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Jeanne Callegari

CAIO FERNANDO ABREU


inventário de um escritor irremediável

CD
SEOMAN

 
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Copyright © 2008, Editora Seoman

Coordenação Editorial MANOEL LAUAND


Capa e
Revisão HENRIQUE MINATOGAWA Projeto Gráfico GABRIELA GUENTHER
Foto da Capa e da Abertura do livro ADRIANA FRANCIOSI/AGÊNCIA RBS
Checagem CLARA YWATA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara


Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Callegari, Jeanne
Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável / Jeanne
Callegari. — São Paulo:
Seoman, 2008.
ISBN 978-85-98903-10-1

1. Abreu, Caio Fernando 2. Escritores brasileiros — Biografia I. Título


08-05638 CDD — 928.699

índices para catálogo sistemático:


1. Escritores brasileiros : Biografia 928.699

EDITORA SEOMAN
Rua Pamplona, 1465 — cj. 72 — Jd. Paulista
São Paulo — SP — Cep 01405-002
Fone: 11 3057-3502
info@seoman.com.br
www.seoman.com.br

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98.


É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Foi feito depósito legal.


Para Caio F, pela paixão;
Para Jonas Lopes, pelo apoio;
e para Eduardo Nasi, com amor.

PREFÁCIO

O perfil de Caio Fernando Abreu escrito por Jeanne


Callegari pode ser lido como um romance. Um delicado
romance que, cheio de paixão mas também de pudor, pisa
devagar sobre a matéria ardente. A estratégia narrativa de
Jeanne combina com a estratégia existencial de Caio, que
também viveu como se sua vida não passasse de um
romance, um desses romances tensos, cheios de tristeza e de
revolta, de atração pelo risco mas também de fascínio pela
beleza, em cujas páginas avançamos com o coração na mão.
Jeanne começa imitando os romances clássicos. Ela
parte dos extratos remotos, mas decisivos da infância, das
primeiras descobertas e dos primeiros sustos, para
acompanhar, à distância, a formação difícil do escritor.
"Desde muito pequeno, o menino Caio demonstrou uma
inclinação para a arte", diz. Esta tendência logo se revela uma
disposição para a fermentação interior, movimento que o
arrastou, desde cedo, para temas ameaçadores como o
erotismo, a fraqueza e o risco de morte.
Nem mesmo a prática do jornalismo, que se apóia no
concreto e na objetividade, lhe serviu para abrandar as
turbulências íntimas. Em um conto como Pequeno monstro,
de Os dragões não conhecem o paraíso, nos mostra Jeanne,
Caio já rascunha, através de um jovem ai ter ego e por vias
tortas, um terrível retrato de si. "Pernas e braços demais,
pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual a
um pato, eu queria me esconder de todos". Viver é não só
suportar, mas sobretudo lutar contra o que se é.
Talvez se possa pensar que, com sua alma efervescente, Caio
Fernando Abreu tenha sido um eterno adolescente — e o livro
de Jeanne Callegari, por vezes, nos enche de argumentos a
favor dessa idéia. Mas Jeanne nos mostra também que, se o
jovem rebelde persistia, grudado a ele, como um duplo, havia
desde logo um poeta (pela postura, e não porque escrevesse
versos, pois, se os escrevia, nunca publicou). Um homem que
nunca desconheceu o peso do caminho que lhe coube
atravessar.
Mesmo amparando-se no recurso mais didático da
ordem cronológica, nem assim a autora consegue organizar e
domar a atmosfera de inconstância e de desamparo que
cercou a vida do escritor. Períodos fundamentais — como
aquele em que, fugindo da perseguição da ditadura militar,
ele se escondeu no sítio da escritora Hilda Hilst, na periferia
de Campinas — ajudam a fixar traços mais firmes. Em sua
chácara, Hilda seguia a idéia do escritor grego Nikos
Kazantzakis, segundo quem, para entender a sociedade, é
preciso primeiro dela se afastar. Lição que o jovem Caio
tratou logo não só de imitar, mas de incorporar como
fundamento de sua existência, e que o ajudou a delimitar, de
vez, a figura de um sujeito à margem, de um desviante, um
rebelde. Pode-se dizer que foi na chácara de Hilda, escoltado
por ela — como uma parteira que de um corpo arrancasse
não outro corpo, mas um espírito — que o escritor adulto veio
a nascer.
"As vezes que tentei morrer foi por não suportar a
maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo",
Caio escreve em uma carta aos pais, datada do final dos anos
1960. Quando, no início da década de 1970, vai para a
Europa, já é um homem que deseja abraçar o mundo, perder-
se na esperança de, enfim, se achar. Leva então uma
existência precária, faz bicos, lava pratos, sobrevive como
pode, mas avança, na Suécia, na Holanda, na Inglaterra. A
bissexualidade se abre, rompendo de vez os limites de uma
vida burguesa.
Mas, nos mostra Jeanne, quanto mais Caio se liberta e
expande seus horizontes, mais afunda na dor. "Escrevo por
uma espécie de incompatibilidade de gênios com a vida,
escrevo para reinventar, escrevo para organizar o caos, para
não enlouquecer de impotência, para re-fazer", ele mesmo
descreve em uma crônica da época. Dor e escrita se conectam
de modo fatal, e é nesse nó que Jeanne Callegari puxa o fio
de "um escritor irremediável". E aqui se deve entender o
irremediável em dois sentidos: como uma condenação (algo
que não tem remédio), e como um destino (algo em que ele se
lança para a vida e com grande vigor).
De volta a São Paulo, Jeanne reencontra Caio, aos 30
anos, "de calça de couro, jaqueta, gestos finos, elegantes",
encostado em um carro. "O ser todo exalava algo de sexual, e
de solitário também", ela resume, em uma descrição que,
mesmo rápida, fisga quase toda a alma de Caio Fernando
Abreu. Um sujeito que, apesar da sensibilidade extrema e da
volúpia de viver sempre frustrada, nunca desiste de
recomeçar. O medo da loucura, do desastre, do fracasso, se
agiganta. A relação de amor e tensão que tem com a poeta
Ana Cristina César — que, depois de muita luta interior,
termina por cometer suicídio — é uma síntese desses
sentimentos.
É também o momento em que, em O triângulo das
águas, mais especificamente na novela Pela noite, pela
primeira vez, Caio menciona o terror da aids — que naquela
época, de ignorância e preconceito, ainda era chamada,
muitas vezes, de "câncer gay". Mesmo cheio de terrores, Caio
avança. Dedica-se cada vez mais a ler poesia — sobretudo
Adélia Prado, Fernando Pessoa e Mario Quintana. Sua escrita
está cada vez mais impregnada de lirismo, um lirismo seco e
doloroso, e também de um misticismo vago, que se acentua
na atitude pessoal — que cultiva com esmero — de um bruxo.
O anjo negro chega ao extremo até que ele mesmo,
depois de uma doença longa e estranha, recebe a notícia de
que é soro-positivo. Fato, que comunica, de modo frontal, em
uma série de crônicas publicadas no jornal O Estado de S.
Paulo. É o momento da virada — em que o positivo que indica
a doença, negativo, portanto, é convertido por Caio em algo
positivo mesmo. A vida lhe abre uma nova face. Fraco, mas
cheio de coragem, ele volta a morar com os pais, no sul, e se
dedica a rever seus livros, procurando extrair, dos mergulhos
negativos, sentidos novos e vitais.
A morte o pega quando vivia como um romântico
jardineiro, quieto entre suas flores domésticas, apegado ao
prazer de cuidar dos próprios espinhos. É nesse andar das
coisas pequenas que Jeanne o persegue até o fim. Seu livro
tem a objetividade dos relatórios científicos, mas também o
encantamento das cartas de amor e, ainda, a reserva
temerosa das grandes confissões. Jeanne se contém sempre,
o mais que pode, porque sabe que aventurar-se na vida e na
obra de Caio Fernando Abreu guarda sempre um grande
risco, é mergulhar no veneno terno da imperfeição.

José Castello
INTRODUÇÃO: CEM MIL CAIOS

Um, nenhum e cem mil. O título de Pirandello ronda as


noites de quem se impõe a tarefa, desde o início condenada
ao fracasso, de traduzir e dar unidade a todos os muitos que
algum outro foi. Escrever sobre Caio Fernando Abreu,
camaleão, estrangeiro, inquieto, não foi a exceção da regra.
Ele foi milhares. O Caio obsessivo com o lado escuro de todas
as coisas, mas apaixonado pela vida, sempre em busca da
luz, das flores, da leveza. O Caio simpático com os outsiders,
com quem, curioso e temerário, gostava de andar no limite,
nas noites mais perigosas, mas nunca a ponto de se perder,
nunca a ponto de perder o caminho de volta, que marcava,
como João e Maria da fábula, não com pedacinhos de pão ou
pedrinhas, mas com seus textos, a literatura. O Caio que
usava as palavras como arma de sobrevivência quando batia
a depressão, a vontade de ficar sozinho, o desespero. O Caio
do equilíbrio sempre além do comum, do banal, que alternava
fases macrobióticas com costelas gordas, chás medicinais
com whisky, cigarro com jardins e flores, sempre flores.
Avencas, rosas, girassóis. O Caio F, apaixonado sempre, de
uma fidelidade canina com os amigos, de um humor
implacável e ácido, do qual ele mesmo era um dos principais
objetos. O Caio inclassificável, que se recusava a fazer parte
de movimentos, filosofias e seitas, mas que passeava e
pairava por todas elas. O amigo difícil de conviver, fácil de
amar; o escritor admirado e cheio de seguidores. O Caio
erudito, o Caio pop, o Caio filosófico, o Caio abobrinha, o Caio
deprimido. Com todos esses tive que lidar, e também com
seus órfãos, herdeiros e viúvas, todos aqueles que ficaram
carentes quando ele se foi, de aids, em 1996.
Muitos não queriam falar, dar entrevista. Tinham ciúme
e zelo de tocar em memórias tão delicadas. Costuma ser
assim, em uma tentativa como essa, de retrato; sempre algo
fica de fora da moldura, oculto pela linha fina, reservado para
poucos olhos. Muitos, pelo contrário, queriam dividir sua
visão do Caio, suas memórias. Achavam quase egoísmo
deixar a beleza de anedotas e palavras para trás, queriam que
o mundo conhecesse o homem por trás do texto, e que
homem extraordinário era esse!, pensavam. Não há razão
mais certa que a outra, e a todos agradeço a colaboração, a
boa vontade, a delicadeza em retornar meus pedidos
insistentes. Cansa forçar a memória, buscar fatos muitas
vezes esquecidos num cantinho das lembranças. Cansa
reviver momentos tristes e a partida de alguém que se amou.
Por trás de depoimentos e histórias que marcaram, por
trás de frases ditas e registradas em cartas, através de contos
e romances, emergia aquilo que eu buscava, como o
personagem de Pirandello: a unidade. Fui achando que
entendia Caio, me sentindo íntima dele. Sobre o que
conversaríamos se ele estivesse aqui? Sobre a infância em
Santiago, a adolescência em Porto Alegre. A vida adulta em
São Paulo, no Rio. A triste e heróica caminhada para o fim,
em meio a suas rosas e a sua família. Sim, teríamos sobre o
que falar. Fiz algumas descobertas sobre esse jardineiro-
escritor marcante e apaixonado, personagem e autor da
própria vida. Se a importância como escritor era flagrante
desde o início, a importância como filho, amigo, jornalista e
personalidade foi surgindo devagar, aparecendo como em
uma revelação fotográfica. Apesar dos tantos traços, do
contorno esboçado, faltam ainda detalhes. É que esse relato
não se pretende definitivo, uma biografia exaustiva. Antes é
um perfil, um recorte dessas milhares de faces. Ainda há
muito a dizer sobre Caio Fernando Abreu. Muita gente para
prosear a respeito, muitos arquivos a revirar, muitas
fotografias para nos fazer lembrar. Mais cem mil para serem
estudados. Partindo daqui, dá para ir apreciando o caminho,
cada nova nuance, detalhe. Pois o ponto de chegada não
existe. Por definição, é imperfeito.

Jeanne Callegari
As cartas de Caio citadas no livro foram extraídas de Caio Fernando
Abreu — Cartas, organizado por ítalo Moriconi e publicado pela editora
Aeroplano em 2002. A carta de Manuel Abreu para o filho Zaél nunca
foi publicada, faz parte do acervo da família e foi gentilmente cedida por
ela, assim como algumas das cartas de Vera Antoun e os postais de
Pedro Paulo de Sena Madureira.
PRÓLOGO

— Caio, você vai fazer isso comigo? Se você se matar, as


coisas vão se complicar para mim, que estou aqui com você
— grita Gil Veloso.
Ele está ao lado da janela do andar de cima do duplex
de um flat na Frei Caneca, em São Paulo. Ele argumentava
com o escritor Caio Fernando Abreu, que se aproximava da
janela e a abria, pela segunda vez naquela noite, com a vaga
intenção de se jogar. Há três dias, o escritor tinha descoberto
que era portador do vírus da aids. Para evitar que Caio fizesse
uma besteira, o amigo Gil conversava, argumentando que se
ele se jogasse lá embaixo, a situação poderia complicar para o
seu lado, que estava junto no apartamento. Gil sabia que
Caio o queria bem: não faria nada que pudesse prejudicar o
amigo. Além disso, Caio não era um suicida; menosprezava e
era contra as pessoas que tinham a indelicadeza de se matar,
deixando os amigos morrendo de saudades do lado de cá. A
reação era, apenas, um reflexo da febre.
O ano era 1994. Aos 45 anos, Caio Fernando Abreu era
um escritor consagrado, ganhador de dois prêmios Jabuti,
traduzido na França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Holanda.
Era também autor premiado de teatro. Como jornalista, tinha
integrado a primeira equipe de reportagem da Veja, e depois
disso passara por vários veículos, como IstoE, O Estado de S.
Paulo, Folha de S. Paulo, Nova, POP, Zero Hora, Gallery
Around, Leia Livros, Correio da Manhã. Viveu com intensidade
as décadas de 1970 e 1980 e, por ter retratado tão bem
experiências e emoções de sua época, era considerado ícone
de uma geração.
Mas Gil Veloso não pensava em nada disso quando foi
socorrê-lo no flat, naquela segunda-feira. Outras pessoas
haviam passado por lá: no final da tarde, Déa Martins e Gil se
encontraram no elevador. Caio ligara para os dois, pedira
para que levassem água, e ambos chegaram com garrafas na
mão. Subiram, viram que Caio não estava bem, conversaram
sobre a situação, se seria melhor interná-lo ou não, e
combinaram de ir se falando. Déa foi embora e Gil ficou
cuidando do Caio.
O escritor passara os últimos três dias ligando para os
amigos, contando que estava com aids, dando a notícia.
Estava recluso, como se digerisse a situação. Depois, ele diria
que sua primeira reação foi de naturalidade, como se já
esperasse: a doença o rondava fazia pelo menos dez anos,
quando, em 1983, começaram a aparecer os primeiros casos
no Brasil. Não eram poucos os amigos que Caio tinha perdido
para a aids: Vicente Pereira, Luiz Roberto Galizia, Paulo
Yutaka, Lory Finocchiaro, Cazuza. Agora era a sua vez, e
parecia natural que assim fosse.
Mas, depois do fim de semana aparentemente sensato,
algo mudou: ele finalmente pareceu assimilar, com toda a
força, o que estava acontecendo. Aids! Estou com aids,
pensou Caio. Aids, doença, morte. Não era mais ficção; agora
era de verdade. Fim da linha. Então veio a febre, e ele não se
lembrava de mais nada.
Estava muito fraco, não queria comer. Recitou coisas
sem sentido, delirou, teve alucinações. Gil, que estava com
ele, entrou no jogo, fingia estar vendo as borboletas
imaginárias, para assim tentar trazer o doente de volta à
realidade. Mesmo assim, continuavam os delírios, os sem-
sentidos que dizia. Gil decidiu ligar para uma médica. Na
primeira vez que desceu as escadas para alcançar o telefone,
ouviu a janela se abrindo. Correu e pegou Caio, que se
aproximava do parapeito. Deu um grito.
Assustado, Caio paralisou; como uma criança, olhou
para Gil e compreendeu o absurdo do gesto. Gil ficou
conversando, acalmando o amigo até que pudesse descer
novamente e pedir ajuda. Da segunda vez, conseguiu
telefonar para alguns amigos e para a médica antes que Caio
abrisse novamente a janela e ele precisasse argumentar para
evitar novas tentativas.
Não houve jeito senão chamar uma ambulância e levá-lo
para o hospital Emílio Ribas. Eram mais ou menos onze da
noite. A essa altura, Caio estava já completamente nu, e
quem o vestiu e o colocou na ambulância foi Gil, pois os
enfermeiros tinham medo da contaminação.
No hospital, não havia leitos. Caio ficou em uma maca
enquanto aguardava que um quarto vagasse. Gil já havia
ligado para Déa, que também estava ali.
No dia seguinte, Caio já estava em um quarto. Não se
lembrava de absolutamente nada. Os amigos foram visitá-lo e
sua irmã Cláudia chegou de Porto Alegre. O médico disse a
ele:
— Você precisa agora é de qualidade de vida.
Era tempo de Caio realizar um sonho: voltar ao Rio
Grande do Sul. Voltar a Porto Alegre, para a casa dos pais.
Plantar roseiras, ter uma vida tranqüila. Voltar às raízes.
Afinal, tinha sido no Rio Grande do Sul que tudo tinha
começado.

UM

É a década de 1940 em Santiago do Boqueirão, pequena


cidade ao sul do Brasil. O comerciante Manuel Abreu,
nascido em 1887, senta-se para escrever uma carta ao filho
Zaél, de 24 anos. Tendo escolhido a carreira militar, Zaél fora
morar em Itaqui, transferido junto com o primeiro batalhão
destacado para operar na cidade. O rapaz, normalmente
tranqüilo, tinha passado por uma fase boêmia, de bebedeiras
e namoricos. Coisa da idade, do contato com colegas
farristas, amigos do copo e de mulheres bonitas. Por isso,
quando, no final de 1945, seu Manuel recebe uma carta do
filho pedindo autorização para se casar, ele não nega, por
dois motivos. Primeiro, porque Zaél já era homem feito,
emancipado e, portanto, único responsável por seus atos.
Segundo, porque, mesmo sem conhecer a moça em questão,
que também morava em Itaqui, seu Manuel acreditava que o
casamento seria uma boa maneira de tranqüilizar a vida de
Zaél. No dia 15 de dezembro, o pai responde à carta, dando
seu consentimento para a cerimônia, dizendo que, com boa
vontade e energia, seria possível controlar a vida desregrada
que o filho levara até ali.
A carta; trazia também recomendações para que Zaél
economizasse dinheiro a fim de poder se casar o mais rápido
possível, "porque não é lícito também ficares noivo indefinida-
mente, prejudicando o futuro de uma filha alheia". No mais,
Manuel esperava que as qualidades da noiva de Zaél se
confirmassem, e que ambos fossem dignos um do outro.
Aproveitando para agradecer o lindo vidro de azeite que Ota-
cílio e Jurema haviam mandado, ele termina a carta, com
"saudades e abraços de todos, do teu pai e amigo, Manuel
Abreu".
Dois anos depois, Zaél Menezes Abreu e Nair Ferreira
Loureiro se casaram. E Manuel deve ter gostado da nora que
aprovara mesmo antes de conhecer. Nair era mulher forte,
decidida. Era ela que, com pulso firme e determinação,
comandava a casa. Depois da entrada dela na vida de Zaél, o
jovem sossegou. Seria sempre conhecido como homem afável,
tranqüilo.
Zaél e Nair se conheceram em Itaqui, onde ela nascera.
Localizada na fronteira com a Argentina, Itaqui tinha pouco
mais de 18 mil habitantes na época e a base de sua economia
era agropecuária. A família de Nair era das mais distintas:
Alcina Alves Ferreira, mãe dela, era prima de Rodrigues Alves,
o presidente. Eram descendentes de portugueses, provavel-
mente cristãos-novos. "Por causa dos narizes", brincaria anos
mais tarde uma das netas de dona Alcina.
Quando Nair era pequena, porém, a situação financeira
da família ficou complicada: com a morte do pai, a mãe
começou a costurar para fora para pagar as contas e, assim,
poder mandar as crianças para a escola. Nair insistia em
estudar: viria a ser professora. Assim, foi a única dos sete
filhos a cursar faculdade. Das outras meninas, três se
tornaram donas de casa. Válter, um dos rapazes, se tornou
delegado de polícia, e o outro, Marciano, jogador de futebol —
chegou a fazer parte do Botafogo do Rio de Janeiro. A única
que também se tornou professora, como Nair, foi sua irmã
Flora.
Aos 16 anos, Nair se formou na Escola Normal: ser
professora era uma das únicas profissões possíveis para uma
mulher naqueles tempos. Aos 17, ela se mudou para uma
fazenda em São Borja — a cidade dos presidentes Getúlio
Vargas e João Goulart — para dar aulas para os filhos de
um rico fazendeiro. Um a um, os três garotos viriam, anos
depois, a se tornar prefeitos de São Borja.
Depois da fazenda, Nair foi para outra das pequenas
cidades da região dar aula em uma escolinha, e assim foi até
que conheceu Zaél, em Itaqui. Provavelmente, o encontro se
deu em algum dos bailes, freqüentes na época, ou na hora do
footing, na Praça Central. As mulheres andavam para um
lado e os homens, para o outro. Na troca de olhares, paixões
nasciam e morriam. Quando Nair conheceu Zaél, ele usava
um enorme anel de ouro, com um Z gravado. Ela perguntou o
que significava aquela inicial. Zaél odiava profundamente o
próprio nome, que, assim como o de sua irmã Elza, fora
inventado a partir de partes do nome de seus pais (ManuEL e
AdeliZA). Resmungava sempre algo sobre isso, contrariado.
Todo mundo confundia: Ismael, Israel; era difícil achar quem
acertasse. Portanto, quando Nair perguntou o significado do
Z, ele não teve dúvidas e disse: Zeferino. A confusão foi
desfeita, mas a anedota ficou na memória da família.
Uma noite, enquanto ainda eram noivos, Zaél discutiu
com Nair. Mais tarde, ela iria a um baile no Clube Comercial
de Itaqui, e ele queria porque queria entrar na festa para
buscá-la. Estava bêbado. Queria entrar fardado e a cavalo no
clube, mas os amigos do quartel o amarraram na cama, e ele
não pôde sair. Depois de casado, Zaél sossegou. Seu humor,
no entanto, permaneceria o mesmo: embora calado, de vez
em quando soltava tiradas mordazes e engraçadas.
Assim que se casaram — sem festa, pois não havia
dinheiro para isso — Zaél foi transferido para Santiago e Nair
arrumou um emprego como professora em uma escola local.
Santiago do Boqueirão, antiga São Tiago das Missões, perto
da fronteira com a Argentina, no Rio Grande do Sul, se
destacava das outras pequenas cidades da região. Não pelo
tamanho ou pela prosperidade, ou pelas belezas, que
certamente possuía, mas pela quantidade de quartéis.
Santiago era polvilhada de quartéis, e a maioria dos homens
que ali moravam era militar. Sorte das mocinhas, que
gostavam de namorar homens fardados. Achavam bonito.
Nem só de quartéis viveu Santiago, no entanto: houve
um sambista, Túlio Piva, autor do sucesso de verão Tem que
ser mulata, regravado em inúmeras línguas. Lá nasceu
também o cartunista Santiago, que, batizado Neltair Rebés
Abreu, tirou o apelido da cidade em que nasceu. O pai de
Neltair era primo-irmão de Zaél. E, em um país apaixonado
por futebol, também havia de existir um jogador vindo de
Santiago: Anderson Polga. Houve, também, pelo menos um
herói. Em 1936 — dois anos antes de Santiago ser oficial-
mente promovida a "cidade" — o juiz eleitoral Moysés Vianna
morreu abraçado a uma urna eleitoral, enquanto era
cravejado de balas. Por defender a lisura da eleição naquela
localidade com a própria vida, o heróico juiz virou medalha: a
"Medalha do Mérito Eleitoral Moysés Vianna", concedida a
todos aqueles que se destacassem pela atuação em matéria
de Direito ou Justiça Eleitoral.
Assim era Santiago, em 1948, quando Nair ficou grávida
do primeiro filho: uma terra predominantemente militar, com
seus heróis e mártires, seus costumes e lendas, como
qualquer outra cidade. Santiago viria a ser a inspiração para
Caio criar o Passo da Guanxuma, uma cidade fictícia, à
maneira da Macondo de Garcia Márquez e da Santa Maria de
Juan Carlos Onetti. O Passo aparece em vários contos de
Caio, e ele ambicionava um dia escrever um grande romance
sobre a cidade. Embora o texto inteiro jamais tenha sido feito,
o capítulo introdutório aparece em Ovelhas negras, coletânea
lançada no fim da vida do escritor.
"Isso é o que se conta, o que se diz, o que se vê e não se
vê, mas se imagina do Passo. De tudo, o mais real, salpicadas
entre as quatro patas da aranha — no meio dos girassóis do
leste, à beira dos lajeados ao sul, pelos descampados do norte
e até mesmo entre os vãos mais sombrios das areias a oeste
— o que mais tem em qualquer tempo de seca ou aguaceiro,
calorão ou friagem, são touceiras espessas de guanxuma.
[...]... de dois males jamais sofreu, sofre ou sofrerá o Passo.
De distúrbios estomacais, que chá de guanxuma é tiro e
queda, nem de pó acumulado, que os ramos servem pra fazer
vassouras capazes de assentar até mesmo a poeira daquele
deserto próximo que sopra e sopra noite e dia sem parar e,
dizem, dizem tanto, ai como dizem nesse Passo, nunca pára
de crescer."

Eram oito e quinze da manhã do dia 12 de setembro de


1948. Na rua Pinheiro Machado, 575, Nair de Abreu acabava
de dar à luz pela primeira vez. As parteiras Julia Jacques e
dona Alcina, mãe de Nair, confirmavam: é um menino. E um
menino bem grande: Caio Fernando Loureiro de Abreu
nasceu pesando notáveis quatro quilos. No álbum do bebê,
algum tempo depois, o pai, Zaél, anotaria, sobre os cabelos
da criança: "apesar de escassos, nota-se que serão
castanhos". Esse é o bebê Caio: cútis branca, olhos pretos,
sem sinais particulares e "muito quietinho, quase não
incomoda".
Caio seria o único dos cinco filhos de Nair a ter um
álbum de bebê. Ainda assim, não todo completo: seu Zaél,
que o preenchia, nem sempre tinha paciência de escrever
tudo que acontecia. Assim, por exemplo, está anotado, no
primeiro aniversário de Caio, na seção presentes: "Ganhou
muitos presentes. O papai não vai enumerá-los por ser muito
longo e estar com preguiça de escrever."
Em 1954, morre Getúlio Vargas. O falecido presidente
era natural de São Borja, como o pai de Caio, que, com o
passar dos anos, se tornara getulista convicto. Lia tudo que
saía sobre Getúlio nos jornais e tinha uma foto dele
pendurada na parede. Quando ele morreu, Zaél ficou
arrasado. Mas, se na política as coisas iam mal, em casa Zaél
só tinha motivos para alegrias. Desde muito pequeno, o
menino Caio demonstrava uma inclinação para a arte que
viria a desenvolver mais tarde, na sua trajetória de escritor.
Com seis anos, o menino, já muito magro e muito alto, como
seria a vida toda, de sobrancelhas grossas e bem desenhadas,
escreve seu primeiro texto, a história em quadrinhos de Lili
Terremoto, uma menina louquinha que queria fugir de casa.
Desde então, o garoto continuou escrevendo e criando.
O ambiente da casa dos pais era propício para isso:
Zaél, homem sofisticado, de muita cultura, estava sempre
com um livro na mão. As coleções completas de Érico
Veríssimo, Machado de Assis, do escritor de aventuras Karl
May — um alemão cujas histórias se passavam no faroeste
norte-americano, embora ele mesmo nunca tivesse deixado
seu país — enfeitavam as prateleiras da casa. Sendo
professora, a mãe, D. Nair, também instigava os filhos a
aprender. Nenhuma leitura era proibida em sua casa: de gibis
de aventuras e revistas como O Cruzeiro, que eles assinavam,
a livros de Monteiro Lobato e a coleção chamada O mundo da
criança, as crianças podiam ler tudo. O colega Ruy Krebs, que
seria um dos melhores amiguinhos do Caio a partir do
primeiro ano ginasial, quando estudaram na mesma turma,
dividia a paixão por livros, e não era só ele. Luiz Carlos
Moura, o Beco (pronuncia-se Beco), vizinho e primo dos
Abreu, grande amigo do Gringo, irmão de Caio, lia muitas
coisas quando ia visitar a casa deles, pois seu pai era
comunista e, em sua casa, só havia livros ideológicos.
De vez em quando, quando Caio tinha uns sete anos,
ele, Beco e Gringo brincavam de deserto, ou oásis, como Caio
chamou a brincadeira anos depois, em um conto do livro O
ovo apunhalado. O quartel no fim da rua era o oásis: na
frente da casa dos Abreu era onde o avião dos três garotos
tinha caído. Eles tinham que atravessar todo o deserto — o
espaço entre a casa e o quartel — e conseguir víveres e peças
para consertar o avião. Aos poucos, iam faltando as coisas:
água, comida. Em poucos quarteirões, os meninos estavam
cansados, suados, de cabeça baixa. Tinham que sentir, fingir
que era tudo verdade, atuar. E conseguiam. Quase sempre só
os três: a maioria dos outros garotos não conseguia ir até o
final. O único que às vezes participava da brincadeira era o
negrinho Jorge, filho de camponeses, que de vez em quando
aparecia por lá.
Na casa dos Abreu havia sempre uma empregada
doméstica. Naquela época, os empregados dormiam em casa.
Uma delas era também Nair, a Nairzinha, tratada com
carinho pelos pais de Caio. Quando a moça se casou, D. Nair
ajudou a fazer o enxoval. Houve também a Etelvina, pobre
Etelvina! Certa vez, Caio resolveu brincar de circo. Montou
toda a estrutura no galpão de casa. Armaram no teto um
trapézio, e a Etelvina tinha que balançar pra lá e pra cá. Em
um desses balanços, a pobre caiu de cabeça no chão. Não se
machucou, apesar do tombo feio. Anos depois, Caio morreria
de rir sempre que se lembrasse dessa história.
São duas da tarde. As crianças chegaram da escola. Ruy
e Beco vão para a casa dos Abreu brincar. E os irmãos Abreu,
Caio, então com dez anos, e Gringo, são os que gostam de
brincar brincadeiras mais parecidas com as de que eles
mesmos gostam. Nada de jogar futebol ou vôlei: quando
brincam de bola, são jogos que eles mesmos inventam, assim
como inventam as brincadeiras de fantoche e de deserto.
Como a turma gostava muito dos circos e teatros
mambembes que de vez em quando passavam pela cidade,
decidiram, certa vez, fazer um teatro. A sede era a garagem
da casa do Sales Horácio, colega dos meninos. A noite, a
turma percorria as obras em construção atrás dos sacos que
embalavam o cimento para fazer os cenários. Cobertores
velhos faziam as vezes de cortinas. Ruy se lembra de que, por
incrível que pareça, quem fazia os roteiros das peças que
encenavam era ele, e não o Caio.
Certa vez, decidiram fazer um teatrinho de fantoches.
Caio encontra uma receita de massa para fantoches na antiga
Revista do Globo, de Porto Alegre, escrita por Glênio
Bianchetti, que depois se tornaria artista plástico famoso.
Eles fabricam os bonequinhos, as cabecinhas de papel
machê, e inventam historinhas para as peças. De vez em
quando, faziam também teatrinhos de sombra. Não dava para
imaginar que, anos e anos depois, Caio viria a escrever de
verdade para o teatro. Faria suas próprias peças, adaptaria
textos de outros escritores, chegaria mesmo a pisar no palco
como ator, em Porto Alegre. Mas isso seria muito tempo
depois. Por agora, são meados dos anos 50, a cidade é
Santiago, não há asfalto nas ruas, o fornecimento de luz
elétrica é intermitente e não há qualquer preocupação na
cabeça das crianças, a não ser brincar. Caio, às vezes, olha
pela janela do quarto, sente o cheiro profundo de jasmins que
vem do jardim lá fora — o cheiro era tão forte que às vezes a
mãe sentia tonturas — e vê a casa da frente.
Uma casinha de madeira, escondida por plantas, um
coqueiro. Oracy Dornelles, poeta, mora ali, em companhia da
mãe. Da janela dele, escoava o som de música clássica. Era
um som novo para Caio. Que seria?, ele se perguntaria mais
tarde. Beethoven? Wagner? Caio dizia para Ruy que Oracy
conversava com as estrelas, porque tinha um telescópio para
observar o céu. Sem nunca ter trocado uma palavra com
Oracy, sentia com ele uma identificação. Era um poeta,
diziam. E assim Caio descobriu que os poetas existiam. Em
carta escrita a Oracy, muito tempo depois, nos anos 80, Caio
se lembraria da afinidade que sentira pelo vizinho, mesmo
sem nunca ter conversado com ele. 'Nunca nos falamos,
praticamente, nunca nos olhamos. Ficou só aquela vibração de
silêncio, muito forte. Numa cidadezinha perdida, dois malditos
que se reconhecem sem que seja necessário sequer falar sobre
isso. Uma cumplicidade muda, e tão secreta que, penso, talvez
você nunca tenha percebido. Na minha memória — já tão
congestionada — e no meu coração — tão cheio de marcas e
poços — você ocupa um dos lugares mais bonitos. "A carta foi
incluída no livro O que importa em Oracy, organizado por
Fátima Friedriczewski, Froilan Oliveira e Júlio César Prates.
Além dos textos, Oracy fez pinturas e esculturas em fios de
cabelo e grãos de areia, e ficaria famoso pelo circo de pulgas
que mantinha. Anos mais tarde, ele esclareceria: era
Beethoven o som que Caio ouvia pela janela. Fã ardoroso do
alemão, Oracy foi um dos fundadores do Clube de Beethoven,
em que os membros se reuniam para ouvir concertos do
compositor — nas noites de gala, vestidos a rigor.
No outro dia, de tarde, as crianças se reúnem de novo
para brincar. Enquanto Beco e Gringo jogam xadrez — Beco
seria campeão amador da modalidade, quando crescesse —,
Caio e Ruy pegam cartolina e tinta nanquim. Caio desenha as
misses de maio, uma para cada estado do Brasil: miss Rio
Grande do Sul, miss Minas Gerais, miss São Paulo. Ruy pinta
as modelos e desenha os trajes típicos. Depois de meses de
trabalho, uma a uma, lado a lado, as vinte e poucas
bonequinhas vão surgindo no papel, as medidas inventadas,
os nomes, as roupinhas, tudo. Que nem aquelas que vinham
com as fotografias na revista O Cruzeiro, com a diferença de
que aquelas eram reais e essas, inventadas, desenhadas,
pequeninas. Depois que estão prontas, Caio e Ruy chamam
Gringo e Beco. Os dois estão convocados: é hora do desfile
das misses, e eles vão ser os jurados. Mesmo que não
estivessem muito interessados, afinal Caio tinha esse jeito de
impor sua vontade na hora das brincadeiras, e acabava
sempre conseguindo o que queria.
Um divertimento que todos adoravam era ir ao cinema.
Quando as crianças eram mais novas, só podiam entrar no
cinema na matinê de domingo, ou na sessão seguinte, às
quatro da tarde. Havia apenas uma sala de projeção na
cidade, o Cinema Imperial, e os meninos esperavam ansiosos
o dia de assistir aos "filmes de mocinho".
Beco sai de casa. Pega seu boneco do "mocinho" e se
encontra com Caio e Gringo, que também estão com seus
bonequinhos. Vão ao cinema, que está lotado. Começa o
filme. Em determinada hora, o mocinho começa a perseguir o
bandido. E a senha para a comoção geral: o pessoal todo do
cinema começa a bater os pés no chão, fazendo uma
algazarra, aos berros:
— Aí, mocinho! Aí, mocinho!
Caio, Gringo e Beco também gritam e batem os pés, ao
mesmo tempo em que sacodem no ar seus bonequinhos de
mocinho. Era uma festa. Quando Caio cresce e seu
companheiro passa a ser Ruy, eles já podem ir ao cinema
quase todos os dias, com exceção dos filmes censurados para
menores. De tanto irem ao cinema, inventaram passatempos
relacionados, como concursos de desenhos para os cartazes
dos filmes da semana. Ruy e Caio desenhavam os cartazes e,
assim como no concurso de misses, os jurados eram o
Gringo, o Beco e a empregada da casa do Caio.
Uma vez, tiveram a idéia de fazer um alfabeto duplo,
usando as iniciais dos nomes de artistas. Por exemplo, AA era
Antônio Aguilar, um nome que acharam no elenco de filmes
mexicanos; BB era Brigitte Bardot, CC, Claudia Cardinale,
DD, Doris Day e Diana Dors. KK era Kay Kendall, MM,
Marilyn Monroe e assim por diante. O problema surgiu
quando chegaram as letras YeW: onde encontrar um nome
cujas iniciais fossem essas letras dobradas? A questão
obrigava os meninos a levar caderno e lápis para o cinema,
para anotar caso aparecesse um YY ou WW.
Caio e Ruy se consideravam os melhores desenhistas da
turma. Um dia, porém, viram os desenhos de outro menino, e
se espantaram. Os desenhos do Neltair, por acaso, primo de
Caio, eram feitos com lascas de telha ou tijolo na calçada,
feita de lajes de pedra, como a maioria na cidade. Caio e Ruy
se impressionavam, principalmente, com os gladiadores
greco-romanos, pois assistiam a muitos filmes épicos e
bíblicos no cinema. Os dois passavam na calçada só para
olhar os desenhos. O julgamento artístico dos meninos era
bom. Afinal, Neltair cresceria, adotaria a alcunha de
Santiago, em homenagem à cidade, e seria cartunista famoso,
dos bons.
No verão, as famílias gostavam de acampar na beira dos
rios. Havia uma praia muito bonita no distrito de Ernesto
Alves, perto de Santiago, e também a praia de Jaguari, cidade
vizinha. Dessas praias, Caio pode ter tirado a descrição da
praia do conto Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na
beira da sanga, do livro Os dragões não conhecem o paraíso.
As praias e fazendas próximas, de amigos e parentes,
forneciam um contato com a natureza de que, anos mais
tarde, morando nas metrópoles acinzentadas e sem verde,
Caio sentiria falta.
O verde estava presente em muitas brincadeiras, como
quando os garotos passavam o dia no enorme quintal da casa
dos Abreu, onde havia todo tipo de árvore frutífera:
bergamoteiras, pitangueiras, goiabeiras. Podiam passar a
tarde chupando bergamotas ou brincando na casinha que
Caio improvisara com uns compensados de madeira da
embalagem de uma geladeira que haviam comprado. A idéia
era que fosse um lugar só deles, um pouco inspirado no
Clube do Bolinha e da Luluzinha. Na casinha, guardavam os
brinquedos, os gibis, os fantoches.
Houve uma brincadeira, no entanto, que D. Nair proibiu
os filhos de fazer. A brincadeira, assim como seu nome, foi
inventada por Caio: bailu. Os garotos subiam na cama,
jogavam cobertores sobre as cabeças, de modo a não
enxergarem nada, e começavam a pular. Pulavam, pulavam,
até cair no chão. Apesar de divertido, era muito perigoso, e a
mãe, que comandava a casa, não permitiu mais que os
garotos brincassem desse jeito.
Havia sempre um cachorrinho pela casa, ou algum
outro bicho. Certa vez, alguém trouxe duas corujas. Era uma
novidade, um acontecimento. Caio escreveu sobre isso no
conto Corujas, de seu primeiro livro de contos, Inventário do
irremediável:
Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no
caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse
amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei.
Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas,
já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e
Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado,
apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora
inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo.
Mas nem tudo era brincadeira. O jeito de Caio sempre
fora um pouco diferente; desde pequeno, tinha traços
ambíguos, não gostava de futebol, preferia desenhar,
escrever. A sociedade santiaguense da época não estava
preparada. O primo Neltair, que viria a se tornar o cartunista
Santiago, se lembra do preconceito contra o menino Caio na
escola, onde, certa feita, alguém fez em um jornal-mural uma
caricatura do futuro escritor, aludindo à sua pretensa
homossexualidade. Era a época dos comentários maldosos,
velados.
Caio tem oito anos. Está na aula de Educação Física. O
professor, que também dá aula de Matemática, é o Capitão
Pely, casado com a irmã do pai de Caio, Elza. O capitão vivia
implicando com ele, talvez por ser cunhado de Zaél e se sentir
na obrigação de despertar no aluno um comportamento viril,
másculo. Os alunos têm que subir em uma tábua suspensa,
comprida e estreita.
A subida era pelas laterais, que ficavam em um plano
inclinado. A maioria dos meninos sobe; Caio não. Ele tem
medo. O capitão insiste para com que Caio suba, debocha do
menino, o chama de cagão. Sempre esse professor pegando
no pé, implicando, exigindo. Os outros meninos, que conse-
guem subir, riem da cara do Caio, que não consegue.
E outro dia. Caio está no Círculo Militar, um clube da
cidade. Tem quadra de tênis, de patinação, balanços. De vez
em quando, passavam umas projeções de filmes, e os
meninos iam lá: Santiago; o irmão de Santiago, Luiz Abreu,
colega de Caio na 4a série; Caio. Um dia, o futuro escritor se
senta no balanço. Outro menino, também chamado Caio, vem
empurrar. Sabendo que Caio, o Abreu, era mais frágil, o outro
menino começa a empurrar com força, cada vez com mais
força.
— Caio, não balança que eu caio! — berrava o Caio
Abreu lá do alto, apavorado. Anos depois, o tímido e retraído
Caio aprenderia a lidar com essas situações e seria mais
enfrentativo. Chegaria mesmo a se envolver em brigas. Afinal,
embora não fosse bom nos esportes, era competitivo: sempre
representava o colégio nas disputas de conhecimento sobre
Geografia e História.
Cerca de dois anos após o nascimento de Gringo, D.
Nair teve mais um filho. Esse, porém, morreu logo após o
nascimento. Anos depois, em 1957, nasceu Luiz Felipe, que
cresceu saudável. E sapeca.
Luiz Felipe adorava provocar Caio. Sabendo que o irmão
mais velho odiava cebolas, não podia nem vê-las, nem sentir
seu cheiro, nada, Felipe pegava algumas e arremessava nele.
Caio ficava furioso: mais alto, mais velho, alcançava Felipe e
batia, batia nele, mas o castigo não conseguia fazer com que
o mais novo parasse. Valia a pena apanhar um pouquinho
para ver a cara do irmão furioso.
Mesmo com os garotos crescidos, as peças que Felipe e
Caio costumavam pregar um no outro continuaram. Caio
adorava assustar as pessoas: talvez por tédio, por falta do
que fazer, quando ele estava em casa sempre pegava as
pessoas de surpresa pelos corredores e arrancava gritos de
todo mundo. Uma vez, quando as irmãs caçulas Márcia e
Cláudia já eram grandes, foram todos veranear na praia, na
casa da família, em Tramandaí. Era noite; quase todo mundo
dormia, menos o Caio, que ficava acordado até tarde
escrevendo. Em dado momento, ele saiu do quarto, desceu as
escadas e foi até a cozinha pegar um copo de leite. Felipe, que
acordara com a movimentação do irmão, escondeu-se no vão
da escada e esperou. Quando Caio voltou com um copo de
leite e um prato de bolachinhas, Felipe não disse nada:
simplesmente estendeu os braços e colocou as mãos em cima
das costas do irmão, como se fosse um fantasma ou aparição.
O grito de Caio, apavoradíssimo, acordou todo mundo na
casa, ao mesmo tempo em que leite, copo e bolachinhas
voavam para todos os lados.
A década de 50 está terminando. Márcia nasce em 1960,
Cláudia, em 1961. Por essa época, a família Abreu tem uma
posição distinta na sociedade santiaguense. Não eram ricos,
mas tinham algum prestígio. Zaél era integrante da
maçonaria, e D. Nair estava sempre cotada entre as dez mais
elegantes da cidade nos vários bailes e festas a que
compareciam. Tanto ela quanto Zaél eram muito vaidosos,
muito finos, muito "adequados". A carreira de militar e a
situação de professora conferiam certa diferenciação social na
época, e o casal era muito respeitado. Essa posição da família
era estimada por Caio: uma vez, enfureceu-se com o irmão
Gringo por ter entrado sem pagar no circo que estava na
cidade. Gringo foi apanhado e expulso do lugar à vista de
todos, inclusive de Caio e Beco, que foram assistir ao
espetáculo de forma lícita. Caio brigou com Gringo por ter
exposto o nome da família daquela maneira.
Pela via da arte, a notoriedade de Zaél e Nair se
estenderia a Caio, o filho mais velho, que demonstrara uma
personalidade forte e independente desde os primeiros anos.
Aos 13 anos de idade, participou de um concurso literário na
aula. A idéia do concurso era do professor Cavalcanti, figura
importante nos primeiros anos do escritor: além de organizar
os concursos literários, o professor promovia aos sábados as
Horas de Leitura, em que os alunos liam textos e recitavam
poemas, e criou os jornais-murais, aqueles mesmos em que
Caio seria ironizado por colegas de outra turma, pois na sua
ele e Ruy eram os responsáveis. Para o concurso, Caio
encheu um caderno inteiro com o pequeno romance A
maldição dos Saint-Marie. Venceu. As meninas faziam fila
para ler, como se lembraria o escritor anos mais tarde,
quando incluiu o texto na coletânea Ovelhas negras, pouco
antes de morrer. "E evidente que a história cheia de clichês,
influenciada por radionovelas, fotonovelas e melodramas
mambembes do Circo-Teatro Serelepe, não presta, mas talvez
possa render algumas risadas", escreve ele. Assim termina a
história de Adriana e de seu envolvimento com os Saint-
Marie, donos de um suntuoso castelo na França:
— Oh, George! — soluçou a moça. Como posso estar
feliz? Não mereço o seu amor. O meu coração estava cheio de
ódio por Fernando, eu só pensava em vingança. Você me
perdoa?
Como resposta, o rapaz abraçou-a e deu-lhe um leve
beijo nos lábios. Talvez agora eles possam ser felizes, a
pérfida Amália não fará mal a mais ninguém.
A aurora já põe os dedos cor-de-rosa no puro azul do
firma-mento. Contra o horizonte destaca-se a outrora mansão
dos Saint-Marie, agora transformada em ruínas. Mais atrás
vê-se a silhueta de dois jovens abraçados, parecendo uma
promessa de esperança e fé no futuro.
Os meninos iam crescendo, começaram a aparecer as
primeiras namoradinhas. Certa vez, Caio se apaixonou por
uma menina muito bonita que morava perto de sua casa. Ela
era aluna de D. Nair. Como prova de seu amor, Caio roubou
uma prova de História e entregou para a garota. De alguma
maneira, a mãe dele descobriu, e Beco presenciou a cena em
que ela passava a maior bronca no filho primogênito. Beco se
espantou: só naquele momento é que ele ficou sabendo que o
amigo tinha uma queda pela garota.
O espanto acompanharia Caio pela vida afora. Incapaz
de se condicionar a algum rótulo, ele seria não um, mas
muitos: o Caio tímido da infância e da adolescência, o Caio
enfrentativo e ousado da juventude, o Caio mais sereno e
maduro do fim da vida. Para cada pessoa que o conheceu,
um Caio diferente, às vezes oposto ao que outros se
recordam.
Por isso é que, por exemplo, algumas das pessoas que
conheceram o escritor mais tarde, quando já tinha sua
homossexualidade estabelecida, se espantam de que tenha
tido namoradas. A primeira delas foi Tânia, que morreu de
leucemia aos 15 anos. Depois dela, foi a Iara Nicola, filha de
D. Lenita, a precursora dos salões de beleza em Santiago,
onde as senhoras iam fazer os penteados da época. A irmã
mais nova de Iara, Valéria Nicola, e sua amiga Nádia Ahmad
se lembram de como gostavam de escorregar nas longas
pernas do Caio quando ele ia visitar Iara. As duas estavam
sempre por perto a pedido de D. Lenita, que pedia que
ficassem de olho no casal. Afinal, Caio, com seus cabelos
compridos, era considerado avançado para a época. Depois
de um tempo, ele mandava as meninas comprarem balas
para namorar Iara, que acabaria por se casar com outro
santiaguense, Luiz Carlos Fava, um oposto de Caio em todos
os sentidos: esportista, másculo, jamais leria os livros do
conterrâneo.
Com 15 anos, Caio muda-se para Porto Alegre para
estudar no Instituto Porto Alegre (IPA). O colégio era caro e
bom. Embora a mensalidade pesasse no orçamento dos
Abreu, o filho queria, e D. Nair concordava, e até mesmo
insistia, que ele tivesse a melhor educação possível. Afinal de
contas, Caio tinha que seguir em frente. Ele queria conhecer
novas coisas, novos lugares, e sabia que Santiago não poderia
satisfazer seus anseios. Como escreveria depois em Limite
branco, seu primeiro romance:

Eu gostaria de ir embora para uma cidade


qualquer, bem longe daqui, onde ninguém me
conhecesse, onde não me tratassem com
consideração apenas por eu ser "o filho de fulano"
ou "o neto de beltrano". Onde eu pudesse
experimentar por mim mesmo as minhas asas para
descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como
imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem no
primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu
voltasse derrotado, ferido, humilhado — mesmo
assim restaria o consolo de ter descoberto que valho
o que sou.

