Вы находитесь на странице: 1из 10

John Blacking ou uma humanidade sonora e

saudavelmente organizada
ELIZABETH TRAVASSOS

Introdução Apareceu originalmente no South African


Journal of Musicology, em 1984, com o título
John Blacking (1928-1990) integra o relati- “The study of ‘music’ as cultural system and
vamente pequeno grupo de autores de referên- human capability”, e foi incluído na coletânea
cia na etnomusicologia, e seu livro How musical póstuma editada por Reginald Byron (Bla-
is man? (traduzido para o francês, grego, italia- cking, 1995d, p. 223-242). Segundo o editor,
no e japonês) está entre os mais citados nesse o caráter teórico do artigo coloca-o em linha
campo de estudos, que ele identificou, diversas de continuidade com How musical is man? e
vezes, como antropologia da música1. Sua re- realiza, parcialmente, o desejo de Blacking de
percussão é ainda mais ampla, pois How musical sintetizar seu esforço para pensar antropologi-
is man? (Blacking, 1995b [1973]) é citado tam- camente a música. Como são poucos os an-
bém por musicólogos como obra exemplar da tropólogos que têm contato com seus textos, é
“orientação cultural” na abordagem da música necessário falar da originalidade da perspectiva
(Kerman, 1987, p. 235). Note-se que o prestí- de Blacking, o que faço após resumir informa-
gio de seu autor se consolidou numa disciplina ções biográficas que ajudam a situar historica-
que, apesar das origens européias, migrou para mente o autor2.
os Estados Unidos no pós-guerra. Com a fun-
dação da Society for Ethnomusicology em 1955 Uma carreira profissional de pianista pa-
e a publicação de livros como The anthropology recia ser, até o final dos anos 1940, a opção
of music (Merriam, 1964), Theory and method natural de John Blacking, que nunca deixou
in ethnomusicology (Nettl, 1964) e The ethno- de apresentar-se publicamente ao piano e que
musicologist (Hood, 1971), os pesquisadores se iniciou na música na infância, no coro da
norte-americanos passaram a ditar os termos do Catedral de Salisbury. O serviço militar na
debate relevante na disciplina. John Blacking Malásia, ao fim da Segunda Guerra, desper-
não apenas estabeleceu na Queen’s University of tou-lhe o interesse pela língua e cultura dos
Belfast (Irlanda do Norte) um centro de forma- nativos e o levou de volta a Cambridge para
ção em etnomusicologia que atraiu pesquisado- estudar antropologia social (1950-53). Foi
res de todo o mundo como também participou Meyer Fortes quem o aconselhou a buscar
de modo incisivo e original dos destinos da dis- orientação para pesquisas etnomusicológicas
ciplina na segunda metade do século XX. junto a André Schaeffner, no Museu do Ho-
“Música, cultura e experiência” é o primei- mem (Paris), num estágio de alguns meses. O
ro texto de Blacking publicado em português.
2. As informações biográficas apóiam-se basicamente
1. As duas denominações serão empregadas nesta apre- em Blacking (1995b [1973]), na introdução de Re-
sentação como sinônimas. John Blacking não fez ob- ginald Byron a Music, culture & experience (Byron,
jeções a nenhuma das duas nem deu a entender que 1995, p.1-28) e no sítio http://sapir.ukc.ac.uk/
uma delas sinalizava a filiação principal à musicologia QUB/Introduction/I-Blacking.html, consultado em
e a outra à antropologia. 03/09/2007.

