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O Ataque ao Corpo Durante a Ditadura Militar Brasileira

Anna Cláudia Bueno Fernandes


Porto Alegre, 2011
O Ataque ao Corpo Durante a Ditadura Militar Brasileira1
Anna Cláudia Bueno Fernandes

Resumo: Este artigo tem por objetivo expor alguns dos pensamentos a respeito das
violações dos direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, tratando-as como o
ataque ao corpo, no qual o maior inimigo do cidadão era o próprio Estado. Sob a perspectiva
da história do corpo, serão analisados aspectos da tortura presentes em textos de
psicólogos, filósofos e historiadores, que, em algum momento de sua carreira, estiveram em
contato com as vítimas das ditaduras militares latino-americanas.
Palavras-chave: Ditadura militar brasileira – Tortura – História do corpo – Psicologia social.

“Descobrimos nosso corpo pela dor”


Mario Fleig

Após a Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos


Humanos, a tortura foi formalmente condenada. Ainda assim, ela continuou sendo
empregada em diversos países a serviço do Estado, como foi o caso do Brasil,
durante o período militar. Com o golpe de 1964, o Brasil passou a ser governado por
militares que atuaram por suas próprias regras, com a justificativa da manutenção da
ordem ante a ameaça comunista. No país, foi instaurado o “terrorismo de Estado”,
termo que se refere à forma como alguns regimes trataram a sua própria população,
após a tomada do governo por militares com o intuito de prevenir o suposto caos
que provocariam grupos comunistas no poder. O discurso militar utilizava a suposta
ameaça do “caos democrático” para reafirmar a ordem ditatorial. Assim, a segurança
coletiva estava associada à continuidade e manutenção da ordem ditatorial, e para
que esta fosse cumprida, era preciso esgotar qualquer forma de oposição, até
mesmo a pacífica.
Como o próprio termo “terrorismo” diz, para a manutenção do poder, os
militares utilizaram ações violentas para intimidar e aniquilar qualquer indivíduo que
apresentasse – ou viesse a apresentar – ameaça ao governo. As políticas de
repressão praticadas durante o período militar foram exercidas por um poder político
que, “aliado ao poder militar, se outorga o papel de dono do corpo, da mente e com
direito à vida e à morte dos habitantes e cidadãos do país” 2. Através do uso
sistemático da tortura, do banimento e do desaparecimento, e de uma sofisticada
1
Artigo apresentado na I Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos, no Arquivo
Público do Rio Grande do Sul.
2
ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. Dor e desamparo. Psicologia Clínica, Rio de
Janeiro, v. 20, n. 2, 2008, p. 75-87. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ pc/v20n2/a06v20n2.pdf>.
Acesso em dez. de 2010. p. 77-78.
2
propaganda, o terrorismo de Estado abusou do poder estatal e introduziu-se na
consciência de cada um dos membros da sociedade. Não havia espaço para
qualquer forma de oposição, era papel do Estado destruir a identidade do indivíduo,
formando uma população submissa, passiva, privada de opinião e atitudes próprias.
Para Amati, se “a sociedade de massa tende a fazer dos seres humanos
personalidades ambivalentes e sem conflito ético, o sistema torturante tem como
objetivo de governo e de poder nos fazer adaptáveis, conformistas e profundamente
oportunistas”3.
Segundo Coimbra, “a história que, de um modo geral, nos tem sido imposta
seleciona e ordena os fatos segundo alguns critérios e interesses, construindo, com
isso, zonas de sombras, silêncios, esquecimentos, repressões e negações”4.
Contudo, nos últimos vinte anos, tem havido um resgate da memória, principalmente
de questões relativas ao terrorismo de Estado que vigorou nos regimes militares no
Cone Sul, a partir da década de 60 até meados dos anos 80, que esta “história
oficial” não conseguiu silenciar, ocultar ou eliminar. Dentre esse resgate, uma das
questões estudadas é sobre as violações dos direito humanos ocorridas neste
período. Este artigo tem por objetivo relacionar a prática da tortura ao adestramento
do corpo, presente na destruição das resistências das vítimas e no medo transmitido
para a população como uma política pedagógica. Para este estudo, serão utilizados
textos de filósofos, historiadores e, principalmente, psiquiatras e psicólogos sociais,
que trataram vítimas da tortura e/ou exilados, além do Projeto Brasil Nunca Mais,
que representa uma importante documentação sobre o que acontecia nos porões
militares. O estudo histórico torna-se mais rico com a contribuição de outras áreas; a
utilização da produção teórica voltada à saúde mental ajuda no esboço de uma
compreensão acerca das marcas das políticas do corpo em suas vítimas (sejam elas
diretas ou indiretas), das consequências da violência utilizada em nome do poder e
da importância da lembrança, não para remoer feridas, mas para impedir que o
esquecimento contribua para uma nova onda de ignorância e abusos.
O corpo é o espaço que um indivíduo ocupa na sociedade, carregado por suas
ideias e responsável por suas ações diretas. Durante a ditadura militar, esse espaço

