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Feitiço pega sempre: alforrias e curandeirismo no oeste paulista (século XIX)1

Adriano Bernardo Moraes Lima2

Resumo:
Negrinho retinto de uma perna só, dado a traquinagens com aqueles que se atreviam a
atravessar seus domínios, especialmente à noite, sem lhe deixar um punhado de fumo, o Saci-
Pererê tornou-se uma entidade fantástica das mais populares na cultura brasileira. Apesar de suas
origens relativamente incertas, essa personagem aparece como ajudante de um feiticeiro mina que
procurava pôr fim aos infortúnios de dois escravos que julgavam rude o seu senhor. O plano
malogrado de liquidar o senhor destes negros aponta para a maneira como os pressupostos e
modos de compreensão culturais de nível profundo, compartilhados por africanos e crioulos,
serviram de recurso formador de identidades e instituições negras no oeste paulista em meados do
XIX. É neste contexto que me proponho a pensar os processos de reordenação cultural dos
valores e crenças transferidos de regiões africanas específicas para o sudeste brasileiro, diante da
necessidade do aprendizado dos códigos de conduta experienciados no cativeiro e no mundo dos
libertos. O caso, ocorrido na vila de Itu em 1856, serve para levantarmos uma série de questões
em torno dos significados da liberdade no Brasil escravista.

Palavras-chave: curandeirismo; alforria; identidade escrava; saci-pererê.

O caso do preto forro Joaquim Mina

No início de 1856, um certo senhor de engenho de nome Antônio Joaquim Rodrigues procura
as autoridades policiais da cidade para reclamar do comportamento de um africano forro. Dizia ele
que a tranqüilidade da Fazenda Pau d’Alho vinha sendo ameaçada por um tal Joaquim Mina, que
vivia a iludir e seduzir sua “enorme escravatura”. Acusava-o de ser o mentor de um “tenebroso
projeto” de insurreição entre os escravos da fazenda que possuía com suas cunhadas. Por esse
motivo, pedia ao delegado de polícia de Itu que enquadrasse o africano nos artigos 115 e 267 do
Código Criminal e o remetesse à Cadeia da Capital. Ainda na sua petição de queixa, o Sr. Rodrigues
nomeava cinco testemunhas que poderiam oferecer toda a veracidade necessária para o andamento
do inquérito.3

1
Texto apresentado no 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, realizado em Curitiba (PR) entre os
dias 13 e 15 de maio de 2009.
2
Doutorando em História Social da Cultura na Unicamp e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP).
3
Todas as citações deste texto foram retiradas dos Autos crimes em que é autor Antônio Joaquim Rodrigues e réu o
preto forro Joaquim Mina. Arquivo do Museu Republicano “Convenção de Itu” (AMRCI). Fundo 1º Ofício da
Comarca de Itu, caixa 68, 06 de fevereiro de 1856. Ver petição do Sr. Antônio Joaquim Rodrigues ao Delegado de
Polícia da Cidade de Itu.
No mesmo dia o delegado suplente expede mandado enviando uma escolta de permanentes à
casa do tal preto forro a fim de recolhê-lo à prisão “para averiguações policiais”. Logo após
interrogar o acusado e colher o juramento do queixoso, o delegado Souza Neves ouve as cinco
testemunhas, todas pertencentes ao círculo de relações pessoais do Sr. Rodrigues. O primeiro, o
Capitão Salvador Nardy de Vasconcelos, homem branco, casado, 50 anos, ituano, importante
senhor de engenho da região. Em seguida, é colhido o depoimento do Dr. Ricardo Gumbleton
Daunt, irlandês naturalizado, igualmente branco e casado, 37 anos, morador em Itu, onde vivia de
ser médico; no momento, posso adiantar que foi a testemunha que se mostrou mais irritada com o
comportamento do preto mina. O terceiro convocado foi o Sargento Ajudante Luciano Francisco de
Lima, homem branco, casado, natural de Capivari, dentista, 35 anos. Estes três, como pode-se notar
por suas qualificações, homens da “primeira classe”. A quarta testemunha ouvida foi o feitor da
Fazenda Pau d’Alho, José Joaquim Florindo, sem cor declarada, casado, 30 anos de idade.
Finalmente, foi ouvido Benedito Luís Rodrigues, rapaz solteiro de 16 anos, que pagava uma dívida
ao Sr. Rodrigues com serviços no engenho.
Mesmo levando-se em consideração o fato de que os argumentos apresentados por
testemunhas, advogados, curadores e demais envolvidos em demandas judiciais representem
espécie de fábula, surpreende no depoimento das testemunhas e do próprio acusado a menção
àquele que se tornaria o personagem mais popular do imaginário brasileiro.4 Tanto o senhor de
engenho quanto os homens de ciência – o médico e o dentista – falam da tentativa de assassinato
por meio de “encantamentos” e “superstições”, comportamento típico da “grosseira ignorância e
simplicidade” dos escravos. Quando o delegado ouve a versão do africano, do feitor e do rapazote, a
crendice ganha contornos mais precisos: surge a figura do saci. Com efeito, não devia se tratar do
Saci-Pererê imortalizado pela obra de Monteiro Lobato, mas alguma entidade fantástica capaz de
interferir efetivamente no mundo dos homens. Mas que saci era esse afinal, que fazia parte do
universo simbólico de homens de cultura refinada, escravos crioulos e africanos – mesmo que
tivessem diferentes visões a seu respeito – a ponto de não restar dúvidas sobre sua capacidade de
produzir efeito no mundo dos vivos?
Em um dos vértices do triângulo, temos um grupo de escravos da Fazenda Pau d’Alho
solicitando a ajuda de um curandeiro (e seu ajudante) para pôr fim a seus infortúnios. Neste núcleo,
formado por um africano mina (o forro Joaquim), seu ajudante (o crioulo Simão) e os escravos do

