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PRÓLOGO
I- O Mundo de Tomás
1. O século XIII
2. A Universidade
3. Aristóteles no Ocidente
1. Potência e Ato
2. Ser e essência
3. Tomás do Deus Criador
4. A alma como forma
VI- A Graça
1. Ordem
2. Razão e Natureza
3. Medida
4. Transcendentais
Razão - Natureza
Ordem
Medida
Transcendentais
Moral
Virtude e Pecado
PRÓLOGO
JL, 1995
I - O MUNDO DE TOMÁS[3]
1. O século XIII
2. A Universidade
3. Aristóteles no Ocidente
Aliás, antes mesmo da queda de Roma, o pensamento aristotélico era visto por
muitos cristãos como algo estranho e alheio à reta doutrina: parecia demasiado
"materialista" em comparação com o espiritualismo de Platão, em aparência
mais próximo do cristianismo. Foram principalmente os hereges nestorianos
que cultivaram as teorias aristotélicas e, quando o Concílio de Éfeso condenou
a cristologia de Nestório, em 431, seus seguidores - agrupados principalmente
em torno da escola de Edessa, na Síria - refugiaram-se na Pérsia, levando
consigo as obras de Aristóteles e textos de matemática, medicina e outras
ciências gregas.
Em Toledo, reconquistada aos árabes pelos cristãos, surge no século XII, por
iniciativa do bispo Raimundo, um movimento de traduções[6]. E, na verdade,
o que primeiramente penetra no Ocidente não é Aristóteles, mas uma mistura
de Aristóteles com seus comentadores árabes, o que era diferente do
Aristóteles original... Mas o fato é que, pela primeira vez, a Idade Média se
depara com uma grandiosa interpretação completa e sistemática do mundo à
margem da Revelação cristã.
Mas como atingir o ser? Nada mais distante de sua concepção filosófica do
que um discurso apriorístico: Tomás parte da experiência[8], do fenômeno, do
ser tal como ele se manifesta. Daí que dê especial relevo metodológico às
formas de agir humano e à linguagem, enquanto portadores de notícias sobre o
ser.
Por isso, Tomás sempre está atento à linguagem do povo, buscando nela a
transparência. Um exemplo entre tantos: já na primeira questão da Suma
Teológica, ao procurar caracterizar o que é a sabedoria, Tomás explica que a
sabedoria não deve ser entendida somente como conhecimento que advém do
frio estudo, mas como um saber que se experimenta e se saboreia. Sempre
tendo em conta os fenômenos da linguagem, a fala do povo, como fonte de
profundas descobertas filosóficas, encanta-se com o fato - para ele experiência
pessoal vivida - de que em latim sapere signifique tanto "saber" como
"saborear". Esta coincidência de significados na linguagem do povo - Tomás
bem o "sabe" - não é casual: se há quem saiba por que estudou,
verdadeiramente sábio é aquele que sabe porque saboreou...
1. Potência e Ato.
Potência e ato são noções básicas e intuitivas, tão fundamentais que não se
deixam definir[15]. Precisamente uma das grandes contribuições de Aristóteles
para a História da Filosofia foi a de ter ensinado que há diversos modos de
ser; que o ser não é unívoco (nem equívoco), mas análogo. Potência e ato são
dois modos de ser: a potência é um modo fraco; o ato, forte.
E o que significa ser? Ser é, antes de mais nada, atividade, ato. Todas as
coisas, todos os entes, são, antes de mais nada, aqueles que "exercem o ato" de
ser, fato que já a própria linguagem comum recolhe: se o presidente é aquele
que exerce a atividade de presidir, o gerente a de gerir, o caminhante a de
caminhar, o ente exerce a de ser. Mas justamente por constituir a primeira
atividade, a mais fundamental - e "a mais maravilhosa", dirá Gilson -, o ser
escapa a qualquer definição: "O ato de ser não pode ser definido" (In Metaph.,
9,5.). Não podemos captá-lo pela inteligência e transformá-lo num conceito,
como o fazemos com a essência de qualquer coisa, porque é anterior a
qualquer idéia. O ser é, e sempre será, um mistério que o homem não pode
esgotar.
2. Ser e essência
Do mesmo modo que casa, lar, domicílio etc. enfatizam aspectos diferentes,
assim também, falamos em essência como contraponto do ato de ser; em
natureza, quando queremos acentuar o fato de que essa essência é princípio de
operações[19]; ou em qüididade (quidditas), para enfatizar o fato de que a
essência é o que responde à pergunta: "O que é isto?" (o que se torna mais
claro na sugestiva forma francesa: "Qu'est-ce que... ?", "Que é este quê...?").
Sem termo de comparação com a flauta (onde não existe o "puro ato de soar"),
no caso de Deus - precisamente por não haver delimitação, determinação,
definição na sua posse do ser - não se pode propriamente falar em essência,
mas em puro ato de Ser. Ele é ato puro, de cujo ser participam todos os entes.
