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Introdução-
Bem, alguém dirá, com razão, que se trata de um caso extremo de individualismo e de
vivência fechada da própria subjetividade. Mesmo assim, não há dúvida de que constitui
um sintoma da mudança cultural descrita pelo Pe. Joel Amado no capítulo 1 desta obra. Ele
mostra o quanto a volatilidade com que são vividos tanto o tempo como espaço, em
conexão com a mobilidade e a transitoriedade das relações e das opções, está a configurar
um novo tipo de crente: avesso à lei, a normas fixas e à institucionalização da experiência
religiosa. Daí decorre o grave questionamento sobre o que isto significa para os modos
tradicionais de transmitir a fé cristã1.
Essa mudança cultural manifesta-se de maneira muito clara nas relações inter-pessoais. O
cristão, como qualquer outra pessoa, experimenta a tentação de viver relações pautadas pela
transitoriedade, pelo escasso nível de compromisso e por um subjetivismo individualista.
Acresce que a forte tendência à comercialização e ao consumo afeta todos os aspectos da
vida, também a qualidade das relações entre as pessoas. Em conseqüência, parece
necessário e urgente fazer uma revisão do sentido e do fundamento das nossas relações
inter-pessoais.
Antes de iniciar essa revisão, convém fazer uma advertência prévia: importa muito não
demonizar, de saída, o individualismo e o subjetivismo atuais. G. Lipovestky faz a seguinte
observação a respeito do mais recente estágio da modernidade (que ele chama de
hipermoderna): no individualismo atual nem tudo é fechamento narcisista alheio a todo
compromisso social e ecológico. De fato, conforme este autor, a hipermodernidade está se
revelando muito mais complexa e ambígua do que poderia parecer numa primeira
impressão. Certamente, existe um individualismo a-social, fechado no próprio eu,
fortemente consumista e narcisista. Esta é uma atitude individualista irresponsável que
procura a felicidade particular a todo custo. Mas, no interior da hipermodernidade,
1
Cf. nesta obra, o cap. I.
2
Neste trabalho, a preocupação está centrada na qualidade das relações das pessoas cristãs,
influenciadas pelas tendências unilateralmente individualistas e subjetivistas. A reflexão
feita aqui pode servir também de fundamentação para o diálogo com pessoas não cristãs
que vivem um individualismo responsável. O que se pretende é mostrar que as relações
inter-humanas, realmente humanas e humanizadoras, entendidas sempre de maneira
dinâmica, são constitutivas do sujeito (indivíduo) humano. Dou por suposta aqui a
afirmação bíblico-cristã sobre a união inseparável entre a experiência do amor ao Deus da
revelação bíblico-cristã e o amor concreto ao próximo3. A minha intenção, neste trabalho, é
focalizar brevemente o alicerce antropológico necessário para poder vivenciar esse amor
em resposta ao amor incondicional e gratuito do Deus que é Amor, do Deus de Jesus Cristo
e nosso Deus.
O conteúdo da mensagem bíblica a respeito do ser humano criado à imagem de Deus (cf.
Gn 1, 26ss.) foi traduzido pela Igreja, na cultura ocidental, mediante o conceito de pessoa.
Todo ser humano é uma pessoa, sendo chamado a desenvolver a riqueza de dimensões que
a constituem. Focalizamos, a seguir, duas delas.
2
Cf. LIPOVETSKY, G., Os tempos hipermodernos. São Paulo, Barcarola, 2004; Id., Metamoforses da
cultura liberal: ética, mídia, empresa. Porto alegre, Sulina, 2004.
3
O tema da relação entre o amor a Deus e ao próximo tem sido bastante estudado teologicamente. Tem sido
também trabalhado, freqûentemente, na ação pastoral e na espiritualidade cristã. Apenas como um exemplo,
pode-se consultar: GARCÍA RUBIO, A., Unidade na pluralidade. O ser humano à luz de revelação e da
reflexão cristãs. São Paulo, Paulus, 2006, 4 ed., cap. 3 e 4.
