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Resumo
Sérgio Ferro Pereira (1938), pintor, arquiteto e professor aposentado, é um nome
pouco conhecido entre os estudiosos do pensamento social brasileiro. O objetivo deste
estudo é justamente demonstrar sua contribuição diante do dilema em que se encontrava
a sociologia brasileira nas décadas de 1960 e 1970, embora todo o seu trabalho teórico
esteja voltado de fato para a arquitetura. O período em questão é de profunda crise para
todas as áreas do pensamento social brasileiro, inclusive a arquitetura. Neste campo, a
formulação teórica mais concisa era aquela que gravitava em torno da política do PCB,
partido do qual faziam parte os maiores nomes da arquitetura brasileira de então, como
Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas. Já é praticamente consenso entre os historiadores
que a política do PCB deste período esteve marcada por uma profunda defasagem
teórica, tanto de estudo do marxismo quanto de sua aplicação ao estudo da realidade
brasileira. Esta defasagem acarretava a transposição mecânica de análises formuladas
para outras realidades, tendo conseqüências sobre a formulação do partido e de seus
membros. No campo da arquitetura, por exemplo, havia crença no potencial progressista
da burguesia nacional no sentido de impulsionar um processo de industrialização da
construção civil. Sérgio Ferro irá desconstruir esta idéia através de uma análise bastante
aprofundada das condições de desenvolvimento do capitalismo no mundo e,
principalmente, no Brasil. Suas afirmações com relação ao bloco de poder dominante no
Brasil, sua formação e sua atuação, irá se assemelhar bastante às que Florestan
Fernandes iria publicar somente na década seguinte (os estudos de Sérgio Ferro são de
1969). É portanto, notável sua contribuição em um momento de crise em que mesmo os
sociólogos não conseguiram encontrar respostas concretas para o dilema da revolução
burguesa no Brasil.
Palavras-chave: arquitetura, realidade brasileira, capitalismo dependente.
Introdução
Podemos dizer que esta passagem ocorre fundamentalmente entre 1959 (ano do
ingresso de Sérgio Ferro no Partido Comunista Brasileiro, adiante elucidaremos melhor
a importância deste fato) e 1975 (ano da publicação de sua principal obra intitulada “O
canteiro e o desenho”). Este período é marcado por uma profunda crise para o
pensamento a respeito da função social do arquiteto no Brasil – em que o grupo
Arquitetura Nova, integrado por Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, foi
protagonista no sentido de buscar respostas. Não bastasse a crise dos arquitetos, este
período também foi conturbadíssimo para o pensamento social brasileiro como um todo.
A crise dos arquitetos, na verdade, decorria diretamente da ausência de uma
clarividência sobre a situação brasileira em sua plenitude. De maneira grosseira
podemos dizer que, no movimento de buscar sanar a crise da arquitetura, Sérgio Ferro
depara-se com a crise do pensamento social e, portanto, com o desafio encontrar saídas
para ambos. Daí, portanto, a sua contribuição ímpar que buscaremos começar a
desvendar – por ser um tema deveras complexo e abrangente, mereceria um estudo bem
mais extenso – neste texto.
inclusive, explicita esta questão de maneira bastante interessante em seu texto “Brasília,
Lucio Costa e Oscar Niemeyer”, de 2003:
1
Para elucidar um pouco o tema com o ponto de vista de Sérgio Ferro (entrevista à Marlene Milan
Acayaba, em 1986): “A origem do movimento em São Paulo está relacionada com a briga de Artigas
contra a via formalista de Niemeyer. Embora respeitasse muito a Niemeyer como profissional, o Artigas
pensava arquitetura de outro modo e marcou todo esse grupo paulista. (...) Naquela época, o manifesto
de Brasília era incompreensível para nós, especialmente pela dicotomia introduzida pelo Niemeyer
quando dizia que “durante o dia no meu escritório sou arquiteto e a minha militância faço depois que
saio do escritório”. A militância na arquitetura, para Artigas e para aqueles que criou, era constante.