Esta afirmação do ato de ser é como que uma prova da existência de Deus, a
não ser que neguemos que as coisas são. A atividade de todos os entes decorre
da sua natureza: a mangueira germina, cresce, floresce e dá mangas porque é
mangueira. Está na sua essência fazê-lo. Todas as mangueiras o fazem. Mas o
ser, apesar de constituir a principal atividade exercida pelos entes - todos os
entes -, não decorre da sua natureza; é "anterior" a ela, só é compreensível se
as coisas o exercem como algo recebido; "assim, o ser que está presente nas
coisas criadas, pode somente remontar-se ao ser divino" (De pot., 3,5 ad 1).
Tomás compara com freqüência o ato criador à luz que o sol emite: o ar só
tem luz na medida em que sobre ele se exerce a presença do sol; se este se
apagasse, imediatamente aquele deixaria de estar iluminado. Da mesma
forma, se Deus deixasse de sustentar todas as coisas no ser, imediatamente
elas recairiam no nada, pois o ser não é algo que decorra delas próprias.
Tal como o fogo ou a luz criam uma dependência contínua nas coisas que
deles participam, sendo por eles aquecidas ou iluminadas, assim também a
criação não é entendida por Tomás simplesmente como um começo, mas
como uma situação: a presença fundante do Criador no ente criado. Ou seja,
se existimos, é porque Deus nos mantém continuamente no ser. Dependemos
dEle da forma mais profunda e absoluta, e tudo nos vem deste primeiro ato
"fundacional". Mesmo quem se volta contra Deus está sendo por Ele
amparado em cada instante e em cada ato que realiza.
Daí decorre também que todo e qualquer ente espelhe a Deus, pela essência e
pelo ato de ser: "Todas as coisas, na medida em que são, reproduzem de
algum modo a essência divina; mas não a reproduzem todas da mesma
maneira, mas de modos diferentes e em diversos graus. Assim, o protótipo e o
original de cada criatura é o próprio Deus, na medida em que este é
reproduzido de determinada maneira por determinada criatura" (Quodl. 4, 1).
"Todas as coisas, na medida em que são, assemelham-se a Deus, que é o ser
primeiro e principal" (CG 1, 80). "A criatura é trevas na medida em que
provém do nada; mas na medida em que provém de Deus, participa de uma
certa semelhança com Ele e conduz à semelhança com Ele" (De Ver. 18, 2 ad
5).
Para analisar a realidade material, ele parte das experiências dos fenômenos da
unidade de cada ente e das mudanças substanciais, nas quais ocorre uma
mudança de sujeito: uma coisa A, deixa de ser o que é e passa a ser outra
coisa, B. Ora, B não proveio do nada (mas, evidentemente, de A) e A não se
reduziu ao nada (deixou de ser A e passou a ser B). Há, portanto, nesses casos
de mudança de substância, algo que permanece e algo que muda (o que está a
indicar que a substância é composta). O que permanece é a pura
potencialidade de ser um ente físico (matéria prima), atualizada, em cada
caso, por um fator determinante dessa potência que faz com que A seja A e B
seja B: a forma substancial.
Assim, para Tomás, todo ente físico é composto de uma intrínseca união de
matéria (a potência de ser ente físico) e forma (o ato que "atualiza" a matéria).
E é tal sua unidade de consideração do cosmos, que emprega o mesmo
binômio matéria/forma para indicar tanto a composição substancial de uma
pedra quanto a de um homem.
Alma, para Tomás, é simplesmente uma forma, a forma dos viventes. Uma
forma muito especial (daí que também receba um nome especial[22]), mas uma
forma. Desse modo, pode-se falar em alma de um vegetal, em alma de uma
formiga ou de um cão e em alma humana (no caso, uma alma espiritual).
A alma (como, aliás, todas as formas substanciais) é um princípio de
composição substancial dos viventes. Ou melhor, um co-princípio (em
intrínseca união com o outro princípio: a matéria). É pela alma que se
constitui e se integra o vivente enquanto tal, e ela é também a fonte primeira
de seu agir.
Não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências[23].
Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva
não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.
Dizer que a inteligência é uma faculdade espiritual é dizer que seu campo de
relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas visíveis e invisíveis são
inteligíveis; "calçam" bem, combinam com a inteligência. Contudo, a relação
da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos
entes e diferentes modos de ser, uns são mais direta e imediatamente
acessíveis à inteligência.
Tomás tem da ética uma visão profunda e orgânica, que deriva da própria
natureza ou essência do ser humano. O Aquinate afirma diversas vezes que a
Criação é obra de toda a Santíssima Trindade, e que constitui uma união de
ser, verdade e bem que espelha a Unidade das três Pessoas divinas: Pai, Filho
e Espírito Santo. "Deus Pai opera a Criação pelo seu Verbo, que é o Filho, e
pelo seu Amor, que é o Espírito Santo" (I, 45, 6). O ato de "dar o ser" está
unido ao Pensamento divino, ao Verbo que, juntamente com o ser, dá
"verdade" e inteligibilidade à criatura: ao criá-la, dota-a daquela essência, que
pode ser objeto de análise racional.