3
AMATI, Silvia. Contribuições psicanalíticas ao conhecimento dos efeitos da violência
institucionalizada. In: RIQUELME, Horacio (org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de
Estado e saúde psicossocial na América Latina. São Paulo: Educ, 1993, p. 19-32. p. 25.
4
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Psicologia
em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 11-19, jul./dez. 2001. p.12.
3
foi eliminado, sendo preservado apenas o corpo submisso e mantedor do poder
militar. O “ataque ao corpo” é o ato extremo de uma política de adestramento da
população, que joga com a vida das pessoas, transformando-as em meros objetos.
O estudo das violações dos direitos humanos serve a uma luta pelo humano, contra
a tendência à coisificação dos corpos e contra o esquecimento das atrocidades
cometidas contra pessoas que tiveram seu direito de ser eliminado.

As políticas do corpo e a prática da tortura

Norbert Elias5 compreende as condutas humanas como resultado de uma


construção, esboçando uma discussão sobre a educação do corpo. Elias observa no
corpo do “homem ocidental”6 uma psicogênese e uma sociogênese, expressadas em
seu comportamento. Nas questões relativas às alterações do uso do corpo, Elias
introduziu a ideia de “autocontrole”. Para ele, os preceitos e normas que circulam as
pessoas são traçados com tanta nitidez, e a censura e a pressão da vida social que
modelam seus hábitos são tão fortes, que ao indivíduo só resta a alternativa de
submeter-se ao padrão de comportamento exigido pela sociedade ou ser excluído
da vida social. Esse “autocontrole” está localizado tanto em objetos quanto no corpo;
a contenção dos impulsos por parte do homem seria a educação do corpo. E, para
Elias, o Estado tem um papel fundamental na manutenção desse controle,
estabelecendo o “monopólio da força”. Este funcionaria graças a “especialistas”, que
controlam a maneira como cada indivíduo usa seu corpo, por meio de padronizações
e proibições de comportamentos e condutas.
Por sua vez, Michel Foucault7 escreve que, em nossas sociedades, os
sistemas punitivos

devem ser recolocados em uma certa “economia política” do


corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou
sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de
trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e
de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua
repartição e de sua submissão.8

5
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
6
No primeiro volume, A história dos costumes, em O processo civilizador, o homem ocidental
estudado por Elias é o alemão, o francês e o inglês.
7
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
8
Ibidem, p. 28.
4
Foucault procura fazer uma história dos castigos com base na história do
corpo. Para o autor, o corpo está diretamente mergulhado num campo político, e as
relações de poder o alcançam, o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam,
sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias e exigem-lhe sinais.
Ambos autores escreveram sobre um controle indireto, fora do campo aparente
e destituído de punições violentas. Enquanto Elias assinala a importância do Estado,
Foucault acredita que são poderes descentralizados que marcam os corpos. Durante
os regimes totalitários, as “disciplinas”, ou seja, os métodos de controle ou as
“educações do corpo”, tornam-se cada vez mais rígidas, tanto para eliminar a
oposição explícita ao governo quanto para evitar qualquer posição contrária às
atuações dos governantes. Como prática máxima do “adestramento” da população,
a tortura foi aplicada de forma sistemática, tornando o poder do Estado sob os
corpos impossível de passar despercebido. E esse foi um dos objetivos dos
governantes, uma vez que o medo do que poderia ser feito serviu como campanha
política.
Segundo a ONU, tortura é

Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou


mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de
obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões;
de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha
cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou
coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo
baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais
dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público
ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua
instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência.9

O poder punitivo, através da tortura, marcou o corpo pela dor e pelo medo da
dor. Segundo Riquelme10, a tortura sistemática tinha como objetivos a obtenção de
informação, a confrontação, semear a desconfiança e provocar a invalidez
psicossocial de supostos ou reconhecidos opositores ao regime. Para Mauren e
Marcelo Viñar, o objetivo da tortura era “provocar a explosão das estruturas arcaicas
constitutivas do sujeito, isto é, destruir a articulação primária ente o corpo e a

9
DALLARI, apud COIMBRA, Op. Cit., p. 12.
10
RIQUELME, Horacio. América do Sul: direitos humanos e saúde psicossocial. In: RIQUELME,
Horacio (org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocial na
América Latina. São Paulo: Educ, 1993. p. 33-43. p. 38.
5
linguagem”11. Mais do que obter confissões – verdadeiras ou inventadas –, a tortura
na América Latina tinha como objetivo fazer calar, aniquilar qualquer desejo
democrático que colocasse em risco a dominação do Estado. A tortura visava
destruir o indivíduo, “cada gesto do torturador foi estudado para produzir a
submissão total e a paralisia dos opositores do governo dos militares”, de forma que
o torturador ouvia o que queria, e as pessoas eram “reduzidas a máquinas
funcionais”12.
Segundo Elio Gaspari, “quando tortura e ditadura se juntam, todos os cidadãos
perdem uma parte de suas prerrogativas e, no porão, uma parte dos cidadãos perde
todas as garantias”13. No Brasil, apesar de acontecer desde a implantação do regime
militar e em períodos anteriores, a partir do AI-5 a tortura tornou-se política
sistemática do Estado, quando a “linha dura” assumiu o poder, em 1968. O estudo
dos processos políticos da Justiça Militar, revelados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais,
mostram que a tortura era constante nos interrogatórios, sendo instituída antes
mesmo que qualquer atividade “subversiva” do sujeito fosse comprovada. Durante o
Regime Militar, a tortura passou à condição de

“método científico”, incluindo em currículos de formação de


militares. O ensino deste método de arrancar confissões e
informações não era meramente teórico. Era prático, com
pessoas realmente torturadas, servindo de cobaias neste
macabro aprendizado. Sabe-se que um dos primeiros a
introduzir tal pragmatismo no Brasil foi o policial norte-
americano Dan Mitrione, posteriormente transferido para
Montevidéu, onde acabou sequestrado e morto. Quando
instrutor em Belo Horizonte, nos primeiro anos do Regime
Militar, ele utilizou mendigos recolhidos nas ruas para adestrar
a polícia local. Seviciados em salas de aula, aqueles pobres
homens permitiram que os alunos aprendessem as várias
modalidades de criar, no preso, a suprema contradição entre o
corpo e o espírito, atingindo-lhes os pontos vulneráveis.14

O uso da tortura estava amparado e fundamentado ideologicamente pela


Doutrina de Segurança Nacional. Foi organizada uma infra-estrutura para a prática
da tortura, que envolvia desde locais adequados aos maus-tratos, tecnologia dos
instrumentos e participação direta de enfermeiros e médicos que colaboravam com o

