CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DISICPLINA: O NORDESTE ORIENTAL NA HISTORIOGRAFIA DA INQUISIÇÃO Prof. Dr. Carlos André Cavalcanti Luciano Vieira Rocha
Trabalho de conclusão da disciplina.
Análise do Livro:
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa na Sociedade Colonial. São Paulo, Ática, 1978.
No estudo da história colonial brasileira, Sônia Siqueira faz uma importante
contribuição historiográfica com a obra “A Inquisição Portuguesa na Sociedade Colonial”, em especial a região Nordeste, o delineamento da obra, não por uma escolha da historiadora, mas, devido à ação inquisitorial na colônia ocorrida principalmente na Bahia e Pernambuco, tendo como objetivo inicial da pesquisa fazer uma História institucional, como ela mesma diz no prefácio, faz também uma História das Mentalidades. A obra possui duas partes, a primeira caracterizando a colônia e a mentalidade portuguesa, sendo a primeira delas subdividida em outros dois ítens, uma sobre o mundo religioso português e outra sobre a religião na colônia. A segunda parte fazendo uma descrição da organização institucional e hierárquica da inquisição e seu corpo de membros em três partes, umas administrativa, outra da composição dos órgãos e outra sobre os procedimentos. Merecem destaque especial os apêndices, que trazem um minucioso detalhamento da sociedade colonial baiana e pernambucana, por meio de um levantamento genealógico e biográfico dos principais elementos da sociedade com atividade econômica de destaque, bem como, pessoas envolvidas nos processos inquisitoriais que Sônia analisa, tanto por parte do corpo inquisitorial quanto das testemunhas e acusados. Na primeira parte do livro, a autora faz uma abordagem situada história cultural, contextualizando o leitor no entendimento do mundo religioso português que ele trouxe para a colônia suas dicotomias religiosas, características do cristianismo do século XVI, e que na colônia foi enxertado através da característica missionária que o cristianismo possuía naquela época, caracterizando a Reforma Católica. 2
A caracterização da mentalidade missionária é feita com vários apontamentos
bibliográficos, que se alinham e clareiam o entendimento do contexto religioso, tanto para leigos quanto para especialista, através da narrativa da autora. Quanto à percepção dos portugueses em relação aos índios, se faz uma análise dos documentos e cartas jesuíticas para então apontar como os portugueses viam a religiosidades dos nativos, seus mitos e religiosidades, bem como as resistências e enquadramento dentro dos conceitos de mundo lusitano. Por outro lado há um apontamento da religiosidade dos africanos trazidos à colônia e trazidos para o cristianismo, fizeram as correspondências de seu panteão aos santos católicos, ocorrendo o ajustamento religioso. Ainda na primeira parte, são elencados alguns dos problemas da colonização no tocante à implementação do catolicismo que não chegam a ser uma oposição concreta, mas sim um problema relativo pela não existência de uma religião estruturada a ser combatida, neste caso Sônia Siqueira coloca seria mais um problema pedagógico de conversão. A não existência de uma classe sacerdotal facilitava absorção do papel do jesuíta como porta voz de outra divindade, onde os jesuítas venceriam pelo amor e atuavam com uma maior frouxidão da rigidez do rei, que estava distante. No último subitem do primeiro tópico a historiadora caracteriza como uma “luta inútil” o combate fervoroso do cristianismo na colônia, pois os convertidos aceitavam a nova religião, mas não compreendiam profundamente seus princípios, o principal inimigo do cristianismo seria mesmo os judeus, contudo, estes eram estrangeiros e faziam parte de uma importante camada da sociedade vivamente atuante na economia: os comerciantes. O segundo tópico faz uma reconstrução da distribuição da sociedade na colônia nominando as principais vilas povoadas e a motivação do povoamento que foi a busca de riquezas fáceis, bem como apontamentos como elementos fundamentais da sociedade, como a mulher e os nativos. O item seguinte caracteriza a religião e a sociedade colonial, dando um maior destaque à caracterização dos judeus, fazendo uma comparação dos seus princípios religiosos com os portugueses, onde as divergências do catolicismo seriam motivos de desprezo dos portugueses para com os hebreus. Na caracterização dos judeus a historiadora menciona o processo de batismos destes nas comunidades cristãs, aparecendo as figuras do cristão-novo e do criptojudeu, diferenciando-os. O primeiro esforça-se me se adequar à sociedade colonial, já o segundo mantém suas práticas religiosas de forma camuflada. 3
Nesse contexto, a narrativa historiográfica leva ao entendimento que há uma
