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RENATO LESSA

Exercício livre do pensamento1

Na introdução ao Tratado Teológico-Político, publicado em 1670, e em muitas de suas cartas, Baruch de


Spinoza enumera um conjunto de razões que o teriam levado a escrever essa obra. Todas elas são
devastadoras, se considerarmos os hábitos religiosos e cognitivos básicos do século XVII. Entre as razões
encontramos o desejo de demonstrar que não há nas “Escrituras” nenhuma forma de verdade especulativa,
mas tão-somente ensinamentos morais e religiosos, de uma simplicidade tal que crentes ordinários não
encontram dificuldades maiores em sua compreensão. Mais do que isso, Spinoza visa a explicar as
contradições entre as narrativas dos Profetas não como mistérios divinos, mas como produtos de condições,
digamos, “materiais” precisas, que têm que ver com variações culturais, históricas, lingüísticas, psicológicas
e políticas, todas explicáveis por um método histórico, crítico e filológico.
O choque de realismo na análise das Escrituras é acompanhado por duas motivações de natureza filosófica:
operar uma distinção clara entre teologia e filosofia e orientar os que se confundem com as contradições
entre esses dois regimes intelectuais. Pela distinção, a teologia é remetida a seu campo próprio, o da política,
sendo, pois, desprovida de qualquer virtude cognitiva intrínseca.
No desejo de orientação dos confusos, aparece o que pode ser tomado como o núcleo da obra de Spinoza. Tal
como em Maimônides, aqui encontramos um guia para os perplexos. A diferença reside no fato de que em
Maimônides tratava-se de erradicar a perplexidade e de sustentar o regime da crença, enquanto em Spinoza
o que se impõe é a libertação da filosofia — e por extensão da política-, pela sua não-subordinação à
revelação e à teologia.
Em Política em Spinoza, Marilena Chaui nos proporciona um inestimável guia de orientação para o guia de
Spinoza. Trata-se de um magnífico conjunto de ensaios nos quais a potência política do corpus spinozano é
destacada em diversos de seus endereços recônditos e revelada em sua radicalidade: se a teologia é o regime
simbólico da política teocrática, a filosofia exige a liberdade de pensamento, a expressão da potência humana
— e, portanto, divina — e, para o registro prático, a política democrática.

Filosofia e teologia
O livro é constituído por cinco ensaios, dois dos quais (“Política e Profecia” e “A Instituição do Campo
Político”) com fôlego e extensão para serem publicados como livros independentes. O terceiro da série,
“Direito e Potência - Experiência e Geometria no Tratado Político”, discute o posicionamento de Spinoza
diante das duas tradições da filosofia política, a experimental e a racional, indicando a convivência de uma
concepção geométrica do campo político com uma noção realista do direito, das formas da política e do
lugar da multitudo (multidão). Os demais ensaios tratam, respectivamente, das noções de plebe e de vulgar
no Tratado Político e das principais diferenças entre Hobbes e Spinoza no que diz respeito aos temas do
direito natural e do direito civil.
Nesse sentido, não se trata de uma apresentação ordenada e seqüencial a respeito da teoria política de
Spinoza. Mas, o que a olhos mais metódicos poderia sugerir alguma frustração, acaba por configurar-se
como um modo virtuoso e altamente prazeroso de discutir os significados e lugares da política em Spinoza.
Com efeito, é menos nas passagens explicitamente políticas e mais, muito mais, na definição de Deus, na
primeira parte da "Ética" ("De Deo"), na discussão sobre profecias, na distinção entre filosofia e teologia e no
modo de constituição da multitudo, no estado de natureza que uma concepção original e libertária da política
se insinua.
Em um ótimo trabalho recente sobre Spinoza (“Imaginação e Poder - Estudo sobre a Filosofia Política de
Spinoza”, Lisboa, Colibri), Diogo Pires Aurélio indaga a respeito da pertinência de falarmos de uma teoria
política Spinozana. Sua resposta é positiva, sob a condição de que se busquem os componentes da filosofia
política de Spinoza menos em textos explicitamente políticos — nos quais o paralelo com Hobbes é forte — e
mais na “profundidade de sua ontologia”.