Todo ente tem, portanto, uma essência, uma natureza, um modo de ser
pensado, planejado por Deus; está organizado ou estruturado segundo um
"projeto" divino. O homem (e cada coisa criada) é o que é, possui uma
natureza humana, precisamente por ter sido criativamente criado pelo Verbo.
Daí que haja uma verdade e um bem objetivos para o homem, porque seu ser
não é caótico ou aleatório, mas procede de um design divino.
Nesta perspectiva, toda norma moral deve ser entendida como um enunciado a
respeito do ser do homem; e toda transgressão moral, o pecado, traz consigo
uma agressão ao que o homem é. Os imperativos dos mandamentos ("Farás
x...", "Não farás y...") são, no fundo, enunciados sobre a natureza humana: "O
homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, requer x e é
incompatível com y".
Falávamos do ser do homem, do que o homem é. Sobre isto deu-se uma das
maiores disputas de Tomás em Paris: sua defesa da unidade do ser humano.
Seus adversários afirmavam a existência de uma alma espiritual humana
"separada", situada acima da realidade corpórea, sendo a dimensão sensível e
a fisiológica do homem regidas por outros princípios, por uma "alma
sensitiva" e outra "vegetativa"; só a "alma espiritual" seria objeto da teologia,
e o resto não teria interesse algum. Já o universalismo de Tomás recusava-se a
estreitar o âmbito da teologia, reduzindo-a ao que é puramente espiritual,
como se o corpo não tivesse sido criado por Deus, como se o Verbo não se
tivesse feito carne.
VI - A GRAÇA
A participação sobrenatural atinge por inteiro o ser humano, de tal forma que
se pode falar de uma "nova geração" ou "re-criação" (I-II, 110, 4); torna o
cristão "filho de Deus" de uma maneira totalmente nova: o cristão participa da
Filiação do Verbo - Cristo é Filho de Deus, e o cristão, que participa de Cristo,
tem a filiação divina. Esta filiação divina distingue-se absolutamente daquela
pela qual todos os homens são filhos de Deus, porque participam, ao
existirem, do ser de Deus. Também neste ponto Tomás se aproxima muito
mais dos Evangelhos do que inúmeros comentaristas anteriores: Cristo nunca
põe a sua Filiação divina (natural) no mesmo plano da nossa (participada);
assim, nunca diz, referindo-se a si mesmo e aos outros, "nosso Pai", mas
sempre "meu Pai" ou "vosso Pai", ou "meu Pai e vosso Pai" (cfr. por exemplo
Jo 20, 17).
Tomás insiste nesse participar de Deus: "A graça é uma certa semelhança com
Deus de que o homem participa" (III, 2, 10 ad 1); "O primeiro efeito da graça
é conferir um ser de alguma forma divino" (III, 2 d. 26, 155); "Pela graça
santificante, toda a Trindade passa a morar na alma" (I, 43, 5).
1. Ordem
Que ordem, classicamente, guarde relação com "estar certo", de acordo com a
dinâmica que deve ser, expressa-se, por exemplo, no nosso "tudo em ordem",
resposta à pergunta: "Como vai?". "Tudo em ordem" significa que a saúde, as
finanças, a família etc. estão cumprindo bem seu papel na dinâmica
existencial de minha vida.
2. Razão e Natureza.
Ratio, razão, não deve aqui ser entendida como a razão do "racionalismo",
nem sequer somente como a faculdade racional humana. Dentre os múltiplos
significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos diversos
sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente dois: um
que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro, para um
peculiar relacionamento da razão humana com a realidade.
No âmbito da fé, não é por acaso, portanto, que S. João emprega, em seu
Evangelho, o vocábulo grego Logos (razão, palavra) para designar a segunda
Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos não só
é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Apo 3, 14), o
responsável pela articulação intelectual das coisas. Pois a Criação deve ser
entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, design das
formas da realidade, feito por Deus através do Verbo, Logos. E em seu
Comentário ao Evangelho de João, Tomás chega a discutir a questão da
conveniência de traduzir Logos por Ratio em vez de Verbum. Esta última
forma parece-lhe melhor, pois se ambas indicam pensamento, Verbum
enfatiza a "materialização" do pensamento (em criação/palavra)[39].
Assim, para Tomás, a criação é também "fala" de Deus: as coisas criadas são
pensadas e "proferidas" por Deus[40]: daí decorre a possibilidade de
conhecimento do ente pela inteligência humana[41].
Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente
de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta
negá-la: "Não há natureza humana porque não há Deus para concebê-la". De
um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode
falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há
um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as[43].