3
Convém frisar bem que a dimensão de interiorização deveria estar sempre relacionada, de
maneira inclusiva, com a dimensão de abertura. E vice-versa. São dimensões da pessoa que
se implicam mutuamente. Podemos falar de circularidade, de realimentação mútua entre
ambas dimensões. É no encontro pessoal com os outros que a nossa identidade pessoal vai
sendo descoberta e desenvolvida enquanto que o aprofundamento da própria identidade vai
enriquecendo a relação com os outros.
Podemos perguntar ainda: será que a dimensão de interiorização não deveria ser
considerada também numa perspectiva relacional? A resposta parece que deve ser
afirmativa. De fato, a interiorização é a relação do eu, da pessoa com ela mesma. O termo
interiorização lembra-nos que a relação não se dá apenas para fora do sujeito, para a
exterioridade. Há também um movimento relacional do eu com a própria interioridade
pessoal.
Assim, pois, não é exagerado afirmar que a pessoa é toda ela relacional. E só pode se
realizar como pessoa (vocação pessoal) quando desenvolve, dinamicamente, a riqueza toda
de relações acima indicadas. O ser humano, nos diz a ciência atual, é fruto da evolução e
vive um processo evolutivo. É um ser inacabado, chamado a atualizar as potencialidades do
ser pessoa4. E as desenvolve, na história concreta, aprendendo a lidar com os
determinismos biológicos, psicológicos e sociais e a escolher entre as várias possibilidades
(indeterminismos) com as quais se defronta e com as que deve interagir. É como pessoa que
o ser humano vai exercitando a sua liberdade, condicionada e limitada, mas real. E, assim, a
pessoa se faz a si mesma, na medida em que aprende a optar com liberdade no concreto das
situações, assumindo as conseqüências de suas escolhas. É, também mediante o exercício
da liberdade, que a pessoa dá sentido à própria vida.
4
Não é este o lugar para tratar o tema da possível articulação entre a fé cristã em Deus criador e a visão
evolutiva da vida. Basta lembrar aqui que a teologia cristã, ao menos aquela mais atualizada, não vê
dificuldade para expressar a fé na ação criadora divina, utilizando a mediação da visão evolutiva da vida e,
especialmente, do ser humano. No interior do dinamismo evolutivo, a reflexão teológica situa a ação
transcendental criadora divina. A bibliografia sobre este tema é extensa. Para uma visão sintética, cf. Ibid.,
cap. 9.
4
Para nós, cristãos, também a subjetividade deveria ser uma realidade muito valorizada.
Somos pessoas, criadas à imagem de Deus, chamadas a nos desenvolver como sujeitos
livres e responsáveis, capazes de amar. O cristão não tem porque desconfiar da
subjetividade. Esta só é criticada na medida em que, fechando-se nela mesma, nega a outra
pessoa na sua novidade própria. De fato, temos experiência de que a subjetividade pode ser
vivida de dois modos muito distintos e até opostos: de maneira fechada ou de maneira
aberta6.
Comecemos pela subjetividade fechada. Como se trata de uma realidade muito presente em
todos nós, é fácil identificá-la. Sou guiado por uma subjetividade fechada sempre que
rejeito o “outro” precisamente como outro, como um ser pessoal distinto de mim. A outra
pessoa só é aceita na medida em que se ajusta ao que eu espero dela, que corresponde à
minha expectativa.
E como são vividas as relações entre pais e filhos, entre professor e alunos, entre o padre ou
o pastor e os fiéis, entre os membros de uma comunidade, entre colegas de trabalho etc.?
Isso sem falar das relações entre pessoas de distintas religiões, culturas, sexo etc. Com
quanta freqüência, é necessário admitir, são relações vividas na subjetividade fechada: o
5
Cf. Id., Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê?, Petrópolis, Vozes,
2007, 4 ed., p. 147.
6
Cf. ibid., p. 147-148.
5
outro não interessa na sua “novidade”. A pessoa só é aceita e estimada quando coincide
com aquilo que se ajusta ao que se espera dela.
Certamente, é fácil perceber que, levados pela subjetividade fechada, acabamos vivendo
relações desumanizadoras, relações que coisificam e instrumentalizam a outra pessoa,
impedindo ou obstaculizando que ela seja fiel à sua identidade pessoal.