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 1-304, 2007


 | E T

retorno à Malásia como conselheiro civil do teve como tema as canções infantis dos venda
Exército para assuntos aborígines frustrou a (Blacking, 1995a [1967]). As escolas de inicia-
esperança de lançar-se na pesquisa de campo ção feminina e o repertório de cantos, danças
sobre a música balinesa (em Sumatra). Conta e outros exercícios corporais das neófitas foram
Reginald Byron que Blacking se opôs aos pla- descritos em quatro artigos, recentemente dis-
nos de deslocamento dos nativos e, tendo que ponibilizados em C- juntamente com
deixar o serviço, encontrou trabalho como fotos, filmes e gravações sonoras feitas duran-
professor em Cingapura. Graças a Meyer For- te a pesquisa de campo4. Em 1958, começou
tes – a quem é dedicado How musical is man? a lecionar na Universidade de Witwatersrand
–, entrou em contato com Hugh Tracey, mu- (Joanesburgo), onde permaneceu até 1969,
sicólogo que dirigia a International Library of quando deixou a África do Sul em circunstân-
African Music, em Roodeport (África do Sul). cias pessoais dramáticas. Suas opiniões sobre
A instituição produziu uma grande coleção as relações raciais faziam de Blacking persona
de música africana lançada comercialmente non grata. A gota d’água foi seu relacionamento
na forma de long-plays. Contratado por Tra- amoroso com uma mulher indiana (que veio a
cey em 1953, Blacking rompeu com a prática ser sua segunda esposa). Ambos foram acusados
de curtas expedições destinadas à gravação e de infringir a proibição às relações inter-raciais
inaugurou, naquela instituição, a pesquisa de e acabaram deixando o país. John Blacking foi
campo tal como preconizada pelos antropólo- para o departamento de antropologia social da
gos ingleses desde a geração de Malinowski. Queen’s University, em Belfast. No meio aca-
Entre 1956 e 1958, viveu entre os venda, dêmico britânico, foi pioneiro ao conjugar os
com apoio da International Library of African recursos da dupla formação, em música e em
Music, depois da Royal Anthropological As- antropologia, para estudar música e dança de
sociation e da Universidade de Cambridge. A uma tribo africana. Uma das conseqüências
população venda contava, na época, com cerca desse pioneirismo foi sua participação mais
de 275 mil indivíduos, a maior parte distribu- ativa nos fóruns de etnomusicologia – entre
ída em aldeias nas montanhas Zoutpansberg eles a Society for Ethnomusicology e o Inter-
do Transvaal, praticando a agricultura e criação national Council for Traditional Music (antigo
de bois e cabras3. Uma parte da população tra- International Folk Music Council, criado em
balhava em caráter temporário em fazendas de 1947 no âmbito da U) – do que nos da
proprietários europeus, retornando periodica- antropologia. Seu nome ficou associado a uma
mente às aldeias. Cerca de 10% viviam em cida- original antropologia da musicalidade – enten-
des e haviam sido cristianizados. Freqüentavam dida como aptidão humana para a música e a
as igrejas cristãs de missionários e as separatis- dança –, mas não é mencionado nas histórias
tas, mantidas por africanos (Blacking, 1995a da antropologia britânica em geral (Kuper,
[1967]). Blacking aprendeu a língua tshivenda 1993). Venda children’s songs é, com efeito, um
e produziu material etnográfico abrangente so- trabalho de análise de 56 canções infantis cuja
bre a organização social e política, a iniciação leitura requer não somente conhecimento da
feminina, os cultos de possessão e das igrejas escrita musical e do vocabulário musicológico
cristãs separatistas. A tese com a qual obteve o
doutorado em antropologia social, entretanto, 4. Editado por Suzel Ana Reily e Lev Weinstock, pro-
duzido pelo Departamento de Antropologia Social,
3. Ver Blacking (1995a [1967], p. 15). Em How musical Queen’s University of Belfast. Disponível em http://
is man? ele fala de 300 mil venda. sapir.ukc.ac.uk/QUB/Introduction/TitlePage.html.