4
Cf. CORRÊA, Mariza (1983). Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal. p.
23-26. ZENHA, Celeste (1985). “As práticas da Justiça no cotidiano da pobreza”. Revista Brasileira de História, Rio de
janeiro, v. 5, n. 10, mar./ago. 1985, p. 123-146.
engenho do Sr. Rodrigues, havia marcadores compartilhados em torno de representações mágico-
religiosas a ponto das partes compreenderem com certa familiaridade a função do Saci no plano
acordado. Em outro, temos brasileiros pertencentes à “terceira classe” – o feitor, o jovem que
prestava serviços na Pau d’Alho e o carcereiro – que acreditavam ser o Saci um sujeito capaz de
praticar algum tipo de mal se invocado da forma correta. E, finalmente, no último vértice, temos
pessoas abonadas que, apesar de considerarem superstições de uma gente simplória, não deixaram
de mencionar que a tentativa de assassinato havia se dado por meio de encantamentos5. Ao que
parece, os modos de compreensão culturais de nível profundo de pessoas oriundas da África
Ocidental em contato com crioulos herdeiros de culturas centro-africanas (kongo e mbundo)
estavam interferindo, em meados do século XIX, na reconfiguração de crenças populares no sudeste
brasileiro.6

Inquéritos sobre o Saci

Por conta do mistério que pairava sobre o caso do africano Joaquim Mina, achei oportuno
começar pelo pai do “insigne perneta”. Diante das notícias catastróficas da Primeira Guerra
Mundial e do esquecimento das tradições populares nos lares brasileiros, Monteiro Lobato coordena
uma enquete sobre o Saci-Pererê, com o apoio do jornal O Estado de S. Paulo, onde era articulista.7
Embora se tratasse de uma obra publicada em 1918, o Inquérito (como ficou conhecida) trazia uma
coletânea de mais de setenta depoimentos de leitores que passaram sua infância no interior de São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, ao longo da segunda metade do século XIX. O curioso é que
boa parte dos leitores foi apresentada ao Saci por meio de histórias contadas por escravos ou seus
descendentes (uma preta velha pertencente à família, um preto forro que vivia nas terras dos pais,
um caipira de idade avançada). Além dos causos que ajudam a construir a personalidade do Saci,

5
Embora a palavra “feitiço” não apareça nenhuma vez neste processo, pois Joaquim Mina foi acusado de furto e incitar
escravos a insurgirem-se, a expressão “encantamento” pode ser entendida como “efeito maravilhoso e sobrenatural feito
por feitiços, artes ou palavras mágicas”. Definição que complementa a idéia de feitiço: “Veneno ou drogas preparadas
por arte diabólica para fazer criar amor ou ódio”. Cf. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza.
Lisboa: Typographia Lacédina, 1813, respectivamente, vol. 1, p. 675 e v. 2, p. 19.
6
Sobre esta concepção para o Caribe, ver: MINTZ, Sidney; PRICE, Richard (2003). O nascimento da cultura afro-
americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Cândido Mendes. Para o sudeste
brasileiro, ver: SLENES, Robert W (1991). “‘Malungo, ngoma vem!’: África coberta e descoberta no Brasil”. Revista
USP. São Paulo, n. 12, dez./jan./fev. 1991-1992, p. 48-67; e SLENES, Robert W. (1999). Na senzala, uma flor:
esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira
(especialmente o capítulo 3).
7
LOBATO, Monteiro (org.). Sacy-Pererê: resultado de um inquérito. Edição fac-similar. São Paulo: Fundação Banco
do Brasil: Fundação Odebrecht, 1999 (1ª ed. 1918).
alguns depoimentos mencionam episódios que o aproximam do mundo da feitiçaria. Nestas
memórias aparecem estreitas relações entre o Saci e práticas mágico-religiosas que poderiam tanto
curar, quanto trazer sortilégios às pessoas reais.
Outra obra a respeito do “molecote de uma perna só” que me trouxe respostas sobre o caso de
Itu foi Um mito bem brasileiro: estudo antropológico sobre o saci, de Renato da Silva Queiroz.8
Além de elaborar análises inovadoras sobre esta personagem folclórica, Queiroz menciona duas
referências sobre o Saci (embora não trabalhe com elas) em textos do século XIX.
O mais remoto é um artigo anônimo escrito originalmente para o Correio Paulistano, mas
republicado em 1859 no periódico fluminense Correio da Tarde. A outra referência ao Saci citada
por Queirós encontra-se nas memórias do fazendeiro e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, o
Dr. Francisco de Paula Ferreira de Rezende.9 Ambas oferecem descrições minuciosas do
comportamento do negrinho cotó, além de um punhado de causos onde ele apronta suas
traquinagens (geralmente os informantes destes autores são pretos velhos ou caipiras).
Além deste material, os dicionários especializados em folclore ou vocabulário popular
brasileiros oferecem ocorrências do termo “saci” na literatura da segunda metade do século XIX e
primeiras décadas do XX. Umas trazem passagens rápidas, outras, aventuras do diabinho; todas, no
entanto, o associam ao mundo sobrenatural e ao medo causado nas pessoas de modo geral, e nas
crianças em particular.10 Mais recentemente, Carla Anastásia mostrou como a figura folclórica do
Saci-Pererê foi se configurando a partir do processo de mestiçagem entre portugueses, índios e
negros, sobretudo ao longo do século XIX.11

