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1|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

Ricardo Silvio de Andrade


2|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

RICARDO SÍLVIO DE ANDRADE

CONTA-GOTAS
E outros contos sobre normalidade

Ricardo Silvio de Andrade


3|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

Ninguém escreve sem ter quem leia. Por isso, dedico este livro a todos os
meus leitores e “personagens”. Dedico aos meus amigos, em especial a
Luciana Santos e à Leka Pires. À minha família e a todos os que
apreciaram a obra antes de sua conclusão.
Ricardo Silvio de Andrade
4|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

I don‟t know what‟s right and what‟s real anymore


I don‟t know how I‟m meant to feel anymore
When do you feel it all become clear?
„Cuz I‟m being taken over by The Fear.
(Lilly Allen)
Ricardo Silvio de Andrade
5|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

SUMÁRIO

Petrolina, 20 de maio de 2009 Pag. 06


Luiza Pag. 07
Infância Pag. 08
Eu amo meu amor Pag. 10
Conta-gotas Pag. 11
A máquina de fazer homens Pag. 15
Barbarela, por que não dancei? Pag. 18
A casa de uma parede só Pag. 23
A casa onde os sonhos viram fotografia Pag. 27
Cinco polegadas Pag. 31
O obelisco Pag. 37
A chuva de ares condicionados Pag. 40
Cotidiano Pag. 43
Polaróides Pag. 44
Olhos de lagoa Pag. 51

Ricardo Silvio de Andrade


6|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

PETROLINA, 20 DE MAIO DE 2009.

Era tarde e eu estava cansado. Ando sempre muito cansado esses dias. Sentado na praça da
Catedral, olho a vida como que não quer ver nada. Mas mesmo assim vejo: dois rapazes me
chamam a atenção: um deles, sentado no banco, contava pedaços da vida dele, disperso, como
quem tenta convencer o interlocutor de algo. O que seria? O outro, aparentando ser um pouco
mais velho, ouvia com atenção o discurso: pareciam estar curando o câncer...

Minutos depois me aproximo da dupla esperando obter uma resposta, uma pista do que se trata o
assunto: pura curiosidade mórbida. Observo os gestos contidos, o rosto fito nos olhos do outro: as
dúvidas marcadas nas sobrancelhas – e o assunto com tudo que é de superficial.

Ruborizado com minha intromissão, percebo o quão estranho estar ali, naquela praça, naquele
ambiente, naquele fluxo, travado, transversal como o argueiro no curso de água. Olho para os dois
mais uma vez e um sorriso risca minha face: ambos encontram um tema em comum. Pela
conversa, pareciam que iam se tornar muito mais que bons amigos.

Certos mistérios no amor são como a conversa daqueles dois rapazes: superficial na forma,
profundo no significado.

Ricardo Silvio de Andrade


7|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

LUIZA

Luiza nasceu com Síndrome de Down. Ela mora numa fazenda, seus pais são pobres. Luiza não
sabe de nada disso. Seus pais não sabiam como lidar com aquela novidade toda: eram gente da
terra, então essas coisas despertam certo receio.

Antes, passado o tempo, Luiza apareceu com olhinhos puxados e toda esperta: era uma criança e
tanto! E tão caladinha... nos brinquedos sempre ressabiada a balançar pendularmente como quem
acena que sim, os irmãos nem entendiam, mas amavam a pequena criatura.

Pensavam que Luiza jamais seria uma criança normal, sabe? Mas o tempo passa e cura as coisas
mais incríveis. Ali, jogada no mundo num recôncavo formado de sonho e caatinga, Luiza nasceu e
vive feliz: anda pela terra, brinca com os bichos e tem pais muito atenciosos. Ela não dá trabalho,
mas ocupa a vida de todo mundo. Bruno, George e Mariana já quase nem notam a diferença (será
que ela existe?).

Luiza nasceu, é feliz e muito bem quista. O tempo passou e vem alguém a caminho. No olhar de
preocupação da minha tia, percebo o brilho de esperança daquilo que é Luiza na vida deles.

Ricardo Silvio de Andrade


8|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

INFÂNCIA

Acho que fui uma criança muito feliz: brinquei até mais ou menos quinze anos. Um tanto colonial
para as crianças de hoje em dia. Talvez isso me tenha despertado a atenção para certas coisas que
os pais impõem às crianças: estudar, pensar na disputa diária, na busca pelos melhores resultados
nas provas, nas competições, nos estudos... sabe, ser criança hoje em dia não é mais o que era sê-lo
na minha época.

Vivi muito isolado. Não porque me faltasse disposição para socializar com as demais crianças. Na
verdade, morei numa casa ao lado de outra disponível apenas para aluguel, de modo que nunca
tive um amigo que ficasse do meu lado mais que um ano e meio. E foram tantos melhores amigos
que se foram...

A minha vizinhança sempre foi mais povoada de adultos que de crianças, de modo que era ainda
mais difícil pra eu encontrar companheiros de brinquedo. Acho que como toda criança, eu tive um
amigo mais velho. Não lembro direito seu nome, mas recordo que morava com a mãe duas casas
após a minha. O legal é que a casa dele tinha umas coisas muito interessantes para brincar de
esconder, brincar de polícia-e-ladrão, de um mundo infinito de coisas acompanhadas pelo meu
amigo de longe, perdido entre livros e apostilas a rir, vez ou outra, da empolgação da fantasia.
Acho que ele era feliz: sui generis, claro.

Mas ele também se foi. Sua mãe se mudou, depois voltou, mas já veio sem ele. Uma história que
não entendi quando criança e depois de adulto achei densa demais pra tentar entender.

Depois desse amigo vieram muitos mais: desde os mais aventureiros aos mais recatados. Dos mais
simples aos mais complicados, mas esse amigo – não seu nome, nem sua fisionomia, tampouco sua
voz – ficou guardado na minha mente.

Hoje, depois de crescido, não tenho mais muitos amigos. A gente caleja de certas coisas, sabia?
Depois, a vida de gente grande desperta a gente para outro tipo de amizade: aquela que desgasta,
que exige, que cumpre horários e fala de um cotidiano completamente alheio a ambos. Mas acho
que apesar de tudo nunca deixei de ter uma perspectiva infantil sobre os meus amigos. O que
mudou em mim foi apenas a forma de encarar as pessoas fora de suas cobranças. Hoje, tenho meu

Ricardo Silvio de Andrade


9|CONTA-GOTAS e outros contos s obre normalidade

próprio tempo, lerdo, tranqüilo, imutável e sereno, sem explosões e como a água correndo sobre a
pedra e marcando lentamente seu percurso.

Hoje, menino que morou dentro de mim, me sinto triste pela sua ausência, mas creio ter
aprendido muito com você e esse aprendizado, acho, me poupou muitas mágoas. Quanto ao meu
tempo, esse guardo para ensiná-lo ao meu filho, que será como você (talvez apenas não brinque até
os quinze).

Ricardo Silvio de Andrade


10 | C O N T A - G O T A S e o u t r o s c o n t o s s o b r e n o r m a l i d a d e

EU AMO MEU AMOR

Eu amo meu amor, sobretudo por que ele me faz esperar horas e horas por um momento de
atenção. Amo meu amor por não atender ao telefone e mesmo assim eu acreditar que ele dormiu
no dia dos namorados enquanto eu trabalhava feito um mouro. Eu amo meu amor porque nunca
estive perto dele quando estava triste ao ponto de olhar seus olhos e dizer “eu te amo”. Eu amo
meu amor porque nunca lhe disse “eu te amo”.

É madrugada de domingo e há ainda muito sol na minha cabeça do lado de dentro. Penso onde
estará minha alma que antes era tão cheia de si mesma, tão segura e ao mesmo tempo tão certa de
si e das suas certezas e hoje não passa mais de um conteúdo self service. Eu amo meu amor
porque sou cada vez mais dependente dele, porque não acredito que ame a alguém mais na vida.
Amo meu amor porque ele é meu, muito embora outros pensem como eu a respeito da mesma
coisa.

Amo meu amor porque ontem foi meu primeiro dia no novo emprego, mas ele não está do meu
lado pra dizer-me “parabéns”. Eu amo meu amor por poder estar só. Eu amo, eu amo, eu amo...

Passa o tempo e esse amor que me completa evolui e percebo que nenhum dos desejos que tive,
dos medos que tive, das alegrias que tive compartilhei com meu amor. Eu amo meu amor por
poder, cada vez mais, ter paz...

Ricardo Silvio de Andrade


11 | C O N T A - G O T A S e o u t r o s c o n t o s s o b r e n o r m a l i d a d e

CONTA-GOTAS

Gisele chora ao lado da latinha de Coca-cola jogada sobre o tapete, derramando um pouco do
líquido sobre a falsa pele, deixando-a com aspecto sujo. Tudo naquela casa estava sujo demais para
merecer uma descrição mais profunda. Gisele estava suja. Ela pensava como se deixara arrastar até
tão longe daquele jeito. Acreditava realmente que não havia mais saída para si. estava presa,
encurralada, fera domada em pleno habitat. Ao longe ainda escutava o barulho da cidade
chamando-a para se divertir, mas, realmente não podia mais.

Gisele pensava que seu coração era um bom moço. Polido, elegante, claro, com dentes alvos e um
sorriso para cada hora do dia em que ela o veria. Gisele amava pensar e como era uma donzela em
perigo dentro de um copo de vidro e ali, deitada era cada vez mais transversal, mais esguia, mais
lânguida e preguiçosa a esperar seu coração voltar a si, se sentia cada vez mais fêmea envolta
naquela aura de fragilidade que, ao mesmo tempo em que a afligia a confortava também.

O mundo era justo: gozara muito enquanto estava livre e isso era motivo para celebrar agora. Se
seu telefone estivesse um pouco mais perto, talvez ligasse para aquele rapaz que conhecera ontem
no bate-papo. Ele tinha namorada. E daí? Ela já tinha seu próprio coração para preocupar-se caso
estivesse a fim de ter mais uma dor de cabeça (“Sinto que estamos cada vez mais distantes” – ele
dizia. “Então compro uma cama de solteiro” – retrucava ela). E nunca parara para pensar onde
estava seu corpo. Não. Ali não estava. Estava longe, pensando naquele desconhecido, naquele
pescoço que não era seu, naquele peito que ainda não a amassara. Naquela ânsia de toque que ela
sentira, mas que agora por comodidade preferira esperar passar.

Pensava também nos demais homens do mundo. Pensava nas suas pernas, pensava cada vez mais
nos seus pênis, sabe? Pensava no seu coração e como ele ficaria decepcionado se soubesse no
quanto ela pensava sobre aquilo. Olhara mais cedo homens passando sob sua janela. Não que
nunca tivessem despertado sua curiosidade, mas, naquele dia em especial – pobre do seu coração –
estava dedicando mais tempo de sua rotina vazia a pensar neles.

E a Coca-cola agora oscilava sob o vento que entrara pela janela e ela estava cada vez mais imersa
naquele transe gostoso, naquele fim de segurança que ainda a mantinha desperta. Sim. Breve tudo
aquilo acabaria e ela seria mais uma perdida no mundo. Seu coração sabia disso, não o coração de
fora, mas o coração de dentro. Este esperara muito ansiosamente que ela pensasse urgente numa
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saída. Não suportava mais aquilo, chega de ser pisado, angustiado, chega de tanta rotina em vão.
Eles sentiam que o grande momento chegava e que não tardava. Cada hora, cada minuto que
passava, cada homem que passava e que não era seu coração – aquele outro – lhe diziam que era
hora.

Sorrindo em meio as suas lágrimas, Gisele se confundia cada vez mais com aquele cenário de
vídeo clipe. Os livros no chão, as roupas no chão. Calcinhas por lavar e a memória do quanto
estivera fora de si ainda dançavam confusamente dentro de sua cabeça. Não tinha trabalho nem
dinheiro, mas isso não a preocupava tanto quanto a vontade de mijar, ir ao quarto e arrumar suas
roupas. O que será que a prendia ali? Seu corpo não mais falava, nem sua memória recordava de
algo que fosse cem por cento real, palpável. Não lembrava mais da sua família e sofria cada vez
menos por isso. Não lembrava mais de quem fora e acreditava realmente que era alguém tão
importante!... Ela acreditava cada vez mais na possibilidade de sair de si sem a necessidade de um
invólucro físico que a suportasse. Seus cabelos remexiam-se diante do seu nariz provocando
espirros que nunca vinham.

Tocava ao longe o telefone. Quem seria? Certo alguém que precisava de algo. Mas hoje o armário
de utilidades estava fechado. Que voltasse depois com mais sede do que agora. Talvez devesse
atender e dizer que estava doente, que precisava de um transplante urgente. Que precisava ser
transplantada para uma daquelas realidades paralelas que Einstein provou matematicamente que
existiam.

Inexoravelmente a tarde seguia e a luz ia se apagando gradativamente como os exames que a


memória ia fazendo. Seu coração estava tão apertado (não o interno, o outro)! Precisava avançar na
vida, tinha sua própria empresa para gerenciar e uma família que o abandonara ainda quando
adolescente em meio a uma terrível doença congênita. Quem se importa? Foda-se, desde que
ainda reste um pouco do seu amor para com ela, ele era sua doença. Nunca pensara que aquele
homem claro, de dentes alvos fosse se transformar no ogro que tomava cada vez mais espaço do
seu coração enquanto tentava em vivos espasmos sair dele.