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


J B        | 

como curiosidade por um tema que não estava como ao livro de Siegfried Nadel The founda-
entre os mais típicos da antropologia africanis- tions of social anthropology6, o impacto de Lévi-
ta (e.g. linhagens, sistemas políticos, rituais, Strauss e de Noam Chomsky é evidente em
feitiçaria). How musical is man?, livro que reúne as con-
Bruno Nettl (1995, p. vii) observa que a in- ferências proferidas a convite da University of
fluência e respeitabilidade de John Blacking na Washington em Seattle, em 1973. No mesmo
etnomusicologia não se devem à formalização ano, organizou o simpósio sobre antropologia
de um método – à maneira do que fez Alan do corpo que pode ser considerado um marco
Merriam. Contudo, Venda children’s songs con- na curva ascendente de sua curiosidade teóri-
tém um programa de pesquisa que seu autor ca pela natureza da musicalidade, seus funda-
chamou de análise cultural da música5. Por- mentos biossociais e sua relação com a cultura
tanto, a observação de Nettl deve-se menos à (Blacking, 1977). Mas antes de comentar esses
ausência de um método passível de ser replica- aspectos que conferem originalidade à etnomu-
do ou testado em outros terrenos empíricos do sicologia de John Blacking, é necessário passar
que ao fato de John Blacking nunca ter escrito rapidamente pela etnografia venda e outras
um livro de etnomusicologia geral, e sim nu- experiências com a música africana, ponto em
merosos textos explorando problemas teóricos que tudo começa.
específicos, alguns deles de caráter nitidamente
desbravador. Por isso também, suas investidas
em questões de fundo, como as da natureza A análise cultural da música
da musicalidade em sua relação com a língua
e com a organização social, ou da experiência “Canções infantis” é um tema incomum
musical em relação à cognição e à cultura, não de tese em música e ainda mais inusitado na
se deixam reduzir a um percurso linear ou à antropologia social. Há algo intrigante nesta
identificação incondicional com uma corrente escolha de Blacking. Segundo sua explicação,
antropológica. as canções eram um pequeno enigma porque
Vinte e dois meses junto aos venda foram não soavam como outros repertórios venda. A
a iniciação etnográfica de Blacking e renderam análise musical confirmava que a maior par-
matéria para indagações e análises que se esten- te delas diferia estilisticamente da música das
deram até os anos 1980. Sua afinidade com a escolas de iniciação, instituições introduzidas
noção de estrutura pode ser percebida na tese pelos clãs que haviam chegado às montanhas
sobre as canções infantis e já nesse trabalho ela Zoutpansberg ao final do século XVIII e que
não corresponde apenas a relações sociais empi- haviam se tornado os chefes tribais venda7. A
ricamente observáveis, senão a algo mais abstra- dança tshikona, por sua vez, universalmente
to. Byron (1995, p. 5) reconhece nos primeiros
trabalhos de Blacking a marca do funcionalis- 6. Nadel, que foi colega de Fortes nos seminários de
mo e estruturalismo da antropologia britânica, Malinowski, tinha um perfil eclético: escreveu sobre
psicologia da música e Ferruccio Busoni, bem como
o que inclui Venda children’s songs. Embora as
programas de música “exótica” para a Rádio Viena
referências à noção de estrutura social sejam (Kuper, 1993, p. 68).
constantes nesse e em outros trabalhos, assim 7. A população venda estava dividida em duas categorias
sociais: membros dos clãs comuns, whasiwana (que
5. V. a síntese dos pressupostos da análise cultural da o autor chama commoners) e membros dos clãs dos
música no artigo de seu aluno José Jorge de Carvalho chefes, whakololo (chamados por Blacking rulers ou
(2002). nobles).

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


 | E T

praticada por venda de todos os clãs, revelava Vejamos o sentido desta síntese.
ligações estilísticas com a tradição heptafônica Venda children’s songs tem início com a apre-
dos cantos infantis. Por ser pouco provável que sentação dos conceitos musicais da tribo. Na
Blacking tenha restringido a análise a um estilo tradição etnográfica de tradução das categorias
que representasse com mais autenticidade a tra- e sistemas classificatórios nativos, ele discerniu,
dição, a opção pelas canções infantis tem outros na terminologia musicológica, nos instrumen-
motivos. Pode estar ligada, talvez, a convicções tos musicais e na música venda propriamente
acerca do lugar da música na vida da espécie dita, uma organização tonal, i.e. organização
humana, convicções que antecedem os textos das alturas dos sons e das relações intervalares.
que tratam diretamente dessa matéria. Com O termo muthava designa a fileira de teclas do
freqüência, Blacking referiu-se à naturalização lamelofone portátil chamado mbila (acionadas
da distribuição desigual da musicalidade entre pelos dois polegares do instrumentista). Tam-
os europeus de sua época e à própria concepção bém são chamados pelo mesmo termo mutha-
de musicalidade (musical hability), bem diversa va cada um dos jogos de 24 ou de 12 tubos de
daquilo que ele entendia como tal. A pesquisa bambu ou junco (os jogos são como uma flauta
de campo deu-lhe muitas oportunidades para de pã desmembrada cujos tubos são soprados
observar fatos relativos à socialização das crian- por indivíduos diferentes, na técnica de alter-
ças venda nas atividades de música e dança. As nância). Os venda usam dois jogos de flautas: o
fotos de seu livro são eloqüentes, assim como de 24 tubos tem as alturas dos sons ordenadas
seu relato. Ele constatou, por exemplo, que a segundo uma escala heptatônica; o de 12 tubos
aquisição de habilidades musicais não era di- é ordenado segundo uma escala pentatônica.
tada pela evolução psicomotora dos indivíduos, O centro tonal das escalas é chamado phala; o
e sim por normas e crenças acerca dos tipos de som que conduz de volta à tônica – algo como
música e dança. Somente tornavam-se músicos a sensível da tonalidade no Ocidente – é dito
excepcionais os indivíduos nascidos em determi- thakhula e situa-se um tom acima do phala.
nados grupos sociais, de quem se esperava que Cada som na escala heptatônica tem um som
produzissem música (Blacking, 1980b, p. 598). “acompanhante” uma 5ª abaixo. Isso significa
Sua aptidão era igual à dos demais venda, mas que cada som forma, com a 5ª inferior, um in-
eles eram socialmente solicitados a desenvolvê- tervalo percebido como consonante. Blacking
las. As canções infantis apresentavam graus va- descobriu, assim, que a música venda é melódi-
riados de complexidade e não eram introduzidas ca e harmônica, portanto dotada de princípios
a cada geração numa ordem linear do simples ao que organizam as simultaneidades e prescrevem
complexo. O pequeno enigma da ligação entre a evitação de alguns intervalos. Com essas evi-
as canções infantis e os repertórios de adultos foi dências, contestou os etnomusicólogos como
resolvido pela análise cultural da música, méto- Hornbostel, que havia avançado a teoria da
do que ele sintetizou como análise da experiência “pura melodia” dos “primitivos”, conceituada
cultural subjacente à música que subjaz à música: como sucessão de sons decorrente das inflexões
da língua, das necessidades de expressão e dos
My analysis is therefore an attempt to unders- ritmos respiratórios, mas não da racionalização
tand the formal, and incidentally the expressive, da disposição dos sons conforme consonâncias
meaning of music by means of a formal analy- e dissonâncias.
sis of the cultural experience behind the music Os venda entendem que duas melodias são
behind the music (1995a [1967], p. 197). equivalentes se os sons de uma delas mantêm