No internato, porém, as coisas não começam bem para o


primogênito de D. Nair. Ele não se adapta, não consegue
arrumar amigos, não entende as matérias. Caio fica doente e
escreve uma carta medonha a seus pais, pedindo para irem
buscá-lo. Diz que esteve na enfermaria, com febre e sozinho,
e que tem vontade de morrer.
"[...] Cada passo que ouvia no corredor pensava que era a
senhora chegando; cada riso de criança que vinha lá de fora
eu julgava ser da Márcia ou da Cláudia. Confesso que tive
vontade (e tenho) de morrer. [...]
A senhora vai dizer que isso é normal, etc... Mas não é
não! Os outros que chegaram junto comigo já estão
adaptados.[...]
Há várias noites que não durmo e tenho pesadelos
horríveis. Acho que até emagreci, ando sempre com olheiras e
não como nada.[...]
Pelo amor de Deus, mãe, eu não agüento mais! Veja se a
senhora dá um jeito! Isso aqui é um verdadeiro inferno. [...]
Por favor, mãezinha, não me deixe só! Responda logo.
Agora é que descobri o quanto gosto disso daí. Gosto muito da
senhora. Ajude-me!"
A carta dá a perceber uma faceta de Caio: o pendor para
o dramático, a teatralidade, o exagero. E também a sua
personalidade, de notórios altos e baixos. Após receber a
carta, os pais alarmaram-se e Zaél foi buscar o filho em Porto
Alegre, de carro. Na época, era tortuoso e demorado vencer a
distância de mais ou menos 500 km que separa Santiago da
capital. Quando Zaél chegou, Caio já estava muito melhor. A
crise depressiva tinha passado, e ele acabou não voltando
para Santiago. Depois de morar no internato do IPA, Caio vai
para o Hotel Uruguay, no centro de Porto Alegre. Finalmente,
muda-se para a pensão de uma viúva, D. Maria, que alugava
quartos para estudantes. No ano seguinte à sua vinda, o
amigo Ruy, de Santiago, e seu irmão Antônio também foram
morar na pensão. Ruy passou a dividir o quarto com Caio, e
Antônio com o Carlos Renato, irmão de Beco.
Por coincidência, morava no mesmo prédio o escritor
Manoelito de Ornellas, que era amigo da família de Ruy, que,
sempre muito extrovertido, foi logo se apresentando. Logo
Manoelito conheceu também Caio e leu seus contos, que o
impressionaram muito. A filha de Manoelito, espírita,
enxergava uma aura azul ao redor do Caio, que começou a
freqüentar o apartamento do escritor nessa época. Manoelito
lhe deu muito apoio: apresentou outros escritores, como
Érico Veríssimo. Foi por intermédio dele que Caio ingressaria
no Jornalismo.
No ano seguinte, Caio publica seu primeiro conto em
um veículo da grande circulação: O príncipe sapo, na revista
Claudia. A publicação foi uma surpresa de Carmen da Silva,
psicóloga e editora da seção A arte de ser mulher da Claudia,
revista que inaugurou um novo estilo entre as revistas
femininas da época. Ela e Caio se correspondiam há algum
tempo e, quando ele enviou o conto para ver o que ela
achava, ela nada respondeu: preferiu manter segredo até que
a revista saísse.
O conto é sobre uma mulher, Teresa, única de uma
longa fila de irmãs a não ter conseguido casar. Procurando
consolo nos livros, Teresa se apaixona pela história do
Príncipe Sapo. Decide procurá-lo nos homens que passam
nas ruas, e acaba encontrando Francisco, um professor de
piano. Ele está muito mais para sapo que para príncipe, mas
ela tem esperanças: compra um piano e o convida para lhe
dar aulas. O conto, nada feliz, já é sintomático dos primeiros
textos de Caio, textos mais sombrios, tristes, depressivos.

No começo tinha nojo dele. O homenzinho apagado


demais, humilde demais, sempre quieto, como
consciente do desprezo que provocava, e por isso
mesmo mais desprezível. Mas ao cair de uma tarde,
Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois
com compreensão, depois com simpatia, depois...
Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas
sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele trêmula,
nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No
dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se
como que por acaso, as quatro mãos. Uma semana
mais tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados,
de gente quase velha, quase sem ilusões.

Em 1967, Caio entra para o curso de Letras da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Comemora o resultado na casa onde estava morando agora o
amigo Ruy, que passara em Educação Física. Caio acabaria
por trancar a matrícula e freqüentar o curso de Arte
Dramática (CAD). Nessa época, sua melhor amiga é Maria
Lídia Magliani, artista plástica. Ela e Caio formavam uma
dupla e tanto: ele alto, branquelo e magricela, ela baixinha,
negra, volta e meia com tinta nos cabelos ou nas mãos.
Ambos vestidos de preto da cabeça aos pés. Não porque
quisessem ser diferentes; havia uma dose de humor na
postura existencialista dos dois, que estavam preocupados
mesmo é em ser fiéis aos rumos que haviam escolhido. De vez
em quando, andava com eles o futuro escritor João Gilberto
Noll. Sentavam-se em um banco da praça em frente à
universidade e conversavam sobre filmes, livros, discos.
Nessa época, Noll ainda não sabia se escreveria prosa ou
poesia, mas Caio, embora ainda se preocupasse em descobrir
um estilo pessoal, que fosse só seu, parecia já ter definido
desde muito cedo o que queria. Tanto que já tinha até escrito
Limite branco, um romance de formação que só viria a ser
publicado em 1971, e do qual Noll foi um dos primeiros
leitores. Caio e Noll dividiam a paixão pelos livros: como não
tinham dinheiro para comprá-los, aproveitavam para roubá-
los na Feira do Livro de Porto Alegre, uma feira a céu aberto
realizada em uma praça no centro da cidade. A confusão de
livros e pessoas nas barracas facilita que espertinhos ou
estudantes sem dinheiro embolsem exemplares sem que
ninguém perceba.
Caio era leitor voraz desde menino, e começava a
descobrir autores que viriam a marcá-lo por toda a vida,
como Clarice Lispector. Era capaz de discutir literatura como
gente grande. Embora tivesse apenas 18 anos quando
escreveu Limite branco, o livro já continha muito do estilo que
viria a caracterizar o escritor ao longo de sua carreira. O
escritor explora sua própria angústia para dar densidade aos
personagens, principalmente a Maurício, o adolescente em
crise que protagoniza o texto. A descoberta do sexo, a morte,
em sua forma mais perversa — o suicídio, a existência de
Deus, o desejo de viver um grande amor, a busca de uma
identidade e o homoerotismo: vários temas que reapareceriam
depois na obra do escritor são tratados no livro, sob a ótica
do adolescente. A história de Maurício tem vários pontos em
comum com a de Caio. Ele tem uma amiga pintora, Marlene,
que parece ter sido inspirada em Magliani, mas não podia
ser, porque os dois se conheceram depois que o livro já estava
pronto. O jovem do livro se muda para a capital, assim como
Caio fez, ao ir estudar no IPA. A mãe de Maurício perde o
bebê, como Nair perdera um dia.
A história se passa em meio ao turbulento final dos anos
60; como diz Caio, porém, em prefácio para a uma reedição,
vinte e cinco anos depois, "o momento histórico em que se
passa mal e mal aparece no livro: ele é intimista, voltado
quase exclusivamente para dentro". Assim como os livros de
Clarice, de Virgínia Woolf, de Hilda Hilst. Ele afirma ainda
que foi quase impossível reler o livro, mas que, quando o fez,
ficou chocado com a inocência do personagem.

Começou a caminhar em direção à mancha


esbranquiçada do casarão. Enquanto caminhava,
descobriu que aquela cor era quase a mesma das
pétalas. E do céu. As coisas brancas são sempre
meio enxovalhadas, pensou, sentindo-se
confusamente feliz. Parou, repetiu a frase ao
inverso: as coisas enxovalhadas são sempre meio
brancas. A casa crescia à medida que se
aproximava. Ficava mais nítido o verde das janelas,
definiam-se as roseiras em torno delas. De longe, as
rosas pareciam palpitar com sua fartura, sua
turgidez, sua beleza quase obscena.

A época era de ebulição cultural, comportamental e


política. Em plena ditadura militar, alguns jovens se reuniam
para discutir um futuro melhor, usar drogas, comentar
autores proibidos pelo regime, ouvir música; enfim, simples-
mente, estar juntos. Por mais introspectivo que fosse, Caio
não poderia fugir da época. Participa das discussões,
experimenta drogas, deixa o cabelo crescer. Quando visita os
pais em Santiago, há sempre pequenas polêmicas, discussões
políticas; nessa hora, talvez os pais sentissem saudade do
tempo em que queria apenas brincar de fantoches com os
amigos ou insistia em ser o Papai Noel no Natal, mesmo que
todo mundo o reconhecesse, muito magro e desajeitado, por
trás das roupas vermelhas. O filhinho de D. Nair estava
crescendo e, embora os pais não o proibissem de fazer nada,
já se podia perceber alguns comportamentos, ainda
incipientes, talvez, mas que viriam a caracterizar o escritor ao
longo de sua vida: o enfrentamento, a busca de uma
identidade, a vivência de experiências como busca de um
significado maior na vida. E é desses conflitos e angústias
que Caio tira material para Limite branco, assim como para
muitos de seus primeiros contos.
Além da Magliani, que era a amiga mais próxima, Caio
se aproximou bastante da turma do teatro da universidade.
Tanto que acabaria entrando, anos depois, para o curso de
Direção Teatral do Centro de Arte Dramática (CAD). Ele
entrara nesse universo através de Irene Brietzke, que dava
aula de inglês no Yázigi e tinha Caio como aluno. Irene o
apresentara a toda a turma do teatro, um pessoal novo que
seria importante para a renovação da arte no Rio Grande do
Sul, com o grupo Província, que formariam em 1969. Um
desses jovens era Luiz Arthur Nunes, futuro diretor teatral e
um dos grandes amigos de Caio. Ele e o restante do grupo
introduziram o escritor no universo do palco, nos autores,
nas peças.
E Caio foi o responsável pelas emoções no aniversário de
Luiz Arthur, em agosto de 1967. Luiz estava ensaiando uma
peça no teatro da universidade quando chegam Caio e
Magliani com o presente, o livro Tutaméia, de Guimarães
Rosa. Estavam os dois no foyer quando um integrante do
elenco passou e ofendeu Magliani, fez comentários racistas.
Caio não pensou duas vezes e se jogou para cima dele. O tal
rapaz, como aliás todos já desconfiavam, era informante da
ditadura. Em pouco tempo, estava todo mundo na delegacia:
Caio, Magliani, Luiz Arthur, todo o elenco da peça e o diretor
do curso de Arte Dramática, Gerd Bornheim. Fizeram o
boletim de ocorrência, mas, graças a um tio influente de Luiz
Arthur, ex-vice-reitor da universidade, ninguém ficou preso.
Por medo de represálias, Caio foi passar uns tempos com Luiz
Arthur na casa dos pais dele. Umas duas semanas depois,
quando achou que já dava para voltar para casa, foi pego na
rua e levou uma surra.
Em 1967, a revista Realidade, da editora Abril, publicou
um anúncio convocando os interessados a fazer os testes
para participar de uma revista nova, a Veja, que começaria a
circular no ano seguinte. Embora não fosse formado em
Jornalismo, Caio participou do exaustivo processo de seleção,
que incluía testes de conhecimento geral, de conhecimento
específico, entrevista individual, entrevista conjunta com os
outros candidatos. Vera Spolidoro, jornalista gaúcha,
conheceu Caio na entrevista conjunta, depois de ambos
passarem por todas as etapas.
O jornalista que entrevistava o grupo vinha de São
Paulo, e parecia achar que Porto Alegre era uma província;
Vera notou um certo ar de desdém em seu rosto. Quando
perguntaram a ela qual fora a peça mais recente a que tinha
assistido, ela respondeu Depois da queda, de Arthur Miller.
Era um texto sobre a recém-morta Marilyn Monroe, e o
entrevistador parecia não acreditar em uma peça que ainda
não havia sido encenada em São Paulo tivesse sido montada
em Porto Alegre.
Em dado momento, o jornalista perguntou a Caio sua
opinião a respeito do grupo Abril. O escritor levantou-se, e,
sem se preocupar se aquilo iria acabar com suas chances de
trabalhar na Veja, fez um fervoroso discurso anti-
imperialista. Irado, falou que a Abril era ligada ao grupo Time-
Life, e que ele era contra a colonização cultural a que os
Estados Unidos submetiam os outros países. Chegou a
chamar a editora de entreguista. Vera nunca se esqueceu da
figura magra, de pé, colérica, discursando.
Quem passasse pela fase da entrevista conjunta iria a
São Paulo fazer um curso, e aí então seriam definidos os
nomes dos contratados. Em 1968, quando a revista começou
a funcionar e os profissionais que iriam trabalhar na revista
já estavam definidos, Caio estava entre eles.

DOIS

Grande demais. São Paulo era grande demais. E o


asfalto, asfalto por todos os lados. Onde, as árvores? Onde,
os bichos? Tudo era cinza. Nem mesmo o céu escapava do
cinza; dava até pra ficar na dúvida: São Paulo tinha céu? E a
velocidade de tudo. Trabalho de segunda a sexta, das oito da
manhã às seis da tarde; vertigem. Os parentes, longe; os
amigos, longe; uma sensação de desprotegimento, de
desamparo. E ainda por cima aquela voz. A voz de criança, de
adolescente, fina, feia, desafinada. Alguma coisa aconteceu
no coração de Caio Fernando Abreu quando ele se mudou
para São Paulo, e, fosse o que fosse, não parecia agradável.
O escritor, vindo dos rincões gaúchos para trabalhar na
primeira equipe da revista Veja, não se adaptou de início à
cidade grande. Um difícil começo, como o fora também para
Caetano Veloso, ídolo de Caio, a quem ele dedicaria sua obra
de maior sucesso — o livro Morangos mofados, de 1982.
Demoraria muito para o jovem escritor entender a poesia
concreta das esquinas de São Paulo. Anos mais tarde, Caio
diria que toda sua literatura seria fruto do choque, do
contraste entre a vida interiorana em Santiago do Boqueirão e
a vertigem causada pela velocidade da capital paulista.
Era preciso trabalhar, trabalhar o dia todo. Sem
costume de acordar cedo e batalhar de sol a sol, Caio gramou
durante os meses em que trabalhou na Veja. Ele, que sempre
fora muito magro, perdeu ainda mais peso. Ficava nervoso,
irritado; chegou a ficar doente, com gripe, sem coragem de
sair de casa. Era uma de suas fases depressivas: durante a
vida toda, o humor de Caio oscilaria entre picos de euforia e
fundos-do-poço de melancolias insuportáveis. Nessas
ocasiões, ele podia se recusar a ver qualquer pessoa ou
mesmo a sair do quarto por dias seguidos. Ele costumava
dizer sobre o choque que foi trabalhar como jornalista em São
Paulo:
— Me estupraram até o último hímen.
E, para piorar tudo, havia a voz. Esganiçada, odiosa,
infantil. Com vinte anos de idade, a voz de Caio era um
tormento para ele; não se desenvolvera; em conseqüência, ele
tinha vergonha de falar com as pessoas. Consultara um
médico, que dissera que suas cordas vocais estavam viciadas
no falar infantil. O tratamento, caríssimo, Caio não tinha
condições de bancar. A voz só fazia piorar a timidez do
escritor, e aumentar seu isolamento e sua aversão às
sociabilidades. Muita gente tinha receio dele, nessa época:
parecia arrogante, irascível, distante. A timidez, mais a
vergonha da voz, aliadas a um certo senso de superioridade
comum entre jovens intelectuais fazia de Caio uma figura não
muito simpática, pelo menos à primeira vista.
A voz de Caio, junto com outras preocupações típicas da
adolescência, como a magreza excessiva, pode ter inspirado
alguns contos do escritor em que os personagens se sentem
feios, inadequados, até monstruosos. Há o personagem
Maurício, de Limite branco, que anseia poder olhar-se no
espelho um dia sem ter vontade de desviar os olhos. E há o
garoto de Pequeno monstro, conto de Os dragões não
conhecem o paraíso:

Pernas e braços demais, pêlos nos lugares


errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu
queria me esconder de todos. Só tardezinha saía de
casa, na hora que as empregadas domésticas — as
dosas, o Pai dizia — estavam voltando da praia.
Então caminhava quilômetros na beira do mar, me
rolava na areia, vezenquando chorava e repetia:
pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te
quer.
Se internamente Caio tinha problemas, no exterior as
coisas não estavam melhores. Cinco anos antes, em 1964, os
militares haviam instaurado a ditadura no país. Com eles,
veio a repressão, que aumentou em 1968, com o decreto do
Ato Institucional n°5 (AI-5), e a censura aos organismos de
mídia. Caio viria a escrever vários contos sobre o clima
asfixiante instaurado pela ditadura. Muitos deles de forma
simbólica, cifrada, metafórica, como em O ovo, conto de
Inventário do irremediável. O ovo, lá, representa tudo que
aprisiona, tudo sobre o qual não se tem controle, a rigidez e o
sufocamento agravados quando não se pode sequer
mencionar o assunto.

Só ontem cheguei à conclusão de que se trata


de um enorme ovo. Que estamos todos dentro dele.
Mas é um ovo que diminui cada vez mais, cada vez
mais, nós vamos ser todos esmagados por ele. Não
sei por que os homens não se armam de paus e
pedras para furar a parede. Seria muito fácil, a
casca de um ovo é tão frágil.

Depois da descoberta do que o aprisiona, não há como


escapar:

Eu não sei. Tenho tanto medo. Estou esperando,


cansei de escrever, a vela está quase apagando.
Vou deitar. Estou ouvindo o rumor do ovo se
aproximando cada vez mais. É um barulho leve,
leve. Quase como um suspiro de gente cansada.
Está muito perto. Tão perto que ninguém vai-me
ouvir se eu gritar.

A paixão pela figura do ovo, como metáfora e como


objeto em si, Caio herdou de Clarice Lispector. Um de seus
livros chegaria, mesmo, a ter o objeto no título: O ovo
apunhalado.
Novato em São Paulo, Caio chegou a freqüentar
passeatas e reuniões de oposição à ditadura; mas sempre
sem se comprometer demais, sem levar o credo político às
últimas conseqüências. Politicamente, sua influência era
muito mais dos tropicalistas, como Gil e Caetano — que ele
sempre fez questão de afirmar que adorava — que de
qualquer outro movimento cultural esquerdista do país. Ele
preferia a maneira irônica, ambígua e debochada de
protestar, e fez parte da turma que achava que "festa" e
"subversão" podiam estar ligadas, e que a revolução era
individual, de comportamento. Até porque, na época da
poesia populista, engajada, Caio ainda era um adolescente,
morando em Porto Alegre sem os pais, cursando o ginásio.
Sua tomada de consciência se dá em um período em que já
existia o Tropicalismo, que surge no mesmo ano em que
ingressa na universidade.
Essa forma mais leve combinava com seu tempera-
mento: Caio nunca foi muito de assumir compromissos, de se
engajar, levantar bandeiras de qualquer tipo ou causa. Além
disso, o notório senso de humor — herdado do pai, Zaél — se
encaixava perfeitamente com a proposta dos tropicalistas. Ele
ia mais aos encontros contra a ditadura pela festa que se
fazia, pela celebração, pela oportunidade de ver pessoas.
— Para ver Norma Bengell vestida de Paço Rabanne —
diria anos mais tarde, e aquilo já não era pouco: Bengell foi
uma atriz de intermináveis pernas, belíssimas; foi símbolo
das mudanças culturais por que o Brasil passava na década
de 60.
Em tempos de AI-5, contudo, mesmo participações
ocasionais eram suficientes para que o serviço de segurança
do regime marcasse e perseguisse uma pessoa. Com Caio não
foi diferente: ele afirmou ter recebido um telefonema da
redação da Veja, dizendo que oficiais da DOPS estavam
procurando por ele. Decidiu, então, sumir por uns tempos, e
foi se esconder na Casa do Sol, sítio da amiga Hilda Hilst, em
Campinas.
Em carta aos pais, enviada da outra casa de Hilda Hilst,
março de 1969, ele conta história diferente. Diz que Veja está
dando prejuízos enormes. A revista vende pouco, os
anunciantes não querem saber de comprar espaço. Para a
editora inteira não fechar, teria sido necessário demitir
bastante gente, inclusive ele mesmo, que teria perambulado
quase um mês pela cidade atrás de oportunidades sem
conseguir nada. Teria ido para a casa de Hilda por não ter
conseguido emprego.
Caio conhecera Hilda por intermédio de Ana Lúcia
Vasconcelos, atriz, dramaturga e jornalista, sua colega na
primeira equipe da Veja. Ana Lúcia e Nello Pedra Gândara
eram os grandes amigos de Caio na redação; iam a teatro,
cinema, shows. Uma vez foram juntos a uma palestra de Léo
Gilson Ribeiro sobre crítica literária. Ana perguntou a Léo o
que achava de Hilda. Ela nascera em Campinas, onde a
escritora morava, e as duas tinham se tornado muito amigas
(décadas depois, em 2005, Ana escreveria um livro sobre ela).
Quando souberam disso, Caio, Nello e Léo ficaram
entusiasmados: pediram a Ana que os apresentasse, e ela
acabou levando todo mundo para conhecer a Casa do Sol.
Caio voltaria muitas e muitas vezes. Nas primeiras, ficaria
hospedado na casa de Ana, mas com o tempo ganhou
intimidade e ia direto para a Casa do Sol. Aos 33 anos de
idade, Hilda, uma das mulheres mais bonitas de seu tempo,
tinha abandonado uma movimentada vida social para ir
morar na fazenda que pertencera à sua mãe, com o objetivo
único de construir uma obra literária. Ao ler Carta a El Greco,
de Nikos Kazantzakis, que defende a idéia de que para
entender a sociedade é preciso afastar-se dela, Hilda, que
namorara Vinicius de Moraes e fora cortejada por Carlos
Drummond de Andrade, decidiu abandonar a agitada capital
paulista e se isolar no interior para escrever. Na Fazenda São
José, a onze quilômetros de Campinas, Hilda construiria a
Casa do Sol, onde viveria até a morte, em 2004, na
companhia de seus noventa cachorros, de livros, muitos
livros, e de fotografias de escritores espalhadas pelas paredes,
além das fotos do pai, por quem sempre foi obcecada.
Na Casa do Sol, Hilda passou a viver, em 1966, com o
escultor Dante Casarini. Ali o casal recebia os amigos, que
ficavam, às vezes, por temporadas inteiras, como Caio. Em
1968, quando ele vai para a Casa do Sol, Hilda e Dante já
estão oficialmente casados, por imposição da mãe dela,
Bedecilda.
Algumas das árvores que circundam a Casa do Sol têm
mais de cem anos: figueiras, palmeiras, dracenas. No alto,
suas copas entrelaçadas fazem uma sombra boa, que ajuda a
amenizar o calor que faz, quase sempre, naquela região do
interior paulista. O silêncio pesado é quebrado somente pelo
latido das dezenas de cães que moram no sítio. Vira-latas, em
sua maioria; seus semblantes estão agitados; o calor os deixa
assim, inquietos.
O Caio que entra na propriedade — imponente e
tranqüila como a casa grande e antiga em que morou um dia,
em Santiago, a centenas de quilômetros dali — é um rapaz
tímido, entusiasmado por ser hóspede daquela que ele
considera uma das grandes escritoras do país e, exatamente
por isso, muito amedrontado também. Inseguro, calado.
Queria aprender com Hilda tudo que pudesse, queria sugar
dela, do conhecimento e do talento dela, tudo que pudesse,
para ser, ele também, um bom escritor. Tinha já alguns
contos escritos: faltava agora organizá-los, revisá-los, fazer
daquela massa informe uma obra coerente.
E foi isso que fez, durante a pequena temporada que
passou na Casa do Sol. Dali sairia com um livro praticamente
pronto: o Inventário do irremediável, republicado depois como
Inventário do irremediável, irremediavelmente influenciado
por Clarice Lispector, na época a escritora favorita de Caio,
quase uma obsessão. A coisa chegou a um ponto, na verdade,
que ele teve que se proibir de ler Clarice, pois, lendo-a, a
sensação era de que tudo já estava escrito, e nada mais havia
por fazer na literatura. Deprimia-se, desanimava. E, como
dizia, só lia os livros dela escondido de si mesmo, de vez em
quando.
Enquanto inventariava seus contos irremediáveis, Caio
funcionava também como uma espécie de secretário de Hilda:
ela escrevia, ele datilografava. No resto do tempo, estudavam
juntos o movimento dos astros, quiromancia, coisas do tipo.
Caio, como muita gente que viveu o sonho hippie, era um
rapaz espiritualizado: acreditava em astrologia, / Ching,
candomblé, o que fosse. Não se comprometia, é claro, com
nenhum desses credos; não tinha responsabilidade,
disciplina, paciência ou vontade para tanto. Circulava pelas
várias crenças, flertava com as várias filosofias, estudava com
afinco algumas delas e inclusive as utilizava na arquitetura
de seus textos. Nessa relação com o divino, a influência de
Hilda foi, também, fundamental. Ela, que dizia ter visto
anjos, conversado com os mortos e recebido em seu sítio a
visita de discos voadores, ajudou Caio a olhar o mundo
buscando sempre algo mais, além das aparências. O inefável,
ela diria; a literatura de Hilda foi sempre uma busca do
inefável. De Deus.
Não era só o divino que Caio discutia com Hilda.
Falavam muito sobre literatura, sobre o processo de criar. O
escritor discorria sobre o assunto sempre que encontrava
interlocutores. Gostava de trabalhar a língua, como se nota
em seus textos, sempre burilados, lapidados, reescritos.
Tanto que, nos anos 80 e 90, revisou e reescreveu a maior
parte de sua obra. Caio era capaz de discutir problemas de
texto por horas a fio, de minúcias como pontuação ao uso de
certas palavras, ritmo, tudo que dizia respeito ao texto
literário. Procurava, sempre, inovar: fosse na estrutura, fosse
na temática, fosse na forma. Teorizava bastante a respeito
dos assuntos, e isso explica, em parte, sua precocidade na
literatura, ter escrito e publicado ainda jovem, com menos de
20 anos de idade.
Uma de suas teorias, por exemplo, era a dos metâmeros.
Numa viagem ao sítio de Hilda, nos anos 70, Caio a explicaria
ao escritor Júlio César Monteiro Martins, que, maravilhado,
jamais se esqueceu da teoria; até hoje dá entrevistas
explicando do que se trata. O termo vem da biologia:
metâmero é um anel da solitária, ou tênia, uma espécie de
verme. Esse anel contém informações sobre o verme inteiro;
se uma pessoa come carne contaminada com um cisticercó,
um desses anéis, ele virá a se multiplicar e formar um animal
completo. Na literatura, metâmero era um esboço, de um
conto ou de um romance, que continha informações a
respeito dos personagens, anotações soltas sobre ambiente,
trama, estilo. O texto permaneceria em estado de latência
literária, e o escritor poderia retomá-lo um dia e, se quisesse,
ampliá-lo, formar um conto completo ou um romance. Ou
então, simplesmente, publicar uma coletânea desses
metâmeros, que é o que Caio viria a fazer em Ovelhas negras.
Ele seleciona dois esboços que lhe parecem melhores e
introduz sua teoria aos leitores. O primeiro deles se chama A
perda e foi escrito em 1985:

Quando passo às vezes por aquela esquina, espio sempre


a outra rua por trás da igreja. E mesmo sem querer, sem
perceber claro o que sinto, lembro daquela tarde em que
fui visitá-lo pela última vez, depois voltei caminhando
pela rua cheia de árvores tão altas que suas copas se
encontram e se misturam no alto, como um túnel redondo,
irregular, a pensar coisas que nem lembro mais.
Quando passo por lá assim rapidamente, numa
tarde como a de ontem ou outras iguais destes tantos
meses passados, penso se não deveria retomá-la — essa
rua, essa caminhada, mas sem ele agora — uma tarde,
noite ou manhã quaisquer para refazer o percurso inverso
até a casa dele, onde nem mora mais. E parado naquela
esquina feito espião, contemplar a sacada daquele
décimo andar onde costumávamos nos debruçar
abraçados para olhar aquela rua lá embaixo sendo aos
poucos coberta pelas sombras da tarde furando a copa-
túnel das árvores. As sombras que crescem devagar
sobre o asfalto quente do verão passado. As sombras,
enfim.
Depois de passar algum tempo no sítio de Hilda, de lá
ter visto, supostamente, um OVNI, discutido muita literatura
e organizado o material de seu primeiro livro de contos, Caio
achou que era hora de voltar a Porto Alegre. Não trabalhava
mais na Abril; não conseguira emprego em outros lugares; e
havia, afinal, a faculdade de Letras esperando por ele. Era
uma opção, que ele só abandonara pela perspectiva de
integrar a primeira equipe de jornalistas de uma nova revista,
que por enquanto ainda não estava bem das pernas.
Conversou com Hilda; ela concordou que o melhor seria
voltar para a casa dos pais; quando estivesse de diploma na
mão, ele poderia voltar e tentar viver em São Paulo de novo.
Decisão tomada, Caio acompanhou Hilda e Dante à praia, em
Massaguaçu; era a Casa da Lua, segundo refúgio da
escritora. De lá, escreveu aos pais comunicando a saída da
Abril, a volta para casa e a intenção de retornar à
universidade. A família de Caio estava morando em Porto
Alegre desde 1969, quando Nair insistiu em ir, para que os
outros filhos também pudessem estudar com facilidade. Ela
mesma cursaria, então, a faculdade de Filosofia. Zaél, já
militar reformado, teria preferido ficar em Santiago, onde era
alguém de posição, mas os argumentos da esposa foram mais
fortes.
Para Caio, voltar a Porto Alegre foi uma beleza: o céu
azul, os morros, o verde das árvores. Ele amou Porto Alegre
em tudo que ela era diferente de São Paulo: sem asfalto, sem
loucuras; sem porralouquismos também. As pessoas doces,
calmas; o sotaque familiar: o "tu". E o melhor: não ter que
levantar cedo para trabalhar, nem sair de casa para comer. A
mãe faz pós-graduação em Filosofia; o pai lê romances de
Norman Mailer. O quarto de Caio é cor-de-rosa, os móveis são
convencionais, sóbrios, os irmãos pequenos vêem televisão na
sala. Não há, sequer, discos voadores; o ambiente convida a
escrever — ele conta, por carta, a Hilda, sua principal
interlocutora, mentora literária e espiritual.
Caio mantém sua decisão de escrever enquanto está na
casa dos pais; a idéia de voltar para a faculdade, porém,
morre nas dificuldades burocráticas que há para reabrir a
matrícula. E também, principalmente, na inabilidade do
escritor em se adaptar a um currículo, a horários fixos: ele
não consegue parar quieto, principalmente em Porto Alegre. A
capital gaúcha podia ser bonita o quanto quisesse, cheia de
cores, verdes árvores e céus azuis inigualáveis. Mas isso não
era, de modo algum, suficiente; Caio queria estar no olho do
furacão, onde as coisas aconteciam.
E, no Brasil de 1969, o Rio de Janeiro era um lugar
onde as coisas aconteciam. Lá estavam os escritores que Caio
queria conhecer: Clarice Lispector, Nélida Piñon, Maria Alice
Barroso, Walmir Ayala. Assim, apenas quatro meses depois
de ter voltado para a casa dos pais, Caio faz uma visita à
cidade sempre maravilhosa. Havia sido convidado algumas
vezes por Maria Helena Cardoso, irmã do já então falecido
escritor Lúcio Cardoso, com cuja obra a de Caio tinha alguns
pontos de ligação — Lúcio, da mesma linhagem literária de
Virginia Woolf e Clarice, o Dostoiévski mineiro, como alguns
críticos o chamam, fora um escritor que se rebelara contra a
tradição do romance regionalista. No auge desse estilo de
texto, ele escrevera de forma intimista, introspectiva, falando
de personagens mineiros, sim, mas não de sua glória, e sim
da sua degradação, da degradação de suas tradições. Caio
aceitou o convite de Maria Helena, mesmo achando-a um
pouco "fora da realidade" e "liriguelha demais"; a oportuni-
dade era muito boa para ser desperdiçada. Além do que, a
língua ferina de Caio não poupava ninguém, nem os amigos;
e o fato de ele achar uma tolice as cartas em que Maria
Helena falava dos "passarinhos que cantam nos galhos das
árvores" e das "sombras de outono" não significa que ele não
nutrisse, verdadeiramente, uma afeição por ela, ou a
admirasse como escritora.
O apartamento de Maria Helena fica em Ipanema.
Quando vê o quarto onde ficará hospedado, Caio se comove: é
o quarto que fora de Lúcio Cardoso. Como ele foi parar ali? —
se pergunta. Há pouco tempo, ele era só um rapaz vindo do
Boqueirão, com problemas de relacionamento com os colegas
e que crescera rápido demais. Agora, ele estava no quarto de
um dos maiores escritores brasileiros, autor de Crônica da
casa assassinada, em uma cidade verdadeiramente
esplendorosa, belíssima, povoada por pessoas bondosas e
simpáticas, sendo tratado a pão-de-ló por uma velhinha
pequenina e ágil que, modesta, não aceita ser chamada de
uma das melhores escritoras do país — ao lado de Ia
Lispector. E ela não é a única a tratá-lo bem: há Francisco
Bittencourt, o Boroca, primo do pai de Caio; ele é inteligente,
sério, uma flor de pessoa; e além disso é um dos críticos de
literatura mais respeitados do Rio e conhece todo mundo. Há
também Carmen da Silva, a editora que publicara o primeiro
conto de Caio, O príncipe sapo, na revista Claudia, quando ele
tinha 16 anos. Francisco e Carmen mostram os contos de
Caio para outras pessoas, prometem arranjar editoras que
publiquem seus livros, estão entusiasmados com 0 trabalho
dele. Toda essa celebração em torno de Caio o deixa feliz,
orgulhoso.
"As vezes que tentei morrer foi por não suportar a
maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e
fazer aquilo que gosto — mesmo que muitos não compreendam
ou não aceitem, "— escreve aos pais, no dia 21 de agosto,
enquanto Maria Helena assiste a uma novela na sala; em
alguns minutos, Caio vai sair, a noite o espera: bares,
cinemas, teatros, muita gente ao seu redor.

"E as pessoas que passam por mim não saberão jamais


que nasci em Santiago do Boqueirão e um dia fui estudar em
Porto Alegre, que eu era tímido e agressivo, porque me achava
horroroso com aquele bigodinho precoce (hoje, querem pintar
retratos, me acham parecido com Cristo, dizem que tenho olhos
lindos!). Acho graça, acho muita graça. Tão estranho carregar
uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas,
das quedas, dos medos, dos choros. "

Cerca de um mês depois de sua chegada ao Rio, Caio


viaja novamente para Campinas, junto com Hilda e Dante,
que tinham ido passar uma temporada na capital fluminense.
Ao longo de sua vida, Caio mencionaria sua amizade com
Hilda, dizendo que chegara a morar um ano em sua casa. Na
verdade, porém, embora visitasse bastante a Casa do Sol,
Caio não chegou a ficar tanto tempo lá. Suas temporadas em
Campinas eram intermitentes; duravam um ou dois meses, e
em seguida Caio seguia de volta para Porto Alegre, ou para o
Rio, ou para onde fosse. O momento era de inquietude, de
viagens, de descobertas. Além disso, a presença de Caio na
casa era muito intensa; sua amizade, exigente; a admiração
por Hilda beirava a reverência. Chegava sempre o momento
em que a escritora tinha que chegar para ele e dizer: Caio,
sua hora chegou. E então ele ia embora.
Mas ele ainda estava na Casa do Sol quando, no final de
outubro de 1969, aconteceu uma coisa misteriosa e
impressionante; uma notícia maravilhosa, uma Boa Notícia,
com maiúsculas. A partir daquele momento, ele deixaria de
ser o jovem tímido, envergonhado de falar com os outros, e
passaria a se assumir como adulto. A voz de Caio, tinha,
finalmente, melhorado.
A história começou quando ele ganhou um gravador de
Hilda e Dante, e com ele pôs-se a fazer exercícios e a gravar a
voz, pensando em melhorar pouco a pouco. Só que a voz,
muito cheia de personalidade, tinha outros desígnios; assim
como teimara até ali em ser uma voz normal, resolvera mudar
de repente, do nada; e mudara não para ser uma voz comum,
como as outras. A voz nova de Caio era grave, bonita,
charmosa. A partir dali, sempre que ele abrisse a boca, sairia
aquele vozeirão, marcante e inexplicável, vindo não se sabe
de que parte do corpo magricela do escritor. O ator Gilberto
Gawronski, que conheceria Caio na década de 1980, ao
encenar uma de suas peças, brincaria com a situação:
— Meu Deus, precisa ficar de pé para ouvir você ou
posso ficar sentado mesmo?
Ao longo dos anos, Caio e Hilda contariam a história da
figueira para explicar a mudança da voz. Havia uma figueira
no terreno da chácara. Hilda teria dito ao escritor: "Cainho,
essa figueira é mágica. Quando a gente tem um problema
muito grave, fala com ela, e ela resolve". Então ele teria
abraçado a figueira e pedido para a voz mudar. De volta ao
quarto, teria pegado um livro de Fernando Pessoa e começado
a ler em voz alta; no terceiro verso, a voz teria mudado.
Há outras versões: a de que ele teria feito três pedidos à
figueira: para que a voz melhorasse, para voltar logo ao Rio,
onde estava decidido a morar, e para ganhar um concurso
literário de que estava participando. Os três pedidos
acabariam realizados: Caio voltou para o Rio, já de voz nova e
sensual, e lá soube que ganhara o Prêmio Fernando
Chinaglia por Inventário do irremediável, obra a que dera
forma final ali mesmo, na Casa do Sol. Em um texto, Hilda
afirma que o pedido não era para a mudança de voz, mas
para Caio deixar de ser tímido. Tanto ela quanto Caio diriam
que o terceiro pedido era, em vez de voltar ao Rio, conseguir
ir logo para a Europa. Há até quem diga, como o irmão do
escritor, Felipe Abreu, que a voz não mudou de repente coisa
nenhuma; mudou aos poucos, mas Caio preferia acreditar na
versão romântica e mágica da figueira.
Mas a versão mais próxima da realidade é também de
Caio, em carta aos pais logo que a mudança se opera. O
escritor José Mora Fuentes, amigo de Hilda que até hoje vive
na Casa do Sol, estava lá. Era uma noite de lua cheia,
belíssima. Caio teria se sentado na área da casa e olhado a
Lua; então ele teria sentido que podia fazer três pedidos que
eles se realizariam. Três dias depois, a voz mudou. Os outros
pedidos — tanto o prêmio literário quanto a viagem ao Rio —
também logo se realizaram. De todas as versões, o que
importa é que, até os vinte anos, Caio teve uma voz infantil,
esganiçada; aos vinte e um, ela se tornou grave e lânguida e
bela.
Caio voltou ao Rio, decidido a se estabelecer por lá;
conheceu alguns hippies em uma praça de Ipanema, fez
amizade, e considerava a hipótese de ficar por ali,
trabalhando com artesanato; os empregos formais não
apareciam. Em dezembro, porém, ele estava de volta a Porto
Alegre. "Decidi aceitar meu ser nômade, até segunda ordem",
escreveria a Hilda. A carta não era das mais fáceis de
escrever: era a primeira depois de uma briga que tivera na
fazenda com Dante. A coisa foi feia: as palavras "veado" e
"doente" foram das mais leves que o escultor usou para
caracterizar Caio no meio do entrevero, e sabe-se lá o que
este aprontara para causar tamanha reação, tamanha
agressividade. Caio, no entanto, não se abalou demais: com a
arrogância própria da idade, somada à que lhe era própria e
mais uma espécie de certeza de que não havia nada de errado
em sua condição, ele se sentia acima dos preconceitos
burgueses; pairava, superior, sobre o moralismo e a
decadência da sociedade. Logo depois, a amizade com Dante
foi retomada; ele chegou mesmo a visitar Caio e sua família
em Porto Alegre, e o assunto da briga foi deixado de lado.
Caio passaria todo o ano de 1970 na capital gaúcha. Ali,
prestou exames para o curso de Direção Teatral, no Centro de
Artes Dramáticas (CAD). Desde criança, Caio gostava de
teatro, de inventar e encenar historinhas com seus
bonequinhos de papel machê; agora, ele podia desenvolver
mais seriamente essa paixão. Não chegou a terminar o curso,
claro, assim como não concluíra o de Letras. Mas se divertiu
aprendendo algumas coisas. Descobriu, por exemplo, que era
exigente demais com os textos a serem encenados. Só queria
saber de tragédias gregas e de Nelson Rodrigues; o resto
achava descartável. Isso mudaria alguns anos depois,
quando, depois de rodar o país e parar de novo em Porto
Alegre, em 1973, Caio participou como ator de algumas
peças. Entre algumas das que participou no período, estavam
Serafim fim fim, The black grove e The last moment, que nada
tinham de trágicas ou de rodrigueanas. Em Serafim, o papel
era de Batman; em The black grove, vestira-se de mulher. E
por aí afora. Alguns amigos leais dizem que Caio era bom
ator, mas ele mesmo costumava brincar, anos depois, já na
década de 80, quando sua participação no teatro se restringia
a escrever as peças, dizendo que era péssimo.
Mas estamos em 1970. Caio ainda acredita que pode
completar o curso de Direção Teatral e mora com os pais em
Porto Alegre. Nesse momento, desbundou por completo:
experimentou mescalina, começou a participar de festas
malucas, orgiásticas, regadas a maconha e drogas mais
pesadas. Mas essas experiências, em vez de deixarem o
escritor feliz, deprimiam-no ainda mais. A história da
mescalina foi descoberta pelos pais, o que causou o maior
rebuliço; as bacanais faziam Caio se sentir um lixo, no fim da
noite. A única área em que as coisas iam bem era a
profissional: Inventário do irremediável foi lançado com
estardalhaço; foram muitos os convites para entrevistas. Caio
manifesta sua carência, e reafirma sua determinação de ser
escritor, em carta a Hilda Hilst: "Queria tanto que alguém me
amasse por alguma coisa que eu escrevi."