E nem é preciso falar que a relação com Deus é também gravemente deturpada. A pessoa
religiosa, quando guiada pela subjetividade fechada, tende a manipular e instrumentalizar o
divino a serviço do próprio interesse e da satisfação das próprias necessidades. Deus não é
aceito na sua novidade e transcendência, mas somente na medida em que responde aos
desejos e necessidades da pessoa religiosa.
Por isso, a pessoa sendo guiada por uma subjetividade aberta, mesmo quando não encontra
a receptividade esperada, continua o caminho do amor-serviço, embora com o coração
sofrido. Jesus de Nazaré, no Horto das Oliveiras, vive em profundidade este tipo de
experiência. Angustiado, aflito, procura a companhia dos três mais amigos. É tão grande
sua necessidade de companhia, de experimentar algo de solidariedade, que os acorda uma e
outra vez. Infelizmente, eles não se mostram disponíveis. Contudo, a decepção não faz com
que Jesus volte atrás no caminho do serviço. Continua firme na sua missão, embora
sofrendo(cf. Mc 14,32-42).
E na relação com Deus, a pessoa vai aprendendo a aceitar Deus como Deus, na sua
transcendência, superando a tentação da manipulá-lo a serviço dos próprios interesses e
necessidades. Pode aceitar Deus que irrompe na vida humana, freqüentemente, de maneira
desconcertante e imprevisível. Certamente, no encontro com Deus, o ser humano pode
6
encontrar respostas aos seus problemas, só que se trata de respostas dadas conforme os
critérios de Deus. Em poucas palavras, na subjetividade aberta, Deus é respeitado, aceito e
valorizado como Deus. E, acolhendo Deus como Deus, aceita-se a interpelação e os
compromissos que o dom de Deus leva consigo.
- o “olhar” humano, pois o encontro humano começa com o “olhar”: ver e ser visto como
pessoa concreta. “Ver” humanamente e permitir que me vejam também humanamente.
Olhar penetrado de respeito e de reconhecimento, como Jesus fez (cf.
- a palavra humana, aquela que expressa algo da própria interioridade pessoal. Falar
humanamente e não de maneira meramente utilitária. E ouvir humanamente, acolhendo
com hospitalidade real a palavra que revela a intimidade da outra pessoa.
- o agir realizado junto com outras pessoas, oferecendo e recebendo ajuda, como
corresponde à realidade de nosso ser de criaturas e, assim, radicalmente carentes.
- tudo isto realizado na liberdade, assumindo, como uma verdade antropológica básica, que
existir junto e com os outros seres humanos faz parte da nossa humanização.
Aqui, convém chamar a atenção para o fato de que pessoas religiosas, comprometidas em
importantes trabalhos pastorais, têm a tentação de, sob o pretexto da urgência desses
trabalhos e compromissos, descuidarem o encontro interpessoal, que começa com o olhar
humano. E, assim, o trabalho pastoral, infelizmente, pode ser desumano, burocratizado,
impessoal.
Sim, é verdade que o outro pode ser um inferno (Sartre), mas só quando as relações são
desumanas, de dominação e de manipulação.
maneira bem simplificada, entendemos aqui por afetividade o rico e variado mundo das
nossas emoções e dos nossos sentimentos9.
Não podemos abordar aqui o tema sobre a importância da primeira infância na evolução
psico-afetiva da criança. É um tema bastante conhecido, que tem sido objeto de freqüentes
estudos10. Para a finalidade prática da nossa reflexão, contentar-nos-emos com ressaltar,
primeiramente, que o caminho para ir amadurecendo a nossa afetividade passa,
necessariamente, pela expressão/recepção sincera de sentimentos. E, em segundo lugar,
importa sublinhar a importância que tem, para o desenvolvimento da afetividade, uma
autêntica experiência comunitária.
Por isso, no concreto da nossa vida, amar as outras pessoas consistirá, sobretudo, em ajudá-
las a perceber e a desenvolver as qualidades e potencialidades que elas possuem, mas que
têm dificuldade para enxergar em si próprias. Assim, nossa afetividade amadurece, na
medida em que expressamos sentimentos sinceros de aprovação e de estímulo.