E os outros homens? Todos têm seus corações. Isso é um fato. Mas a humanidade do gênero
masculino é tão vazia de sentido!.. Definitivamente não tinham outra função senão a de produzir
esperma. O calor que acumulavam no intenso momento de paixão resumia-se no fim àquilo:

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esperma. Esperma, esperma, esperma e mais esperma. Mesmo os estéreis têm esperma. Mesmo
os vasectomados têm ainda algum esperma que sai não dos seus pênis, mas das suas mentes e
sujam a cara de toda donzela que espera ainda seu homem claro com olhos azuis e abotoaduras de
ouro, com um camafeu na mão e seus dentes alvos a estrear um novo sorriso para aquele
momento que não era único para ninguém senão para ela mesma.

Seu teto branco, professor das horas mais confusas lhe dizia aquilo. Acorde, moça. Saia à procura
daquilo que seu coração não sabe o que é (os dois)!

Como uma batida à porta desperta o morador com o aluguel atrasado, um grito vindo de dentro
pra fora despertara algo intenso naquela mulher que agora não tinha mais coração, não tinha mais
a mentalidade do século XIX e que amaldiçoava agora seu útero: era a feminista perfeita, mas fora
da causa, e, como um gato que se prende sob a torneira aberta, sentiu nas pernas a ânsia de tudo
que ainda não andara e seus olhos lacrimejavam não mais de saudades, mas do medo de não
aprisionar na mente tudo que aquele mundo oferece e mesmo a pele antes tão insensível, se
deliciava agora com o toque do vento e a umidade proporcionada pelo suor dos homens que não
serviam para nada.

Como o peixe fora d‟água jogara o corpo pra frente, jogara o ar e o medo adiante. O quarto não
era mais seu. Sua escrivaninha agora lhe era uma estranha. Trocara os odores do banheiro e
nenhuma outra mulher era mais ela mesma. Na sacola um pouco de roupa, na bolsa o que sobrou
do último salário do mês.

Cada gota de vida que caía de novo no seu interior amolecia um pouco mais o mármore de sua
pele e tornava-o mais corado, mais profundo, mais quente e reconfortante. Se tinha seios, nunca
percebera que queria amamentar a lubricidade contida em si, e como a apontar seu novo rumo,
estes indicavam-lhe o globo como a provocar-lhe o ego, a manterem-se zombadores de sua dona.

Bolsa nas costas, desce as escadas, tranca o grande portão de ferro com o cadeado que agora
perdera toda sua função: ela era o perigo, a estranha naquele lar de alguém. Teve ainda algum
medo ao olhar os portões fechados. De quem seria aquela casa, aqueles móveis e o gato que a
fitava da janela com seus olhes verdes tão profundos? Fechou os olhos e arremessou a chave que
caiu pesadamente sobre a calçada interna, arrastando-se na cerâmica indo alojar-se debaixo de um
enorme vaso com pés de comigo-ninguém-pode suspenso por uma espécie de suporte que
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comprara meses antes, com seu coração, num maravilhoso clima de anos vinte curtido
intensamente no Nordeste brasileiro.

Abriu os olhos: a mesma certeza da distância que mantinha daquele lugar ainda estava viva e
presente. Se encostasse o ouvido no portão ouviria o celular executar ainda a música dos dois. Ela
e o seu coração estavam agora tão distantes um do outro quanto a solidez da artificialidade dos
telefonemas aos domingos de festa no escritório.

Esboçou um sorriso de criança traquina, mordeu os lábios enquanto olhava de longe o ônibus que
se aproximava. Uma alegria profunda atingiu-lhe em cheio como o tijolo que cai do décimo andar
atinge fulminantemente a tola vítima sob sua trajetória. Como a entender aquele poderoso instante,
ao sinal o ônibus parou. Gisele pegou na bolsa os dois reais mais próximos da sua mão, subiu no
ônibus, indo sentar, por opção, ao lado do rapaz que voltava da academia (aparentemente), e
aquele cheiro a excitava novamente de uma maneira que antes só experimentara com o cheiro do
seu coração e aquela voz rasgava-lhe os tímpanos de maneira cada vez mais secante e profunda.

Estava livre e valente: a gota que faltava transbordara agora seu espírito.

Ricardo Silvio de Andrade


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A MÁQUINA DE FAZER HOMENS

É o medo que nos torna menos humanos. É sua forma de alavancar nossos instintos que nos
mantém cada vez mais presos dentro dos nossos apartamentos, sobre nossas roupas pesadas,
tremendo de frio e com lágrimas nos olhos. É o Medo que nos afasta cada vez mais da nossa
liberdade e nos afugenta ainda alguma nesga de humanidade que, porventura, ainda nos reste.

Assim Carlos pensava com sua mente rápida a oscilar entre os cantos do apartamento e esta tentava
lhe vender ainda alguma ilusão de lucidez. Estava frio aquele dia e nada lhe estimulava a
movimentar-se. Talvez se fechasse a janela, com muita certeza, tal atitude conteria aquele frio
terrível que lhe fazia, vez por outra, soltar um forte tremido que nada mais era que o medo do
corpo de morrer naquela intempérie que invadia a casa junto com gotículas de neblina que a
madrugada oferecia aos mendigos na rua.

Retas transversais, muito sol estilizado e algum nonsense ainda permaneciam na mente do rapaz
que agora apenas dobrava as pernas sentindo o calor do próprio corpo como que acalentar a si
mesmo. É verdade que a alma sente necessidade de calor humano, ainda que seja o próprio calor
do corpo que a abriga. Espirais. Seu corpo agora se enverga e se reconforta em posição fetal,
lembrando de onde vinha aquele moço jovem que horas atrás se remexia inteiro sob o neon da
boate. Por que temos que ficar só algum momento todo dia?

Carlos queria ainda alguém ali para lhe ouvir e observar-lhe enquanto agarrava no sono de maneira
angelical como somente ele sabia que conseguia fazer. Queria alguém ali a segurar-lhe a mão e a
dizer-lhe que era único no mundo, algo como um diamante bruto ainda latente no seio da terra,
escondido, profundamente calmo e escuro, frio, azul. Oceano.

Retas paralelas com homenzinhos de guache desenhado a mão por algum artista desconhecido que
tentava esconder-se na sua mente de repente. Quadrados em stop-motion e uma cena que se
desenha: uma mão quente que marca a borda do papel e transcende a tela do pensamento, vindo a
marcar a parte interna das pálpebras com o vermelho intenso e marcante do sangue que corria
naquele lugar. Naquele e em outros lugares. E o Medo ali não chegara simplesmente porque não
conhecia o caminho.

Ricardo Silvio de Andrade


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O medo é um estranho que não conhece a gente e não vê as vitrinas passando acelerado enquanto
o rapaz de tórax peludo espera alguém na calçada. O sol do fim de tarde ressalta-lhe ainda mais os
pêlos na barriga, como a apontar o caminho instintivo da prática sexual. Mas alguém que passa do
outro lado da rua não percebe todo aquele calor escondido na epiderme, presa entre os bulbos
capilares que ventilam ternamente a gordura que ondula as arestas dos ossos e mantém aquela
pele, aquele peso, agradável ao toque. Agradável e desejável. Carlos toca seu próprio peito.

O tórax comprimido pelas suas pernas briga para conseguir manter ainda algum ar dentro dos
pulmões, mas isso não afeta sua respiração e muito provavelmente não pode afetar sua vida de
maneira mais significativa. O medo de morrer dentro do quarto, sozinho e com vergonha de gritar
por socorro simplesmente afasta o medo da morte, mas achou que já que ia morrer, melhor
manter-se limpo em vida: destruir todas as revistas pornográficas e tratar de guardar em definitivo
os segredos que guardava fora da cabeça.

Contra sua vontade, desenrolou-se daquele maravilhoso invólucro proporcionado pela natureza e
sentiu desejo por si mesmo em face de sua capacidade de ser carinhoso, de se acariciar tão
ardentemente quanto uma amante e tão ternamente como uma mãe.

Olha pra fora e a noite revela uma avenida muito iluminada, seguindo um curso que fazia lembrar
um rio de luz correndo alucinado rumo ao mar, pensando no seu próprio tempo e esboçando um
sorriso para aquele homem que agora via o impossível sob sua janela fria e cansada da apreensão
que lhe trazia o medo, sendo que a sua própria perspectiva já configura o acontecimento.

Cansaço e sono lhe pesam na cabeça a um só tempo: na verdade sente-se cada vez mais leve e
insensível, dopado. Fosso de elevador que desce incontroladamente na sua memória falha. Seus
olhos falham agora. O mundo é grande, imenso, mas não tem forças de explorar aquele pequeno
espaço à sua volta. Olha o vidro e percebe as formas contidas nele. Incrível como os homenzinhos
caídos têm uma resistência incrível à sua ânsia de vômito... Olha atento aos movimentos nos
corredores. Não. Eles não querem que saiba que estão ali. Eles não sentem nada além do que é
permitido na sua hermética sociedade e a cerâmica parece conter algum líquido que a impulsiona e
estufa como que querendo escapar tresloucadamente por entre as frestas preenchidas com rejunte
branco amarelado pelo tempo.

Ricardo Silvio de Andrade


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Sobram soluços e o nó na sua garganta parece que vai apertar mais. Não precisa nem pensar e já
lhe sente as mãos daquele estranho mais uma vez ali. Está agora na horizontal e seu nariz está a
menos e um milímetro do espelho d‟água. Ele sente vontade de sucumbir àquela tentação, mas
não vai: sabe que aquilo são lágrimas e que irá lhe fazer mal ser imerso naquele imenso lago. Ao
seu lado, os homens do corredor transportam agora para algum lugar que ele desconhece aquele
quadro do cachorro correndo que sua mãe lhe dera em certa ocasião em que fazia a faxina em
casa. Sempre o guardara por puro sentimentalismo enrustido, mas agora, preso pelas mãos
daquele estranho, certamente lhe seria demasiado difícil impedir aquele roubo. Precisava, nesse
caso, esquecer que aquilo estivera algum dia lá.

Retas paralelas congruentes. Olhos cerrados, muito frio. O contato com as paredes lhe causa
arrepios constantes e teme que sua pele seja esfolada pelo atrito. No canto, espremido, espera que
algo caia naquele cone e lhe mate logo de vez. Mas essa morte não vem. Antes retorna ao seu sofá,
ao seu mundo e às suas expectativas. Nada acontecera, mas a imersão naquela água ainda era
ameaça constante na sua mente.

Os homens do corredor levaram o quadro. É seu trabalho constante fazer certas coisas
desaparecerem. Os homens do vidro demonstram agora algum cansaço, mas assim mesmo não
caem. Na sua cintura Carlos percebia ainda no umbigo o toque quente da água que escorrera pelo
seu rosto e agora procurava calmamente o ladrilho de onde viera.

Deita-se no chão, cansado. Seu corpo ficara de fato naquele local. Aquela já não era mais sua casa.
Morrer tirara-lhe a certeza que os vivos têm de sua sabedoria, mas não dissipara de todo o cansaço
tedioso do seu ego ferido pela certeza das coisas que não têm hora para acontecer.

Ricardo Silvio de Andrade


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BARBARELA, POR QUE NÃO DANCEI?

Ela chegaria dali a instantes. Era possível perceber isso pelas roupas sobre a cama e pela cara de
desespero do Alfredo que, há muito, tentava se ver livre daquela figura. Lembrava da quantidade
de problemas que ela trazia e que depois ele ia apagando (às vezes gastando muito). Ele sempre
soubera da sua existência, na verdade, acreditava que a conhecia desde criança. Por que então ela
voltaria agora, depois que ele casou, assim, sem mais o quê, despreocupada, pegando suas coisas e
suas roupas, atirando banheiro adentro sem pudor e invadindo o guarda-roupas da sua mulher e
lhe furtando peças preciosas? O tubinho que vestira no Natal, a cambraia de renda do último verão
no Nordeste, o conjunto da Victoria Secrets que ele lhe dera no aniversário de dois anos de
casados, tudo isso maculado pela figura que ele tentava, de mil maneiras, esquecer.

Os cantinhos do quarto ainda guardavam o perfume dela que, por sorte, era o mesmo da sua
mulher. Ele recordava que certo dia ela até estranhara o exagero do odor no quarto. “é que
derramei por acidente”, mentira. Mas na verdade, para ele era melhor esconder a presença
daquela estranha ameaçando o seu lar, sua felicidade e da sua família, seu status de classe média
tão sofregamente conquistado do que revelar sua vergonha que o escravizara para aqueles a quem
tanto ama, sujeitando-se ao ostracismo dos que não entendem a sua complexidade destrutiva. Não.
Preferia correr o risco de aceitar suas intromissões cada vez mais constantes a ter de contar que ela
era sua parceira de muitos anos.

Essa relação era já doentia. Ele reconhecia isso desde muito jovem, quando Barbarela o
surpreendia entre as peças do guarda-roupas da sua mãe. Mas acreditava que, com muita religião e
uns bons conselhos (e penitências) aquela presença que lhe perturbava a cada dia mais
insuportavelmente poderia assim ser escondida, esquecida. Mas como, se ele pensava que somente
se um padre conversasse com ela é que resolveria o problema e ela, definitivamente, não tinha a
menor disposição para freqüentar Igrejas. De forma que, contra a vontade dela, ele, Alfredo,
jamais a arrastaria até um templo.

Experimentou deixar bilhetes espalhados pela casa. Assim, ao sair ou se vestir, certamente ela veria
seu apelo desesperado e, quem sabe, o abandonaria de vez e procuraria outra pessoa para
importunar. Mas o medo de esquecer algum e sua mulher descobrir empalidecia sua face mais do
que a sua mente diante daquele problema-mulher. Trancar as portas definitivamente não era

Ricardo Silvio de Andrade


19 | C O N T A - G O T A S e o u t r o s c o n t o s s o b r e n o r m a l i d a d e

solução. Ela era esperta. De um jeito ou de outro ela daria um jeito de pegar ele. Não.
Definitivamente, não.