A publicação do primeiro livro, badalada ou não, era um


passo no sentido de Caio se firmar como escritor, e um
escritor amado pela literatura que fazia. Mas embora
Inventário do irremediável tenha sido o primeiro livro do
escritor a ser publicado, não fora o primeiro a ser escrito:
limite branco veio antes. E houve também um livro de contos
chamado Três tempos mortos, que ficaria para sempre inédito,
embora tivesse ganhado, em 1968, Menção Honrosa no
Prêmio José Lins do Rego.
Como o escritor ainda tateasse seus próprios caminhos,
é no Inventário que a influência de Clarice Lispector se
mostra maior e mais clara. Assim como ela, Caio trabalha
muitas vezes com o conceito de epifania: uma revelação
mágica no meio do cotidiano, algo que faz com que a pessoa
mude, repense sua vida. Em alguns contos do Inventário,
essas revelações acabam por trazer a morte dos
protagonistas, como no conto que abre o livro, Os cavalos
brancos de Napoleão. Nesse conto, a morte é quase uma
libertação, e a descoberta que os cavalos representam pode
ser lida como qualquer descoberta, inclusive a do
homossexualismo.
O livro é dividido em quatro partes, ou quatro
inventários: da morte, da solidão, do amor e do espanto,
temas recorrentes na obra do escritor. Há também um quinto
inventário, composto de um único conto: o Inventário do
irremediável. O final do conto, e do livro, traz uma esperança:
a escolha pela vida. Por continuar. E a última frase define,
bem, o texto de Caio, e a sua personalidade.
Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas
curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento.
Só espera. A atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros,
como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela,
vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam,
enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não
chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um
fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar
que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes
veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga
entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para
dentro.
No fim do ano, a maré começa, mais uma vez, a soprar a
favor de Caio. Ele passara um ano ruim, cheio de carências e
inseguranças. Para espantar a tristeza, resolveu ir para a
praia com alguns amigos. Deu certo: depois de refletir muito
sobre a vida, sobre sua relação com os amigos, voltou
recuperado, de bem consigo mesmo; e, como que para coroar
esse novo estado de espírito, ele chegou em casa e encontrou
uma carta de Hilda, que há muito não lhe escrevia. Junto
com a carta, um exemplar de Fluxo-floema, com a novela
Lázaro dedicada a ele. Caio não cabia em si de tanta
satisfação e orgulho. Escreveu uma exultante e empolgada
carta a Hilda. Na mesma noite, porém, aconteceu algo que o
faria retomar a carta e escrever mais um pouco. Caio
conheceu Clarice Lispector.
Personalidade magnética, misteriosa, Clarice fascinara
leitores e críticos desde o primeiro livro, Perto do coração
selvagem. Sua literatura diferente, estranha, é marcada por
sensações; a ação ocorre sempre na cabeça dos personagens.
Moderna, revolucionou a linguagem. Quando o jornalista
José Castello perguntou a Otto Lara Resende sobre ela, Otto
pediu a ele que tomasse cuidado com Clarice. "Não se trata
de literatura, mas de bruxaria", falou.

Caio termina de escrever para Hilda. Pega o jornal para


dar uma olhada, e lê que Clarice Lispector herselfestaria
autografando seus livros em uma estação de TV, à noite.
Engole o jantar que lhe oferecem e sai chispando feito um
foguete para a televisão. "Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi
uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto,
com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo,
absolutamente incrível. Era ela. " Caio chegou perto, entregou
um exemplar de seu livro recém-publicado para ela. Quando
ia saindo, um escritor que estava por ali decidiu apresentá-lo
direito. Caio fica nervoso, sai para o corredor; antes que vá
muito longe, porém, Clarice chega até a porta e chama:
— Fica comigo.
Ele fica, conversam um pouco. De repente ela pára, diz
que acha ele muito bonito, parecido com Cristo. "Tive 33
orgasmos consecutivos." Conversam mais. Falam de Nélida
Piñon, de Hilda. Caio aproveita o interesse dela e lhe entrega
um exemplar sobres-salente do Fluxo-floema que, por acaso,
ele tinha na bolsa. Ela lhe dá seu telefone, pede para ligar
quando for ao Rio. Caio vai embora meio aparvalhado e,
nesse estado de êxtase e perturbação, escreve a Hilda
contando o episódio.

"Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma


sensação estranha, de uma sabedoria e de uma amargura
impressionantes. Ê lenta e quase não fala. Tem olhos
hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não
espera mais nada de nada nem de ninguém, que está sozinha
e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-
la.[...]
Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim —
teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de
dúvida, um presságio."
Era o dia 29 de dezembro de 1970. O ano novo chegava.
Em 1971, Caio volta ao Rio. Totalmente imerso na cultura
hippie, cabelos longos e túnicas indianas compridas, ele
decide tentar um modo de vida diferente, em comunidade,
bem de acordo com o sonho paz-e-amor da juventude da
época. Com três garotas e um rapaz, aluga uma tranqüila
casa em Botafogo. Ele acredita que tudo pode dar certo, que
morar em comuna é a melhor maneira de se viver. Quanto ao
seu trabalho, tudo vai bem: Caio está feliz à beca com os
novos textos que anda produzindo. "Acho que finalmente achei
a minha forma", escreve a Hilda Hilst, em março. "Não sei se
isso é auto-elogio, mas acho que sou o único cara no Brasil que
está fazendo literatura pop MESMO'."
Nessa fase de sua escrita, Caio namora o realismo
fantástico dos autores latino-americanos como Cortázar,
Garcia Márquez, Carlos Fuentes. Nascido na fronteira com a
Argentina, e falando bem o espanhol, Caio aprecia autores
como Ernesto Sábato, Ricardo Piglia. E, utilizando ao máximo
as visões que tem em suas viagens — de LSD, mescalina ou
chá de cogumelos —, escreve textos fundindo o fantástico,
ficção científica e elementos da cultura pop. Surgem assim
alguns dos contos de O ovo apunhalado, obra que só viria a
ser publicada em 1975. Várias histórias desse livro podem
ser entendidas como crítica à sufocante situação por que o
país passava na esfera política; a ditadura está em sua fase
mais dura, e muito do material publicado, inclusive em livros,
só sai sob censura.

A estada no Rio é o começo do fim do sonho da


contracultura para Caio. A vida na comunidade não dá certo:
ele e seus amigos se desentendem, ele sai da casa. Começa a
perceber que a individualidade, às vezes, é mais importante
que a coletividade; que o ser humano é egoísta — ele incluso,
é claro — e que certas coisas funcionam melhor na teoria, na
utopia, que na prática. Para piorar um pouco mais as coisas,
ele é preso. Flagrante falso de maconha. Apanha da polícia e
só sai da prisão porque Adolpho Bloch, dono da editora em
que ele trabalhava, na revista Manchete, intercede por ele.
Solto, Caio é demitido; Bloch queria distância de confusão, e
foi por isso, mais que por benevolência, que o tirou da prisão
e pagou a passagem de Caio para Porto Alegre. Só de ida.
Enfim, nem tudo eram flores. Mas Caio tem sorte. Entre
a saída dele da comunidade e a volta envergonhada para
Porto Alegre, ele encontra abrigo, carinho e amizade na casa
de dois quase desconhecidos, os irmãos Vera e Henrique
Antoun.
Vera tinha quatorze anos quando conheceu Caio, em
1971. Era o lançamento de Limite branco, primeiro romance
do escritor, pronto desde 1968. Ficaram amigos, e até mais
que isso: surgiu um clima, uma espécie de paixão entre os
dois. Caio gostou muito de Vera; escrevia-lhe cartas
amorosas; levou-a, junto com a mãe e o irmão Henrique, para
Porto Alegre; foi visitá-la no Rio algumas vezes; escreveu uma
peça infantil, A comunidade do arco-íris, em que havia uma
boneca inspirada na garota. Chega mesmo a considerar a
hipótese de se assentar, casar, ter filhos, um lar, uma família.
No entanto, a coisa não vai pra frente: quando está com
Verinha, Caio às vezes se torna esquivo; depois de horas com
ela, se divertindo e conversando e montando um clima
apaixonado, ele pula fora, sai pela tangente, se afasta sem
maiores explicações. É a sexualidade em conflito: ele, que já
havia meio que definido que gostava de rapazes, ficava
assustado com a possibilidade de se envolver com uma garota
e, ainda por cima, de forma tão profunda, com direito a
sonhos pequeno-burgueses de casamento. O que viria em
seguida?, ele pode ter pensado. Dali a pouco, ele teria um
carro do ano, um apartamento com vista para o mar e estaria
preocupado em pagar as prestações e a mensalidade da
escola das crianças. E esse quadro não combinava com a
idéia da vida que um escritor devia levar, pelo menos na
imaginação romântica de Caio, forjada em plena década de
60. E a vida de escritor, seu trabalho, sua carreira, era tudo
que importava. Vinha sempre em primeiro lugar, a única
coisa à qual Caio foi sempre fiel durante a vida. Assim, a
relação com Vera não engrenou.
No início de 1973, no entanto, Caio ainda estava na fase
de amor e empolgação pela garota, e lhe escreve:

"Verinha-maravilha, por onde anda você, tão distanciada,


tão silenciosa? Em que nova galáxia posso te encontrar outra
vez, morena como uma princesa raptada por beduínos no
deserto? Vezenquando baixa uma saudade, quase sempre
clara como tem sido o ar verde-azulado desse verão, e fico
sentindo falta do teu jeito lento de chegar pisando em nuvens,
sempre azul."

De Porto Alegre, Caio escrevia a Vera contando de suas


experiências com ácidos e demais drogas lisérgicas. Ele havia
participado de algumas cerimônias de chá alucinógeno com
ela, em Santa Teresa, quando ainda morava com a
comunidade hippie que montara naquele bairro. O ano de
1972 foi todo dedicado a essas experiências. Caio estava em
uma de suas fases ruins, deprimido. Pensava constantemente
em suicídio, não queria sair de casa nem ver ninguém. No
entanto, em uma viagem a Itaqui, onde moravam seus avós,
ele voltou a ficar bem: ele sempre recuperava sua força
através do contato com a terra de sua infância, através da
visão de paisagens antigas. Pessoas sentadas na calçada,
olhando as estrelas, tudo muito parado, sem televisão, sem
carros, sem movimento. Caio reencontrou-se.
Em Porto Alegre, começou a procurar alguns amigos,
gente que tinha evitado durante o período em que sentia só
escuridão dentro de peito. Assustou-se, no entanto, com o
que chamaria de "vampirização" das pessoas: todo mundo só
querendo saber de falar e falar, de fazer comentários
espertos, de mostrar um equilíbrio que não possuíam. Aí Caio
passou a evitá-las de novo, mas, dessa vez, não por
incapacidade de contato, e sim por escolha. Preferia ver um
filme antigo, ouvir música e passear na beira do rio. Está
reconciliado consigo mesmo, e não se arrepende de nada,
como escreve a Vera: "Nada é errado, quando o erro faz parte
de uma procura ou de um processo de conhecimento. " Ou
ainda: "Não sei muito, também não tenho muito, também não
quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das
montanhas."

Assim feliz, gostando de viver, Caio começa a trabalhar


no jornal Zero Hora como copidesque, com o intuito de juntar
dinheiro para viajar. Graça Medeiros, futura astróloga, que o
conhecia havia cerca de quatro anos e seria uma das
melhores amigas de Caio até o fim, voltava de uma
temporada na Europa e insistia que ele devia ir também: a
atmosfera política e cultural no Brasil estava insuportável.
Entre as horas de trabalho que passava no jornal, Caio
planejava sua viagem e continuava a escrever. O conto Visita
ganhou um prêmio do Instituto Estadual do Livro (IEL) em
1973. Essa vitória foi motivo de muito orgulho para Caio:
segundo ele conta, em carta a Hilda Hilst, toda a
intelectualidade de Porto Alegre estava concorrendo, mas a
comissão julgadora atribuiu o prêmio apenas a ele, por achar
que nenhum dos outros trabalhos tinha nível. Além disso,
Caio escrevera o livro de contos O ovo apunhalado, já liberto
— de certa forma — da influência de Clarice Lispector. O ovo
é um livro que fala de violência, de loucura; a influência do
realismo mágico dos latinos se faz notar em alguns textos,
como no próprio conto-título. O prefácio, assinado por Lygia
Fagundes Telles, mostra o quanto o escritor já era estimado e
admirado nos altos meios literários do país. Lygia o chama de
"escritor da paixão", e diz: "Caio Fernando Abreu assume a
emoção. Emoção esta que é vertida para uma linguagem que
em alguns momentos atinge a rara plenitude próxima de um
estado de graça. [...] Quando nos seminários de literatura os
teóricos pedantes acabam por condenar a palavra, minha
vontade simplesmente é mostrar-lhes um livro como este.
Provar-lhes a atualidade da desacreditada palavra com a
própria palavra, quando a serviço de uma técnica rica de
recursos. Aliada a uma imaginação cintilante".
Alguns contos de Caio falam da esperança de redenção.
Em um mundo comum e medíocre, alguém de fora surge e
promete a salvação, a mudança. Oferecem para quem quiser
compreendê-los, porém as pessoas têm medo do novo.
Apenas uns poucos escolhidos se salvam. E os mártires, os
salvadores, sofrem, mas vencem no final. No conto Eles, por
exemplo, uma bela prosa poética, quem aparece para mudar
a rotina são seres de outro mundo. O que os seres dizem é
um atestado da maneira como Caio levava sua vida.

O que eles deixaram foram estes três


postulados: importa é a luz, mesmo quando
consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta
e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem
a loucura escorrendo em suas veias.

Nessa época, a turma de Caio em Porto Alegre era composta


por Maria Lídia Magliani, Jaime Gargioni, Juarez Fonseca,
Augusto Rigo, Sandra Laporta. Havia também Lucrécia, um
gay espalhafatoso de quem Caio gostava muito, e Graça
Medeiros. As pessoas saíam juntas, fumavam maconha, iam
a bares. Conversavam sobre os assuntos da época: filmes,
livros, discos. Falavam mal da ditadura. Caio era muito
crítico, muito ácido. Juarez Fonseca lembra de ouvi-lo
comentar:
— Todo homem com mais de trinta anos é um canalha.
Juarez Fonseca freqüentara a universidade na mesma
época de Caio, só que seu curso era outro; enquanto Caio
cursava — ou tentava cursar — Letras, Juarez fazia
Jornalismo. Na faculdade, Juarez era da equipe do jornal do
centro acadêmico, O coruja. Nessa época, no entanto, não
chegou a conhecer Caio: ele e Magliani formavam uma dupla
quase hermética, uma dupla estranha, e um dos poucos a
conversar com eles de vez em quando era João Gilberto Noll.
Os dois se conheceram quando Caio, já de volta a Porto
Alegre depois de suas andanças por São Paulo e Rio, foi
contratado pelo Zero Hora, onde Juarez já trabalhava. Juarez
tinha se tornado amigo de Magliani, que também trabalhava
no jornal, como diagramadora. Caio começou a colaborar nos
projetos de que Juarez fazia parte, como o jornal Exemplar,
influenciado por O Pasquim, Veja — na época ainda
considerada inovadora — e, principalmente, pela revista
Bondinbo.
Era a efervescência da imprensa nanica, a efervescência
de uma geração que não agüentava a ditadura. Parecia que
no Brasil não havia lugar para gente assim, que contestasse;
a repressão nas ruas aumentava, o clima era de paranóia, de
medo. O pessoal queria mais era sair fora. E saíram.
Os ídolos Caetano Veloso e Gilberto Gil já tinham ido em
1969. Chico Buarque também. A amiga Graça Medeiros já
fora e voltara. Sandra Laporta, também amiga, estava lá.
Cada um em um país — a dupla de tropicalistas na
Inglaterra, Chico na Itália, Sandra na Suécia —, o destino, na
cabeça dos brasileiros loucos para saltar fora, era um só:
Europa. A questão era só escolher por onde começar, e a
turma de Porto Alegre escolheu a Suécia.
Era um grupo de seis pessoas. Juarez e sua esposa,
Sônia Azambuja, casados desde 1971. Márcio, Aninha,
Augusto Rigo, Caio. Cada um iria por um trajeto diferente, e
se encontrariam todos na Suécia, mais ou menos na época
em que a temporada de trabalho começaria, em maio, que já
estava chegando. Não havia tempo a perder.
O dia é 28 de abril de 1973. No aeroporto do Galeão, no
Rio de Janeiro, Caio está exultante. Vera e Henrique foram
vê-lo antes da viagem e, embora um vidro os separasse, foi
muito bom encontrar os amigos. Do avião, Caio escreveria
aos dois, ainda entusiasmado com o encontro: dizia que Vera
tinha olhos de vaca jérsei, e que se casariam na Finlândia e
teriam sete filhos com olhos de vaca jérsei, como os dela, e
cabelos pretos e lisos de índio, como os dele. De Henrique,
dizia ter pressentido que ele tinha QI de gênio. "GRRRR:
vontade de comer vocês dois com molho de chocolate. "
Antes de partir, além de se encontrarem com os irmãos,
Caio, Augusto e Ana, que haviam decidido fazer o percurso
juntos, escrevem do aeroporto do Galeão um telegrama a
Graça Medeiros, cheios de boas expectativas e esperanças.
Brincavam que o avião tinha sido seqüestrado e que eles
estavam em Beirute, "maravilhosos". Era assim que aquele
trio se sentia, logo antes de deixar o Brasil rumo a aventuras
desconhecidas. Por acaso o destino final era a Suécia, mas se
fosse Beirute, bem, não importava.

Caio, Ana e Augusto não vão direto para a Suécia. A


escala é em Madri, onde planejam ficar umas duas semanas.
Caio quer tirar carteira internacional de estudante e ver
Bosch no Museu do Prado. A obra do pintor holandês nascido
em 1450 tinha alguns pontos de contato com a do escritor.
Além do humor cáustico, com que retratava a vida de
pecados do ser humano, e da dificuldade de salvação, a arte,
que viria a influenciar os surrealistas mais tarde, era cheia de
detalhes do fantástico. Lembremos que a própria literatura
que Caio fazia, nesse momento, estava impregnada desses
elementos. Como no conto O ovo apunhalado, em que um ovo
sai de uma moldura e persegue o personagem:

Ele saiu da moldura e veio caminhando em minha direção.


Olhei para o outro lado, mordi o lábio inferior, mas nada
aconteceu: os carros passavam por cima da minha imagem
refletida nas vidraças, os carros corriam e a minha imagem
mordia o lábio inferior.
Quando tornei a me voltar, ele continuava ali, a casca
branca, as linhas mansas de seu contorno: um ovo. Disse-
lhe isso — mas ele não parou -, você não vê que não tem a
menor originalidade — e ele não parou -, todos já disseram
tudo sobre você, qualquer cozinheira conhece seu segredo.
[...]
Mas ele não se move. Está parado à minha frente e volta-se
devagar para que eu fique cara a cara com o punhal
cravado em suas costas. É quando julgo perceber nele uma
espécie de súplica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me.
Agora é um ovo delicado, tenro, humilde, e não tenho medo,
e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus
muitos braços coloridos e toco no cabo de bronze do
punhal. A sua casca está manchada pelo fio de sangue
coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos no mesmo
momento em que meus dedos se cerram em torno do
punhal. Meus olhos são janelas, minhas pálpebras grades,
minhas mãos tentáculos, meus dedos ferro. Uma breve
hesitação, depois empurro lento, firme. E sinto uma lâmina
penetrando fundo em minhas costas, até o pesado cabo de
bronze onde dedos comprimem com força, perdidos entre
espáduas. Lúcia grita, mas é tarde demais. Vejo minha
casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam
cintilando pelo chão do banheiro. 0 sangue escorre e eu,
agora, também estou no céu com diamantes.

Em Madri, Caio encontra, por acaso, Juarez Fonseca e


sua mulher, Sônia. O casal tinha ido até Lisboa de navio, e de
lá para Madri de trem. Estavam numa esquina da cidade
quando viram passar Caio e os amigos que tinham ido com
ele. Sua figura chamava a atenção: a Espanha é um país
católico, cheio de repressões, e nesse sentido estava longe de
ser o paraíso dos costumes que Londres, Amsterdã ou mesmo
Estocolmo prometiam ser. Foram tomar um café, e não se
viram mais, até o encontro combinado na Suécia. Nessa
época, Caio e Juarez ainda não eram íntimos; andavam na
mesma turma em Porto Alegre, trabalhavam no mesmo local,
mas não trocavam confidencias e coisas do gênero.
Sobre o encontro casual com o grupo de Caio, Juarez
escreveu no diário que estava fazendo da viagem, no dia 29
de abril: "Caio muito louco caminhando pelas ruas. Todo
mundo olhando."
De Madri, Caio, Augusto e Ana foram a Barcelona. Se
hospedaram em um hotel na esquina da casa onde morou
Picasso. Caio não achou mesmo muita graça na Espanha: a
comida era horrorosa; as pessoas eram fechadas, rígidas,
moralistas; as ruas de Barcelona eram sujas e poluídas. Era
ainda época de ditadura no país, e se ouviam relatos de
torturas e fuzilamentos. Bonito mesmo Caio só achou o
bairro gótico, com catedrais com mais de 500 anos e casas de
300.
De lá, porém, o grupo seguiu para Paris, e a impressão
que a capital francesa deixou foi de puro deslumbre. Hare-
krishnas andando sossegados pelas ruas; gente variada, com
todos os cortes de cabelo e roupas que se possa imaginar.
Bares charmosos, onde grupos de pessoas se reuniam para
tomar vinho; mulheres elegantes, requintadas. Era o paraíso.
Passear pela capital francesa era como andar sobre séculos
de história, de cultura, de civilização. Pisar nas ruas
francesas era como "pisar no coração do mundo", diria Caio.

Era noite em Itaqui, na fronteira do Rio Grande do Sul


com a Argentina. Caio Fernando Abreu tinha nove anos de
idade e estava passando uns dias na casa de seus avós. Em
dado momento, ele vira para o avô Aparício Medeiros e diz:
— Um dia, quando eu for grande, vou morar na Suécia.
O avô, é claro, morreu de rir. Qual seria a cara dele
agora, que Caio estava mesmo indo morar em Estocolmo?

Na Suécia, os grupos se juntaram e foram todos morar


numa residência estudantil minúscula. Os estudantes
estavam de férias, e os estrangeiros se hospedavam no que
usualmente eram seus alojamentos. Ficaram uns seis dias
nessa residência, e depois se mudaram para outra, um pouco
maior. Aos poucos, todos iriam se estabelecer, arrumar
empregos: Juarez iria trabalhar no restaurante Catelin; Caio
também iria lavar pratos, em outro lugar; Sônia arrumaria
emprego em um hotel, e Sandra Laporta em outro
restaurante. Aos poucos, também, todos iriam se ajeitando e
conseguindo moradias individuais ou em duplas.
O grupo estava sempre junto, fosse na "casa" de um ou
de outro. Encontravam-se depois dos respectivos trabalhos e
iam beber, conversar, fazer comida. Augusto se revelou um
exímio ladrão de supermercados: vestia seu macacão Lee e
enchia os bolsos de enlatados. Sandra também se saiu bem
— roubava camarões do hotel onde trabalhava e trazia para
casa. Era uma festa. Todo mundo se deliciava com os
camarões que, de outra forma, jamais poderiam comer,
caríssimos que eram. Juarez nunca pegou nada. Era medroso
demais e não conseguia levar um roubo até o final. Caio
também tinha medo, mas pegou uma coisinha aqui e outra
ali.
Entre um delito e outro, o pessoal arrumava tempo
também, nas horas vagas, para viver o sonho lisérgico de
uma geração. Era época de maconha, de haxixe, de ácido. E
era um desses adoráveis quadradinhos mágicos que fez
Juarez anotar em seu diário, no dia 24 de maio, três ligeiras
palavras: "Pintou um pink. "Para bom entendedor, meia
palavra basta. No dia seguinte, Caio e Augusto tomaram o tal
pink, e embarcaram numa viagem incrível. Juarez pegou
carona, e ficaram todos pirando cor-de-rosa, numa boa, até o
efeito passar. A coisa foi tão boa, na verdade, que logo
começaram os planos para outra dessas excursões, digamos,
coloridas.

O dia 27 de maio caiu num sábado bonito, com sol e


tempo bom. A primavera sueca está relativamente quente: dá
pra sair de manga curta tranqüilamente. Os brasileiros
reunidos em Estocolmo vão fazer um piquenique num bosque
no bairro de Kungshara. Uma beleza de bosque: jardins
cheios de amores-perfeitos e tulipas, esquilos passeando
tranqüilos, junto com ovelhas e cervos. Atmosfera mágica, de
conto de fadas. Os ácidos tomados às duas e meia da tarde
nada mais fizeram que realçar a magia natural do parque...
Caio está vestido todo de branco, andando por debaixo das
árvores. Juarez, com a cabeça em órbitas insondáveis, olha
pelo visor da máquina fotográfica. Uma caixa de TV está
jogada no lixo, embaixo de um pequeno barranco. Caio vai
até lá e passa na frente do visor de Juarez. Esse tem um
insight e grita, extasiado:
— Puxa, o Caio parece o Jesus Cristo!
Sandra corre para a frente da máquina e diz, com medo
de que aquilo fosse manifestação de alguma bad trip:
— Corta essa, cara.
Nesse momento, Juarez pára de entender o que está
acontecendo. O mundo à sua volta, o bosque, o fiorde ali do
lado com o castelo do rei Gustavo Adolfo, tudo, tudo perde o
significado. A viagem ruim começa pra valer. Caio, junto com
os outros, vai consolá-lo:
— Isso não é nada, cara, passa logo.
E passou mesmo. Depois de sete horas. Na volta à terra,
o grupo foi para a casa de um português ouvir discos. Cat
Stevens, Jorge Ben, o disco Chico & Caetano, Novos Baianos.
Comeram xis-búrgueres com batatas fritas. Caio falava e
falava, analisando a viagem do amigo, possíveis significados,
as descobertas de si mesmo e dos outros por que Juarez
tinha passado. Ele mesmo era muito sujeito a badtrips, com
seu temperamento depressivo, e tinha passado por umas
terríveis em Porto Alegre. Mas ali, junto aos amigos, num país
distante, essas lembranças ruins pareciam distantes. Assim
como parecia distante o tempo em que tinha morado em
Santa Teresa, no Rio, em uma imitação malsucedida de
comunidade hippie. Ali, longe do Brasil, as coisas pareciam
possíveis. Até mesmo utopias que tinham escorrido pelo ralo
por causa da dureza da realidade pareciam mais fáceis de
acontecer naquele país, onde os jovens se deitavam seminus
nos parques para tomar sol, tudo de forma muito pura, sem
maldades ou malícias.

A idéia de paraíso na terra deve ter desmoronado para


Caio mais ou menos dois dias depois do piquenique no
parque, quando ele encontrou o primeiro emprego, aquele de
lavar pratos. Era em um bar, no centro de Estocolmo. Não
tinha sido fácil. Ele e Augusto rodaram vários dias até
encontrarem colocações. Augusto foi parar numa fábrica,
longe da cidade, e Caio se dedicou a ficar oito horas de pé por
dia, com luvas de borracha até o cotovelo, lavando pratos. E
também garfos, facas, bandejas, copos, panelas. O detergente
lavava também toda a arrogância que Caio pudesse sentir.
Ali, naquela cozinha onde todo mundo falava uma língua que
ele não entendia, ele não era melhor que ninguém. Os livros
que lera, os textos que escrevera e publicara, sua postura
"avançada", nada disso o distinguia de David, o boliviano, ou
dos dois japoneses, ou do engraçado africano que
trabalhavam com ele. Que seu livro O ovo apunhalado tivesse
ganhado Menção Honrosa em um concurso no Brasil, isso
não importava. Ali, ele era um lavador de pratos que não
falava sueco. Ponto.
Claro que, quando aquela vontade de viver novas
experiências passasse, e a temporada chegasse ao fim — e
chegaria, como todos sabiam —, Caio poderia voltar para a
casa dos pais e viver uma vida de odalisca outra vez, sem
maiores preocupações. Mas, por enquanto, o momento
parecia duro demais para enfrentar. E Caio, dramaticamente,
bem ao seu estilo, decidiria que o menino cheio de
esperanças que ele fora um dia morrera ali, na cozinha de um
bar no centro de Estocolmo, lavando louça.
No dia 18 de julho, Juarez e Sônia foram embora.
Juarez estava triste. Caio foi se despedir deles. Chegaria
também sua vez de partir, e ele também, talvez, se sentisse
triste. Saudade de ficar com Augusto e outros malucos na
praça, enquanto eles vendiam colares e um francês tocava
violão. Sentiria falta, talvez, até dos guardas que vinham
expulsá-los sempre que começava a sessão de violão. Falta de
Nega Lu, o gay negro, enfrentativo, inteligente e bem
informado, que debochava de todo mundo, mas de quem
ninguém debochava, pois era forte demais e seria capaz de
pendurar pelo pescoço qualquer um daqueles intelectuais,
cujo único exercício físico era o levantamento de copo. Mas
não, Caio não se sentiria triste; antes de chegar à Suécia, a
Suécia era para ele o paraíso. Uma vez lá, porém, e passado o
impacto e a fascinação dos primeiros dias, ele começaria a
achar a cidade um horror. Fora assim com São Paulo, com o
Rio de Janeiro, com Porto Alegre. Fora assim com Madri.
Estava sendo assim com Estocolmo e provavelmente seria
assim com Londres, que ele tanto ansiava em ver. Esse era
Caio: sempre achava um jeito de colocar defeito no lugar onde
estava. Sentia-se um estrangeiro onde quer que fosse, sem
possibilidade de cura.
Depois de ter dado um pulo na Holanda e na Bélgica,
Caio estava, finalmente, em Londres. A primeira impressão foi
de êxtase: cabelos coloridos andando pelas ruas, sem
ninguém olhar nem comentar, roupas dos anos 30, parques
lindíssimos, pessoas gentis. A cidade parecia saída de um
livro de Virgínia Woolf, e era maravilhosa, bem diferente da
dura Estocolmo, onde as pessoas eram fechadas demais.
Todo o deslumbramento, claro, só duraria o tempo suficiente
para que Caio escrevesse meia dúzia de cartas para os pais e
amigos; logo ele já estaria achando a cidade fria demais,
cinzenta demais. Chuva a todo momento, uma chateação. E
aquela história de não ter dinheiro para nada e trabalhar em
subempregos para sobreviver não era nenhuma maravilha.
Fazer faxinas em casas de atores, trabalhar de modelo vivo
em escolas de Belas-Artes, horas na mesma posição para que
os alunos o desenhassem. Não era isso que ele tinha
sonhado; não era isso que os livros tinham prometido.
Durante todo o tempo em que esteve viajando, Caio e
Vera Antoun continuaram se correspondendo. Trocaram
cartas amorosas, interessantes, em que ele contava suas
experiências e suas mudanças de humor. Falava, por
exemplo, de Nelson, um dançarino cubano que ele estava
meio que namorando. Depois de meses sozinho, Caio
arrumara uma paixão que o fazia suspirar pelos cantos e
cantar canções do Roberto Carlos (lembrem-se que o ano é
74, e a fase brega do rei ainda não tinha começado, com
todas aquelas odes às mulheres pequenas-gordinhas-de-
óculos). Mas Nelson, embora tenha tido seu momento, não
viria a ser o grande amor da vida de Caio; como, aliás,
ninguém seria. Ele era individualista ao extremo e não
deixaria que alguém entrasse em seu mundo; qualquer
ameaça à sua liberdade, ele saltava fora, soltando farpas para
todo lado. Nesse ponto, era defensivo, incapaz de se
comprometer.
A relação com Vera, por exemplo, foi esfriando à medida
que chegava a hora de voltar ao Brasil e encará-la frente a
frente. Ele, que falara em casamento e filhotes com olhos de
vaca-jérsei, já estava dizendo: opa, não é bem assim.
Primeiro, disse que casar não tinha nada a ver, que se duas
pessoas se gostavam, não era preciso papel nenhum para
afirmar isso. Segundo, ele não podia mais dizer que a amava;
só teria certeza disso se estivesse com ela ao vivo e em cores,
exatamente aquilo que ele estava tentando evitar. E terceiro,
ele não tinha condição de pôr um filho no mundo, não do
jeito que vivia, sempre sem dinheiro, vendendo o almoço para
comprar cigarros. Quarto: ele estava ficando careca, entradas
enormes na cabeça; o cabelo lindo e escorrido de índio estava
indo embora. Além disso, estava branquelo demais de tanto
não-sol que fazia em Londres. Será que ela ia querer alguém
assim ao seu lado?
Em abril de 1974:
"Tenho medo de te ferir. Mas acho que precisamos 'falar
seriamente'. Desculpe, mas acho que sim, sem fantasia, sem
comicidade. Me pergunto sempre se você não teceu em volta de
mim uma porção de coisas irreais — se você não está
projetando em mim qualquer coisa como um príncipe
encantado — esperando a minha volta como quem espera a
salvação."
Para quem queria comer a garota com molho de
chocolate, era uma mudança e tanto.

Caio escreveu muitos textos sobre o relacionamento


entre duas pessoas, tanto sobre relações hetero como
homossexuais. Essa sempre foi uma de suas principais
preocupações: sempre quis viver um grande amor, uma
paixão avassaladora. A seu modo, experimentou de tudo. Mas
não deixava que ninguém entrasse demais em sua
intimidade. Assim, acabava, quase sempre, sozinho. A
incomunicabilidade, comum entre pessoas que se gostam, foi
explorada em um texto de O ovo apunhalado, Para uma
avenca partindo:

— Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de


coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem
costumeira-mente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem
ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe
nem como serão ditas nem como serão ouvidas,
compreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te
disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu
como você sentiremos uma falta enorme de todas essas
coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você
nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque
elas não foram existidas completamente, entende, porque
as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido
viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe um
dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável,
não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de
penetrar naquilo que não se sabe se terá coragem de viver,
no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está
acompanhando meu raciocínio? [...]
[...] está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor
mesmo você subir, continuaremos conversando enquanto o
ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito
importante, vou dizer tudo numa só frase, você
vai....................................................................sim, sei, eu
vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você
botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada,
olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção
de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a
janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa,
espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as
bolsas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você,
olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e
exclusivamente sua, por que você fica sempre me
interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa
mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio
e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu
tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te
dizer quê.

Além de arrebentar esperanças e se engraçar com


rapazes cubanos, Caio continuou em Londres com os
pequenos roubos em lojas. Coisa pequena. As lojas grandes
de onde roubavam nem sentiriam o prejuízo. Mas a Inglaterra
é um país onde o shopliting é punido de forma mais severa
que no Brasil; os seguranças e policiais não queriam nem
saber de conversa. Assim, quando Caio e o amigo Homero,
que também morava no apartamento que ele dividia com
Marisa e Augusto, entraram em uma livraria, roubaram livros
e foram vistos, não houve meio de convencer os guardas de
que, como diz Garcia Márquez, roubar livros é errado, mas
não é pecado. Por causa dos dois volumes de uma biografia
imensa sobre Virgínia Woolf, Caio e Homero passaram a noite
na cadeia e foram condenados a pagar 30 libras de multa.
Era mais do que Caio ganhava por semana na escola de
Belas-Artes; mas apertando aqui e ali, dava para pagar.
Prisão num país estranho e 500 contos a menos: era até
onde o amor à literatura tinha feito Caio chegar.
É, estava na hora de voltar para casa.

TRÊS

— Tá certo que o sonho acabou, mas também não


precisa virar pesadelo, não é?
A frase foi escrita por Caio Fernando Abreu no espelho
de seu quarto em Porto Alegre, em julho de 1975. Cinco anos
antes, John Lennon anunciara o fim do sonho de toda uma
geração, ao cantar que não acreditava mais em coisa alguma:
mágica, Ching, Jesus, Buda, Elvis ou Beatles. Ele só
acreditava nele mesmo e em Yoko Ono; o sonho acabara. "The
dream is over, what can I say?" A música era God, do primeiro
ábum de Lennon sem os Beatles, o Plastic Ono Band. Os
besouros musicais já não existiam, e o mundo devia seguir
em frente sem eles.
O ano de 1968 ia longe. Os dias de Caio na Europa
também. De volta ao Brasil, ele percebia o quando tinha
reclamado de barriga cheia enquanto estava viajando. O
clima claustrofóbico da ditadura continuava, embora
amenizado, com a abertura começando a se esboçar. O
Suplemento Literário de Minas Gerais, em que Caio colaborava
desde antes de viajar, avisou que só poderia publicar um
conto dele se as palavras "merda" e "tesão" caíssem fora. As
pessoas em Porto Alegre estavam mudadas: tinham feito
coisas das quais ele nada sabia, porque estivera fora; elas
também não sabiam nada das experiências por que ele
passara. Ninguém se entendia, as referências eram outras. O
clima estava ficando pesado também no quesito drogas:
muita gente estava começando a pirar, internações em
clínicas, coisas assim. Não se podia andar pela rua com
cabelos compridos e batas indianas sem chamar a atenção,
como em Londres ou Amsterdã. É, era o Brasil. Por que
mesmo ele tinha decidido voltar?
A depressão veio pesada. Readaptar-se era difícil. Caio
poderia consultar um psiquiatra amigo seu, Ernesto Bono, se
o dinheiro não fosse tão curto, e a necessidade de sobreviver
maior que a de curar caraminholas da cabeça. Bono era um
psiquiatra diferente dos outros: era, na verdade, um anti-
psiquiatra. Acreditava que a psicanálise tradicional tinha
algumas vantagens, mas que no geral só servia para reforçar
aquilo que ele considerava o grande problema do ser
humano: o ego. Ele ia por um lado mais zen, mais de
desapego; acreditava numa forma de conhecimento mais
holística, falava em macrobiótica e, junto com o jornalista
Luiz Carlos Maciel, queria fazer de Porto Alegre um centro de
irradiação da contracultura para todo o Brasil. Caio gostava
muito de Bono, mas não tinha condições, no momento, de
pagar suas consultas. O milagre econômico dos militares não
tinha chegado até a casa da família Abreu, como não chegara
para a maioria dos brasileiros. E, mesmo que tivesse, não
adiantaria nada: o milagre estava com os dias contados. Só
faltava aprontar o enterro. O sonho estava acabando, e não
era só para os Beatles.

Enquanto o enterro não vinha, Caio se virava para


sobreviver em Porto Alegre. Não precisava fazer faxina nem
posar em escolas de Belas-Artes, mas algum trabalho ele
tinha que ter, e a saída era, como sempre, o Jornalismo.
Escrever na imprensa era parte daquilo que ele chamava de
"biscates culturais": resenhas e críticas para jornais,
traduções e revisões para editoras, oficinas de criação
literária para alunos com ou sem talento, qualquer coisa que
pudesse garantir algum dinheiro no fim do mês enquanto ele
escrevia seus livros. E uma das coisas que havia para se fazer
em Porto Alegre, na metade da década de 1970, era colaborar
com a imprensa alternativa. Eram jornais que, justamente
por serem independentes, podiam se dar ao luxo de dar
espaço a críticas e inovações. No eixo Rio-São Paulo, ficaram
famosos veículos como O Pasquim, Opinião, Movimento,
Bondinho: cada um com sua opção formal, estética e política,
pois havia veículos para todos os gostos, tendo em comum
apenas a condição de nanicos.
A imprensa nanica, como a chamara João Antônio nas
páginas de O Pasquim, não era privilégio de paulistas e
cariocas. Entre 1967 e 1973 existiu, por exemplo, o jornal
Exemplar, comandado por Juarez Fonseca, em que Caio
Fernando Abreu chegou a colaborar algumas vezes. Tirando
O Pasquim, com quem, aliás, Caio compraria uma boa briga
no final de 1976, ele colaborou em quase tudo que era
nanico: Opinião, Movimento, Ficção, Inéditos, Versus, Escrita.
Em 1976, Juarez começou outro projeto que teria a
participação de Caio: a revista Paralelo, que duraria apenas
quatro números. Dois meses antes da revista sair, Juarez
pediu a Caio que entregasse uma crônica para o primeiro
número da revista. Ele teria uma página só para ele, poderia
escrever o que quisesse, um luxo. Mas Caio estava deprimido,
sem idéias, sem dinheiro nem para as anti-consultas com
Bono, ainda não totalmente recuperado da experiência
européia. Por dois meses, ele esperou que alguma idéia
aparecesse, alguma coisa bonita para oferecer aos leitores.
Findo o prazo, porém, ele não estava melhor que antes, e nem
as inspirações brotavam com mais facilidade. O jeito foi então
escrever uma crônica falando exatamente desses sentimentos
escuros que ele sentia, sem esconder nem maquiar nada.
Depois de consultar o amigo Giba Rocha, descobriu que
muita gente tinha gostado de entrevistas que ele tinha dado,
entrevistas veementes em que Caio assumia suas posições
peculiares com firmeza. Viam nele uma espécie de porta-voz
da geração dos anos 70, o que, de certa forma, ele acabou se
tornando mesmo, de forma não-planejada. Mas no momento,
essa era uma responsabilidade grande demais para ele.

"Acontece que não sou [porta-voz] e não quero assumir esse papel, porque
— estou usando o máximo de, desculpem, sinceridade — não sirvo nem
pra porta-voz de mim mesmo. Nos últimos tempos tenho me movimentado
com dificuldade dentro dos meus escombros-de-dentro, por uma série de
razões demasiado pessoais para serem trazidas ao baile (trata-se de um
baile?) ando com uma autocrítica violentíssima e não consigo,
simplesmente não consigo pensar organizadamente (?)
ou ter idéias claras ou/e precisas sobre as coisas, quaisquer que sejam.
Eu disse: quaisquer. Nas cartas que tenho escrito ou nos meus rabiscos
solitários (e vis, talvez) no meio da noite, acabo sempre caindo na mais
lamentável das auto-lamentações: dói, tudo dói, DÓI PRA CACETE, meu
irmão; como uma nevralgia psico-espiritual (!), parece que alguma peça
importante para o meu funcionamento simplesmente quebrou, e eu não
sei o que fazer, e tenho consciência de quanto isso parece ridículo e
juvenil, só não estou mais afim de fingir que tudo-bem, você me entende?,
e é isso mesmo que eu sou, esse "ter nascido me estragou a
saúde"ambulante e crônico."

A crônica segue e Caio menciona amigos, pessoas


talentosas, todas mais aptas a escrever a página que ele:
Tânia Faillace, Sérgio Caparelli, Luiz Fernando Emediato.
Fala de uma coisa e outra, cita Mario Quintana e Adélia
Prado, reclama que as grandes sacanagens sociais continuam
acontecendo, "apesar das nossas ficções": "Escrevo por uma
espécie de incompatibilidade-de-gênios com a vida, escrevo
para reinventar, para organizar o caos, para não enlouquecer
de impotência, para refazer. Mas não pense que não sei do
inútil disso. " Fala também em revolução sexual e de alguém
que ele queria encontrar, mas nunca está em casa. Cobra dos
outros, referindo-se à previsão de Bono e de Luiz Carlos
Maciel de que a Bahia já era e o novo pólo de irradiação da
contracultura no Brasil seria o Rio Grande do Sul: "como é
que é? não era um lugar altamente esotérico? Não
aconteceriam coisas incríveis por aqui?" O texto termina:
"Alguém me disse, já faz tempo, num bar: "Um dia
alguém precisa virar a mesa ao invés de só pedir outra
Brahma. "Arrotou, chamou o garçom (seria o Isaac?) e pediu
outra."
E voilá, uma crônica estava pronta.

Se Caio estava mal, em parte a culpa era dele. Estava


bebendo de sua taça, como gostava de dizer. Mas a taça
destinada à sua geração nem sempre tinha só champagne; de
vez em quando era cicuta, e das brabas, daquelas de matar
filósofos. Se não havia dinheiro, um pouco era por causa da
economia em crise, mas também porque Caio nunca se
sujeitou a um emprego comum por muito tempo. Se ele não
conseguia encontrar um único e belo amor, talvez estivesse
procurando nos lugares errados. Se havia bad trips, ora, era
por causa das drogas. Se a ditadura existia, era porque...
Bem, a ditadura era uma das coisas sobre as quais Caio não
tinha controle algum. Era uma dose amarga que sua geração
tinha que engolir sem reclamar.
Caio provou desse veneno em 1975, quando foi preso
em Garopaba, no litoral catarinense. Ele já havia sido preso
em 1971, no Rio de Janeiro, em um falso flagrante de drogas.
Dessa vez, eram dez ou quinze pessoas, entre elas Graça
Medeiros, Caio, Jaime. Tocavam flauta, entravam no mar,
conversavam, riam. Em dado momento, Caio e Graça foram
até a padaria, na cidade; ele de calção, ela de biquíni. No
caminho, alguém apontou para eles:
— Olha lá!
Minutos depois, estavam presos.
Na ocasião, Caio apanhou muito. Queriam que ele
depusesse contra Graça, que era o verdadeiro alvo, a pessoa
em quem realmente estavam de olho, por questões políticas.
Como Caio, muito dignamente, se recusasse a falar,
soltaram-no. Graça foi presa e condenada em um flagrante
falso de porte de maconha, armado na delegacia de
Florianópolis dois dias depois de ter sido presa em Garopaba.
O responsável pela prisão era o delegado Elói Gonçalves, o
mesmo que ficaria famoso, um ano depois, por prender
Gilberto Gil e Chiquinho Azevedo por porte de maconha, em
Florianópolis, às vésperas de um show dos Doces Bárbaros.
Gil e Chiquinho, assim como Graça, foram condenados a
passar um tempo em clínicas psiquiátricas.
Essa história serviu de inspiração a Caio para escrever o
conto Garopaba mon amour, mistura de fatos com altas doses
de invenção e fantasia, publicado pela primeira vez na revista
Ficção. Nessa ocasião, Graça tinha dado um jeito de escapar
da clínica, e estava escondida. E a quem o boca-grande do
Caio dedica o conto? A Graça Medeiros. E não só: à fugitiva
Graça Medeiros, que, é claro, ficou furiosa, de modo que Caio
acabou nunca mais dedicando texto algum a ela. Quando o
conto foi publicado em livro, em Pedras de Calcutá, a
dedicatória foi suprimida. A epígrafe do texto é um trecho do
conto Garopaba meu amor, de Emanuel Medeiros Vieira,
escritor catarinense. Depois de ter sido preso e solto na
despedida de Jaime, Caio passou uns tempos na casa de
Emanuel, em Garopaba.

