Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Resumo: Este artigo tem por objetivo expor alguns dos pensamentos a respeito das
violações dos direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, tratando-as como o
ataque ao corpo, no qual o maior inimigo do cidadão era o próprio Estado. Sob a perspectiva
da história do corpo, serão analisados aspectos da tortura presentes em textos de
psicólogos, filósofos e historiadores, que, em algum momento de sua carreira, estiveram em
contato com as vítimas das ditaduras militares latino-americanas.
Palavras-chave: Ditadura militar brasileira – Tortura – História do corpo – Psicologia social.
3
AMATI, Silvia. Contribuições psicanalíticas ao conhecimento dos efeitos da violência
institucionalizada. In: RIQUELME, Horacio (org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de
Estado e saúde psicossocial na América Latina. São Paulo: Educ, 1993, p. 19-32. p. 25.
4
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Psicologia
em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 11-19, jul./dez. 2001. p.12.
3
foi eliminado, sendo preservado apenas o corpo submisso e mantedor do poder
militar. O “ataque ao corpo” é o ato extremo de uma política de adestramento da
população, que joga com a vida das pessoas, transformando-as em meros objetos.
O estudo das violações dos direitos humanos serve a uma luta pelo humano, contra
a tendência à coisificação dos corpos e contra o esquecimento das atrocidades
cometidas contra pessoas que tiveram seu direito de ser eliminado.
5
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
6
No primeiro volume, A história dos costumes, em O processo civilizador, o homem ocidental
estudado por Elias é o alemão, o francês e o inglês.
7
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
8
Ibidem, p. 28.
4
Foucault procura fazer uma história dos castigos com base na história do
corpo. Para o autor, o corpo está diretamente mergulhado num campo político, e as
relações de poder o alcançam, o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam,
sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias e exigem-lhe sinais.
Ambos autores escreveram sobre um controle indireto, fora do campo aparente
e destituído de punições violentas. Enquanto Elias assinala a importância do Estado,
Foucault acredita que são poderes descentralizados que marcam os corpos. Durante
os regimes totalitários, as “disciplinas”, ou seja, os métodos de controle ou as
“educações do corpo”, tornam-se cada vez mais rígidas, tanto para eliminar a
oposição explícita ao governo quanto para evitar qualquer posição contrária às
atuações dos governantes. Como prática máxima do “adestramento” da população,
a tortura foi aplicada de forma sistemática, tornando o poder do Estado sob os
corpos impossível de passar despercebido. E esse foi um dos objetivos dos
governantes, uma vez que o medo do que poderia ser feito serviu como campanha
política.
Segundo a ONU, tortura é
O poder punitivo, através da tortura, marcou o corpo pela dor e pelo medo da
dor. Segundo Riquelme10, a tortura sistemática tinha como objetivos a obtenção de
informação, a confrontação, semear a desconfiança e provocar a invalidez
psicossocial de supostos ou reconhecidos opositores ao regime. Para Mauren e
Marcelo Viñar, o objetivo da tortura era “provocar a explosão das estruturas arcaicas
constitutivas do sujeito, isto é, destruir a articulação primária ente o corpo e a
9
DALLARI, apud COIMBRA, Op. Cit., p. 12.
10
RIQUELME, Horacio. América do Sul: direitos humanos e saúde psicossocial. In: RIQUELME,
Horacio (org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocial na
América Latina. São Paulo: Educ, 1993. p. 33-43. p. 38.
5
linguagem”11. Mais do que obter confissões – verdadeiras ou inventadas –, a tortura
na América Latina tinha como objetivo fazer calar, aniquilar qualquer desejo
democrático que colocasse em risco a dominação do Estado. A tortura visava
destruir o indivíduo, “cada gesto do torturador foi estudado para produzir a
submissão total e a paralisia dos opositores do governo dos militares”, de forma que
o torturador ouvia o que queria, e as pessoas eram “reduzidas a máquinas
funcionais”12.