1
Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Resenha do livro Política em Spinoza,
de Marilena Chauí. Publicado na Folha de S. Paulo em 14 de junho de 2003.
Pois bem, essa resposta foi antecipada por Marilena Chaui, no conjunto de ensaios que constituem Política
em Spinoza, publicados originalmente entre 1978 e 1995. O método de detecção é indicar as implicações
políticas das posições filosóficas básicas de Spinoza, em uma operação que faz jus à expressão "filosofia
política", que não se confunde com um regime intelectual especializado e exclusivamente voltado para a
elucidação de fenômenos de natureza estritamente política e institucional.
Um dos temas fortes, presentes em todos os ensaios é o da distinção Spinozana entre teologia e filosofia.
Logo no primeiro ensaio, “Política e Profecia”, duas proposições importantes de Spinoza sobre aquela
distinção são apresentadas e exploradas de forma magnífica. A primeira diz respeito ao que é próprio da
teologia racional (na verdade, um oxímoro), ou seja, sua função de conferir à religião revelada “um suporte
mais firme do que a flutuação das paixões humanas”. Ao fazê-lo, a teologia racional se apresenta como
"imposição da imagem da autoridade como fonte (de) constância e (de) firmeza”. A segunda proposição a
destacar é a que sustenta que teologia e filosofia diferem entre si não tanto pelo “tipo de verdade que
alcançam, e sim pelo tipo de prática que produzem”.
Nas duas proposições o registro da intervenção é o da política. Se a filosofia é o “contradiscurso da teologia"
e se o terreno dessa disputa não é o dos efeitos de conhecimento e de instanciação da verdade, em que lugar
detectar as conseqüências práticas de ambos os registros e de sua oposição? O registro político da teologia é
o da teocracia e o da obediência e da autoridade. Se a filosofia é seu contradiscurso e exprime sua diferença
em termos práticos, cabe a pergunta: qual o seu registro? Ao elucidar essa discussão, Marilena Chaui exibe
de forma direta e clara a disjuntiva de Spinoza: teologia é não-saber, filosofia é saber.

Ontologia do necessário
Esse saber, próprio da filosofia, nada tem de contemplativo. Trata-se de um saber sobre a totalidade da
existência, sustentado na simples fórmula Deus sive natura. Deus, em uma formulação que encantava a Jorge
Luis Borges, é uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência
eterna e infinita. Todo o existente é produto da ação da livre potência da substância absolutamente infinita
de Deus: “Deus é causa imanente de todas as coisas, e não causa transitiva delas” (Ética). Deus, portanto, age
"apenas pela necessidade de sua própria natureza sem qualquer constrangimento". O mundo — enquanto
“natureza naturada” — que decorre de tal potência não é produto de qualquer capricho ou mistério, mas
algo necessário da própria natureza divina (ou “natureza naturante”).
Chaui resume esse movimento da fabulação Spinozana com a expressão "ontologia do necessário". Em suma,
não há contingência ou mistério, mas um curso ontológico que faz da idéia de liberdade simplesmente o que
resulta da expressão natural da potência (divina e humana). A filosofia como saber denuncia a religião como
artifício para mitigar a angústia da contingência e a teologia como pretensão de racionalizar a submissão
humana. Nesse sentido, seu registro prático decorre de sua capacidade de buscar conhecer como as coisas
são. Nada mais contrário à sua índole do que a “excessiva autoridade dos pregadores”, que impedem o
“dizer o que se pensa”. O regime prático da filosofia é o da liberdade de pensamento e de expressão,
condição necessária para a república e para a política democrática. A filosofia, afinal, é “exercício livre do
pensamento”.
Umas das arenas preferenciais de combate de Spinoza foi a da interpretação das “Escrituras”. Nesse
domínio, o que importou foi a dessacralização dos textos e sua subordinação a considerações históricas,
culturais, políticas e lingüísticas. As "Escrituras" são percebidas por Spinoza como narrativa da história
hebraica e de sua própria história e mostram ainda “como o documento atribui sentido às próprias
circunstâncias históricas que o suscitam”.
É fundamental considerar, no entanto, que a inovação Spinozana foi precedida por uma importante mutação
nos estudos bíblicos, no decorrer do século 17. Em termos mais diretos, o empreendimento de Spinoza talvez
não fosse possível -ou não tivesse tido o alcance que teve- sem a antecipação bizarra e genial da obra de Isaac
La Peyrère, “Os Pré-Adamitas”, e do trabalho de investigação bíblica do padre oratoriano Richard Simon.
Tal como reconstituída por Richard Popkin em dois livros seminais (História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza
e Isaac La Peyrère), a obra de La Peyrère teve como argumento central a tese da existência de seres humanos
antes de Adão, o que transformou a Bíblia em um livro histórico que contém tão-somente o registro da
história dos judeus.
O realismo histórico e linguístico empregado por Spinoza elucida um conjunto de temas políticos, na leitura
das "Escrituras". Um deles diz respeito ao problema da profecia. Em uma primeira aproximação, o profeta é
aquele que “interpreta as coisas que Deus revela para aqueles que não podem ter um conhecimento exato e
que, por isso, só pela fé as podem perfilhar” (Tratado Teológico-Político). No entanto a certeza profética não é
apodítica e demonstrável, mas sim de natureza moral ou persuasiva, “adaptada à compreensão do profeta e
de seus ouvintes”.