9
Sobre a origem da afetividade humana e sobre a distinção entre emoção e sentimento, cf. GARCÍA RUBIO,
A., Evangelização e maturidade afetiva, São Paulo, Paulinas, 2006, 3 ed., p. 64 -74.
10
Cf. ibid., p. cap. 4.
11
Cf. DOMINIAN, J., Maturité affective et vie chrétienne, Paris, Cerf, 1977, p. 70 ss.
8
Não, o outro não tem porque ser o “inferno” e a experiência comunitária não tem porque
ser uma dura penitência. Antes, pode e deve ser o meio para o desabrochar da
personalidade, para oferecer apoio mútuo bem como para curar algumas deficiências e
feridas do passado13.
12
Cf. GARCÍA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, cap. 15.
13
Digo algumas, porque, evidentemente, as feridas mais graves não podem ser curadas na experiência
comunitária. Elas exigem uma ajuda especializada. Seria grave engano esperar que a vida comunitária
religiosa (ou o casamento) fosse capaz de superar problemas mais graves de tipo psíquico.
14
Cf., nesta mesma obra, o capítulo de Maria Joaquina Fernandes Pinto. .
9
Claro está que isto só é possível, quando se vive a sexualidade numa subjetividade em
processo de abertura e numa afetividade a caminho do amadurecimento. Evidentemente,
será desumanizadora a vivência da sexualidade auto-erótica ou vivida de maneira
coisificadora da outra ou outras pessoas. Obviamente, tudo quanto foi dito anteriormente
sobre a subjetividade aberta e sobre a maturidade afetiva tem aplicação direta à vivência da
sexualidade humanizadora.
A pergunta é oportuna, pois as considerações feitas neste capítulo poderiam ser entendidas
de maneira intimista, como uma fuga da dureza apresentada pelos graves desafios
apresentados pelo mundo macro-social e pelo meio ambiente. De fato, ouve-se falar com
certa freqüência, também no âmbito das Igrejas: vamos cuidar das relações humanas na
família, no pequeno grupo de vivência, na comunidade eclesial e deixemos de lado, para
os especialistas, a preocupação com os desafios sociais, econômicos e políticos!
Certamente, uma visão dicotômica do ser humano está presente nesse tipo de atitude. Nessa
perspectiva dualista, as relações em tensão são vividas de maneira predominantemente
exclusiva. Assim, a dimensão das relações inter-humanas, no âmbito do encontro pessoa-
pessoa, tende a descuidar ou deixar de lado os desafios provenientes do âmbito macro-
social e ecológico. Ou vice-versa, a preocupação e o empenho com o mundo macro-social e
ecológico leva a descuidar as relações inter-pessoais.
Uma pergunta pode ser levantada neste momento: todo esse discurso sobre o valor
humanizador das relações inter-humanas e da experiência comunitária, não será uma ilusão,
quando consideramos como são, de fato, muitas das relações entre os seres humanos? A
pergunta é procedente. Devemos reconhecer que a relação com as outras pessoas pode ser
experimentada como uma fonte quase inesgotável de mal-entendidos e sofrimentos.
Por isso, é importante frisar bem que todo encontro inter-humano está perpassado de
ambigüidade, que não existe relação humana em estado puro nem encontro humano vivido
10
numa alteridade total e perfeita. A presença, misturada, do joio e do trigo de que nos fala o
Senhor Jesus (cf. Mt 13, 24-30) é uma realidade presente em cada um de nós. Nossas
relações, como o conjunto da nossa vida, estão penetradas de ambigüidade. A luz e a
sombra, o “homem velho” e o “homem novo”, a abertura e o fechamento coexistem na vida
de cada ser humano.
Aceitar esta realidade não tem porque levar à passividade. Ao contrário, constitui o alicerce
e a rocha firme, sobre os quais podemos edificar uma casa sólida, capaz de enfrentar a fúria
dos elementos.
É preciso ter cuidado com a tentação do perfeccionismo. Este constitui um engano, uma
maléfica ilusão. As relações humanas e humanizadoras não são “puras” nem perfeitas, mas
isto não significa que não sejam reais e valiosas. São as relações possíveis para seres
carentes e ambíguos, em evolução, a caminho de uma perfeição maior e tentados pela
realidade do pecado.