Segundo Elio Gaspari, “quando tortura e ditadura se juntam, todos os cidadãos
perdem uma parte de suas prerrogativas e, no porão, uma parte dos cidadãos perde
todas as garantias”13. No Brasil, apesar de acontecer desde a implantação do regime
militar e em períodos anteriores, a partir do AI-5 a tortura tornou-se política
sistemática do Estado, quando a “linha dura” assumiu o poder, em 1968. O estudo
dos processos políticos da Justiça Militar, revelados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais,
mostram que a tortura era constante nos interrogatórios, sendo instituída antes
mesmo que qualquer atividade “subversiva” do sujeito fosse comprovada. Durante o
Regime Militar, a tortura passou à condição de
11
GUINZBURG, Jaime. Imagens da tortura: ficção e autoritarismo em Renato Tapajós. In: KEIL, Ivete;
TIBURI, Márcia (orgs.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004. p. 145.
12
KEIL, Op. Cit., p. 55; BRASIL: NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 17.
13
apud GINZBURG, Op. Cit., p. 159.
14
BRASIL: NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 32.
6
trabalho dos interrogadores. O ex-presidente general Ernesto Geisel (1974-1979)
afirmou em seu livro de memórias que a tortura tornava-se necessária para a
obtenção de informações. Segundo o general, ainda no governo de Juscelino
Kubitschek, oficiais foram mandados à Inglaterra para conhecer as técnicas do
serviço de informação e contra-informação inglês, onde aprenderam vários
procedimentos sobre tortura. Ainda afirma que:
15
em O Globo, 1997, apud COIMBRA, Op. Cit., p. 15.
16
Não se quer dizer com esta afirmação que a tortura tenha sido apenas psicológica, e suas vítimas
somatizaram machucados e futuras sequelas. Pelo contrário, a tortura também foi física, provocando
o efeito inverso, prejudicando seriamente a mente. A tortura resultou em indivíduos duplamente
quebrados.
7
Foram os ingleses que trouxeram a idéia da geladeira17. Esses
torturadores muito haviam torturado na África e na Ásia. Por
sua vez, os torturadores brasileiros não apenas se gabavam de
sua sofisticada tecnologia da dor, mas também alardeavam
estar em condições de exportá-la ao sistema repressivo de
outros países. E assim o fizeram, ministrando cursos em outras
ditaduras latino-americanas. O Brasil exportou a arte de melhor
torturar.18
17
Quarto de dois a quatro metros, escuro e frio, o qual os agente usavam entre as torturas em salas
quentes e iluminadas, causando insegurança nas vítimas (cf. BRASIL NUNCA MAIS, 1985).
18
KEIL, Op. Cit., p. 53.
19
KEIL, Op. Cit., p. 49-50.
8
A prática da tortura retira do indivíduo qualquer direito, inclusive aquele sob
seu corpo. Sendo o corpo o espaço que o sujeito ocupa na sociedade, como já foi
afirmado, tal privação de direito significa negar a existência humana; o corpo
torturado torna-se um objeto, rompendo suas relações de sujeitos com os outros e
consigo mesmo. O corpo passa a ser lugar de encontro com o mal, produz a
aparência de um mundo binário no qual parece apenas existir torturador e torturado.
O torturado vive a experiência limite da tortura, ele é diretamente aniquilado pela dor
que lhe provoca o torturador, em seu corpo encontra-se a narrativa da decepção e
da perda de pertencimento com a humanidade. Porém, além desse mundo binário,
Keil20 afirma que a sociedade participa tanto por sua passividade quanto por sua
ameaça, uma vez que o discurso do poder “penetra em toda a sociedade, e cada
indivíduo passa a ser o seu próprio torturador e o torturador de seu próximo”. O
“próximo” atua como delator, seja por má fé, seja no porão, quando o corpo já não
resiste. O indivíduo perde qualquer confiança nos outros e em si, uma vez que a
tortura também provoca a perda de seu corpo: os maus-tratos fazem com que o
próprio se entregue, mesmo quando não há “culpa”.
Para o psicanalista Hélio Pelegrino,
20
Op. Cit., p. 59.
21
PELLEGRINO apud BRASIL NUNCA MAIS, Op. Cit., p. 281-281.
22
AMATI, Op. Cit., p. 27.
23
KEIL, Op. Cit., p. 50.