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


J B        | 

com os da outra a relação de acompanhantes. dívida para com Alan Merriam (Blacking,
Como ele insistiria mais tarde (1995b [1973], 1995c [1971], p. 55), mas certamente não
p. 99), o princípio que torna duas melodias achava satisfatória a idéia de que música é
equivalentes harmônicas é social, do mesmo comportamento padronizado e aprendido. A
modo como são de natureza social a distribui- locução “análise cultural da música” não foi
ção das flautas entre 24 ou 12 indivíduos e a tomada de empréstimo a Merriam; foi criada
polirritmia dos tambores executados em câno- por Blacking por analogia com a “análise fun-
ne por três indivíduos. Quando são tocados cional” proposta pelo musicólogo Hans Keller.
simultaneamente, os tambores geram padrões É curioso observar que os musicólogos de in-
que podem soar como uma seqüência ininter- clinação formalista (como H. Schenker), que
rupta de articulações isócronas. Só a observa- advogam a análise das obras enquanto obje-
ção direta permite entender que, na verdade, tos autônomos, e os estruturalistas (como N.
os tambores tocam todos um mesmo padrão Ruwet e J.-J. Nattiez) são os que mais interes-
iâmbico, só que cada um deles está deslocado sam a John Blacking quando se trata de forjar
temporalmente com relação aos outros por ter instrumentos para descobrir – como ele diz – a
iniciado depois, em cânone; sua acentuação, música por detrás da música. Mas ele queria
portanto, também é deslocada com relação à ir além da elucidação das estruturas musicais,
dos demais. A audição do som dos tambores na direção dos fatores não-musicais que estão
numa gravação não revelaria o princípio social na raiz da produção dos sons musicais, o que
do cânone, o que mostra que as configurações o distancia dos formalistas e da semiologia es-
sonoras podem ser objeto de uma escuta su- truturalista da música:
perficial incapaz de discernir o que se passa
efetivamente na música. As exigências da ati- ...there are many non-musical factors which re-
vidade musical coletiva e os modos de partici- gulate the structure of the music, and any analy-
par individualmente dos conjuntos são fatores sis of the music is as much an analysis of these as
que determinam os sons gerados. Daí a idéia, it is of the musical sounds that emerge (1995a
freqüentemente defendida pelo autor, de que [1967], p. 195).
o etnomusicólogo deve estar atento aos fatores
não-musicais que geram a música. Corpo e cognição
Mais tarde, Blacking chamou de estrutu-
ra de superfície e estrutura profunda, respec- A investigação dos fatores que estão por de-
tivamente, a música (o fenômeno sonoro) e a trás da superfície sonora prosseguiu nos anos
música que subjaz à música (sua gramática ou 1970, quando Blacking manifesta interesse ex-
estrutura) (1995b [1973], 1995d). As expressões plícito pelos processos cognitivos e sociais que
chomskyanas, contudo, prestavam-se a um mal- constituem a estrutura profunda da música:
entendido: era como se ele preconizasse a aplica-
ção de modelos lingüísticos ao estudo da música, The surface structures of Venda music reflect not
quando o que defendia era algo bem distinto – a only the musical conventions of Venda culture
anterioridade filogenética da dança e da música which are transmitted from one generation to
com respeito à língua (Blacking, 1978, p. 110). another, but also cognitive and social processes
Em Venda children’s songs, Blacking discute which are endemic in all aspects of their culture
a análise musical e as análises etnomusicoló- and particularly present in musical activity (Bla-
gicas de tradições não-ocidentais. Admite sua cking, 1995c [1971], p. 58).