Evitamos nos encarar — por que sentimos vergonha ou


piedade ou uma compreensão sangrenta do que somos e do que
tudo é? —, mas, quando os olhos de um esbarram nos olhos do
outro, são de criança assustada esses olhos. Cão batido, rabo
entre as pernas. Mastigamos em silêncio as chicotadas sobre
nossas costas. E os corações de vidro pintado estalam ainda mais
alto que as ondas quebrando contra as pedras.
— Conta. -Não sei.
(Bofetada na face esquerda.)
— Conta.
— Não sei.
(Bofetada na face direita.)
— Conta. -Não sei. (Pontapé nas costas.)

Antes do episódio em Garopaba, Graça tinha sido uma


das responsáveis pela publicação de O ovo apunhalado. O
livro tinha ganhado, em 1973, menção honrosa do Prêmio
Nacional de Ficção, mas só seria publicado dois anos depois,
e com contos suprimidos pela censura, pelo Instituto
Estadual do Livro, em parceria com a editora Globo. Na
época, Graça era assessora de Paulo Amorim no Departa-
mento Cultural da Secretaria de Educação e Cultura do Rio
Grande do Sul, ao qual o Instituto Estadual do Livro (IEL) era
vinculado, e intercedeu junto a ele para que o livro saísse.

Em 1975, além de publicar O ovo, Caio receberia o


Prêmio Leitura do Serviço Nacional de Teatro (SNT) pela peça
Uma visita ao fim do mundo, que mais tarde, sabiamente,
teria seu nome trocado para Pode ser que seja só o leiteiro lá
fora. Premiada, a peça foi indicada para leituras em várias
partes do país; logo depois, porém, foi proibida, e só viria a
ser encenada em 1983. O leiteiro... era a continuação do
trabalho com teatro que Caio vinha fazendo desde que voltara
da Europa. Em 1974, tinha trabalhado com o grupo Província
na peça Sarau das 9 às 11. Aquela era uma peça de esquetes,
e fora escrita a quatro mãos por Caio e por Luiz Arthur
Nunes, primeira de várias parcerias da dupla. Os dois
chegaram a morar juntos por um ano, em 1976, no
apartamento de Luiz na rua Jerônimo Coelho, de onde Caio
só sairia para a famosa casa da rua Chile.
A parceria com Luizar — como Caio o chamava — era
boa, fluía. Um escrevia uma frase, o outro mais uma, e assim
sempre, na maior facilidade. Ou então cada um escrevia uma
cena, e o outro mexia, retocava. Como a experiência desse
certo com o Sarau..., foi repetida em 1977: Luiz Arthur ia
fazer um espetáculo de esquetes, precisava de alguns textos,
e Caio escreveu alguns diálogos curtos.
Em Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, alguns amigos
se escondem em uma casa abandonada, enquanto aguardam
o fim do mundo chegar. Ao amanhecer do dia seguinte,
descobrem que não há nuvens de radioatividade, que o sol
ainda brilha e o mundo está a salvo, por enquanto.
JOÃO (Sem emoção.) — Estão batendo na porta.
ROSINHA — Devem ser os três reis magos que vêm visitar
o menino, trazendo ouro, incenso e mirra. Ou os quatro
cavaleiros do Apocalipse.
BABY— Ou Mona. Quem sabe é Mona com os
extraterrestres? Eles vêm nos buscar também.
LEO — É a polícia. Tenho certeza que é a polícia.
ANGEL — Puede ser algun vecino.
CARLINHA — Eu acho que são os sobreviventes da
explosão. Os monstros, com aquela pele toda verde,
apodrecendo e caindo... Eles vêm nos matar porque nós
sobrevivemos. Nós tínhamos o direito de sobreviver ao fim
do mundo.
ALICE — Piração, piração, tudo piração: pode ser que seja
só o leiteiro lá fora.

Por essa época, metade dos anos 70, Caio já era,


principalmente em Porto Alegre, um escritor reconhecido, de
certa forma consagrado. Com três livros publicados, ele era
um dos integrantes do chamado boom literário dos anos 70:
uma turma nova que fazia ficção, principalmente através do
conto. Esses escritores se correspondiam, trocavam informa-
ções, impressões, tentavam ajudar uns aos outros dentro de
suas capacidades, mostrando o texto dos amigos para outras
pessoas, escrevendo resenhas positivas em jornais e revistas.
O espírito da época era de solidariedade com os colegas, e
nisso Caio não desapontou os amigos. Mais de uma vez, deu
provas de sua fidelidade, escrevendo em jornais sobre os
escritores que admirava, e que quase ninguém conhecia,
como a própria Hilda Hilst, aclamada por um certo ramo da
crítica mas desconhecida do público, e nem só do grande. Na
época, ninguém lia Hilda Hilst. A escritora se magoava com
isso; tanto que, já mais velha, decidiu que iria escrever livros
eróticos para ver se venderia mais. Ilusão, claro: a porno-
grafia de Hilda não era como outras pornografias, como
qualquer pornografia, e ela não vendeu nem meio exemplar a
mais por isso; além disso, perdeu o respeito de uma parte da
crítica, que passou a chamá-la de velha safada, coisas assim.
Outro em quem Caio deu um empurrão foi o poeta Nei
Duelos, gaúcho de Uruguaiana e radicado na capital. Eles
eram amigos de conversar sobre literatura, cinema. Nei era
jornalista. Quando entrara na faculdade, Juarez Fonseca
ainda andava por lá, e foi ele que, na primeira reunião de
estudantes a que o calouro Nei compareceu, chamou-o a um
canto e explicou tudo: o movimento estudantil é assim e
assado. E seria Juarez também que, anos depois, junto com
Caio, iria na casa de Nei e o ajudaria a editar o livro Outubro.
Os três separaram os poemas por tema, organizaram o livro.
Caio sugeriu a troca de algumas palavras, e em geral estava
certo: Nei acatava sua sugestão por achar que tinha ficado
melhor.
Caio leu um poema do qual gostou muito, e perguntou
em quem o poeta estava pensando quando escreveu.
— No Mario Quintana — disse Nei.
Então Caio sugeriu que ele colocasse o Mario Quintana
no título do poema. Será?, perguntou o poeta. Estava em
dúvida. Caio o aconselhou a arriscar. Nada teria a perder. Nei
seguiu o conselho e nomeou o poema Mario Quintana. Não se
arrependeria: quando o livro saiu, Quintana adorou o poema.
Tanto que aceitou fazer o prefácio do livro seguinte de Nei.

Antes de Mario Quintana ver o poema, porém, o livro


tinha que ser publicado. Caio usou de sua influência no IEL
para conseguir a publicação de Outubro, o livro garimpado na
papelada de Nei. Ele deu um parecer favorável à publicação
do livro. Quando o livro saiu, foi um acontecimento: afinal,
Nei não era ainda conhecido, como Caio, nem tinha nada
publicado em lugar nenhum, a não ser em jornais
mimeografados. Alguns conheciam sua poesia de vê-la
declamada nos encontros de estudantes, mas, no geral, ele
era um autor marginal. Vê-lo publicado com capricho pelo
governo do estado, em plena ditadura, era algo para se
comentar. Os outros poetas podiam pensar: ei, se o Nei pode,
eu também posso.
Muitos dos autores publicados nessa época pelo IEL,
Caio inclusive, tinham muito a agradecer à diretora do
instituto, Lígia Averbuck. Com uma visão aberta e
democrática do que devia ser a literatura, ela trouxe para o
instituto e conseguiu publicar muitos autores considerados
malditos, e muitos autores simplesmente novos,
desconhecidos, que dificilmente conseguiriam espaço em
outras editoras. Era aquela velha história: quem não fosse
conhecido não seria publicado, mas como se tornar
conhecido se não aceitavam publicá-los?

Apesar do heroísmo de Lígia Averbuck, ela não podia


dar conta de toda a cena literária do Rio Grande do Sul. Mais
coisas precisavam ser feitas. Assim, para combater a política
conservadora das editoras, os autores começaram a se unir e
a produzir antologias, algumas pagas do próprio bolso. Caio
participou de várias, entre elas Teia & Assim escrevem os
gaúchos, ambas de 1976. Era uma maneira de divulgar a
novíssima literatura do país: muita gente estava escrevendo
coisa boa, e era preciso desovar essa produção de algum jeito.
Uma dessas antologias, porém, iria causar a Caio uma
enorme dor de cabeça. E justo aquela que lhe daria mais
visibilidade: a antologia publicada pela Codecri, editora de O
Pasquim.
Pouco tempo antes, o nanico mais influente do país
tinha decidido criar uma editora, a ser dirigida por Jeferson
Ribeiro de Andrade. O primeiro livro que ele quis publicar foi
uma história policial de Otávio Ribeiro. Em segundo, viria
uma antologia de doze contos de autores novíssimos, gente
que vinha se destacando pelo talento precoce. Entre os seis
autores escolhidos estava Caio. Os outros eram o próprio
Jeferson, bom jornalista, mas escritor "sem grande brilho",
como escreveu em uma reportagem Luiz Fernando Emediato,
que, aos 25 anos, também participaria da antologia; Antônio
Barreto, poeta de 22 anos que dava seus primeiros passos na
ficção; Domingos Pellegrini, o mais velho da turma, com 28
anos (Caio tinha 27); o carioca Júlio César Monteiro Martins,
com 21 anos e uma arrogância típica da idade.
O mineiro Luiz Fernando Emediato era jornalista e
editava as revistas Silêncio, que logo foi fechada pela polícia, e
Inéditos. Aos 19 anos, tinha ganhado o prêmio Revelação de
Autor e, por causa disso, fora considerado por muita gente
uma espécie de garoto-prodígio da literatura brasileira. Isso
até que o crítico Flávio Moreira da Costa o chamasse de
Shirley Temple: surpreendente enquanto jovem, e ruim à
medida que fosse ficando mais velho. Anos mais tarde,
Emediato, antes de retomar as atividades de escritor, diria
que talvez Flávio tivesse razão.
Naquela época, ele editava suas revistas, escrevia seus
romances e contos, se correspondia com outros autores. Um
desses escritores era Caio Fernando Abreu. Os dois vinham
lendo os textos um do outro há algum tempo, através de
suplementos literários diversos; Luiz gostara de um livro de
Caio, O ovo apunhalado, e escreveu a ele pedindo um texto
para a Inéditos. Caio mandou, eles continuaram a se
corresponder, ficaram amigos. E, em 1977, foram convidados
para fazer parte da antologia Histórias de um novo tempo, da
Codecri.
A princípio, as coisas tinham tudo para dar certo. Os
autores da antologia se correspondiam, trocavam impressões;
todos amavam a literatura, todos se revoltavam contra
alguma coisa, embora as semelhanças parassem aí. "Jéferson
era naturalmente revoltado, por causa do mau humor;
Barreto, Pellegrini e eu éramos marxistas e queríamos
derrubar a ditadura a qualquer custo, ainda que derramando
sangue; Caio, infeliz, revoltava-se naturalmente contra a
trágica condição humana; e Júlio César, um burguês liberal,
cujo talento tinha o mesmo tamanho, enorme, da vaidade
juvenil, revoltava-se contra o fato de, aos 21 anos, ainda não
ser considerado o maior gênio da literatura brasileira de
todos os tempos", escreveria Emediato, numa bela definição
dos envolvidos na antologia, na reportagem que fez para a
revista Geração, da editora Geração Editorial, que fundaria
décadas depois.
Essas diferenças, no entanto, iriam se agravar com o
tempo. Havia muitas coisas na visão de arte dos
companheiros com que Caio não concordava. Em março de
1977, por exemplo, Emediato enviaria a ele uma cópia do
Manifesto Neo-Realista, criado pelo grupo para dizer ao
mundo o que eles pensavam sobre literatura. A própria idéia
de um manifesto, de um conjunto de regras — ou diretrizes,
ou opiniões, como se queira chamar, mas que no final viram
regras mesmo — a serem seguidas não podia ser agradável
para Caio, sempre independente, muito dono do próprio
nariz.
Emediato tinha mandado, por engano, duas vezes a
segunda página do manifesto, e nenhuma da primeira.
Assim, uma das primeiras coisas que Caio leu do documento
foi a frase: "contra
O individualismo". Ora, ele não era de forma alguma
contra o individualismo. Suas influências literárias só
falavam do indivíduo: Clarice Lispector, Virgínia Woolf,
Mareei Proust. Além disso, fazia um ano que ele estava
fazendo análise (tinha conseguido um emprego na Folha da
Manhã como crítico de teatro, e assim podia pagar as
consultas) e, com isso, lentamente, emergia da depressão
pós-Europa. Agora ele estava melhor, mas graças a quê? A
analisar o ego. O eu, o indivíduo. Imagina, ser contra o
individualismo. Que idéia.
E esse era apenas o começo da confusão. Caio usou de
muito tato, em carta, para dar a entender a Emediato que
não assinaria o manifesto. Afinal, ainda gostava muito do
pessoal que sairia na antologia. Os seis eram os "paladinos
do Oeste", como os chamaria na dedicatória de um livro anos
depois Emediato, aliás, o preferido de Caio. O mineiro tinha
escrito alguns contos de temática homossexual, embora fosse
casado e hetero convicto. Sua única experiência com um
homem fora na adolescência, e servira para mostrar que não
era aquilo que ele queria. Mesmo assim, escrevia os tais
contos, pouco preocupado com o que pudessem pensar; Caio
lera alguns desses textos, e achou que havia esperança. Ali
parecia estar uma alma-irmã da sua, com a mesma
sensibilidade. Caio ansiava pelo momento de conhecê-lo
pessoalmente; no cara-a-cara, poderia ver se suas
expectativas se confirmavam ou não. Foi visitar Emediato em
sua casa, em Belo Horizonte. Tudo correu bem, a amizade se
fortaleceu. Agora faltava encontrar o resto do grupo.
O encontro com os outros paladinos aconteceu no
lançamento da antologia, no Rio de Janeiro. Quatro deles —
Barreto e Pellegrini não puderam ir —, que uns dos outros só
conheciam palavras escritas, puderam se apertar as mãos e
se olhar nos olhos. Nada de mal até aí. A confusão aconteceu
mesmo quando os quatro foram dar entrevista a O Pasquim.
Histórias de um novo tempo teve sua primeira edição, de
20 mil exemplares, esgotada em quinze dias. Mais dez mil
exemplares saíram, e acabaram logo. A coletânea era um
sucesso, sob todos os pontos de vista. Os autores foram
entrevistados pelo tablóide, e o texto saiu. E saiu editado,
com trechos cortados, para que coubesse no jornal, como
todos os textos. Só que Caio não gostou nem um pouco da tal
edição. Na sua cabeça, só trechos dos seus depoimentos
tinham sido cortados; toda a parte em que ele falava de
homossexualismo teria ficado de fora, por exemplo.
Intempestivo, escreveu uma carta ao jornal, manifestando
toda a sua raiva. E a resposta o deixou ainda mais irado: O
Pasquim, bem ao seu feitio, mandava ele lamber sabão ou
catar coquinho, coisas do gênero. Depois disso, a relação do
grupo foi se esfacelando mais e mais. Implicou, por exemplo,
com Júlio César, em quem não perdoava a vaidade juvenil.
No final de 1977, Luiz Fernando Emediato ganhou um
prêmio literário da revista Status. A grana era boa, e ele
decidiu viajar com a esposa Sylvia. O filho de oito meses ficou
com a avó, em Minas. O plano era visitar Caio em Porto
Alegre — a relação entre eles sobrevivera aos entreveros com
os demais paladinos e com O Pasquim — e depois ir até
Buenos Ares ver Eduardo Gudino Kieffer e Jorge Luis Borges.
Nessa época, Caio morava na casa da rua Chile, um chalé de
madeira agradável, com um pátio bem grande. A casa estava
alugada no nome de Graça Medeiros, mas ela mesma não
ficou tanto tempo lá. Os moradores amigos se sucediam,
como Caio e Sandra Laporta, que fora com ele para a Europa,
em 1973, e sempre tinha gente visitando, como Emediato e
Sylvia, então.
A relação entre Sylvia e Emediato não ia muito bem já
há algum tempo. Ele mencionara o assunto em carta para
Caio, que o aconselhou a não arrastar uma relação moribun-
da. O que Emediato não sabia é que o amigo estava
advogando em causa própria: em Porto Alegre, na casa da rua
Chile, Sylvia na cozinha, Caio disse a Luiz Fernando que o
amava. Bem, dizer propriamente não disse, mas pegou suas
mãos, o olhou nos olhos... O suficiente para que Emediato
entendesse a mensagem.
A coisa não deu certo, claro. Emediato ficou constran-
gido, Caio decepcionado. Sua mania de se apaixonar por
homens obviamente heterossexuais talvez fosse uma forma
de defesa, de auto-sabotagem, de garantir desde o começo
que não daria certo, para que assim sua liberdade e indivi-
dualidade fossem mantidas intactas. Ah, e é claro: sofrendo
bastante, vivendo e sangrando e amando, Caio teria vivência
para escrever. Teria assunto. O mito do artista sofredor
parecia calar fundo no coração do escritor.
A sede de amor, que levaria Caio a se apaixonar e se
declarar várias vezes na vida, como fizera a Emediato, teria
sua tradução literária em vários contos. Um exemplo é Até
oito, a minha polpa macia, do livro Pedras de Calcutá. O
personagem é uma mulher, já na beira dos trinta anos,
sequiosa de amor:

[...] tomar banho e ficar na sacada sem olhar os pêlos


molhados do suor do peito do moço da construção em
frente, esperando o quê? esperando quem? Aqui-e-agora,
esses pássaros idiotas sobrevoando essa ilha de loucos,
aqui-e-agora, não consigo mais ler essa porcaria, espástica,
es-pás-ti-ca, proparoxítona é que tem acento na antepe-
núltima? o pôster de Burt Reynolds, que vontade,
Densidades Inimagináveis, nem lembro mais, venha
comigo, aqui-e-agora, cinco-seis-sete-oito: por favor, por
favor POR FAVOR: crave seus dentes na minha polpa
maciaaaaaaaaaaaah.

Mesmo depois da declaração de amor não ser exatamen-


te bem recebida, Caio e Emediato continuaram amigos, se
escrevendo por vários anos. Nos anos 80, Caio iria morar
novamente em São Paulo, onde trabalharia com Emediato e o
veria quase todos os dias. Mas aí as coisas estariam
mudadas: ele passaria a considerar Emediato careta demais,
certinho demais para ser seu amigo. Não o perdoaria por não
ser louco como ele e seus ídolos: Cazuza, Ney Matogrosso,
Caetano Veloso. Pelo menos era essa a sensação que
Emediato teria.

Mas em 1977, Caio e Emediato ainda estavam muito


ligados. Foram juntos a um congresso de escritores em São
Paulo. A nata da nata da literatura brasileira estava lá:
Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar,
Ferreira Gullar, entre vários outros. Foi nesse encontro que
Caio teve um bate-boca com Edla van Steen, a escritora, na
época esposa de Flávio Moreira da Costa e uma das
organizadoras do congresso. Edla havia organizado um jantar
fechado, do qual participariam apenas alguns escritores. Caio
estava entre os convidados, era um dos oficialmente inscritos
no evento. Mas a maioria de seus amigos estava lá de farra:
Emediato, Júlio César Monteiro Martins, Carlos Emílio
Corrêa Lima. Quando o grupo tentou entrar no tal jantar,
Edla vetou. Instalou-se a confusão, o bate-boca. Emediato e
Carlos Emílio se lembram que Caio, muito indignado com o
que ele considerava uma discriminação, se retirou do jantar
junto com os amigos.

Além das confusões com tablóides, declarações de


amores impossíveis e congressos com escritores superestre-
las, 1977 foi o ano do lançamento de Pedras de Calcutá,
terceira coletânea de contos de Caio. Coletânea talvez não
seja a palavra correta. Caio sempre buscou em seus livros de
contos uma unidade, tanto temática quanto formal. Seus
livros, em geral, são divididos em partes, cada qual tratando
de determinado tema ou enfocando os assuntos sob
perspectivas específicas. Cada livro tem uma lógica própria, e
assim, para manter essa coerência, muitos textos conside-
rados bons pelo autor ficaram de fora, por não se adequarem
à proposta da obra que estivesse trabalhando no momento.
Muitos desses textos seriam lançados mais tarde, na década
de 90, quando Caio organizaria a — aí, sim — coletânea
Ovelhas negras, com textos escritos dos 14 aos 46 anos de
idade.
Pedras de Calcutá talvez seja o livro que marca o ama-
durecimento de Caio como escritor. É o domínio da palavra
escrita. A partir desse livro, Caio se sairá cada vez melhor
nesse aspecto. A relação com a palavra aproxima-se da dos
poetas, artesãos, buscando sempre o termo exato, lapidando
e burilando. O conteúdo do livro segue fazendo a biografia de
uma geração: já não se acredita mais na revolução, o sonho
acabou. O indivíduo continua um estrangeiro em busca de
um modo de estar no mundo, no mundo que estava tão
diferente nos últimos tempos, nos ideais esfacelados. O
mundo está esfacelado, como no conto Holocausto, de Pedras
de Calcutá:

Há bem pouco um pensamento cruzou minha mente,


talvez a mente de todos: creio que quando esta última
chama apagar um de nós terá de jogar-se ao fogo. [...] Não
nos falaremos, não nos olharemos dentro dos olhos. Apenas
um de nós treze fará o primeiro movimento, se jogará ao
fogo, aquecerá os outros por mais alguns momentos, depois
se tornará cinza, e depois mais um, e outro mais. Como um
ritual. Uma ciranda, daquelas em que uma criança entra
dentro dessa roda, diz um verso bem bonito, diz adeus e vai
embora. Apenas já não somos crianças e desaprendemos a
cantar. As cartas continuam queimando. Eu tentei pensar
em Deus. Mas Deus morreu faz muito tempo. Talvez se
tenha ido junto com o sol, com o calor. Pensei que talvez o
sol, o calor e Deus pudessem voltar de repente, no
momento exato em que a última chama se desfizer e
alguém esboçar o primeiro gesto. Mas eles não voltarão.
Seria bonito, e as coisas bonitas já não acontecem mais.

Como seus personagens, Caio se sentia um estrangeiro


eterno, irremediável. Estranho estrangeiro, sem paz fora da
própria terra, incapaz de viver nela. Em Porto Alegre, ele
tinha emprego no jornal, escrevia suas coisas para teatro,
encontrava alguns amigos. Ainda assim, faltava algo. Talvez o
centro, estar no olho do furacão. Caio não podia esperar mais
tempo. Era, mais uma vez, hora de levantar vôo.

QUATRO

Encostado no carro, estava aquele rapaz de calça de


couro, jaqueta, gestos finos, elegantes. Alto, muito magro,
cabelos escuros. A presença do rapaz era forte; não havia
quem não a notasse. O ser todo exalava algo de sexual, e de
solitário também, como se uma tristeza infinita houvesse por
trás dos olhos. Uma nuvem preta o acompanhava, uma
nuvem de melancolia, aonde quer que fosse.
O rapaz, que não era exatamente um rapaz, mas um
homem de trinta anos de idade, era Caio Fernando Abreu,
que estava de volta a São Paulo, pronto para partir corações e
ter o seu partido outras tantas vezes. E quem o via pela
primeira vez, encostado no carro, e notava sua calça de couro
preta, era Celso Curi, jornalista e agitador cultural. Caio não
deve ter ficado menos impressionado com os cabelos louros e
os modos doces de Celso, pois os dois, logo que se
conheceram, viveram um apaixonado caso. Um breve caso,
como se podia dizer sempre das relações de Caio, mas
intenso — queriam engolir um ao outro, se tocar, se cheirar,
como disse Celso, mais tarde.
No meio de tanta paixão, havia lugar para o humor, que
ninguém era de ferro. Em alguma brincadeira cujas origens
se perderam na história, os dois começaram a se chamar de
Fraser e Gomide, por causa das atrizes Etty Fraser e Geórgia
Gomide. Semelhança menor não podia haver, os dois magros
que nem papel, e as atrizes, digamos, cheinhas. Mas a
brincadeira pegou.
— Alô, Gomide — ligava Caio.
— Olá, Fraser, como vai?
Essa brincadeira de nomes não era exclusividade da
relação de Caio e Celso. Permeando a obra e a vida de Caio,
há o humor queer, uma espécie de humor próprio dos gays,
que se traduz em signos, brincadeiras e palavras próprias.
Caio chamava, por exemplo, a amiga Jacqueline Cantore de
Marilene, ou Anthea, ou MVlen. Ele mesmo podia assumir
um nome feminino, como Marilene mesmo, e aí era Marilene
falando com Marilene, uma loucura. E essas brincadeiras
com as palavras não existiam só na maneira de chamar as
pessoas. Havia verdadeiros códigos, palavras inventadas por
Caio e por seus amigos que acabavam virando termos
correntes no vocabulários desses grupos. "Jacira", por
exemplo, é sinônimo de bicha. "Lasanha" é aquele homem
bonitão, massudo, forte; "rodenir" eqüivale a coisa brega.
Uma expressão surgida na noite, em alguma festa ou bar,
podia ser utilizada por Caio no dia seguinte, em um conto ou
crônica. Os amigos liam aquilo, se divertiam, e depois ligavam
dizendo:
— Ei, vou cobrar direito autoral.

Caio tinha voltado a morar em São Paulo em meados de


1978. Porto Alegre, mais uma vez, tinha se tornado
insuportável, pequena demais. Em São Paulo, morou em
primeiro lugar com a amiga Maria Rosa Fonseca, na rua
Capote Valente, no bairro de Pinheiros. Maria Rosa fora
esposa de Valdir Zwetsch, amigo e colega de trabalho de Caio
em Porto Alegre. Valdir e Caio agora repetiam a dose,
trabalhando na revista POP, junto com Vânia Toledo, J.R.
Duran, Okky de Souza. Caio e Maria Rosa se tornaram muito
amigos. Ela se lembra dele ouvindo Velvet Underground o dia
todo, bebendo baldes de café e escrevendo, escrevendo,
escrevendo todos os dias. De vez em quando saíam para
jantar. No começo da estada, Caio não conhecia tanta gente
na cidade, e ela ia apresentando algumas pessoas. Em 1984,
quando Laura, a filha de Maria Rosa, nascesse, Caio ajudaria
a dar o primeiro banho. Lady Laura, ele a chamava.
Quando Caio decidiu sair da casa de Maria Rosa, ele e
Celso já haviam se tornado grandes amigos. Continuavam
encantados, mas a paixão havia passado, sem rancores.
Celso morava sozinho em um apartamento na Cristiano
Vianna, havia um quarto sobrando. Por que não chamar Caio
para morar com ele? Chamou. Caio topou na hora. E foi aí
que o encanto quase se desfez, e Fraser e Gomide correram
perigo.
Por que, é preciso que se diga, Caio não era uma pessoa
fácil de conviver. Tinha um gênio dos diabos, um
temperamento explosivo, uma qualquer-coisa que de repente
lhe subia e ele não conseguia medir palavras, e quem ficasse
no caminho levava chumbo. Depois batia-lhe o
arrependimento, ligava, murchinho, vira-lata com rabinho
entre as pernas, pedindo mil desculpas, mil perdões. Ele
tanto podia aparecer com flores ou mandando as pessoas
para aquele lugar; era absolutamente impossível prever seu
comportamento. Cheio de manias, com a organização —
dizem — típica dos virginianos, gostava de tudo no lugar,
arrumado; mas nunca se lembrava de uma conta para pagar.
Quando estava bem-humorado, todos se divertiam; sua
capacidade de fazer rir, tiradas mordazes e irônicas, era
infinita. E aí ele era elegante, fino, um gentleman. Mas
quando o mau humor resolvia dar as caras, era melhor
manter uma distância saudável dele. Uma distância,
digamos, sanitária.
Era mesmo difícil não se desentender com ele, no dia-a-
dia. O mau humor, a dificuldade com coisas práticas, tarefas
simples. E havia aquela estranha necessidade de ficar
sozinho de vez em quando, que viria a ser um tormento a vida
toda para quem dividisse casa com ele. Caio ficava dois, três
dias trancado no quarto, sem botar a cabeça para fora para
nem dar um olá, e os de fora sem saber se estava vivo, se
estava morto, se precisava de alguma coisa. As faxineiras
enlouqueciam, porque não podiam entrar no quarto e limpar.
Para Celso, eram momentos apreensivos.
O que Caio fazia lá dentro, se escrevia, chorava, dormia,
Celso não sabia. Mas quando ele resolvia sair, Fraser e
Gomide saíam com ele, o bom humor nas alturas. Aí Caio
podia contar piadas, falar de astrologia, botar o taro. Uma vez
Caio botou as cartas para Celso. Mexeu com a cabeça, como
que lamentando, e comentou:

— Tenho uma pena de você. Você nunca vai


enlouquecer.
E aí era legal de novo conviver com o Caio, e tudo ficaria
bem até que a montanha-russa desse mais uma volta e ele
ficasse down outra vez. Mesmo assim, já dava para ver que os
dois, morando juntos, não davam certo; a coisa não
funcionava. Quase um ano depois de ir morar com Celso,
Caio saiu do apartamento. Foi aquela choradeira. E houve
tensão também: problemas de dinheiro que ficaram mal
resolvidos, Celso devendo alguma coisa a Caio. Nada que o
passar do tempo não resolvesse; logo os dois estavam amigos
de novo, Fraser e Gomide a vida inteira. E Caio prosseguiu
sua vida nômade, morando onde desse, com quem calhasse.
Depois de Celso, foi a vez de Rofran Fernandes, e depois dele
outros ainda. Celso também se mudou, e abriu seu teatro, o
Espaço OFF, um lugar para apresentações mais alternativas.
Uma das primeiras interpretações que Gilberto Gawronski fez
de Dama da noite, de Caio, foi no OFF, em um palquinho de
lxlm, destinado a apresentações ainda mais experimentais
que as do palco normal.
Caio continuava o trabalho na POP, da editora Abril. O
trabalho lá era uma delícia: na descrição de Caio, vinte e
cinco dias por mês o pessoal não fazia absolutamente nada,
só se divertia. Na última semana, se mudavam para a
redação, pediam pizza por telefone e fechavam a revista. A
diversão era tanta que a turma da revista acabou virando a
turma de Caio em São Paulo por uns tempos. No terceiro
andar do prédio da editora, na Abril Cultural, trabalhava
Maria Adelaide Amaral, hoje conhecida escritora, dramaturga
e autora de novelas. Apresentada por Celso Curi, que também
trabalhou na POP por uns tempos, Maria Adelaide ficou
amicíssima de Caio. Um dia, o sempre muito magro Caio
resolveu pegar Adelaide no colo, de brincadeira. Ela, na
época, pesava 42 quilos. Caio se espantou: descobriu que ela
não era magra, era levíssima, e o apelido ficou para sempre.
Levinha, Levíssima.
Uma vez por dia, pelo menos, Caio subia do segundo
andar, onde ficava a POP, para o terceiro, onde trabalhava
Maria Adelaide, e eles conversavam; se divertiam, quando
estavam bem; falavam de coisas pesadas, quando estavam
mal; de coisas leves, quando tudo melhorava. Discutindo
Katherine Mansfield, Proust, Lawrence Durrell, e demais
escritores que amavam ou que estivessem lendo no momento,
não viam o tempo passar. Na época, Maria Adelaide escrevia
o romance Luísa (quase uma história de amor), que só viria a
dar por terminado anos mais tarde, em 1987. Caio foi um dos
primeiros leitores, e gostou do que leu: disse à amiga que ela
tinha muito talento. A amizade perdurou mesmo depois que
deixaram de ser vizinhos de emprego.
Outra amizade que veio daqueles tempos é com a
jornalista Paula Dip, que trabalhava na redação da revista
Nova, vizinha à POP. Paula era mais certinha, menos porra-
louca que Caio e alguns de seus amigos, e ele acabaria sendo
muito protetor em relação a ela. A amizade seria selada por
um episódio triste da vida de Paula. Tendo se descoberto
grávida, ela optou por fazer um aborto. Contou a história ao
Caio, que deu seu apoio. Tempos depois, escreveu o conto
Pela passagem de uma grande dor, do livro Morangos
mofados. Dedicado à Paula, o conto descreve uma conversa
telefônica entre dois amigos. Lui, o homem, está entediado
com a ligação da mulher. No meio de uma conversa
aparentemente banal, em que ele parece ansioso por desligar,
ela menciona, uma única vez, que vai fazer um aborto.
— Tá bom — ela disse.
— Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando
começavam a falar desse jeito era sempre um sinal tácito
para alguém desligar. Mas não quis ser o primeiro.
— Vou tirar amanhã — ela falou de repente.
— Hein?
— Nada. Vai fazer teu chá.
— Tá bom. Aqui diz que tem vitamina E. — Abriu a
mão e olhou as manchas branquicentas na palma. — Não é
essa que é boa para a pele?

A aparente frieza esconde, na verdade, a "grande dor" do


título: o assunto, na verdade, é incômodo e doloroso para Lui.
E para Caio. Ele mesmo passaria pela situação duas vezes na
vida. Nas duas ocasiões em que namoradas suas engravida-
ram, ele, em comum acordo com as garotas, optou pelo
aborto. A justificativa, ele dizia, é que as gestações
aconteceram em períodos loucos, em que todos usavam
drogas; o medo da criança nascer deformada pelas
substâncias era grande. Caio falaria, em crônicas e
entrevistas, dos filhos que não teve, de como seriam se
tivessem nascido. Para ele, também, haviam sido grandes
dores.
A POP era a primeira revista brasileira voltada para a
cultura jovem. Até hoje é lembrada por ter introduzido no
país o punk rock, com a coletânea de 1977 que trazia músicas
de grupos estrangeiros do novo gênero musical. Embora hoje
seja praticamente impossível achar o disquinho, A revista
POP apresenta o punk rock é o marco histórico do gênero no
Brasil.
Embora em determinado momento da vida Caio tenha
aderido à estética punk, assim como fizera com a hippie anos
antes, em geral ele não tinha muito em comum com os
assuntos tratados na revista. Mas era preciso "costurar pra
fora" para sobreviver, como o pessoal da redação costumava
brincar na época, e ele fazia o que podia. Costurava também,
de vez em quando, para a revista Nova, ou para edições
especiais, sobre a vida de John Travolta, ou como cuidar de
bebês, ou culinária, ou o que viesse. Sendo todas as revistas
da mesma editora, a Abril, havia grande rotatividade de
jornalistas; em dias de fechamento, "emprestava-se" pessoal
de outras redações, pessoal que estivesse com o horário mais
folgado. Caio era contratado da POP, mas fazia free-lances
para vários outros veículos. Sempre a contragosto, de certa
forma; o trabalho jornalístico era penoso para ele. Não a parte
de escrever, que isso ele fazia com facilidade, e muito bem;
mas a questão dos horários, e dos prazos, e de lidar com
chefes; enfim, a parte prática e pragmática da coisa, a parte
desinteressante de qualquer emprego, se era chata de
agüentar para qualquer um, mais dolorosa ainda era para
Caio.
Em fevereiro de 1979, por exemplo, ele tem uma
pequena
briga com o diretor da revista. O diretor marca a reunião para
nove da manhã, mas só aparece às dez e meia. E já chega
falando grosso, dizendo que a revista está péssima. Era
preciso reduzir os textos, aumentar as fotos, melhorar o lado
visual.
— O leitor não gosta de ler — justificou o diretor.
Caio não concordava. E falou. Tinha duas irmãs
adolescentes, supostamente o público-alvo da revista, e elas
adoravam ler. E disse mais.
— A gente não deve colaborar com a alienação.
O diretor chamou Caio de obsoleto, o que bastou para
que este estourasse e abrisse a torneirinha de indignações. A
formação dele tinha sido feita antes de 1964; se o chefe
achava que cultura e leitura eram coisas obsoletas, então
estavam indo muito mal.
— E se você está a fim de colaborar com o processo de
castração mental da juventude brasileira pós-64, eu não
estou.
As penas continuaram voando. Em certo momento, o
diretor comentou que os títulos de Caio pareciam livro antigo
de História. Aquilo foi demais para Caio.
— Minha mãe é professora de História, eu estudei
muita História e se a juventude de hoje não sabe nem quem
foi Getúlio Vargas é porque não se estuda mais História.
No fim, depois de muito suar e gritar, todo mundo em
volta quieto, olhando a briga, Caio calou a boca. "Afinal, como
na fábula do lobo e do cordeiro: contra a força não há
argumentos", ele concluiria em carta à mãe, em que contava o
episódio. Caio estava nervoso, cansado, louco para dar uns
pontapés nas pessoas e dizer umas verdades, mas não podia.
Estressava-se. Talvez estivesse precisando de umas férias.
As férias vieram. Caio resolveu ir a Olinda, lugar calmo,
bonito, onde teria a paz necessária para escrever. Andava
cheio de idéias, idéias ambiciosas, e não podia deixá-las
morrer só por causa dos trabalhos jornalísticos, dessa coisa
de ganhar a vida. A literatura andava meio abandonada há
um tempo, e ele ia aproveitar o período de folga para retomá-
la.

Uma semana depois de suas férias começarem, ele


escreve uma carta ao amigo José Márcio Penido, jornalista
mineiro radicado em São Paulo. Se esperava notícias do
esturricante calor nordestino, de belas praias e
malemolências, José Márcio deve ter levado um susto. Nada
de Olinda: a carta vinha de Porto Alegre mesmo. Logo no
início, Caio explica a mudança de planos:

"O que aconteceu? Bem, eu FUI até Olinda. Aí rodei por lá um


dia inteiro, sem encontrar lugar pra ficar. Acabei indo pra Recife,
onde me instalei num hotel de oitava: o Suíça Hotel, na Rua do
Hospício —juro! Solucionados os problemas de acomodação,
percebi que não conhecia vivalma (ai esse português castiço!) na
cidade. E toca subir rua, descer rua, atravessar Capibaribe,
tropeçar em cantador, em retirante, comer tapioca, olhar, olhar,
assistir filmes como Iracema ou O Super-Macho ou A ilha das
cangaceiras virgens (descobri que Helena Ramos dá de dez em
qualquer Sônia Braga, Ana Matos que me perdoe), voltar para o
hotel, passar o dedo com desgosto em cima do quilo de poeira dos
móveis, olhar, olhar — olhar o quê, meu deus? Meu caro Garcia de
Oliveira, me deu uma solidão tão grande que, menos de uma
semana depois, arrumei tudo e voltei pra Sampa. Passei uma noite
lá. Peguei as lãs e peles e vim pra cá. "

(Ana Matos era Ana Braga, irmã da Sônia Braga, amiga


de Caio e de José Márcio Penido. Caio a chamaria sempre de
Ana Matos por causa do personagem Júlia Matos,
interpretado por Sônia em Dancin Days.)
Em Porto Alegre, Caio pegou uma gripe violentíssima —
resultado da mudança brusca de temperatura, Nordeste a 30
graus e Rio Grande a 2 graus negativos. Mais que a doença
física, a cabeça de Caio não está legal. Ele está deprimido.
Sente-se solitário. Saiu do Recife porque não havia ninguém
lá, ninguém absolutamente que se importasse com ele; foi
procurar suprir essas carências na cidade mais que
conhecida, a amada e odiada Porto Alegre, mas nem lá as
coisas pareciam melhores. Depois das férias, Caio volta
à vida de jornalista em São Paulo.
Em São Paulo, o amigo José Márcio Penido também
passava por suas próprias crises. Na época, ele e Caio eram
muito próximos; o mineiro funcionava como uma "referência
viva" de São Paulo para o gaúcho. Caio achava que se
entendiam porque eram ambos de cidades do interior: ele de
Santiago, José Márcio de Cambuquira. Mas essa concepção
era fruto da cabeça romântica de Caio, porque José Márcio,
na verdade, só morara em Cambuquira até os três anos de
idade; depois disso, a família tinha se mudado para Belo
Horizonte. Ele cresceu com asfalto nas veias; a situação era
diferente da de Caio, que tinha morado em Santiago até ficar
adolescente, e visitava a cidade sempre que podia.
Ao final do ano, quando Caio volta a Porto Alegre para
mais um período de férias, Zé escreve uma carta triste para
ele, cheia de interrogações, dúvidas; entre outros questiona-
mentos, ele diz querer escrever, mas nem disso está tão certo.
Caio, de volta da praia, responde como pode. Não há o que
ensinar, o que aprender. Cita um poeta: "Caminante, no hay
caminos. Pero se hace camino ai andar." Fala da dor que é
escrever, da dor que precisa ser mexida e remexida, do
quanto é preciso sangrar se se quiser produzir algo bom. "A
única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa
que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação:
um sentimento de glória interior. Essa expressão ê funda-
mental na minha vida. "
São sete da manhã. Caio acorda, vai à praia. Corre um
pouco: três, quatro quilômetros. Faz mais alguns exercícios,
passeia um pouco. Às dez da manhã, volta para casa. Está na
hora de cozinhar o arroz, que come com calma. Depois da
refeição, descansa um pouco. Então, somente então,
começará a escrever. O dia todo submerso, mergulhado nas
palavras, às vezes falando sozinho. E o resultado dessa
jornada é um texto, um belo texto, dedicado a José Márcio
Penido e que daria título ao próximo livro de Caio: o conto
Morangos mofados:

Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras


pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia
escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga
molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado — e
esse gosto, senhor, sempre presente em minha boca?

Antes da publicação de Morangos mofados, Caio já era,


de certa forma, considerado um guru de sua geração. Era um
paradoxo: Caio não estava ensinando ninguém, mas as
pessoas aprendiam com ele. Aprendiam sua maneira de ver o
mundo, de forma espiritual e ao mesmo tempo intensa; sua
maneira de encarar a arte com seriedade, e de transformar
grandes dores em grandes textos. A vocação para guru,
embora involuntária, estava em Caio, e ele não podia fugir
dela.
Com Morangos mofados, essa situação atingiu seu auge.
Em 1981, enquanto terminava de escrever o livro, Caio pediu
demissão da Nova, onde trabalhava, para poder terminá-lo. E
depois de pronto, o danado ainda custou a sair: ficou dois
anos na Nova Fronteira, na gaveta, até que Luiz Schwarcz, na
época na Brasiliense, interveio: se o contrato fosse cancelado,
em um mês ele publicaria o livro.
Caio pediu para rasgar o contrato e entregou o texto à
Brasiliense, que finalmente o lançou, em 1982. Publicado, o
livro virou clássico instantâneo: oito edições tiradas em
seqüência, sucesso de vendas e de crítica. E sempre aquele
rótulo ajudando o livro a vender: o retrato de uma geração, do
desencanto de uma geração, que vira a revolução acabar
antes mesmo de ter qualquer chance de dar certo. E agora
que uma nova década começava, era hora de olhar para trás
e rever o momento que passara, e tomar uma posição a
respeito dele. Caio, em seu livro, não toma essa posição. Ele
deixa as coisas em aberto, deixa apenas fotografadas, no ar,
as emoções de uma época. Mas seu livro, por mais triste, por
mais melancólico, termina com uma esperança. Sim, o último
conto, Morangos mofados, aquele escrito na praia, entre
caminhadas ao sol e porções de arroz integral, é um atestado
de que o mundo pode dar certo, apesar das ilusões perdidas.
Apesar dos pesares, é hora de começar de novo:

Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente


um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração
da primavera. 0 gosto mofado de morangos tinha desaparecido.
Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que
trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta.
Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num
giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar
as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos
escuros, as mãos postas sobre o sexo.
Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro,
absolutamente só enquanto considerava atento, observando os
canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se
não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos
vivos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.

Um dos contos mais marcantes do livro, Sargento


Garcia, teria sido inspirado na primeira experiência
homossexual de Caio. Ao menos foi isso que ele contou em
entrevista à Marie Claire, em 1995. Quando tinha 16 anos,
em Porto Alegre, ele foi seguido por um homem, num
domingo à noite. O tal puxou papo com ele e marcou
encontro para três dias depois, no centro da cidade. Mesmo
sem saber direito o que iria acontecer, Caio foi, morrendo de
curiosidade. O homem o levou a um lugar horrível, nojento,
com lençóis sujos e um rolo de papel higiênico na cabeceira.
"Me jogou em cima da cama, completamente sem
romantismo", conta Caio. "Me fez segurar o pau dele e eu saí
correndo". Como o conto é dedicado à Luiza Felpuda, travesti
de Porto Alegre que mantinha uma casa de prostituição, é
possível que o lugar a que o escritor se refere seja a casa dela,
e Isadora, a mulher que aparece no conto, a própria Luiza. No
conto, porém, Caio transforma o tal homem em um sargento,
o sargento Hermes. Quando Tutti Gregianin decidiu filmar o
conto, em 1998, o escolhido para viver o sargento seria o ator
Marcos Breda.
O conto traz em si a história dessa descoberta:

[...] barulho de copos na cozinha, o vidro rachado, a madeira


descascada da porta, os quatro degraus de cimento, o portão
azul, alguém gritando alguma coisa, mas longe, tão longe como se
eu estivesse na janela de um trem em movimento, tentando
apanhar um farrapo de voz na plataforma da estação cada vez
mais recuada, sem conseguir juntar os sons em palavras, como
uma língua estrangeira, como uma língua molhada nervosa
entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma
coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos
nem sentir cheiros para sempre surda cega muda naquele mais
de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum
ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada
amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa
jaula fedida, entre grades e ferrugens quieta domada fera
esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim.
Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a
dormir.

A revelação, porém, nada tem de perigosa, ou dolorida:


ela traz, na verdade, a libertação. O que é descoberto é um
caminho, uma forma de viver, ainda que maldita:

Queria dançar sobre os canteiros, cheio de uma alegria tão


maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não
sentia nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia.
Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem
saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho
não cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, sentei, estiquei
as pernas. Porque ninguém esquece uma mulher como Isadora,
repeti sem entender, debruçado na janela aberta, olhando as
casas e os verdes do Bonfim. Eu não o conhecia. Eu nunca o
tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta não voltará a
dormir.
0 bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta
começo a fumar.