Não por acaso natureza deriva de natus, do verbo nascer (nascor). Se agimos
como homens é porque nascemos homens e não ratos. Natureza humana é,
assim, o ser que o homem recebe de nascença.
Assim, por exemplo, para dizer "na qualidade de", dizemos "enquanto",
palavra que obviamente significa "em-quanto", "in-quantum" ("respeito-o
enquanto ser humano")[44]. Já "tal", originalmente qualitativo tem também seu
uso quantitativo: "Ela tem já seus trinta e tal anos de idade"[45].
Assim, a forma na coisa é somente causa formal interna (daí que Tomás fale
de imitatio), segundo, de acordo com a causa formal externa.
4. Transcendentais
São eles: verum, bonum, pulchrum, res, aliquid, unum; verdadeiro, bom, belo,
coisa[47], quê[48] e um[49].
O que se afirma com os transcendentais é que tudo que é, é bom; tudo que é, é
verdadeiro; etc. A identidade (na coisa) entre ente, verdadeiro, bom, etc. é
uma das afirmações mais fundamentais da filosofia de S. Tomás: o ente,
enquanto diz respeito à inteligência, diz-se verdadeiro; com relação à vontade,
bom; etc.
E se algo não vale a pena, "não adianta", o inglês diz no good. Fala-se nos
bens de uma pessoa (paralelo ao goods do inglês): "Fulano, com o incêndio,
perdeu todos os seus bens". E "bem" na expressão "se bem que" (obwohl em
alemão; ben che em italiano; bien que em francês) equivale à ressalva: "é
verdade que" ou, simplesmente, "é que"[53]. E "também" significa tão-bem, ou
seja, "igualmente é" (em alemão há, por exemplo, ebensogut e, em inglês, as
well: He is rich, my friend is rich as well). O espanhol tem a expressão más
bien[54].
Não só os indivíduos singulares, mas também as épocas, têm, por vezes, uma
necessidade adolescente de auto-afirmação que se compraz em menosprezar o
que as antecede imediatamente no tempo.
Cícero escreve em uma língua viva, sua língua materna. Tomás escreve numa
língua que não era sua língua materna, mas que lhe era extremamente natural.
O latim medieval alimenta-se não só do latim da Antigüidade clássica, mas
também da vida litúrgica; não era uma língua morta, continuava
desenvolvendo-se vivamente: "une langue vivante, sans être la langue d'une
communauté ethnique" (Chr. Mohrmann).
Parte II
RAZÃO - NATUREZA
5. A reta ordem das coisas coincide com a ordem da natureza; pois as coisas
naturais se ordenam a seu fim sem qualquer desvio.
Rectus ordo rerum convenit cum ordine naturae; nam res naturales
ordinantur in suum finem absque errore (CG 3,26).
Intellectus... natus est omnia quae sunt in rerum natura intelligere (CG 3,59)
Sicut ordo rationis rectae est ab homine, ita ordo naturae est ab ipso Deo (II-
II,154,12 ad 1).
Homo proprie est id quod est secundum rationem. Et ideo ex hoc dicitur
aliquis in seipso se tenere, quod tenet se in eo, quod convenit rationi (II-
II,155, ad 1).
12. A razão é a natureza do homem. Daí que tudo o que é contra a razão é
contra a natureza do homem.
Ratio hominis est natura, unde quidquid est contra rationem, est contra
hominis naturam (Mal. 14,2 ad 8).
Ea... quae naturaliter rationi sunt insita verissima esse constat, in tantum ut
nec ea esse falsa sit possibile cogitare (CG 1,7).
14. Todos os atos da vontade têm como que sua primeira raiz, naquilo que o
homem naturalmente quer.
15. A vontade por sua natureza é boa, daí que também seu ato natural sempre
é bom. E ao dizer ato natural da vontade refiro-me a que o homem por
natureza quer a felicidade, ser, viver e a bem-aventurança. Quando porém se
trata do bem moral, a vontade em si considerada não é boa nem má, mas
mantém-se em potência para o bem ou para o mal.
Voluntas secundum suam naturam est bona, unde et actus eius naturalis
semper est bonus; et dico actum naturalem voluntatis, prout homo vult
felicitatem naturaliter, esse, vivere, et beatitudinem. Si autem loquamur de
bono morali, sic voluntas secundum se considerata nec est bona nec mala:
sed se habet in potentia ad bonum vel malum (Mal. 2,3 ad 2).
16. O primeiro ato da vontade não procede de ordem da razão, mas de instinto
da natureza ou de uma causa superior.
Primus ... voluntatis actus ex rationis ordinatione non est, sed ex instinctu
naturae aut superioris causae (I-II,17,5 ad 3).
Sicut cognitio naturalis semper est vera; ita dilectio naturalis semper est
recta: cum amor naturalis nihil aliud sit quam inclinatio naturae indita ab
auctore naturae. Dicere ergo quod inclinatio naturae non sit recta, est
derogare auctori naturae (I,60,1 ad 3).