8
QUEIROZ, Renato da Silva (1987). Um mito bem brasileiro: estudo antropológico sobre o saci. São Paulo: Polis. Ver
ainda pequenos ensaios: QUEIROZ, Renato da Silva (1986). “O Saci. Ah, esse negrinho”. Revista de Psicologia Viver,
v. 15, p. 9. “O Herói-trapaceiro: notas sobre a figura do trickster”. Tempo Social, v. 3, n. 1-2, 1991, p. 93-107. “O Saci é
nosso”. O Estado de São Paulo. Caderno de Cultura. São Paulo, p. D-6, 14 mar. 1999.
9
REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de (1987). Minhas recordações. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas
Gerais. Prefácio de Octávio Tarquinio de Sousa (Obra escrita em 1887 e publicada postumamente em 1944).
10
Ver as aparições do saci, em ordem cronológica: Manuel José de Araújo Porto Alegre (1863), Brasilianas; General
José Vieira Couto de Magalhães (1876), O selvagem; Teodoro Fernandes Sampaio (1901), O tupi na geografia
nacional; Euclides da Cunha (1902), Os sertões; Hugo de Carvalho Ramos (1910), “O Saci” (In: Tropas e boiadas,
1917); João Simões Lopes Neto (1913), Lendas do Sul; Henrique Maximiano Coelho Netto (1914), Rei negro; Monteiro
Lobato (1918), Sacy-Pererê: resultado de um inquérito; (1919) Cidades mortas; (1921) O Saci. Entre os dicionários,
ver: Antônio Joaquim de Macedo Soares (1954). Dicionário brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura: Instituto Nacional do Livro (1ª ed. 1875-1888); Luís da Câmara Cascudo (1954).
Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; Francisco da Silveira Bueno (1967). Grande
dicionário etimológico-prosódico da Língua Portuguesa: vocábulos, expressões da língua geral e científica, sinônimos,
contribuições do tupi-guarani. São Paulo: Saraiva; Antônio Geraldo da Cunha (1978). Dicionário histórico das
palavras portuguesas de origem tupi. São Paulo: Melhoramentos: Edusp; Tomé Cabral (1982). Dicionário de termos e
expressões populares. Fortaleza: Edições UFC.
11
ANASTASIA, Carla Maria Junho (2002). “Saci-pererê: uma alegoria mestiça do sertão”. In: PAIVA, Eduardo França;
ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX).
São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, p. 379-392.
Ao voltar ao processo, novas suspeitas começaram a surgir a respeito do comportamento do
forro Joaquim Mina. Minha principal dúvida era entender de que forma um negro “conhecido como
turbulento e insubordinado, (...) por seu exemplo vicioso contaminador de escravos, e capaz de os
desmoralizar a ponto de os tornar incorrigíveis”, poderia obter sua carta de alforria? Se, como parte
da historiografia sugere, os escravos submissos e obedientes possuíam maiores chances de
“conquistar” sua liberdade, como entender a trajetória de um africano (menos representados entre os
alforriados) que não abriu mão de suas práticas religiosas de origem (mesmo que ressignificadas no
Brasil) e, principalmente, que se envolveu em situações que tensionavam as relações entre senhores
e escravos? Como um africano “mina”, obteve credibilidade entre outros escravos africanos e
crioulos que traziam em suas experiências marcadores culturais transplantados da África Central
(Ocidental e Oriental) e reelaborados no sudeste brasileiro?12
Uma outra linha de questões que vêm sendo respondida a partir do cruzamento de
documentação de natureza diversa diz respeito ao local de onde provém a fala dos envolvidos neste
caso. Quem era o Sr. Antônio Joaquim Rodrigues? As testemunhas que ele nomeou para depor a
seu favor? O delegado de polícia de Itu? O juiz que deu a sentença absolvendo o acusado? E os
escravos envolvidos no “tenebroso projeto”?

As personagens

Reconstituir as trajetórias destas pessoas é o principal desafio deste momento da pesquisa.


Quando lidos à luz do que aconteceu no processo contra o forro Joaquim Mina, os inventários post
mortem, autos de contas de testamento, escrituras notariais, sumários crimes e autos de justificação
permitem perceber como os grupos economicamente poderosos agiam e pensavam a presença
nefasta e ao mesmo tempo indispensável dos africanos e seus descendentes na sociedade brasileira.
Entre os envolvidos no processo aberto contra Joaquim Mina, o Dr. Ricardo Gumbleton
Daunt vem se tornando peça-chave para entender não só este caso, mas também a forma como as
“pessoas abonadas” lidaram com situações conjunturais da primeira metade do XIX, como a
crescente presença de forros na sociedade de uma nação recém inventada e o tipo de cidadania que
concebiam para si e para os libertos, as tensões entre o saber médico científico e as práticas

12
Neste momento uso o termo mina entre aspas pensando nos argumentos formulados por Mariza de Carvalho Soares.
Ver os artigos: “Mina, Angola e Guiné: nomes d’África no Rio de Janeiro setecentista”. Tempo. Niterói, v. 3, n. 6, p.
73-93, dez. 1998; “A ‘nação’ que se tem e a ‘terra’ de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no
Império português, século XVIII”. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, ano 26, n. 2, p. 303-330, 2004.
terapêuticas de curandeiros negros, as implicações do fim do tráfico de escravos para a lavoura
paulista, o acesso de escravos à Justiça para reivindicarem sua liberdade, o incômodo causado pelos
africanos livres nas escravarias dos concessionários, a onda de insurreições escravas havidas na
província.
A exploração intensiva e o cruzamento nominativo de fontes notariais, judiciárias,
administrativas, legislativas e literárias possibilitam explorar as conexões entre casos particulares e
processos sociais mais amplos. Da conexão entre fontes diversas que tratam de uma mesma
personagem, surgem os enfrentamentos, as solidariedades, as resistências e acomodações que
marcaram a experiência de escravos, forros e senhores na região de Itu.

Essa gente da vadiice!