Morangos mofados consagra Caio. Como guru involun-


tário de uma geração e, também, como escritor respeitado,
sucesso de crítica e público. Em São Paulo, todos querem ser
seus amigos. Escritores, atores, artistas. Embora diga aos
amigos que prefere se resguardar, que tem horror às rodinhas
literárias, Caio circula bastante por essa época.
Ele já rodava bastante antes mesmo do livro sair,
mudando de emprego e de casa como quem troca de par de
meia. Em 1980, por exemplo, Caio fora morar numa casinha
de vila na Melo Alves. Ficou sozinho por um tempo. De seu
quintal, podia enxergar o apartamento de Cida Moreira,
cantora, amiga de tempos antigos. Embora paulista, Cida ia
bastante a Porto Alegre nos anos 70, por causa do
relacionamento que mantinha com uma pessoa de lá. Às
vezes, Caio dava um grito do quintal, chamando Cida para
almoçar, ou bater papo, qualquer coisa assim. As vezes, ela é
que chamava.
Na casinha da Melo Alves, vieram morar Orlando
Bernardes, e depois Jacquéline Cantore. Ela era uma garota
jovem, fã de Caio. Tinham se conhecido no início da década
de 80, quando ela, ao ficar fascinada com o conto Eles, de O
ovo apunhalado, escrevera uma carta e entregara junto com
um presente na casa dos pais de Caio, em Porto Alegre. Ele
ligou para agradecer e desde então começaram a se
corresponder e ficaram amigos. Ficaram um ano e meio na
casa, que adoravam. Embaixo da escada, guardavam cartas,
papéis, jornais; por causa disso, chamavam o lugar de O
Inconsciente. Caio, às vezes, aprontava: ameaçava se matar,
se trancava no quarto dias e dias. Uma verdadeira drama
queen. As tentativas de suicídio de Caio nunca foram levadas
muito a sério por seus amigos mais antigos, ou mais íntimos:
era parte do show, da cena, do teatro que Caio montava ao
redor de si mesmo, sempre que tivesse platéia. O escritor
criava expectativas em torno das pessoas e das situações, e é
claro que suas idealizações iam muito além da realidade, e ele
sempre se frustrava. Mas era assim que ele gostava de viver,
teatralmente. Intensamente, talvez. E isso muitas vezes o
levava àquelas depressões intermináveis.
Não que ele gostasse de estar deprimido. Ele sofria
muito, e fazia o que podia para se sentir bem, inteiro. Em
Porto Alegre, fizera dois anos de psicoterapia com Mário
Bertoni. Só que em 1977 Bertoni morreu em um acidente de
carro; Caio ficou muito abalado. Talvez essa perda tenha
apressado a ida de Caio para São Paulo, pois foi exatamente
no final de 1977 que ele voltou para o Sudeste para trabalhar
na POP. Em São Paulo, Caio retomou a psicoterapia, e depois
a substituiu por dança. Gostava de dançar, se sentia bem. As
aulas ajudavam-no a sobreviver.
Na época da casa da Melo Alves, Caio tinha também
uma moto. Ele não dirigia carros. Chegou a aprender, em
Santiago do Boqueirão; o pai o deixava dirigir seu carro de
vez em quando. Mas, em Porto Alegre, Caio não chegava perto
do volante. Em São Paulo, então, muito menos. Mesmo a
moto, porém, ficava muito tempo sem ser utilizada. Caio
preferia táxis, quando podia pagá-los, ou caminhar. Ônibus,
então, ele odiava.
Em novembro de 1981, Caio Túlio Costa sai da edição
do Leia livros, suplemento literário publicado pela editora
Brasiliense. Caio então é chamado para substituí-lo e aceita.
Morangos mofados já estava terminado, ele podia — e devia —
voltar ao trabalho jornalístico. Em entrevista ao Estadão,
Caio conta que, quando o livro estoura, e é um sucesso, Caio
Graco, da Brasiliense, vê ali um nicho interessante, e quer
repertir a dose. Pede a Caio:
— Ei, por que você não escreve outro livro na linha sexo,
drogas e rock'n'roll.
Caio ficou ofendidíssimo. Imagina se ele ia se entregar
desse jeito ao mercado. Tão ofendido ficou, que não só saiu
da editora, como escreveu um livro totalmente diferente de
Morangos mofados. Era o Triângulo das águas, o livro que
pouca gente entendeu.
Em maio de 1983, Caio decide se mudar para o Rio de
Janeiro. São Paulo estava cansando, de novo. Ele tinha essa
relação de amor e ódio, ou de ódio e dependência, com São
Paulo e Porto Alegre. Uma vez nelas, não as suportava; uma
vez longe delas, sentia falta de tudo — dos amigos, das coisas
a se fazer, das folhas dos plátanos. O Rio de Janeiro, ele
amava; mas não conseguia morar lá por muito tempo. Mesmo
assim, ele tentou, mais uma vez.
Nessa época, Caio estava muito próximo da poeta Ana
Cristina César. Ela era muito amiga de Graça Medeiros, que
por sua vez era grande amiga de Caio, e assim o círculo se
completou.
Além de muito culta, grande ensaísta e poeta, Ana era
bela, belíssima. Todos se deixavam hipnotizar por ela, que
sabia o quanto era sedutora. Seu livro A teus pés foi um
sucesso, mas as pessoas, mais que interessadas nos poemas,
estavam interessadas no personagem Ana C, na deusa, na
beldade. A beleza, da qual Ana era muito consciente, passou
a ser uma maldição. E esse pode ter sido um dos motivos que
contribuíram para a depressão, violentíssima, que a levou a
se jogar da janela de seu quarto em outubro de 1983, aos 31
anos.
Mas ainda é maio. Ana Cristina está deprimida, Graça
cuida dela. Caio se muda para o Rio para ajudar a cuidar,
para estar perto, sabendo que a situação de Ana é delicada.
Ana vai visitá-lo, certo dia, no hotel em Santa Teresa que
Caio escolhe como moradia — um hotelzinho hippie, onde
moraram Rita Lee e Raul Seixas. Ele descreve o encontro em
carta a Jacqueline Cantore. "Ana C. MAL. Põe mal nisso.
Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito.
Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um
poço de saúde ao lado dela. Imagina uma alface (ela) ao lado
de uma costela gorda (eu). E lúcida.[...] Parece Isabelle Adjani
em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. linda,
naturalmente, mas troppo morbo."
Caio e Graça Medeiros conversam, têm uma idéia de
terapia para Ana C. Caio às vezes gostava de falar, sempre
irônico, zombando de si mesmo:
— Fala grosso, veado!
E a terapia que ele imaginava para Ana C. ia mais ou
menos nessa linha: "... somos mais por uma terapia bageense,
tipo te fresqueia, prenda, come uma costela gorda, toma uns
mates, dança uma chula, uma tirana do lenço, te joga nua no
açude na hora da sesta. Porque tá uma crise sensível demais,
dá pra entender? Recomendei uma brahma na esquina com
uma coxinha e um dreherpra rebater. Something like that." A
terapia Fala Grosso Veado. Se ele a usava para sair de suas
próprias depressões, é algo a se conjecturar, mas é bem
possível; como os amigos sabiam, por mais natural e integral
e macrobiótico que Caio pudesse tentar ser, ele adorava um
bom churrasco. Se houvesse um whisky pra completar,
melhor ainda.

Ainda que amasse muito Ana Cristina, e estivesse no


Rio em parte para ajudar a cuidar dela, a situação entre os
dois não era sempre um soneto de amor e paz. Caio se
irritava, por vezes, com as depressões de Ana; corre uma
história em que ela, em crise, ameaça se jogar da janela, Caio
a segura, e em seguida passa-lhe uma descompostura. E esse
não seria o único estremecimento entre os dois. Há pelo
menos um outro, relatado por Caio em carta a Jacqueline
Cantore. Era aniversário de Ana Cristina. Caio vai à festa,
onde conhece um rapaz — identificado apenas pela inicial T.,
no livro de cartas. T. está na festa com o namorado, L., com
quem vive há quatro anos. Não se importando muito com a
longevidade da relação, Caio engata uma conversa
animadíssima com o tal T. Três horas de conversa. As
pessoas em volta olham, desconfiadas. De repente chega L.:
— T., vamos embora? Eu não estou gostando nada disso
— disso sendo, obviamente, o Caio.
No ouvido de Caio, T. se despede com uma bomba: "te
encontro amanhã às quatro no Amarelinho".
Caio vai ao banheiro. Na volta, Ana Cristina vem falar
com ele.
— O que está acontecendo entre você e T.?
— Achei ele ótimo, só isso.
— Vocês vão se ver mais?
— Marcamos um encontro amanhã.
— Você sabe que ele vive com L. há QUATRO anos?
— Sei, ele me disse.
— Me permite um conselho?
— Pode ser.
— Não vá a esse encontro.
— Sinto muito, mas vou mesmo.
— Então, por favor, retire-se imediatamente.
— Você está me expulsando.
— Estou.
— Então tchau e feliz aniversário.
Não é a última vez que os dois se vêem. No aniversário
de Caio, em setembro, Graça Medeiros leva Ana até o hotel
em Santa Teresa, para ver se os dois voltam a se entender.
Outras pessoas aparecem no hotel, amigos do Rio. A situação
se ameniza, sem ressentimentos. É o último encontro dos
dois.
Além de Graça e Ana, Caio tem muitos amigos no Rio.
Como a atriz Kate Lyra, na época esposa do compositor
Carlos Lyra, que ficou famosa em programas humorísticos na
TV pelo bordão "Brasileiro é tão bonzinho!". Ela achava o
máximo que ele tivesse se mudado para um hotel para
escrever, e ele adorava o jeito dela, engraçado, espontâneo;
além de linda, Kate era inteligente, se interessava por
filosofia, por literatura. Ficaram amigos imediatamente. Tanto
que Mário Prata e Caio, quando foram chamados para
escrever uma novela com José Wilker, criaram um papel só
para ela, de uma cantora de rock russa. A novela acabou não
se concretizando, mas a amizade perdurou.
Outra amizade importante é o editor Pedro Paulo de
Sena Madureira. Pedro Paulo, que conhecera o escritor por
indicação de Lygia Fagundes Telles, editou os livros de Caio
na Nova Fronteira. Mais que editor, porém, era amigo de
Caio, via nele a mesma unicidade, a mesma falta de cisão que
havia em sua própria personalidade: a biografia de Caio não
era separada da obra. Caio não inventou um personagem; ele
e seu texto eram uma coisa só. Havia muitas afinidades entre
os dois, e Caio adorava visitar Pedro Paulo em seu
apartamento no Leme, organizadíssimo. Era louco por D.
Maru, governanta, praticamente da família, que ao saber da
visita do escritor já preparava o conhaquinho que ele
adorava. Adorava também Carlos Henrique, companheiro de
Pedro Paulo, e, é claro, o próprio. Conversavam de literatura
— o lado pop escondia a conhecimento profundo que Caio
tinha dos clássicos, Stendhal, Proust, Machado de Assis,
Flaubert. E Pedro Paulo, que nunca tinha dado grande
atenção aos beatniks, começou a lê-los por causa do Caio,
que adorava ironizar a origem do amigo, que vinha de família
tradicional e endinheirada. Ele gostava de criticar os amigos
que começavam a ganhar dinheiro: dizia que tinham se
vendido ao sistema capitalista. No caso de Pedro Paulo,
achava muito fútil todo aquele ambiente de coluna social, de
alta sociedade. Em uma das ocasiões que questionou esse
lado de Pedro Paulo, este respondeu:
— Caio, nem parece que você leu Proust.
Aí Caio entendeu. Não era futilidade; era frivolidade. Um
dos aspectos do ambiente que permitira que Pedro Paulo,
entre outras coisas, adquirisse tanta cultura. Madame Bovary
era frívola. Proust também. E é claro que o editor não levava
a sério toda aquela mise-en-scène.

Caio era um escritor que não dava trabalho aos editores:


entregava o texto praticamente pronto, sabia o que estava
fazendo.
Tinha grande domínio e preocupação com a forma.
Quando Caio entregou O triângulo das águas, por exemplo, o
livro estava pronto. Só faltava o título. Levou o material para
Pedro Paulo, que disse:
— Caio, como é que não tem título? Chove nas três
histórias. São três signos de água.
— São os textos das águas — emendou Caio.
— São três? Triângulo.
— Triângulo das águas — completou Caio. Um título
estava pronto.

O triângulo das águas difere em tudo de Morangos


mofados, a começar pelo tipo de texto; em Morangos, são
contos, e no Triângulo, três novelas. Morangos tem um
realismo que as novelas do Triângulo não buscam, até por ser
um livro construído sobre uma estrutura astrológica, sobre os
arquétipos dos três signos do elemento água. A primeira
novela, Dodecaedro, se refere ao signo de Peixes; a segunda,
O marinheiro, a Escorpião. A terceira, Pela noite, a Câncer. O
excesso de palavras do livro, em contraste com os contos
mais diretos de Morangos, é uma escolha de Caio: ele busca
esse jorro de água, esse fluxo de palavras. Por todas essas
diferenças, O triângulo das águas causou estranheza. Mas
assim que o livro foi sendo absorvido, e as comparações com
Morangos sendo deixadas de lado, a situação melhorou: o
livro ganhou o Prêmio Jabuti, um dos mais prestigiados do
país. Hoje em dia, o prêmio, além de prestígio, confere uma
quantia em dinheiro aos ganhadores; Caio teria ficado muito
feliz em receber uma quantia assim, na época; mas como
ainda não havia, ele ficou mais que feliz com sua estatueta.

A primeira das três novelas, Dodecaedro, narra a


história de doze amigos juntos em uma casa, e as emoções
que atravessam em determinada noite: as paixões e
tendências e medos de cada um vão se desvendando aos
poucos. E ao contar-se a história de cada um, conta-se como,
também, mesmo cercado de amigos, o ser humano está
sempre sozinho, solitário. A segunda novela, O marinheiro,
aborda também o tema da solidão, através da vida do homem
que decidiu se encerrar em casa, para fugir das dores e
paixões do mundo, e que em certo dia recebe a visita de um
marinheiro, que vem como um profeta, para lhe trazer a boa
nova, uma mensagem.

Seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de


quem, por muito tempo, todas as horas, durante todos os dias de
muitos meses e anos, olhou detidamente o mar. Conquistara esse
verde, imóvel, inquieto, esse vagar. Tocou de leve na minha mão
estendida. E se foi. [...] Não estava triste, mesmo assim recomecei
a chorar, enquanto ouvia, outra vez, o aviso guardado para
sempre na memória das paredes:
— Abraça tua loucura, antes que seja tarde demais.

O triângulo das águas foi também o primeiro livro de


Caio a mencionar a aids, na novela Pela noite. E
provavelmente foi também o primeiro texto de um autor
brasileiro a falar da doença. Dois amigos de infância, vindos
do Passo da Guanxuma — muito parecida com Santiago, era
a cidade fictícia a que Caio sempre se referia, como a
Macondo de Garcia Márquez — se reencontram anos e anos
depois, em São Paulo, em uma sauna gay. Combinam de se
ver de novo. O dono do apartamento onde ocorre o encontro
arma um jogo de sedução, um jogo em que eles assumem
outras identidades, em que ele é Pérsio, por causa de um
personagem de Cortázar, e o outro é Santiago, por causa do
personagem de Garcia Márquez. Pérsio fala e fala, suas
palavras jorram incessantemente, revelando suas culpas,
seus medos, suas inseguranças. Ele vive uma tumultuada
vida amorosa, sem parceiro fixo, enquanto Santiago, depois
de ter sido noivo de uma mulher por seis anos, foi para São
Paulo e ficou dez anos junto de um homem. Essa
estabilidade, essa tranqüilidade em lidar com a própria
identidade sexual, Pérsio não a tem; ele não a entende, e
talvez a inveje. Cheio de culpas e medos, é ele que menciona,
duas ou três vezes, a aids.
Desde o início da década de 80, já se ouviam rumores
sobre o que a mídia passou a chamar de "câncer gay", uma
doença devastadora que só atingia homossexuais, para a qual
não havia cura. As notícias chegavam rápido ao Brasil,
embora ainda envoltas em suspense, suspense derivado, na
verdade, da ignorância: pouco se sabia sobre as formas de
contágio, sobre o vírus causador da doença, e sobre como ele
agia no organismo. Como a única coisa em comum que as
primeiras vítimas tinham era o fato de serem homossexuais,
começou-se a achar que a doença tinha algo a ver com esse
"comportamento" ou com essa "identidade" homossexual.
Quando mais pesquisas foram feitas e se descobriu que
a contaminação também podia atingir heterossexuais, o
estrago já estava feito. A aids parecia castigo divino, castigo
aos gays, aos drogados, a todos que levavam uma vida
libertária. A vida do pessoal egresso da contracultura estava
mudada para sempre, a partir do momento em que se
diagnosticou o vírus. Aqueles que tinham experimentado o
amor livre, a vida em comunidades, as drogas, tudo a que
tinham direito, estavam agora condenados a viver sob a
paranóia da contaminação. E contaminados estavam todos,
de certa forma, pelo medo.
E no Brasil, o marco da chegada da aids foi a morte do
estilista Markito. Quando soube da morte dele, Caio estava
no hotelzinho em Santa Teresa, uma chuva abundante
caindo, ninguém podendo entrar nem sair do hotel. Ele e
outros hóspedes ficavam bebendo e conversando, lamentando
a morte do estilista. A partir daí, a paranóia só aumentou.
Três anos depois de acabar, a década de 70 chegava,
realmente, ao seu final, marcada não só pela doença, mas
também pela abertura política e pelo desvanecimento dos
sonhos da contracultura.
Em seu perfil de Ana Cristina César, O sangue de uma
poeta, ítalo Moriconi escreveu que a morte de Ana foi um
marco, também, do fim da década de 70. Como se Ana não
aceitasse, ou não pudesse aceitar a mudança, ela se matou,
congelando sua Imagem nos doces anos em que se podia
pensar em mudar o mundo. Porque era mais ou menos isso:
mudar ou morrer. A maioria escolheu mudar, como Fernando
Gabeira, por exemplo, que volta do exílio exibindo sunga de
crochê nas praias do Rio.
Caio também escolheu mudar. Há muito já não era o
hippie de cabelos longos, parecido com Jesus Cristo. A
escritora Clarice Lispector o chamara de Quixote, por causa
de sua barbinha. Ao lado de Caio no lançamento de um de
seus livros, madrinha da noite, ela ficava sussurrando para
ele: você é Quixote! Você é Quixote! Agora, porém, o escritor
assemelhava-se mais a um punk, calça e jaquetas de couro,
ou a um dark, roupas sempre escuras. Ele viveu os anos 80
com a mesma intensidade com que vivera os 70.
Acompanhava o teatro, a música, era entusiasta das
novas manifestações. Era fã, por exemplo, dos Titãs. E do
grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. Adorava Marina
Lima, Cazuza. Estava ligado no seu tempo, nos novos
acontecimentos. Infelizmente, havia a aids; para algumas
pessoas, o medo dela era tão parte dos anos 80 quanto
qualquer música da Legião Urbana.

Em outubro de 1983, O triângulo das águas já tinha


sido publicado, e Caio foi a Porto Alegre lançá-lo na Feira do
Livro. A feira, em barracas ao ar livre na praça, é uma
tradição em Porto Alegre, e um orgulho de seus habitantes.
Além de reunir muitos escritores, que vão lançar suas obras e
autografá-las para o público, é a grande oportunidade de
comprar livros a preços mais baixos que no resto do ano.
Muitas editoras organizam seus lançamentos em função do
evento em Porto Alegre, e todos os anos a escolha do patrono
da feira causa grande expectativa na imprensa e nos círculos
literários locais.
Um dia depois de lançado o livro, Caio recebe um
telefonema: Ana Cristina César está morta. Jogou-se da
janela da casa dos pais, no sétimo andar, onde se recuperava
de outra tentativa de suicídio, feita na semana anterior, pela
ingestão de remédios. Caio ficou desnorteado. O estado
emocional de Ana, a dor que ela sentia, não era surpresa
para ninguém. Mas talvez Caio não imaginasse que a poeta
chegaria ao ponto extremo da dor, ao gesto máximo do
desespero. Talvez não imaginasse que ela conseguiria. De
qualquer modo, Caio chorou, chorou convulsivamente.
Precisava dividir o sentimento com alguém, mas quem? Os
amigos em comum com Ana Cristina estavam todos no Rio.
Então Caio se lembrou de Bruna Lombardi. A atriz tinha
escrito alguns livros, dos quais Caio gostara muito, e desde
então tinham se tornado grandes amigos. Sempre que Caio
estava em Porto Alegre e ela aparecia na cidade, ele a buscava
no aeroporto, levava-a para sair, jantar, passear. Caio
resolveu procurar Bruna, que estava na feira acompanhando
Mario Quintana. Quando o viu, Bruna abriu a bolsa e disse:
— Olha que estranho: quando eu estava saindo de casa
para pegar o avião, você me veio na cabeça dizendo 'Bruna,
você tem que ler esse livro' — e puxou da bolsa um exemplar
de A teus pés, o livro de poemas de Ana C.
— Bruna, eu vim aqui te contar que a Ana se matou.
E assim a notícia foi dada a Bruna. Ao menos na versão
que Caio contou para o jornalista Eduardo Sterzi, que o
entrevistaria anos depois, quando o próprio Caio viria a ser o
patrono da Feira do Livro. "Tinha um toldo, e o Mario
Quintana lindo, e a Bruna linda, todo mundo transpirando, e
aquela coisa estranha no ar. E uma lembrança triste, mas, ao
mesmo tempo, mágica", ele diria ainda, na entrevista.
A "mágica" da lembrança não aparece aqui por acaso.
Não é incomum, quando se trata de histórias envolvendo o
Caio, a presença de um toque estranho, meio mágico, de
coincidências inexplicáveis. Às vezes, ele parecia ser meio
bruxo, meio mago. Nos anos 90, o jornalista José Castello
viajaria para a Europa no mesmo avião de Caio. Ele conhecia
o escritor de vista. Ficou apenas observando, enquanto Caio
botava o taro para as garotas sentadas a seu lado. Castello
ficou fascinado pela figura do escritor: parecia um mago,
muito misterioso. Tímido incurável, Castello não se atreveu a
cumprimentar Caio, mas ia ao banheiro com freqüência, e ao
banheiro mais distante da sua poltrona, apenas para passar
em frente ao escritor e poder dar uma boa olhada nele. Um
bruxo, o Caio. Dizia-se um hedonista, e assim se desculpava
antecipadamente por eventuais mentiras ou fantasias. Nem
sempre é possível separar suas versões da verdade.
Uma verdade incontestável, no entanto, é que a morte
de Ana Cristina foi um fantasma que o perseguiu por muitos
anos. Quando ela morreu, ele escreveu a Jacqueline: "E não
conseguir dormir: na minha cabeça, Ana C. parada à beira de
uma janela. Pensamentos mórbidos: o que ela teria sentido um
segundo antes de se jogar no espaço. Depois do choque, certa
raiva. Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo
ela, que tinha uma arma para sobreviver — a literatura —,
coisa que pouca gente tem."
A imagem da morte perseguia Caio, se alojava em seu
lado escuro. Talvez herança do romantismo, da poesia de
Baudelaire, de Rimbaud; poetas amados por Caio, poetas
malditos. Ecos de Edgar Allan Poe e sua literatura sombria,
negra; ou mesmo de outros autores, para quem a morte foi
sempre o grande tema, junto com o amor. Essa idéia de
morte romântica, que tanto apelo tem junto a certos tribos
urbanas, como os góticos, calava fundo em Caio. Por mais
que ele insistisse na vida, em seus incensos, suas
macrobióticas, havia um lado seu que era obcecado pela
morte. E foi esse lado que, de certa forma, se atormentou pelo
fantasma de Ana C.
E se apaixonou, também, pela aids, desde o começo.
Caio falava e falava nela, com tanto ódio quanto freqüência;
era uma obsessão, algo que o inquietava, que o interessava,
que o tocava profundamente. A medida que o tempo passa, a
obsessão fica mais forte: pessoas de quem só ouvimos falar
começam a morrer, depois amigos de amigos, por fim os
próprios amigos, as pessoas com quem dividimos casa e
comida, começam a ficar doentes. A doença espreita, ronda,
como um ladrão, esperando o momento certo de entrar na
casa. Caio sente essa sombra se aproximando, se
aproximando, e se revolta contra ela; a odeia, fala sobre ela; a
única coisa que não pode fazer é ignorá-la.
Caio tinha um motivo a mais para ir a Porto Alegre em
outubro, além de lançar seu O triângulo das águas na feira do
livro. O motivo tinha vinte e poucos anos de idade, era ator,
Touro ascendente Capricórnio, e tinha uns olhos que
mudavam de cor. Atendia pelo nome de Ivan Mattos, o
motivo, e Caio estava perdidamente apaixonado. "....Também
porque aconteceu uma coisa que, como Deus, eu pensava que
não existia. Imagino que isso que chamamos de amor. Algo
assim. Porque tudo que vivi e senti antes me parece agora
bobagem, brincadeira. [...] Eu pensava que não existia. A beira
dos 35 anos, eu estava certo de que não existia. Ou que, se
existia, não era para mim", escreve a Maria Adelaide Amaral.

Não que Caio não se apaixonasse muito antes de


conhecer Ivan. Ele se apaixonava muito, e sempre. Por várias
pessoas ao mesmo tempo, às vezes. Chegou a sustentar três
ou quatro casos ao mesmo tempo, em graus de
comprometimento variados, em geral não muito alto — o que
não quer dizer que não estivesse perdidamente, loucamente
apaixonado. Caio sofria, sofria, sofria de amor. Sofria de
paixão. Sofria de rejeição, muitas vezes — porque quem ele
queria não o queria. Porque quem ele escolhia só gostava de
mulheres. Porque quem ele queria gostava de homens
também, mas só de vez em quando. Porque quem ele queria
gostava de homens, mas não queria compromisso sério. Há
quem diga que, ao se apaixonar, Caio preferia os homens
mais másculos, mais viris, e por isso às vezes acabava
escolhendo algum que não era homossexual; mas para ficar,
na noite, para se divertir, Caio ficava com vários tipos de
caras. Gays mais espalhafatosos, gays mais sóbrios. E
mulheres, sim. Havia mulheres. Caio chegou a namorar sério
algumas delas. Ele contaria em entrevista à Marie Claire, em
1995, que sua primeira experiência sexual teria sido com
uma mulher. Ele tinha 19 anos, já morava em São Paulo.
Uma amiga veio até sua casa num domingo chuvoso. Caio
abriu a porta, mas ela não o deixou falar uma palavra. "Me
jogou na cama e me estuprou", contou o escritor. "Foi ótimo."
Em muitas entrevistas, desde o início dos anos 70 até o final
da vida, Caio sempre repetiu que não acreditava em
homossexualidade OU heterossexualidade: acreditava, isso
sim, em sexualidade. Pessoas se apaixonam por pessoas, não
por rótulos. Embora ele tenha tido clara preferência por
homens a maior parte da vida, houve algumas mulheres de
quem gostou. Para uma delas, Maria Clara Jorge, a Cacaia,
ele dedica o livro Morangos mofados. Esse tipo de homenagem
era constante na literatura de Caio: todos os seus livros, e a
maior parte dos seus contos, são dedicados a alguém. Podia
ser uma lembrança da pessoa que o inspirou a escrever a
história, ou do amigo com quem viveu fatos muito parecidos,
ou simplesmente uma forma de expressar carinho, sem que
nada no conteúdo do texto justificasse aquela dedicatória
específica. Na época em que escreveu Morangos mofados,
Caio vivia seu caso com Cacaia; nada mais natural que o livro
fosse dedicado também a ela.
Cacaia era amiga de Graça Medeiros, que a apresentou
ao escritor. Houve também Vera Antoun, paixão que
aconteceu mais por carta que pessoalmente, e com quem o
escritor, sempre construindo castelos em cima de nuvens,
pensara em se casar e ter filhos. Houve uma arquiteta, cujo
apelido era Pifa. Houve Maria Emilia Bender. Houve
mulheres. Houve homens. Houve paixões.
E decepções, inclusive, e solidão, como ele escreveu em
vários textos. Um exemplo é o conto Além do ponto, de
Morangos mofados, em que o protagonista vai até a casa de
alguém, debaixo de chuva, levando cigarros e conhaque. Ele
chega, ansioso, e bate na porta.
E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei
batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para
olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que
alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse
febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores,
água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto
exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo
um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem
parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da
cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo,
depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca
mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra
ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo
batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo
batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre
nunca.

E em 1983 a paixão principal — não se pode afirmar


que fosse a única, porque é mais ou menos nesse período, em
que Caio mora no Rio de Janeiro, que ele convive com Cacaia,
por exemplo — é Ivan. O jovem ator — na época com vinte
anos — participava da montagem da peça Pode ser que seja
só o leiteiro lá fora, de Caio, dirigida por Luciano Alabarse, em
Porto Alegre. A peça estava sendo encenada dez anos depois
de ter sido proibida pela censura dos militares, e nas idas de
Caio a Porto Alegre, ele acompanhou a montagem do amigo
Luciano, que conhecia desde os tempos em que freqüentava o
Centro de Artes Dramáticas (CAD). Caio conheceu Ivan, os
dois se apaixonaram. Foi uma das mais longas relações de
Caio de que se tem notícia — durou pouco mais de um ano —
e mesmo assim não foi uma relação fácil.
Para a juventude de Ivan, as depressões de Caio eram
um fardo pesado demais a carregar. O lado escuro, os poços
profundos onde ninguém entrava, isso tudo não fascinava
Ivan, mas o assustava, e o afastava de Caio. Ele viajou com o
escritor para o Rio, ficou alguns meses com ele, mas no final
as diferenças — de idade, de temperamento — venceram. Os
dois se separaram, e Caio voltou à sua desastrosa vida afetiva
de sempre. Não sem antes pedir de volta a Ivan as
apaixonadas cartas que tinha escrito a ele, com medo, talvez,
de que aquilo pudesse ser usado contra ele de alguma forma;
nas cartas, Caio era sempre muito mais sensível, frágil e
aberto que pessoalmente.
E ele era compulsivo em relação a escrever cartas:
adorava conhecer pessoas novas, porque assim tinha mais
gente com quem trocar correspondência. Caio escrevia três,
quatro cartas por dia, às vezes; e eram cartas longas, de
várias páginas, em que ele se expunha muito. Ao vivo, era
discreto, tímido e arredio. Nas cartas, era mais engraçado,
mais derramado, mais solto. Assinava, muitas vezes, como
Caio F, numa referência à adolescente alemã Christiane F,
cuja história é contada no livro Eu, Christiane F, 13 anos,
drogada, prostituída..., escrito pelos jornalistas Horst Rieck e
Kai Hermann.
Na pequena temporada que passou em Porto Alegre,
Caio aproveitou para tentar uma coisa nova em seu trabalho:
a adaptação do texto de outra pessoa. O texto era Reunião de
família, de Lya Luft, que seria levado ao palco no ano
seguinte, em 1984, com direção de Luciano Alabarse, que já
dirigira a montagem de O leiteiro. Lya era amiga de Caio,
assim como outras escritoras de renome, como Lygia
Fagundes Telles e Hilda Hilst. Todas tinham grande apreço
por ele e respeito por sua obra. A literatura de Caio tinha
vários pontos em comum com a delas, principalmente com a
de Hilda.
Entre os atores escolhidos para atuar em Reunião de
família, estava, claro, Ivan; ele e Caio ainda namoravam
quando o escritor começa a adaptar a obra, embora já não
estivessem mais juntos quando o texto foi levado ao palco. A
adaptação de Caio foi muito bem-sucedida; um pouco, talvez,
pelas similaridades existentes entre seu universo e o de Lya
Luft, um universo cheio de brumas, de mistérios, de
questionamentos sobre a existência. Ajudou também o fato
de que, já sabendo quem seriam os atores de antemão —
Luciano os havia escolhido — Caio podia escrever o papel de
cada um pensando nas características de cada ator. Cada
fala, assim, era pensada para aquele ator específico. Os
papéis escritos sob medida, além de serem uma oportunidade
rara para os atores de teatro, que poucas vezes tinham a
chance de fazer um papel que se ajustasse plenamente às
suas características e potencialidades, ajudaram no sucesso
da peça.
No livrinho que acompanhou a apresentação da peça, no
ano seguinte, há textos de Lya Luft, elogiando o trabalho de
Caio. Ela fala do medo que tinha de alguém mexer em um
texto seu, do receio que teve a princípio, mas a confiança que
tinha em Caio venceu, e a autorização foi dada. No final, Lya
ficou mais que feliz com o resultado: "Nos diálogos, senti que
aquelas personagens, agora já não unicamente minhas, mas
nossas — minhas e de Caio Fernando Abreu — adquiriam uma
nova vida, uma nova dimensão, a vida e a dimensão das
figuras de teatro. Mas, nem por isso, deixavam de ser aquelas
figuras torturadas que habitavam o livro original. Acho que
Caio conseguiu uma coisa rara: uma adaptação que me
pareceu, em muitas coisas, mais expressiva ainda que o livro."
Caio também escreve um pequeno texto para o livreto.
Nele, alude a acontecimentos de sua vida, alguns de forma
direta, outros em linguagem cifrada. Fala do mergulho que
deu numa história de amor tão linda que era como se fosse a
primeira. Embora não cite o nome de Ivan, é a ele que se
refere. No texto, Caio mostra algumas de suas obsessões, a
fascinação pela morte, todo o lado escuro que, embora não
fosse o único lado do escritor, Ivan alega não ter conseguido
suportar.
"Encurralado entre o salto pela janela de Ana Cristina
César, a fuga incompreensível de Carlinhos Hartlieb, a partida
súbita de Lígia Averbuck, de volta ao quarto de onde saí para
a estrada, no sobrado de meus pais, no Menino Deus, depois
de anos, sozinho num verão escaldante, numa cidade deserta,
todas as horas a morte rondava, emboscada entre objetos
familiares de muitas gerações. [...]
Nas noites, aos poucos, Carlinhos, Lígia e Ana C. foram
deixando de assombrar. Decidi trocar este árido Porto pela
louca Sampa, assumindo minha carajá muito mais paulistana
que fronteiriça. Descobri dolorido que aquele amor não era
especial nem para sempre: trocamos em miúdos pobres as
juras de eternidade que, por acreditarmos em encontros, ainda
somos capazes de fazer. Tão juvenis — graças a Deus. Então
colei os cabelos eriçados do punk sobre os cachinhos do
arcanjo. E vim à tona com o livro de Marilena Chauí embaixo
do braço."
Os cachinhos do arcanjo são os cachos de Ivan, o amor
que não era para sempre. Carlinhos Hartlieb era um
importante cantor e compositor gaúcho, autor de Por favor,
sucesso, e que ficou também conhecido por organizar as
famosas Rodas de Som: espetáculos à meia-noite, nas sextas-
feiras, com grupos desconhecidos, no Teatro de Arena, em
Porto Alegre. Logo depois de gravar seu primeiro disco
individual, Risco no céu, Carlinhos viajou para a Praia do
Rosa, no litoral de Santa Catarina. No dia 3 de fevereiro de
1984, seu corpo foi encontrado na casinha de madeira que
construíra, uma das primeiras do local. Nunca se soube
exatamente do que ele morreu.
Lígia Averbuck era a protetora dos escritores gaúchos;
lançara O ovo apunhalado de Caio em plena ditadura, quando
coordenava o IEL. Ela também morreu em 1984. Era a morte,
a morte que ele teve que enfrentar para lidar com os
demônios do texto de Lya. E o livro de Marilena Chauí,
provavelmente, era Repressão sexual, que Caio leu por essa
época. Cheio de culpas e amarguras, nem sempre Caio estava
100% feliz com sua sexualidade.

Se a vida amorosa era o desastre de sempre, a


profissional estava indo melhor que nunca. Enquanto
ganhava a vida trabalhando na IstoÉ, na época editada por
Zuenir Ventura, fazia uns lances para a Gallery Around,
house-organ da casa noturna Gallery. Um dos donos da
Gallery era José Pascowitch, irmão de Joyce Pascowitch. Ele
chamou a irmã para cuidar da revista, que, com o trabalho
de Paula Dip e Antônio Bivar, se tornou um dos veículos mais
interessantes da época, revelando talentos como Barbara
Gancia e José Simão. A Gallery Around faria escola com seu
estilo elegante e sofisticado, ligado nas tendências. Caio
começou como colaborador, depois se tornou redator da
revista.
Mas isso era o ganha-pão. A parte que interessava, a
literatura, ia melhor ainda. Além do lançamento do Triângulo,
do sucesso pós-Morangos mofados, da adaptação de Pode ser
que seja só o leiteiro lá fora, Caio terminava o roteiro de um
longa 35 mm que seria baseado em um conto seu, Aqueles
dois. O filme, homônimo, foi dirigido por Sérgio Amon, e tinha
no elenco Pedro Wayne, Beto Ruas e Suzana Saldanha.
Filmado em Porto Alegre, teve pré-estréia em Gramado, em
1986. Muito premiado, o filme foi o único brasileiro a
concorrer ao 11º Festival de Cinema Gay e Lésbico em San
Francisco (EUA), em 1987. Além disso, Morangos mofados
também estava sendo levado aos palcos, no teatro Cacilda
Becker, no Rio de Janeiro, e Caio deu uma força na
produção. E ele se preparava ainda para lançar o livro infantil
As frangas.
As frangas é um livro de que Caio gostava muito. A
história surgiu da coleção que Caio tinha de galinhas
pequeninas, pequenos enfeites de geladeira. Apaixonado
pelas galinhazinhas, que ele só conseguia chamar de frangas,
porque assim eram chamadas em sua infância, em Santiago,
Caio ganhou várias de amigos ao longo da vida. O livro era
também uma forma de homenagear Clarice Lispector, que
tinha uma paixão também enorme por galinhas — e ovos — e
escreveu vários textos a respeito. Assim, cada franguinha do
livro é baseada em uma franga de verdade, que morava na
geladeira do Caio, que aos poucos foi inventando personali-
dades para cada uma delas. O livro é a história desse
galinheiro. Um dos projetos de Caio, antes de morrer, era
escrever a continuação das frangas, já que muitas novas
surgiram em seu galinheiro depois da publicação do livro. Em
uma referência a Rambo, e com muita ironia, o livro deveria
se chamar Frangas 2 — a missão. Caio não teve tempo,
entretanto, de concluir essa história.
Depois da morte de Ana C. e do fim da relação com Ivan,
Caio volta a São Paulo, já um pouco esquecido da loucura
que é viver na cidade. Ele agora quer ficar ali por um bom
tempo. Vai morar em uma casa alugada do ator Ricardo Blat,
uma bela casa de dois quartos, com uma roseira no pátio.
Detalhe singelo, mas não pouco importante: Caio era
apaixonado por rosas. Era apaixonado por jardins e flores.
Na casa nova, começa a trabalhar. Caio está envolvido
agora com alguns projetos para televisão. Trabalha em um
roteiro para Ronda, uma série sobre São Paulo com Bruna
Lombardi e Carlos Alberto Riccelli. Faz também dois roteiros
para Regina Duarte, de quem se aproxima nessa época. Ela
faz a série Joana, no momento. Os dois chegam a sair juntos;
em uma ocasião, vão a um show de Caetano Veloso ("lindo,
decadentíssimo, bêbado, analisado e blasé", diz Caio, em
carta a Luiz Arthur Nunes), que faz a música de abertura da
série. Caio, sempre fã de Caetano, agora convive com pessoas
que o conhecem. Está cercado de estrelas, atrizes, escritores,
diretores. Apesar de tudo, tenta se manter mais reservado;
não quer virar "moda besta", diz. Ele não se deslumbra com
as estrelas que estão a seu lado; se a pessoa fosse
interessante, não importava se era famosa ou não. Assim,
Caio era amigo de Regina Duarte e Lygia Fagundes Telles,
duas mulheres respeitadas e famosas; ao mesmo tempo,
adorava Claudia Wonder, travesti paulista, que manteria
anos depois uma coluna na revista G Magazine. Ele a
conheceu na noite e adorava conversar com ela sobre a vida.
Quando começou a escrever crônicas para o Estadão, Caio
chegou a falar de Claudia e seu trabalho, convidando os
leitores a assistir ao seu show.
Além do trabalho com a TV, Caio faz uns free-lances de
crítica teatral para a IstoÉ. E revisão de originais para a
Brasiliense. Com a educação impecável que recebera no Rio
Grande do Sul, Caio tinha o português ótimo e era um grande
revisor. Nos jornais, era bom copidesque. Nas editoras,
revisava livros. Um dos livros que revisou foi Feliz ano velho,
de Marcelo Rubens Paiva, publicado no mesmo ano de seu
Morangos mofados. Corre a história, pela boca de defensores
fiéis de Caio, que na verdade ele é que teria escrito o livro, de
tantas modificações que foi obrigado a fazer. Marcelo teria
entregado uns rascunhos toscos para Caio, e ele
praticamente teria reescrito o livro. O próprio Caio, no
entanto, teria contado a amigos, como Luiz Fernando
Emediato, que a história era um exagero; ele apenas poliu o
texto de Marcelo, que, afinal, era um rapaz muito novo e
inexperiente; Feliz ano velho era seu primeiro livro, e só foi
escrito para contar a história do acidente que, aos 20 anos de
idade, deixara o rapaz para sempre paralítico.
É uma fase de intenso trabalho para Caio, tanto que a
literatura fica meio em segundo plano: seu próximo livro de
contos, Os dragões não conhecem o paraíso, só sairá em
1988. Além das revisões de livros, faz também traduções.
Uma de que gosta muito é a de Sonhos de Bunker Hill, de
John Fante, autor que admira. O primeiro que o fez chorar
em muito tempo, dizia.
Aos 36 anos, Caio já pode olhar para trás e ver que
construiu uma obra. Ele é, definitivamente, um escritor. E
um escritor com público cada vez mais fiel. Reedições de seus
primeiros livros, que foram publicados de forma quase
artesanal quando ele ainda era adolescente, começam a ser
pedidas pelas editoras. Caio concorda em reeditar, desde que
faça modificações. Perfeccionista, quer mexer no texto,
atualizá-lo, corrigir erros, melhorar o estilo. A base fica a
mesma, mas é preciso aparar algumas arestas. Então, em
1984, para uma nova edição de O ovo apunhalado, ele retoma
o livro escrito uma década antes, e o revisa todo. A edição sai
pela Siciliano, onde trabalha agora o editor Pedro Paulo de
Sena Madureira, que já lançara anteriormente o livro pela
Salamandra.
O ovo apunhalado era um livro que já tinha história e
fãs ferrenhos. Grace Gianoukas, atriz gaúcha, leu o livro em
1982 e se apaixonou imediatamente. Ela estudava em Porto
Alegre, fazia Artes Cênicas no CAD, e morava com mais dois
amigos do curso de Letras. Mas Grace era natural de Rio
Grande, cidade que fica a quatro horas e meia de viagem de
Porto, e numa das visitas que faria à família, ela estava sem
nada para ler. Um dos amigos que moravam com ela lhe
mostrou O ovo, ela achou interessante. Quando leu, foi como
uma bofetada: apaixonou-se pelo estilo, pelo autor, pelas
coisas que ele dizia. Passou a semana de visita deitada na
cama, lendo e relendo o livro.
Em 1983, quando Caio foi lançar O triângulo das águas
na Feira do Livro, Grace não tinha dinheiro para comprar o
livro. Mesmo assim, entrou na fila de autógrafos, só para ver
o Caio. Ele foi muito correto, muito blasé, mas não lhe deu
muita atenção.
Na época, Grace trabalhava em um restaurante de
comida natural. Um dia ela vinha caminhando, os pratos na
mão, quando abriram-se as portas vai-e-vem, tipo faroeste, e
ela deu de cara com o Caio sentado em uma das mesas.
Voltou imediatamente. Meu Deus, o Caio! O Caio tá aqui,
meu ídolo, meu ídolo, ai meu Deus, ai ai ai! Shell, irmã de
Augusto Rigo, o amigo de Santiago que fora com Caio para a
Suécia, e também trabalhava no restaurante, arrastou Grace
pelo braço e a levou até a mesa, apresentou-a ao Caio, eles
conversaram um pouco. Grace convidou-o para assistir ao
seu espetáculo O Acre vai à Rússia, que estava sendo muito
elogiado na época, um espetáculo moderno, de vanguarda.
Tempos depois, Caio vai ao espetáculo. Já estava tudo
escuro, mas Grace o viu entrar. Ai meu deus, o Caio tá aí...
Mas foi em frente. No final, os atores abraçavam o público,
agradeciam a presença, e lá foi ela dar um jeito de abraçar o
Caio. Dias depois, encontram-se por acaso num bar. Ele
passa, cumprimenta. Daí a pouco, Grace recebe um bilhete.
Adorei o espetáculo de vocês, não fui ao camarim porque sou
muito tímido, mas foi ótimo etc etc. Era do Caio. Aí foi aquela
festa: Grace foi para a mesa dele, conversaram de verdade, de
verdade mesmo, pela primeira vez, e desde então se tornaram
grandes amigos. Caio ia a festas na sua casa, saíam juntos.
Em 1984, quando Caio está morando na casa onde
antes morava Ricardo Blat, que se mudara para o Rio de
Janeiro, Grace vem morar com ele. A faculdade ainda não
terminara, mas só entrava em greve, sempre em greve. Caio
foi crucial nesse momento: insistiu para que ela viesse,
ofereceu sua casa, disse que Porto Alegre era pequena
demais. Depois de uma visita a São Paulo junto com o irmão,
Airton, em que se hospedaram na casa de Caio, Grace decidiu
vir morar de vez, para alegria do escritor, que adorava sua
companhia.
Aos olhos de Caio, Grace era ainda uma menina, aos
vinte e um anos de idade. Ele a protegia de todas as formas:
lhe dava conselhos, apresentava-a a amigos, mostrava livros
que deveria ler. Com Caio, Grace conheceu James Joyce,
Ezra Pound, Clarice Lispector. Principalmente Clarice
Lispector. Caio também apresentou Grace a Orlando, com
quem ele morara na casa da Melo Alves. Orlando tinha um
show-room de moda, onde Grace passou a trabalhar. De dia,
trabalhava no show-room. A noite, era garçonete.
Por essa época, Grace só conhecia o lado meigo do Caio,
o lado gentleman, bem humorado. Um dia, porém, ela viria a
conhecer seu lado agressivo. Numa tarde, apareceram dois
homens alegando ser oficiais de Justiça, querendo falar com
Ricardo Blat. Grace disse para voltarem à noite, quando Caio
estivesse em casa, pois ele é que conhecia o rapaz.
Quando voltaram, Caio foi gentil. Disse que Ricardo não
morava mais ali. Um dos homens pediu um copo d'água. Caio
deixou entrar, ainda sorrindo. Os dois se sentaram no sofá.
Tudo bem. Quando pediram para ir ao banheiro, Grace viu os
olhos de Caio transformarem-se em fúrias. Ele começou a
mudar.
— O senhor é Abreu? — perguntou um dos homens. —
Eu também sou Abreu.
— Aham. Todo mundo é Abreu. O Brasil inteiro é Abreu.
E vamos indo, vamos indo embora — responde Caio, já
empurrando os senhores porta afora.
Grace não sabia onde se esconder de vergonha, a grossura
com que Caio tratara os oficiais... Então Caio se justificou.
Para ele, aqueles homens não eram oficiais coisíssima
nenhuma; eram de alguma polícia, e estavam ali para plantar
alguma coisa contra o Ricardo, plantar drogas para um
possível flagrante, sabe-se lá por quê. Quando percebeu isso,
Caio quis mandá-los logo embora. Paranóia ou verdade, Caio
tinha antecedentes: por duas vezes, ele tinha sido preso por
flagrante falso de drogas. Gato escaldado, não via muitos
motivos para confiar na polícia brasileira.
Não que ele não usasse drogas. Usava, sim. Não era
viciado, não usava todo dia, não tinha nenhuma droga de sua
preferência, mas usava, de vez em quando, nas festas, na
noite. Às vezes cocaína, para ficar acordado. Anfetaminas,
pelo mesmo motivo.
Comprimidos para dormir, quando decidia dormir.
Maconha, às vezes, às vezes. Álcool: sempre. Um bom
whisky, uma cervejinha. Um strega flambado. Gostava do que
era bom: quando podia, gostava de ir ao Ritz, um bar
moderninho de São Paulo, e pedir um whisky doze anos. As
vezes, chegava bem cedo ao bar, e ficava horas escrevendo,
até os amigos começarem a chegar. Na maior parte das vezes,
escrevia em casa mesmo.