18. A vontade não tem caráter de regra suprema, mas é uma regra que recebe
sua retidão e orientação da razão e do intelecto não só em nós, mas também
em Deus; se bem que, em nós, entender e querer as coisas são atos diferentes,
e, por isso, não se identificam vontade e retidão da vontade. Em Deus, porém,
é o mesmo e único ato entender e querer algo: daí que vontade e retidão da
vontade se identifiquem.
Voluntas... non habet rationem primae regulae, sed est regula recta; dirigitur
enim per rationem et intellectum, non solum in nobis sed et in Deo; quamvis
in nobis sit aliud intellectus et voluntas secundum rem; et per hoc nec idem
est voluntas et rectitudo voluntatis; in Deo autem est idem secundum rem
intellectus et voluntas; et propter hoc est idem rectitudo voluntatis et ipsa
voluntas (Ver. 23,6).
20. O bem do homem enquanto homem está em que a razão seja perfeita no
conhecimento da verdade e em que os apetites inferiores se regulem pela regra
da razão. Pois, se o homem é homem, é por ser racional.
Bonum hominis, inquantum est homo, est: ut ratio sit perfecta in cognitione
veritatis et inferiores appetitus regulentur secundum regulam rationis. Nam
homo habet, quod sit homo, per hoc, quod sit rationalis (Virt. comm., 9)
ORDEM
Ordo, qui est partium universi ad invicem, est per ordinem qui est totius
universi ad Deum (Pot. 7,9).
26. Deus age perfeitamente como causa primeira, mas requer o agir da
natureza como causa segunda. Embora Deus pudesse produzir o efeito da
natureza, mesmo sem a natureza, Ele quer agir mediante a natureza, para
observar a ordem das coisas.
27. A ordem se encontra primariamente nas próprias coisas e delas é que passa
para nosso conhecimento.
28. "O que procede de Deus é ordenado" (Rom 13, 1). E a ordem das coisas
consiste em que algumas sejam por outras reconduzidas a Deus.
"Quae a Deo sunt, ordinata sunt" (Rom 13, 1). In hoc autem ordo rerum
consistit, quod quaedam per alia in Deum reducuntur (I-II,111,1).
29. Daí que... haja criaturas espirituais, que retornam a Deus não só segundo a
semelhança de sua natureza, mas também por suas operações. E isto,
certamente, só pode se dar pelo ato do intelecto e da vontade, pois nem no
próprio Deus há outra operação em relação a Si mesmo.
30. A lei divina ordena os homens entre si, de tal modo que cada um guarde
sua ordem, isto é, que os homens vivam em paz uns com os outros. Pois a paz
entre os homens não é senão a concórdia na ordem, como diz Agostinho.
Ad Deum non acceditur passibus corporalibus ... sed affectibus mentis (I,3,2
ad 5).
MEDIDA
Ipsae res sunt causa et mensura scientiae nostrae (Pot. 7,10 ad 5).
36. O intelecto humano recebe sua medida das coisas, de tal modo que um
conceito do homem não é verdadeiro por si mesmo, mas se diz verdadeiro
pela consonância com a realidade. O intelecto divino, porém, é a medida das
coisas, já que uma coisa tem tanto de verdade quanto reproduz em si o
intelecto divino.
Res naturales sunt mediae inter scientiam Dei et scientiam nostram. Nos
enim scientiam accipimus a rebus naturalibus, quarum Deus per suam
scientiam causa est. Unde, sicut scibilia naturalia sunt priora quam scientia
nostra, et mensura eius; ita scientia Dei est prior quam res naturales, et
mensura ipsarum: sicut etiam aliqua domus est media inter scientiam artificis
qui eam fecit, et scientiam, illius qui eius cognitionem ex ipsa iam facta capit.
(I,14,8 ad 3).
38. (Qualquer criatura...) Por ter uma certa forma e espécie representa o
Verbo, porque a obra procede da concepção de quem a projetou.
Scientia Dei est mensura rerum: non quantitativa (...) sed quia mensurat
essentiam et veritatem rei. Unumquodque enim intantum habet de veritate
suae naturae, inquantum imitatur Dei scientiam: sicut artificiatum,
inquantum concordat arti (I,14,12 ad 3).
TRANSCENDENTAIS
40. O bom, o verdadeiro e o ente coincidem na coisa, mas diferem pelo título.
Bonum et verum et ens sunt idem secundum rem, sed differunt ratione (I-
II,29,5).
41. O verdadeiro e o bem estão incluídos um no outro. Pois o verdadeiro é um
certo bem, senão não seria apetecível; e o bem, um certo verdadeiro, senão
não seria inteligível.
42. Na realidade objetiva das coisas, o bem e a verdade são permutáveis. Daí
que o bem seja entendido pelo intelecto a título de verdade; e o verdadeiro,
apetecido pela vontade a título de bem.