Já se aproximava das seis e Alfredo sentia a presença dela no moto-taxi, vadia, escancarada
chegando à sua casa no perfume de alguma outra mulher. Meu Deus, como aquilo o deixava em
desespero! Pensava em um mundo de possibilidades alimentado pela depravação daquela criatura.
Pensava no estrago que seria daquela vez e nas conseqüências depois.

Por volta das seis e meia ela chegou. Mas não chegou assim como qualquer visita, não. Antes
batera na porta e aguardara. Alfredo não viria, ela sabia, mas mesmo assim se divertia com o
suspense criado. Aguardava mais uns minutos e batia novamente. Nada. Alfredo estava com o
sangue gelado e suas mãos tremiam demais. Suas pernas não respondiam, de modo que mesmo
que quisesse, ele não conseguiria abrir a porta. Já que ele não vinha, ela entrou assim mesmo.
Despreocupada, abriu a porta da sala entrou afagando lubricamente o sofá. Olhava as peças na
parede como se nunca as tivesse visto quando entrou no quarto para ver Alfredo jogado sobre a
poltrona, vazio, medroso e fraco. Seu sangue lhe fugira das faces e ele agora tentava se livrar
daquela estranha pelo simples movimento de fechar e abrir os olhos.

Mas ela era metódica. Não abordaria assim aquele trouxa. Antes deitava na cama, minissaia, meia
arrastão e cabelos afro tingidos compunham a dileta figura. Alisava a pele das pernas como a
convidar-lhe a rasgar aquela massa de carne semelhante à manteiga, mas quente, macia como a lã.
Deitava e abria-lhe as pernas, bolinava-se e curtia o espanto dele. Sentava na poltrona, subia pelas
paredes, mostrava os seios à janela e os homens na rua sequer lhe notavam.

Ia à cozinha beber cerveja e sujar-se com o caramelo dos sorvetes, espalhar entre os seios até
confundir seu cheiro com o daquela substância doce, infantilmente dispersa sobre sua barriga.
Segue até o banheiro e banha-se com roupa e tudo, sai pelada e veste as roupas que estavam ali de
véspera, aguardando por ela desde a saída de Ângela. Incrível como Alfredo sempre adivinhava
seus gostos.

Minissaia branca agora, botas de cano longo TNG e calcinhas da Duloren, naquele dia estava
disposta a botar pra quebrar. Vestiu-se e, como que treinando para a noite que viria, requebrava-se,
dançava sem música e esperava a hora passar enquanto esfregava seu clitóris em chamas. Às 12 sai

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20 | C O N T A - G O T A S e o u t r o s c o n t o s s o b r e n o r m a l i d a d e

de casa. Escolhe as escadas para não ser vista, a peruca loira cumpridíssima atrapalha sua visão e
ela tem medo de escorregar e cair.

Já na rua, decidira ir à São Francisco, única avenida daquela bosta de cidade que valia a pena uma
puta daquelas ir se divertir. Entrou num ônibus e, logo no início da avenida, desceu pela porta da
frente aos protestos do cobrador. Antes lhe fez um gesto feio e seguiu adiante requebrando como
louca. A blusinha listrada de mangas compridas chamava a atenção. Eram listras horizontais. Estava
presa, era uma presidiária, queria perigo. Quem lhe renderia naquela noite? Queria ser quem era.
Queria o perigo e o sangue frio na veia. Queria os chupões e as lassitudes que encontraria naquela
noite, naquela bosta de noite em que só queria ser feliz. Com um sorriso a ranger entre os dentes
vê de longe outras putas como ela. Onde será que escondem seus pacotes? Sorri. Encontra um
barzinho decente, senta-se e pede uma cerveja. Delicia-se com aquele sabor, mas quer mais, quem
lhe dará mais? Vai para dentro do local que é imediatamente invadido com um odor que lembra
Chanel e morango. Ela sorri ainda com mais entusiasmo.

Outra cerveja, novo tédio. Nada acontece ali? “Oi, sou uma garotinha, sabia?” “sabia, „garota‟, o
que você faz, mesmo?” “Nunca pergunte isso a uma garota. Uma cerveja, seu escroto de merda?”
“Se você pagar, bebo com todo prazer.” “Ótimo. Espero que o que você esconde nessa cueca
compense os três reais...” “Droga de música, droga de bar. Vamos onde?” “Você que sabe...”
“Ótimo, aos fundos. Ou você tem medo do que posso lhe fazer?” “Tomara que faça tudo que
espero...”.

Luz piscando cada vez mais. Por que os homens do subúrbio não tomam banho? De qualquer
forma queria mais daquele esfregar, daquele resfolegar constante. Nossa, quanto sal! Hum! Vamos
ver até onde segue aquela delicia. Nossa! Oh! Como é anormal!... Merda de prazer que vicia!...

“Pode pôr onde você quiser, queridinho. Sou sua garota, sabia?” “Humpf!” Pode ir fundo, meu
bem, pode ir fundo...” Pista cheia, resfolegar cada vez mais constante, parecia um touro no cio e
aquele doloroso prazer... Quanto de carne rasgara aquela noite? Não sabia, era demasia oca para
se importar com isso. A Natureza é maravilhosa e foi mais generosa com as mulheres... mais cedo
ou mais tarde sarava, era o tempo de praticar outras coisas...

Ricardo Silvio de Andrade


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“Nossa, já acabou? Me dá mais seu veado de merda, anda! O quê? Não pode? Merda de macho
escroto. Quero mais! Você não pode... o quê? Se você tem amor a esse caralho fino você não faria
isso, realmente não!” Um som seco, um tapa, rompe o bate-estaca que rolava na pista.

Na horizontal aquela bunda era ainda mais bonita. Velhas amigas e novas biritas lhe cercavam.
Barbarela apanhara de novo... Quando será que aprenderia? Estavam cansados dela por ali, mas
no fundo acreditavam que a São Francisco não seria a mesma sem ela. Depois do primeiro gole,
ela esquece e segue adiante.

Sentada na calçada, chorando, sentido dor e prazer, pensava na merda de vida que levava naquele
meio vazio, com aquelas pessoas imundas e com uma dor de cabeça dos infernos. Mãos no bolso
da blusinha. Oba! Ainda tinha R$ 5,00. Aonde ir agora? Ao banheiro mais próximo.

Rosto limpo, mais batom. Que bom que a Ângela só usava Avon. Assim os cortes nos lábios não
arderiam tanto, graças à manteiga de cacau que continha naquele produto e que ela espalhava com
tanto gosto agora nas faces. E graças a ele poderia prolongar ainda mais aquele prazer
autodestrutivo. Poderia ficar a noite inteira ali. Deus abençoe a puta da Ângela!... Mas a São
Francisco é grande e ela quer outro bar, se possível outro homem, ainda aquela noite.

Olá Karaoquê, queria mesmo cantar algo que há muito tinha preso na garganta. “O quê? Qual
musica? Ah!... qualquer uma, isso não importa nada. A dor é a mesma, a alegria será também. Não
me importune com esses detalhes e esse inglês inútil.”

Sobre o “queijo”, pernas abertas e microfone na mão, o LCD mostra Lilly Allen. Barbarela já
quase não consegue ouvir nada, mas toma mesmo assim um último gole de cerveja com alguma
droga colocada por alguém ali dentro.

“Vocês sabem por que canto? Canto porque ainda não dancei./ Saí esta noite e entrei nessa droga
de bar,/ mas nenhum homem me disse:/ sua louca, quero ter você ainda hoje/ pra eu lhe dizer:/
que conversa é essa de „ter?‟/ Sou depravada, meu bem, comigo é mais que ter, é poder, é f****/ e
não falei a palavra, porque respeito suas senhoras/ de barriga grande (barriga d‟água, yeah!) em casa
lavando suas roupas/ e vocês aqui/ nesse bar.../ nesse bar.../ por que no fundo,/ todo homem é
também veado...”

Ricardo Silvio de Andrade


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Na horizontal as luzes incomodam um pouco. O filho da puta que lhe pisara a mão ainda ri da sua
cara. A peruca caíra. Detestava aqueles cabelos afro, meu Deus onde estará agora sua bolsinha? O
batom estava lá dentro. Pelo gosto de sangue na boca acho que ia precisar dele... Pobre
Barbarela...

Nenhuma velha amiga, mas as biritas ainda lhe rodeiam. Pra ser mais específico, caíam agora na
sua cara, junto com os escarros de algum escroto racista e homofóbico. Ela ri. Aquela estranha
situação ainda a excitava. Queria ficar ali a noite toda. Queria ser pregada ali, como um
monumento à memória da decrepitude humana. Queria ser eternamente lembrada ali. Um flash,
outro, outro... Acho que iam por aquela merda na internet. Achou melhor se levantar, mas a droga
lhe deixava com os pés muito pesados. Decidiu seguir de quatro até a entrada do bar, mas não
precisou fazer muito: alguém a arremessara para fora com violência tal que seu queixo, ao bater no
chão, deixou um vivo filete de sangue a escorrer entre os montes de lixo e porcaria que seguiam
pela São Francisco abaixo.

Olhe, Barbarela: o céu clareia. São cinco da manhã. Melhor voltar agora. Ou não. Deite-se aí e
espere essa merda de droga passar o efeito. Escuridão. Será que ficara cega? Não. Era a droga
fazendo efeito.

Um braço em chamas é o aviso: o dia avançara. Era domingo e algo não lhe fazia bem. Onde
estava? Que dor no rosto! Era Alfredo que acordava num quartinho. Tinha um homem nu do seu
lado. Ao pé da cama outro. Um mendigo. Achou melhor tomar um banho, mas, cadê suas
roupas? Bem, pelo jeito que dorme, Alfredo crê que aquele seja o dono da casa. Veste
rapidamente o que encontra pela frente e segue para sua casa. Precisa mais que nunca de um
banho. Ângela chega amanhã. Era melhor tentar fazer um curativo no queixo. Aquilo ia
infeccionar...

Em casa, nem sinal dela. Alfredo toma seu banho, veste uma roupa bonita. São cinco e meia. Era
melhor ir à Igreja aquele dia.

Ricardo Silvio de Andrade


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A CASA DE UMA PAREDE SÓ

O ônibus seguia pela rua de terra e balançava freneticamente. Estela pensou que ia chegar em casa
completamente solta de tanto ser sacudida de um lado para o outro. Era meio dia, quase. Ela
esperava encontrar sua mãe com o almoço sobre a mesa, seus irmãos indo para a escola e seu pai
chegando junto com ela do trabalho para comerem sossegados. O ônibus virava agora na esquina
do ponto em que Estela desceria. Estava cansada e aquele momento era especialmente
tranqüilizador para ela.

Estela tinha doze anos e já trabalhava. Era estagiária mirim numa empresa no centro da cidade.
Com seu salário, ajudava os pais nas despesas da casa e comprava seus pequenos sonhos de
consumo: CDs da sua cantora preferida, as roupas que imitavam as que pertenciam às artistas da
novela e que logo apareciam na butique que ficava próxima à empresa em que trabalhava.

Sua mãe era doméstica. Trabalhava na casa de uma madame no centro da cidade, por isso a
esperança de Estela se acabava quando encontrava o irmão discutindo com o mais novo por ter
deixado o arroz queimar enquanto assistia TV. Ela nunca encontrava a refeição do meio dia
pronta, tinha sempre que terminar e, não raro, começar antes que seu pai chegasse do trabalho.
Ele era vigia, de maneira que trabalhava grande parte da noite no aeroporto e chegava em casa
geralmente junto com Estela.

Estela gostava do pai. Sentia naquele homem rude de rosto liso um arquétipo de uma coisa que ela
esperava encontrar ainda em outro homem. Não se encantava com os galanteios dos galãs das
novelas nem se ocupava a ler revistas Capricho. Sempre estivera segura do que queria, saísse ou
não na edição do mês. Tinha certeza de que sua pele, assim como cabelo e unhas eram invejáveis e
seu moreno-jambo em nada devia às modelos das capas do periódico – era descendente de
pernambucanos e tinha herdado a pele maravilhosa da avó Luisinha, que morrera no Norte há uns
três anos atrás. Ela lembrava do dia porque seu pai não deixou ninguém assistir a TV e deu bronca
no Gerson – o irmão mais velho – por ter ido ao aniversário de um amigo, apesar de ele ter
advertido que não fosse.

Sua mãe era uma mulher bastante trabalhadeira e zelosa. Nunca deixou serviço pela metade na
casa da patroa, Dona Solange. Ela sempre comentava a maneira que deixava a cozinha sempre
brilhando, os ladrilhos maravilhosos e como desejava ter um balcão de mármore igualzinho ao da
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24 | C O N T A - G O T A S e o u t r o s c o n t o s s o b r e n o r m a l i d a d e

patroa. Falava bastante do filho estranho que eles tinham: “Ninguém ali é normal – dizia – o filho
passa o dia trancado no quarto e não me deixa limpar. Dona Solange já me falou que não preciso
limpar „aquele chiqueiro‟, mas acho que não é direito uma doméstica deixar seu serviço pela
metade! E ainda tem o marido (ela não falava o nome do marido da Dona Solange porque
acreditava que ele era do Candomblé e a vigiava constantemente pelo olho dos vodus – pura
superstição de nordestina tradicional). Um sujeito pra lá de estranho. Às vezes bagunça as roupas
da Dona Solange e deixa de um jeito que (credo!) só vendo: tudo jogado. Quando vou perguntar,
diz que não é da minha conta. Não é por quê? Não sou eu, por acaso, quem limpa aquela sujeira
toda? Merecia ao menos saber o que causa aquele bagunção!”

Mas a mãe também se ressentia do pai nos dias em que ele bebia e chegava em casa bêbado e
falando besteiras. Apesar disso, ele nunca batera nela. Estela lembra do aniversário surpresa que
fizeram para o pai: ele fora recém admitido no emprego do aeroporto e bem no dia do aniversário.
Realmente uma data a ser celebrada.