Qualquer risco, qualquer traço tinham uma implicação social e crítica enorme”. (FERRO, 2006, p.258)
4
A trajetória do PCB foi, desde a sua criação, bastante deficitária no que tange a
um aprofundamento do estudo da realidade a ser transformada, tanto em geral (com o
estudo do marxismo), como em específico (com o estudo da realidade brasileira através
do marxismo). Anita Leocádia Prestes nos esclarece bem esta questão:
Esta visão estava repleta do dogmatismo do PCB, que via o desenvolvimento das
forças produtivas como sempre positivo e analisava o Brasil como um país com
“relações de produção semifeudais na agricultura”4. Mais que isso, entendia que “nas
condições de nosso país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do
2
Pedro Fiori Arantes (2002) assim sintetiza este pensamento: “Artigas reinventa a casa burguesa com o
objetivo de reeducar seus moradores. Destrói os palacetes do café e restitui em seu lugar espaços de uma
„moral severa‟, que o esforço de industrialização nacional exige.”. p. 23.
3
Arantes assim sintetiza este segundo momento: “Apesar da dúvida que paira por um momento (...)
Artigas retoma a crença cega no desenvolvimento das forças produtivas, posição que defenderá nos anos
difíceis da ditadura”. p.43.
4
Extraído de um trecho da „Declaração sobre a Política do Partido Comunista Brasileiro de Março de
1958‟, citado por Anita Leocádia Prestes (1980). p. 24.
5
Em 1967 Sérgio Ferro deixa o PCB junto com Carlos Marighella para entrar no
grupo de guerrilha urbana ALN (Ação Libertadora Nacional). Este grupo não chega a
elaborar uma outra estratégia para a revolução brasileira, de maneira que o
questionamento que faz da estratégia do PCB não fica muito explicitado. O grupo
centra-se mais na divergência tática perante aquela conjuntura, e isso fica bastante
evidente no lema da organização: “A ação faz a vanguarda”.
5
Idem. Grifo nosso.
6
Sobre a diferenciação entre estratégia e tática, ver: HARNECKER, Martha. Estratégia e Tática. São
Paulo: Expressão Popular, 2004.
7
Sobre a participação de Sérgio Ferro no Seminário Marx, de maneira mais detalhada, ver: ARANTES,
Pedro Fiori. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos
mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002. p.110-112.
6
Neste mesmo ano, em seu texto “Arquitetura Nova”8, Sérgio Ferro elabora
aquilo que compreende como sendo a crise a que chegaram as formulações sobre a
atuação do arquiteto (aqui exposto de maneira bastante resumida):
E prossegue:
Para chegar ao ponto chave da questão: “(...) aquelas propostas, apesar de não se
terem concretizado no nível em que foram pensadas, serviam, porém, para finalidades
distintas, e até opostas. (...) o impasse a que chegaram arquitetos e a prática da
profissão: sua afirmação só é possível dentro de um projeto que os compromete.”
O texto possui uma breve conclusão em que o autor deixa claro que o que lhe
move ainda são as dúvidas e que “só um trabalho coletivo de síntese, exame e
proposição, só com a colaboração dos mais variados pontos de vista é possível uma
orientação segura”9. Era evidente que este trabalho já estava em andamento e o grupo
Arquitetura Nova era o mais empenhado nesta busca.
8
FERRO, 2006. p. 47-58.
9
Ferro, 2006. p. 36.
7
mundial como o Brasil. Aparecem, portanto, as armas teóricas que irão contribuir para a
superação do dogmatismo do pensamento que até então guiou a atuação transformadora
dos arquitetos brasileiros.
2) A partir da descrição dos dois extremos, Sérgio Ferro parte para a análise do
mercado de massa da habitação no Brasil. O fato de o autor situar a produção
da habitação como mercadoria, embora isso possa parecer óbvio, é central. A
partir daí ele parte para uma análise da construção civil baseada nos
capítulos XII e XIII de O Capital10, em que situa a produção da construção
civil como uma manufatura, incapaz historicamente que foi de industrializar-
se.
10
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abil Cultural, col. Os Economistas, 1983, v.I, t.1. e MARX, Karl.
O Capital. Nova Cultural: São Paulo, col. Os Economistas, 1996, v.I, t.2.