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


 | E T

É importante sublinhar que, para Blacking, Em compensação, a entrada da música euro-


cognição é algo que engloba afetos e está in- péia levada pelos missionários cristãos foi uma
timamente associada a social. Processos cogni- mudança de sistema musical. Encontravam-se,
tivos não equivalem ao cogito cartesiano, pois então, no seio da população venda, três sistemas:
estão enredados na natureza social do homem. o tradicional, o europeu e um terceiro sincréti-
Desde a tese sobre as canções infantis, Bla- co que começou a nascer nas igrejas separatistas
cking foi um crítico severo das comparações e nas áreas urbanas (a jive music com violão e
entre sistemas musicais8 e da quantificação penny whistle) (Blacking, 1980b, p. 600). Por
de traços musicais. Ele próprio experimentou outro lado, por estarem ancoradas em processos
um pouco dos métodos estatísticos em Venda cognitivos e sociais, as mudanças musicais po-
children’s songs e sugeriu que seu emprego re- dem ser manifestações precursoras de mudanças
queria muita cautela (Blacking, 1995a [1967], sociais. Numa curiosa coincidência, Blacking
p. 173 e ss.). Afinal, o que os etnomusicólo- formula, no mesmo ano em que Jacques Attali
gos comparavam eram estruturas superficiais, publica Bruits (1977), a idéia de antecipação na
deixando escapar o nível profundo responsável música das transformações na sociedade:
pela geração dos sons.
Por acreditar na existência desse plano es- Musical change is important to watch because,
trutural que se manifesta nas ordenações su- owing to the deep-rooted nature of music, it
perficiais do fenômeno sonoro, e que cabe may precede and forecast other changes in so-
ao etnomusicólogo revelar, Blacking também ciety (Blacking, 1995d, p. 172).
encarava com ceticismo as afirmações acerca
da aculturação musical. Segundo ele, cole- Em 1973, Blacking organizou o simpó-
gas como Nettl e Merriam supunham que há sio sobre antropologia do corpo que gerou a
aculturação musical quando um grupo social coletânea homônima, publicada alguns anos
adota estilos musicais de outro com o qual está depois. Num artigo que ele considerou “pro-
em contato. O caso venda, porém, não corro- gramático”, reivindicou para a antropologia
borava a suposição, pois a adoção dos estilos o estudo da estrutura e qualidade dos afetos
musicais associados às iniciações de meninos e entendidos como fenômenos simultaneamen-
meninas, e aos cultos de possessão, não afetara te internos, subjetivos, e externos, comunica-
o sistema musical, apesar da importante mu- dos a outros e capazes de exercer efeitos sobre
dança no sistema social. As inovações musicais a cognição e a ação. Tratava-se de explorar os
concomitantes não podiam ser descritas com vínculos entre mental e corporal, biológico e
o conceito de aculturação (Blacking, 1995d, cultural, hemisférios direito e esquerdo do cé-
p.149-50). rebro, comunicação verbal e não-verbal, habili-
dades inatas e adquiridas. Nesse artigo em que
To qualify as musical change, the phenomena expõe sua insatisfação com a dicotomia entre
described must constitute a change in the struc- natureza e cultura, retoma a seu favor a idéia
ture of the musical system, and not simply a de Durkheim da sociedade como um conjunto
change within the system (Blacking, 1995d, p. de forças ativas: são elas a condição de existên-
167). cia dos organismos biológicos humanos. Ana-
logamente, entre as capacidades cognitivas do
homem é preciso incluir as que o habilitam às
8. V. a crítica ao método de comparação intercultural de experiências compartilhadas e ao fellow-feeling:
Alan Lomax (Blacking, 1979, p. xviii).

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


J B        | 

“...no human can do anything, or even beco- música”. Embora os críticos enxerguem aí o di-
me human, without fellow humans” (Blacking, lema característico de uma disciplina que não
1977, p. 15). Blacking não hesitava, aliás, em sabe como pensar a música senão nos modos
falar de empatia e de telepatia, tamanha sua da determinação (pelo social) ou da autonomia
convicção no nexo intersubjetivo e nos limites (Hennion, 1993), Blacking não tinha qual-
da concepção do homem como espécie singu- quer simpatia pelas proposições causais do tipo
larizada pela habilidade lingüística. Por isso, é determinista. São muitos os exemplos de que
difícil caracterizá-lo como cognitivista, a me- concebia a relação entre música e sociedade, e
nos que se faça a ressalva de que cognição e so- a relação entre música e cultura, em termos de
ciedade não podem ser concebidas como duas afetação mútua de vários fatores. Diz ele a pro-
ordens distintas de fatos humanos: pósito dos venda:

My concern for an anthropology of the body Just as shared social experiences may generate
rests on a conviction that feelings, and parti- musical experiences, so musical experiences may
cularly fellow-feeling, expressed as movements generate a new kind of social experience. [...] Ins-
of bodies in space and time and often without tead of giving sociological explanations of musical
verbal connotations, are the basis of mental life forms, it should be more satisfactory to find struc-
(Blacking, 1977, p. 21). tural explanations of both sociological and musi-
cal forms (Blacking, 1995c [1971], p. 66 e 68).