Caio está fazendo café: é hora de escrever. Ele arruma a


mesa. De um lado, à esquerda, a pilha de papéis em branco,
impecável. Do outro, a pilha de textos escritos, sem uma
ponta fora do lugar. No meio, a pequena máquina de
escrever, cinza. Ao alcance da mão, a garrafa e a xícara de
café, o cinzeiro, o isqueiro e os cigarros. Tac-tac tac-tac, ele
bate à máquina, o montinho de papéis da esquerda vai
diminuindo, o da direita aumentando. Caio bebe um gole de
café, fuma um cigarro. Quando há uma ou duas bitucas no
cinzeiro, ele o limpa, jogando as cinzas no lixo. Se anoitece,
substitui o café por Jack Daniels. E assim por horas e horas
a fio, tac-tac-tac. Ao final, quando deixa a mesa, ela está
intacta, exceto pela pilha maior do lado dos papéis escritos.
No final de agosto de 1984, Caio começa a trabalhar fixo na
Around. Apesar dos gritinhos da mulherada e do ambiente
metido a chique, com pessoas cool entrando e saindo a todo
momento, esse é um trabalho que ele gosta de fazer: dá a
oportunidade a ele, por exemplo, de ir ao Rio de Janeiro
entrevistar Ney Matogrosso, seu ídolo. No Rio, surge também
um novo amor: Pedrinho. "... depois de uma noite linda com
Pedrinho, [...], a última imagem foi a ponta do dedo indicador
dele acariciando a ponta do meu dedo indicador através das
grades da janelinha do elevador. Cena de cinema. E a voz
dizendo que vem a São Paulo daqui a uma, quem sabe duas
ou três semanas. Porta do elevador fecha enquanto sobem os
créditos.", escreve a Luciano Alabarse. Esse homem é ou não
é um romântico incurável? Um sonhador, por mais ironia que
tente imprimir às palavras.
Antes que pudesse colocar a carta a Luciano no correio,
entretanto, acontece uma coisa que deixa Caio muito
impressionado. O escritor Reinaldo Moraes, autor dos
romances Tanto faz e Abacaxis e amigo de Caio, foi visitar a
mãe e encontrou-a morta, caída no chão da cozinha. Não
havia quem o ajudasse: o pai já havia morrido, ele era filho
único. Os amigos é que foram dar uma força, inclusive Caio.
Ele, que nunca tinha visto ninguém morto, exceto a cantora
Elis Regina, que morava perto de sua casa e morrera há
pouco tempo, estava ajudando a vestir a morta, providenciar
caixão, enterro. Logo ele, tão obcecado pela idéia de morte.
Ficou impressionadíssimo, falou no assunto por semanas. E
achou que tinha aprendido algo com a experiência: ficado
realmente adulto, muito mais velho. Alguma coisa já não
estava lá, no corpo morto da mulher. "A alma? Pode ser."
Caio conhecera Reinaldo em 1981, através de Maria
Emilia Bender, que trabalhava junto com ele na Brasiliense.
Caio e Maria Emilia foram namorados por algum tempo, e ele
costumava visitar a moça no apartamento que dividia com
Ruy Fontana Lopes e Reinaldo Moraes, no bairro de
Higienópolis. O escritor Mário Prata morava no mesmo
prédio. De vez em quando, Reinaldo e Caio participavam de
eventos literários juntos, como o lançamento de livros e
seminários. Certa vez, em Porto Alegre, vendo que a fila era
grande na frente da sua mesa, mas que não havia ninguém
na mesa do Reinaldo, Caio chamou os amigos e parentes de
lado e dizia para irem, que Reinaldo era ótimo.
Nessas ocasiões, a farra era grande. Os dois compartilhavam
a porra-louquice e iam aos mesmos bares, como o Pirandello,
na rua Augusta — chegaram mesmo a participar da coletânea
Contos Pirandellianos — 7 autores à procura de um bar, em
que a idéia era histórias que se passassem no bar de Antônio
Maschi. Uma vez, em 1983, foram juntos a um evento em
uma universidade em Londrina, para discutir a literatura dos
anos 80. Na sessão de autógrafos, chegou um casal de
namorados que era fã dos dois.
Conversa vai, conversa vem, Caio terminou a noite com
o menino e Reinaldo com a garota, no hotel.
No início de 1985, Caio muda novamente de endereço.
Ele decide ir morar com Sérgio Bianchi, cineasta, amigo, para
quem chegou a escrever alguns roteiros. Antes de mudar para
lá, porém, ele fica num apartamento pequenino, na verdade
uma quitinete, por pouco mais de um mês. Grace, que
morava com ele, decide ir para uma pensão, já que o dono da
casa não a alugaria para três garotas. Não queria fazer
"república", disse ele a Grace e às amigas que dividiriam com
ela a casa. Caio, porém, chama Grace para ficar com ele na
quitinete até surgir alguma coisa. O espaço era exíguo, mas
Caio era leal com os amigos, e mais ainda em relação a
Grace. Situações engraçadas aconteceram no curto período
da quitinete: às vezes, Grace chegava do trabalho, tarde da
noite, e Caio estava acompanhado. Ele pedia para que ela
fosse dormir na cozinha, e lá ia ela, pé ante pé, deitar-se no
espaço mínimo entre a geladeira e a pia e a mesinha e o
fogão. Se esticasse o braço, trombava em alguma coisa, mas
era divertido mesmo assim.
E as mudanças não aconteciam apenas na vida de Caio
e Grace. No plano político, havia um clima de alívio: em
janeiro daquele ano, Tancredo Neves fora eleito presidente do
Brasil por um Colégio Eleitoral. As eleições não foram diretas,
como a maioria pedia, mas pelo menos era um presidente
civil. Depois de mais de vinte anos de militares no poder, isso
já era algo a ser comemorado. E foi: o tal namorado de Caio,
Pedrinho, quebrou o pé dançando na festa de vitória do
Tancredo. A alegria durou pouco, no entanto: o presidente
morreu antes de tomar posse. Seu vice José Sarney assumiu.
Sarney também era civil, mas apoiara os militares até quase o
final da ditadura.
Enquanto isso, a aids vai chegando mais perto de Caio.
Luiz Roberto Galizia, diretor, autor de poesia, jornalista, uma
pessoa de quem Caio gostava, embora nunca tivesse tido a
chance de se aproximar muito, foi internado, aos 34 anos de
idade. A paranóia aumenta um ponto. Caio tem umas
pequenas doenças, infecções, aftas na boca, mas os médicos
dizem que não é nada.
Como se a possibilidade de doença não bastasse, Caio
ainda quase morre queimado num incêndio em seu
apartamento, incêndio causado por ele mesmo. Era o mês de
março, e Caio já estava morando com Sérgio Bianchi. Em
carta a Jacqueline Cantore, o escritor descreve o episódio.

"Sas que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE


MORREU QUEIMADA? Estava ela no fogão, mui lépida,
assando umas coxas de franga, quando eis senão que sente
um odor estranho vindo das bandas do dito fogão. Ela estava,
mui poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela
pêxa grávida no aquário, que não se decide a parir (vão ser
arianos, os demônios, eu esperava pêxes de Pêxes, sas?)
Então me viro (observe a mudança espontânea & natural da
tercêra para a primêra pessoa) e eis que, atrás do fogão, vejo
CHAMAS ENORMES ATÉ QUASE O TETO. Joguei água, aí
chamei o Sergião que telefonava da sala (Sergião disse: "Agora
tenho que desligar porque minha casa tá pegando fogo", bem
natural), e ele começou a me puxar pra fora da cozinha, aos
gritos de "Vai explodir! Vai explodir! Não joga água que é pior!".
Marilene, ousadíssima, queria avançar entre as chamas para
DESLIGAR O FORNO (ela não tinha grana para comer e sua
maior preocupação era que as coxas ficassem inutilizadas,
isso é, carbonizadas). Bueno, corremos para o corredor do
prédio. Duas velhinhas saíam do elevador. Sergião: "Corram,
saiam depressa que vai explodir tudo!". Uma das velhinhas
começa a desmaiar. Junta gente na porta do prédio. Seu
Antônio, o zelador, vem com um extintor de incêndio. Gritos,
sussurros, gemidos, faniquitos. Fumaça, cheiro de gás,
"apaguem os cigarros!" (Marilene correu para seu quartinho e,
num sopro, apagou a vela de sete dias, juro), & LABAREDAS
CADA VEZ MAIS ALTAS. Bom, o extintor apagou tudo: espuma
branca por toda a cozinha e toda a sala. Enfim. Marilene foi
espiar se a pêxa tinha abortado: raçuda, ela — continua
grávida. Ai, a tremedeira. Que medo!"

O episódio terminou bem, e Caio o contou da maneira


que sabia: com humor. Quando não há jeito, o melhor é rir,
ele pensava. Era adepto da "cultura das abobrinhas", que é
simplesmente falar bobagem. Ver filme cinemão de
Hollywood, falar asneiras, essas coisas. Justificando essa
maneira leve de ver a vida, ele vinha sempre com o trecho de
um poema de Drummond:

"Perdeste o melhor amigo,


não tens sequer um cão
... mas e o humourt"

Afinal, poesia também era muito importante na vida de


Caio. Ele lia Adélia Prado, Hilda Hilst, Fernando Pessoa,
Mario Quintana, e, principalmente, Drummond. Adorava a
poeta Ledusha, paulista de alma carioca que era sua amiga,
assim como Ana Cristina César. Todos eles eram influências
tão grandes para sua prosa quanto os ficcionistas que ele
amava. Caio também escrevia poesia: escrevia em seus
diários, que manteve por boa parte da vida. Mandou várias
em cartas para amigos, ao longo da vida. Como essa, que
escreveu em fevereiro de 1974 e enviou a Vera Antoun:

Estavam ali as portas


Janelas e varandas.
Estavam ali
Na fronteira do olhar
Onde o de dentro encontra
Justamente
Com o de fora.
Nesse ponto exato
Elas estavam:
Bastava um gesto.

Mas o meu estar parado


Era maior que eu.
Estar parado
Estar vivo:
A mesma incompreensão
E medo
Entre mim
E aquele estar das coisas.

Estar ali
Como nunca ter chegado.
Estar ali
Por estar ali
E além de mim
0 que eu não ousava.
Ah
Relembro a amplidão dessas varandas intocadas
Os pequenos raios de luz
Nos vidros coloridos das janelas.
Revejo a dura consistência da porta
Cerrando seu segredo.
E me retorno
Ali
No imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
Agora
Escancarar portas e janelas
Para sair nu pelas varandas
Desvairado e nu
Profeta, louco, infante.

Sair para o vento


O sol, as tempestades, as neves,
As quedas de estrelas e Bastilhas,
O cheiro de jasmins
Entontecendo os quintais.

(pudesse retomar manhãs, amigo,


manhãs perdidas como tudo
que não fui)
Mas continuo
Ali.
Aqueles espaços
Permanecem mortos dentro de mim.
Como um corpo que se ama
E não se toca.

Ou esse, sem data, reunido entre os dispersos


publicados no livro Caio 3D — o essencial da década de 1980,
de 2005.

Não cantes, como eu,


Os outros por bebedeira
Não saúdes
A morte em literatura.
Boa negra
Voltada para as estrelas
Pés de chumbo
cravados na lama:
O canhão
E sua escandalosa metafísica

Caio nunca publicou em livro seus poemas. Talvez não


os achasse bons, talvez não os levasse a sério. Brincava com
Mário Prata que poesia era coisa para quem não conseguia
chegar ao fim da linha. Mas a importância de ter lido os
poetas, em seus textos, era de fato inegável, e aparece na
preocupação com a forma, no lirismo, na exatidão do uso das
palavras.
E as influências para seus textos não vinham só da
literatura: cinema, teatro, música, tudo podia influenciar um
texto. Caio chegou a dizer, certa vez, que devia ser
insuportável para Academia, e também para a crítica, lidar
com um escritor que confessava que o trabalho do Cazuza e
da Rita Lee foram influências muito maiores que Graciliano
Ramos. "Isso deve ser insuportável. Você compreende? Isso
não é literário. E eu gosto de incorporar o chulo, o não-
literário", disse.
Fosse o que fosse que o inspirasse, ele anotava sempre
em caderninhos. Sonhos, frases-ímã. "Eu vou magnetizando
coisas no inconsciente, coisas do dia-a-dia, coisas que
magicamente as pessoas vão te dizendo", disse em uma
entrevista. De forma intuitiva, pouco metódica, tudo ia
fermentando, amadurecendo, até que surgia uma história
inteira, redonda.
Como ele gostava de escrever com música, às vezes
tentava apanhar no texto o ritmo daquela música, fazer uma
"coreografia verbal" para ela. Muitos de seus contos vêm com
o aviso: para ler ao som de. Pode ser Keith Jarrett, Angela Ro
Ro, Rolling Stones. E Caetano Veloso, sempre, cujo verso
"como é bom poder tocar um instrumento" Caio estava
sempre repetindo. Ele adorava essa frase. Como era bom
poder tocar um instrumento, pensava, como era bom poder
escrever, ter essa arma para lutar contra as agruras do
mundo.
E o instrumento estava afinado, e tinha seu público. Até
cachê adiantado estava recebendo: Luiz Schwarcz, então na
Brasiliense, propôs um adiantamento a Caio para que ele
escrevesse um romance. Caio já ruminava a idéia há três
anos, a idéia para Onde andará Dulce Veiga. Era só sentar e
escrever. Mas as coisas não eram bem assim com Caio; ele
tinha seu próprio ritmo, que por sua vez era ditado pelo ritmo
do texto, quase uma entidade independente. Muitos
escritores afirmam que o que fazem é captar uma idéia e
escrevê-la; são simples canais de transmissão da arte. Por
mais que Caio trabalhasse duro, o texto viria quando tivesse
que vir, e isso só foi acontecer em 1990, quando, depois de
anos enrolando, escreveu o livro em dois meses e o publicou,
já então pela Companhia das Letras.
Enquanto não escreve Dulce Veiga para a Brasiliense,
Caio sofre mais uma decepção. Viaja a São Tome das Letras
com Pedrinho, mas lá discutem muito, brigam, diferenças
saltam à tona. Queriam ir embora, mas o pneu furou, o
motor pifou, tudo errado. E a relação que durara nove meses
acabava assim. E como má notícia sempre anda de mãos
dadas, Caio sabe da morte de Fernando Zimpeck, um ator
gaúcho. Galizia já tinha ido. As informações ainda eram
poucas, as pessoas morriam muito rápido. E ser gay ainda
era sinônimo da peste. Para piorar um pouco mais, amigos
começam a ligar, a deixar recados na secretária eletrônica,
preocupados. Estava rolando o boato de que ele também
estaria com aids. Baixo astral total, mas pelo menos as aftas
sararam, os gânglios que tinham aparecido diminuíram. Caio
se sentia saudável, parecia saudável, e os boatos eram
infundados — ao menos aparentemente.
Ruim mesmo era a falta de auto-estima que às vezes
aparecia. Sempre com muito humor, mas dava para perceber
uma certa tristeza, uma certa carência por trás de suas
brincadeiras. Em carta a Jacqueline:

"Abobrinha 2 (somente para iniciados):


Abobrinha 2a. S'as o que o Caio Fernando Abreu disse
quando viu o Jaburu do outro lado da calçada?
— Como é que estou do outro lado, se estou aqui?
Abobrinha 2b. S'as o que o Jaburu, do outro lado da
calçada, fez quando viu o Caio Fernando Abreu? Gritou:
— Jaburú-ú!"
Em 1986, Caio abandona a Around — que agora não se
chama mais Around, e sim A-Z — e vai trabalhar em O Estado
de S. Paulo. Vai fazer o que sabe: crítica cultural, cinema,
literatura, música. É a época da criação do Caderno 2, o
suplemento de cultura; pela primeira vez, o sisudo diário
recebia jovens para fazer um caderno do tipo, e o editor é Luiz
Fernando Emediato, paladino do Oeste, amigo dos tempos de
ditadura e jornais nanicos. Emediato e Caio, que tinham
perdido contato, começam a se ver todo dia, mas naquela
incômoda posição de chefe e subordinado. Caio não gostava
de receber ordens, de cumprir deadlines, de se preocupar
com horários de fechamento. Emediato precisava fazer tudo
isso, precisava botar o jornal na rua. E quando cobrava
resultados de Caio, este era seco, mal-humorado, frio. Para
ele, Emediato tinha se entregado, se vendido ao sistema,
talvez; era o chefe engravatado e careta.
O Caderno 2 não era fácil de se editar. Como era um
caderno de cultura em geral, havia vários grupinhos: o
pessoal do teatro, o pessoal do cinema, da literatura, da
música. Ninguém se misturava muito. Caio tinha sua turma:
José Márcio Penido, amigo de muito tempo, agora dividia a
redação com ele. Havia outros. E Caio estava sempre pronto a
defender seus amigos, mesmo os que não trabalhavam no
jornal, quando achasse necessário. E mesmo que não fossem
amigos: ele rodava a baiana sempre que achava que alguém
estava sendo injusto. Emediato, por exemplo, gostava de
implicar com o grupo de rock Titãs. Em qualquer crônica ou
texto, ele dava um jeito de enfiar os Titãs no meio e fazer uma
brincadeira, uma palhaçadinha, uma alfinetada de leve. Caio,
que adorava o grupo, se mortificava. Por quê?, perguntava.
Por que essa implicância com os Titãs? Ele, sempre tão bem-
humorado, não tinha humor nenhum nessas questões; levava
a sério demais a defesa do trabalho e da arte das pessoas que
admirava.
Por essa época, Caio trabalha também na peça A
maldição do vale negro, junto com Luiz Arthur Nunes. A peça
é inspirada no texto que Caio escrevera, aos 13 anos de
idade, para o concurso de redação em sua escola — A
maldição dos Saint-Marie, que foi publicado mais tarde, em
Ovelhas negras. Caio e Luiz Arthur passaram todo o Carnaval
de 1986 trabalhando e brincando com a idéia de melodrama.
Escreveram o texto e Luiz Arthur dirigiu a peça, que ganharia
o Prêmio Molière de teatro, em 1989.
Nesse período, Caio escreve também o roteiro do longa-
metragem Romance, dirigido por Sérgio Bianchi. O escritor e
Sérgio, porém, já tinham desistido de morar juntos. Sérgio
era, às vezes, muito louco, muito intenso, e Caio também não
era uma pessoa muito fácil... O escritor vai então para um
apartamento na Haddock Lobo, onde fica, finalmente, por
vários anos. Vai morar com Antônio Neto, um rapaz que não
conhecia, mas que topara dividir apartamento com ele. Uma
amiga em comum lhe pedira que acomodasse Caio por uns
tempos, e Antônio disse que não se importava. Na verdade,
ele se importava, mas quando soube que era o Caio, a coisa
mudou de figura. Antônio era gaúcho e tinha morado no
mesmo bairro do escritor em Porto Alegre. Fã de sua obra,
achou o máximo ver o desfile de pessoas que se tornou
comum no apartamento depois da vinda de Caio: "atores,
atrizes, escritores, vagabundos, poetas, artistas plásticos,
veados, lésbicas, gente famosa, gente anônima, alcoólatras
anônimos, alcoólatras famosos, mãe-de-santo, pai-de-santo,
travesti, garçonete, guarda-costas, porteiro de boate, dona de
boate", conta Antônio, talvez com certo exagero, na
introdução de seu livro Mãe na zona. A idéia para a história
surgiu em uma noitada que Caio, Cazuza e ele passaram em
um bar. Caio começara a dar uma de astrólogo e falar do
mapa astral de Antônio. Sabia que o rapaz era ariano e que
seu ascendente era Libra, mas era só. Não sabia as outras
coisas. Foi quando Cazuza interveio e começou a brincar.
Inventou que o Antônio tinha trígono na quarta casa da Lua
em Saturno, o meio do céu em trígono em Urano, e mais um
monte de coisas sem sentido. O rapaz entrou na brincadeira;
disse que, além da Lua e Saturno e Urano sabe lá onde, ele
tinha a mãe na zona. A expressão pegou, e os três passaram
a noite toda discutindo o que era ter a mãe na zona, e por fim
Caio sugeriu que o rapaz escrevesse um conto ou crônica que
ele publicaria. Antônio escreveu, o conto Mãe na zona saiu na
A-Z e fez muito sucesso. Caio insistia para que o rapaz
escrevesse um livro: ele lhe daria toda força. Apenas 19 anos
depois, no entanto, Antônio tomou coragem e escreveu o
livro. E, afinal, o que é ter a mãe na zona? Segundo as
primeiras frases do conto de Antônio, "mãe na zona é errar,
se foder, chorar e se arrepender profundamente. Depois,
começar tudo de novo. Exatamente do mesmo jeito."
Outro que morou com Caio nesse período, início de
1987, foi o ator Marcos Breda, que conhecera Caio uns dois
anos antes, em uma festa na casa da atriz Imara Reis. O ator,
que era também gaúcho, de Porto Alegre, estava em São
Paulo para participar do filme Feliz ano velho, baseado na
obra de Marcelo Rubens Paiva. Breda voltaria a São Paulo no
ano seguinte, para fazer uma montagem da Electra de
Sófocles, dirigida por Jorge Takla, e foi então que dividiu o
apartamento com Caio, durante seis meses. Ali, ele viu
saírem da máquina de escrever vários dos contos do livro Os
Dragões não conhecem o paraíso, que seria publicado em
1988.
O ator também se preocupava com os sumiços de Caio,
dois, três dias sem aparecer, trancado no quarto. Ele então
bolou um estratagema: espalhou talco no chão entre o quarto
de Caio e o banheiro. Assim, quando voltasse da rua, podia
saber se Caio estava vivo ou morto: bastava ver se havia
pegadas. Se o amigo havia saído para ir ao banheiro, ou à
cozinha, era porque estava vivo, e apenas queria ficar
sozinho. Dois dias depois, porém, o talco continuava intacto.
No terceiro dia, o ator tomou coragem e bateu na porta. Lá de
dentro, uma voz cavernosa respondeu: Bom dia, Breda. O
estratagema do ator era bom, e funcionaria com qualquer
outra pessoa. O problema era que Caio tomava comprimidos
para dormir e ficava dois dias literalmente apagado.
Caio convivia bem com a heterossexualidade convicta de
Breda. O apartamento era mais movimentado por causa das
namoradas que o ator levava que pelos casos de Caio. Por
acaso, muitas das meninas que Breda namorava na época
eram bissexuais; Caio gostava de brincar com o amigo,
dizendo que essa era sua forma de exercitar sua bichice sem
culpa.
Um dia, os dois vão a uma festa. Chega um amigo de
Caio, que começa a dar em cima de Breda. Caio, sarcástico,
enterra as esperanças do amigo:
— Desista, meu amor. Todas nós já tentamos.
É por influência de Caio também que Breda vai morar
no Rio de Janeiro, na metade de 1987. Mário Prata estava
escrevendo a novela Helena na Manchete e precisavam de
alguns atores para certos papéis. Caio, que estava
trabalhando com Prata em uma novela de José Wilker que
acabou não se concretizando, indicou Breda, e lá foi ele. O
ator foi para o Rio e não saiu mais. Representou em
adaptações de algumas obras de Caio, como O homem e a
mancha, no teatro, e Sargento Garcia, um curta. Em 2004,
viria a participar, dessa vez como ator e também co-produtor,
junto com Camila Pitanga, da remontagem da peçav4
maldição do vale negro, com direção de Luiz Arthur Nunes.
O livro que Breda viu nascer enquanto morava com
Caio, Os dragões não conhecem o paraíso, é provavelmente o
melhor trabalho do escritor. Os contos apresentam uma
unidade temática, segundo Caio nos diz, em uma pequena
introdução. É um livro sobre amor. São treze contos, e não à
toa — treze é um número cheio de significados místicos,
mágicos, para quem acredita nessas coisas, e ele acreditava.
Já na primeira história, Linda, uma história horrível, ele
aborda o tema que o afligia: a aids. Sempre usando elipses,
sem citar o nome da doença ou do vírus que a causa, ele fala
dos sinais, da degradação do corpo. Um homem vai visitar a
mãe. Doente, e pressentindo, talvez, seu fim, ele chega sem
avisar, e encontra a mãe envelhecida, junto com a cadela
também idosa, Linda.
— Mas vai tudo bem? -Tudo, mãe. -Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da
cadela. Depois olhou outra vez direto pra ele:
— Saúde? Disque tem umas doenças novas aí, vi na
tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro
cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira,
firme?
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do
abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem
camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor
antiga do tapete na escada-agora, que cor? -, espalhadas
embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o
pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se
apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os
joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra
mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheia de
manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada,
iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos,
escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda,
Linda.

Em todos os contos, o escritor aborda seus temas


preferidos: o estranhamento, a solidão, a dor. Seus
personagens vão envelhecendo com ele. Sempre jovens em
Inventário do irremediável, agora há homens de 40 anos —
como o próprio escritor. O estranhamento que sentiam em
relação à cidade grande, muito forte em seus primeiros
contos, agora já é aceito pelos personagens, que, mesmo
solitários, vislumbram esperanças. O texto do escritor está
em sua melhor forma, e isso foi reconhecido: Caio ganha seu
segundo Jabuti por Os dragões.
A repercussão do livro ultrapassa as fronteiras
continentais e chega à Inglaterra, onde John Gledson, o
maior especialista inglês em literatura brasileira, escreve uma
crítica muito elogiosa para o Times, de Londres. Essa crítica
abre portas para Caio: tradutoras e agentes foram procurá-lo;
há interesse em publicar Os dragões em francês, em italiano,
em alemão. A carreira internacional de Caio começa aí, e ele
não vai perder nenhuma chance de conseguir dar certo lá
fora. Até porque isso significa viajar: Inglaterra, França,
Alemanha... Dar uma descansada do Brasil.
As possibilidades são imensas, mas não assim,
imediatas — Levaria tempo até que as coisas se ajeitassem,
contratos, ajustes: Caio só viaja para a Europa no final de
1990. Enquanto a viagem não chega, ele acerta algumas
contas consigo mesmo; depois de cinco anos de espera, é a
hora, finalmente, de se descobrir Onde andará Dulce Veiga.

CINCO

— Eu deveria cantar.
Caio está numa fila de banco, esperando sua vez. De
repente, lhe ocorre a frase: Eu deveria cantar.
Ele corre para casa, excitado. O começo! Ele tem o
começo. E todo o resto.
A idéia, dele e do cineasta Guilherme de Almeida Prado,
já existia há uns dez anos, os rascunhos já tinham uns seis,
o quase-adiantamento para escrever já datava de uns quatro
anos. A idéia inicial era inscrever o roteiro do filme em um
concurso e depois escrever o romance. No entanto, apesar do
roteiro estar terminado, Dulce Veiga não saía. Recusava-se.
Os dragões desistiram de esperar, furaram a fila e foram
publicados antes dela. Mas a idéia para a primeira frase — a
singela "eu deveria cantar" — detonou o processo criativo.
Tudo aquilo que Caio vinha maturando há anos resolveu sair
à tona, com várias mudanças em relação ao roteiro feito a
quatro mãos com Guilherme. Em dois meses, terminou o
livro: escrevia dez, doze horas por dia. Das duas mil páginas
que tinha escrito, no total, tirou umas duzentas. Escrevia,
escrevia, escrevia. Resultado: um belo desvio na coluna. Além
do livro pronto.
O processo é o mesmo que acontece a uma amiga
escritora, Márcia Denser. A mulher com pinta de fatal, a
preferida de Paulo Francis, a devoradora de homens. Alter
ego literário: Diana Marini, a Diana caçadora de seus contos.
Márcia era amiga de Caio desde os anos 70, quando se
trombaram em algum lançamento de livro pela cidade, ambos
com aquele quê de malditos, loucos, sem papas na língua.
Ambos precoces, apadrinhados desde cedo por grandes
nomes: ele por Hilda Hilst, Clarice Lispector e Lygia Fagundes
Telles: ela, por Paulo Francis. Ambos belos: Caio com seu
jeito de Quixote, alto, cabelos lisos, ela loira, loira fatal, rosto
de boneca. Beldades perversas; ficaram amigos. Enquanto
Caio escreveu Sapatinhos vermelhos, uma releitura para
adultos do conto de Andersen, Márcia escrevia sua versão da
Branca de Neve. Ela era a Branca de Neve, cercada de
anõezinhos, cercada de homens por todos os lados. Ele era a
mulher dos sapatos vermelhos, que conseguiu conquistar
três homens com seus sapatos, por mais que os pés doessem.
Eram amigos, Márcia e Caio; ela estava sempre no
apartamento dele.
Enquanto ele escrevia Dulce Veiga, uma aventura no
terreno do romance, que ele só praticara uma vez, aos 18
anos de idade, com Limite branco, ela também se arriscava a
um texto maior, o infantil A ponte das estrelas, e ela o
escreveu em pé, também de dez a doze horas por dia, numa
tentativa de não engordar demais. O fato de os dois — e não
só eles, mas a maioria dos escritores brasileiros da época —
estarem decididos, depois de tantos anos escrevendo contos,
a fabricar romances, não era coincidência. Talvez houvesse
uma necessidade de provar que se conseguia fazer algo de
maior fôlego, algo mais trabalhado, escrito mais com a cabeça
e menos com o coração, com o impulso para o nocaute que
um conto deve ter. E, mais pragmaticamente, era uma
exigência do mercado mesmo, uma questão da época. Os
anos 70 foram todos dedicados ao conto. Havia revistas e
jornais literários, muitos deles nanicos, que os publicavam,
que circulavam, que realmente eram lidos. Nos anos 80, com
o fim da ditadura, acabam os nanicos, e assim um veículo
por onde escoar tanto texto curto. As editoras começam a
preferir romances, porque o leitor médio está mais
acostumado com eles. Rubem Fonseca, por exemplo, grande
contista, publica vários romances nessa época, nem todos
com o mesmo sucesso de crítica que seus livros anteriores de
textos curtos.

Dulce Veiga, a cantora, não era uma invenção de Caio.


Quem a criou foi o escritor Marques Rebelo, que nos anos 30
escreveu A estrela sobe, com Dulce, ainda chamada Dulce
Rodrigues, como personagem. Em 1974, Bruno Barreto faz a
versão do romance para o cinema, e rebatiza a cantora, agora
sim, de Dulce Veiga. O filme é estrelado por Betty Faria e
Odete Lara, que foi amiga de Caio. Assim, ao escrever sobre
Dulce Veiga, Caio homenageia não só Marques Rebelo, um
escritor urbano, como ele, mas também Odete Lara, que aliás
é personagem do livro.
O narrador de Onde andará Dulce Veiga é um jornalista.
Dão a ele a tarefa de encontrar Dulce Veiga, cantora muito
popular que desaparecera vinte anos antes. Ele segue as
pistas, conhece a filha dela, Márcia Felácio, vocalista de uma
banda punk. Entremeando a história, há as menções a Pedro,
um amor do narrador, um amor que foi embora. Os enigmas
vão se resolvendo, um a um. A busca de Dulce Veiga significa
mais para o narrador que um simples trabalho, uma boa
matéria: é a busca de si mesmo. A busca de seu passado,
afinal a primeira entrevista que fez quando chegou na cidade
grande, tantos anos atrás, foi com Dulce.
Não estou absolutamente seguro que, de algum lugar no
interior do apartamento, viessem os acordes iniciais de Crazy,
he calls me, na gravação de Billie Holiday, e poderia ser
também Glad to be unhappy, Sophisticated lady ou qualquer
outra dessas canções roucas, gemidas. Naquele tempo eu não
as conhecia, mas estou certo de que nessa ou na outra vez
perguntei quem era e ela disse que era Billie, e eu anotei, tão
aplicado. Tudo isso que agora parece clichê banal, naquele
tempo — repito e não me canso, porque é belo e mágico na
sua melancolia: naquele tempo — tudo era novo, eu nem
suspeitava das marcas pelo caminho. Afirmo que havia
música, sem medo de mentir, pois mesmo que não houvesse
nada e o silêncio do apartamento fosse cortado apenas pelo
ruído dos carros na avenida São João, lá embaixo — mesmo
que não, que nada e nunca, repito: seria tão perfeito se fosse
exatamente assim como penso que lembro, tantos anos
depois, que ficou como se tivesse sido.
A busca de Pedro é a busca de aceitação do presente. O
narrador tem aids, assim como Pedro teve, e por isso foi
embora; assim como tem Márcia, a jovem cantora. E ela que
dá nome aos bois, e cita a doença nominalmente. Ela o faz
encarar seus gânglios, seus sinais. O encontro com Dulce,
afinal, acontece; mas não é nada do que se esperava; há um
choque. Não há mistério: ela apenas se tinha recolhido a uma
cidade do interior, para viver de acordo com os preceitos da
seita Santo Daime. Ela lhe dá um gatinho de presente, o
gatinho chamado Cazuza, e ele vai embora. E começa a
cantar, enfim.
O narrador começa a cantar. Ele faz, no final, o que
deveria ter feito no começo. Finalmente se aceita, e se
compreende. A doença não é o fim, mas a possibilidade de
um novo começo. Sem querer, pois ainda não sabia que
estava doente, Caio intui em Dulce Veiga o que seria a sua
postura, quando se descobrisse, finalmente, soropositivo:
descoberta da possibilidade de vida.

Toda de branco, Dulce Veiga estava parada na porta


da casa, ao lado do cachorro. Uma arara pousou na árvore
perto dela. Os primeiros raios do sol faziam brilhar aquela
estranha coroa -tiara, diadema — que tinha entre os
cabelos louros.
Pisquei, ofuscado. Ela ergueu o braço direito para o
céu, a mão fechada, apenas o indicador apontado para o
alto, feito seta. Depois gritou qualquer coisa que se esfiapou
no ar da manhã.
Parecia meu nome.
Bonito, era meu nome.
E eu comecei a cantar.

Mas estamos em 1989. Caio ainda não teve coragem de


fazer o que ele chamava de O Teste. Ele via seus amigos
sofrerem, perdeu muitos deles. Uma das perdas mais
sofridas, mais choradas, foi Cazuza. Não em vão, esse é o
nome do gatinho com que Dulce presenteia o narrador no
livro.
Cazuza e Caio foram amigos. Tiveram até um pequeno
rolo, namorico, agarramentos de bastidores. Certa vez, em
um show, Cazuza dedicou Só as mães são felizes a Caio, que
ficou todo orgulhoso. No final do show, vai até o camarim e
dá uns bons amassos no amigo. Eles se gostavam, se
admiravam. Iam juntos a bares trash, como Vai Improviso, do
travesti Andreia de Maio. O bar era o que se podia chamar de
barra pesada: tiroteios, tráfico de drogas. Muita gente não
encarava, mas Caio preferia esse bar aos chamados guetos
gays. Caio odiava esses guetos, odiava boates e saunas
exclusivamente gays.
Caio sofreu muito ao acompanhar a decadência física do
cantor, e foi um dos mais indignados com a capa da Veja que
expunha uma foto de um magro e pequenino, porém altivo,
Cazuza, com a manchete: "Cazuza: Uma vítima da aids
agoniza em praça pública". A tal manchete foi uma confusão,
e o final da matéria também, em que se desmerecia o
trabalho do cantor, dizendo que ele não era gênio coisíssima
nenhuma. Vários artistas e intelectuais elaboraram e
assinaram um manifesto contra a revista. A jornalista que fez
a entrevista se demitiu, afirmando que escrevera uma matéria
equilibrada; o final e a manchete problemática seriam
responsabilidade dos editores.
Quando Cazuza morreu, Caio chorou potes. Viajou até o
Rio para o enterro. Apareceu com uma coroa de flores
enorme, e ficou em seu canto, chorando, chorando. Desde
então, sempre que fosse falar de aids, e da maneira de lidar
com ela, citaria o cantor, a admiração que sentia pela forma
como ele encarara a doença -aberta, tentando eliminar os
preconceitos. Foi mais uma das grandes perdas quç
assombrariam Caio até o fim de seus dias, como o fora a
perda de Ana Cristina César.
Afora as tristezas, Caio ia tocando a vida. Apresentou,
por uns tempos, um programa de crítica literária na TVMix,
uma programação da TV Gazeta, dirigida por Fernando
Meirelles, que ainda não era o aclamado diretor de cinema.
Na literatura, saiu uma coletânea de seus contos chamada
Mel & girassóis, organizada por Regina Zilberman, uma
estudiosa da obra do autor, pela editora Mercado Aberto. No
teatro, novas adaptações de Morangos mofados: já tinha
havido a primeira, feita por Paulo Yutaka, amigo querido que
também viria a morrer de aids. Luciano Alabarse também
fizera a sua, em Porto Alegre. E agora era montada uma na
Bahia.
No apartamento da Haddock Lobo, os amigos
continuavam a aparecer. Em 1989, andou pelo apartamento
de Caio o ator gaúcho Renato dei Campão, que já conhecia o
escritor desde a primeira montagem de O leiteiro, em 1983.
Renato não atuava na peça, mas estava sempre com o grupo.
Antes dessa época, Renato já cruzara com Caio pela noite de
Porto Alegre, mas tinha um certo medo dele: o comentário
geral era que o escritor era uma pessoa extremamente
intelectual, fechada, séria; arrogante, para dizer em uma
palavra. Na conversa de bar, anos depois, é que Renato
descobriu quão engraçado Caio podia ser. De um humor
negro, negríssimo, mas engraçado.
Renato descobriu também o lado temerário de Caio, o
lado que gostava de ir a bares barra pesada, freqüentados por
personagens do maior submundo da noite. Era nessas
aventuras que Renato o acompanhava. Vamos pegar pó?,
dizia Caio. Vamos, respondia Campão, pronto para qualquer
coisa. Vamos beber? Vamos pegar um michê? Vamos comer
churrasquinho (às sete da manhã, depois de passarem a
noite bebendo) ? Vamos, dizia Campão; com ele não havia
tempo ruim. Era isso que Caio apreciava nele: sua disposição
para aventuras.
Em 89, ele convidara o ator para se hospedar em seu
apartamento em São Paulo, prometendo arrumar um
emprego na capital paulista para ele. Nessa época, o
apartamento de Caio era um lugar agitado: visitas a toda
hora, amigos vindos de todas as partes, e a secretária
eletrônica com os recados mais ilustres: Caio, aqui é a Regina
Duarte, me liga. Mesmo com tantos contatos, o emprego para
Campão nunca veio. Caio se enrolou, mergulhou em uma de
suas muitas crises depressivas, e menos de um ano depois de
ter saído de Porto Alegre, Renato voltou.
Por ser amigo mais de farras noturnas, Renato
presenciou algumas cenas em que Caio, bêbado, armava
barracos escandalosíssimos. Ele diz ter presenciado uma
cena, uma vez em Porto Alegre, em 1987, no bar Líder. Ele e o
escritor estariam conversando animadamente no balcão, o
lugar lotado. Caio gesticulava e falava alto, empolgado com o
assunto que discutia. Atrás dele, havia uma mulher de
cabelos compridos, que volta e meia batia sem querer a
bunda em Caio. O escritor teria se irritado com aquilo, e em
certo momento virado para a mulher e dito: sai daqui. Ela
não deu bola. Algum tempo depois, ele viraria de novo: tu não
vai sair daqui? Ela nada. Mais uma vez: tu não vai sair
daqui? Como a mulher não saía, e continuava encostando em
Caio, ele decidiu. Calmamente, enquanto conversava com
Campão, o escritor acendeu o isqueiro, levantou-o atrás da
cabeça e ateou fogo nos longos cabelos da inconseqüente
figura, que não sabia manter o próprio traseiro no lugar. A
mulher se pôs a gritar, mas nada aconteceu a Caio. Ele
continuou tranqüilamente a conversa, e ela nada fez em
represália, talvez com medo de uma atitude ainda mais
agressiva.
A agressividade de Caio vinha à tona, de vez em quando,
até na relação com os fãs. Por mais que adorasse ser lido, de
vez em quando o mau humor o dominava. Muitas meninas e
meninos o assediavam, admiravam sua obra, e vinham falar
com ele. Uma vez, em Porto Alegre, uma garota veio dizer que
era fã de Caio. Fazia um frio enorme, e ele e o amigo Luciano
Alabarse saíam do cinema. A resposta veio rápida e ríspida:
— Não quero fãs, quero amantes.