A festa deveria começar às quatro: tempo em que ele chegaria em casa, comia algo e dormiria um
pouco. Seria no centro comunitário e teria muitas comidas e música do Norte, do jeito que ele
gosta. Mas a hora avançou e ele não chegava. Depois de seis horas o pai chegou bêbado e xingando
muito a mulher. Dona Vera soube e foi dar a notícia, mas quando ele soube que a mãe estava no
Centro Comunitário, decidiu ir ate lá. Entretanto, bêbado do jeito que tava, caiu numa poça de
lama e chegou antes de Dona Vera à própria festa, xingando e chutando o que via pela frente. Uma
vergonha!

Desse dia em diante, Dona Fabiana – a mãe – nunca mais fora mulher para comemorar outro
aniversário do marido. Muitos ela já participou, alguns até organizou, mas seu ânimo para o
marido secou naquele dia. Sempre fora de muitos princípios. De lá pra cá ele mudou muito. Hoje
quase nem bebe mais, mas certas mágoas penetram no coração da gente mais pela mesquinhez que
possuem do que pela freqüência com que acontecem.

Os irmãos – Gerson e Anderson – eram muito companheiros. Gerson trabalhava já, pela parte da
tarde, numa papelaria do bairro que pertencia à tia Teodora. Anderson ainda não encontrara
nenhum trabalho, mas a mãe sempre dizia que o queria mais voltado aos estudos, porque na casa
tinha de ter um médico para que nunca acontecesse com eles o que aconteceu com a Dona

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Catarina, que perdeu um filho no hospital por falta de atendimento. Ela acreditava que um médico
em casa seria uma boa, principalmente caso ela adoecesse e precisasse de tratamento urgente.
Acima de tudo, ela acreditava naquele filho.

Estela caminhava agora em direção ao portão de ferro onde Anderson ria do Gerson que tinha
uma mancha de carvão enorme na farda do trabalho e perseguia o irmão, mal notando que a irmã
chegara. Mais tarde pretendia estudar para uma prova de Matemática que teria aquela noite.

***

Aproximava-se de uma hora e estela ainda não acordara. Sentia sobre as costas uma pequena dor
que a impelia a permanecer deitada. Parecia alguma coisa com seus rins. Logo, logo, passava. Olha
mais uma vez o relógio e vê que se aproxima do horário de enxaguar as roupas de véspera que a
mãe deixara sobre a pia.

Levantou-se e se dirigiu ao tanque. Gerson havia já saído a alguns minutos. Anderson estava já na
calçada esperando um colega para irem juntos à escola. A vida era boa e generosa.

Naquela casa, sozinha, Estela esperava pelo momento de se tornar mulher, de buscar num outro
aquilo que a faria completa e que a resgataria do perigo do vazio em que viviam as mulheres
amarguradas. Mal sabia ela que estava embrenhando-se por uma estrada tão tortuosa quanto
poderia imaginar a mais fértil mente.

Enquanto lava os lençóis, pensava em onde poderia estar aquele que a tocaria a alma com os lábios
e lhe diria o quanto era única e o quanto lhe amaria.

Ela imaginava que seu amado teria o cheiro de seu pai. Mas não beberia nem diria os palavrões
que ele costumava. Imaginava a ambos como um pessoa só e esperava que ele se encontrasse nela,
como duas metades de uma esfera ou como as peças de um quebra-cabeça. Não. Como um
gancho e seu apoio, porque ela o alavancaria até o mais longe que seus sonhos pudessem
conceber.

Sem perceber, um dos seus dedos se esfolou no cascalho da pia. A dor a acordou do sonho em
que estava imersa e a fez pensar nas dificuldades que enfrentaria ao lado daquele por quem
abandonaria o pouco conforto que possuía na casa dos seus pais.

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A roupa branquinha agora tinha já um filete de sangue. Casamento, felicidades e uma vida inteira
pra compartilhar com ele. Quantas risadas dariam por dia e quantas lágrimas guardar-se-iam no
seio de ambos nos momentos difíceis que enfrentariam conjuntamente?

O sangue no dedo não coagulava devido a água que o diluía, aumentando assim o fluxo e o
volume. Estela imaginava seu amado e a dor já quase não a incomodava. Mentalizou aquele
homem célula por célula e derramara em prol do seu sucesso, uma gota de sangue no chão.

Pronto. A Natureza gestava ali aquele que seria o espectro da sua vida, vindo direto do seu corpo, a
casa de sua alma.

Ricardo Silvio de Andrade


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A CASA ONDE OS SONHOS VIRAM FOTOGRAFIA

Era uma casa pequena. Ironicamente era azul-celeste com listras verticais – frutos do desgaste
constante e impassível do tempo sobre as construções – que lembravam cirros a anunciar um céu
de brigadeiro, onde os sonhos poderiam ir longe e alimentar a esperança de serem, um dia,
realidade. Estava espremida entre dois grandes edifícios. Do lado direito, havia um prédio de
escritórios recém comprado por uma empresa financeira. Seu objetivo era torná-lo um grande
centro de factoring. Do lado esquerdo havia um brechó, onde poucas pessoas iam. E quando iam,
geralmente era depois de freqüentar a casa.

Era bem pequena, mas os serviços que se oferecia lá – em regime de automação total –
simplesmente ganharam o mundo, sobretudo o que era mais procurado: a máquina de transformar
sonho em foto. Ela era uma eterna questão, um verdadeiro enigma para toda espécie de gente e de
estudioso: para os impacientes, era perfeita porque assim viam logo seus sonhos, tão logo eles
fossem sonhados; para os pacientes era abominável que um ser humano preferisse trocar a
possibilidade da realização pessoal por uma polaróide de origem duvidosa. Para a mídia era o
bode expiatório nos grandes feriados cristãos – Natal, Páscoa, Ano Novo, etc, e para a ciência era
apenas uma superstição popular...

Porque na realidade, quando o cliente entrava nela e escolhia o serviço, sabia-se que jamais o
sonho poderia ser realizado. O cliente trocava o sonho por uma foto, e a levava pra casa sem mais
o quê. Depois, o trabalho era sonhar outro sonho e levá-lo à tal casa. E os clientes somente
aumentavam a cada ano que passava. O primeiro fora o senhor cansado da vida e amargurado que
entrou na casa pela indicação de um desconhecido via email. Chegando lá, realizou o
procedimento e... sucesso total! A partir de então, muitas outras pessoas – sobretudo adultos e
idosos – chegavam à casa que não tinha moradores, mas era de um asseio invejável: os ladrinhos
brilhando e o rodapé de madeira muito bem acabado, sempre a exalar um leve odor de pinho.

O serviço era simples: o cliente entrava e bem no meio da casa estava a tal máquina. Daí era só pôr
o indicador na leitora biométrica, depois de depositar a moedinha de R$ 1,00 num orifício
especialmente feito para tal fim, aguardar e pronto: em alguns segundos uma pequena foto saía
retratando a pessoa ao lado daquilo que ela mais queria na vida e que, entretanto, acabara de jogar
fora naquele instante – era infalível! E irreversível também...

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É que um dos sintomas mais comuns de quem procurava a tal casa era justamente o
arrependimento. Pouco tempo depois de pegar a fotografia, ficam jururus e passam a desejar uma
máquina que lhes transforme a vida em filme. Com o arrependimento, o primeiro passo era
justamente tentar, ainda que sem êxito, reverter o processo. E as maneiras iam das mais simples às
mais inusitadas possíveis.

Havia quem mandasse benzer a tal foto, quem tentasse rasgá-la (e conseguisse), quem removesse
quimicamente a imagem e até quem procurava o dono da tal casa a fim de desfazer o negócio, mas
nada. O fato é que os que tentavam só davam de cara com seu desespero: por que a foto
simplesmente não se destruía fácil, não abandonava o seu proprietário e aos poucos ia se tornando,
em face das inúmeras tentativas de se ver livre dela, o centro da vida deste.

Um ritual chinês dava conta de amarrar os sonhos às pipas, esperar que elas alcançassem alturas
incríveis e cortar a linha, a fim de que, mais próximo de Deus, o desejo pudesse em fim ser
realizado. Mas no caso das fotos era inútil o ritual, pois estas pareciam feitas de chumbo: não
subiam nem que estivessem amarradas a rojões de São João. Era realmente algo de que se poderia
duvidar.

Certo ano, muitos dos ressentidos clientes resolveram realizar uma enorme fogueira que consumiu
milhares de sonhos e fotos, mas nenhum deles, entretanto, se sentiu mais aliviado com o gesto.
Muito pelo contrário, já que, se antes tinham ainda que uma foto do seu sonho, agora nem sonho
nem foto. Ademais, havia os que acreditavam numa promoção relâmpago de devolução de sonhos,
mas era a pura especulação.

***

Aquele dia parecia que a ser mais uma tarde chuvosa e de pesado clima invernal. Naquele ano
chovera demais naquela cidade enorme. Chovera demais e inutilmente: as pessoas simplesmente
nem sequer tinham a necessidade da chuva por ali. Antes, ela era um ente que atrapalhava a vida
delas. É que suas árvores já eram irrigadas com água de lagoa de estabilização. Eram mais fáceis de
se encontrar, já havia toda uma logística envolvida no seu tratamento e ainda por cima tinham um
caráter de prática de preservação ambiental. Também as pessoas dispensavam a chuva porque, de
qualquer maneira, quase todos tinham em seus apartamentos aparelhos de ar condicionado
melhores que o vento polar.
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Em puro gesto egoístico, entretanto, a chuva insistira em cair. Não demorou muito e a cidade
estava já completamente cinza e nas sarjetas corria um grosso curso de água que transbordava nas
esquinas, aumentando ainda mais a aura de sujeira encontrada nos seus recantos. Homens e
mulheres se espremiam em uma marquise quando uma rajada mais forte de vento molhou os
primeiros da fila, como que a convidar a ver a novidade que nasceria naquele dia.

É que a chuva pegara um pequeno de surpresa e a criança – sempre elas! – entrara na casa azul e
agora fitava a tal máquina com certo receio. Já tinha ouvido falar na invenção, mas não conseguira
lembrar a quem de fato ela pertencia.

Como que para tirar a prova dos nove, retirou do bolso uma moeda e depositou na fenda ao lado
da máquina. Imediatamente ela brilhou e começou a emitir um barulho típico dos processos
automatizados, mostrando em seguida um pequeno campo azul, ovalado e côncavo onde a criança
deveria inserir seu polegar. Ela, entretanto, o fez sem nenhuma intenção além da de descobrir a
forma tátil daquele local.

Foi o suficiente. Como que possuída pelo próprio demo, a máquina começou a piscar luzes de
toda forma e cor, sacudindo-se e com o sinal de “atolamento de papel” piscando, ela simplesmente
se punha frenética. Fumaça saía pelos vãos em que o cliente pegaria a foto e a bandeja interna
alimentadora de papel parecia que queria partir o equipamento ao meio.

O menino se afastou da máquina a fim de dar a esta mais espaço para que pudesse realizar aquela
dança estranha que minutos antes iniciara. Entretanto, como o cabo que a prendia no chão era
muito curto, ela apenas se projetou para frente, deu dois grandes estrondos, como que a reclamar
de dores e se apagou por completa.

A máquina estava quebrada: a pequena casa que transformava sonhos em fotografia simplesmente
não imprimia em tamanho outdoor. O menino saiu da casa e hoje é famoso no mundo inteiro,
pois diversas pessoas vieram lhe agradecer por ter-lhes livrado do vício de sonhar para reciclar e
deixar de sonhar para ver as fotos, de maneira cada vez mais compulsiva.

Ninguém ficou sabendo quem administrava o tal negócio, mas o que comentam é que desde
aquele dia de chuva em que o garoto fora visto saindo de lá, a casa encontra-se fechada e com uma

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pequena placa na porta, pendurada à moda dos capachos em que se escreve “bem vindo”, escrito:
“aparelho em manutenção”.

Passou-se já quase um ano do que aconteceu com a casa e o Natal se aproximara com promessas
de um futuro maravilhoso trazido pela esperança do nascimento do Menino-Deus, que viera
encarregado de trazer as boas novas a todos os homens de boa vontade. O menino-homem olhava
pela sua janela o mundo e, ao longe, podia ainda avistar a tal casinha azul e sua plaquinha na porta,
rindo irônica a lhe mostrar como as pessoas simplesmente não valorizavam seus sonhos, antes os
trocavam pelos sonhos que uma outra máquina oferecia: a televisão da sua casa piscava enquanto
seus pais e irmãos entretinham-se com as promessas de um rico produto para a limpeza e
polimento do carro. A mãe pensava no próximo vestido e na leitura de sua revista preferida. A
irmã esperava a vez de ver suas cantoras prediletas na MTV.

O menino chegou à conclusão de que a máquina e a casa não eram de fato coisas ruins, apenas
davam às pessoas o material necessário para conter a eterna vontade de se ter tudo, até aquilo que
não nos cabe realizar.

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CINCO POLEGADAS

Arthur sentia o cheiro de urina e de fezes de rato que o atraíram àquele lugar estranho. Horas atrás
estava em sua casa, acessando a internet sem maiores preocupações senão o que fazer naquela
tarde, depois de se masturbar e pensar no que sua mãe diria ao ver que as apostilas do curso
permaneciam sobre a mesa, simplesmente intocadas. De cuecas, desceria as escadas de sua casa,
poria uma calça ou moletom e – já seriam seis horas – iria passear com o Lupo – o cão da família.