Quia bonum et verum convertuntur secundum rem: inde est quod et bonum
ab intellectu intelligitur sub ratione veri, et verum a voluntate appetitur sub
ratione boni (I,59,2, ad 3).
44. Deus, sendo uno, produz o uno: não só porque qualquer coisa é em si una,
mas também porque, de certo modo, a totalidade das coisas, encerra unidade
de perfeição.
Sicut Deus est unus, ita et unum produxit, non solum quia unumquodque in se
est unum, sed etiam quia omnia quodammodo sunt unum perfectum (Pot. 3,16
ad 1).
45. Quanto mais algo é uno, tanto mais perfeita sua bondade e força.
Quanto aliquid magis unitum est, tanto bonitas eius et virtus perfectior est
(CG I,102).
46. Diz Avicena que "a verdade de uma coisa é a característica própria do ser
que lhe foi estabelecida" ... enquanto segue a razão própria que dela existe na
mente divina.
Dicit Avicenna quod "veritas rei est proprietas esse uniuscuiusque rei quod
stabilitum est ei"... inquantum propriam sui rationem quae est in mente
divina, imitatur (CG I,60).
Ipsa actualitas rei est quoddam lumen ipsius (Comentário ao Liber de causis
I,6).
A ALMA COMO FORMA ESPIRITUAL
48. Sempre se verifica o fato de que o ínfimo de uma ordem de ser superior é
limítrofe ao supremo da ordem inferior. Assim, certos ínfimos do gênero
animal, mal superam a vida das plantas, como é o caso da ostra, que é imóvel,
só tem tato e está fixa como as plantas. Daí que S. Dionísio diga que "a
sabedoria divina enlaçou os fins dos superiores com os princípios dos
inferiores". No âmbito corporal há também algo, o corpo humano,
harmonicamnete disposto, que também se enlaça com o ínfimo do superior, a
alma humana, que está no último grau das realidades espirituais. Tal enlace
manifesta-se no próprio modo de conhecer da inteligência humana. Daí que a
alma espiritual humana seja como que um certo horizonte e fronteira entre as
realidades corpóreas e as incorpóreas: ela mesma é incorpórea e, no entanto, é
forma de corpo.
50. Para cada ente, bom é aquilo que é adequado à sua forma; mau, o que fica
fora da ordem de sua forma.
Unicuique ... rei est bonum, quod convenit ei secundum suam formam; et
malum, quod est ei praeter ordinem suae formae (I-II,18,5).
54. As naturezas intelectuais, porém, têm maior afinidade com o todo do que
as outras naturezas; pois, uma substância intelectual qualquer é, de certo
modo, todas as coisas, já que pode apreender a totalidade do real pelo seu
intelecto; ao passo que qualquer outra substância participa apenas de um setor
particular do ser.
56. Diz-se que a alma é de certo modo todas as coisas porque é naturalmente
apta para conhecer tudo. E, desse modo, é possível que num único ente esteja
toda a perfeição do universo. Daí que esta seja, segundo os filósofos (pagãos),
a plenitude de perfeição a que a alma pode aspirar: reproduzir em si a ordem
do universo como um todo e suas causas. E tal é também para eles o fim
último do homem, que, para nós, se realizará na visão de Deus, pois, como diz
Gregório: "O que é que não vêem os que vêem Aquele que tudo vê?"
Dicitur animam esse quodammodo omnia, quia nata est omnia cognoscere.
Et secundum hunc modum possibile est, ut in una re totius universi perfectio
existat. Unde haec est ultima perfectio, ad quam anima potest pervenire,
secundum philosophos, ut in ea describatur totus ordo universi et causarum
eius; in quo etiam finem ultimum hominis posuerunt, qui secundum nos erit in
visione Dei, quia, secundum Gregorium, quid est quod non videant, qui
videntem omnia vident? (Ver. 2,2).
MORAL
57. Somos senhores de nossas ações no sentido de que podemos escolher isto
ou aquilo. Não há escolha, porém, no que diz respeito ao fim, mas somente
sobre "o que se ordena ao fim" (como se diz na Ética de Aristóteles). Daí que
o querer o último fim não seja uma daquelas coisas de que somos senhores.
Sumus domini nostrorum actuum secundum quod possumus hoc vel illud
eligere. Electio autem non est de fine, sed "de his quae sunt ad finem", ut
dicitur in III Ethicorum. Unde appetitus ultimi finis non est de his, quorum
domini sumus (I,82,1 ad 3).
(Cum enim) gratia non tollat naturam , sed perficiat (I,8,1 ad 2).
60. As paixões de per si não têm caráter de bem nem de mal. Pois o bem e o
mal do homem se dão no âmbito da razão. Daí que as paixões em si
consideradas são para o bem ou para o mal, conforme correspondam à razão
ou a contradigam.