Em 1989, em outro período, também foi morar com Caio


por uns tempos Ivan Mattos, o ator, namorado do início dos
anos 80. Moraram juntos por alguns meses — agora bons
amigos, apenas — até que o gênio de Caio e o temperamento
de Ivan se trombassem de vez e os dois brigassem feio, dessa
vez para sempre.
Ivan estava no apartamento. Caio chegou bêbado em
casa, ele e a amiga Déa Martins, uma produtora de eventos
também gaúcha, que ele conhecera poucos anos antes. Déa
era divertidíssima, adorava Caio, e os dois se juntavam
sempre para falar bobagens, e também para fazer loucuras,
às vezes. Déa presenciou a briga de Caio e Ivan, por causa da
menção do escritor de chamar um michê pelo telefone. Caio
deu um tabefe em Ivan, que ficou magoadíssimo e foi embora
no outro dia, sem dar mais notícias, enquanto o escritor se
corroia em culpa.
Todos esses conflitos Caio discutia com seu terapeuta,
Ronaldo Pamplona. A terapia o ajudava demais. Também,
sofrendo uma desilusão amorosa por semana, era preciso
mesmo um pronto-socorro emocional de vez em quando.
Porque por mais que dissesse que aquele tal era o último
amor, ele estava sempre se apaixonando de novo. E de novo.
E quebrando a cara, bem, de novo. Houve alguns casos até
duradouros, inclusive um que ele mencionaria mais tarde,
numa entrevista à Marie Claire, como sendo a provável pessoa
de quem ele pegara aids. Um bailarino, uma pessoa
conhecida que viveu na Suécia, e que morrera em 1989 em
decorrência da síndrome. Desde então, afirma Caio na
entrevista, ele não se descuidou mais. Os amigos afirmam, no
entanto, que era impossível saber como Caio contraíra a
doença, porque, embora fosse recatado a maior parte do
tempo, apaixonado por alguém, de vez em quando tinha uns
surtos de galinhagem, como dizia. E na noite, na loucura,
bêbado, bem, é difícil afirmar que ele se protegia sempre.
Embora não fizesse o teste, ficava paranóico sempre que
aparecia alguma pequena doença. Primeiro, uma infecção nos
ouvidos que não sarava nunca; depois, um herpes-zóster. As
pessoas diziam que era paranóia dele, que aquilo era apenas
seu corpo colocando as inseguranças para fora, e assim ele
seguia vivendo.
Além da terapia, Caio continuava a manter sua
espiritualidade viva, através dos rituais mais variados. Falava
sempre com sua mãe-de-santo, D. Sônia, no Rio de Janeiro.
Jogava taro, / Ching. A beleza dos rituais o fascinava, talvez
mais que a fé, crença em algo maior. E assim, pela beleza do
ritual, ele chegou a freqüentar também o Santo Daime, que
virou moda entre os intelectuais e artistas do Rio e de São
Paulo no final dos anos 80. O Daime é uma substância
alucinógena, em torno da qual se formou uma seita na
Amazônia. Quem participou do ritual original afirma que o
que se fazia no Rio era uma imitação tosca do que acontecia
nas selvas amazônicas. Enfim, era uma forma de tentar
contatar a divindade, e Caio tentava. O Santo Daime está
presente em Onde andará Dulce Veiga; não por acaso, o livro
é dedicado a Cida Moreira, cantora e amiga de Caio, que
participara dos rituais originais na Amazônia. Caio a
entrevistou exaustivamente para saber como era tudo, e usou
essas informações no livro. O jornalismo até que servia para
alguma coisa, afinal.
Uma das pessoas que influenciou Caio a tentar o Santo
Dai-me foi Vicente Pereira, dramaturgo, amigo e parceiro de
trabalho de Mauro Rasi, ligado ao movimento do teatro
besteirol que surgiria depois. Vicente foi um dos autores do
famoso programa de humor TV Pirata. Ele e Caio foram
grandes amigos; os melhores que se pode haver. Eram almas
gêmeas, de uma certa forma: o mesmo humor, a mesma
espiritualidade, a mesma forma de encarar a vida. Quando
Vicente morreu, de aids, anos depois, Caio diria que sua
ausência era a mais dolorida. Era seu melhor amigo, seu
grande colega. Vicente tinha uma forma de encarar as coisas
voltada ao desapego: não acumulava coisas; acreditava que
quanto mais desse, mais retornaria a ele. Com essa filosofia,
influenciou pelo menos mais uma pessoa: Miguel Falabella,
também ligado ao teatro. Caio, quando o conheceu, vivia esse
desapego; talvez não de forma consciente, talvez não como
filosofia de vida, mas era assim que ele era: não conseguia
juntar nada, comprar um carro, um apartamento, acumular
bens. Estava sempre trabalhando, e sempre sem dinheiro.
Era um sucesso como escritor, dava oficinas de criação
literária, fazia copidesques, traduções, free-lances, e estava
sempre sem dinheiro. Generoso, dava constantemente
presentes aos amigos; um livro, uma pintura, um anel;
quando menos se esperava, ele podia virar e se oferecer para
pagar a conta de todo mundo no bar. Era assim que ele era.
E Vicente também. Não poderiam deixar de ser amigos.
A semelhança era tão óbvia que as pessoas em volta
percebiam. Muito antes de Caio e Vicente se conhecerem
pessoalmente, eles já se conheciam dos relatos dos outros.
José Márcio Penido dizia: Caio, você precisa conhecer o
Vicente. E ao Vicente: Vicente, você precisa conhecer o Caio.
José Márcio fez a ponte, por muito tempo, entre os dois.
Sabia que, no minuto em que se encontrassem, se adorariam.
E assim foi. Amigos até o fim. Há uma frase de Vicente, tão
repetida por Caio, que muita gente chega a achar que é dele:
"Quando duas ou mais pessoas estiverem reunidas em nome
de Deus, eu estarei no meio delas. Mas sempre com um
decote bem profundo."
Caio brincava com Vicente, dizia que ele era a
sacerdotisa do Daime. Era só o Vicente entrar em alguma
seita, credo, filosofia ou religião e, dois meses depois, já
estava comandando as reuniões, com algum cargo ou posto
importante. Sacerdote, sacerdotisa. A relação de Caio com
essas coisas era sempre mais descompromissada. Ele não
assumia que fazia parte da seita, estava sempre como
visitante, como turista. Não fazia parte de seu temperamento
se comprometer a fundo com as coisas — namoros, religiões,
empregos. Por um lado, isso era triste: lhe dava uma solidão
tremenda, às vezes. Por outro, a liberdade que tinha lhe
permitia ir aonde fosse sem dar satisfações a ninguém. E
assim foi, quando Caio decidiu ir para a Europa, em 1990,
para lançar seus livros.
E como Caio queria ir para a Europa... Os tempos aqui,
como sempre, não eram fáceis. Collor tinha ganhado as
eleições. Aquilo desanimava Caio, e muita gente também.
Antes do segundo turno da eleição, em 1989, o Jornal do
Brasil pediu a Caio que escrevesse um perfil de Collor; Márcio
Souza escreveria o de Lula. Caio escreveu o texto, mas ele
nunca chegou a sair. Segundo o escritor, foi considerado
ofensivo demais pela direção do jornal. Foi publicado depois
pelo jornal alternativo Verve, e Caio o republicou, anos mais
tarde, em Ovelhas negras.
O texto era um conto. Falava de um menino, Fernando,
que tinha um encontro com um outro menino, um ruivo, com
todas as características de ser o demônio. O menino
Fernando faria um acordo com o diabo para dominar a todos.
Se fez bem ou não em não publicar o texto, não dá para dizer;
mas a direção do JB acertou, ao menos, em afirmar: era
ofensivo, sim. E tinha que ser, diria Caio, se pudesse. Quase
como se adivinhasse o que viria depois: a roubalheira, o
impeachment, os caras-pintadas.

— Para possuir todos, você foi o escolhido — o


menino disse. E curvando-se mais: — Pense bem,
Fernando. Vou perguntar pela última vez. Tudo isso, você
quer?
Ele voltou a cabeça até mergulhar os olhos no verde sem
limites dos olhos dos outro. E aceitou:
— Quero.
[...]
— Você é o escolhido, Fernando. Dentes agudos
picaram seu pescoço.
— Mais fundo-pediu.
— Daqui a trinta anos, meu bem-amado — o menino
ruivo gemeu. E num movimento mais brusco explodiu
dentro dele, enchendo-o de ouro líquido. Aquele mesmo
que, trinta anos mais tarde, sairia por sua boca escolhida
para chover sobre as cabeças e corpos de todos aqueles
homens e mulheres que o aplaudiriam como o cavaleiro
andante, um príncipe, um rei. Um deus coroado pelo lado
mais negro de todas as coisas. Molhou as pedras num jato
prolongado de prazer-o primeiro.
— Como é seu nome? — perguntou então.
Astaroth, imaginou ouvir. Só imaginou. 0 menino
ruivo tinha desaparecido ao sol do meio-dia em ponto,
quase dezembro de uma segunda-feira, dia de Exu, nas
pedras do Arpoador.

Em novembro de 1990, Caio finalmente viaja à Europa.


Vai a Londres lançar a tradução inglesa de Os dragões não
conhecem o paraíso — Dragons dont go to heaven — em uma
feira de cultura brasileira. Foi notícia por lá: deu entrevista
para a revista Time, para o jornal The Independent, para a
Time Out, para a rádio BBC. Depois de divulgar seu livro, Caio
foi correr atrás de lugar para morar e emprego.
Quarenta e dois anos de idade, nove livros publicados,
uma tradução inglesa, e lá estava o Caio procurando emprego
de garçom, para conseguir passar mais um tempo na Europa,
até o lançamento da edição francesa do livro, que só
aconteceria dali a quatro meses, em março. Por essas e
outras é que a figura de Caio é tão associada a de D. Quixote
de La Mancha. Clarice Lispector, que primeiro lhe deu o
apelido (você é Quixote! Você é Quixote!, Clarice lhe
sussurrava no ouvido, ao seu lado, enquanto ele autografava
livros, em algum lançamento), e provavelmente pensando em
sua aparência, sua barbinha, nem imaginava o quanto o
termo colaria em Caio, lhe assentaria bem como uma roupa
feita sob medida. O quixotismo dele estava presente em seus
ideais, ideais nobres, de lealdade e busca de um mundo
melhor, e também na maneira trôpega de lutar por eles, a
maneira errada, desajeitada. Às vezes, combatia moinhos de
vento, e a chance de sucesso parecia ser zero, mas ele
continuava lutando. Na ida à Europa, ele não tinha dinheiro
nenhum; viajou com a passagem que havia ganhado do
prêmio Molière pela peça A maldição do vale negro. Se
quisesse ficar lá, teria que batalhar um emprego, um
subemprego qualquer, já que, com sua inabilidade em lidar
com questões materiais, não tinha nenhum dinheiro
guardado para segurar a barra nessa hora. No fim das
contas, ele fez alguns free-lances para jornais no Brasil e,
assim, quixotescamente, fez sua carreira internacional.

Em Londres, Caio estava feliz: visitou a casa onde


morou Virgínia Woolf; foi até o rio Ouse, onde ela se matou;
pegou uma pedrinha do jardim dela. Comprou um casaco,
que seria seu companheiro por anos, um casacão de soldado
alemão no mercado de Camden, por uma pechincha.
Comprou uma máquina de escrever usada, uma Smith-
Corona, com a qual passou a escrever cartas aos amigos,
sempre sem acentos — o teclado era britânico. Seguindo o
costume de dar nomes às suas máquinas de escrever, essa
ele chamou de Dorothy.
Caio fica uns tempos na casa de Ray, seu editor na
Inglaterra. Ray, um irlandês, mora num bairro negro, o
Brixton, uma espécie de Harlem londrino, como Caio o
descreve. "Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you
little devil! I’ll kill you, bastard: para nigrinhos. Grita mais
coisas que não entendo, mas me soam mais para David Lynch
do que para T.S. Eliot. ", escreve a Jacqueline Cantore. Ele
sente que os tempos são difíceis, que tudo é perigoso, como
São Paulo era; a única diferença é que na Inglaterra as
pessoas sofrem a crise com mais estilo.
Em Londres, além de ver muitos filmes e ler muitos
livros — seu inglês vai se soltando mais e mais — Caio fica na
espera dos compromissos que tem a cumprir: algumas
leituras e palestras na Inglaterra; depois, em março de 1991,
o lançamento da edição francesa de Os dragões. Enquanto
isso, ele sonha. Escreve a Magliani: "Depois desta, quando
voltar ao Brasil, queria demais começar a providenciar uma
mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde
eu possa plantar rosas. Isso é FUNDAMENTAL. Quero porque
quero cultivar roseiras." Nessa carta, ele conta ainda à amiga
que planeja escrever um livro chamada Histórias
estrangeiras. Seriam histórias sobre a condição de ser um
estrangeiro, e não só em outras cidades, mas no mundo. O
livro viria a ser publicado, postumamente e incompleto, pela
Companhia das Letras, com o título — já modificado por Caio
— de Estranhos estrangeiros.
Porque ele era, acima de tudo, um estrangeiro. Em São
Paulo, sentia que a cidade o sufocava, a violência, a poluição.
Em Porto Alegre, não agüentava o moralismo das pessoas.
Em Londres, quando se achava que tudo estaria bem, afinal,
era a Europa, ele achava tudo frio demais. Havia sempre um
motivo para não gostar do lugar, e Caio começou a perceber
que ele seria, sempre, um estrangeiro. Mesmo aprendendo a
gostar do Brasil, ele jamais deixaria de ser um gaúcho, um
gaúcho da fronteira, um homem sem lugar. "No fundo, nunca
saí de Santiago do Boqueirão", escreve, na mesma carta, a
Magliani.
Assim que aceita sua condição de eterno estrangeiro,
Caio pode parar e olhar ao redor e ver que os problemas,
afinal, não estão em Santiago, em Porto Alegre, em São Paulo
ou Londres; a confusão está é nele mesmo. Assim, pode
aprender a amar o lugar onde está, apesar de todos os
pesares, apesar de todos os defeitos. E é assim que Caio
começa, finalmente, a amar o Brasil. Com todas as crises e
dores e terceiro-mundismos, Caio ama e odeia o Brasil.
Sobretudo ama. E o descreve muito bem, o seu Brasil, o
Brasil urbano, das grandes cidades, em Onde andará Dulce
Veiga. E é isso que encantará os franceses, quando o livro for
lançado lá: o retrato de um Brasil urbano, violento, mas
também poético; diferente, talvez, dos clichês que se costuma
apregoar do país. Como no trecho seguinte, em que a
metrópole é o pano de fundo para suas lembranças:

O motorista japonês tentou puxar conversa, mas


respondi com um grunhido, ele desistiu depois de comentar
que ia cair a maior água. Afastei o banco para trás, estendi
as pernas, abri mais o vidro. Ele ligou o rádio, rezei para
que não sintonizasse num daqueles programas com
descrições hiper-realistas de velhinhas estupradas, vermes
dentro de sanduíches, chacinas em orfanatos. De repente a
voz rouca de Cazuza começou a cantar. Vai trocar de
estação, tive certeza, mas ele não trocou. Isso me fez gostar
um pouco dele, tão oriental, talvez budista, e pedi que
aumentasse por favor o volume, deitei a cabeça no encosto
de plástico pegajoso e por quase um segundo, muito
rapidamente, enquanto o carro rastejava pelo trânsito
difícil, sobre o asfalto em brasa, a camisa molhada, a pilha
de laudas virando pasta entre meus dedos, fechei os olhos,
o vento soprava na minha cara, secando o suor, e por
quase um segundo, outra vez, como quem de repente
suspira ou pisca e segue em frente, veloz feito uma
mariposa que cruza subitamente o ar nas noites de verão, à
procura de luz acesa para girar em torno, como quem
apaga ou acende uma dessas luzes para perceber no quarto
vazio apenas a vibração de asas que restou no ar, não o
inseto que já foi embora, no fundo turvo do pensamento, eu
queria ver no escuro do mundo, sem querer nem provocar
ou conduzir, por quase um segundo, finalmente, dentro do
táxi que descia em direção ao Ibirapuera, lembrei então de
Pedro.

Com o sucesso do livro na Europa, Caio começa a


sonhar alto. Dulce Veiga é uma história super-
cinematográfica; e se algum diretor francês se interessa e
resolve comprar os direitos? E se o Almodóvar se interessa, lá
na Espanha? Caio está brincando quanto a isso, claro; mas
ele brinca principalmente para convencer o amigo Guilherme
de Almeida Prado, cineasta, a fazer o filme. O livro, afinal de
contas, surgiu da idéia dos dois para um filme. Caio chegou a
pedir para uma amiga cantora, Laura Finocchiaro, musicar
uma letra que ele fez. Laura fez a música, e a gravou, anos
depois. Chama-se Poltrona verde.
Laura é uma das três irmãs Finocchiaro, gaúchas, todas
artistas. Débora é atriz. Laura, cantora. A outra irmã, Lory E,
era roqueira, tinha a sua banda, a Lory E Band, e era muito,
muito maluca, e muito amiga do Caio. Com trinta e poucos
anos, morreu de aids. O personagem Márcia Felácio, filha de
Dulce Veiga, vocalista da banda Vaginas dentatas, é um
pouco inspirada em Lory. Inspiração, e homenagem. Caio
adorava cantoras. Era amigo de muitas delas: Laura, Cida
Moreira, Adriana Calcanhoto. Escreveu releases para discos
de Laura e de Cida, sem cobrar por isso. De Cida, era um dos
melhores amigos. A Adriana Calcanhoto, "deusa", ele
admirava demais; nas outras vezes em que esteve na Europa
— sim, porque Londres em 1990 era apenas o começo —
escreveu algumas cartas a ela, contando de suas
experiências, e sempre fazendo referências ao álbum Senhas,
da cantora. Caio amou o álbum; seria uma das únicas
fitinhas que ele levaria para ouvir no walk-man, e a ouvia sem
parar. Chorava sempre na parte do "eu ando pelo mundo,
prestando atenção em cores..." Em homenagem a Caio,
Adriana escreveria mais tarde a canção Alegre, gravada por
Vânia Bastos.
E Caio não gostava apenas de cantoras sérias, como
Adriana, Cida ou Marina Lima. Em uma de suas viagens à
Europa, ele levou a fita da dupla pop-humorístico-sertaneja
Xicotinho & Salto Alto, que fez sucesso com a canção Doida
demais. Stella Miranda, atriz paulistana, asfalto nas veias, fez
a dupla com a cantora Katia Bronstein, apenas de farra.
Nenhuma das duas tinha qualquer ligação com o interior ou
com a música caipira. Stella participou, como atriz, do
primeiro besteirol da história dos besteiróis. Era a peça As
1001 encarnações de Pompeu Loredo, escrita por Vicente
Pereira e Mauro Rasi, em 1980. O teatro besteirol fazia
crônicas sobre o cotidiano, comédia de costumes; tinha o
humor contundente e criticava a sociedade. A crítica, no
entanto, não assimilava. Diziam que era bobagem, besteira, e
foi aí que surgiu o nome "besteirol". Vinte anos depois,
surgiria uma nova tropa de atores e autores de teatro
inspirados no movimento. Grace Gianoukas, amiga de Caio,
faria sucesso com o espetáculo Terça insana. Em 2006, o
espetáculo entraria no quinto ano de apresentações, sempre
com mais e mais fãs. O público e a crítica estariam prontos,
finalmente, para esse tipo de humor.
Apesar da sua amizade com as cantoras, e com Laura, e
de até a música estar pronta, Caio não viu Dulce Veiga virar
filme. Guilherme de Almeida Prado não conseguiu filmá-lo
naquela época; as dificuldades de se fazer cinema no Brasil
eram imensas; não havia dinheiro. O projeto só foi iniciado
em 2005, agora sim, com todo apoio das leis culturais, e com
vários atores consagrados nos papéis principais: Maitê
Proença como Dulce Veiga, Carolina Dieckmann como Márcia
E O narrador, que no livro não tem nome, no filme se chama
Caio — uma singela homenagem ao amigo — e é vivido pelo
ator Eriberto Leão.
A relação de Caio com o cinema de Guilherme vem
antes, porém, do projeto de Dulce Veiga. Caio fez uma
pequena ponta no filme Perfume de gardênia, e também leu
dois textos em off — com aquela bela, lenta, cheia e grossa
voz — no filme A dama do Cine Xangai, ambos de Guilherme.
E, como Dulce Veiga era um projeto dos dois, era natural que
o amigo filmasse a história, ainda que muitos anos depois.
Seis meses depois de ter deixado o Brasil, e depois de
passear também pela França, Caio está de volta. Renovado,
decide visitar Maria Lídia Magliani, em Tiradentes, Minas. Vai
acompanhado da amiga escritora Sônia Coutinho. Caio inveja
a vida que Magliani conseguiu montar para si, longe das
capitais, numa cidade pequena, histórica, cheia de belos
morrinhos. Ali Magliani, que é artista plástica, pode pintar e
desenhar com tranqüilidade; além disso, pode cultivar uma
horta, que Caio acha maravilhosa. Ele colhe várias ervas,
suficientes para fazer litros de chá quando voltasse a Sampa.
A tranqüilidade da cidade, no entanto, não impede que Caio
fique doente, com umas pequenas infecções. Quando ele volta
a São Paulo, elas pioram ainda mais. Depois que voltou da
Europa, Caio está com a saúde meio arrebentada. Lá, no frio,
na neve, 15 graus negativos, ele estava bem. Foi só na volta a
São Paulo que seu organismo começou a dar problemas.
Primeiro, uma otite. Depois, feridas em dois dedos da mão
esquerda e um da direita. A médica chamou a infecção de
estreptococcia e achava que não, não era motivo para fazer O
Teste.

Mesmo com as infecções e os namoricos que


eventualmente aparecem, Caio não consegue parar quieto. Dá
palestras em várias cidades de São Paulo, depois mais
laboratórios de criação literária, em Curitiba. Ele fazia pelo
dinheiro, principalmente, e às vezes comentava que preferia
se dedicar somente à sua literatura, mas nem por isso
deixava de fazer o trabalho bem feito. Quem fez oficina com
ele conta: Caio era um professor atencioso, lia o que a turma
escrevia com carinho, sugeria mudanças, dava textos de
Clarice Lispector, como o conto Tentação, para os alunos
lerem, e os discutia depois. A experiência de ter aula com ele
foi marcante para muita gente, mesmo que não tenham
nascido daí, necessariamente, escritores de renome. Um dos
alunos de Caio foi o gaúcho João Batista, que o conheceu na
oficina Anatomia do Conto, ministrada pelo escritor na Casa
de Cultura Mário de Andrade, em São Paulo. João e Caio se
tornaram amigos; nas viagens à Europa que fez, Caio
mandava sempre um postal ou trazia uma lembrança para
ele, como o pôster de uma peça de teatro baseado em Clarice
Lispector: La passion selon G.H, que estava em cartaz na
França.

Além de Curitiba para a oficina literária, Caio passeia


por São Luís do Maranhão e passa o Natal de 1991 em Porto
Alegre, com a família. Como sempre, volta renovado: uma
viagem aos pampas, um contato com as raízes, sempre fazem
de Caio um pouquinho mais feliz. Ele volta preparado para
enfrentar o passado e reescrever Limite branco, seu primeiro
romance, escrito aos 18 anos. A segunda edição do livro sai
em 1994, pela Siciliano. Escreve, também, crítica literária
para a Playboy. Para a Playboy, aliás, Caio escreve ainda um
ensaio sobre a atriz gaúcha Luciene Adami, que atuou na
novela Pantanal, amiga sua e de Ivan Mattos.
Entre uma viagem e outra, o escritor acaba perdendo o
apartamento onde mora. O aluguel subira demais e ele não
tinha como pagar; mesmo assim, enquanto a causa rolava na
Justiça, ele continuou morando no apartamento. Sem se
preocupar demais, afinal, no final de 1992 já estava de
viagem marcada para a Europa de novo. Dessa vez, com tudo
pago: ele era convidado da Maison des Ecrivains Etrangers
(Casa dos Escritores Estrangeiros), que fica em Saint-Nazaire,
para uma bolsa de dois meses. Funcionava assim: ele ficava
dois meses num apartamento todo montado, inclusive com
faxineira, e vales para ir ao cinema e teatro e bares de graça,
mais uma pequena mesada de 1500 dólares; sua única
obrigação era deixar um texto pronto, ao sair, para ser
publicado pela editora Arcane XVII. Antes dele, passaram
pela Maison o escritor argentino Ricardo Piglia, autor de
Dinheiro queimado, e o chileno Reinaldo Arenas, entre outros.
Arenas, na verdade, ficou apenas três dias: tinha medo de se
jogar da janela do apartamento — que ficava num décimo
andar — e foi embora. Seis meses mais tarde, ele realmente
se atirou de uma janela e morreu, em Nova York.
Depois de dez dias em Paris, Caio rumou para Saint-
Nazaire, uma pequena cidade portuária, na França. Foi uma
época de glória para ele: bem tratado, bem alimentado, bem
acompanhado, Caio viveu, por dois meses, um conto de fadas
para escritores. Assim à vontade, no décimo andar de um
prédio defronte ao mar, Caio escreve um ótimo texto, uma
pequena novela chamada Bem longe de Marienbad, publicada
na França e, anos depois, no Brasil, no póstumo Estranhos
estrangeiros.
O texto gira em torno de uma frase que perseguia o
escritor há anos, uma frase de Camille Claudel numa carta a
Rodin:

"Il y a toujours
quelque chose d'absente
qui me tourmente."

"Há sempre alguma coisa de ausente que me


atormenta." A novela, em primeira pessoa, é a história de um
homem que chega a uma pequena cidade na França para
procurar um amor. Ele segue as pistas do homem, vai a seu
apartamento, e por fim descobre a si mesmo, descobre a
busca do outro por si. Originalmente, Caio chamou a novela
de O leopardo dos mares, sendo o leopardo o próprio narrador
da história, o que só se descobre ao final. O texto, permeado
de referências a Arenas e à canção de Barbara e F.
Wertheimer, Marienbad, é delicado e belo, e promete, ao final,
a possibilidade do reencontro e da harmonia.

É fácil descobrir o endereço — dix-sept, rue du Port —, que


me soa romântico com seus erres rascantes ditos pela loura
cinqüentona da portaria. Mais difícil, e ela insiste, seria
explicar por que me vou sem sequer passar uma noite aqui.
Não pelo quarto, madame, pela comida ou qualquer desses
outros detalhes dos hotéis, s'ilvous plaft, mas pelo horror
imóvel das enguias em sua jaula de vidro associado ao
outro horror também imóvel daquela palavra. Pelo risco da
imobilidade eterna, madame, pelo perigo de eu mesmo
permanecer para sempre aqui, igualmente imóvel,
congelado em inúteis delicadezas enquanto tudo ou nada
ou apenas qualquer coisa, mesmo insignificante, se agita e
move e se perde em outro lugar, com certeza madame não
compreenderia tanta ânsia tropical, bien sür.

Desvio o rosto, não devo me deter tempo demais em


meus próprios olhos. Aumento o som da canção, olho para
fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos. Preciso ficar
sempre atento. Ainda não anoiteceu, e alguns dizem que há
castelos pelo caminho.

Na temporada que passa em Saint-Nazaire, Caio grava


um pequeno documentário para a Maison, em que se
entremeiam passagens de sua narração de Bem longe de
Marienbad em off, em português, com imagens dele andando
pela cidade, no frio e nas brumas, com seu capotão
inseparável, e uma entrevista, em um francês bastante
razoável, em que ele fala de suas influências, de literatura, de
cinema, de poesia, de astrologia. É nesse documentário que
Caio fala que, independentemente de se acreditar ou não, a
astrologia é importante para ele na criação dos personagens
de seus textos; cada um tem seu mapa astral desenhado
antes da escrita, e a personalidade bem formulada. Fala
também da importância do cinema em seus textos; diz que,
quando está escrevendo, sempre pensa: onde está a câmera
agora? Ele pensa o texto de uma forma cinematográfica, com
seus zooms, fade-ins e fade-outs, cortes e mudanças de
perspectiva. O documentário é muito bem feito, e dá a chance
a Caio de falar de sua obra, de seus processos de criação;
alguns anos depois, quando se descobrisse doente, ele seria
chamado para muitas entrevistas, só que todas girando em
torno do tema HIV/aids, e aquilo muito o chatearia. Saint-
Nazaire, enfim, era um pequeno sonho, a realização de um
ideal: todo escritor deveria ter aquelas condições para
escrever, pensava Caio.
Enquanto não está escrevendo, ele vai ao cinema várias
vezes, com sua carteirinha de convidado. De vez em quando,
participa de jantares e eventos com os outros escritores
convidados da Maison, uma turma da Estônia, Letônia e
Lituânia, e uma dramaturga tcheca, Daniella, que, segundo
ele afirma em carta, escreveu peças lindíssimas. Faz também
amizade com Marina, a filha de nove anos de idade de seu
editor na Arcane XVII. Marina sabe tudo sobre Van Gogh e
Caio adora conversar com ela. Ele, que nunca teve muita
paciência para crianças, começa a afrouxar. Conversa
também com Isabelle, a gaivota que mora na janela da
cozinha. Caminha na praia, lê. Ouve o álbum Senhas, de
Adriana Calcanhoto, repetidamente. Tudo na mais absoluta
paz.
Caio aproveita esse momento da melhor maneira que
pode, porque no Brasil as coisas estão feias. Ele perdeu
mesmo a causa judicial do seu apartamento, e não tem mais
onde morar quando voltar. Quem cuida de tudo, em sua
ausência, é Gil Veloso.
As pessoas costumam se referir a Gil como secretário de
Caio, porque ele exercia esse papel: ia na padaria, pagava
contas, verificava contratos; fazia de tudo para o escritor. Na
verdade, Gil nunca recebeu um centavo para cuidar do Caio.
Eles eram amigos. Tudo que fazia — nisso os amigos são
unânimes em afirmar — era sem esperar nada em troca, sem
nenhuma segunda intenção.
Os dois se conheceram na metade dos anos 80. Gil era
fã da obra de Caio. Tinha edições de obras do escritor que o
próprio não tinha, que acabavam ficando para ele. Ficaram
amigos. Caio achou aquele nome ótimo: Gil Veloso, mistura
de Gilberto Gil com Caetano Veloso. Visitando Caio,
convivendo com ele, Gil percebeu a dificuldade do escritor em
lidar com as coisas práticas da vida, contas, bancos, papéis.
E foi ajudando, ajudando, até se tornar uma espécie de
secretário. Os dois foram sobretudo amigos, o que nem
sempre era fácil: era preciso paciência para lidar com o Caio,
às vezes. O escritor dizia sempre que Gil era um anjo da
guarda enviado pelos céus para cuidar dele. Gil brincava:
anjo da guarda porque eu guardo suas coisas, é isso? Afinal,
foi Gil que desmontou o apartamento da Haddock Lobo e deu
um jeito de guardar as coisas do amigo em sua própria casa.

O luxo na Maison acabara, mas nem por isso Caio


deixou de voltar à Europa. Em esquemas mais econômicos,
ele viaja para divulgar seus livros, fazer leituras e palestras.
Em janeiro, vai para a Holanda. Amsterdã, depois Kõln e
Frankfurt. Para Amsterdã, ele tem carona; o amigo Sappe
Grootendorst vai buscá-lo de carro. Em 1993, Sappe havia
defendido uma tese sobre a literatura gay no Brasil, para a
qual entrevistou 18 autores brasileiros, entre os quais estava
Caio. Em seu estudo, Sappe constatou que os escritores
brasileiros não gostavam muito que chamassem o que faziam
de "literatura gay". Para Caio, por exemplo, isso não existia.
Graciliano Ramos não era chamado de escritor hetero; porque
ele deveria ser chamado de escritor gay. Em seu caso, a
explicação é que, embora não vestisse a camisa e saísse
gritando palavras de ordem, ele escreveu alguns contos cujos
personagens eram gays ou em que havia sugestões de
homoerotismo. Nada panfletário, mas em algumas situações
os personagens apanhavam, eram criticados, se davam mal
por sua condição. Saíam feridos, mas moralmente vitoriosos.
Um exemplo é o conto Aqueles dois, de Morangos mofados.
Dois rapazes, Saul e Raul, se conhecem ao serem contratados
para trabalhar na mesma firma. A amizade dos dois irrita o
pessoal da empresa e ambos acabam demitidos. Saul e Raul
saem juntos, altivos. A derrota fica reservada para os que
desaprovavam a amizade dos dois:

Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro,


quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no
azul sem nuvens do céu, ninguém mais conseguiu
trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro
tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para
sempre. E foram.

Caio odiava o rótulo de escritor gay, assim como odiava


quaisquer rótulos que pretendessem dar conta de sua
literatura em uma palavra. Escritor introspectivo, escritor de
geração, escritor marginal, quais fossem. Ele não gostava,
como em geral nenhum escritor gosta. Fosse como fosse,
Sappe entrevistou Caio para seu trabalho, e anos depois
traduziu alguns contos dele para o holandês. Agora ele ia
buscá-lo para irem até a Holanda. Entre uma leitura e outra,
Sappe e Caio arrumam tempo para se apaixonarem um pelo
outro e viverem uma breve, porém bonita, história de amor.
Fazem juntos, e à mão, um livrinho com um conto de Caio
traduzido por Sappe, e vendem em várias livrarias gays.
Nessa viagem, Caio vai ainda à França e à Alemanha,
para cumprir compromissos relativos à sua carreira lá fora.
Depois volta ao Brasil. Sem a ajuda que esperava receber dos
amigos, já que estava sem casa e sem dinheiro, segue direto
para Porto Alegre, para fazer um tratamento dentário com
sua irmã Cláudia, que é dentista.

Em junho Caio volta à Europa: Alemanha, para o Interlit


— o Congresso Internacional de Escritores do III Mundo —,
depois Itália, para fazer o lançamento da tradução italiana de
Dulce Veiga em Milão, Gênova e Veneza. Alegria, alegria: um
dos sonhos de Caio é conhecer Veneza. Depois ainda, Berlim.
Entre um compromisso e outro, Caio escreve aos amigos.
Cartões para Adriana Calcanhoto, Luciano Alabarse. Um
cartão rápido, escrito a quatro mãos por Caio e Gerd Hilger,
seu tradutor na Alemanha, para Gilberto Gawronski. No
cartão, Caio conta a Gilberto das leituras de Dama da noite
que ele e Gerd estavam fazendo Alemanha afora. Depois Caio
diria a Gilberto, a respeito de sua performance:
— Acho que você teria orgulho de mim.
Dama da noite é um conto de Caio, que Gilberto
Gawronski, gaúcho, ator, adaptou para teatro e representou
inúmeras vezes. A primeira apresentação da peça foi em
1988, no teatro Crepúsculo de Cubatão, no Rio de Janeiro.
Depois, a peça foi para o Espaço OFF, de Celso Curi, em São
Paulo. Ao longo dos anos, Gawronski a interpretaria ainda em
Porto Alegre, Londres e no Rio. Em 1996, o ator a
representou também na França, em Lyon. Gawronski dirigiu,
montou e atuou tantas vezes nesse espetáculo que é difícil
imaginar uma apresentação de Dama da noite sem o
envolvimento dele; por isso é que Caio disse a Gilberto que ele
teria orgulho dele. O escritor considerava o personagem tanto
do ator quanto dele mesmo, que a tinha escrito.
O posto de musa inspiradora do conto é reivindicado por
várias amigas de Caio. Várias delas acreditam ter sido a fonte
de inspiração para a mulher do conto, a dama da noite que
conversa com um garoto, que ela chama de boy, e conta a ele
sua história, que é a história, na verdade, de todo outsider, de
todos os que vivem à margem da sociedade. O mais provável,
contudo, é que a personagem seja um compósito, um
amálgama da personalidade de todos essas amigas, como
Claudia Wonder, Márcia Denser — a quem o conto é dedicado
— e mais ainda um toque da imaginação do escritor.

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida.


A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo
dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer
nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos
outros. A linguagem que eles usam pra se comunicar
quando rodam assim e assim por diante nessa roda-
gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma
senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá,
por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar
junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora.
Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir
adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade
de estar lá — tá me entendendo, garotão?

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu


perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e
noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo do
seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem
nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos,
contaminar seu sangue com todos os vírus. Cuidado
comigo: eu sou a dama que mata, boy.
Verso do postal:

"Com votos de Novo Ano LINDO p/ você, e toda a troupe da


Sabará, vai minha última foto. Te gusta?"
Na adaptação teatral, a dama da noite vira Dana de
Avalon, um ser ambíguo, mais que uma drag queen, uma
pessoa com uma postura mais agressiva que a do conto, que
fala apenas de uma quarentona que vive pelos bares à caça
de homens. Gawronski se equilibra sobre saltos plataforma
de 14 centímetros, coloca a pesada jaqueta de couro negra, a
peruca vermelha e os longuíssimos cílios e faz o monólogo
sem parar, andando pelo bar, subindo nas mesas ou
correndo. Dana está sempre no controle, ela é experiente, ela
sabe o que faz, embora precise dessa platéia, do boy que a
escute.
Foi com Gilberto Gawronski que Caio assistiu no cinema
ao filme Filadélfia, de 1993, que retrata a história de um
homem com aids, demitido da firma onde trabalhava por
estar doente. O homem, vivido por Tom Hanks, decide
processar a firma, mas custa a achar um advogado que pegue
o caso. Por fim, encontra um advogado homofóbico — vivido
por Denzel Washington —, que no entanto acha injusta a
demissão de Hanks pela empresa. Enquanto corre o processo,
pode-se ver a decadência física do personagem. Uma das
cenas clássicas era a de Tom Hanks ouvindo Maria Callas e
dançando, segurando a aparelhagem do soro. De chorar potes
de lágrimas.
Ao final do filme, assistido no cinema, Caio e Gilberto
saem para a rua. Caio diz:
— Uma vodka pura, né.
Caminham pela Av. Paulista até o Ritz, em silêncio, e
bebem duas doses. Pronto: agora podem conversar de novo,
com o choque do filme amortecido pela bebida.

No final de julho, Caio está de volta a São Paulo. Nos


primeiros dias, fica hospedado na casa de Gil Veloso, mas
logo arruma um lugar para morar, um flat na Frei Caneca. É
um pouco caro, mas o escritor faz questão de um mínimo de
conforto. Preciso ter uma ilusão de segundo mundo — você
sabe que, embora Laika, tenho uma alminha três chie", escreve
a Gerd Hilger. Ao final da carta, um PS: "Falei com Zulmira
Ribeiro Tavares. Um desastre!
Você acredita que ela me acusou de ter sido injusto com a
Raquel (sic) de Queiroz? Manda MATAR (as duas)!"
O episódio a que ele se refere é uma briga que teve na
televisão, ao vivo, com a escritora Rachel de Queiroz, em
julho de 1991. De vez em quando, Caio era chamado para ser
um dos entrevistadores do Roda Viva, da TV Cultura, na
época um programa bastante influente. Naquele dia, a
entrevistada era Rachel, e o apresentador, Jorge Escosteguy.
Já no começo do programa, os entrevistadores questionam a
escritora sobre suas posições políticas, pois Rachel
colaborara com os trotskistas, em certa época, mas depois
apoiara o golpe militar de 1964. Caio já começa perguntando
se ela é reacionária ou comunista. Começa o bombardeio:
— Mas você apoiou o golpe, Rachel? — à resposta
afirmativa dela, ele pergunta:
— Mas você não tinha noção das torturas?
Rachel afirma que ela apoiou o golpe do Castello
Branco, que era seu parente, muito amigo de seu marido.
Segundo ela, Castello não torturara ninguém; só os que
vieram depois. Rachel era contra João Goulart e Brizola, que
chamava de caudilhos.
O programa segue. Caio pergunta sobre literatura, se ela
acha que a literatura brasileira é muito desprezada; a autora
nega. A essa altura, o embate entre os dois é claro. Embora
Caio não faça muitas perguntas, quando as faz, são
provocativas. Quando a escritora defende a presença de José
Sarney na Academia Brasileira de Letras, da qual ela fazia
parte, ele ironiza:
— Quem sabe não convidam o Collor para a Academia...
Ele continua. Pergunta o que os membros realmente FAZEM
na Academia; ela responde que vai lhe mandar o gibi com as
notícias. Quando ela fala da propriedade que tem no
Nordeste, ele pergunta se o latifúndio é produtivo ou
improdutivo. Quando ela fala que o PT continua o que o
Brizola e os caudilhistas tinham de pior, ele se dá o direito de
discordar. E pergunta do Collor:
— Você não acha que o Collor tá dando continuidade ao
que havia de mais lamentável no golpe militar de 64, que você
ajudou?
Ela diz que só ajudou o golpe do Castello; ele retruca,
insiste.
— Se você tá perguntando isso em uma televisão oficial,
quer dizer que há um grau de liberdade muito maior — diz
Rachel. — Desde o Sarney que nós temos essa liberdade.
— Mas é o mínimo.
— Não é o mínimo, não. É porque você é muito jovem e
não passou os tempos piores.
— Tenho 42 anos e estive preso em 68!
— Então você não aprendeu com o tempo, porque
passamos tempos muito piores.
Caio diz que ainda está aprendendo, mas antes que
continue, o apresentador intervém. O programa segue, até
que Caio faça sua última manifestação, a mais polêmica.
— Quero falar uma última coisa. Estou me sentido
muito constrangido de estar aqui. É a última coisa, e eu não
vou me tornar constrangedor. Por várias coisas que você
falou, eu concluo que você colaborou para coisas muito
negativas nesse país, no meu ponto de vista. Compreendo,
todos nós somos humanos, erramos, nos equivocamos, coisa
e tal. Mas eu estou me sentindo extremamente constrangido
de estar na posição de render homenagem ao tipo de ideologia
que eu profundamente desprezo.
— Caio, você tem que fazer perguntas, e não render
homenagens, desculpe — intervém Escosteguy.
— Não, eu só queria dizer isso, eu não tenho mais
perguntas a fazer — diz Caio.
— Eu gostaria de responder a você que nós estamos
num país democrático, eu respeito suas posições e espero
que você respeite as minhas... — diz Rachel.
— Eu respeito, tanto que calo — interrompe Caio.
— ... se as minhas posições são constrangedoras para
você, eu acho também as suas muito constrangedoras para
mim. Realmente, estou sendo exigida de me pronunciar sobre
esses temas que eu não gostaria de me pronunciar, de
discutir isso com você. De forma que é recíproca nossa
posição.
O programa continua, Caio não fala mais nada; só olha
para o papel e rabisca.
A performance de Caio no programa suscitaria debates
sobre o papel do entrevistador e do jornalista na entrevista;
havia quem criticasse e quem defendesse sua posição. Alheio
a tudo isso, Caio, depois de acertado o lugar para morar,
batalha serviços. O dinheiro que sobrou da Europa vai
acabando aos poucos, e é preciso sobreviver. Já faz algum
tempo que ele publica uma crônica quinzenal no Estadão. A
coluna faz bastante sucesso, mas o dinheiro é insuficiente
para Caio se manter. Ele então faz trabalhos como revisar
traduções — mal-feitíssimas, na opinião dele — feita por
catedráticos da USP O pagamento? Um terço do que o
tradutor original ganha. "Laika é laika, sempre será", escreve
a Gerd Hilger.
Em setembro de 1993, depois de lutar contra a aids por
meses, morre Vicente Pereira, o melhor amigo de Caio. Ele
fica triste, triste, mas sente alívio pelo amigo, agora,
possivelmente, em paz. O escritor se lembra de outros que
foram: Orlando, que dividiu apartamento com ele; Galizia;
Cazuza. Mas se lembra também de uma frase que Vicente
repetia, parafraseando alguma atriz de cinema, que o anima
um pouco: "Segura o turbante, meu bem, e sente o ritmo".
Caio segurava o turbante, sentia o ritmo e ia vivendo.
Em janeiro de 1994, Caio pega uma gripe que leva três
semanas para ir embora. Depois uma otite crônica, que se
recusa a sarar. Ele passa o mês praticamente de cama,
doente. Mesmo quando se cura, fica deprimido, sem querer
sair de casa. Mas tem que se levantar logo: afinal, daí a pouco
é hora de ir para a França de novo, lançar os livros. Afinal,
como escreve a Gerd Hilger: "Não se pode ser infeliz, não se
pode morrer em vida, não se pode desistir de amar, de criar.
Não se pode: é pecado, é proibido — verbotten, não é assim em
German? Não é possível adiar a vida."
Em março de 1994, Caio volta a Paris. Seus livros vão
indo bem no país, e ele vai divulgá-los em um programa de
TV sobre literatura, chamado Jamais sans mon livre (Jamais
sem meu livro), comparado por Caio ao Programa do Jô, aqui
no Brasil. E coincidência das coincidências: quando Caio, na
entrevista, comparou Dulce Veiga à cantora Maysa, o diretor
do programa, um chileno "gordimenso", enlouqueceu: ele
tinha sido amigo íntimo dela. Trocara fraldas do filho, o
Jayme Monjardim. Por conta dessas e outras, a gravação do
programa foi engraçadíssima.
Apesar de muito requisitado para entrevistas, Caio
sempre arruma um tempinho para ir ao cinema. Dessa vez,
se apaixona por Short cuts, dirigido por Robert Altman e
baseado no livro de Raymond Carver. Tendo assistido ao filme
Kika, do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que ele odiou,
Caio chega à conclusão de que o Altman é um "Almodóvar
COM substância". Tudo isso ele conta em carta a Maria Lídia
Magliani, que continua em Tiradentes.
Caio passa uns tempos em Paris, depois uma semana
em Saint-Nazaire, depois volta à capital francesa. Está feliz:
até autógrafo na rua ele deu, para um garoto francês que viu
a entrevista na TV, comprou os três livros e deu vários outros
de presente aos amigos. Não deixava de ser engraçado. E há
mais: sai matéria sobre ele na LExpress, perfil em Les
Inrockuptibles, foto em cores em Telérama... Ele faz também
outro programa de TV, o Cercle de Minuit, também comparado
ao Jô daqui, em que os outros convidados do dia são Isabella
Rossellini e Jeff Bridges. Enfim, ele vende seu peixe, e os
franceses estão comprando: Dulce Veiga é indicado para o
Prêmio Laure-Bataillon, da Maison des Écrivains Etrangers,
que premia o autor e o tradutor do melhor romance
estrangeiro traduzido no ano. John Updike acaba vencendo o
prêmio em 1994, mas só a nomeação já deixou o brasileiro
orgulhoso, com o ego nas alturas.
Depois de dois meses na França, Caio resolve dar uma
passeada. Vai até Lisboa, que está curioso por conhecer, e
para a Noruega, visitar Augusto, o amigo de infância que foi
para a Europa e não mais voltou. Casou-se com um
norueguês, de papel passado e tudo, e por lá ficou. "Ambos
me convidam para a colheita de narcisos da primavera. A
frescura é tanta, que, claro, não resisto", escreve a Luciano
Alabarse. "Se alguém perguntar por mim, diga que estou noivo
de Isabelle Adjani — mas não fiquei metido e mando beijos."
Depois de Lisboa e Noruega, Caio volta ao Brasil, em
junho. E foi só pisar em terras brasileiras para cair doente.
Magro do jeito que era, perdeu mais oito quilos. Dá-lhe
antibióticos e mais antibióticos, mas a danada da doença — o
vírus, bactéria, o que fosse — não o largava de jeito nenhum.
Caio estava apavorado, com medo da aids. Falava e falava
disso com os amigos. Até que Graça Medeiros, sempre
decidida, achou que era melhor fazer O Teste logo. Aí se
tirariam as dúvidas, e Caio poderia respirar aliviado, se desse
negativo. Nesse caso, eles fariam a maior festa, mandariam
fazer camisetas com EU SOU NEGATIVO! escrito bem grande,
e sairiam pelas ruas jogando confete.
Caio aceita a idéia. Parece mesmo o melhor a fazer, já
que as infecções não o abandonam. Já faz quase dois meses
que voltou da Europa, e não consegue melhorar. E ele tem
trabalho a fazer, tem que voltar à Alemanha em outubro,
para a França de novo em novembro. Não, ele tem que se
livrar dessa dúvida, de uma vez por todas.
Na época, os resultados do exame demoravam uma
semana para sair. Uma semana de angústia, apreensão. E na
hora de buscar o resultado, Caio não quis ir. Pediu para
Graça buscar para ele.
Ela foi. Chegou em casa, o envelope já aberto. Caio
perguntou:
— E aí?
— Não vai dar para fazer camiseta — respondeu ela.
SEIS

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão


estranha que ainda não aprendi o jeito de falar
claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que
foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então
serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como
sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente
entender o que tento dizer.
É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é
mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever
significa mexer com funduras — como Clarice, feito
Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo
feito de carne e veia e músculos. Pois é no corpo que
escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não
vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas,
cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas
enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem
líquidos que, dizem, vão me salvar.
Dói muito, mas eu não vou parar. [...]