Cerca de um ano antes de Joaquim Mina ser denunciado pelo enfurecido senhor de engenho,
os deputados paulistas discutiam questões pertinentes à legislação que regulava os contratos de
prestação de serviço de trabalhadores nacionais na província. Na sessão de 22 de fevereiro de 1855,
diante da escassez de mão-de-obra escrava resultante da proibição do tráfico legal de africanos, o
Dr. Francisco Antônio de Almeida Mello defendia a utilização do que ele chamou de “recursos
domésticos”. Esforçava-se na tribuna para sensibilizar seus colegas a tomarem providências contra
a enorme ameaça que a indústria agrícola da província vinha sofrendo e para a necessidade de
arregimentar mais trabalhadores para a lavoura.
O deputado sorocabano defendia a tese de que era possível “obter maior número de braços,
pondo em ação aqueles que fogem ao trabalho”. Dr. Mello tentava ganhar a simpatia dos deputados
da casa ao compartilhar sua experiência no trato com os trabalhadores nacionais. Dizia que “a
experiência tem mostrado que na última classe da sociedade brasileira (...) existe grande número de
cidadãos que não prestam os serviços correspondentes às suas forças” (grifos meus). A “gente do
pauperismo” – conforme definiram os deputados – trabalhava apenas para “produzir um alimento
tosco e grosseiro”. Em geral, estes miseráveis dirigiam-se às cidades ou vilas apenas para comprar
um punhado de pólvora e chumbo utilizado na caça de animais silvestres. Tendo o suficiente para o
seu sustento, contentam-se com uma camisa e ceroula de algodão. Vivem “como que na primitiva,
limitam-se à caça e à pesca”, e são facilmente encontrados em casas de jogos de azar ou em frente
às suas choças “a tocar uma violinha”.13
As palavras do Dr. Mello fazem a plenária se exaltar. Os deputados começam a se manifestar
e atribuir à “última classe” toda a responsabilidade pelas dificuldades que os grandes proprietários
vinham passando. “Gente da vadiice!”, exclamava Dr. José Pedro de Azevedo Segurado. O remédio
proposto por Dr. Mello, capaz de agir sobre a moléstia que afetava o órgão vital da província, só
poderia ser obtido por algo que substituísse a “ilusória lei de 1831”: transformando trabalhadores
nacionais em delinqüentes.
Dr. Mello indignava-se porque esses indivíduos, apesar de possuírem condições físicas para o
trabalho, “não querem prestar-se a serviço algum agrícola”. Mesmo sendo-lhes oferecidos dez, doze
ou dezesseis mil réis para plantarem um alqueire de milho, recusavam-se a fazer acordo com os
fazendeiros porque já havia se espalhado entre os nacionais o boato de que os contratos de prestação
de serviço funcionavam como formas de injustiçá-los e colocá-los na cadeia:

Fala-se a um roceiro, a um desses homens que a Assembléia bem compreende, a esses homens desocupados, a
esses vadios, que às vezes passam os dias a jogar, e a tocar uma violinha; fala-se para tratar de uma tropa ou para
apresentar um roçado, para ocupar-se da lavoura, e ele recusa-se, dizendo: “Nada! Fulano foi para a cadeia, esses
contratos são meios de perseguição, etc”, entretanto que a sociedade em geral geme (grifos meus).14

Dr. Mello continuava seu discurso argumentando que tanto a lei de 1831 quanto o Código
Criminal (artigos 295 e 296) não tratavam de modo adequado a parcela da população que
conservava-se na mendicância e na vadiagem. Dizia que, com a atual legislação seria impossível
“encontrar remédio a tão grande mal”. O fazendeiro sorocabano julgava impossível aplicar a lei
“com esses homens, que não podem ser processados pela simplicíssima razão, razão ilusória de eles
terem uma ocupação”. Os “desocupados” pareciam saber – mesmo que à sua maneira, com o
conhecimento adquirido no boca a boca – como a legislação imperial qualificava os vadios. Desse
modo, sempre que alguém estranho se aproximava de suas casas – ou “tocas”, como preferia o Dr.
Mello – eles pegavam um machado para afiar e diziam estar se preparando para o trabalho. Contra
este tipo de ardil, a legislação existente não oferecia qualquer efeito, confabulavam os deputados.
Apesar de não chegarem a uma conclusão para o problema apontado, pois os “meios
coercitivos” que defendiam certamente desrespeitariam o poder e a legislação imperiais, o clima da
sessão do dia 22 de fevereiro oferece indicativos de como os grupos economicamente poderosos
13
Todas as citações referentes à sessão do dia 22 de fevereiro de 1855 foram extraídas de: Annaes da Assembléa
Legislativa Provincial de São Paulo. Segunda sessão da 10ª Legislatura da Assembléia Provincial, 1854-1855. São
Paulo: Secção de Obras d’O Estado de S. Paulo, 1927, p. 25-30.
14
Annaes..., p. 28.
vinham percebendo a parcela de trabalhadores nacionais formada por forros e livres pobres. Um dos
deputados chega a dizer que, se fossem colocar em prática os artigos do código criminal que tratam
da vadiagem, seria preciso “processar o povo em massa”. Dr. Ricardo, nosso conhecido, alerta a
assembléia para a fortuna que se desperdiçava anualmente em Itu com o pagamento de jornais a
“cidadãos” que fogem ao trabalho pesado.15

O desregramento moral de forros e negros pobres

Em meio a onda de independências que varria a América de colonização ibérica nas primeiras
décadas do XIX, a elite política que assumiu o poder no Brasil recém emancipado debatia o destino
que daria aos ex-escravos e seus descendentes. A preocupação com a manutenção da ordem social e
da unidade territorial da antiga colônia portuguesa exigia que os deputados reunidos em Assembléia
Constituinte dedicassem atenção especial aos libertos. Peça fundamental para a prosperidade da
nação, ao adquirirem a liberdade, os negros tornavam-se doença irremediável que afligia os lares
brasileiros com seus vícios bárbaros e imorais. Uns defendiam a deportação imediata para a África.
Vozes menos ouvidas, a formação de um campesinato negro.
Os males atribuídos à crescente introdução de africanos tomou conta de inúmeros escritos
políticos entre as décadas de 1820 e 1850. Os costumes que eles traziam de seu continente de
origem ameaçavam a civilidade e a liberdade da boa gente brasileira; atingiam as famílias e a
sociedade como um todo. Além disso, o medo disseminado de que uma revolução encabeçada por
escravos pudesse ocorrer no Brasil, como acontecera no Haiti, tornava os negros ainda mais
suspeitos aos olhos dos legítimos cidadãos.16
O clima instaurado pelo fluxo de desembarque de africanos em proporções jamais vistas até
então e a posterior proibição do tráfico atlântico de almas parecia mexer com a cabeça de setores