Certamente, o ideal deve ser apresentado de maneira fascinante, bela, perfeita como é a
bondade de Deus (cf. Mt 5,48). Só que, ato seguido, devemos assumir pessoalmente e
mostrar aos outros que esse ideal é vivido na ambigüidade inerente à caminhada atual, com
altos e baixos, com avanços e recuos, submetidos ao tempo e ao espaço bem como aos
muitos condicionamentos e determinismos, dentro e fora de nós, que afetam o nosso viver.
De modo especial, é preciso estar atentos ao peso que significa a realidade do pecado, tanto
pessoal como social. Assumida nossa ambigüidade, podemos e devemos caminhar no
processo de maior abertura e de um maior acolhimento dos outros como outros. Na
linguagem paulina, somos convidados a crescer, a amadurecer na existência do homem e da
mulher novos (cf. Col 3,9-10; Ef 4,23-24), passo a passo, cada um conforme o seu ritmo e
sua capacidade.
Elimina-se, assim, a dialética de tudo ou nada, profundamente desumana. Cada passo dado
na abertura aos outros é motivo de alegria e de ação de graças. E cada recuo ou fracasso,
embora dolorosos, não levam ao desespero, à depressão ou à angústia existencial. São
encarados com sentido do humor, talvez rindo entre lágrimas, como uma expressão da
realidade da nossa ambigüidade radical e das ambigüidade dos outros. E como novo
impulso para continuarmos o processo de amadurecimento da “nova criatura”(cf. 2Cor
5,17; Gl 6,15).
V. E quanto à felicidade?
Para este pesquisador, esses dois caminhos que, em outras épocas, pareciam opostos,
apresentam-se estreitamente relacionados, na hipermodernidade. Com efeito, observa-se
que, na procura da realização interior, de experiências espirituais e religiosas, de novas
formas de aprofundamento da consciência individual, o sujeito é levado, com muita
freqüência, a mudar de método, de orientação espiritual, de mestres etc. Quer dizer,
também nesse caminho espiritual, deparamo-nos com a tentação do mercado e do
consumismo. Aqui também os produtos são descartáveis, dependendo de que se mostrem
mais ou menos eficazes15.
Em segundo lugar, importa muito superar um certo receio que se tem desenvolvido em
ambientes cristãos em relação à felicidade e ao prazer. Trata-se de uma conseqüência do
dualismo e do seu companheiro, o pessimismo antropológico. O sofrimento e a dor
pareciam ser os caminhos mais adequados para o encontro com Deus. A alegria e a
felicidade eram reservadas para a outra vida, para a pátria eterna, enquanto se desenvolvia
um acentuado desprezo das realidades do mundo atual, especialmente do corpo e da
sexualidade.
Certamente, este é um clima pouco sadio que não corresponde à revelação de uma Deus
criador-salvador que nos ama de maneira incondicional e quer a nossa realização e a nossa
felicidade. E não corresponde ao Evangelho de Jesus Cristo, uma Boa Nova, exigente, sim,
mas alegre e libertadora. Boa Nova que, quando vivida, conduz, já no hoje, à bem-
aventurança, a uma felicidade real (Cf. Mt 5, 3.10; 13,16; 16,17; Lc 1,45.47; 10,23; 11,28;
12,37-38; Jo 13,17;20,29 ; At 20,35; Fil 4,4; Tg1,25; Ap 1,3...).
15
Cf. LIPOVESTSKY, G., A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo,
Companhia das Letras, 2007, p. 333-370.
12
Uma outra conseqüência do dualismo é o racionalismo, que tem levado a privilegiar a via
da razão, no encontro com Deus, deixando muito em segundo plano o caminho do amor e
da felicidade. Urge redescobrir, hoje, este segundo caminho (já percorrido especialmente
pelos místicos), contemplando a alegria e a felicidade de Deus na criação, vendo a ação
criadora de Deus como um belo jogo. Isto não é uma perspectiva superficial ou banal. Pelo
contrário, tem uma base bíblica sólida, que o nosso racionalismo não soube perceber 16. E a
salvação, por sua vez, consiste fundamentalmente na auto-comunicação do amor e da
felicidade de Deus.