Verdades morais
Disso deriva a sua variedade. Seu motor, na verdade, é "acima de tudo (...) a justiça e o bem". O profeta,
portanto, é uma figura política central de um ordenamento teocrático — tal como o da sociedade hebraica
das “Escrituras”. Seu produto — a profecia — é um “princípio de organização sociopolítica próprio da
teocracia”. Mas, sendo assim, é possível enquadrar a profecia -ainda em termos Spinozanos, creio — de um
outro modo, desvinculando-a da prisão histórica original. Não tendo validade especulativa, mas tão-
somente moral, uma leitura laica da profecia poderia aproximá-la a uma modalidade de pensamento que
poderíamos designar como antecipatória.
Nesse sentido, a profecia afirma verdades morais indemonstráveis pela razão e as inscreve em futuros
possíveis ou em presentes organizados por tais imagens de futuro. O conhecimento profético, assim descrito,
assemelha-se à faina da filosofia política. Independentemente dos regimes contingentes que a aprisionam,
ela lida com futuros possíveis e com certezas morais dispostas na ordem do tempo. E, mais do que tudo, a
profecia indica o lugar do inimigo.
De um ponto de vista pirrônico, Spinoza é um dogmático. O juízo parece contradizer algumas evidências
fortes: como é possível designar como dogmático o mais radical dos defensores da liberdade de pensamento
e da autonomia humana? O que justifica atribuir tão desagradável característica a este diligente aluno de
Menasseh ben Israel e paciente polidor de lentes?
Apesar do sabor de paradoxo, a classificação implacável dos céticos se sustenta. Spinoza é um dogmático
porque fundamenta seu “sistema” em princípios não-evidentes (ádelon), aos quais só obtemos acesso
cognitivo se com ele concordarmos. No entanto, dado o imperativo de viver em um mundo constituído por
decantações de dogmas — nem todos palatáveis —, não há como reconhecer que Spinoza é o mais adorável
dos dogmáticos. Sua obra, magistralmente tratada por Marilena Chaui — antes, em A Nervura do Real (Cia.
das Letras) e, agora, em Política em Spinoza —, constitui um novo guia para os perplexos; os de então, de um
século assolado pela querela das teologias, e os de hoje. Sobretudo para os que, hoje, estão atônitos com a
neutralização da política, com a naturalização inautêntica da vida social e com o demofóbico desprezo da
multidão como sede da soberania.

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