11
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abil Cultural, col. Os Economistas, 1983, v.III, t.1.
8
6) Podemos inferir que é justamente aqui, no sexto ponto deste raciocínio, que
Sérgio Ferro irá deparar-se frontalmente com a crise do pensamento social
brasileiro e dar uma saída para ele. O mecanismo de compensação da queda
tendencial da taxa de lucro está intimamente associada ao imperialismo.
Portanto, a posição brasileira dentro da economia mundial é fundamental
para se compreender este mecanismo. Diz Sérgio Ferro: “O capitalista, que
bem conhece esta tendência assustadoramente decrescente [da taxa de lucro],
manobra de vários modos para freá-la. Entre as escapatórias achadas, três são
bem conhecidas nossas: monopólios, imperialismo e manutenção de áreas
retrógradas da produção.”12. Em seguida, cita André Gunder Frank,
economista alemão que foi precursor na análise – no que se aproxima
bastante das teses de desenvolvimento desigual e combinado de Lênin e
Trotski – do subdesenvolvimento da América Latina como parte
indissociável do desenvolvimento do capitalismo mundial.13
12
Ferro, 2006. p.98.
13
Cabe aqui adiantar uma convergência fundamental com as conclusões a que chegaria Florestan
Fernandes em 1975 – as quais veremos mais detalhadamente a seguir – inclusive para compreender
melhor este mecanismo: “(...)como ocorreu com o capitalismo competitivo, o capitalismo monopolista
terá de adaptar-se para coexistir com uma variedade de formas econômicas persistentes, algumas
capitalistas, outras extra-capitalistas. Não poderá eliminá-las por completo, pela simples razão de que
elas são funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de desenvolvimento econômico na
periferia. Em outras palavras, para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas, este
padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar formas econômicas variavelmente “modernas”,
“antigas” e “arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da economia competitiva, do
mercado capitalista da fase neo-colonial e da economia colonial. Tais formas econômicas operam, em
relação ao desenvolvimento capitalista-monopolista, como fontes de acumulação originária de capital.
Delas são extraídos, portanto, parte do excedente econômico que financia a modernização econômica
tecnológica e institucional requerida pela irrupção do capitalismo monopolista, e outros recursos
9
Voltando com mais atenção à citação de Anita Leocádia Prestes que fizemos
anteriormente (“Desde a sua fundação, o PCB estaria marcado pelas condições
históricas do país, dentre as quais merece destaque o seu atraso econômico, social,
político e cultural”), percebemos que o dogmatismo e a cópia de modelos prontos
vindos de fora e pensados para outra realidade não era um caso isolado do PCB, era
algo associado às condições históricas do país. Para se ter uma idéia, as primeiras
reflexões sobre urbanismo no Brasil chegaram aqui e começaram mesmo a ser
desenvolvidas como continuidade daquelas formuladas na Europa antes mesmo de o
país se urbanizar14(!). Assim foi em diversas áreas do pensamento no Brasil, inclusive
na sociologia.