11
GUINZBURG, Jaime. Imagens da tortura: ficção e autoritarismo em Renato Tapajós. In: KEIL, Ivete;
TIBURI, Márcia (orgs.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 145.
12
KEIL, Op. Cit., p. 55; BRASIL: NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 17.
13
apud GINZBURG, Op. Cit., p. 159.
14
BRASIL: NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 32.
6
trabalho dos interrogadores. O ex-presidente general Ernesto Geisel (1974-1979)
afirmou em seu livro de memórias que a tortura tornava-se necessária para a
obtenção de informações. Segundo o general, ainda no governo de Juscelino
Kubitschek, oficiais foram mandados à Inglaterra para conhecer as técnicas do
serviço de informação e contra-informação inglês, onde aprenderam vários
procedimentos sobre tortura. Ainda afirma que:

O inglês, no seu serviço secreto, “realiza com discrição. E


nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente”.
Não justifico a tortura, mas “reconheço que há circunstâncias
em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter
determinadas confissões” e, “assim, evitar um mal maior”.15

Destruição da mente através do ataque ao corpo

Parece haver uma separação explícita entre corpo e mente. Enquanto ao


corpo caberiam os instintos naturais do homem, suas necessidades físicas, a mente
seria a razão humana, suas ideias e raciocínio lógico, o que essencialmente o
diferenciaria dos outros animais. Contudo, corpo e mente não estão desconectados,
fazem parte de um ser só, e não só um depende do outro quanto uma mente falha
provavelmente resultaria em um corpo machucado e vice-versa. Não é à toa que a
psicologia se dedica aos estudos dos sintomas psicossomáticos, e os considera tão
graves à saúde do homem quanto os males orgânicos.16
Os torturadores conheciam o corpo do torturado, seus limites e funcionamento
em resposta às técnicas da tortura. Uma das estratégias utilizadas era a alternância
de grandes crueldades e pequenas bondades, que servia para desconstruir
identidades políticas e morais dos torturados. A respeito da figura do torturador,
segundo Coimbra, uma das mentiras, que utilizou a psicologia como ferramenta,
consiste em tratar os culpados como indivíduos anormais, sádicos, eximindo o
Estado e o regime que os criou e sustentou da culpa. Pelo contrário, os torturadores
participaram de cursos; além dos cursos que fizeram na Escola das Américas,
vieram torturadores americanos, franceses e ingleses.

15
em O Globo, 1997, apud COIMBRA, Op. Cit., p. 15.
16
Não se quer dizer com esta afirmação que a tortura tenha sido apenas psicológica, e suas vítimas
somatizaram machucados e futuras sequelas. Pelo contrário, a tortura também foi física, provocando
o efeito inverso, prejudicando seriamente a mente. A tortura resultou em indivíduos duplamente
quebrados.
7
Foram os ingleses que trouxeram a idéia da geladeira17. Esses
torturadores muito haviam torturado na África e na Ásia. Por
sua vez, os torturadores brasileiros não apenas se gabavam de
sua sofisticada tecnologia da dor, mas também alardeavam
estar em condições de exportá-la ao sistema repressivo de
outros países. E assim o fizeram, ministrando cursos em outras
ditaduras latino-americanas. O Brasil exportou a arte de melhor
torturar.18

Além das agressões físicas, eram utilizados na tortura o pau-de-arara, o


choque elétrico, a pimentinhas e os dobradores de tensão, o afogamento, a cadeira
do dragão, a geladeira, animais e insetos e produtos químicos. Não havia distinção
entre homens e mulheres na prática dos maus-tratos, o que variou foi a forma de
tortura. Segundo o Projeto Brasil: Nunca Mais, por serem do sexo masculino, “os
torturadores fizeram da sexualidade feminina objeto especial de suas taras”. A
violência sexual foi uma prática bastante difundida pelas ditaduras latino-
americanas, e não só as vítimas eram violentadas (em sua maioria, pelo que se
sabe, mulheres), como eram obrigadas a assistir a tortura e ao estupro de seus
parentes ou companheiros. Umas das formas consideradas também uma violência
sexual e que era mais presente nos interrogatórios foi a nudez. Segundo o relato de
Ivan,

