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A Autonomia Difícil
Introdução
Historicamente, o conceito de autonomia nasce na cultura política da democracia grega para indicar
as formas de governo autárquicas, e é somente a partir do humanismo individualista da Idade
Moderna, que culmina na Aufklärung (Iluminismo) do século XVIII, que o conceito de autonomia se
aplica ao indivíduo. Desde então, o indivíduo se torna um autêntico sujeito moral, titular de direitos e
deveres correspondentes, e capaz de querer o Bem voluntária e racionalmente. A primeira
formulação sistemática do conceito de autonomia, aplicado ao indivíduo, deve-se a Kant, para quem
o sujeito moral em questão é a pessoa, isto é, o indivíduo racional e livre, e é por isso que a ética
kantiana será conhecida como "racionalismo ético". Em Fundamentação da metafísica dos costumes
(1785), Kant afirma que a lei moral autônoma é aquela que tem na "vontade boa" (das gute Wille)
seu fundamento e legitimidade, sendo o único princípio fundamental (Kant utiliza o termo
"supremo") da moralidade e, portanto, garantia da personalidade moral. Ela se contrapõe à
heteronomia que é, propriamente, ausência de moralidade, pois estaria embasada na "vontade
má" (das böse Wille) e na irracionalidade.
A ética kantiana permanece praticamente até Nietzsche, que em Além do bem e do mal e A
genealogia da moral (ambos de 1887) procede literalmente à desconstrução do racionalismo
kantiano (é conhecida sua afirmação de "fazer filosofia a golpes de martelo"). Nietzsche mostra, por
exemplo, como atrás da "vontade boa" e dos princípios morais racionais agem de fato motivações
inconscientes e a vontade de poder , assim como o ressentimento resultante da frustra ção da vontade
de poder e que alimentaria o poder das religiões sobre os indivíduos. Porém, ao propor a figura todo-
poderosa do Übermensch ("ser sobre-humano"), capaz de se erguer sobre o ressentimento, as
convenções morais e de dominar as paixões, Nietzsche acaba conservando o aspecto voluntarista da
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moral kantiana, embora conceba a vontade não mais relacionada à racionalidade (como Kant), mas à
irracionalidade (como os filósofos e artistas românticos). Assim sendo, a desconstrução de Nietzsche
permanece inacabada, pois ele embasa ainda a moralidade num princípio absoluto como aquele da
vontade "sobre-humana". De fato, a verdadeira crise da ética kantiana só acontecerá em nosso século
graças às análises dos conteúdos e das formas dos enunciados morais realizadas pela filosofia
analítica, por um lado, e quando a ética se tornará ética aplicada, por outro, ou seja, quando serão
abandonados os princípios absolutos (como o princípio da sacralidade da vida) como garantia de
legitimidade da moral, válidos para todos e em todos os tempos e lugares, sendo substituídos por
princípios (ou valores) prima facie, isto é, não absolutos e dependentes do contexto em que ocorrem
os conflitos morais.
É nesse novo clima que a partir dos anos 60 o princípio de respeito da autonomia pessoal se torna
uma das principais ferramentas da filosofia moral, em particular da ética aplicada aos conflitos de
interesses e valores vigentes nas sociedades secularizadas das democracias pluralistas ocidentais.
Junto com o conceito mais antigo de justiça _ que constitui de uma certa forma seu "antagonista
complementar" e que já Aristóteles considerava a síntese de todas as virtudes do cidadão _, o
princípio de autonomia forma os alicerces morais do "projeto" moderno que legitimam seu
"programa" civil embasado naquela que Norberto Bobbio indicou como o surgimento da "cultura dos
direitos".
De fato, ambos os princípios (autonomia, justiça) participam da necessária, mas difícil, tarefa da
construção da cidadania moderna por meio da coabitação entre duas exigências igualmente legítimas,
mas logicamente em conflito: 1) o particularismo das liberdades, preferências e interesses pessoais,
pertencentes ao campo dos direitos de cada indivíduo _ ou de primeira geração _, nascidos com a
Aufklärung do século XVIII; 2) o universalismo das necessidades e interesses comunitários e
coletivos, pertencentes ao campo dos direitos de todos os indivíduos _ ou de segunda geração _,
elaborados a partir do século XIX (1).
