plenitude de perfeição a que a alma pode aspirar: reproduzir em si a ordem
do universo como um todo e suas causas. E tal é também para eles o fim
último do homem, que, para nós, se realizará na visão de Deus, pois, como diz
Gregório: "O que é que não vêem os que vêem Aquele que tudo vê?"
Dicitur animam esse quodammodo omnia, quia nata est omnia cognoscere.
Et secundum hunc modum possibile est, ut in una re totius universi perfectio
existat. Unde haec est ultima perfectio, ad quam anima potest pervenire,
secundum philosophos, ut in ea describatur totus ordo universi et causarum
eius; in quo etiam finem ultimum hominis posuerunt, qui secundum nos erit in
visione Dei, quia, secundum Gregorium, quid est quod non videant, qui
videntem omnia vident? (Ver. 2,2).

MORAL

57. Somos senhores de nossas ações no sentido de que podemos escolher isto
ou aquilo. Não há escolha, porém, no que diz respeito ao fim, mas somente
sobre "o que se ordena ao fim" (como se diz na Ética de Aristóteles). Daí que
o querer o último fim não seja uma daquelas coisas de que somos senhores.

Sumus domini nostrorum actuum secundum quod possumus hoc vel illud
eligere. Electio autem non est de fine, sed "de his quae sunt ad finem", ut
dicitur in III Ethicorum. Unde appetitus ultimi finis non est de his, quorum
domini sumus (I,82,1 ad 3).

58. O moral pressupõe o natural.

Naturalia praesupponuntur moralibus (Corr. Frat. I ad 5).

59. A graça não suprime a natureza, aperfeiçoa-a.

(Cum enim) gratia non tollat naturam , sed perficiat (I,8,1 ad 2).

60. As paixões de per si não têm caráter de bem nem de mal. Pois o bem e o
mal do homem se dão no âmbito da razão. Daí que as paixões em si
consideradas são para o bem ou para o mal, conforme correspondam à razão
ou a contradigam.

Passiones ex seipsis non habent rationem boni vel mali. Bonum enim vel
malum hominis est secundum rationem. Unde passiones secundum se
consideratae se habent et ad bonum et ad malum, secundum quod possunt
convenire rationi vel non convenire (I-II,59,1).

61. O natural tanto precede as virtudes conferidas pela graça, como as


adquiridas.

Naturalia sunt praeambula virtutibus gratuitis et acquisitis (Ver. 16,2 ad 5).


62. A consciência é chamada de lei do nosso intelecto porque é o juízo da
razão deduzido da lei natural.

Conscientia dicitur esse intellectus nostri lex, quia est iudicium rationis ex
lege naturali deductum (Ver. 17,1 ad 1).

63. Quando a razão, mesmo errando, propõe algo como preceito de Deus,
então desprezar o ditame da razão é o mesmo que desprezar o preceito de
Deus.

Quando ratio errans proponit aliquid ut praeceptum Dei, tunc idem est
contemnere dictamen rationis et Dei praeceptum (I-II,19,5 ad 2)

VIRTUDE E PECADO

64. Pela virtude o homem se dirige ao máximo daquilo que pode ser.

Per virtutem ordinatur homo ad ultimum potentiae (Virt. comm. 11 ad 15).

65. É da essência da virtude que ela vise ao máximo.

Ad rationem virtutis pertinet, ut respiciat ultimum (II-II,123,4).

66. As virtudes nos aperfeiçoam, capacitando-nos para seguir de modo devido


as inclinações naturais.

Virtutes perficiunt nos ad prosequendum debito modo inclinationes naturales


(II-II,108,2).

67. O desordenado amor de si é a causa de qualquer pecado.

Inordinatus amor sui est causa omnis peccati (I-II,77,4).

68. O pecado contraria a inclinação natural.

Peccatum est contra naturalem inclinationem (I,63,9).

69. Tudo que vá contra a razão é pecado.

Omne quod est contra rationem... vitiosum est (II-II,168,4).