Mas ainda eram quatro da tarde e o local pequeno e apertado o envolvia de maneira quase que
hipnótica. Era exatamente como ele imaginara, era o que sentia que precisava naquele momento
em que estava perdido e precisando de algo que o resgatasse de volta para o mundo real. Arthur
não estava preocupado com as conseqüências daquilo. Queria satisfação, queria algo que
abrandasse aquele fogo que o queimava por dentro e o impedia de viver, pois via na vida apenas
um largo e esfumaçado Campo Elísio, onde purgava pelos pecados que nem cometera ainda.

Tinha dezessete anos e nem terminara o segundo grau ainda, mas sentia na distância de sua família
e no vazio dos seus amigos, o aprendizado de toda uma vida para quem simplesmente independia
de cobranças. Desde pequeno sentira o peso daquela falta de objetividade e de segurança: vira o
pai partir cedo. Vira a mãe sair a cada dia mais cedo e a tia Bete e seus namorados cada vez mais
freqüentemente assumindo a liderança da casa, escorregando por entre os vãos das fechaduras e
lhe flagrando em momentos raros de alívio daquela tensão de estar a cada dia mais próximo do
abandono.

Mas recordava que nem tudo naqueles meses fora difícil. Apesar dos choros constantes da mãe
pela madrugada adentro, o que o assustava bastante, havia as tardes de sol no quintal, os filhos dos
vizinhos brincando e ele de longe olhando, querendo participar da brincadeira, quando a bola
entrava pelos arbustos e ia cair direto debaixo da janela da cozinha. Era a hora de ele pegar a
redonda e entregar ao rapaz de branco que vinha ao seu encontro e sempre afagava seus cabelos.
Com as mãos grandes e seguras, desarrumava a farta cabeleira negra e exalava suor e testosterona o
suficiente para estragar a porra da vida de qualquer criancinha.

Teve também o “tio” Cabral, gaucho meio polaco que a tia Bete encontrara por intermédio de
uma amiga de outra amiga a quem só tinha visto uma, duas vezes, no máximo. Cabral era
expressivo e engraçado. Contava piadas como ninguém e falava sempre carregando os erres e
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engraçado, sobretudo nas vogais abertas. Isso ele só veio aprender muito tempo depois, já na
escola primária onde cursou até a oitava série.

Cabral curtia muita bebida e jogos de azar com a tia Bete. Uma noite estavam jogando pôquer e
bebendo um uísque que ele tinha comprado a tarde, com o pretexto de experimentarem um prato
novo. Tia Bete já estava bastante embriagada e insistia em não tirar as meias como parte de prenda
por ter perdido a partida. Pela forma com que falava, parecia que já tinha bebido muito mais além
do que conseguia agüentar. Tia Bete caiu. Quem viria lhe ajudar?

Silenciosamente “tio” Cabral segurou-a como um noivo segura a sua noiva e a levou para seu
quarto. Ela estava mole e aparentava estar bastante quentinha e confortável. Foi essa impressão que
Arthur teve ao ver o Cabral afundar a cabeça entre os peitos dela. Tia Bete parecia uma pin up
morta. Arthur via a sofreguidão com que aquele homem a cobria enquanto essa deixava escapar
uma espécie de guturana, uma mescla de sons que tanto podiam vir da sua garganta curva pelos
apertos que o “tio” Cabral lhe impunha, quanto pela sensação provocada pelos seus dedos sob sua
saia. Depois de certo tempo, Arthur grava na memória a forma com que o polaco põe mais
intensidade nos seus movimentos, provocando uma espécie de convulsão coletiva em ambos. Tia
Bete começa a gemer mais alto e agora percebe-se perfeitamente que ela estava acordada o tempo
todo. Após um forte solavanco, Arthur percebe que do corpo do gaucho, curvado sobre tia Bete
como um L invertido, escorre um líquido semitransparente, seguido de dois palavrões e mais uma
investida, dessa vez contra a vontade da tia que dizia não agüentar. Ela impedia aquele corpo de
subir por sobre suas costas inutilmente. Ameaçava gritar e dizia não esperar aquilo dele, mas
também não surtiu efeito. A aura de felicidade que Arthur enxergava parecia ter se dissipado tão
rápido quanto a velocidade com que “tio” Cabral conseguia arrancar peça por peça a roupa da tia
Bete. Após conseguir seu intento, o homem simplesmente jogara a tia Bete sobre a cama, indo
vestir as calças enquanto ela chorava sussurrando ameaças.

Anos mais tarde compreendera porque tia Bete pedira à mamãe para sair uns tempos de férias
com ela. Como mamãe não queria, ela teve de se contentar em ir sozinha. E as noites passaram a
começar mais cedo e terminar cada vez mais tarde. Ia mal na escola e não conseguia pensar em
outra coisa senão na tia Bete e em seu agressor. Lembrava da testosterona do filho do vizinho e
aquela lembrança o remetia diretamente à tia Bete, mas, de alguma maneira, aquele sentimento se

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revertia e caia sobre ele como a água de uma cachoeira que o vento arrasta para dentro de uma
caverna. Foi quando mamãe namorou Carlos.

Carlos tinha um sotaque forte de homem do campo. Mamãe o conhecera na véspera do


aniversário do antigo chefe que sempre a convidava para ir à noite na sua casa. Geralmente depois
de ir lá, mamãe sempre voltava com mais dinheiro na carteira e com os olhos mais fundos
também. Mas um dia ela recusou o convite, assim mesmo foi conversar e voltou com os olhos
inchados. Mas a bolsa continuava cheia e isso era o que importava.

Carlos veio junto com uma proposta de trabalho daquelas que a gente simplesmente não recusa.
Mamãe aceitou, claro. E em poucos meses mudaram-se para uma cidade maior, para um
apartamento em que Arthur ficava cada dia mais sozinho. Mas depois veio a casa espaçosa e o cão,
seu melhor amigo. Junto com ambos veio a nova mamãe e o Carlos.

Carlos sempre fora carinhoso, não bebia e sempre atendia aos pedidos do Arthur de maneira
diligente. Parece que ele não entendia o quão supérfluo era aquela criança na vida dos dois. Mas
Arthur, por mais falso e revoltante que aquela ignorância acerca do pouco que ele representava
naquela família pudesse ter de estressante, continuava cada vez mais exigente nos pedidos, como a
querer que Carlos se enchesse logo dele e o abandonasse também, afinal, todos faziam isso. Mais
cedo ou mais tarde ele faria também. Sentia naquele homem uma ameaça ao que ele era naquela
casa: um móvel, um vaso, observando tudo passivo às mudanças que aconteciam e que
simplesmente trocavam-lhe de mesa sem, no entanto, lhe quebrar.

Naquele dia o telefone tocara cedo. Mamãe saíra da cama ainda com seu baby doll molhado na
parte de trás. Dizia que estava indo e que não demorava a marcar as passagens de avião. Que em
menos de uma hora chegaria à capital para receber o cliente e que não deixaria aquele contrato
escapar por entre seus dedos. O café estava já sobre a mesa, posto horas antes pela doméstica de
cara cansada que mamãe contratara por indicação de uma vizinha, e Carlos a seguia de perto
enquanto discava no celular o telefone de alguma companhia aérea.

Ao chegar à cozinha, Arthur soube que mamãe viajaria dali a algumas horas e que voltaria na
quarta feira, mais tardar na quinta. Que fosse para a escola direito e que se comportasse com o
Carlos, afinal, seriam só os dois durante sua ausência.

Ricardo Silvio de Andrade


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Um beijo na testa e novo retoque no batom. O celular toca enquanto Arthur vê a mamãe saindo
pela porta da cozinha. A batida da porta do carro e o arranque do motor anunciam sua partida,
quando Carlos retorna à cozinha e toma seu chá preto calmamente enquanto seus olhos passeiam
sobre as páginas do jornal daquele dia. Arthur senta-se e observa os óculos oblongos sobre uma
Newsweek e os dedos de Carlos – como lembravam “tio” Cabral!... – a bater levemente a
superfície de mármore da mesa, produzindo um som que imitava as batidas do seu coração.

Pum... pum... pum... olha para o lado. Uma torneira aberta deixa escorrer umas gotas de água
sobre um balde cheio de roupas. Acha que aquilo são estopas. Olha melhor e vê: são toalhas sujas.
Agacha-se e sente o cheiro. O homem que se banhara com aquelas toalhas as deixara ali de
propósito, a fim de aguçar-lhe os ânimos. Uma barata sai correndo de trás do recipiente e segue
até a entrada do armário, quando, por instinto, se esconde sob a parte inferior do rodapé. Um
toque sobre as toalhas e leva o dedo ao nariz. O Carlos tinha aquele cheiro na virilha.

Dez horas da noite. Hora de dormir. Carlos entra no quarto vestindo apenas uma cueca de seda e
se deita sobre a cama do casal. Devia estar cansado, pois parece adormecer de maneira quase que
instantânea. Arthur vigiou os seus passos até aquele horário. Queria descobrir porque aquele
estranho insistia em tratar-lhe como se fosse alguém igual a ele. Queria saber onde estava o direito
que ele tinha de tirar-lhe o anonimato. Acaso não sabia que ele tinha visto o que acontecera com
tia Bete?

O rapaz entra no quarto silenciosamente. Sentado na cadeira estava seu algoz. Do jeito que ele lhe
prometera mais cedo no MSN: calças de nylon e tênis Nike. Prometera chuteiras, mas deve ter
preferido guardar para o segundo momento. Arthur senta-se sob seus pés e ele, imponente, manda
que ele lhe lamba os solados do tênis. Aquela superfície emborrachada e cheia da poeira do chão
lhe deixa excitado ao ponto de querer engolir aquele pé por inteiro.

Mas o sono do Carlos não parecia ser exatamente um sono tranqüilo. Ele também se remexia
como tia Bete. Estaria lutando contra algum inimigo? Não. Arthur não queria ver mais aquela luta.
O medo lhe prendera os pés, mas ele lutou contra ele até conseguir se aproximar do Carlos. Sem
camisa, deitado sobre a cama e com as pernas semiabertas, aquele homem parecia exalar o mesmo
cheiro que aquele vizinho distante, o das bolas, exalava, só que com mais suavidade e um toque de
sabonete Phebo. Sentiu como que se aquele material – o nylon que imitava a seda na sua cueca –

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lhe atraísse de maneira pungente a tocar-lhe. E se Carlos acordasse? Não. Ele não iria. Disso
Arthur sabia. Passara o dia inteiro a segui-lo como um caçador a uma presa, mas em muitos
momentos parecia que Carlos percebera o embuste, escapando engenhosamente, até aquela hora
em que parecia entregar-se completamente. Mas Arthur ainda assim sabia que não deveria tocá-lo.
Ele pertencia a sua mãe, além do que, não teve nunca interesse naquela pessoa. Só um toque, de
leve, era isso que sua consciência pedia. Quem sabe se ele estivesse morto, ao sentir o singular gelo
que os cadáveres têm, Arthur pudesse ser o primeiro a noticiar o fato. Sabia que, sendo essa
possibilidade verdadeira, cairia em mais um ciclo de mudanças e distâncias. Exatamente como se
acostumara e como compreendia sua vida a partir dali. Apenas um toque...

Arthur está deitado no carpete cinza escuro. Seu algoz passeia sobre seu peito e aquela visão lhe
deixa extasiado. Sentia como se estivesse se libertando de algo, passando para aquele homem,
parte da sua dor, do seu vazio, compartilhando um universo próprio, que de tão singular adquirira
uma conotação sexual tão extrema que já não se continha no seu sexo, antes assumira sua
personalidade, tirando-o de si e o transportando a um tempo feudal, onde poderia ser o que
quisesse, onde seu algoz o libertaria de sua condição inferior e lhe permitira encarar sua vida de
maneira mais clara, sem o turvo que todo aquele medo e esperma lhe impunham à visão desde
aquele dia.

Mas Carlos não acordou, o que lhe impeliu a continuar com aqueles toques. Queria que sua
mamãe estivesse ali. Queria que ela lhe ensinasse a ser um devasso como ele sabia que ela era.
Queria ser mais um objeto, mais um signo, uma imagem como naquelas revistas que Carlos
escondia sob os colchões. Como que a ler todos os seus pensamentos, Carlos desperta e, sem
causar-lhe medo ou repulsa, arrasta-lhe para sobre a cama, onde os dois começam uma dança,
uma sincronia lasciva e perigosa, onde os olhares seguiam das portas às bocas e cada palavra que
Carlos – seu primeiro algoz – lhe dizia era decorada, processada e repetida sucessivas vezes como
uma oração, até se tornar verdade naquele pequeno espaço compreendido entre o corpo seminu
de Carlos e o colchão de molas em que Arthur estava praticamente enterrado. Não percebera o
momento em que suas roupas abandonaram seu corpo, deixando-o completamente nu e
desprotegido, depois, como um paciente que toma uma injeção, sentiu a mesma dor que tia Bete
sentiu, mas de uma maneira diferente: sabia que ela tinha sido preparada para ele e que ele deveria
receber aquele castigo. Sempre fora inútil e ambíguo. Mamãe deveria ter-lhe abandonado quando

Ricardo Silvio de Andrade


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pôde, mas não. Conseguiu ser mais que uma mulher. Conseguiu ser uma mãe, sendo, pois,
generosa na sua lição, dando ao filho a oportunidade de conhecer o que ela era de verdade, o que
ele deveria ser para que ambos pudessem compreender um ao outro. E aquele castigo o purgou e
o levou ao paraíso da Verdade.