15
Dr. Ricardo Gumbleton Daunt foi eleito deputado provincial por dois mandatos consecutivos (1854-1855 e 1856-
1857). Cf. BOURROUL, Estevam Leão. O Doutor Ricardo Gumbleton Daunt (1818-1893): ensaio biographico. São
Paulo: Typ. a Vapor Espindola, Siqueira & Comp., 1900.
16
Exemplo destes escritos políticos pode ser conferido em SALGADO, Graça (org.). Memórias sobre a escravidão. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional; Brasília: Fundação Petrônio Portella: Ministério da Justiça, 1988. A obra reúne quatro
textos da primeira metade do século XIX: João Severiano Maciel da Costa, José Bonifácio de Andrada e Silva,
Domingos Alves Branco Muniz Barreto e Frederico Leopoldo César Burlamaque. Análises destes escritos e dos debates
no Senado sobre a presença nociva dos africanos nas décadas que antecedem o fim do tráfico podem ser encontradas em
RODRIGUES, Jaime (2000). O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o
Brasil (1800-1850). Campinas: Ed. Unicamp: Cecult; FLORENCE, Afonso Bandeira (2002). Entre o cativeiro e a
emancipação: a liberdade dos africanos livres no Brasil (1818-1864). Dissertação (Mestrado em História),
Universidade Federal da Bahia (Or.: João José Reis).
médios das principais cidades brasileiras e da elite escravista que deixava suas fazendas a fim de
sorver um quê de urbanidade. Talvez por causa deste mesmo ambiente O demônio familiar tenha
feito tanto sucesso durante as semanas em que foi encenada no Teatro Ginásio Dramático, em
novembro de 1857. José de Alencar parecia ter encontrado a pedra de toque daqueles tempos de
transformações sociais profundamente marcadas pelo mal-estar que os africanos vinham causando
nos lares imaculados.
Como uma boa comédia de costumes, O demônio familiar oferecia ao público da Corte o
retrato de uma das questões sociais mais prementes naquele momento. Assim como os grandes
mestres deste gênero da dramaturgia sugeriam, as peças se assemelhavam às imagens reproduzidas
pela recente técnica do daguerreótipo; um retrato da realidade, mas carente de retoques. Desse
modo, a interferência do autor tornava-se vital para a finalização da obra, pois diante das
imperfeições percebidas, ele executaria as correções necessárias para os expectadores poderem
“ouvir e assimilar as lições morais presentes no palco e aproveitá-las em seu cotidiano”.17 E este era
um dos propósitos mais caros ao pensamento de José de Alencar em sua cruzada para a criação de
um teatro nacional.18
Apesar da fase ainda prematura da pesquisa, arrisco dizer que este tom moralizante não estava
presente só nas peças de teatro. Ao que parece, a sociedade escravista da primeira metade do XIX
teria criado expectativas em relação ao comportamento das pessoas em geral, mas particularmente
dos negros, vistos como responsáveis pela corrupção dos hábitos e costumes da população. Juízes,
padres, senhores de engenho, donas, negociantes de grosso trato, todas “pessoas de reconhecida
abonação” – como definiam os deputados paulistas – provavelmente compartilhavam opiniões em
torno de como deveriam agir e se comportar os escravos e demais subalternos.
Com efeito, concebiam o que era a norma e o que era inaceitável. O regulamento de 31 de
janeiro de 1842 talvez nos dê pistas a respeito do comportamento prescritivo cogitado pelos
membros da “classe mais alta” aos escravos, libertos e afins. Os deputados e senadores que
aprovaram o regulamento pareciam estar preocupados demasiadamente com os vadios, mendigos,
bêbados e prostitutas que perturbavam o sossego público das povoações com seus maus hábitos.
Aos olhos dos dirigentes da nação, essa gente da vadiice costumeiramente tornava-se turbulenta,

17
FARIA, João Roberto (2003). “A comédia realista de José de Alencar”. In: ALENCAR, José de. O demônio familiar:
comédia em quatro atos. Campinas: Ed. Unicamp, p. 8-9. Sobre o caráter moralizante da peça, ver SILVA, Silvia
Cristina Martins de Souza e (1996). Idéias encenadas: uma interpretação de O Demônio Familiar, de José de Alencar.
Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual de Campinas (Or.: Sidney Chalhoub).
18
Sobre a proposta de criação do teatro nacional e a atuação do Conservatório Dramático no controle da qualidade e do
conteúdo das pecas em cartaz, ver SILVA, Silvia Cristina Martins de Souza e (2002). As noites do Ginásio: teatro e
tensões culturais na Corte (1832-1868). Campinas: Ed. Unicamp: Cecult.
ofendendo “por palavras ou ações (...) os bons costumes, a tranqüilidade pública, e a paz das
famílias”.19
O que mais incomodava a gente abonada eram as ações e as palavras usadas pela ralé da
sociedade. Certamente eles ensinavam seus filhos e criados a agir de maneira exemplar e
morigerada. Mas como controlar os hábitos daqueles que estavam fora de sua esfera de influência?
Cabia, então, às autoridades policiais tornar mais aprazível a vida das famílias, mediante a aplicação
do regulamento na instância local.
Em Itu, delegados de polícia e juízes municipais passavam boa parte do seu tempo ouvindo
queixas de pessoas ofendidas verbalmente por costureiras, lavadeiras, tropeiros, lavradores e toda
sorte de homens e mulheres que carregavam a marca da escravidão em seu passado. A qualificação
dos réus e das testemunhas oferece detalhes riquíssimos para definir quem se enquadrava no
primeiro artigo do regulamento de 1842. A sentença geralmente era a mesma; assinar termo de bem
viver comprometendo-se a mudar seu comportamento. O único instrumento que as autoridades
municipais tinham para tentar garantir a palavra dos contraventores era ameaçando-os com penas
mais altas previstas no regulamento. Poderiam aplicar multas que chegavam a trinta mil réis –
dinheiro suado para um escravo ou forro – ou decretar prisão por até trinta dias. Nos casos mais
graves, o juiz ou delegado poderia solicitar o envio do implicado à Casa de Correção, onde
cumpriria pena de três meses de prisão.

O cálculo moral da alforria

Cerca de um ano depois da inflamada sessão da Assembléia Legislativa, Dr. Ricardo


Gumbleton Daunt é colocado frente a frente com um sujeito cujo modo de ganhar a vida era bem
familiar aos deputados. Ao dar a palavra ao médico irlandês, delegado e réu vêem diante de si um
homem exaltado defender a prisão imediata e necessária do preto forro. O discurso do Dr. Mello
parecia estar bastante fresco em sua memória, pois, na sua visão, Joaquim Mina agia como os
vadios que não prestavam “serviços aproveitáveis” e tão imprescindíveis para tirar a lavoura
paulista do estado de coma.