70. O pecado é uma desordem que rejeita a ordem do fim último.


Peccatum est inordinatio quae excludit ordinem finis ultimi (Mal. 15,2).

1.. Editado pela PUC-PR em 1993.

2. Para a seleção dessas sentenças, valemo-nos muitas vezes do criterioso


Thomas-Brevier (München, Kösel, 1956) de Josef Pieper, um dos maiores
especialistas contemporâneos em Tomás de Aquino.

3. Este e outros temas encontram-se mais desenvolvidos em nosso Tomás de


Aquino hoje. Neste capítulo, seguimos, resumindo, alguns dados e
considerações de Josef Pieper em seu Thomas von Aquin: Leben und Werk,
München, DTV, 1981.

4. Na Suma contra gentes, por exemplo, o Aquinate se propõe "apresentar as


verdades da fé de tal forma que o erro caia por si" (C.G. 1,2).

5. Naquele mundo bárbaro e freqüentemente assolado por guerras, não era


fácil achar quem soubesse grego ou dispusesse das obras de Aristóteles, ou
ainda simplesmente quem se interessasse pelo assunto.

6. Tomás, mais tarde, pedirá ao confrade Guilherme de Moerbecke novas


traduções de Aristóteles, a partir do grego.

7. Tomás, como, aliás, o pensamento medieval até a sua época, não é


puramente filosófico, mas sim, numa interpenetração profunda e espontânea,
filosófico-teológico: o afã de Voraussetzungslosigkeit, de uma asséptica
independência da Teologia, é simplesmente impensável para pensadores como
Tomás.

8. Evidentemente, experiência aqui significa não o experimento de


laboratório, mas qualquer tipo de acesso imediato à realidade.

9. A impressão do uso de uma linguagem hermética e especializada, deve ser


creditada mais aos setecentos anos que dele nos separam do que a uma opção
metodológica.

10. Este é um dos tantos pontos que perfazem a sintonia do filosofar de Tomás
com o bom senso do povo. Aproveitando-nos de uma metáfora de que ele
mesmo freqüentemente se vale - a comparação entre o sábio e o arquiteto -,
diríamos que o verdadeiro filosofar está para a sabedoria do homem da rua
assim como o saber do bom arquiteto para a adequada construção da casa. O
cidadão comum não estudou arquitetura, mas sabe que não lhe serve uma casa
em que, por exemplo, a porta da rua se abre diretamente para um banheiro, e
em que este se comunique sem divisórias com a cozinha; em que a adega
esteja a céu aberto no terraço, e todos os disparates que possam passar pela
"criativa" mente de um arquiteto desvairado. É oportuno lembrar que, como
não faltam arquitetos destes, também não faltam na história filósofos
"criativos". Já a filosofia de Tomás assemelha-se ao trabalho do sábio
arquiteto, que aplica sua competência profissional e seu senso artístico para
realizar aquilo que, afinal de contas, coincide com o bom senso do homem
comum: cozinha é cozinha; banheiro é banheiro! Tudo de acordo com a
realidade humana.

11. Naturalmente, não só na linguagem, mas também em outros "depósitos"


da experiência como, por exemplo, as formas de agir do homem.

12. Assim, para Tomás, a prudência leva-nos a tomar corajosa e prontamente


o partido do que é justo (uma concepção que, no sentido que as palavras
adquiriram hoje, tornou-se literalmente incompreensível para nós). É evidente,
assim, que a prudentia é uma virtude intelectual: é a atitude firme da
inteligência que não se deixa subornar nem distorce sua capacidade de ver a
realidade. E o homem prudente, além disso, transforma essa realidade
percebida em decisão de ação.

13. Por outro lado, a linguagem só se mantém viva, na medida em que as


realidades para as quais aponta interessem à comunidade falante.

14. J. Maritain, "L'humanisme de Saint Thomas d'Aquin", in Mediaeval


Studies, 3 (1941).