flexibilização nas estruturas religiosas de tolerância para com os novos elementos: o nativo convertido e o cristão-novo. Isso ocorre para manter a unidade portuguesa e proteger da fragmentação a ortodoxia católica do luteranismo e dos comerciantes estrangeiros que aqui faziam contatos comerciais. Um dos principais méritos da obra está no minucioso detalhamento do corpo da sociedade colonial, apresentando quadros com números de cada tipo de atividade exercida pelos extratos sociais, que são hierarquizados conforme a estrutura sócio econômica onde estão no topo os grupos ligados à terra e grandes comerciantes, seguidos da média burguesia composta por pequenos industriais, mercadores e responsáveis pela burocracia na colônia. Semelhantes a estes vem os pequenos lavradores e trabalhadores assalariados. Outra camada, presente tanto no meio urbano como rural é composta pelo clero, e por fim a maior parte da população composta por escravos e os mais diversos tipos de trabalhadores plebeus. Tendo como critérios de status, a propriedade de terras e a riqueza dos comerciantes a sociedade colonial tinha como aglutinador da sociedade a religião, sendo dela a responsabilidade da manutenção dos valores e reforço das normas, isto é, função de controle social e organização da cultura colonial. A primeira parte é finalizada com a caracterização das adaptações da vida religiosa na sociedade em formação, bem como, à geografia demográfica da colônia. Uma das principais heranças culturais portuguesas está na religião e a sustentação dos pilares dogmáticos, contudo, a sociedade mestiça tendia à tolerância. Por outro lado, os ritos renovavam o respeito pelo sagrado e solidificavam as estruturas sociais. A questão da tolerância tornava-se necessária, principalmente devido à escassez populacional, assim, o cristianismo permeou a vastidão das terras com pequenas populações e foi aceito com menos rigidez, pois era necessário explorar a mão de obra dos nativos e se adentrar ao território em busca de riquezas, impossibilitando a ortodoxia também pelo disperso número de membros da Igreja que toleravam diversas práticas na colônia, que seriam certamente punidas na metrópole, como a não observância dos jejuns de carne nos sertões, pela ausência de peixes, e a fornicação entre solteiros tendo a “libidinagem como sugestão do meio” (pg 102). Tais tolerâncias fizeram com que o cristianismo se mantivesse na colônia, por outro lado esse cristianismo divergia bastante do da metrópole pelas questões estruturais analisadas, sendo impossível por em prática a transposição pura da mentalidade cristã da 4
metrópole, salvando-se o cristianismo devido à necessária frouxidão para sua aceitação e
permanência na colônia. A segunda parte da obra é um detalhado trabalho de exposição da estrutura administrativa, dos membros e atividades da inquisição portuguesa e sua atuação no Brasil. Começando pelos apontamentos de dependência de jurisdição entre o rei português e o papa, que designava o responsável para o Santo Ofício, o Inquisidor Geral. No decorrer do capítulo são detalhadas as atribuições do Inquisidor Geral, bem como as do Conselho Geral, cargo que ele presidia e administrava. É apresentado também a constituição e funções e importância deste conselho. Tais caracterizações são realizadas sempre com diversas referências, principalmente ao Arquivo Histórico Português e o Regimento do Conselho o que dá uma importante consistência historiográfica ao estudo sobre o tema. Vale lembrar que existem outros tribunais inquisitórias portugueses, contudo o trabalho de Sônia Siqueira analisa a inquisição no Brasil, que está submetido ao Tribunal de Lisboa, e faz o detalhamento do componentes atuantes direta ou indiretamente no Brasil, com uma listagem nominal de cada um deles, para em seguida apontar a as atividades pelos quais são responsáveis. Ao fazer o levantamento de atribuições a autora também justifica a submissão das atividades inquisitórias no Brasil à Lisboa ao invés de ser criado um tribunal na colônia, caracterizando a conjuntura política e a relação do tribunal com o Estado. Pretendendo Felipe IV, criar um tribunal na colônia a fim de estender seu poder político o Conselho Geral do Santo Ofício vetou a solicitação devido à falta de recursos humanos, ficando a jurisdição no Brasil a cargo dos bispo, o que mantinha a ideia da inquisição presente na colônia até a efetiva vinda de um membro direto do tribunal, o visitador. Enquanto não se tinha um agente direto da inquisição, o canal dela era realizado pelos seus agentes que são o bispo e seus assessores, que seriam membros do clero como o Vigário Geral, no papel de notário, o Ouvidor eclesiástico, os jesuítas em especial pelo maior contato com a comunidade e o clero de maneira geral. Para se tornar um dos oficiais do santo ofício são destaque em todas as esferas os requisitos morais, fama de boa reputação, ostentando as virtudes, ser letrado e a pureza de sangue, isto é, vir de uma família cristã, isto é, não ter ascendência genealógica judaica, moura ou pagã. O principal oficial do tribunal era o comissário, ele era o responsável pela comunicação com a Mesa do Tribunal, sendo subordinados diretamente apenas aos 5
