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Monica Fantin2
Investigar as relações das crianças com as mídias implica discutir certas questões
sobre a ética na pesquisa com crianças. Considerando a polissemia da palavra ética, aqui
seu sentido é entendido como “investigação a respeito de noções de bem e mal, justo e
injusto, do conjunto de valores que os homens admitem por tradição, por hábito ou pela
adesão a um conjunto de crenças.” (NASCIMENTO, 1985, p. 259). Diante do campo
vastíssimo que envolve este objeto de estudo da filosofia, não é nosso objetivo fazer um
inventário sobre uma série de discursos em torno das noções de bem e mal, de justo e
injusto na pesquisa, mas sim discutir possíveis implicações éticas na pesquisa com
crianças.
Se ainda precisa ser melhor discutido e construído um código de ética para
pesquisa com pessoas no campo das ciências humanas e sociais, precisamos nos pautar
1
Este texto foi originalmente publicado em : GIRARDELLO, G; FANTIN, M. (orgs) Práticas culturais e
consumo de mídias entre crianças. Florianópolis: UFSC/CED/NUP, 2009.
2
Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC, linha de
pesquisa Educação e Comunicação. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo Infância, Comunicação e Arte,
NICA, UFSC/CNPq, entre diversas artigos publicados é autora dos livros No mundo da brincadeira:
jogo, brinquedo e cultura na educação infantil e Mídia-educação: olhares e experiências no Brasil e na
Itália.
no que há, procurando alternativas às limitações existentes nas resoluções dos conselhos
e/ou das comissões de ética de cada instituição. Afinal, se diversas especialidades
acadêmicas e profissões possuem um código deontológico que estabelece princípios,
fundamentos, sistema da moral e tratado dos deveres da ética profissional, no campo da
educação tal código ainda precisa ser construído.
Refletindo sobre pesquisa qualitativa em educação, Bogdan (1994, p. 75) situa
duas questões que têm dominado o panorama no âmbito da ética relacionada à pesquisa
com seres humanos: o consentimento informado e a proteção dos sujeitos contra
qualquer espécie de dano. Tais questões se revelam normas básicas que dizem respeito à
adesão voluntária dos sujeitos ao projeto de investigação consciente da natureza do
estudo, dos riscos e obrigações envolvidos, e à não exposição dos sujeitos a riscos
maiores do que os possíveis ganhos.
Alguns princípios éticos que têm orientado a pesquisa qualitativa em educação
podem ser assim resumidos em Bogdan (1994, p. 77):
• as identidades dos sujeitos devem ser preservadas a fim de não
causar qualquer tipo de transtorno ou risco, e o anonimato deve
contemplar não apenas o material escrito e os relatos verbais, como
também as imagens recolhidas durante a investigação;
• os sujeitos devem ser tratados com respeito a fim de obter sua
cooperação na investigação, e, ainda que haja o uso de pesquisa
dissimulada, existe um consenso quanto à explicitação dos
procedimentos de pesquisa e das informações sobre as formas de
registro das conversas ou imagens para obtenção do consentimento;
• a autorização para desenvolver a pesquisa deve ser clara e
explícita, e os termos do acordo quanto aos resultados da pesquisa
devem ser respeitados;
• a autenticidade no registro dos resultados implica a fidelidade
aos dados obtidos, mesmo que, por razões diversas, as conclusões
possam não agradar a alguém.
A pesquisa qualitativa envolve planos elaborados pelo pesquisador que não são
fixos e imutáveis como em certas pesquisas estatísticas e experimentais, muitas idéias
mudam e algumas perspectivas se modificam no processo. Questões inesperadas se
entrelaçam com hipóteses previstas, sugerindo novas configurações, sendo importante
que
o pesquisador não se prenda rigidamente ao plano estabelecido, mas
que seja livre para modificar suas idéias, para deixar de lado alguns
aspectos e examinar outros que se revelem mais importantes na
situação real ou que são mais importantes para quem opera no sistema.
(RABITTI, 1999, p. 31).
Em algumas formas de investigação aplicada ou diante de determinados
problemas de pesquisa, certos princípios podem ser irrelevantes e levar a uma
inadequação que dificulta sua aplicação, destaca Bogdan. Considerando que toda regra
tem sua exceção, isso pode ocorrer em situações em que é quase impossível proteger a
identidade dos sujeitos, e a posição do pesquisador oscila entre suas obrigações de
pesquisador e as de cidadão, dilemas que não se resolvem facilmente.
Ainda que possam existir linhas de orientação para a tomada de
decisão de caráter ético, as decisões éticas complexas são da
responsabilidade do investigador, baseiam-se nos valores deste e na
sua opinião relativa ao que pensa serem comportamentos adequados.
(BOGDAN, 1994, p. 78).
Assim, as questões éticas não se restringem aos procedimentos e atitudes durante
a pesquisa de campo ou investigação, pois dizem respeito à consciência de valores e
crenças de toda uma postura de vida.