15. Se definir supõe enquadrar, o ser e formas de ser como potência e ato não
são passíveis de definição.

16. E quando falamos de exato, estamos nos referindo a alguma coisa feita a
partir da realidade, a partir do ato (ex actu).

17. O real dá-se, está-aí. Note-se a sugestiva forma inglesa there is ou as


alemãs Dasein, es gibt etc.

18. Ainda que, naturalmente, há casos em que é legítima a substituição de uma


dessas palavras por outra, ou indiferente o uso desta ou daquela: afinal são
sinônimas!

19. O homem pensa ou a árvore dá fruto porque têm essências, naturezas das
quais procedem tais operações.
20. Encontramos freqüentemente em Tomás a palavra medida, mensura, num
sentido mais formal do que quantitativo.

21. Também neste tópico seguimos de perto o Thomas von Aquin: Leben und
Werk de Josef Pieper, München, DTV, 1981.

22. Como dizia jocosamente um aluno: com a palavra alma (em relação às
demais formas) dá-se algo de semelhante ao que ocorre com certas
denominações de sanduíche: "os sanduíches com queijo são prefixados por
cheese: cheese-burger, cheese-dog etc. Mas o `misto quente' é tão especial que
ninguém o denomina cheese-presunto".

23. Aqui, no sentido de potências operativas, faculdades.

24. Cfr. p. ex. o Prólogo da parte II da Suma Teológica.

25. É o que significa, por exemplo, a caracterização, tantas vezes por ele
repetida, da virtude como ultimum potentiae.

26. Nossa época, tão sensível para as realizações, anda um tanto esquecida da
realização. Pense-se por exemplo na realização profissional. O profissional é
antes de tudo um homem. Daí que a realização profissional deva subordinar-se
à moral. Pieper, a propósito, lembra a atual tendência - cada vez mais
acentuada em nossa sociedade organizada com base na divisão do trabalho -
de pensarmos que uma ação, por trazer o rótulo de trabalho, estaria, por esse
próprio fato, legitimada também moralmente. Essa atitude de esquecimento da
ética pode levar a desastrosas conseqüências: "From a technical point of view
it was a sweet and lovely and beautiful job", "do ponto de vista técnico, um
trabalho doce, belo e fascinante", são palavras de Oppenheimer, referindo-se à
sensação que experimentaram alguns físicos que trabalhavam na produção da
bomba atômica...

27. Comparação necessariamente limitada, na medida em que o ato criador


divino transcende infinitamente o âmbito da produção de objetos artificiais.

28. Há uma tradução desse tratado de Tomás em nosso O significado místico


dos números, Curitiba, PUC-PR, 1992.

29. Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo continua


válido.

30. Charles de Journet descreve com muita clareza essa intuição do Doutor
universal: "Santo Tomás faz notar que já na ordem natural se encontra algo
que nos consente - passando nós ao limite, dando um salto - compreender esta
elevação do homem ao máximo da condição que lhe é própria, e a sua entrada
na intimidade da vida divina. As atividades físico-químicas do reino mineral
desenvolvem-se, no estado que lhes é natural, somente no plano mineral. Mas,
no plano biológico, são utilizadas pela vida: a vida vegetativa vai, por
exemplo, fazer subir uma planta ou uma árvore, em vez de a abandonar à lei
da gravidade. A sensibilidade, por sua vez, utiliza as leis biológicas: o globo
ocular tem de ser irrigado (vida vegetativa) para poder ver (vida sensitiva). E
quando chega a vez da razão, vê-la-emos utilizar a sensibilidade e as paixões
para uma obra de razão humana. E assim, uma ordem inferior, sem que as
suas leis sejam destruídas, é como que retomada para entrar na órbita de uma
ordem superior. Tudo isto, no interior da natureza. E Deus não irá então tomar
também o homem, com a sua razão, para fazê-lo gravitar à Sua volta? A
resposta é positiva. O homem (elevado pela graça) continua a ser homem; mas
é atraído, convidado a entrar na órbita de uma vida sobre-humana" (Reflexões
sobre a graça, Lisboa, Aster, p. 21).