E finalmente as chuteiras chegaram. Com ela, outro algoz – tudo conforme o combinado. De
bruços, ambos passeavam sobre suas costas e um terceiro empurrava uma meia na sua boca,
obrigando-o a gemer, mais de prazer que de dor. Horas mais tarde, chegava o momento das
cuecas, quando deveria mostrar ser um capacho ainda mais submisso, mais desprezível, causando
assim orgulho aos seus algozes e satisfação cada vez maior. Os tapas na sua cara pareciam que
externavam as chamas da sua vergonha destruída e suas costas estavam todas riscadas com o nome
das coisas que ele praticava com sua mãe na ausência dela, só que eram rabiscos de dentro pra
fora, então, quem por acaso visse, não conseguiria entender nada.

A tarde avançara. Eram já quase seis horas. Duas horas de castigo o libertaram por aquele dia. Mas
o cheiro do esgoto a céu aberto lhe trazia a agradável satisfação de saber onde encontrar tamanha
generosidade e vontade de ajudar o próximo. Deus sabia o quão importante era aquilo que fizera
para si próprio como benefício maior ao mundo. Ao seu mundo.

E o tamanho das chuteiras ficou marcado nas suas costas. Cada centímetro traduzia quilômetros de
satisfação e o sabor de se compreender menor que os menores e mais feliz que os deuses, mais
pelo impregnar que o pecado lhe conferira do que pela ausência deste na sua face.

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O OBELISCO

As roupas estavam mal lavadas, mas estavam limpas. As roupas de um estudante precisam estar
sempre mal lavadas e limpas. Elas compunham a base. E forravam quase que o quarto inteiro, só
levando-se em consideração a área das cuecas brancas, mas, como ficavam sobrepostas formando
uma camada que ia dos tecidos mais leves, como as malhas e os tecidos sintéticos como os
poliésteres, até os mais pesados, como os jeans. Sobre elas se erguiam imponentes as pilhas de
livros. Elas se erguiam a partir das enciclopédias até os pequenos livros de bolso que serviam de
base para os níveis seguintes. E assim o obelisco ia crescendo, crescendo, crescendo...

O amor é um bobo e Adão ainda nem se dera conta. Mas o que significava aquilo? Nem mesmo
ele sabia. O que sabia apenas era que via constantemente os anjos que sobrevoavam a cabeça de
Sofia, indo sentar-se ao lado de Márcia, que, por sua vez, os repassava á Luciana. Mas estes
mesmos anjos simplesmente não contemplavam Alfredo, e nem o Antonio, este, apesar de ter
nome de santo, era o que Adão mais via em companhias demoníacas. E foram eles – anjos e
demônios – que ordenaram a construção do estranho elemento.

Mas o obelisco não seguia uma ordem pré-estabelecida, não. Ele ia sendo construído segundo
aquilo que os arquitetos pensavam dele. E também não era uma obra pública, de modo que ficava
sempre confinado no quarto de Adão. Quando este estava, até que lhe rendia uns implementos,
colocava-lhe mais objetos, segundo o que era encontrado e apreendido pelos arquitetos, limpava a
poeira da base, sempre com cuidado para não desestabilizar a construção.

Certo dia, cansado de tanto esconder aquela estranha construção, decidiu chamar o irmão mais
novo – ele tinha apenas seis meses – para conhecê-lo. Os arquitetos pareceram gostar da idéia e,
tão logo o recém-nascido cruzou a porta do quarto, parece que houve uma mágica sinergia entre
eles. Logo os arquitetos lhes confiavam os melhores ângulos do projeto que nunca fora visto nem
mesmo pelo executor e a criança, por sua vez, não agüentava mais a ansiedade para tomar parte na
construção, cada dia com mais e mais idéias mirabolantes que faziam o pobre Adão desejar nunca
ter visto aqueles estranhos construtores.

Mas um dia, chegando em casa, Adão percebeu algo de diferente na sua construção. Os arquitetos
não estavam e o irmão parecia dormir tranquilamente no seu berço, indiferente à construção a que
dedicara tanto tempo e idéias naqueles dias. Adão nunca soube ao certo, mas parece que as
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divergências entre aquele menino tão genioso e arquitetos tão conservadores ia terminar mesmo
naquela cisão. Melhor para ele, assim, com certeza, consumia-se menos seu tempo e sua
disposição.

Os arquitetos eram ortodoxos: na parte dos CDs, que deveria antepor-se à parte dos shorts
(porque, sendo os CDs estruturas frágeis, era ponderado, segundo os arquitetos, manterem uma
camada mais macia a fim de evitar o desgaste com o tempo e o manuseio), continham apenas
títulos nacionais. Assim, aquele CD do Green Day e dos Little Boots, seus xodós da estação
ficaram de fora. Esta talvez tenha sido a parte mais prazerosa do trabalho: sob a batuta dos
arquitetos, ia empilhando CDs e mais CDs do Tom Jobim, Nara Leão, Cazuza e Maysa.

Mas, concluída essa fase, na seguinte ficara quase nu: todos os seus shorts e bermudas entraram na
construção daquela etapa da obra. Os arquitetos tinham uma fúria canibal e, não fossem os vivos
protestos do pobre Adão, certamente precisaria ficar eternamente trancado naquele quarto, uma
vez que os arquitetos não ia deixar-lhe sequer uma roupa para vestir. Mas, em detrimento desse
contratempo, os arquitetos avaliavam positivamente a obra no seu geral. Ademais, já se aproximava
o seu fim e eles precisariam pensar numa inauguração à altura do elemento que criaram.

Foi o pior momento. Adão andava pelas ruas e era constantemente incomodado por cães, gatos e
ratos a indagar-lhe pelos convites. Nessa loucura, o que mais lhe despertava o medo era justamente
o perigo de ser internado: tinha verdadeiro preconceito de louco. A fim de não despertar
surpresas, decidiu então fingir que não escutava as criaturas, mas estas o incomodavam de maneira
tal que não custou muito até ter de ficar em casa, no seu quarto, trabalhando escondido enquanto
terminava o infernal obelisco que, apesar de toda sua tosquice, parecia ser esperado como a obra
do século.

Seus pais não sabiam, exceto o pequeno irmão, ninguém da sua família sabia. Todos tiveram
acesso negado ao seu quarto e estavam proibidas as visitas fora de hora: do contrário, ele não
emprestava nenhuma roupa de cama. Não custou até que os primos se afastassem dele.

Começou com um que viera do interior a fim de prestar um concurso. Terminada a prova, o
garoto insistiu, rogou, discutiu e por fim brigou com ele para entrar no tal quarto, mas tudo em
vão. E como a boca humana é muito mais poderosa do que seus punhos, não custou até que a
noticia de sua reclusão chegasse aos mais longínquos solares onde habitavam a sua família.
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E uma noite, quando estava praticamente terminada a obra, seu intento era colocar a placa
inaugural: era um quadrado de papelão com os dísticos cerimoniais escritos a giz de cera. Os
arquitetos exibiam pompa e circunstância e ele mesmo chegou a se alegrar com a obra que fizera: o
obelisco estava pronto.

Mas o pai o vigiara naquele dia e quase caiu para trás no momento em que abriu a porta e viu o
filho completamente fora de si, cumprimentando os visitantes invisíveis ao redor de um
amontoado de coisas que mais se assemelhava a um vulcão do que a um monumento. E no alto
desse monumento, a placa deu-lhe o mais triste atestado para aquele pai: seu filho estava perdido.
Nela se lia: “O amor é mais importante, porra!”.

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A CHUVA DE ARES CONDICIONADOS

O primeiro caiu na marquise da praça do Coliseu. Causou um imenso estrondo ao se chocar com
o calçamento, expondo as vísceras do aparelho em lamentável estado de amasso. Enquanto os
transeuntes se perguntavam de onde caíra aquele inusitado objeto, um segundo aparelho cai sobre
o teto de uma loja de confecções, rompe a camada de telhas, causando grave estrondo ao se chocar
com o forro e atingir em cheio a proprietária, que se preparava para expedir a demissão de uma
funcionária que não atingira a cota de vendas. Logo muitos outros caíram. Pra encurtar a história,
basta apenas relevar que os que atingiram a Catedral quase a puseram no chão, tamanho estrago
causaram à estrutura do sacro prédio.

Os carros na rua, em princípio até paravam para observar o estranho espetáculo: aparelhos de ar
condicionado surgiam do nada, plantando-se sobre árvores, casas, prédios e o que mais
encontrassem pela frente. Em pouco tempo a destruição já era tamanha que mesmo os carros que
tentaram prosseguir não conseguiram, pois a montanha de entulhos que se acumulava sobre a pista
crescia tão rápido, que mesmo que um grupo de corajosos se dispusesse a enfrentar a fúria daquela
chuva, pouco conseguiriam fazer, tamanha a velocidade e a constância com que os aparelhos caíam
no solo.

Os mais religiosos afirmavam que aquele era o clássico fim dos tempos, há muito esperado, e que
chegara tão inesperadamente pelos métodos do que pela data. Ninguém sabia ao certo o que
acontecia. Técnicos em meteorologia simplesmente se recusavam a encarar aquele fenômeno
como sendo de causas naturais, uma vez que ninguém nunca havia pensado em uma condensação
de exaustores e motores de refrigeração capaz de, sabe-se lá por que processos, terminar por
montar os milhares de aparelhos que caíam, à revelia dos que tentavam em vão conter a sua queda.

A chuva fizera muitas vítimas. Os que se divertiam no Shopping Center local mal conseguiram
atentar para o que estava acontecendo: imensos aparelhos caíram sobre as vigas de sustentação e a
estrutura veio abaixo matando a todos os que se encontravam sob ela. Os que rezavam na Catedral
tiveram sorte melhor: sob o altar, que fora construído em maciças pedras calcárias, alguns
felizardos conseguiram se livrar da destruição por esmagamento, conforme presenciaram com os
demais, entretanto, tiveram que enfrentar penoso sufoco, pois as velas do altar e as que iluminavam
a réplica do corpo de Cristo – orgulho maior da paróquia – em contato com as partes plásticas dos

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aparelhos de ar condicionado causavam uma negra fumaça que misturava o cheiro das velas e dos
incensos com a pesada nuvem de borracha queimada, asfixiando a muitos. Aqueles que não
sofriam morte por asfixia, não podiam sequer gritar com medo de terem as gargantas feridas pela
mistura tóxica que se estendia vagarosa e paciente naquele pequeno espaço em que se abrigavam.

Uma ambulância que vinha de uma cidade vizinha com uma grave enferma em busca de
tratamento, mal conseguiu entrar na cidade e foi atingida por um grande Brastemp, que
praticamente lhe destruiu o motor.

Nas imediações do município, as populações rurais estranhavam a falta do sinal da Emissora Rural
e isso os deixava estranhamente aliviados, como se uma rotina de séculos houvesse se partido e
estivessem em fim libertos para a escolha de outros rumos a seguir. E discutiam já um certo
programa espírita que era transmitido por uma rádio carioca.

Com o peso extra imposto sobre sua estrutura, revelou-se quanto trabalho havia sido em vão
naquela obra ao ver a ponte Presidente Vargas partir-se com o peso dos carros e dos aparelhos de
ar condicionados dispostos como que pendurados sobre seu parapeito. Com um estalo seco, esta
partiu-se, indo ao fundo do rio com cinco carretas, várias motos, quatorze pequenos veículos e
várias bicicletas cujos donos jaziam dilacerados por esta ou aquela parte de um aparelho que batera
nas vigas de sustentação e se quebraram ou mesmo pelo peso dos próprios aparelhos que os
atingira, vivos ou mortos. Com a queda, o rio parecia mais um grande depósito de entulho e o que
suas águas não conseguiam arrastar, engoliam sem dó, escondendo em parte o tamanho da tragédia
naquele lugar.

E o último aparelho caiu justamente sobre a praça da Catedral, meio incinerado pelo impacto,
carcomido dos lados pela força com que rolou por sobre os demais aparelhos que já ocupavam o
local. Sob ele, um ou dois metros de carcaças de aparelhos de ar condicionado escondiam os belos
mosaicos de pedras portuguesas feitos há mais de um século pelos primeiros catequistas.

Se nos primeiros momentos da estranha precipitação todos tentavam se afastar da cidade, depois
que ela passou, a imprensa noticiou em copiosas matérias o que acontecera naquela cidade bonita
que mais se assemelhava agora a um cenário de algum filme futurista sobre o século XXI. E cada
fonte se esforçava à quase sobre-humanidade para encontrar o ângulo mais trágico, a montanha
maior e os feridos mais graves no meio daquele caos instaurado
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Muitas hipóteses foram levantadas, mas a verdade é que a descoberta do que acontecera ali
simplesmente tirava o brilho do acontecimento em si, de modo que em pouco tempo, muita gente
tomou o acontecido como uma fábula, uma brincadeira dos elementos tentando mostrar algo que
a Era de Aquário, ou a conjunção estelar do milênio já anunciavam desde antes de a humanidade
ou sequer o planeta existir. E o que era? Cada cartomante, adivinho profeta ou padre tinha sua
própria interpretação, então, se fosse necessária uma síntese baseada em cada um desses teóricos,
todo o papel do mundo apenas daria para o primeiro capítulo pela metade.

Na verdade, um ano já se passou desde que a chuva de aparelhos de ar condicionado atingira


aquela cidade e festeja-se já a sua reconstrução. Desde que aconteceu aquela tragédia, todos os seus
habitantes olham temerosos o horizonte com medo de que mais um eletrodoméstico lhes atinja a
cabeça, bastando apenas que o clima mude ou que o vento da chuva lhes toque o rosto.

A imprensa noticiou o aniversário do acontecimento, mas em linhas gerais. As tragédias que


completavam um ano já não vendiam jornais tanto quanto no momento do acontecido e as
próprias pessoas tendiam a esquecê-las pela comodidade de não sofrê-las novamente.

E assim a chuva de ares condicionados ficou na cabeça de cada pessoa que a viveu como uma
lembrança ruim que deveria ser evitada. Mas para o resto do mundo – os que não sentiram a
experiência na pele –, esta foi vista só como mais um dos mistérios da natureza que ninguém
explica. E essa era a verdade geral a que todos se agarravam, pelo menos até o dia em que começar
a chover aviões.