Sobre a relativização dos princípios em relação ao anonimato, há situações em
que os sujeitos envolvidos aceitam divulgar sua identidade, e nesses casos, quando não
há riscos envolvidos, o anonimato pode ser quebrado. Parece que a aplicação dos
princípios éticos está vinculada ao objeto de estudo e se refere aos objetivos de cada
pesquisa, visto que certas questões assumem contornos diferenciados conforme a
pesquisa e os diferentes momentos da investigação.
Diante disso, a especificidade da participação das crianças na pesquisa assume
outros contornos na dimensão da autoria. Se a maior parte da legislação que se refere à
participação das crianças na pesquisa relaciona-se às pesquisas no campo da medicina,
visando a normatizar a prática de utilização de crianças em investigações científicas
com objetivos diagnósticos, terapêuticos e de imunização, a participação de crianças nas
pesquisas no campo das ciências sociais e humanas foi evoluindo para outras questões,
além da autorização de pais e/ou responsáveis legais.
Sabemos que as conquistas em relação aos direitos das crianças e dos
adolescentes foram resultado de muita luta, e que tais direitos sempre envolvem os “3
p”: proteção, provisão e participação. E isso também é válido para pensarmos as
pesquisas com crianças: o âmbito da proteção envolve a preservação da identidade, seja
do nome ou da imagem; o âmbito da provisão diz respeito a vários princípios educativos
dos procedimentos de pesquisa que fazem parte do processo formativo; e o âmbito da
participação está relacionado à dimensão de autoria e co-autoria revelada em falas,
ações, produções e reflexões no contexto da pesquisa.
Discutindo a participação das crianças na pesquisa através de relatos,
depoimentos, textos, produções delas mesmas e sobre o uso de suas imagens, Kramer
(2002) pergunta em que medida a criança é sujeito de pesquisa, e faz um estudo sobre a
questão da autoria, da autorização e das formas de devolução na pesquisa com crianças.
Tal reflexão tem inspirado muitos investigadores no campo da pesquisa com crianças, e
certos dilemas apontados pela autora ainda estão em pauta de discussão (FANTIN,
2008).
A busca do diálogo com crianças, que há muito tempo tem orientado nossas
pesquisas, mais do que um princípio metodológico, pode consistir-se em um princípio
educativo, assegurando que as vozes e as faces desses sujeitos apareçam na pesquisa. E
isso nos leva a problematizar algumas questões na pesquisa com crianças e mídias que
têm sido desenvolvidas no nosso grupo1, como por exemplo: a concepção de criança e
infância; o papel da criança na pesquisa; a preservação ou não da identidade; o uso de
imagens; a transcrição das falas; a devolução dos resultados às crianças e aos demais
envolvidos e muitas outras questões.
Tais questões podem ser assim resumidas:
- A transcrição das falas das crianças: quando se transcreve a fala das crianças é
necessário pensar nos critérios éticos e estéticos envolvidos no processo. Visto que a
oralidade possui uma estrutura própria, para não acontecer de a fala da criança ficar
cheia de erros, numa reprodução tosca e pretensamente ipsis litteris de sua fala, há que
diferenciar entre quando a fala é um registro do oral e quando é a produção escrita do
outro. Para isso, é necessária uma mediação criteriosa a fim de não deformar a fala das
crianças sem artificializar a fala e o contexto de sua produção.
Por mais que saibamos que em uma situação de pesquisa temos apenas
representações do que é a criança, e não certezas, às vezes podemos tender a uma certa
onipotência enquanto pesquisadores, como se bastasse só olhar os grupos e estaria tudo
“ali”. Assim, a relação entre crianças-crianças numa situação de entrevista coletiva é
muito instigante e desafiadora.
Como decifrar esses grupos? Afinal, os mais variados tipos de comportamentos
se manifestam, ora provocados pela forma e pelo conteúdo das perguntas do
pesquisador, ora pelas respostas dadas pelos colegas, ora pela postura do grupo, ora pela
gozação de um com o outro, ora pelo estímulo de um ao outro e ora por coisas
aparentemente sem sentido.
O prazer e a alegria das crianças em participar da entrevista eram visíveis em
todos os contextos pesquisados, e tudo se transformava em motivo de troca. O que para
alguns poderia significar uma oportunidade de socialização, de “aparecer”, para outros
poderia significar o constrangimento e a vergonha de se exporem, ao mesmo tempo em
que essas situações também podem favorecer a superação de vergonha, pela
“espontaneidade” com que certos temas circulam. Uma coisa que foi possível perceber
nas entrevistas e que chamou a atenção é que, independente dos jeitos de cada criança, a
disposição e o entusiasmo com que falavam dava um toque especial às diferentes
formas de participação.