Não, o cristão não tem por que ter medo de ser feliz! O cristão “sabe” que o ser humano é
um ser para a vida e para a felicidade, não para a morte e a desgraça. Em conseqüência, não
deve se “auto-desprezar” para amar os outros e a Deus. É justamente o contrário: o amor de
si próprio é o único caminho que permite o amor genuíno aos outros e a Deus. O amor a si
próprio nunca deveria ser confundido com egoísmo e/ou narcisismo. Este consiste no auto-
fechamento da pessoa (subjetividade fechada). Já o amor a si próprio é um aspecto
fundamental do genuíno amor. Não é possível um autêntico amor aos demais, sem a pessoa
se amar a si própria. Isto é um engano psicológico e, igualmente, uma ilusão teológica.
Esquece-se facilmente a recomendação de Jesus Cristo: trata-se de amor ao próximo como
a si próprio(cf. Mt 22,39).
Sim, o cristão procura também a felicidade. Ora, “sabe” que o caminho para a vivência da
felicidade inclui, de maneira fundamental, a abertura aos outros como outros(subjetividade
aberta).
Assim, podemos afirmar: a pessoa só poderá ser feliz e encontrar sua realização como
pessoa, como sujeito humano, quando aceitar e desenvolver, sadiamente, o seu dinamismo
relacional.
Conclusão.
Na perspectiva escolhida neste capítulo, deve ter ficado claro que a auto-afirmação do eu
separada das relações com os outros seres humanos leva à desumanização. É verdade,
vimos acima, que somos chamados a sermos senhores de nós mesmos. Entretanto, o
caminho para concretizar isso não transita pelo fechamento arrogante e depreciador dos
outros. O verdadeiro é o oposto: é na abertura acolhedora da novidade da outra pessoa e no
serviço concreto ao crescimento dela em humanidade, que vamos descobrindo e
desenvolvendo a nossa identidade e confirmando quem somos realmente! Ora, como poderá
consistir a realização do ser humano e a vivência da felicidade, justamente, na rejeição
daquilo que é o ser mesmo da pessoa, a experiência relacional? Pois, conforme foi visto
acima, o ser com e junto aos outros seres humanos é constitutivo da pessoa.
16
Sobre este tema, ver o importante trabalho do teólogo G. GESCHÉ, O Mal, em: Id., Deus para pensar, vol.
1, São Paulo, Paulinas, 2003, p. 49ss. .
13
levam a descartar o outro quando perde a sua utilidade. Esse tipo de relações desumanizam,
porque o ser humano não é levado a sério, não é respeitado nem valorizado como pessoa.
Quando isto acontece, o sujeito trai a sua vocação mais profunda. A fé cristã, pelo
contrário, dialoga com a subjetividade e com o individualismo na medida em que
vivenciam uma certa abertura à novidade do outro e que vão assumindo responsabilidades
face ao mundo do social e do ecológico.
Contudo, pouco ou nada adianta falar ou escrever belas palavras sobre a dignidade da
pessoa humana, se estiver ausente ou fracamente presente a experiência vivida de relações
humanas e humanizadoras, no interior das comunidades eclesiais. Nunca será demais
lembrar que a comunidade eclesial deveria ser um espaço privilegiado para essa experiência
de encontros realmente humanos, com as características acima apontadas. Sabemos que
uma das dimensões fundamentais do viver eclesial é a koinonia (comunhão fraterna).
Entretanto, como viver, com autenticidade, essas relações fraternas, se falha a base
antropológica, se esse estar junto e com os outros resulta gravemente deficiente?
O que foi apontada acima sobre a necessidade de comunidades reais, exige uma séria
revisão das prioridades pastorais. Não será uma delas precisamente o desenvolvimento de
comunidades onde a personalização de cada membro possa, de fato, vir a acontecer e onde
possam se desenvolver relações realmente humanas e humanizadoras?
Alguém poderá ainda perguntar: que garantia temos de que a abertura-acolhimento dos
outros seres humanos, da maneira aqui apresentada, é o caminho para a auto-realização da
pessoa e para a vivência de uma felicidade limitada, mas real? A melhor resposta é esta: a
verdade dessa caminhada só pode ser verificada na medida em que for vivida. “Faze isso e
viverás” (cf. Lc 10, 28).