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COTIDIANO

O dinheiro é o papel que a gente não joga fora e guarda com a mesma devoção que destinamos ao
observar as coisas sagradas. O dinheiro é o sagrado do nosso suor. E a segurança que ele nos trás é,
por vezes, facilmente confundida com o cerne daquilo que ele não pode comprar. O dinheiro não
compra o amor, mas trás, na maioria das vezes, todas as suas características.

Luciana sempre viveu uma vida difícil, sua mãe, desde muito cedo a obrigou a trabalhar nos lares
de terceiros, onde conheceu desde novinha o que era o desprezo que os outros sentem por
aqueles que não pertencem ao seu sangue. Compreendera como poucas o valor que tinha o seu
espaço e como menos ainda, o valor que tinha o seu dinheiro.

E sempre muito pouco, esse dinheiro ajudava Luciana a cuidar da mãe. Pobre e doente Estela, que
já quase não enxergava em virtude de uma espécie de catarata, adquirida quando trabalhava numa
grande fábrica de sabão do seu bairro, resultado de exposição em excesso aos vapores da soda
cáustica.

Do pai, o que Luciana tinha era somente uma fotografia amarelada. Na Vila Papelão, lugar onde
vivia, esse era um luxo a que poucas meninas tinham acesso: a lembrança de um dia ter tido um
pai. Os pais naquele lugar eram seres sem alma, quase nem mesmo garantiam o respeito ou a
admiração das filhas.

Luciana e Estela vivam juntas, pequenas, rodeadas de pobreza numa vila em que até mesmo o
nome denotava pouca expectativa. Estela, estrela. Luciana. Amanhã é segunda, “dia de branco”,
como dizia Maricota, velha manicure do bairro, ao profetizar a dura semana do pobre daquela
região. 1986. Muita chuva, muita doença, alguma ajuda e morte quase certa. Anjinhos voavam todo
dia, mas muitos mais chegavam e ali permaneciam. Grandes barrigas que não expunham fartura e
os olhos cada vez mais fundos à medida em que profunda era também a fome.

Amanhã é segunda, Luciana. E é futuro também.

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POLARÓIDES

A primeira vez que entrei na alcova de um homem, ela tinha cheiro de rosas e Alma de Flores,
tinha santos pela parede e tapetes de fitilhos pelo chão. A cama estava no canto envolta na
penumbra daquela manhã chuvosa sob o próprio amontoado das roupas que cheiravam ao sol do
dia anterior. Os santos pareciam me observar e trocar entre si olhares de cumplicidade, como que
a jurar segredo a respeito do que acontecesse naquele lugar. A primeira vez que toquei o corpo de
um homem, esse momento não aconteceu.

Quando eu era criança, as primeiras experiências que me chegavam através do sexo desconexo e
do meu apurado sexto sentido me diziam do susto que era a descoberta do outro. E as luzes que se
acendiam no momento dessa solitária descoberta, tal como aconteceria por anos e anos a fio,
apenas me surpreendiam nos primeiros instantes, como que a dizer pra não perder de todo aquela
inocência primeira que somente nos tempos de infância possuímos. E o amor ainda era um
estranho pra mim. Mas isso era tão carnal, tão palpável na culpa e tão comprovável na sensação,
que era impossível conceber que o sentimento já não estivesse ali. Quando o descobri, anos mais
tarde, apenas percebi que o reencontrei, já que nunca mais havia sentido orgasmos como na
infância.

Mas o medo, esse companheiro inseparável, me ensinara tanto como são as pessoas e como elas
sabem causar receio, mesmo nos momentos mais íntimos. E assim, aprendi a entrar no jogo social
de uma maneira que poucos jogadores conseguiriam, modéstia à parte. E isso fez de mim muito do
que sou hoje, das lembranças que carrego comigo e que nesta noite chuvosa queimam à revelia dos
pingos que custam em manter minha janela novamente observável. E nunca me senti tão
clarividente ao olhar através delas, à revelia do fato de estarem tão turvas.

Mas, uma noite, como acontece com qualquer bom jogador, nos detemos em determinada jogada
sem saber que era aquela, a maldita, a jogada que poria fim aos nossos dias de jogo e que nos
ceifaria o prazer da vitória fácil. Nessa época eu era um vampiro.

Era madrugada, porém ainda havia resquícios daquela noite que era tão quente quanto o que se
pensava no Bafômetro. Aquele lugar cheira à libertinagem e nenhuma outra atmosfera é tão
propícia ao acesso ao sexo fácil quanto aquele. Me sinto gratificado às vezes, por fazer parte
daquele lugar. Não que não engrosse a fila dos que têm vergonha dele. Dos que cospem-lhe o
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chão, para mais tarde ir vê-lo, brilhante e convidativo como uma mãe e tão salvador quanto a
própria Virgem Maria. Já exorcizei muitos demônios depois de passar por lá. Aquele lugar é uma
verdadeira igreja. Orai, pois, pelos que lá jazem sem que eu ainda os tenha encontrado.

Sou um caçador, acredito. Não que ninguém nunca tivesse me dito isso. Mas nunca uma presa é
igual à outra e não encontraria outra tal que se assemelhasse àquela. Era especial, mas o prazer da
caça destrói o caçador assim como sua vítima. É isso que nos faz tão especial: uns pescam homens,
outros – como eu - caçam-nos. E isso nos faz tão humanos, tão atraentes que os que nos beijam
nem sequer sentem as infecções causadas pelos cortes lascivos que outros, já, por sua vez,
provocaram no júbilo de um prazer tão sujo quanto gratificante, tão mágico quanto real e tão
danoso quanto gostoso no sabor do sangue que sai das nossas mordidas.

E eu o encontrei naquela madrugada. Saudável e contente, porém ansioso para que algo
acontecesse.

Me aproximei daquela possível vítima como quem se aproxima cuidadosamente de um animal que
a qualquer momento pode lhe escapar de maneira irreversível para dentro de uma selva onde, por
certo, outra fera o devoraria. De longe, apesar da fumaça de maconha, do cheiro forte do perfume
que as lésbicas de Cabrobó usavam, senti seu cheiro que mesclava Humor e Kaiak dentro de uma
só fragrância com notas frescas de suor que saía de suas calças como um feromônio que as moscas
fêmeas exalam para atrair seus machos.

Mas, ora vejam só! Aquela pele tenra escondia ainda um buço recém colocado ali pelas mãos do
tempo e da testosterona. Eram fios poucos e parcos, porém, de uma grossura invejável.
Certamente deveriam espetar o rosto do caçador que, mais afortunadamente, pudesse encostar-se
nele para sentir daquele nobre animal, todo o gemido do pedigree escondido em séculos de
evolução que culminaram naquele ser perfeito, em prol do qual arriscava eu, assim como muitos
outros antes e depois de mim, anos de status social e aceitação familiar para estar junto e devorar
assim, um pouco da juventude escondida sob aquela tenra pele, daquele olhar fugidio que somente
o mais parnasiano dos poetas conseguiu imprimir em suas Marílias. Aquilo era minha Marília e eu
a queria como um Homem quer seu ar, como o corpo precisa do suor para esfriar os calores que
lhe impõe o sol, impiedoso em queimar, mas clemente em mostrar, com sua luz, tudo aquilo que

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compensa o risco do câncer, da AIDS, das inúmeras pústulas e, por fim, da condenação cristã ao
inferno, seja literal ou não, como ainda discutem até hoje os teólogos gays e heteros.

Cheguei mais perto e encontrei nele um quê de Fofão, mas com os lábios róseos do Dom Pedro
que outro Pedro, o Américo, retratou ao lado da pátria como uma flâmula verde. E eu ali,
ameaçando-o com meu simples olhar, imaginando as mãos correndo sobre a pele e levando-o a
sujar-se mais e mais com aquilo que mais tarde procurará ele em mim, compensando assim o que
nele outrora procurei. Nosso ciclo natural é perfeito. E que ninguém ouse extingui-lo.

Naquela hora estava eu já eufórico. Eu precisava daquela pele, assim como nunca precisei antes de
nada. Meu instinto agora misturava tudo o que ali sentia de maneira desconexa, de modo que em
pouco estava já eu cheirando as cores e sentido a luz, vendo o som, ouvindo os toques, mesmo os
mais imundos que saíam dos banheiros-quartos e suas latrinas-relicários, porque aquele lugar não
poderia jamais ser apropriado a uma criatura tão pura quanto a que meus olhos agora fitavam e
meu corpo em êxtase ansiava.

Com cuidado ofereci-lhe um copo de cerveja. Não sei por que, mas ele aceitou de pronto e eu
senti seus dedos acariciarem lascivamente aquele copo. Em pouco tempo estávamos já
conversando com naturalidade surpreendente para quem tinha na mente tanta imundície quanto a
que eu tinha e pretendia mostrar-lhe. Ele era santo para mim. E eu ansiava a hora de encontrar
naquele corpo o espaço que era meu, que em pouco tempo seria a razão de mais uma destruição,
perfeitamente somável às demais no meu currículo.

Não me lembro mais do nome daquela criatura que encontrei naquela noite tão despretensiosa,
mas fato que logo, logo conversávamos sobre preferências sexuais como quem escolhe num
cardápio aquilo que melhor lhe apetece os sentidos. E ele se mostrou extremamente
condescendente com minhas taras e desejos ocultos. Tanto que me senti na liberdade de um
caçador cuja presa sobrepujada tenta acariciar na tentativa de compreender-lhe um pouco da
agonia de estar em uma situação inferior à daquele homem que agora, diante de si era quase um
deus, com seu destino nas mãos.

Minhas caricias nada tinham de carinhosas e parnasianas, antes, eram as de um animal, um animal
rasgando a gordura naquelas coxas, nutrindo-se assim com os arrepios que causava na vítima. Seus
gemidos ainda hoje me acordam na madrugada sombria da reclusão a que me penitenciei
Ricardo Silvio de Andrade
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resignadamente. Eram carícias que rasgavam a libido, liberando a malicia e a corrupção necessária
ao nosso ato de amor. Amor? Sim, amor! Amor sujo, mas que atrai como o mais baixo dos
escravos ama ainda seu opressor, como um vivo procura desesperadamente o suicídio, mas que
também constrói longas histórias de amor sui generis.

Logo o álcool nos manteve numa sintonia perfeita e fomos à sua casa. Era já mais tarde ainda
naquela madrugada, de maneira que os primeiros galos já anunciavam o vir do sol a nos
surpreender na cama a chamar-nos de animais e nos penitenciarmos com mãos, pés boca, corpo e
alma, numa condenação prazerosa e perigosa.

Meus dentes doíam na sua raiz e meu coração acelerava cada vez mais enquanto sentia suas costas
brancas arquejarem-se a cada investida minha. A pedir-me que lhe mordesse e lhe marcasse.
Minhas unhas adquiriram o condão de acalmarem-lhe de maneira surpreendente e meus pés, antes
tão sujos, agora saciavam sua língua nervosa e sedenta de dominação. Nosso prazer era tudo o que
nos consumia naquele momento. Facas e talheres sobre a pia da cozinha testemunhavam na
quitinete apertada nossa capacidade de amarmos de maneira escandalosa e silenciosa ao mesmo
tempo.

Senti primeiro algo salgado na língua. Aquela sensação antes tão comum quando encontrada na
intensidade daqueles momentos, me surpreendeu em função do fato de que não advinham de
parte obvias do corpo: não era esperma, muito menos urina. Denunciavam uma espécie de sabor
diferente, acordando em mim, genes que nem mesmo eu sabia que existiam. E, como no filme
Crepúsculo, de alguma maneira louca, incontrolável, me senti disposto a procurar mais daquele
sabor. Ele denunciava já alguma tentativa de afastamento quando forcei sua cabeça sobre o estrado
da cama. Naquele momento outra pessoa, um estranho caçador do mau se apoderara de mim e,
ao mesmo tempo, tinha minha permissão para realizar-se naquele tanque de emoções em que
imergi a ambos de maneira irreversível.

Não demorou e ambos eu, ele e o caçador estávamos já em viva batalha, cada um querendo se
impor. Eu o beijava enquanto rasgava-lhe a pele das costas com as unhas e ele gemia no medo de
ser descoberto, posto à luz da maioria ignorante para ser julgado como pederasta e, de qualquer
modo, condenado a outro esquartejamento. Eu me impunha ao caçador e lhe acariciava as partes
íntimas como quem queria mais prazer na dor do outro do que no meu sexo, mas ele se mantinha

Ricardo Silvio de Andrade


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no controle da situação e investia sobre sua nuca, sobre seu cabelo e seus lábios, fazendo com que
o odor de saliva ressecando sobre a pele se sobressaísse às fragrâncias que outrora me trouxeram
tanta satisfação, de modo que, envergonhado da minha atitude, comecei a beijar-lhe, não deixando
ao demônio outra opção senão molestar-nos a ambos através de um esfregar frenético nas paredes
do quarto.

Esfolados, ele e eu não compreendíamos a nós mesmos, e ele compreendia que o terceiro
elemento queria sua vida, que eu queria seu calor, que ambos queríamos a ele, tanto em carne
quanto em espírito. Aquele ser era dotado de uma intelectualidade superior à nossa e
compreendeu o quão inútil era rejeitar aquela oportunidade de conhecer, antes de qualquer outro
de nós, caça e caçador, um destino sublime e libertário, soberbo e humilde, uma honra a poucos
concedida: morrer de amor.