materiais ou humanos, sem os quais essa modernização seria inconcebível”. FERNANDES, 1975. p.269-
270
14
Esta questão é bem destrinchada por Maria Elaine Kohlsdorf: “Aqui também a industrialização,
embora retardada, impulsionou a urbanização, como fórmula de organização do território indispensável
10
Todo este florescimento, que passa por outros nomes, como Manoel Bomfim,
Guerreiro Ramos, Caio Prado Jr., etc. ainda faz parte daquele período de 1940 (e mesmo
antes) a 1960 que Sérgio Ferro havia situado. O Brasil construía de fato um acúmulo
teórico a respeito de sua própria realidade. No entanto, não havia ainda aparecido por
aqui uma teoria capaz de situar o país dentro do contexto mundial, qual o seu papel
neste jogo e quais as forças internas e externas que poderiam disputar de fato uma
transformação estrutural da sociedade. Em países com realidades próximas à nossa a
à realização das relações de produção capitalista; coerentemente, existe toda uma preocupação das
sociedades urbanas quanto às características daquele processo, com a finalidade de se perpetuarem e se
consolidarem. Investigar sobre a questão urbana e, mais tarde, defini-la em sua problemática significa
tomar consciência de pontos frágeis nesta estrutura de relações, e isto com a função de procurar
soluções que restabeleçam o equilíbrio (ainda que o seja de contradições) reprodutor das relações
sociais, culturais e de produção. A definição deste quadro teórico no caso brasileiro possui, como
primeira especificidade, a própria dependência acadêmica; esta faz com que as diversas tendências no
pensamento urbanístico, e depois no planejamento urbano, vinculem-se como efeito quase sempre
retardado do que se propunha na Europa e nos EUA. Outra especificidade é que, no Brasil, o urbanismo
antecede ao processo de urbanização como forma irreversível devido à natureza dos vínculos que ligam
o país à constelação mundial. (...) Por detrás de tais expressões, existe a mesma ideologia que interpreta
a cidade industrial de forma idealista, considerando-a como a única maneira de promover o
desenvolvimento e, em última instância, fazendo-se a apologia da técnica. Igualmente, o urbanismo
brasileiro não é crítico, é especializado e não questiona a cidade como um processo social; limita-se
quase que somente a uma prática sobre princípios e técnicas de projeto à escala urbana, desenvolvidos
nos países industrializados.” KOHLSDORF, Maria Elaine. Breve histórico do espaço urbano como
campo disciplinar. In: FARRET, Ricardo L. O espaço da cidade. São Paulo: Projeto, 1985.
11
coisa já ia mais avançada, como no Peru, onde no final da década de 20 (do século XX)
Mariátegui15 já problematizava profundamente as análises sobre a realidade latino-
americana transpostas mecanicamente de outras realidades.
15
José Carlos Mariátegui La Chira (1894 - 1930), foi um escritor, sociólogo e político socialista peruano.
Sua obra mais conhecida é “7 ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana”
16
PRADO JR., Caio. A revolução brasileira. In: PRADO JR., Caio e FERNANDES, Florestan.
Clássicos sobre a revolução brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p.25-53.
17
Idem, p.53.
18
Idem.
12
Indagação como esta situa desde logo mal a questão e de maneira insolúvel na prática,
pois a resposta somente se poderá inspirar – uma vez que lhe falta outra premissa mais
objetiva e concreta – em convicções predeterminadas e de ordem puramente doutrinária
e apriorística”19.
Como o golpe foi de fato um “toque militar de recolher”, a tarefa de buscar estes
nexos teve de ser efetuada fora do país. Assim como “O canteiro e o desenho”, de
Sérgio Ferro, foi concluído em 1975 na França, foi também no exílio e no mesmo ano
que Florestan Fernandes conclui seu estudo “A revolução burguesa no Brasil”. Esta é,
sem dúvida e até hoje, a obra mais capaz de compreender como se deu o processo
brasileiro de passagem ao capitalismo e quais as suas decorrências. Em suma, cabe dizer
que se forma no Brasil uma autocracia burguesa, forma de estado destinada a manter a
estabilidade para assegurar o desenvolvimento de um capitalismo dependente e satélite.
Este poder, que no processo de sua formação precisa lidar com as contradições de sua
heterogeneidade interna (pois é uma burguesia nascida também das oligarquias
agrárias), não pode admitir qualquer pressão vinda dos “de baixo”, mantendo sua forma
autoritária.
19
Idem, p.31.
20
FERNANDES, Florestan. A chama que não se apaga. In: FERNANDES, Florestan. Que tipo de
República? 2ª ed. São Paulo: Globo, 2007.
13
empenhar-se na luta armada contra a ditadura e pela revolução socialista. Neste artigo
Florestan situa a importância do guerrilheiro para a contestação do pensamento
dogmático na nossa esquerda: “O que qualifica e distingue as posições assumidas por
Carlos Marighella é o propósito de romper com uma linha adaptativa, que retirava o
Partido Comunista do pólo proletário da luta de classes, convertendo-o em „cauda‟
permanente e em esquerda da burguesia”. E em seguida:
Vimos que o marxismo de Sérgio Ferro o levou, sem dúvida, a uma elaboração
teórica e prática conseqüente. Por isso Sérgio Ferro vai para além de Marighella e
consegue transpor a barreira teórica que o marxismo acadêmico só iria (se é que iria)
transpor “tarde demais”.