A sensação é de que o mundo desabou sobre você, de que


tudo acabou. Perde-se a noção de espaço, de tempo e de
limites; você sente-se absolutamente sozinho. Eles dizem: “A
revolução acabou! Agora você está nas mãos da repressão!
Não adiantou nada!”. Antes do pau-de-arara encostam a gente
na parede e dizem: “Tirem a roupa”; aí começa a sensação de
total impotência, é como ir entrando num funil, perdendo seu
espaço, seus direitos, sua dignidade”.19

A experiência da nudez surge como uma ameaça, como a falta de proteção e


entrega do corpo do preso. A roupa não se limita a sua função de cobrir o corpo,
mas tem o significado simbólico de proteção; o corpo despido torna-se não apenas
vulnerável, mas também causa a vergonha ou o sentimento de desonra diante dos
torturadores. Essas formas de tortura, além de serem extremamente traumatizantes,
não deixariam rastros visíveis.

17
Quarto de dois a quatro metros, escuro e frio, o qual os agente usavam entre as torturas em salas
quentes e iluminadas, causando insegurança nas vítimas (cf. BRASIL NUNCA MAIS, 1985).
18
KEIL, Op. Cit., p. 53.
19
KEIL, Op. Cit., p. 49-50.
8
A prática da tortura retira do indivíduo qualquer direito, inclusive aquele sob
seu corpo. Sendo o corpo o espaço que o sujeito ocupa na sociedade, como já foi
afirmado, tal privação de direito significa negar a existência humana; o corpo
torturado torna-se um objeto, rompendo suas relações de sujeitos com os outros e
consigo mesmo. O corpo passa a ser lugar de encontro com o mal, produz a
aparência de um mundo binário no qual parece apenas existir torturador e torturado.
O torturado vive a experiência limite da tortura, ele é diretamente aniquilado pela dor
que lhe provoca o torturador, em seu corpo encontra-se a narrativa da decepção e
da perda de pertencimento com a humanidade. Porém, além desse mundo binário,
Keil20 afirma que a sociedade participa tanto por sua passividade quanto por sua
ameaça, uma vez que o discurso do poder “penetra em toda a sociedade, e cada
indivíduo passa a ser o seu próprio torturador e o torturador de seu próximo”. O
“próximo” atua como delator, seja por má fé, seja no porão, quando o corpo já não
resiste. O indivíduo perde qualquer confiança nos outros e em si, uma vez que a
tortura também provoca a perda de seu corpo: os maus-tratos fazem com que o
próprio se entregue, mesmo quando não há “culpa”.
Para o psicanalista Hélio Pelegrino,

a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável,


introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente.
E, mais do que isto: ela procura, a todo preço, semear a
discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. Através da
tortura, o corpo torna-se nosso inimigo, nos persegue. É este
modelo básico no qual se apóia a ação de qualquer torturador.
[...] Na tortura, o corpo volta-se contra nós, exigindo que
falemos.21

O torturador, “em posição assimétrica de poder, abusa e rouba do outro sua


vontade, sua capacidade de decisão e sua própria definição de si mesmo”22. Keil
narra a história de Pedro, que “não conseguiu resistir ao jogo do torturador e, diante
da proximidade da morte, tentou tecer o presente na coerência, na ordem e no
carisma de seus próprios torturadores, de seus algozes, colaborando com eles”.23
Os demasiados ataques ao corpo faziam surgir a esperança de que se se falasse
alguma coisa, os maus-tratos seriam menores. Manoel Henrique Ferreira relata que