9
[...] Frente às torturas e aos torturadores, meu estado era de
um intenso terror, e isto levou-me a que passasse a ter um
comportamento extremamente individualista, que se refletia
diretamente no nível de colaboração que eu prestava aos
torturadores. Assim, visando o fim daquelas torturas, que elas
diminuíssem, eu prestava informações que levaram, inclusive,
à queda de outros companheiros. Eu deixei de pensar em
todos os motivos que me levaram a ingressar na luta, deixei de
pensar em todos os companheiros que foram mortos no
encaminhamento da luta. E meu único pensamento era o de
livrar-me daquelas torturas e, para conseguir isso, prestava-me
à colaboração com o inimigo, que procurava tirar o máximo
proveito daquela situação [...] Quando as torturas se aminaram,
meu estado psicológico era deplorável. Ao mesmo tempo em
que tudo fizera para livrar-me das torturas, agora começava a
sentir remorsos por tudo aquilo e ficava com uma contradição
muito grande, pois enquanto eu não hesitara em trair para
conseguir uma melhoria de condição pessoal, começava a
pensar no que representou essa traição, não só ao nível
político, como também ao nível pessoal.24
As sequelas
26
MARTÍN, Op. Cit.
27
NAFFAH, Neto apud MARTÍN, Op. Cit.
28
MARTÍN, Op. Cit.
29
BECKER; CALDERÓN, Op. Cit., p. 77-78.
11
e “tiroteios” e “tentativas de fuga”, o governo reforçou a política dos
“desaparecimentos”, tornando-os rotina.
O método do “desaparecimento” constitui na
30
RIQUELME, Op. Cit., p. 35.
31
Ibidem, p. 35.
12
desaparecido ficam impossibilitados de exigir punição à violação dos direitos da
vítima, e a ocultação de cadáveres servia para o governo mascarar as agressões
produzidas.32
Atualmente, contam-se 159 brasileiros desaparecidos por motivos políticos.33
Os arquivos do período, que contêm a documentação necessária para o
esclarecimento desses desaparecimentos, estão fechados, o que impossibilita a
sociedade do acesso a alguma informação. Os corpos que foram encontrados após
a “abertura democrática” foram localizados graças aos esforços de familiares.
Considerações finais
32
Para isso, participaram médicos-legistas, normalmente vinculados às Secretarias de Segurança
Pública.
33
Dados retirados do Dossiê Ditadura (COMISSÃO DE FAMILIARES..., 2009).
34
Sobre as torturas que ainda acontecem no Brasil, Coimbra (2001, p. 12) afirma que “até maio de
2001, foram registradas somente 258 denúncias de torturas. Dessas, 56 geraram inquéritos policiais
e somente 16 chegaram à fase de julgamento. Desses, somente 1 teve condenação em última
instância: o caso de uma babá que espancou um menino de 2 anos. Ou seja, nas torturas cotidianas
cometidas por agentes do Estado ninguém até hoje foi punido”.
13
Somente em alguns casos – quando se trata de pessoas
“inocentes” - há clamores públicos, o que mostra que para
“certos” elementos essa medida e outras até podem ser
aceitas. A omissão e mesmo a conivência por parte da
sociedade fazem com que muitos dispositivos repressivos se
fortaleçam em nosso cotidiano, apesar de não serem
defendidos publicamente.35
35
COIMBRA, Op. Cit., p. 18.
36
FREIRE, Roberto; BRITO, Fausto. Utopia e Paixão. 8 ed. Rio de Janerio: Rocco, 1988. p. 19.
14
Referências bibliográficas
AGGER, Inger; JENSEN, Sören Buus. A potência humilhada: tortura sexual de presos
políticos de sexo masculino. Estratégias de destruição da potência do homem. In:
RIQUELME, Horacio (org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde
psicossocial na América Latina. São Paulo: Educ, 1993. p. 45-69.
ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. Dor e desamparo. Psicologia Clínica, Rio
de Janeiro, v. 20, n. 2, 2008, p. 75-87. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/
pc/v20n2/a06v20n2.pdf>. Acesso em dez. de 2010.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história.
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 11-19, jul./dez. 2001
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
FLEIG, Mario. O mal-estar no corpo. In: KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (orgs.) O corpo
torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004.
FREIRE, Roberto; BRITO, Fausto. Utopia e Paixão. 8 ed. Rio de Janerio: Rocco, 1988.
KEIL, Ivete. Nas rodas do tempo. In: KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (orgs.) O corpo torturado.
Porto Alegre: Escritos, 2004.
______. América do Sul: direitos humanos e saúde psicossocial. In: RIQUELME, Horacio
(org.). Era de Névoas: direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocial na
América Latina. São Paulo: Educ, 1993. p. 33-43.
15