A emoção das crianças que tinham ido ao cinema pela primeira vez – cerca de
40% das crianças de escolas públicas que participaram da pesquisa no contexto
brasileiro -, o brilho no olhar quando contavam cenas do filme, os gestos que faziam ao
representar algumas cenas, as lembranças que tinham, as análises - simples ou
sofisticadas - tudo isso fez perceber que a experiência de assistir ao filme ainda estava
muito presente na memória e no coração das crianças.
Em relação aos envolvimentos das crianças entre si, foi possível perceber em
quase todos os grupos uma “contaminação” de uns pela resposta(s) do(s) outro(s). Por
exemplo: quando alguma criança começava a contar algum fato, logo em seguida outra
criança lembrava de uma situação parecida, dentro do mesmo assunto. Esse processo
acontece com a maior naturalidade na tessitura das conversas, em que um fio vai
puxando outro, que por sua vez lembra de outro. Mas tal dinâmica, ao mesmo tempo em
que propicia lembranças significativas, também pode “dar carona” a outros assuntos que
pedem passagem e que talvez não aparecessem de outra forma. Também foi possível
notar um sentimento de solidariedade e ajuda mútua, em que um fica querendo ajudar o
outro, dizendo “Lembra aquela vez que você[...]”, “Ah, conta aquela do[...]” .
Em alguns grupos só de meninas houve uma desenvoltura maior para falar sobre
certos assuntos ligados aos sentimentos provocados por filmes de amor, de ação e de
comédias, fazendo-as comentar assuntos sobre suas paixõezinhas, quem gosta de quem,
quem já beijou quem. Em grupos mistos, alguns meninos mostraram-se um pouco mais
reservados a respeito desse assunto, talvez constrangidos pela presença das meninas.
Por outro lado, quando comentavam filmes de aventura e horror pareciam querer
impressioná-las com sua coragem. Talvez isso se deva ao sentimento ambíguo de
atração-repulsão entre os sexos, comum nessa idade, ou também devido à própria
constituição do grupo e da personalidade de cada um.
Em alguns grupos só de meninos, o desenrolar da entrevista foi gerando certa
cumplicidade e alguns, muito à vontade para contar seus segredos, “amores e paixões”,
pronunciavam-se sobre os filmes de amor e sobre esse tema. Alguns meninos fizeram
verdadeiras revelações sobre suas paixões, dizendo “eu amo a [...]” e como era comum
dois meninos estarem interessados pela mesma menina, queriam saber de mim se elas
haviam falado de quem gostavam. Ao mesmo tempo em que uns segredavam, outros
faziam questão de registrar suas confidências pedindo para mostrar a gravação às
meninas, mediando possíveis encontros entre eles.
Foi possível perceber também que nos diferentes grupos os tipos de
envolvimento e participação dependem muito do interesse despertado por cada
pergunta. Algumas vezes os meninos tomavam a iniciativa de responder e ver quem
falaria primeiro; outras, as meninas acabavam monopolizando a fala, sendo difícil
interpretar e generalizar esses comportamentos, como se acontecessem de forma
independente do grupo, do encaminhamento dado e dos assuntos criados nas conversas.
Além disso, a questão da “timidez” ou da introversão entre crianças é muito
interessante, pois ao mesmo tempo em que o silêncio é revelador, havia crianças que
não falavam muito, mas que, dependendo da pergunta ou do estímulo feito pela resposta
do amigo, eram as primeiras a falar, ainda que baixinho. Isso reforça a idéia de que o
conteúdo discutido provoca a participação e a forma que ela toma.
O desafio é saber até que ponto as crianças se sentiam tocadas ou provocadas
pelo conteúdo daquilo que era perguntado, demonstrando vontade de falar e
compartilhar; ou até que ponto aquilo não interessava e, portanto elas não respondiam
espontaneamente nem faziam muita questão de se envolver. É claro que o papel do
entrevistador é fundamental para assegurar a palavra a todos, estimulando alguns,
cortando outros, mas trata-se de um equilíbrio difícil. Além disso, a postura do
pesquisador envolve às vezes desequilibrar certas interpretações, e se deparar com a
dúvida sobre como reagir diante de certos temas que aparecem, como a morte, por
exemplo. Nesses casos, parece que a criança pede ou precisa ouvir uma palavra nossa, e
não só ter garantido seu espaço de falar.
Notas
1
Para citar algumas pesquisas: as dissertações de integrantes do NICA realizadas no
PPGE-UFSC Mello, (2007); Munarim (2007); Pereira, (2008); Silva (2008) ; Kreuch
(2008).
2
Para distinguir os textos “Crônica Berlinense” e “Infância em Berlim por volta de
1900” ou “Infância Berlinense”, ver Gagnebin (1994, p. 83).
Referências
BAUER, M.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis:
Vozes, 2002.
______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
______. Obras escolhidas II : rua de mão única. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
TOBIN, J. Good guys don’t wear hats: children’s talk about the media. New York:
Teachers College/Columbia University, 2000.