20
Op. Cit., p. 59.
21
PELLEGRINO apud BRASIL NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 281-281.
22
AMATI, Op. Cit., p. 27.
23
KEIL, Op. Cit., p. 50.
9
[...] Frente às torturas e aos torturadores, meu estado era de
um intenso terror, e isto levou-me a que passasse a ter um
comportamento extremamente individualista, que se refletia
diretamente no nível de colaboração que eu prestava aos
torturadores. Assim, visando o fim daquelas torturas, que elas
diminuíssem, eu prestava informações que levaram, inclusive,
à queda de outros companheiros. Eu deixei de pensar em
todos os motivos que me levaram a ingressar na luta, deixei de
pensar em todos os companheiros que foram mortos no
encaminhamento da luta. E meu único pensamento era o de
livrar-me daquelas torturas e, para conseguir isso, prestava-me
à colaboração com o inimigo, que procurava tirar o máximo
proveito daquela situação [...] Quando as torturas se aminaram,
meu estado psicológico era deplorável. Ao mesmo tempo em
que tudo fizera para livrar-me das torturas, agora começava a
sentir remorsos por tudo aquilo e ficava com uma contradição
muito grande, pois enquanto eu não hesitara em trair para
conseguir uma melhoria de condição pessoal, começava a
pensar no que representou essa traição, não só ao nível
político, como também ao nível pessoal.24

As sequelas

A afirmação na qual a tortura destrói o indivíduo não se restringe apenas ao


momento de ataque. Segundo Becker e Calderón, “assim como a destruição
provocada por um incêndio não desaparece quando acabam as chamas, o dano às
vítimas da repressão perdura no tempo e se manifesta, às vezes, anos ou gerações
depois de ocorridos os fatos traumáticos”25. A sobrevivência à tortura, embora possa
ser considerada a resistência do corpo, não faz com que a vítima se sinta como
herói. A humilhação e a destruição vividas causam sequelas temporárias e
permanentes, tais como as relatadas em Brasil: nunca mais: insônia, desorientação
temporal, perda de coordenação motora, evacuação de sangue, depressão, mania,
apatia, agorafobia, tremores, alucinações, pensamentos suicidas, angústia, pânico,
medo, dores de cabeça, fraqueza, confusão mental, perda de senso da realidade,
lapsos de memória. Outras sequelas psicológicas, também frequentes, são:
problemas identitários, processos dissociativos graves, comportamentos regressivos,
lutos não elaborados, pesadelos, repetição, transtornos neuróticos ou psicóticos,
24
cf. BRASIL NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 222.
25
BECKER, David; CALDERÓN, Hugo. Traumatizações extremas, processos de reparação social,
crise política. In: RIQUELME, Horacio (org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de Estado
e saúde psicossocial na América Latina. São Paulo: Educ, 1993. p. 71-79. p. 71.
10
alterações dos hábitos alimentares, sexuais etc., associadas à alta irritabilidade, com
crises de clausura mais ou menos graves, sentimentos de culpabilidade e de
vergonha, de perseguição e de dano permanente, incapacidade de trabalho e perda
profissional, isolamento, transtornos da percepção e da atenção (estado de alerta
permanente), dificuldades relacionais com o casal, a família etc.26 Houve muitos
casos de suicídios no exílio, também como sequela das torturas, como a morte de
Frei Tito de Alencar Lima, em 1974. Para o psiquiatra de Frei Tito, Dr. Jean-Claude
Rolland, seu suicídio deveria ser considerado assassinato, “pois as torturas sofridas
destruíram a sua identidade como religioso e como homem, criando uma brecha na
sua personalidade onde se instalaram os seus algozes, o delegado Fleury e o
capitão Albernaz, numa espécie de „possessão‟ fantasmática que o teria induzido à
morte”27. No caso do Uruguai, a taxa de mortalidade devido aos suicídios nos
sobreviventes da tortura é 23 vezes superior à normal do país28.
Entre as consequências psicológicas, Martín inclui a impunidade judicial dos
torturadores, a cumplicidade governamental e institucional, o silêncio da mídia, o
esquecimento e a rejeição. Para Becker e Calderón, através da psicoterapia “é
possível recuperar, primeiro o direito de reconhecer e denunciar o dano e, segundo,
construir uma nova possibilidade de vida, um novo projeto de vida”, contudo, “esta
construção nunca é uma reconstrução, porque o que se perdeu não se pode
recuperar, ainda que o perdido se possa chorar e se possa lutar por novas coisas”29.
Por isso, seria extremamente importante que no momento da abertura democrática,
o Estado se encarregasse da recuperação de suas vítimas, dispondo de
atendimento médico e psicológico ou psiquiátrico, conforme o fosse solicitado.