Passiones ex seipsis non habent rationem boni vel mali. Bonum enim vel
malum hominis est secundum rationem. Unde passiones secundum se
consideratae se habent et ad bonum et ad malum, secundum quod possunt
convenire rationi vel non convenire (I-II,59,1).
Conscientia dicitur esse intellectus nostri lex, quia est iudicium rationis ex
lege naturali deductum (Ver. 17,1 ad 1).
63. Quando a razão, mesmo errando, propõe algo como preceito de Deus,
então desprezar o ditame da razão é o mesmo que desprezar o preceito de
Deus.
Quando ratio errans proponit aliquid ut praeceptum Dei, tunc idem est
contemnere dictamen rationis et Dei praeceptum (I-II,19,5 ad 2)
VIRTUDE E PECADO
64. Pela virtude o homem se dirige ao máximo daquilo que pode ser.
10. Este é um dos tantos pontos que perfazem a sintonia do filosofar de Tomás
com o bom senso do povo. Aproveitando-nos de uma metáfora de que ele
mesmo freqüentemente se vale - a comparação entre o sábio e o arquiteto -,
diríamos que o verdadeiro filosofar está para a sabedoria do homem da rua
assim como o saber do bom arquiteto para a adequada construção da casa. O
cidadão comum não estudou arquitetura, mas sabe que não lhe serve uma casa
em que, por exemplo, a porta da rua se abre diretamente para um banheiro, e
em que este se comunique sem divisórias com a cozinha; em que a adega
esteja a céu aberto no terraço, e todos os disparates que possam passar pela
"criativa" mente de um arquiteto desvairado. É oportuno lembrar que, como
não faltam arquitetos destes, também não faltam na história filósofos
"criativos". Já a filosofia de Tomás assemelha-se ao trabalho do sábio
arquiteto, que aplica sua competência profissional e seu senso artístico para
realizar aquilo que, afinal de contas, coincide com o bom senso do homem
comum: cozinha é cozinha; banheiro é banheiro! Tudo de acordo com a
realidade humana.
15. Se definir supõe enquadrar, o ser e formas de ser como potência e ato não
são passíveis de definição.
16. E quando falamos de exato, estamos nos referindo a alguma coisa feita a
partir da realidade, a partir do ato (ex actu).
19. O homem pensa ou a árvore dá fruto porque têm essências, naturezas das
quais procedem tais operações.
20. Encontramos freqüentemente em Tomás a palavra medida, mensura, num
sentido mais formal do que quantitativo.
21. Também neste tópico seguimos de perto o Thomas von Aquin: Leben und
Werk de Josef Pieper, München, DTV, 1981.
22. Como dizia jocosamente um aluno: com a palavra alma (em relação às
demais formas) dá-se algo de semelhante ao que ocorre com certas
denominações de sanduíche: "os sanduíches com queijo são prefixados por
cheese: cheese-burger, cheese-dog etc. Mas o `misto quente' é tão especial que
ninguém o denomina cheese-presunto".
25. É o que significa, por exemplo, a caracterização, tantas vezes por ele
repetida, da virtude como ultimum potentiae.
26. Nossa época, tão sensível para as realizações, anda um tanto esquecida da
realização. Pense-se por exemplo na realização profissional. O profissional é
antes de tudo um homem. Daí que a realização profissional deva subordinar-se
à moral. Pieper, a propósito, lembra a atual tendência - cada vez mais
acentuada em nossa sociedade organizada com base na divisão do trabalho -
de pensarmos que uma ação, por trazer o rótulo de trabalho, estaria, por esse
próprio fato, legitimada também moralmente. Essa atitude de esquecimento da
ética pode levar a desastrosas conseqüências: "From a technical point of view
it was a sweet and lovely and beautiful job", "do ponto de vista técnico, um
trabalho doce, belo e fascinante", são palavras de Oppenheimer, referindo-se à
sensação que experimentaram alguns físicos que trabalhavam na produção da
bomba atômica...
30. Charles de Journet descreve com muita clareza essa intuição do Doutor
universal: "Santo Tomás faz notar que já na ordem natural se encontra algo
que nos consente - passando nós ao limite, dando um salto - compreender esta
elevação do homem ao máximo da condição que lhe é própria, e a sua entrada
na intimidade da vida divina. As atividades físico-químicas do reino mineral
desenvolvem-se, no estado que lhes é natural, somente no plano mineral. Mas,
no plano biológico, são utilizadas pela vida: a vida vegetativa vai, por
exemplo, fazer subir uma planta ou uma árvore, em vez de a abandonar à lei
da gravidade. A sensibilidade, por sua vez, utiliza as leis biológicas: o globo
ocular tem de ser irrigado (vida vegetativa) para poder ver (vida sensitiva). E
quando chega a vez da razão, vê-la-emos utilizar a sensibilidade e as paixões
para uma obra de razão humana. E assim, uma ordem inferior, sem que as
suas leis sejam destruídas, é como que retomada para entrar na órbita de uma
ordem superior. Tudo isto, no interior da natureza. E Deus não irá então tomar
também o homem, com a sua razão, para fazê-lo gravitar à Sua volta? A
resposta é positiva. O homem (elevado pela graça) continua a ser homem; mas
é atraído, convidado a entrar na órbita de uma vida sobre-humana" (Reflexões
sobre a graça, Lisboa, Aster, p. 21).