19
BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Episcopal de Antônio Gonçalves Guimarães &
Cia, 1860 (Anotado com as leis, decretos, avisos e portarias publicados desde a sua data até o presente, e que explicam,
revogam ou alteram algumas das disposições, ou com elas têm imediata conexão. Anotações e apêndice por J.M.
Pereira de Vasconcelos) p. 125 (Anexos).
Com efeito, Dr. Ricardo parecia estar convicto de suas opiniões, não só porque seu amigo
pedira para que testemunhasse contra o insubordinado estrangeiro, mas especialmente porque
Joaquim já havia tornado “incorrigível” um escravo seu. Ora, o médico já vinha enfrentando
dificuldades desde que estabelecera sua clínica na cidade de Campinas nos anos 1840, quando
chegou ao Brasil. Não bastasse a pouca clientela e os impostos que era obrigado a pagar para
exercer legalmente sua profissão, um preto desregrado e de comportamento vicioso vinha lhe
estragar o único escravo que conseguira comprar neste tempo todo?20
Sem dúvida, o nosso doutor nutria imensa antipatia pelo curandeiro africano. Dr. Ricardo
provavelmente teria ouvido falar dos males causados por esses bárbaros trazidos do continente
negro. Mas talvez não imaginasse de que forma os maus hábitos dessa gente poderiam atingi-lo.
Afinal, era um homem da Ciência e ao mesmo tempo determinado em suas convicções políticas e
religiosas. No entanto, o encontro com Joaquim Mina pode ter sido o início do aprendizado que Dr.
Ricardo ainda relutava em aceitar no alto dos seus 60 anos.21
As dificuldades que vinha encontrando para se firmar como médico poderiam muito bem ser
o resultado da difusão de terapias supersticiosas praticadas por crioulos e africanos. Dr. Ricardo
sabia lidar com a legislação e o aparato burocrático que regulamentavam as normas para o exercício
da medicina no país. Prova bem a carta que enviara à câmara municipal solicitando providências em
relação ao alemão Hermano Melchert por praticar a medicina ilegalmente em Itu. Mostrava
deferência aos vereadores, dizendo agir “com sincero empenho para que a soberania da lei [fosse]
mantida tão ilesa quanto coube[sse] em suas forças”. E para não deixar dúvidas de sua observâncias
às leis imperiais, assinava a missiva como “Cidadão Brasileiro e Médico habilitado conforme as
exigências da legislação vigente”.22
Logo que chegou ao Brasil, Dr. Ricardo fez tudo como mandava o figurino: defendeu nova
tese na Faculdade de Medicina da Corte como exigência para o exercício da medicina no país,

20
O Regulamento de 29 de Setembro de 1851 estabelece as normas para o exercício da medicina no Brasil. As penas
para descumprimento do regulamento iam de multas (100 a 200 mil réis) a prisão (quinze dias na cadeia). Cf. BRASIL.
Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Episcopal de Antônio Gonçalves Guimarães & Cia, 1860
(Anotado com as leis, decretos, avisos e portarias publicados desde a sua data até o presente, e que explicam, revogam
ou alteram algumas das disposições, ou com elas têm imediata conexão. Anotações e apêndice por J.M. Pereira de
Vasconcelos) p. 126-134 (Anexos).
21
Na década de 1880, novamente em Campinas, o médico passou a reclamar da falta de fiscalização aos curandeiros
que exerciam seu ofício na cidade. Chegou e enviar denúncias às autoridades policiais, ao presidente da província e
publicava suas opiniões a respeito destas “práticas de africanos” na imprensa local. Cf. XAVIER, Regina (2003).
“Práticas médicas na Campinas oitocentista”. In: CHALHOUB, Sidney; MARQUES, Vera Regina Beltrão; SAMPAIO,
Gabriela dos Reis; GALVÃO SOBRINHO, Carlos Roberto (orgs.). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de
história social. Campinas: Ed. Unicamp: Cecult, p. 331-354.
22
Carta enviada pelo Dr. Ricardo Gumbleton Daunt à Câmara Municipal de Itu (06/abr./1853). AMRCI. Fundo Câmara
da Vila de Itu, Caixa 2, CVCI-126.
obteve carta de naturalização de cidadão brasileiro – assinada pelo próprio D. Pedro II – casou-se
com jovem de ilustre família campineira e se inseriu nos círculos da boa roda da elite do oeste
paulista. Achava-se assim cidadão exemplar e, conseqüentemente, protegido dos possuidores de
índole duvidosa, como o alemão Melchert.23
Mas o jovem médico tinha muito o que aprender sobre a vida em uma sociedade patriarcal
escravista. Por que não dera ouvidos aos conselhos de seu patrício Guilherme Whitaker? Bem que
ele o alertara para ter paciência e procurar adquirir “um pouco mais de experiência e conhecimento
pessoal do povo”.24 Mais de dez anos depois, Dr. Ricardo parecia não aceitar – ou estar pouco
familiarizado com – o fato de senhores recorrerem com freqüência a curandeiros para tratarem as
enfermidades de seus escravos. Além disso, parcela significativa da população parecia confiar mais
nas práticas destes mestres negros em artes de curar que no método alopático.
No mesmo ano de 1842, o também irlandês Guilherme Whitaker (1795-1857) envia carta ao
Capitão Antônio Paes de Barros, morador em Itu, agradecendo ao compadre o envio do preto
Balduíno a Santos, responsável pelo tratamento de seis escravos enfermos:

Ilmo. Sr. Antônio Paes de Barros (Itu)


Tenho presente suas prezadas linhas de 8 do corrente e muito sinto seus incômodos de saúde e de suas meninas,
que espero já estejam boas e de todo restabelecidas. Agradeço como devo o trabalho que tomou respeito ao
Balduíno – o preto –, que curou cinco rupturados nesta cidade e um em S. Paulo, e por tal motivo conseguiu o
dinheiro da alforria e já o preto está em posse de sua carta.25

A ambigüidade que se esconde por trás de situações como estas deveria ser tão estranha ao
Dr. Ricardo quanto para nós hoje. Como entender o uso destes “pretos” – geralmente africanos –
por homens ilustrados, com formação bacharelesca, adeptos das regras de etiqueta e principais
representantes da civilidade européia em terras brasileiras? Como práticas de uma gente grosseira e
supersticiosa poderiam servir aos interesses econômicos desses grandes proprietários? E, mais raro
ainda, como um médico recém-chegado do berço da civilização ocidental poderia ter menos
credibilidade que estes curandeiros africanos, a ponto de receberem gratificações pelos seus
serviços?