31. Um exemplo nos ajudará a compreender: pense-se num time de futebol


(ou de vôlei) "engrenado", jogando "como uma orquestra". E, de repente, um
gol contra (ou um saque desperdiçado!) e, em seguida, o time se desestrutura
(perde sua ordo): começam a suceder-se passes errados; o zagueiro central,
que deveria estar dando cobertura, estava na ponta esquerda; o centro-avante,
na lateral direita; todos vão des-ordenadamente atrás da mesma bola: o time,
como se costuma dizer, "não se encontra", está "perdido em campo", falta
ordo. O técnico de um time seria chamado em latim de ordinator, aquele que,
com suas ordens, dá ordo à equipe. Esse sentido de ordem é preservado em
português pela palavra, tão em moda nos últimos anos, co-ordenador.
Modismos e eufemismos à parte, a palavra pretende indicar que a ordem não é
algo arbitrariamente imposto, mas relacionamento dinâmico exigido pela
própria natureza das coisas. Ou seja, há ordem quando cada um harmoniza-se
com a dinâmica do todo.

32. Naturalmente, o homem, dotado de liberdade, pode recusar empreender


esse retorno, optando pelo desordenado amor de si mesmo.

33. Se ordo refere-se à realidade enquanto seu dinamismo relacional; ratio


aponta para a racionalidade que estrutura desde dentro essa mesma realidade.

34. Por extensão, reor no latim comum passou também a ser sinônimo de
puto, aestimo (considerar, reputar): daí que vocábulos como "reputação" e
"estimar" estejam próximas de palavras da linguagem do cálculo como
"computar" e "estimativa". Daí também ratus, contado, de que se originou não
só "rateio", mas também "ratificar".

35. Encontramos em Tomás, usos como: "De ratione intelligendi est...", "é da
essência da intelecção...".
36. Neste último sentido, diz Tomás, por exemplo: "habet rationem verbi",
tem caráter verbal, apresenta-se como palavra.

37. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, Paris: Klincsieck.


Logos significa ainda: palavra, discurso, argumentação, raciocínio, conta,
proporção (ana-logos), quociente, o Verbo, segunda Pessoa da Trindade etc.
Para a etimologia de ratio ver Érnout & Meillet Dictionnaire Étymologique
de la Langue Latine, Paris, Klincsieck, 1951, 3ème ed.

38. É o que Tomás chama também de recta ratio, em oposição a uma


perversa ratio que se fecha à ratio das coisas ou as deforma.

39. Sua resposta é: "Ratio propriamente designa o conceito da mente,


enfatizando o que está na mente (mesmo que de nenhum modo venha a se
exteriorizar); já verbum, diz respeito ao exterior. E por isso - como o
Evangelista ao dizer Logos não só se dirigia à significação da existência do
Filho no Pai, mas também à potência operativa do Filho pela qual `por Ele
todas as coisas foram criadas' - os antigos preferiram traduzir Logos por
Verbum (que acentua a referência ao exterior) e não por ratio, que só sugere o
conceito na mente" (Super Io. I,1,32).

40. Para entendermos melhor esta concepção de Tomás, recordemos que,


sendo criada pelo Verbo, a realidade, cada coisa real, tem uma ratio, uma
natureza, um conteúdo, um significado, "um quê", uma verdade que, por um
lado, faz com que a coisa seja aquilo que é e, por outro, a torna cognoscível
para a inteligência humana. Um conhecimento que será tanto mais adequado
quanto maior for a objetividade com que se abrir à realidade contida no
objeto. Numa comparação imprecisa - imprecisa, pois num caso trata-se de
realidade natural, viva e dinâmica, projetada pela Inteligência divina e, no
outro, de um objeto artificial projetado pelo homem - com o ato criador
divino, considero o isqueiro que tenho diante de mim. Este objeto é produto
de uma inteligência, há uma racionalidade que o estrutura por dentro.
Inteligentemente o designer articulou a pedra, a mola, o gás etc. É
precisamente essa ratio que, por um lado, estrutura por dentro qualquer ente
que, por outro, permite, como dizíamos, o acesso intelectual humano a esse
ente. No caso do isqueiro, a ratio que o constitui enquanto isqueiro é o que me
permite conhecê-lo e, uma vez conhecido, consertá-lo, trocar uma peça etc.