Senti seu braço rodear o pescoço do seu algoz e ele, o terceiro, lamber-lhe as bochechas, sentindo
dessa maneira aqueles fios de barba cheirando a perfume. Senti uma agonia profunda, como um
engasgo com meu próprio vômito. Eu não queria ver aquilo, mas ele me mostrava com ressentida
violência, me amava por lhe dar aquele ser maravilhoso, subjugando assim a ambos e
recompensando-nos ao mesmo tempo.

Senti na jugular da minha presa o sangue a pulsar de maneira provocante e sensual. Olhei antes
aquele volume líquido a alimentar seu cérebro, a manter-lhe úmidos os olhos que mais tarde eu
fecharia no desespero do homicídio. Me apaixonei naquele instante.

Senti também o mau, o terceiro, a empurrar minha cabeça sobre aquela região que conservava
ainda o perfume de outrora. Seria eu? Seria ele o culpado? O destino estaria brincando com
ambos quando nos pôs ali naquela situação, ou Deus e o diabo realmente existiam? Não conseguia
deixar de pensar na agonia dele, mas não conseguia deixar de pensar na dádiva daquele sangue
puro, ainda concentrado no coração de maneira impulsiva. Não queria deixar de olhar toda aquela
vida que se mantinha equilibrada internamente, enquanto meus ouvidos levavam à mais escura e
virgem região mnemônica do meu cérebro o arquejar daquele ser que eu santificara através do
meu pecado.

Sua pele agora estava arrepiada e o coração acelerado. Ele não lutava mais como antes, porém, me
dizia coisas numa língua incompreensível que eu confundia com a voz do caçador que invadira
Ricardo Silvio de Andrade
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nosso quarto. Que queria ele dizer? Estaria vendo ele o caçador? Ele me pedia que sentisse seu
sabor. Mas eu não queria todo aquilo só pra mim. Queria gastá-lo aos poucos com o mundo,
queria viver proibitivamente meu amor com aquela presa que soube me prender tão bem quanto
eu havia aprendido a dominar as que vieram antes dela.

Mas o caçador me pedia, me ordenava que lhe devolvesse o controle. Onde eu estava que não
conseguia mais por a minha razão àquela emoção maligna que me pedia coisas inomináveis
naquele momento? Olhei mais uma vez o pescoço branco e tenro, os fios da barba a riscarem,
como a chuva que cai lá fora, o seu pomo-de-Adão, fazendo-o ainda mais vítima, mais sensual, me
excitando num orgasmo que transcendia meu pênis e me pedia que desse ao caçador o controle.
Não resisti muito tempo. Fechei meus olhos e ele veio com tanta fúria que lembrava um tranco
num carro em alta velocidade.

E o veludo daquele pescoço se rasgou com a mesma consistência de uma fita de látex puro úmida.
E a epiderme estraçalhada molhou-me o peito com o sangue que jorrava daquele veio profundo e
se confundiam com as lágrimas que ele silenciosamente soltava, vertendo-as também sobre meu
rosto, numa espécie de banho sacro, uma experiência completamente renovadora.

Não engoli, entretanto, o sangue. Enquanto ele arquejava pedindo inutilmente ajuda, o caçador
lambia-lhe a ferida, aumentando ainda mais o ardor sobre a área afetada. Eu sentia ainda extasiado
o cheiro férreo do sangue sobre a minha pele enquanto cuspia-lhe grossos jorros de saliva e sangue
sobre sua região púbica. Estávamos felizes e saciados, os três.

Logo, entretanto, o galo cantou e o sol mostrava já à face do dia recém chegado a cena: sangue,
roupas pelo chão, marcas de luta. Pelo visto, muito mais além de minha experiência se processou
aquela noite. Não pensei. Me vesti às pressas, cobri o corpo com o lençol ensangüentado e tratei
de sair antes que as pessoas começassem a transitar pelas áreas comuns do prédio, escondido pela
escada de serviço. Nos demais apartamentos, as pessoas se preparavam para sair à rua, viver suas
rotinas vazias.

Meu coração chorava, mas, como um pai bárbaro eu o calava. Minha madrasta razão me pedia
para fugir, o quanto antes. Queria me ver livre e longe daquele primeiro e verdadeiro amor. O
caçador ficara naquele quarto, eu tinha certeza. Ele queria seu quinhão sobre tudo aquilo. Mais
valente que eu, soube por bem ficar para ver o que mais ia acontecer.
Ricardo Silvio de Andrade
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Comprei uma passagem às pressas. Antes, me certifiquei de não ter esquecido nada no quarto.
Éramos discretos, felizmente. Abandonei pelo meu amor minha identidade, minhas preferências e
hoje vivo em terras estranhas, num êxodo que me expõe mais que as denúncias falsas que surgiram
a partir do acontecido.

Hoje sou feliz, pois encontrei o amor e o sacrifício numa vida vazia, sem sentido e tão comercial
quanto o dinheiro que recebi pelos poucos momentos de sexo que vivenciei com minhas presas
anteriores. Já não choro mais. Nem meu coração, que virou um negro diamante forjado na
experiência recém contada.

Ricardo Silvio de Andrade


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OLHOS DE LAGOA

Terminávamos de teclar e eu recebi a sua foto via MSN. Era louro, tinha cabelos castanho-claro e
uma boca pequena e bonita. A parte inferior dos seus lábios era perfeitamente alinhada com a
ponta do seu nariz. Bem como recomendam os médicos que fazem cirurgias plásticas. Sua pele
branca mostrava o perfil de alguém acostumado com o pouco sol dos climas temperados, e sua
forma de olhar fixamente as lentes Carl Zeis davam a impressão de que estava implorando por
algo. A foto chegou e instantaneamente se abriu defronte minha pessoa.

Coloquei o zoom do computador em ação e fixei bem fundo seus traços na tela. Uma
aproximação maior dos olhos e a qualidade da fotografia era visivelmente alterada, tamanha a
proximidade que eu pretendera com o aproximar da tela. De repente, percebi que olhar só não
bastava. Queria mesmo era conhecer, tocar, sentir, perceber detalhes que não me eram legados
àquela atividade voyeur.

Passados alguns instantes debruçados na anatomia daquela pele branca, corri os olhos sobre a
região do nariz, das bochechas e, depois, pelos olhos. Ao mergulhar nos olhos daquela foto, estes
já não me revelavam muitos detalhes mais do que o que se poderia perceber ao olhar um mosaico
bizantino. Parecia, ao olhar de perto, uma aquarela, mais próximo ainda, um daqueles enormes
quebra-cabeças. E a Iris verde aos poucos ganhava tonalidades amarelas, depois, brancas e,
finalmente, compunha o verde-vermelho-azul resultante na ilusão de homogeneidade que, à
distancia, satisfazia tão bem ao meu sentido da visão.

Mais um zoom bem nos olhos, a Iris revelava em seu meio, um campo preto, um borrão analisado
tão de perto. É só. Era o que meus recursos técnicos me permitiam conhecer até a altura daquela
fotografia naquele estado. Qualquer um teria desistido de conhecer mais a partir daquela
informação. E se eu o olhasse em seus olhos com a mesma veracidade? E se eu estivesse a ponto
de imergir dentro de olhos tão ricos de maneira verdadeira, sem as restrições que os pixels me
impunham? Se eu conseguisse ver além daquela mancha?

De repente tudo se tornou possível. Sim! Se eu quisesse, de fato, poderia ver além daquele borrão.
Olhe! Parece que, aos poucos, como um telhado a que os cupins consumiram a madeira, deixando
apenas as telhas suspensas na tênue casca que desaba ao menor esforço, os quadros negros caíram,
se dissiparam de maneira lenta, como lâminas sob a água profunda de um novo oceano. E eu
Ricardo Silvio de Andrade
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estava sobre aqueles olhos e eles estavam prestes a me tragar. Os modos, as formas, tudo o que
estava ao meu redor, ao que parece, desapareceu e um calor gostoso e atraente percorria minha
espinha dorsal como se uma corrente elétrica estivesse em ação naquele momento. Seria aquilo
amor? Atração? Loucura ou psicodelia? Não sei. Meus olhos eram cegos e meus ouvidos pareciam
tapados com alguma espécie de cera, com alguma coisa amorfa que parecia se adaptar
perfeitamente ao espaço exatamente anterior aos meus tímpanos e tudo o que eu conseguia ouvir
agora era o bater ritmado do meu coração ante aquele enorme lago.

E alguma coisa, um hálito quente e úmido, subia pela região do meu peito, e eu sentia toda a
menta e o perfume estrangeiro sob meu nariz e aquele transe parecia não cessar. O lago erguia-se
sobre um enorme pilar de mármore verde, formando um canal, como um macarrão daqueles que
tem um furo no meio. Na sua extremidade superior, como que feito por algum artesão
minimalista, o lago abria-se em uma enorme zona circular, a parte mais extensa mostrava o espelho
d‟água, a menos extensa, o início do túnel compreendido pela parte mais cumprida do corpo do
macarrão. Eu sobrevoava aquela superfície de forma que o vento que seguia de todas as direções
revelavam o movimento incessante de mil e um canalículos, cada qual mais excitado que o outro,
confundindo-se na água morna daquele estranho lago.

Minhas pernas estavam dormentes, meus braços abertos como o Cristo na cruz. Mas meus olhos e
minha mente trabalhavam a mil por hora e aquele hálito simplesmente não cessava – meus ouvidos
pareciam captar alguma coisa vinda de todas as direções e que se assemelhavam, em primeiro, a
uma profusão enorme de pessoas gemendo em algum lugar distante. Depois, pude perceber que
era a mesma voz, repetindo constantemente a mesma fala, o mesmo som, mas em diferentes
entonações emitido de maneira homogênea em todos os sentidos. Não percebi o que era o céu
naquela região, pois tudo assemelhava-se a um caleidoscópio, ou a um espelho em um pêndulo
triangular. Em pouco tempo, minhas mãos sentiam calor. Eram os 36 graus Celsius que qualquer
ser humano emitia quando tocado em alguma região do corpo. Fechei ainda mais uma vez meus
olhos. Sentia uma aproximação estranha, uma atração física no mais claro plano que a palavra
determina.

Ao abrir novamente meus olhos, percebi estar de maneira cadente, me aproximando ainda mais
daquela misteriosa zona escura que revelava-se agora cada vez menos perigosa e mais interessante
possível aos meus olhos e às minhas mãos. Compreendendo esse sinal, ao que percebi, estas
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aproximaram-se da água morna daquele lado, e começamos, aos poucos, a imergir, mãos,
cotovelos, rosto, cintura... todo o meu eu estava no meio daquele misterioso círculo e em franca
imersão, caminhando rumo ao espaço escuro no meio dos canalículos. Meu medo agora cessara
por todo o tempo que o mundo ainda dispunha, mas minha curiosidade, ao contrário, se via cada
vez mais aguçada ao ponto de me ver tal qual girino na lagoa, “cavando” a água a fim de ver minha
chegada ao fundo daquele lago. O meu transe somente me deixava ainda mais estimulado naquela
viagem rumo aos olhos do outro.

Aos poucos o descer parou. Estava eu estacionado logo abaixo do canal. Sob meus pés, uma lama
amorfa estendia-se por toda a extensão de um salão ovalado, sua cor e sua forma aparentavam um
cobertor macio e úmido, mas, depois, percebi que, espaçadamente, pequenos reflexos vinham do
exterior, projetavam-se sobre aquela região, e formavam uma imagem que, à primeira vista, não
consegui distinguir. Era então formada uma trilha, primeiro branca, depois brilhante que se
dissolvia sem deixar vestígios, como se a luz atravessasse aquela lama e se sedimentasse no fundo
daquele enorme salão. Por um instante senti medo, mas, logo depois, preparei-me como
mergulhador olímpico e saltei de um trampolim imaginário pro centro daquele estranho espaço.

Imediatamente senti meu corpo dissipar-se em mil pedaços e ser, de fato, parte daquela massa,
daquele material. Depois, como numa unidade, percebi braços e pernas em oposição, mas
perfeitamente articulados, por fim, cheguei à câmara onde as imagens coletadas no salão anterior
se acumulavam e eram estendidas como cortinas ao vento, para brilharem aparentemente sem
ordem pré-estabelecida.

Toquei as paredes daquele espaço e, logo após a ultima cortina de imagem, aparecia uma
pequena camada de líquido que viria a mostrar depois uma espécie de parede solida. As imagens
agora eram perfeitamente visíveis, mas, ainda assim, não faziam sentido para mim. Risos, depois
partes de muitos corpos apareciam intercaladamente e depois desapareciam. Novas sensações iam
e vinham, mas eu já não distinguia nada naquele enorme salão decorado à moda hippie. Por fim,
fechei meus olhos e tudo aquilo desapareceu. Eu estava diante do meu computador desligado.
Minhas mãos nunca se sentiram tão frias quanto naquele momento.

Levanto-me, tiro meu jeans e meus tênis e me deito. A noite foi comprida, sem sonhos nem
lembranças. Não havia planos para o dia seguinte.

Ricardo Silvio de Andrade


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Petrolina, verão de 2009.

Ricardo Silvio de Andrade


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“Como uma batida à porta desperta o morador com o aluguel


atrasado, um grito vindo de dentro pra fora despertara algo intenso
naquela mulher que agora não tinha mais coração, não tinha mais a
mentalidade do século XIX e que amaldiçoava agora seu útero: era
a feminista perfeita, mas fora da causa, e, como um gato que se
prende sob a torneira aberta, sentiu nas pernas a ânsia de tudo que
ainda não andara e seus olhos lacrimejavam não mais de saudades,
mas do medo de não aprisionar na mente tudo que aquele mundo
oferece e mesmo a pele antes tão insensível, se deliciava agora com
o toque do vento e a umidade proporcionada pelo suor dos homens
que não serviam para nada”.

Ricardo Sílvio

Ricardo Silvio de Andrade

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