23
A maioria dos dados biográficos foram extraídos de BOURROUL, Estevam Leão (1900). O Doutor Ricardo
Gumbleton Daunt (1818-1893): ensaio biographico. São Paulo: Typ. a Vapor Espindola, Siqueira & Comp.
24
Carta (nº 129) envida por Guilherme Whitaker ao Dr. Ricardo Gumbleton Daunt (Santos, 24/abr./1845). In:
WHITAKER, Edmur de Aguiar (1950). A família Aguiar Whitaker: estudo genealógico dos seus fundadores e alguns
descendentes, através da documentação escrita, tradição oral e recordações pessoais do autor. São Paulo: Ed. do
Autor, p. 97.
25
Carta (nº 40) envida por Guilherme Whitaker ao Capitão Antônio Paes de Barros (Santos, 20/03/1842). In: Whitaker,
1950, p. 59.
Talvez Dr. Ricardo ficasse mais confuso ainda ao saber que os vereadores ituanos haviam
aprovado, pouco antes de seu encontro com o preto Joaquim, dois artigos que passaram a integrar os
códigos de posturas municipais da cidade durante toda a segunda metade do século XIX. No
capítulo dedicado à Polícia Preventiva, os artigos 70 e 71 proibiam a atuação de “curandeiros de
feitiço”, ou seja, de pessoas que “efetivamente emprega[va]m gestos, orações ou amuletos ou outros
quaisquer embustes” para curar os crédulos e ignorantes. Quem fosse pego praticando este tipo de
mentira artificiosa teria que pagar multa de trinta mil réis e ainda cumprir oito dias de prisão. Os
representantes da boa gente ituana, mesmo não entendendo muito bem do assunto, diferiam o
curandeirismo por meio de feitiços – habilidade muito útil aos donos de trabalhadores escravizados,
como transparece na correspondência entre o comerciante Guilherme Whitaker e o Capitão Antônio
Paes de Barros – daqueles “que se fing[em] inspirados por qualquer ente sobrenatural ou
prognostic[am] acontecimentos que possam causar sérias apreensões no ânimo dos crédulos”.
Apesar de categorias diferentes de contravenção, seus praticantes sofreriam as mesmas penas.26
Os conselhos do velho Whitaker parecem-me providenciais nesse momento. Para entender a
lógica que orientava senhores e escravos a tirarem (cada um à sua maneira) vantagens da alforria,
era preciso paciência e “um pouco mais de experiência e conhecimento pessoal do povo”.
Justamente por ser um costume, o ato de alforriar deveria relacionar-se a estruturas de pensamento e
códigos de valores mais amplos, que permeavam outras instâncias das interações sociais no
universo escravista. Ser alforriado e conceder a liberdade, portanto, exigiria dos envolvidos o
aprendizado dos modos de compreensão culturais que orientavam as relações dominantes/
subalternos. Em outras palavras, um negro não nascia ou desembarcava aqui sabendo o que era ser
escravo; da mesma forma, os filhos de senhores ou novos proprietários precisavam aprender como
lidar com sua escravaria, por menor que fosse.27
Para melhor compreensão de minha hipótese – bastante prematura ainda – reproduzo o
contrato que um certo padre fez com quatro escravos seus e, para “dar maior firmeza”, solicitou ao
tabelião da vila de Itu que registrasse em seu livro de notas:

Eu, o Padre Antônio Joaquim de Melo, que possuo quatro escravos, João e sua mulher Rita, Paulo e sua
mulher Lucena, e que com eles contratei o Seguinte: Prometi-lhes, como prometido tenho, que todos os filhos

26
Código de Posturas da Cidade de Itu. 1855. In: SOUZA, Jonas Soares de (org.) (2002). Código de posturas de Itu
(1862-1908). Itu: Museu Paulista / Museu Republicano “Convenção de Itu” (Coletânea de fotocópias dos códigos,
encadernada e sem referência do original. Ver Coleção das Leis da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo).
27
A título de exemplo, ver os ensinamentos do Barão de Pati do Alferes, famoso pela grande fortuna que acumulou em
Vassouras (RJ) em meados do XIX. Cf. WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda (1985). Memória sobre a fundação
de uma fazenda na província do Rio de Janeiro. Introdução de Eduardo Silva. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa; Brasília: Senado Federal (1ª ed. 1847)
que lhes nascerem de legítimo matrimônio serão libertos desde o dia de seu nascimento, mas ficando sujeitos a
viverem debaixo de minha tutela até terem vinte [e] cinco anos de idade, e então tendo Juízo Suficiente para se
regerem, poderem sair de minha companhia. Acrescento, que a terem vícios de bêbados, ladrões ou inquietos,
ficarão privados de viver sobre si até mostrarem emenda de dois anos. Prometi mais, que tendo eles idade de
dezessete anos, já começarão a ganhar os homens dobla por ano e as mulheres oito mil réis, o que serei obrigado
a entregar por junto quando estiverem nas circunstâncias de viver sobre si, como acima fiz menção. Que se eu
morrer antes que os ditos filhos de meus escravos tenham inteirado a idade mencionada, irão para outra tutela
que em testamento eu declarar, tudo debaixo das mesmas condições. Aos escravos nomeados prometi e dou o
seguinte: João, que agora terá trinta anos de idade, me servirá até quarenta e cinco, findos os quais fica liberto.
(...) Paulo, que agora terá trinta e dois anos de idade, me servirá até ter quarenta e cinco, digo, Cinqüenta. Rita,
que terá dezesseis, me servirá até ter quarenta e cinco anos. Lucena, que terá treze anos, e servirá até ter
quarenta. Se eu morrer antes de eles terem preenchido o tempo de seu Cativeiro, irão preencher o dito tempo em
outro poder, e lhes darei a escolha entre três Senhorios, isto em testamento, onde eu declararei coisa que lhes seja
mais vantajosa. Se por algum motivo houver pessoa que possa ter direito a meus bens, não poderão jamais
apreender os ditos escravos; eles estarão no poder que lhes parecer, e esse que tiver direito o terá só sobre o valor
de seus Serviços, para cuja avaliação haverão dois árbitros, um de cada parte, e se atenderá ao Sustento e
enfermidades. Se algum dos ditos meus Escravos, no tempo de gozar de sua liberdade, tiver vícios de bebedice,
continuará a estar debaixo de Senhorio até ter emenda de dois anos. Se quiserem mudar de Cativeiro enquanto
são obrigados a me Servir, fica de nenhum vigor a doação que lhes faço, digo, a respeito dos quatro nomeados
Ex, o que lhes prometi, e eles aceitaram debaixo das condições declaradas. Para mais firmeza este Documento
será escrito no Livro público competente. Itu, Cinco de Fevereiro de mil oitocentos e vinte [e] oito. Antônio
Joaquim de Melo // Reconheço verdadeira a letra e assinatura do papel supra; o referido é verdade // Itu, seis de
Fevereiro de mil oitocentos e vinte [e] oito // Em testemunho da verdade // Lugar do Sinal Público // Joaquim
Pinto de Arruda.
Nada mais se continha em [o] dito Papel, que aqui fielmente fiz trasladar do próprio Original, ao qual me
reporto e o tornei a entregar. Itu, seis de Fevereiro de mil oitocentos e vinte [e] oito, eu Joaquim Pinto de Arruda,
Tabelião que o subscrevi.
Joaquim Pinto de Arruda
Conferido Pinto [Rubrica do tabelião]28