41. Não por acaso Tomás considera que "inteligência" tem que ver com intus-
legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da
realidade.

42. O conceito, a idéia, a ratio.


43. Entende-se assim a conexão de ratio com a Moral. Retornando à metáfora
do objeto artificial: precisamente porque o isqueiro traz em si um logos, uma
ratio que o estrutura desde dentro, há normas e prescrições: "Não o usarás
embaixo d'água!"; "Não pressionarás a mola do gás, sem ao mesmo tempo
acionar a faísca!", "Não o aproximarás do fogo e mantê-lo-ás afastado de
temperaturas altas!". Longe de serem convenções sociais (e menos ainda
implicâncias moralistas!) essas normas são pura e simplesmente enunciados a
respeito do ser do isqueiro; da sua natureza, decorrentes.

44. Note-se também o uso de "quanto" em expressões como "tudo quanto",


que, na verdade, significa "tudo aquilo". "Quanto a" também não tem caráter
quantitativo, mas relativo. E "tanto", não significa somente "tão grande" ou
"tão numeroso", mas também "de tal forma": "Empenhou-se tanto que
conseguiu", tem um equivalente em: "De tal forma empenhou-se que
conseguiu". "Tanto faz" também é mais qualitativo do que quantitativo.

45. E "quão" pode ser substituído por "quanto" ou por "como" (quo-modo)
"Quão cruel é esta dor!" significa uma dor muito cruel tanto como o modo, a
particular forma de crueldade de essa dor fazer-se presente.

46. No sentido que discutimos em III.2.

47. O transcendental res acentua o sujeito portador do ser. Na verdade, res é


ainda mais amplo que o nosso "coisa". De res derivam-se: real, realmente,
realidade, etc.

48. Quê ou algo; o transcendental aliquid indica o caráter de alteridade e


delimitação do ente em relação a qualquer outro ente.

49. Unum: um e uno. É pelo unum que , por exemplo, posso proferir o
pronome "eu". Naturalmente o unum do ente é tanto mais visível quanto mais
ascendemos na escala do ser: do inanimado ao vivente; da planta ao humano,
onde cada um experimenta seu caráter de unum.

50. "Realmente" (ou, em inglês, really, etc.), derivado do transcendental res.

51. Ou que é "para valer"; valor é o equi-valente moderno de bem. O espanhol


coloquial diz "vale!" (ou enfaticamente "vale, vale!") para indicar que está
tudo certo, de acordo.

52. Como quando se diz: "Não senhor, isto não é descanso; você precisa
descansar de verdade", ou se se prefere "um bom descanso" ou "um belo
descanso". Dá-se o mesmo em outras línguas: o italiano diz: una buona dose
di vino, un bel pò di strada etc.; o inglês: it is a good distance, etc.; sempre
indicando plenitude, ser de verdade. Com o transcendental da beleza diz-se
coloquialmente: "Tal time se afundou bonito" e, em italiano, há a expressão
bello e buono para "pura e simplesmente".

53. E o mesmo ocorre quando dizemos: "Ah, ha! eu bem que te avisei. Bem
feito!" (Je vous l'avais bien dit) ou "Você bem que podia me aparecer"
(Vinicius), ou ainda, "Eu bem que mostrei sorrindo" (Chico), Jawohl
(literalmente: sim-bem) é a forma enfática afirmativa do alemão, que também
dispõe do "bem" enfático Wo - zum Teufel - kann er wohl stecken? Onde
diabos pode ele (bem) estar metido?, bem como outras línguas (Le ultime
notizie lasciano ben sperare...).