inquisidores provinciais, que deveria pertencer obrigatoriamente ao clero de prudência e
moral conhecida. Diretamente subordinado ao comissário tem-se o escrivão como seu auxiliar, que é diferente do notário. Este deveria possuir independência financeira e acompanhava o inquisidor, mesmo nas sessões com os réus e testemunhas, a fim de fazer as anotações que o inquisidor lhe ordenavam. Os Qualificadores e Revedores eram os responsáveis pela integridade da ortodoxia das obras literárias e pensamento expostos nas artes, só eram acionados por ordem do Conselho ou Mesa. Devido à fraca vida intelectual na colônia foram poucos os Qualificadores e Revedores na Bahia e Pernambuco. Por fim como agentes do Tribunal no Brasil, temos os familiares “Pessoas laicas, que, sem abonar suas próprias ocupações auxiliavam o Tribunal, efetuando prisões, participando de inquéritos, policiando as consciências.” (p. 172) Tendo como principal requisito a total pureza de sangue, ser um familiar dava grande destaque social, além de isenções fiscais, existindo tais oficiais no Brasil, mesmo antes da autorização no Ultramar em 1613, que a historiadora faz um detalhamento de cada um que atuou na Bahia. No terceiro e último item da segunda parte, Sônia Siqueira apresenta o cerne da atividade inquisitorial no Brasil o relatar as duas visitações e seus respectivos visitadores, Heitor Furtado de Mendonça e Marcos de Teixeira finalizando com os processos ordinários. Quanto às visitações a autora aponta os objetivos como integração dos conversos na colônia, reconhecer os cripto-judeus, contudo os documentos analisados não deixam transparecer os motivos iniciais nem regularidade na periodicidade das visitações, mas explicita com clareza as instruções para investimento de poder do visitador na colônia, bem como detalhes da cerimônia de posse baseada nos documentos, e a partir da posse proclamava-se os éditos Fé e Graça, com listagens de desvios e períodos de confissão, respectivamente. Os principais trabalhos realizados durante as Visitações eram as Confissões, as Denúncias, Inquirições e Ratificações. As confissões serviam como libertação das culpas, a partir do que era determinado como heresias ou apostasias, e o inquisidor visto como um médico das almas que não distinguiam os homens nos seus status sociais. No decorrer do item são mostrados quadros com as culpas confessas em cada visitação, onde são possíveis identificar problemas específicos da colônia, bem como quais os valores regiam o comportamento da sociedade colonial para que o indivíduo fosse por espontânea vontade confessar-se ao inquisidor. 6
Outra levantamento historiográfico muito bem apresentado é o das denúncias,
com transcrições de documentos, vários relatos nominais e um quadro com o número de denúncias e outro com as atividades dos denunciantes, permitindo complementar a compreensão da mentalidade da sociedade colonial quanto à ortodoxia da Igreja Católica. As análises também deixam transparecer os conflitos pessoais e de grupos sociais dentro da colônia, pelas mais diversas denúncias que ocorriam entre amigos, contra mortos e até mesmo de eclesiásticos entre si, concluindo que todos os segmentos da sociedade cooperavam com a inquisição, onde denúncias e confissões eram confirmadas em novos depoimentos através das Ratificações. A descrição do papel do visitador e de quem foram também são destacados no trabalho da historiadora apresentando desde condições de deslocamento à pompa de suas apresentações públicas. Faz também um trabalho de apresentação biográfica do visitador Heitor Furtado e um estudo sobre a possível identidade do segundo visitador D. Marcos Teixeira, que possui mesmo nome de um dos bispos no Brasil, atuante na Bahia, dificultando uma precisão por parte dos historiadores em diferenciá-los, já que trabalharam juntos. O último item analisado na obra faz referência aos processos, que tinham como finalidade a unidade religiosa, sendo caracterizado, na colônia, sua escassez devido à necessidade da tolerância na colônia, bem como a redução da teatralidade. Sônia esboça cada etapa do processo inquisitorial, desde as acusações, ou confissões, o enquadramento da heresia praticada, as prisões e a fases de interrogatórios, bem como, testemunhas e sentenças, que na maioria das vezes eram castigos morais. Deixando claro que no Brasil a inquisição não se desenvolveu em todas as etapas, nos casos mais graves, que requeriam um processo mais complexo, os processos eram enviados para Lisboa. Na conclusão, é reforçado que é demonstrado no início do texto, que era impossível a transposição da cultura da metrópole para a colônia, e sim adaptá-la com tolerância, trabalho que é feito com extensa fonte documental e detalhes sobre os indivíduos nos anexos onde todos os indivíduos de destaque na sociedade colonial são catalogados nominalmente, bem como todos os 179 processos, somados os da Bahia e Pernambuco.