Na ocasião do acordo, padre Antônio era um pequeno proprietário de escravos e ainda faltava
um bom tempo para se tornar vigário da vara de Itu (1849). Aos 37 anos de idade, não fazia sentido
mandar redigir seu testamento apenas para fazer valer sua vontade a respeito do destino dos
escravos que possuía. Talvez por conhecer o valor legal dado pelas Ordenações às escrituras
notariais, resolveu levar ao tabelião os termos do contrato redigidos em carta de próprio punho.
Parecia que a maior preocupação do jovem padre era formar o caráter moral de seus escravos,
da mesma forma que orientava aqueles que o procuravam para se confessar. Os escolhidos para
receberem o “prêmio gordo” provavelmente já vinham cumprindo etapas de um aprendizado
escravo. Aos olhos senhoriais, constituir enlace matrimonial parecia ser um dos primeiros requisitos
a ser alcançado pelo escravo que quisesse deixar o cativeiro. Afinal, como o próprio reconhece na
carta, o casamento geralmente resultava na formação de uma prole. Muitos senhores acreditavam
que escravos com família constituída estariam menos propensos a insurreições ou fugas.
Bem, mas só casamento e filhos não eram o bastante. Na visão do padre Antônio, seus
escravos deveriam ainda ter “juízo suficiente para se regerem”, condição que se estenderia aos

28
Arquivo Histórico Municipal de Itu (AHMI). Fundo 1º Cartório de Notas de Itu (FCNI). Seção Livros de Notas. Livro
de Notas n. 43, folhas 52v-53v (06/fev./1828).
futuros filhos de João e Rita, e de Paulo e Lucena. Dito de outra forma, o padre queria que seus
escravos aprendessem a ganhar dinheiro honestamente para o sustento da família. Achava que desde
a juventude os negros já podiam começar a lidar com dinheiro e dar valor ao trabalho digno.
Embora seu raciocínio valesse tanto para os homens quanto para as mulheres, calculava que o
trabalho masculino deveria ser melhor remunerado que o feminino (uma dobla contra 8 mil réis).
Ao incutir o significado cristão da família e, conseqüentemente, a importância que o trabalho
possui para o seu sustento, padre Antônio acreditava afastar seus dependentes diretos – os escravos
– dos vícios tão comuns aos africanos e seus descendentes. Tornaria-os menos dados à embriaguez,
à vadiagem, à promiscuidade e à prostituição, e a todo tipo de comportamento indecente e
turbulento que tanto ofendiam “os bons costumes, a tranqüilidade pública, e a paz das famílias”.
Entretanto, o padre parecia compreender que para os negros alcançarem uma vida morigerada
e de retidão moral era necessário um longo período de aprendizado. Ao meu ver, o tempo estipulado
para a obtenção da alforria pelos dois casais não leva em consideração apenas o cálculo econômico
– produtividade do trabalho masculino e feminino, dinheiro empatado na compra deles – mas um
pensamento cultural de senhores que pretendiam regenerar os negros de seu estado original,
herdado diretamente do continente africano ou de pais africanos. A alforria passava a ser vista, nas
décadas tumultuadas da primeira metade do XIX, como a coroação de um longo e dificultoso
processo de preparação dos escravizados para a vida entre os homens livres. Tempo necessário para
aperfeiçoar os negros, tomando como ponto de partida a expectativa de um dia torná-los iguais aos
brancos. Trocando em miúdos, tenho a impressão de que senhores como o padre Antônio
acreditavam que esta pedagogia moralizadora do trabalho poderia converter africanos bárbaros e
imorais em trabalhadores morigerados a serviço da nação.29

29
Esta hipótese foi inspirada em dois trabalhos de Robert W. Slenes: Cf. SLENES, Robert W. (1996). “Os mestres da
língua secreta do Cafundó: paradoxo do segredo revelado”. In: VOGT, Carlos; FRY, Peter; SLENES, Robert (orgs.).
Cafundó: a África no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. SLENES, Robert W. (1995-1996). “As provações de
um Abraão africano: a nascente nação brasileira na viagem alegórica de Johann Moritz Rugendas”. Revista de Historia
da Arte e Arqueologia, Campinas, v. 2, p. 271-294 (mais treze páginas contendo as pranchas analisadas).

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