Controle absoluto da vida humana nas mãos do Estado: os desaparecimentos

Durante o governo Geisel, o Estado brasileiro apresentou os primeiros sinais


de uma suposta abertura política. Contudo, as prisões seguidas de morte não
acabaram. Para se proteger das acusações que receberia pela prática das prisões
ilegais seguidas de morte, e pelas versões suspeitas de “atropelamentos”, “suicídios”

26
MARTÍN, Op. Cit.
27
NAFFAH, Neto apud MARTÍN, Op. Cit.
28
MARTÍN, Op. Cit.
29
BECKER; CALDERÓN, Op. Cit., p. 77-78.
11
e “tiroteios” e “tentativas de fuga”, o governo reforçou a política dos
“desaparecimentos”, tornando-os rotina.
O método do “desaparecimento” constitui na

aplicação massiva de um método já usual na guerra


psicológica que, provavelmente, parte das experiências
acumuladas durante a guerra da Indochina pelos teóricos
militares norte-americanos e que têm como antecedente
histórico o transporte de presos “no amparo da noite” de
territórios ocupados pela Alemanha nazista, a fim de quebrar a
resistência nacionalista dos respectivos países, de acordo com
o decreto Keitel de 1942.30

Os órgãos do governo possuíam a vantagem do perseguido político estar na


clandestinidade, sem contato com sua família. Quando detido pelos órgãos de
segurança, a sociedade, os tribunais, a família, os amigos e os advogados do preso
não tomavam conhecimento a tempo de mover alguma ação para libertá-lo, de
forma que seus detentores tinham tempo o suficiente para eliminar seu corpo e
destruir qualquer vestígio de seu paradeiro.
A máxima do poder do Estado sob os corpos se dá nos desaparecimentos.
Essa prática aniquila qualquer direito de vida da vítima, deixa familiares e amigos
sem resposta, e impossibilita que o corpo seja enterrado conforme as cerimônias
tradicionais. Psicólogos sociais e antropólogos culturais norte-americanos, que
deram continuidade científica à guerra da Indochina, concluíram que o que afetava
psicologicamente os vietnamitas atingidos pela guerra mais que as mortes de
conhecidos e familiares era o fato de não poderem celebrar as cerimônias
tradicionais, com as quais se despediam de seus mortos e mostravam seu luto. A
ausência do corpo impossibilitava a continuidade das cerimônias de luto, rompendo
com o vínculo cultural que relacionava vivos com mortos, provocando sentimento de
insegurança, como se família e comunidade violassem coletivamente um tabu.31
O desaparecimento além de retirar o direito à vida de um indivíduo, produz um
efeito em seus familiares caracterizado por uma situação emocional contraditória. Ao
mesmo tempo que o familiar alimenta o sentimento de compaixão, ao pensar que a
morte é um alívio ante a tortura, também manifesta a esperança “irracional”, ao
esperar que o desaparecido apareça com vida. Os familiares e conhecidos do

30
RIQUELME, Op. Cit., p. 35.
31
Ibidem, p. 35.
12
desaparecido ficam impossibilitados de exigir punição à violação dos direitos da
vítima, e a ocultação de cadáveres servia para o governo mascarar as agressões
produzidas.32
Atualmente, contam-se 159 brasileiros desaparecidos por motivos políticos.33
Os arquivos do período, que contêm a documentação necessária para o
esclarecimento desses desaparecimentos, estão fechados, o que impossibilita a
sociedade do acesso a alguma informação. Os corpos que foram encontrados após
a “abertura democrática” foram localizados graças aos esforços de familiares.