Assim Caio começa a contar ao seus leitores de O


Estado de S. Paulo que estava doente. A crônica, publicada
em 21 de agosto de 1994, chama-se Primeira carta para além
do muro, e não é, ainda, muito explícita sobre o mal que o
acomete. Ele apenas diz que dói, dói fisicamente escrever,
deitado numa maça de hospital, os braços cheios de agulhas
espetadas. Caio ainda não entendeu direito o que está
acontecendo, está sob efeito de remédios, tudo é ainda muito
turvo.
A princípio, ele encara a coisa toda bastante bem. Fazia
sentido ele estar com aids: metade de seus amigos morrera
em decorrência da doença, outros tantos ainda lutavam
contra ela. Ele passara mais de uma década com medo de
estar contaminado, e não à toa. Ele se encaixava perfeita-
mente naqueles grupos e comportamentos "de risco", embora
já se soubesse que o vírus não era exclusivista e atingia gente
de todo tipo, não necessariamente gays, não necessariamente
drogados, não necessariamente promíscuos. A doença era a
cara dele, Caio pensou. Era como se já soubesse. Não se
assustou. Pegou o telefone e calmamente ligou para os
amigos, contando a notícia: Cida Moreira, Lygia Fagundes
Telles, sua mãe. Ligou para mais gente. Durante o final de
semana inteiro — pegara o resultado numa sexta-feira —
ficou bem, ao telefone. Alguns amigos foram visitá-lo,
conversaram, viram que estava sereno. Graça, que estava
cuidando dele, teve que voltar ao Rio para cumprir um
compromisso de trabalho. Voltaria na segunda. Porém as
coisas atrasaram, ela não conseguiu voltar na segunda, e
ligou para ele.
Caio não estava nada bem. De repente, caíra a ficha:
toda a irreversibilidade de sua doença, todo o absoluto que
estava contido no resultado positivo do exame, todo o
significado, enfim, de ser soropositivo, parecia descer sobre
sua cabeça e esmagá-la como um trator. Era peso demais,
era demais. Vou morrer, pensou ele. Vou morrer, tenho aids,
acabou. Graça ficou preocupada, e não só ela. Déa Martins e
Gil Veloso também ficaram, e rumaram para o apartamento
do Caio.
Ele tivera, finalmente, o choque da descoberta. O
choque de saber-se condenado. O organismo não agüentou,
veio a febre. Muito alta, a febre levou ao delírio. Nada
incomum em casos assim: grandes traumas podem levar as
pessoas a ficarem temporariamente perturbadas, doentes,
delirantes. Os médicos dão a isso o nome de "quadro de
dissociação mental". Foi o que aconteceu ao Caio, e Gil logo
percebeu. Ele não falava coisa com coisa, recitava em alemão,
francês. Tentou se atirar da janela, Gil segurou-o a tempo.
Não era intenção de Caio, provavelmente, se matar. Ele não
sabia o que estava fazendo. No dia seguinte, não se lembraria
de nada.
Gil resolve que era melhor correr com ele para o
hospital. Foram para o Emílio Ribas. Custaram a arrumar
um leito no hospital lotado. No dia seguinte, já muita gente
tinha sido avisada: Cláudia Abreu, sua irmã, veio de Porto
Alegre. Graça Medeiros também já estava na cidade. Outros
amigos iam visitá-lo. Graça também teve uma discussão com
o médico: ele dizia que Caio estava maluco. Ela dizia que não,
era apenas o susto, o trauma. Logo ele voltaria ao normal. O
médico insistia em dizer que Caio estava mentalmente muito
perturbado — provavelmente com um tumor no cérebro.
Quando Gilberto Gawronski apareceu para visitá-lo, o médico
alertou:
— Se prepara. Periga o teu amigo não te reconhecer.
Gilberto entra no quarto com o coração apertado,
esperando ver o amigo totalmente abalado, vegetativo,
incomunicável. Quando abre a porta e Caio o reconhece, diz:
— Bem-vindo à Filadélfia!
O médico vira para Gilberto, discretamente:
— Eu não disse?
Aí Gilberto relaxou. Não só a memória de Caio estava
intacta, como também o seu humor. "Bem-vindo a Filadélfia",
claro, era uma referência ao filme de Tom Hanks, que Caio e
Gilberto haviam assistido juntos. Mas como o médico podia
saber disso? Ele pensou que o Caio achava estar, realmente,
na Filadélfia.
E o humor do Caio não parava. Ele ia para os exames e
pedia aos amigos: segura a Maria Callas pra mim, por favor.
A Maria Callas era o aparato do soro, que ele levava
dançando, exatamente como na cena de Filadélfia. Ele
compôs raps para o AZT, brincou, cantou. Depois do susto
inicial, ele ia descobrindo um jeito de lidar com a doença.
Antes de ter descoberto esse jeito, porém, ele escreveu a
Primeira carta para além do muro, já fazendo referência velada
à doença. Na crônica, ele se agarrava à única coisa que podia
ajudá-lo a viver: a literatura. E termina o texto, assim:

Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas


veias. Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha
compreendido ainda a maneira como eles são, a maneira
como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da
imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever
— essa é a certeza que te envio, se conseguir passar essa
carta para além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu
ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é
escrever, a única coisa que posso fazer é escrever.

Depois da primeira, vieram ainda uma segunda e uma


terceira cartas. A segunda é um pouco mais clara que a
primeira, e fala dos anjos que Caio encontrara em sua
descida ao inferno: anjos de branco, funcionários do hospital;
os anjos de negro, seus amigos que lhe trazem presentes e
carinho. E os outros anjos, os que já foram.

Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e


clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfiados em
meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse
Outro Lado de Todas as Coisas. Reconheço um por um.
Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma
canção de Freddy Mercury, coreografados por Nureiev,
identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com
Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango
Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro
Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson
Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de
Cyril Collard, enquanto Wilson Barras esbraveja contra
Peter Greenaway, apoiado por Nelson Perlongher. Ao som
de Lóri Finokiaro, Hervé Guilbert continua sua interminável
carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reina Ido
Arenas passa a mão devagar em seus cabelos claros.
Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz
safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: "Quem
tem um sonho não dança, meu amor."

A terceira crônica é muito mais clara que as outras


duas. Nela, Caio conta o que lhe tinha acontecido, detalhe
por detalhe. O Teste, o resultado, as ligações para os amigos,
depois a febre e o delírio, e o hospital. Caio ficou 27 dias
internado no Emílio Ribas. Lá aconteceu uma coisa
inesperada: ele recebeu tanto carinho das pessoas, tantas
vibrações positivas, como comentaria sempre em entrevistas
dali adiante, que ele foi, serenamente, começando a aceitar. E
que mais ele podia fazer? A doença era irreversível demais
para que se pudesse lutar contra; era preciso aceitar. E ele
aceitava todo dia, como escreveu na Ultima carta para além
dos muros.

[...] O que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro


e prata e sangue e musgo do Tempo e creme chantilly às
vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a
pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos
suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda,
nunca estive tão bem.

A terceira crônica foi escrita já em Porto Alegre. O


médico recomendara a ele: você precisa agora é de qualidade
de vida. Então Caio decidiu: adeus, São Paulo. Fez uma festa
de despedida na boate A Loca, na qual cantou Laura
Finocchiaro e compareceram muitos amigos, como Paula Dip
e o marido. Mário Prata se lembra de ter visto Caio pela
última vez nessa festa. Muitas luzes vermelhas, verdes, azuis,
muita fumaça. Prata estava sentado em uma escada quando
Caio passou a mão em sua cabeça e subiu os degraus, leve,
incorpóreo, parecendo, por causa das luzes coloridas, uma
figura sobrenatural, um anjo.
Caio voltou, então, ao Rio Grande do Sul, para morar
com seus pais já tão idosos, no sobrado colonial espanhol no
bairro Menino Deus. Há roseiras no jardim, como ele sempre
sonhara em ter. E ele se dedica, então, a cuidar de si, de suas
flores, de sua obra. Nunca foi tão fácil conviver com o Caio —
alguma coisa nele meio que serenou. O mau humor de antes,
as alfinetadas, o gênio difícil, tudo isso foi substituído por
uma espécie de paz, de aceitação. Ele vivera os últimos anos
em constante aceleração, viajando de cá para lá, Paris-
Berlim-Londres-São-Paulo, e agora era obrigado a parar. Ele
sempre quisera desacelerar; invejava a amiga Magliani e sua
horta, lá em Tiradentes. Agora era a hora. Não haveria outra,
ele pensava. A vida não era mais adiável.
Ele descobriu o que já sabia ainda com mais força:
amava a vida. Acalentava o sonho de fazer parte da primeira
geração de sobreviventes, os primeiros a driblar o vírus da
aids. Não a cura, que isso parecia impossível, mas alguma
maneira de estabilizar a doença, deixá-la tipo a diabetes, algo
crônico, porém não letal. Ele achava que, se conseguisse
sobreviver mais um ou dois ou três anos, essa "cura" podia
aparecer, e então ele poderia viver muitos anos mais. E
estava certo: quando ele morreu, em 1996, já existiam os
remédios que comporiam o famoso coquetel. Ainda não se
sabia como dosá-los, e administrá-los nas doses certas para
manter a doença em níveis controlados, mas já existiam.

Em Porto Alegre, a rotina de Caio era simples: acordava


cedo, tomava café, ia cuidar das roseiras. Escrevia um pouco:
crônicas para O Estado de S. Paulo e agora também para a
Zero Hora, de Porto Alegre. No Estadão, Caio escrevera
crônicas de 1986 a 1989; depois de uma pausa de três anos,
retomara seu espaço em 1992, e escreveu até dezembro de
1995. Uma seleção de suas crônicas para publicação em livro
foi elaborada por Gil Veloso, quando Caio já estava doente.
Pequenas epifanias foi publicado em maio de 1996, alguns
meses depois da morte de Caio.
A rotina leve na casa dos pais e as doses de AZT
pareciam estar funcionando. Caio ganhara peso, os exames
de sangue apontavam bons resultados de plaquetas,
leucócitos e linfócitos. Quando precisou de um remédio mais
caro, americano, que custava 4 mil dólares o grama, Lucinha
Araújo, a mãe de Cazuza, e Scarlet Moon, esposa do Lulu
Santos, conseguiram de graça para ele, conta Graça
Medeiros. As coisas pareciam bem, e Caio decidiu que iria,
sim, cumprir seus compromissos na Europa.
Primeiro, a Alemanha. Em 1994, a Feira de Frankfurt foi
dedicada ao Brasil; Caio foi participar da feira e depois seguiu
por várias cidades alemãs, fazendo leituras e palestras. Ele
iria ainda à França, passar duas semanas em Aries, numa
mini-bolsa para escritores, mas não deu. Um teimoso
sarcoma de Kaposi resolveu brotar em Caio, e brotar bem na
ponta do nariz. O sarcoma é uma espécie de câncer de pele,
uma lesão arroxeada que acomete as pessoas contaminadas
com HIV. É um dos estágios mais adiantados da doença, e,
segundo os cálculos dos médicos, Caio já devia estar
contaminado há pelo menos uns dez anos. Não foi surpresa,
portanto, quando a lesão apareceu. Mas na ponta do nariz
era demais; Caio antecipou a volta ao Brasil.

De volta a Porto Alegre, Caio recebeu um presente


inesperado. Amigos de São Paulo — Celso Curi, Maria
Adelaide Amaral, Vânia Toledo e mais alguns — fizeram uma
vaquinha e compraram um laptop para ele. Celso Curi foi
eleito para ir a Porto Alegre entregar o presente. Caio adorou,
escreveu crônicas contando de seu novo Robocop, falou em
cartas aos amigos que agora era um homem informatizado.
Informatizado em termos: Caio não sabia muito bem mexer
no computador. Não sabia salvar os arquivos, por exemplo. E
também não queria aprender. Assim que terminava de
escrever, imprimia tudo. E corrigia as provas à mão, como
sempre fizera.
Quando Celso esteve em Porto Alegre para entregar o
computador, ele e Caio saíram juntos para o teatro. Celso
chorava o tempo todo, pensando no amigo que ia perder.
Chorava de molhar a calça, uma calça clara. E Caio, ao lado
dele, dando soquinhos em sua perna, mandando ele parar,
porque estava incomodando. Celso estava muito mais triste
que Caio, ou pelo menos assim parecia. Era, provavelmente,
a última vez que se veriam.
Além do laptop levado por Celso, outras alegrias
esperavam Caio: seu novo imunologista. Ah, o imunologista.
Era lindo, o médico. Lasanha. Belíssimo. Tratara de Lory
Finocchiaro e de mais tantos positivos que havia em Porto
Alegre. Eduardo Sprinz, o nome do imunologista. E Caio ficou
apaixonado por ele, apaixonado assim meio de brincadeira,
meio a sério, achando que havia um motivo pelo qual ele
pegara a doença, e o motivo era revelado agora: conhecer o
médico. Sempre apaixonado, o Caio. E pelo médico, um clichê
até justificável: se muita gente se apaixonava pelo analista,
ele se apaixonava pelo imunologista, que era quem, afinal,
estava mais próximo dele agora, quem o tocava, quem lhe
dava a promessa de vida. Caio escreve a Gerd Hilger:
"Gerd Alberto da Silva Hilger, como o senhor é guloso! Já
pedindo foto da MINHA lasanha completamente pelado(a)...
Para seu governo, honey, eu recém comecei a pegar amizade,
ontem foi apenas a segunda vez que nos encontramos! Mas
falando sério — God! — que homem GOSTOSERRIMO... Claro
que estou achando que tudo era fatal, e que fiquei doente
apenas para conhecê-lo, e que natural e inevitavelmente ele
também vai se apaixonar por mim, e que movido pelo amor
descobrirá algum medicamento fantástico que me salvará a
vida e certamente logo depois iremos viver em alguma ilha do
Pacífico Sul (ou norte, ou leste, oeste, tanto faz) onde seremos
felizes para sempre — e o senhor Não será convidado a nos
visitar, a não ser que leve o Valdir junto, OK?"

Por mais lindo que fosse o médico, no entanto, Caio não


estava disposto a apostar todas as suas fichas num número
só. Além da medicina clássica, ele se tratava também com
propólis e lama de Araxá. Cecília Niesemblat, uma amiga
antiga, a quem Caio dedicou alguns contos, o tratava com
florais de Bach. E Caio descobriu um remédio que, segundo
ele, era mais curativo que AZT: crianças.
Ele passava o dia brincando com seus sobrinhos:
Rodrigo, de onze anos, e Laura, de quatro, filhos de Cláudia e
Jorge; e o mais novo, o Felipinho, de um ano e meio, filho de
Luiz Felipe. Caio comprou uma caixa de lápis de cor enorme
para a Laura, que adorava desenhar, e gostava muito de
Frida Kahlo — queria sempre ver a foto daquela "mulher de
bigode". E passava tardes inteiras sentado com ela,
desenhando, desenhando. Felipinho, o mais novo, era
incrivelmente louco por frangas. Via uma e começava a gritar:
gangá-gangá! E o mais velho, Rodrigo, virginiano como o
Caio, tinha o temperamento do tio: às vezes se isolava, não
queria saber de ninguém, principalmente em festas ou
reuniões familiares. Ao contrário do tio, porém, era muito
informático, sabia lidar com computadores, impressoras e
tecnologias. Caio estava ficando obsoleto.
A sua principal preocupação era o jardim. Nas cartas
aos amigos, nas crônicas, ele falava sempre das dificuldades
que tinha em manter o jardim, onde tirou algumas das fotos
mais famosas de sua vida, vivo, lindo, como queria. Eram
caramujos canibais querendo devorar as flores, ou o inverno
rigoroso que secava as plantas, ou ervas daninhas de todo
tipo, ou a flor do girassol pesada demais para seu próprio
caule — "como se não suportasse o peso da própria beleza
que engendrou" — , ou as formigas querendo devorar as
angélicas; enfim, era difícil manter o jardim vivo. Era preciso
trabalho, esforço. Horas e horas ele passava no jardim,
cuidando, mexendo na terra. Conversava com os vizinhos,
alguns deles loucos por jardinagem, como Irineu Garcia,
artista plástico, cuja casa ficava em frente à do Caio; ou
Felipe, vizinho da casa ao lado, com quem o escritor trocava
sementes e dicas e truques. Caio brincava: estava pensando
em trocar suas credenciais de "jornalista e escritor" para
"escritor e jardineiro". Havia as rosas, as roseiras que ele
amava — algumas das quais estão de pé até hoje. E Caio
gostava de viver assim. Conversava com D. Anita,
octogenária, sua vizinha, que todos os dias passava em frente
ao jardim, onde Caio passava a maior parte do tempo, para ir
à fisioterapia. Junto com o marido, D. Anita fora a primeira
moradora da Oscar Bittencourt, rua onde os Abreu agora
residiam. Ela vira cada casa ser construída, e sabia a história
de cada morador. Adorava conversar com Caio: ele lhe
contava as histórias da Europa; descendente de italianos, D.
Anita era fascinada pelo continente. Chegou a colocar na filha
o nome de Itália, mesmo nome de uma sua irmã falecida.
Caio ficava encantado em conversar com ela. De vez em
quando, o escritor pegava a bicicleta e ia dar longos passeios
no parque da Marinha. Podia também ver o pôr-do-sol na
usina do Gasômetro. Era calmo, tranqüilo. E bonito.
Caio quase não saía do Menino Deus, o bairro onde
morava. Escreveu em uma crônica, certa vez: "moro no
Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em
volta". Anos depois de sua morte, o chileno Carlos Aguirre
Sepúlveda abriu uma pastelaria no bairro e, para
homenagear os moradores e o escritor, fez uma faixa com a
frase. Foi um sucesso. Os moradores do Menino Deus
consideram Caio uma espécie de patrimônio local.
Mesmo isolado, Caio não perdia o contato com os
amigos. Sempre alguém ligava, aparecia, escrevia. Como
Amanda Costa, astróloga e amiga. Os dois se conheceram em
agosto de 1985, na Jornada Literária de Passo Fundo. Caio
estava lá para falar como escritor e ela, que já era fã e se
lembrava de vê-lo na rua, nos anos 70, com o casaco preto
enorme, trabalhava na editora L&PM. Os dois tinham algo em
comum: assim como Graça Medeiros, Caio e Amanda foram
alunos de astrologia de D. Emma de Mascheville, uma alemã
que influenciou várias gerações de astrólogos em Porto
Alegre. Caio dedica alguns textos a D. Emy, como a
chamavam. Amanda, de uma geração mais nova que a do
Caio, compartilhava seus interesses literários e astrológicos, e
se deram bem de imediato. Trocavam cálculos astrais e
confidencias nas cartas; nos últimos anos, sempre
perguntava se ela não achava que as mudanças astrológicas
não poderiam trazer a cura da doença.
Em 1995, ele precisava de uma caixinha de isopor para
guardar os remédios. Amanda levou a tal caixinha em um
almoço, foram comer camarões no Tirol, um restaurante de
que ele gostava muito. Caio se sai com essa:
— Obrigado. Agora vou forrar com papel de oncinha,
para ficar mais bonitinho.

Além das crônicas, Caio continuava trabalhando em


outras coisas. Fez a tradução de Assim vivemos agora, novela
da ensaísta americana Susan Sontag que descreve as reações
de um grupo de amigos quando um deles contrai aids. A
tradução ter sido feita por Caio, portador do vírus, emocionou
a autora. Quando o livro foi publicado, em novembro de
1995, Maurício Stycer, da Folha de S. Paulo, pergunta em
entrevista se ela sabia que o tradutor tinha aids. "Sei e isso
me emocionou muito. Não só porque ele é um conhecido
escritor e a tradução, parece, está muito boa, mas porque ele
leu a história há algum tempo e sugeriu a sua publicação. O
fato de essa história significar algo para o Caio e que vai
significar algo para outras pessoas porque ele fez a tradução
me deixa muito feliz e agradecida a ele."
Caio trabalha também na literatura, a todo vapor:
revisou Morangos mofados, que saiu em nova edição pela
Companhia das Letras. E mexeu em todos os seus
guardados, papéis antigos: selecionava textos para uma
antologia, uma espécie de autobiografia ficcional, que
conteria textos de todas as fases de sua vida. O resultado foi
o livro Ovelhas negras, que saiu pela editora Sulina, em 1995.
O livro traz desde A maldição dos Saint-Marie, escrita aos 13
anos de idade para um concurso escolar, até textos mais
atuais, escritos já em Porto Alegre. Cada texto publicado na
obra vem precedido de uma pequena explicação do escritor,
contando as circunstâncias em que escreveu o texto, o que
gosta ou o que não gosta nele, porque não entrou em
nenhum livro, enfim, comentários gerais.

Ovelhas negras era considerado por Caio um livro pré-


póstumo. Ele estava selecionando seus inéditos para que
ninguém o fizesse depois de sua morte. Repetia sempre:
— Não quero que façam comigo o que fizeram com Ana
Cristina César.
Ele se referia à publicação, depois da morte de Ana C,
de vários livros contendo inéditos e dispersos, poemas
inacabados, que jamais teriam sido publicados com o crivo da
poeta. No entanto, esse medo de Caio referia-se à sua ficção;
ele não fazia restrição, por exemplo, à publicação de suas
cartas. Pelo menos aquelas trocadas com outros escritores e
artistas. Tanto que doou à Fundação Casa de Rui Barbosa,
no Rio de Janeiro, uma parte de sua correspondência
passiva. E ele escreve a Lucienne Samôr, escritora e amiga,
em fevereiro de 1995: "Nós nos escrevemos dezenas de cartas.
Não sei se você guardou as minhas como eu guardei as suas.
Se você guardou, uma idéia — após minha morte, claro — é
você publicá-las. Vamos que eu me torne um mito literário
(melancolicamente póstumo...) De qualquer forma, se você as
tem, são suas. E a minha herança para você."
Grande parte das cartas de Caio para Lucienne,
infelizmente, se perdeu num incêndio. Algumas das que
sobraram foram publicadas no livro organizado por Ítalo
Moriconi Caio Fernando Abreu: Cartas, de 2002. A publicação
da obra gerou polêmica: alguns amigos de Caio não quiseram
dar as suas cartas, por considerarem a publicação
prematura. Muita gente citada nas cartas ainda estava viva,
circulando, e a língua ferina de Caio não costumava perdoar
ninguém. Os trechos mais pessoais, no entanto, foram
suprimidos, alguns nomes substituídos por iniciais, e assim o
livro saiu. Vários amigos e leitores foram pegos de surpresa: é
que nas cartas Caio era muito mais engraçado, e leve, e
animado, que pessoalmente. Ao vivo, muitas vezes era
irascível e calado; nas cartas, podia falar mais livremente, e
fazia piadas, e falava de sentimentos que não teria coragem
de dizer cara a cara. Não era a pessoa deprimida que se
poderia apreender de seus contos.

Além de organizar Ovelhas negras, Caio revisou outros


de seus livros. Inventário do irremediável, publicado em 1970,
ganhou mudanças drásticas. Oito contos foram excluídos,
por ele achá-los repetitivos demais. Fez algumas mudanças
na pontuação, correções, melhorias nas frases, embora a
estrutura permanecesse a mesma. E o título passou a ser
Inventário do irremediável; segundo o autor, para diminuir o
caráter definitivo do título original.
Caio esperava ter tempo de escrever também a volta das
frangas e Estranhos estrangeiros. Não teve. Assim como não
assistiu à montagem de um texto de teatro seu, O homem e a
mancha, um monólogo dirigido por Luiz Arthur Nunes e
representado por Marcos Breda.
A peça tinha sido escrita por encomenda de Carlos
Moreno — o garoto-propaganda do Bombril —, mas ele nunca
chegou a encená-la. A cena da apresentação da peça para ele,
aliás, foi constrangedora. Anos antes, Caio chamou Luiz
Arthur, que estava em São Paulo, para acompanhá-lo na
leitura para Moreno e Fábio Namatame, que faria a
cenografia. Caio faz uma bela leitura, com sua formação de
ator e sua voz. Ao final, porém, ninguém diz uma palavra.
Luiz começa a falar compulsivamente para preencher o
silêncio, mas Moreno não disse absolutamente nada, nem
então e nem depois. Ao que consta, também não pagou um
centavo pelo texto que encomendara. Caio ficou arrasado,
chateado. Mas agora, finalmente, Breda e Luiz Arthur iam
montar a peça. Ele pedia aos amigos que se apressassem,
pois ele queria ver o texto encenado.
Era uma peça complexa: de dentro de um personagem,
saía outro — na comparação do autor, como os bonecos de
madeira russos, os baboushkas, em que um vai saindo de
dentro do outro. Assim ele construiu O homem e a mancha,
que é, na verdade, uma releitura de D. Quixote. O
personagem o perseguia desde que Clarice Lispector resolvera
apelidá-lo. Ele resolveu, então, brincar com isso. De um ator
procurando um personagem, nasce o personagem obcecado
com a mancha — uma alusão à aids, mas também a qualquer
espécie de paranóia ou obsessão, e também à cidade do
personagem de Cervantes, La Mancha — e dele nasce D.
Quixote, e desse nasce o Cavaleiro da Triste Figura, e assim
os personagens se alternam, num interessante jogo de
personalidades. O monólogo foi incluído no livro Teatro
completo, que reúne todas as peças de Caio, inclusive a
adaptação que ele fez de Reunião de família, de Lya Luft.
Organizada por Luiz Arthur Nunes, a obra foi lançada depois
da morte do escritor.
Desde a descoberta da aids, Caio decidira viver uma
vida mais tranqüila em Porto Alegre. Paradoxalmente, foi aí
que a mídia começou a dar mais atenção a ele: choviam
pedidos de entrevistas, muitas delas motivadas pela questão
da doença. Caio se sentia desconfortável com essa situação,
embora reclamasse exagerada-mente. Quem o ouvisse falar,
pensaria que a mídia jamais lhe dera qualquer atenção até o
dia em que descobriram que ele tinha aids, o que não era
verdade. Ele sempre foi um autor procurado, respeitado,
muito popular em alguns meios. Já desde os anos 70 ele
tinha seus fãs fiéis; a partir de Morangos mofados, livro-
símbolo de uma geração, seu nome se tornou mais popular.
Todo mundo tinha um exemplar em casa. Não se pode dizer,
portanto, que Caio fosse ignorado pela imprensa até 1994. De
fato, porém, os pedidos de entrevista aumentaram.
Ele foi convidado para ir ao programa do Jô Soares, por
exemplo. E achava aquilo a ironia das ironias, porque ele
tinha tentado, antes, ir ao programa divulgar algum de seus
livros, mas fora vetado "por estar fora da mídia". Agora, no
entanto, o queriam. E ele foi, com a desculpa de lançar
Ovelhas negras e a reedição de Morangos mofados. Na maior
simpatia, conversou com Jô, fez piada, brincou. Em dado
momento, depois que a aids já tinha sido citada, Jô lhe
pergunta se ele não pensava em escrever algum livro tratando
da doença. Caio responde:
— Não. Vai que eu não morro, com que cara eu vou
ficar?
Risadas, risadas. Depois ele explicou que, na verdade, a
aids já aparecia em alguns textos seus: Onde andará Dulce
Veiga é uma história de amor entre dois contaminados, o
protagonista e Márcia E A conversa segue, e ninguém pode
imaginar o quanto estar ali significa para Caio. A ironia da
situação.
Caio aparece também em um Globo Repórter sobre aids.
Quem dirige o programa é o amigo de longa data José Márcio
Penido. Em um depoimento muito bonito, Caio diz que não
tem tempo para morrer. Ele tem planos, coisas a fazer. E ele
acredita na possibilidade de cura, sim. Diz que faz parte de
uma geração muito colonizada, que cresceu assistindo ao
cinema americano, e que portanto sempre acredita que vai
haver um beijo da Doris Day com Rock Hudson no final, e
todos serão felizes para sempre.
Na entrevista, Caio expõe sua teoria de que, na verdade,
o planeta é que está doente: maltratada, a Terra começou a
reagir. Assim que se curar o planeta, se curará o ser humano.
Ele vê coisas piores que a aids vindo por aí, se nada for feito
— era a época em que se soube do vírus Ébola, muito mais
letal que o HIV. Mas na época não se sabia disso, e havia
medo, e Caio estava, mais do que nunca, convencido de que
era preciso mudar a maneira de tratar o planeta. E também a
nós mesmos: embora, até o fim, não tenha desistido do
cigarro, ele não queria mais maltratar o corpo, beber, se
drogar.
Mas é claro que a aids não era como o Ébola. Na visão
do escritor, a aids era uma doença cheia de estigmas, que
talha o ser humano no que ele tem de mais delicado, que é a
sexualidade. E por isso era preciso desmistificar, não se
envergonhar. Falar da doença era a melhor forma de
combatê-la, e principalmente de combater os preconceitos
ligados a ela, os clichês associados aos soropositivos. Por
isso, ele dava entrevistas; mesmo sabendo que o interesse
maior não era em sua obra, e sim na doença, ele falava.
Participa, por exemplo, junto com a jornalista Regina
Echeverria, de um simpósio sobre aids, em 1994, no teatro do
Maksoud Plaza, em São Paulo. Os dois, os únicos que não
eram médicos no evento, ficavam sentados de um lado do
palco, e os debatedores do outro — um deles era o dr.
Dráuzio Varella, um dos primeiros médicos a combater a aids
no país. Caio estava lá para dar seu testemunho, assim como
Regina, que fora falar da história de seu marido, que morrera
por causa da doença. O escritor falou do que se passava
física e emocionalmente com ele, das dores e dos humores.
Comoveu a platéia e ajudou a diminuir, um pouco, o
desconhecimento da doença.
Por estar de volta a Porto Alegre, por ser, realmente, um
escritor reconhecido, que merecia a homenagem, e um pouco,
é claro, por ele estar doente e não poder, talvez, ter outra
chance, Caio foi convidado para ser patrono de Feira do Livro
de 1995. Júlio Zanotta Vieiras na época presidente da
Câmara Rio-grandense do Livro, insistiu para que assim
fosse: a nomeação de Caio não era uma unanimidade. Os
argumentos de Júlio venceram, porém, e Caio foi escolhido.
De início, quando convidaram o escritor, ele desconfiou. Mas
isso não é coisa para gente morta?, perguntou. Quando
esclareceram que não, o patrono tinha que estar bem vivo, e
muita gente legal já tinha aceitado antes, como Mario
Quintana, ele relaxou e aceitou. Brincava, dizendo que
achava solene demais a palavra patrono, e preferia ser
chamado de padrinho da feira; se bem que, dizia, estava mais
é para padroeiro, um pé do outro lado e outro aqui.
Por essa época, Mauro Castro, taxista, fã de literatura,
acompanhava as crônicas de Caio no jornal. Seu ponto de
táxi fica no Menino Deus, a dois quarteirões da casa da
família Abreu. Quando o escritor ia para o hospital Moinhos
de Vento fazer radioterapia, para o câncer de pele, costumava
caminhar até o ponto de táxi e chamar Mauro para levá-lo.
Caio preferia ir sem ninguém da família para essas sessões
no hospital.
Um dia, Mauro comentou com Caio que tinha visto o ou-tdoor
de seu livro Pequenas epifanias em uma rua. Caio pediu que
o levasse até lá. Foram. Por uns cinco minutos, sem descer
do carro, o escritor olhou seu nome no alto, viu a capa do seu
livro. E não deve ter gostado do que viu, pois ficou em
silêncio a maior parte do caminho, depois. Comentou algo
sobre oportunismo, sobre acharem que ele já estava morto. E
pediu para irem embora. Mauro, o taxista, hoje escreve
colunas para o jornal Diário Gaúcho, contando "causos" da
vida de motorista. Influenciado por Caio, o taxista fã de
literatura começou a escrever. E faz sucesso.

No final de 1995, o médico avisou a Caio que ele


precisaria extrair a vesícula. Era urgente. Mas Caio decidiu
adiar a cirurgia. Pediu a seu irmão Felipe que o levasse de
carro até Santiago do Boqueirão. Queria despedir-se da
cidade. Não ia lá há muitos anos, desde que fora
homenageado, recebendo o título de santiaguense ilustre. A
temporada na terra natal foi ótima: Caio conversou muito
com as tias, principalmente tia Elcy Abreu, que ele adorava.
Relembrou a infância, descansou. Fez as pazes com essa
parte do seu passado. Quando voltou, escreveu uma crônica
para Zero Hora contando da viagem, da emoção que era voltar
ao lugar onde nascera.
Depois de retirar a vesícula, Caio decidiu fazer outra
viagem. Ele iria à Praia do Rosa, em Santa Catarina. A mãe
não poderia ir com ele: com 71 anos, já tinha sofrido duas
isquemias cerebrais e não tinha saúde. O pai, Zaél, não
abandonaria a esposa em casa. Os irmãos tinham ocupações.
A companheira de viagem de Caio foi, então, Déa Martins,
que estava morando em Porto Alegre na época. Pegaram
carona de carro com duas garotas amigas da família e foram.
Chegando lá, Caio e Déa tiveram algumas briguinhas. Esta-
vam os dois muito mal: ela saindo de um relacionamento,
deprimida; ele, doente. Na pousada onde ficaram, havia um
hibisco, aquela flor símbolo dos surfistas. Déa olhou,
perguntou: que flor é essa? Foi o suficiente para Caio se
irritar. Como assim, que flor é essa? Então você não sabe o
que é um hibisco? Ficou irado. Estava muito abalado, muito
sensível, muito doente. Embora estivesse sereno a maior
parte do tempo, às vezes era difícil lidar com Caio. Ele tinha a
sensação de que tudo que ia fazer seria pela última vez.
Quando foi ao cinema com Gilberto Gawronski, por
exemplo, de passagem pela cidade, escolheu um filme
longuíssimo, de três horas. Tinha porque tinha que ver
aquele filme. Gilberto pegou o carro, buscou-o, foram. Com
cinco minutos de filme, Caio queria ir embora. Não é esse
filme, não é isso que eu pensava. Ele queria ver O Filme, algo
marcante, significativo; ele não tinha tempo a perder.
Gawronski discutiu com ele, mas não teve jeito: teve que levá-
lo embora.
Em casa, a situação não era mais fácil. A mãe doente, e
Caio implicava com ela. Dizia que ela o atordoava, não o
deixava em paz, estava sempre atrás dele contando histórias
intermináveis. Ela o desgastava, lhe dava nos nervos. Ele
explodia, brigava com ela. Depois se arrependia, céus, ela tão
velhinha e ele fazendo malcriação. Mas no dia seguinte
brigava de novo. Parecia mais o hospital Abreu do que a casa
da família, brincava o escritor. O pai, 74 anos; a mãe, 71, e
ele, bem, ele doente até o osso.

Déa teve que partir mais cedo da praia; recebeu uma


proposta de trabalho no Rio e voltou para lá. Caio também
antecipou sua volta a Porto Alegre: estava doente. Poucas
semanas depois, pegou pneumonia. O amigo Luciano
Alabarse, um dos poucos que acompanhou sua doença de
perto até o fim, voltava do hospital e chorava. Chorava no
hospital mesmo, mas Caio mandava ele ficar quieto: você está
mais deprimido que eu, Luciano. Anos antes, em 1984, Caio
tinha escrito ao amigo: "Na minha lápide, quero alguma coisa
mais ou menos assim: Caio F, que muito amou."

Depois de vinte dias internado, o corpo do escritor não


agüentaria a pressão. Os amigos o visitavam, e ele lhes dizia:
estou cansado, estou muito cansado. Era como se ele já não
coubesse mais em seu corpo. No dia 25 de fevereiro, uma e
meia da tarde, Caio faleceu. Era um domingo. Mais ou menos
na mesma hora, Reinaldo Moraes voltava de Buenos Aires de
avião; ao passar por Porto Alegre, se sentiu muito mal.
Quando chegou em São Paulo, soube da morte do Caio.
Amanda Costa estava almoçando em um restaurante árabe
com uma amiga e começou, do nada, a pensar nele, pensar
nele, pensar nele. Quando chegou em casa, ouviu no rádio
que tinha morrido. Do outro lado do mundo, no Egito, o
jornalista José Castello, que, superada a timidez, entrevistara
Caio algumas vezes, sentiu uma tristeza, uma dor no peito
inexplicável. Quando voltou ao Brasil e soube da morte do
escritor, fez as contas, fusos horários e tal, e viu que Caio
morrera exatamente na hora em que ele tivera a sensação
estranha no Egito. As dez da noite do domingo, Hilda Hilst
alega ter visto Caio, na Casa do Sol, em Campinas. Fora se
despedir. Usava um cachecol com uma fita vermelha: os dois
teriam combinado que vermelho significava que estaria tudo
bem.
Pesando menos de 40 quilos, Caio foi enterrado no
cemitério São Miguel e Almas. Sua mãe ficou inconsolável;
quatro meses depois, teve um acidente vascular cerebral
(AVC) e não levantou mais da cama. Um ano depois, morreu.
Um ano e dez meses depois dela, foi a vez de seu Zaél. Em
três anos, filho, mãe e pai tinham falecido. Alguns anos
depois da morte de Zaél, os restos mortais dos três foram
transferidos para o Cemitério Ecumênico João XXIII, onde
ocupam o número 4352 07.
Dias antes de morrer, Caio fizera seu testamento. À sua
maneira, claro: não registrara nada em cartório. Escrevera,
apenas, uma carta, para ser lida pelo seu pai, depois de sua
morte. Na carta, ele fazia pequenos legados. Queria que
Marcos Breda ficasse responsável e recebesse os direitos de
sua obra teatral; Gil Veloso da literária; Gilberto Gawronski
da de cinema e audiovisual.
A vontade de Caio não foi cumprida; quem administra a
obra dele é a família. Mas, sem saber que isso ia acontecer,
sete dias depois da morte, na missa, os amigos se reuniram
para a leitura da carta. Seu Zaél sério, emocionado. Quando
chega a parte de Gawronski, ele lê, ele tem que ler:
— Betinho, se o Spielberg quiser filmar Dulce Veiga, você
vai ficar rica!
Caio, onde quer que estivesse, estava dando risadas.
EPÍLOGO

Na praia do Rosa, com Déa, em dezembro de 1995. O


céu estava nublado, chuviscava, e Caio teimou que ia entrar
no mar.
— Não entra, cara, você vai pegar uma pneumonia, tá
louco?
Caio insistiu. Desde que chegara na pousada, ele estava
usando um galho que catara na estrada como bengala. Pois
bem, nem o galho ele queria. Era sua caminhada. Ele iria
sozinho. Ia conseguir.
Lentamente, foi andando até o mar, debaixo dos finos
pingos de chuva. Atravessou a faixa de areia, entrou no mar.
Mergulhou. Pediu ao deus das águas que o curasse. Jogou
água para cima, fez festa. E voltou. Lentamente, mas
satisfeito.
Obras de Caio Fernando Abreu publicadas no Brasil

Inventário do irremediável. Porto Alegre: Movimento, 1970; 2a


ed. Sulina, 1995 (com o título alterado para Inventário do
irremediável).

Limite branco. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971; 2a


ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3a ed. Siciliano, 1992; Rio
de Janeiro: 4a ed. Agir, 2007.

O ovo apunhalado. Porto Alegre: Globo, 1975; Rio de Janeiro:


2a ed. Salamandra, 1984; São Paulo: 3a ed. Siciliano, 1992;
Rio de Janeiro: 4a ed. Agir, 2008.

Pedras de Calcutá. São Paulo: Alfa-Omega, 1977; 2a ed.


Companhia das Letras, 1995; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir,
2007.

Morangos mofados. São Paulo: Brasiliense, 1982; 2a ed.


Companhia das Letras, 1995; Rio de Janeiro: 3a ed. Agir,
2005.

Triângulo das águas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983;


São Paulo: 2a ed. Siciliano, 1993; Porto Alegre: 3a ed. L&PM,
2005.

Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia


das Letras, 1988.

Mel e girassóis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

As frangas. Rio de Janeiro: Globo, 1988.

A Maldição do Vale Negro. Porto Alegre: IEL/RS (Instituto


Estadual do Livro), 1988.
Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras,
1990; 2a ed. Planeta De Agostini, 2003; Rio de Janeiro: 3a ed.
Agir, 2007.

Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina, 1995; 2a ed. L&PM,


2002.

Estranhos estrangeiros. São Paulo: Companhia das Letras,


1996.

Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996; Rio de


Janeiro: 2a ed. Agir, 2008.

Girassóis. São Paulo: Global Editora, 1997.

Teatro completo. Porto Alegre: Sulina/IEL, 1997.

Fragmentos. Porto Alegre: L&PM, 2002.

Caio Fernando Abreu: Cartas. Org.: ítalo Moriconi. Rio de


Janeiro: Aeroplano, 2002.

Caio 3D: o essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir,


2005.

Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir,


2006.

Caio 3D: o essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir,


2006.

Melhores contos de Caio Fernando Abreu. São Paulo: Global


Editora, 2006.
OBRIGADOS

A Cláudia, Felipe e Márcia Abreu, pela generosidade


com que compartilharam histórias, fotografias, vídeos, livros
e documentos relativos ao irmão. A Jorge Cabral, cunhado,
pelos mesmos motivos. A Evandro e Leandro Martins, e a sua
mãe, Maria Aldina, pela ajuda em Porto Alegre; a Juliano, por
ter sido um bom e divertido cicerone. A Mauro Castro, por ter
me levado pra lá e pra cá em seu táxi quando eu precisava. A
Jacques, por rodar Porto Alegre inteira de bicicleta para me
entregar um vídeo com entrevistas do Caio. A Luís Francisco
Wasilewski, e a Fábio Fabretti, pelos conhecimentos sobre o
Caio, pelas fontes que me passaram.
Agradeço também a Alex Werner, a seu irmão, Bruno
Werner, e a seu pai e a sua madrasta, por terem sido tão
bons anfitriões no Rio de Janeiro. Em São Paulo, agradeço a
minha irmã, Liliane, não só pelo abrigo, mas por tudo, e
sempre. A todos, agradeço por terem me ouvido falar e falar
sobre o livro. Foram quatro anos monotemáticos, eu sei.
Esse livro começou a nascer na Universidade Federal de
Santa Catarina. Agradeço à Pró-Reitoria de Assuntos
Estudantis (PRAE) pelo apoio dado. Aos professores Ricardo
Barreto, Clóvis Geyer e Tânia Rodrigues, agradeço as dicas e
idéias. A Luiz Alberto Scotto e Carlos Locatelli, os grandes
planos e sugestões. A Diógenes Fischer, por primeiro ter me
apresentado à obra de Caio F, emprestando-me seu Morangos
mofados, que aliás não devolvi — nem pretendo. A Fábio
Bianchini, grande amigo, por fazer o contato com uma das
fontes. A Edirê Ferreira e Paulo Vaz de Arruda, pelo papel
importante em apoiar e ouvir. A Beatriz Tironi Sanson, por
existir, apenas.
A Paulo Camossa, por conseguir material ao qual eu não
teria acesso de outra forma.
A Wendel, Tadeu e Romeu Martins, por me ouvirem falar
do trabalho, darem palpites, e me contarem o que eles
mesmos andam fazendo. A Upiara Boschi, por ler o texto e
opinar; sobretudo por gostar e me incentivar. A Marina
Darmaros, por trocar figurinhas e contatos. A minha família,
especialmente tia Laura e minha mãe, Marisa, pela paciência,
pelo apoio. Por acreditar.
Agradeço a Adriana Franciosi, a Ricardo Stefanelli e à
equipe do jornal Zero Hora, por terem gentilmente cedido
fotografias importantes para este livro. A meu editor, Manoel,
pela fé no livro. Pelo mesmo motivo, meu obrigada a
Carpinejar, Ricardo Lombardi, Rafael Franco e ao pessoal da
revista Crescer.
Cada um a seu modo, Gil Veloso e Luciano Alabarse
cuidam com zelo da memória de Caio. Por isso, que não é
pouco, agradeço aos dois.
Agradeço a todos os entrevistados, que me cederam seu
tempo e suas memórias: Adriana Calcanhoto, Amanda Costa,
Ana Braga, Ana Lúcia Vasconcelos, Anna Gioconda Homem
(D. Anita), Antônio Neto, Bruna Lombardi, Carlos Aguirre
Sepúlveda, Carlos Emílio Corrêa Lima, Celso Curi, Cida
Moreira, Claudia Wonder, Déa Martins, Emanuel Medeiros
Vieira, Gilberto Gawronski, Graça Medeiros, Grace
Gianoukas, Guilherme de Almeida Prado, Irineu Garcia, Itália
Homem Ledur (D. Itália), Ivan Mattos, Jacqueline Cantore,
Jaime Gargioni, João Batista, José Castello, José Márcio
Penido, José Mora Fuentes, Juarez Fonseca, Júlio César
Monteiro Martins, Kate Lyra, Laura Finocchiaro, Luiz Abreu,
Luiz Arthur Nunes, Luiz Carlos Fava, Luiz Carlos Moura, Luiz
Fernando Emediato, Luiz Schwarcz, Márcia Denser, Marcos
Breda, Maria Adelaide Amaral, Maria Lídia Magliani, Maria
Rosa Fonseca, Mário Prata, Nei Duelos, Paula Dip, Pedro
Paulo de Sena Madureira, Regina Echeverria, Reinaldo
Moraes, Renato Campão, Ruy Krebs, Santiago, Sônia
Azambuja, Stella Miranda, Vera Antoun, Vera Spolidoro.
Quero agradecer, também, a Jonas Lopes, por me
ensinar sobre disciplina. À sua família, Leide, Fernanda,
João: pelo apoio, sempre. E a Regina Carvalho, por estar
sempre disponível, por ler os textos assim que eu os
mandava, pelo grande conhecimento de todos os assuntos e
pela amizade, pelas batatas fritas e sukitas, agradeço demais.
Obrigada mesmo. A todos que me ajudaram de alguma forma,
me apoiaram: seria longo citar todos os nomes, mas obrigada.
E, finalmente, quero agradecer a Eduardo Nasi, o melhor
marido, companheiro, amigo. Sem você, não teria conseguido
terminar o livro. Te amo, querido. Sempre.

 
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