54. Ante um vinho falso, um vinho que não é bem vinho, exclama-se: "Esto es
mas bien agua". E nós dizemos: "Nem bem (ou mal) chegou e já tornou a
sair".

55. E a torcida daquele time do interior paulista, indignada ante o desempenho


manifestamente displicente de seu goleiro, gritava revoltada: "O goleiro é
falso!" (em português há - como no alemão ou no inglês - o "falso alarme"
etc.). Dizemos também "de mentirinha" para indicar que algo não é, ou "não é
de nada".

56. Já coisa, no nosso falar popular, pode indicar algo que está muito bom:
"Hmm! Tá uma coisa" (combinando os transcendentais "um" e "coisa"). E
quando algo não é, mas não é mesmo, dizemos "coisíssima nenhuma".

57. Entre nós, um, embora menos freqüente que em outras línguas, pode
também designar "alguém": "Ele é um que sabe o que quer". E o povo diz: "O
Mané? É aquele um que tem um carro marrom".

58. Isto já se nota na própria palavra inglesa very, que procede do latim
(verus, vere). Very, que não por acaso se traduz por bem em casos de ênfase
na identidade: How could you let it be done under your very nose? (como
deixou que fizessem isto bem debaixo do seu nariz?) She is the very woman
I'm looking for: Ela é bem a mulher que eu procuro; etc. Também o nosso
"deveras" pode ser usado como "muito"; se chove forte, o italiano diz "piove a
buono" e, na Bahia, pede-se café com bem açúcar. "Muito obrigado", em
francês, é não só merci beaucoup, mas também merci bien (em alemão, danke
schön, literalmente, obrigado belo). Note-se ainda que how much equivale
literalmente ao francês com-bien. "Uma beleza de traiçoeiro" (Guimarães
Rosa), "está bem mal", "deveras interessante" e o já apontado "está uma coisa"
são outros tantos usos intensivos dos transcendentais. Um e que também
podem passar por muito. "Que saudades que eu tenho...", "Que lindo!" e
também no uso recente da gíria: "O que tinha de gente lá...", "O que o juiz
roubou pros hóme...". "Está um calor, hein?" "Está uma chuva, um frio" (What
a cold!).
59. A expressão "Idade Média" já aparece em 1639, mas foi Cristóvão Keller,
quem a introduziu num manual escolar em 1688: Historia Medii Aevii, a
temporibus Constantini ad Constantinopolim a Turcis captam deducta.

60. La idea de principio en Leibniz, Buenos Aires, EMECÉ, 1958, pp 437-


438.

61. Resumiremos nos próximos parágrafos, dedicados à discussão do que


significava o latim medieval para Tomás, as considerações de Pieper no Cap.
IX de seu Thomas von Aquin: Leben und Werk.

62. Como é o caso de palavras como: principium, actus, subiectum,


contingentia, definitio e tantas outras com sentido (ligado por tradutores como
Boécio) a seus correspondentes gregos.

63. A Summa Theologica será citada só pela passagem. Assim, II-II,154,12 é


o corpus do artigo 12 da questão 154 da segunda parte da segunda parte da
Summa e. E I,60,1 ad 3 é a resposta à terceira objeção no artigo 1 da questão
60 da primeira parte da Summa. Para as demais referências, seguiremos o
seguinte código de abreviaturas:

Virt. comm. - Quaestio disputata de virtutibus in communi

Ver. - Quaestiones disputatae de veritate

Mal. - Quaestiones disputatae de malo

CG - Summa contra gentes

Car. - Quaestio disputata de caritate

Pot. - Quaestiones disputatae de potentia Dei

Comp. Theol. - Compendium Theologiae

Spe - Quaestio disputata de Spe

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