Protomúsica e protodança na Veja-se, por exemplo, seu comentário da


constituição do homem eficácia da música na possessão por ancestrais,
entre os venda. Por um lado, a descrição ade-
A interrelação entre música, cognição, afe- quada do fenômeno tinha que levar em conta
to, cultura e sociedade foi expressa por Bla- as relações sociais (entre vivos, entre vivos e an-
cking numa retórica de binômios (processos e cestrais), o simbolismo das ações rituais e seu
produtos musicais, estruturas profundas e de caráter prescritivo. Por outro, havia evidências
superfície, habilidade humana e sistema cul- dos efeitos socializadores e afetivos da música.
tural). Um outro, porém, celebrizou-se como Ele então pergunta: por que a música leva uma
síntese de sua concepção de etnomusicologia: mulher venda ao transe no culto mas não fora
som humanamente organizado e humanidade dele? Em lugar de responder conforme a sócio-
sonora/saudavelmente organizada9. lógica corriqueira – porque no primeiro caso a
Os quiasmos dos títulos dos capítulos de música e a dança ocorrem no contexto ritual
How musical is man? são expressivos. O pri- “certo”, sendo, por conseguinte, a atuação do
meiro e o quarto capítulo chamam-se, respec- contexto sobre o significado atribuído à música
tivamente, “som humanamente organizado” e que causa o transe –, ele responde com outra
“humanidade sonora/saudavelmente organiza- pergunta: não será o contexto social que, no
da”; o terceiro e o quarto, “a música na cultura segundo caso, inibe os efeitos sempre muito
e na sociedade” e “a cultura e a sociedade na potentes da música?

9. Na tradução das expressões “humanly organized Is it the social situation that inhibits the otherwise
sound” e “soundly organized humanity”, perde-se a powerful effects of the music? Or is the music po-
polissemia da palavra “sound” (como substantivo, werless without the reinforcement of a special set
significa “som”, e como adjetivo, “são” e “seguro”).

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


 | E T

of social circumstances? (Blacking, 1995b [1973], ticas protodança e protomúsica que teriam sido
p. 45). decisivas na evolução da espécie – são menos co-
mentadas e talvez encaradas com ceticismo.
Ele deixa em aberto o problema, mas não Blacking retomou e atualizou uma vertente
sem dar uma pista sobre sua inclinação: de interrogações acerca da natureza da musicali-
dade e seu estatuto próprio, relativamente à lín-
I cannot answer this, but my own love of music gua: qual a razão de ser dessa aptidão da espécie,
and my conviction that it is more than learned simbólica sem ser referencial, autônoma face à
behavior make me hope that it is the social inhibi- língua e anterior a ela no sentido filogenético?
tions which are powerful and not the music which A resposta não foi buscada unilateralmente na
is powerless (Blacking, 1995b [1973], p. 45). evolução, nem exclusivamente na cognição,
nem no social. Ele admitia a impotência do
Segundo Byron (1995, p. 15), no final dos estado atual do conhecimento antropológico
anos 1960, quando foram publicados os mais diante de sua pergunta. Várias hipóteses alter-
extensos produtos da etnografia venda – Venda nativas foram, porém, aventadas e examinadas,
children’s songs e os artigos de African Studies so- desde a de expressão e compartilhamento dos
bre os rituais de iniciação feminina –, Blacking afetos – fundamental na constituição de solida-
começou a dar corpo à sua visão própria da riedade grupal, portanto na constituição da so-
etnomusicologia, que conjugava os aportes da ciedade (à maneira de Durkheim) – à produção
lingüística, do estruturalismo, cognitivismo e de estados internos intensos, experiências de
biologia. Dela resultou uma definição original transcendência e transe sem os quais o homem
da etnomusicologia como estudo do homem não seria como o conhecemos.
enquanto produtor de música – devendo enten- Em “The biology of music-making”, seu úl-
der-se música, sempre, como música e dança. timo trabalho publicado, Blacking comenta três
A originalidade da definição sobressai quando hipóteses explicativas da musicalidade que circu-
posta em comparação com as fórmulas que Alan lam em várias sociedades: a primeira afirma que
Merriam celebrizou – estudo da música na cultu- a música é aprendida, adquirida, portanto social;
ra e estudo da música como cultura – e que cen- a segunda diz ser a música capacidade herdada
tralizaram a discussão no meio norte-americano. geneticamente, por isso desigualmente distribuí-
Blacking estava mais interessado nas condições da entre os homens; a terceira afirma ser a música
universais de emergência da atividade musical, herdada geneticamente, tanto quanto a habilidade
atada a uma hipotética inteligência musical. para a linguagem – portanto, uma parte da bio-
A aposta na busca de estruturas profundas da gramática humana e, possivelmente, um sistema
música radicadas na constituição biopsicológica modelar primário do pensamento e da comunica-
do homem explica a aversão de Blacking às aná- ção (primary modeling system). Essas três hipóteses
lises formais do som – análises dos produtos em – além de outras que atribuem caráter sagrado e
sua superfície – que apenas parafraseiam ou des- origem divina às capacidades musicais – dão lu-
crevem. É precisamente na rejeição ao formalis- gar às teorias que se expressam, eventualmente,
mo e ao comparativismo que reside uma de suas na forma do mito. A primeira e a segunda são ca-
importantes contribuições, segundo os etnomu- racterísticas das sociedades modernas industriais.
sicólogos (Blum, 1992, p. 203; Myers, 1992, p. Ele próprio, Blacking, era simpático à terceira, por
10). Entretanto, suas idéias acerca da biogramá- resistir à idéia de reduzir a musicalidade a um con-
tica (biogrammar) e da dança biossocial – hipoté- junto de padrões de comportamento aprendido:

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


J B        | 

People’s sense of their own musicality is a deeper The essence of music is non-verbal and hence
and more visceral experience than anything that cannot be conceived as a product of word-based
is culturally acquired, such as membership in a ideological construction. The varieties of mu-
particular organization or proficiency in some sical thought and practice in the world presu-
skill (Blacking, 1992, p. 304). ppose innate musical intelligence even though
ethnomusicological research has shown that
As condições de florescimento ou inibi- music is a social fact, that musical systems are
ção da aptidão musical são, contudo, sociais. cultural systems woven into the larger web of
Dependem das interações, das instituições the cultures of communities, and that the variety
e de uma seleção de capacidades cognitivas of these symbol systems precludes a universally
e sensório-motoras. Entretanto, não se trata valid definition of music or universal agreement
simplesmente de aumentar a cota da natureza on what constitutes music as distinct from non-
na partilha com a cultura, lançando a música music or noise (Blacking, 1992, p. 310).
para o campo da biologia e da psicologia, de
onde os cientistas sociais a retiraram. Mesmo Entre outras hipóteses, levantava a de ser a
sendo música e dança um conjunto de expe- inteligência musical uma inteligência para o so-
riências corporais, elas não são impulsos, nem cial que teria desempenhado papel importante
reações automáticas. Isso não tem nada a ver na evolução da espécie na direção de formas de
com imaginar padrões e formas sonoras que vida social complexas. A inteligência musical
desencadeiam o estado de transe, nem com a agrega indivíduos em grupos, coordena ações,
idéia de universalidade de conteúdos musicais integra os hemisférios do cérebro. Em apoio à
específicos, tais como a percepção de conso- hipótese do valor evolucionário da música, ci-
nâncias e dissonâncias em virtude das frações tava o ensaio de Alfred Schutz sobre a ativida-
numéricas a que correspondem os intervalos de musical conjunta: evidência da capacidade
musicais. A inteligência musical ou o sistema humana de entrar em fluxos intersubjetivos, a
modelar primário que dá origem à música e à música em conjunto supõe uma sintonização
dança é algo vazio de conteúdo. Sua realização mútua (mutual tuning-in) não-verbal cujo en-
não é necessariamente sonoro-musical, poden- tendimento seria de grande valor para a socio-
do manifestar-se – quem sabe? – na arquitetu- logia, já que é quase um paradigma da relação
ra, na matemática etc. social. Se entendermos como um grupo de
Por isso, ainda que não se possam abordar câmara coordena sem uso da língua os fluxos
os problemas da semântica e da estética musi- temporais internos dos seus membros, enten-
cal independentemente dos sistemas culturais deremos a relação social e, por conseguinte, o
particulares aos quais estão necessariamente próprio social (Schutz, 1977). Eis, com efeito,
atreladas – pois é a ordem cultural que confe- um tema caro a John Blacking.
re valor aos estados corporais, transformando-o Byron atribui certas inclinações teóricas
metaforicamente em emoções, por exemplo –, a de Blacking à experiência emocional ímpar
musicalidade jaz em outro patamar do humano. de comunhão proporcionada pelo canto coral
Para compreendê-la, Blacking buscava socorro nas igrejas inglesas. Ele próprio atribuiu sua
dos psicólogos cognitivistas (John Sloboda), de convicção acerca da universal musicalidade
neurologistas (como Manfred Clynes) e estu- humana à vivência africana. Ambas estão pre-
diosos da linguagem (E. Lennenberg). sentes em seus textos, repletos de referências às
obras clássicas e modernas da grande tradição