As evidências de que Sérgio Ferro foi capaz de dar este salto em alguma medida
aparecem em sua própria obra. No já referido texto “A produção da casa no Brasil”, de
1969, Sérgio Ferro conclui dizendo que: “Seguramente, a forma de produção arcaica
será contestada por capitalistas cuja fome próxima de mais-valia afasta a cautela a longo
termo. Os prognósticos, no caso, são bastante difíceis. O que é seguro é que haverá
atrito entre os capitalistas isolados e seus representantes no poder, que tem os olhos
postos na classe e menos no seu componente particular. Mas não ultrapassará,
seguramente, a região das disputas cordiais. Afinal, eles se entendem.”21 Algo que
conflui bastante com a defesa de Florestan Fernandes a respeito dos “conflitos internos”
da burguesia brasileira:
21
FERRO, 2006. p. 101. Grifo nosso.
15
Enfim, poderíamos seguir dando exemplos, e não são poucos, mas acreditamos
que para um estudo inicial já é o suficiente para esclarecer a proximidade. Muito mais
do que semelhanças pontuais, o que nos interessa é analisar que sem ter compreendido o
processo de revolução burguesa ocorrido no Brasil, Sérgio Ferro não teria conseguido
formular sua teoria, que tanto contribuiu e segue contribuindo para o pensamento
marxista em arquitetura.
Considerações finais
Se Sérgio Ferro não tinha, na segunda metade dos anos 1960, uma análise
concreta da realidade brasileira com profundidade suficiente para que se pudesse de lá
extrair o elemento capaz de preencher a lacuna da crise da função social do arquiteto
brasileiro, isso não o impediu de buscar ele mesmo, direto na realidade, construir uma
análise aproximativa (e hoje podemos analisar o quanto). A relação dialética que se
estabelece entre uma análise geral e uma análise específica está justamente aí. Não se
trata de, a partir de uma verdade absoluta e universal, aplicar um conhecimento infalível
como explicação. “A operação é marcadamente mágica: se a realidade é confusa,
transbordante, no lugar do esforço de compreensão, surge a tendência confortável da
deformação simplificadora por ato interno da vontade, altera-se a visão sem alterar a
coisa vista”22, dizia Sérgio Ferro em 1967. Trata-se fundamentalmente de, a partir de
uma realidade material, enxergar as relações e a história, não isolar o objeto, mas situá-
lo. Uma análise específica pode dar respostas à compreensão do geral, e não se faz uma
análise específica sem se ter uma compreensão mais ampla, do processo como um todo.
“Partamos do concreto ao abstrato ou façamos o caminho inverso, estamos sempre no
centro dos dramas coletivos e procuramos entender os rumos sociológicos da
história”23, era o que dizia Florestan em 1972. O que tudo isso exige é, de fato, um
22
FERRO, 2006. p. 55.
23
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 1981. p. 9.
16
Pois que siga sendo incansável este esforço enquanto os dramas coletivos
continuarem a nos perturbar. Se hoje tudo parece calmaria, não nos esqueçamos das
ilusões que outras aparentes calmarias já nos trouxeram. O que Sérgio Ferro e Florestan
Fernandes conseguiram compreender foi que os dilemas brasileiros mais fundamentais
– como a concentração de terras, o atraso tecnológico da construção civil, as
interferências imperialistas, a atuação dos grandes monopólios – não serão superados
enquanto não houver uma mudança estrutural em nossa sociedade. Toda promessa de
desenvolvimento capitalista desembocará, para nós, em mais dependência. Não nos
prestaremos e separar nosso caminho até a liberdade em etapas. Não esperaremos
crescer o bolo no forno da vilania, será melhor dividir logo para que, dialeticamente,
todos o façamos juntos.
Referências Bibliográficas:
ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002.
FERNANDES, Florestan. A chama que não se apaga. In: FERNANDES, Florestan. Que tipo
de República? 2ª ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 274-278.
_______. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1981.
FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
PRADO JR., Caio e FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. São
Paulo: Expressão Popular, 2007.