34. Por extensão, reor no latim comum passou também a ser sinônimo de
puto, aestimo (considerar, reputar): daí que vocábulos como "reputação" e
"estimar" estejam próximas de palavras da linguagem do cálculo como
"computar" e "estimativa". Daí também ratus, contado, de que se originou não
só "rateio", mas também "ratificar".
35. Encontramos em Tomás, usos como: "De ratione intelligendi est...", "é da
essência da intelecção...".
36. Neste último sentido, diz Tomás, por exemplo: "habet rationem verbi",
tem caráter verbal, apresenta-se como palavra.
41. Não por acaso Tomás considera que "inteligência" tem que ver com intus-
legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da
realidade.
45. E "quão" pode ser substituído por "quanto" ou por "como" (quo-modo)
"Quão cruel é esta dor!" significa uma dor muito cruel tanto como o modo, a
particular forma de crueldade de essa dor fazer-se presente.
49. Unum: um e uno. É pelo unum que , por exemplo, posso proferir o
pronome "eu". Naturalmente o unum do ente é tanto mais visível quanto mais
ascendemos na escala do ser: do inanimado ao vivente; da planta ao humano,
onde cada um experimenta seu caráter de unum.
52. Como quando se diz: "Não senhor, isto não é descanso; você precisa
descansar de verdade", ou se se prefere "um bom descanso" ou "um belo
descanso". Dá-se o mesmo em outras línguas: o italiano diz: una buona dose
di vino, un bel pò di strada etc.; o inglês: it is a good distance, etc.; sempre
indicando plenitude, ser de verdade. Com o transcendental da beleza diz-se
coloquialmente: "Tal time se afundou bonito" e, em italiano, há a expressão
bello e buono para "pura e simplesmente".
53. E o mesmo ocorre quando dizemos: "Ah, ha! eu bem que te avisei. Bem
feito!" (Je vous l'avais bien dit) ou "Você bem que podia me aparecer"
(Vinicius), ou ainda, "Eu bem que mostrei sorrindo" (Chico), Jawohl
(literalmente: sim-bem) é a forma enfática afirmativa do alemão, que também
dispõe do "bem" enfático Wo - zum Teufel - kann er wohl stecken? Onde
diabos pode ele (bem) estar metido?, bem como outras línguas (Le ultime
notizie lasciano ben sperare...).
54. Ante um vinho falso, um vinho que não é bem vinho, exclama-se: "Esto es
mas bien agua". E nós dizemos: "Nem bem (ou mal) chegou e já tornou a
sair".
56. Já coisa, no nosso falar popular, pode indicar algo que está muito bom:
"Hmm! Tá uma coisa" (combinando os transcendentais "um" e "coisa"). E
quando algo não é, mas não é mesmo, dizemos "coisíssima nenhuma".
57. Entre nós, um, embora menos freqüente que em outras línguas, pode
também designar "alguém": "Ele é um que sabe o que quer". E o povo diz: "O
Mané? É aquele um que tem um carro marrom".
58. Isto já se nota na própria palavra inglesa very, que procede do latim
(verus, vere). Very, que não por acaso se traduz por bem em casos de ênfase
na identidade: How could you let it be done under your very nose? (como
deixou que fizessem isto bem debaixo do seu nariz?) She is the very woman
I'm looking for: Ela é bem a mulher que eu procuro; etc. Também o nosso
"deveras" pode ser usado como "muito"; se chove forte, o italiano diz "piove a
buono" e, na Bahia, pede-se café com bem açúcar. "Muito obrigado", em
francês, é não só merci beaucoup, mas também merci bien (em alemão, danke
schön, literalmente, obrigado belo). Note-se ainda que how much equivale
literalmente ao francês com-bien. "Uma beleza de traiçoeiro" (Guimarães
Rosa), "está bem mal", "deveras interessante" e o já apontado "está uma coisa"
são outros tantos usos intensivos dos transcendentais. Um e que também
podem passar por muito. "Que saudades que eu tenho...", "Que lindo!" e
também no uso recente da gíria: "O que tinha de gente lá...", "O que o juiz
roubou pros hóme...". "Está um calor, hein?" "Está uma chuva, um frio" (What
a cold!).
59. A expressão "Idade Média" já aparece em 1639, mas foi Cristóvão Keller,
quem a introduziu num manual escolar em 1688: Historia Medii Aevii, a
temporibus Constantini ad Constantinopolim a Turcis captam deducta.