Considerações finais

A passividade – ou apoio – da população diante à prática da tortura é resultado


do intensivo adestramento dos corpos praticados ao longo da história brasileira.
Para não se verem incomodados pelo Estado, os cidadãos preferem concordar com
políticas que reforçam a exclusão e o preconceito, se opondo apenas quando são
diretamente atingidos, ou quando envolve algum de seus familiares ou conhecidos.
No início do século XXI, parece haver um incentivo ao esquecimento, como se as
práticas exercidas durante a ditadura militar não dissessem respeito à sociedade, ou
até mesmo como se fossem necessárias para garantir as seguranças dos
indivíduos. A tortura que foi utilizada contra os presos políticos na década de 60 e
70, atualmente é comum em delegacias, presídios, hospícios e outros
estabelecimentos que tratam dos chamados “infratores” e “delinquentes”. 34 A prática
da tortura aparece justificada pelo ato de sua vítima, algum erro, deslize ou crime;
em nome da proteção individual, há um apoio constante a qualquer que seja o
método utilizado, mesmo que envolva a quebra dos direitos humanos básicos,
contanto que não seja declarado abertamente, pois também é preciso preservar a
imagem de país civilizado. Segundo Coimbra

32
Para isso, participaram médicos-legistas, normalmente vinculados às Secretarias de Segurança
Pública.
33
Dados retirados do Dossiê Ditadura (COMISSÃO DE FAMILIARES..., 2009).
34
Sobre as torturas que ainda acontecem no Brasil, Coimbra (2001, p. 12) afirma que “até maio de
2001, foram registradas somente 258 denúncias de torturas. Dessas, 56 geraram inquéritos policiais
e somente 16 chegaram à fase de julgamento. Desses, somente 1 teve condenação em última
instância: o caso de uma babá que espancou um menino de 2 anos. Ou seja, nas torturas cotidianas
cometidas por agentes do Estado ninguém até hoje foi punido”.
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Somente em alguns casos – quando se trata de pessoas
“inocentes” - há clamores públicos, o que mostra que para
“certos” elementos essa medida e outras até podem ser
aceitas. A omissão e mesmo a conivência por parte da
sociedade fazem com que muitos dispositivos repressivos se
fortaleçam em nosso cotidiano, apesar de não serem
defendidos publicamente.35

Os corpos desaparecidos são tratados como objetos perdidos, que já não


possuem importância, uma vez que não produzem utilidade. Parentes e conhecidos
das vítimas são considerados revanchistas, interesseiros, que se aproveitam de seu
passado para fazer política no presente. Se esse assunto não nos toca, não nos diz
respeito, é mais fácil passar por cima deles, “o que passou, passou”, do que lutar
pelo que nos toca como coletivo, preservando a justiça, o direito de ser livre. No
Brasil, a impunidade, do passado e do presente, torna possível uma abertura para o
preconceito, fazendo com que pessoas se sintam no direito de serem contra atitudes
de outras, o que causa desde insultos verbais até agressões físicas e morte.
Enquanto não houver uma educação voltada aos direitos humanos, que ensina a
importância das diferenças e do respeito a essas diferenças, com olhos no passado,
a violência não diminuirá, e a população estará forçada a se comportar, se adaptar,
a padrões pré-produzidos e limitados, vendo cada vez mais distante seu sonho por
liberdade.
Por fim, se no corpo estão inscritas as limitações impostas pelo Estado, é o
corpo único capaz de libertar o espírito, libertar o indivíduo para pensar por si e viver
conforme seus desejos, individuais ou coletivos. Quando um Estado torna-se
totalitário, exercendo controle absoluto sob os corpos, perde-se qualquer segurança
para exercer a vontade, transformando indivíduos em máquina, esvaziados. Se opor
a uma política de esquecimento é lutar para manter nossos corpos nossos.

É impossível manter a liberação corporal se não adotamos uma


estratégia para vencer as repressões que oprimem os nossos
corpos. Não faz sentido falar em política do corpo fora da
discussão da política do cotidiano. Em síntese, a busca da
liberação corporal, da liberdade individual, só será bem
sucedida se emoldurada pela busca da liberdade coletiva.36

35
COIMBRA, Op. Cit., p. 18.
36
FREIRE, Roberto; BRITO, Fausto. Utopia e Paixão. 8 ed. Rio de Janerio: Rocco, 1988. p. 19.
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