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007


 | E T

ocidental e aos exemplos africanos, principal- ______. “The problem of musical description”. In: BLA
mente venda. Eles reforçam seus argumentos CKING, J. Music, culture & experience. Chicago: Uni-
versity of Chicago Press, 1995d [1971], p. 54-72.
em busca de uma antropologia da música capaz
______. Music, culture & experience. Selected papers of
de abranger todos os sons humanamente or- John Blacking. Ed. by Reginald Byron. 1995d. 269
ganizados, de bosquímanos, balineses, bemba, p.
Bach, Beethoven e Bartók. Talvez uma teoria BLUM, Stephen. “Analysis of musical style”. In: MYERS,
unificada do humano que, ao compreender a Helen (Ed.). Ethnomusicology: an introduction. New
natureza das forças musicais que fervilham em York: W. W. Norton & Co, 1992, p. 165-218.
BYRON, Reginald. “The ethnomusicology of John Bla-
nós, possa promover o conhecimento e a trans-
cking”. In: BLACKING, J. Music, culture & experien-
formação das sociedades humanas. ce. Chicago: The University of Chicago Press, 1995,
p. 1-28.
CARVALHO, José Jorge de. “Estéticas de la opacidad y la
Referências bibliográficas transparencia: música, mito y ritual en el culto shan-
gó y en la tradición erudita occidental”, Trans, Revista
ATTALI, Jacques. Bruits: essai sur 1’économie politique Transcultural de Música, n. 6, 2002. Disponível em:
de la musique. Paris: Presses Universitaires de France, http://www.sibetrans.com/trans/trans6/carvalho.htm.
1977. 301 p. HENNION, Antoine. La passion musicale. Paris: Mé-
BLACKING, John. The anthropology of the body. Lon- taillié, 1993. 406 p.
don: Academic Press, 1977. 438 p. HOOD, Mantle. The ethnomusicologist. New York: Mc-
______. “L’homme producteur de musique” (segunda Graw-Hill, 1971. 386 p.
parte), Musique en jeu, 29, 1978, p. 108-116. KERMAN, Joseph. Musicologia. São Paulo: Martins Fon-
______. “Introduction”. In: BLACKING, J.; KEALII tes, 1987. 331 p.
NOHOMOKU, Joan W. (Eds.). The performing arts: KUPER, Adam. Anthropology & anthropologists: the mo-
music and dance. The Hague: Mouton, 1979, p. 3-15. dern British school. 3. ed London: Routledge, 1993.
______. Le sens musical. Paris: Minuit, 1980a. 141 p. 233 p.
______. “Venda music”. In SADIE, S. (Ed.). The new MERRIAM, Alan. The antrhropology of music. Evanston:
grove dictionary of music and musicians, v. 19, 1980b, Northwestern University Press, 1964. 358 p.
p. 596-602. MYERS, Helen. “Ethnomusicology”. In: MYERS, Helen
______. “The biology of music-making”, in: MYERS, (Ed.). Ethnomusicology: an introduction. New York: W.
Helen (Ed.). Ethnomusicology: an introduction. New W. Norton & Co., 1992, p. 3-18.
York: 1992, p. 301-314. NETTL, Bruno. Theory and method in ethnomusicology.
______. Venda children’s songs: a study in ethnomusicologi- New York: Free Press, 1964. 306 p.
cal analysis. Chicago: The University of Chicago Press, SCHUTZ, Alfred. “Making music together”. In: DOL
1995a [1967]. 210 p. GIN, J. Kennitzer, D. S.; SCHNEIDER, D. M.
______. How musical is man? Seattle: University of Wa- (Eds.). Symbolic anthropology: a reader in the study of
shingon Press, 1995b, 5 ed. [1973]. 116 p. symbols and meanings. New York: Columbia Universi-
ty Press, 1977, p. 106-119

autor Elizabeth Travassos


Professora Adjunta do Departamento de Educação Musical/UFRJ
Doutora em Antropologia Social/MN-UFRJ

Recebido em 21/11/2007
Aceito para publicação em 22/01/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 191-200, 2007

Вам также может понравиться