Da maneira como estes dois tipos de princípios e direitos forem equacionados depende o tipo de
sociedade vigente: individualista ou libertária, por um lado, coletivista ou socialista, por outro, sendo
que toda uma gama de posições intermediárias são possíveis, desde o liberalismo democrático ou
neocontratualista (como aquele teorizado por Rawls) até a democracia comunicativa de Habermas,
passando pela crítica ao atomismo individualístico feita por neocomunitaristas, feministas e
ambientalistas, por exemplo.
Entretanto, para os fins de nossa apresentação consideraremos somente os dois primeiros tipos de
direitos, embora exista atualmente um consenso crescente, entre especialistas e não, de que o terceiro
tipo de direitos (e os problemas a eles associados) está intimamente ligado aos dois primeiros.
O problema que queremos enfrentar é, portanto, aquele da autonomia e de suas relações com seu
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antônimo, a heteronomia, no contexto das sociedades seculares, democráticas e pluralistas como são
_ ou pretendem ser _ as sociedades ocidentais, dentre as quais pode-se incluir em princípio (mas,
para alguns, infelizmente nem sempre de fato) também o Brasil.
Para tanto, abordaremos, de forma introdutória, dois aspectos interligados de uma mesma questão: 1)
o aspecto histórico-conceitual da autonomia; 2) o aspecto de sua aplicabilidade e das dificuldades
que surgem no contexto dos dilemas morais vigentes no campo biomédico.
Visto que este segundo aspecto será abordado pelos demais autores deste número de Bioética, e
considerando nossa preferência pelas quest ões teórico-conceituais, privilegiaremos o primeiro
aspecto.
O conceito de autonomia moral vem jogando um papel cada vez mais importante no campo da ética
aplicada e da filosofia política contemporâneas, juntamente com seu correlato representado pelo
princípio de responsabilidade, entendida sobretudo como responsabilidade coletiva e para com as
gerações futuras. Do correto equacionamento entre estas duas exigências fundamentais da
convivência humana depende, por sua vez, a aplicação do conceito de justiça, entendida seja como
eqüidade seja como imparcialidade, pois a autonomia individual sem alguma forma de
responsabilidade social, garantida por regras de cooperação aceitas por todos, não permite superar
aquelas condições de guerra de todos contra todos, típicas do "estado de natureza" descrito por
Hobbes no Leviathan (1651), no qual cada pessoa define a seu bel-prazer o que é bem ou mal, o que
é justo ou injusto, ao passo que a responsabilidade social sem autonomia individual pode levar a
formas de utopias totalitárias, bem conhecidas em nosso século, e que, em alguns casos (como a
utopia comunista), não vingaram porque provavelmente exigiam dos indivíduos sacrifícios
praticamente insustentáveis (2).
Mas esta dupla exigência de autonomia (entendida como construção e exercício da cidadania) e
justiça (entendida como igualdade e ou eqüidade) não diz respeito somente ao âmbito político, pois
ela é também uma exigência ética que tem a ver com o próprio processo de subjetivação individual.
De fato, ela diz respeito tanto à autonomia entendida como avaliação crítica e instituição das normas
morais, quanto à justiça entendida como imparcialidade e igual consideração de interesses e valores.
Além disso, a exigência de autonomia faz parte também do processo _ típico do pensamento
moderno e contemporâneo _ de desvencilhamento (ou emancipação) da esfera da filosofia moral das
várias formas de fundamentação ontológica, embasadas em alguma peculiaridade da assim chamada
"natureza humana", seja ela a razão, o entendimento ou a sensibilidade. Contudo, esta é uma questão
de tipo epistemológico _ que remete a assim chamada falácia naturalista _ que abordamos
brevemente em outro trabalho (3), razão pela qual não será tratada aqui.
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o grau de sua legitimidade, pois o sistema social deve fundar-se em alguma forma razoável e aceita
desta integração, válida, ou pelo menos respeitada, por todos os integrantes de um grupo, por um
lado, e por cada indivíduo do grupo, por outro. Em suma, trata-se de algo parecido com a quadratura
do círculo!
O problema torna-se, então, o de estabelecer qual seria a relação razoável entre os dois pontos de
vista para cada indivíduo e qual seria o tipo de institui ção (ou princípio instituinte) capaz de
estabelecer um justo equilíbrio entre a igual consideração de todos os interesses pessoais legítimos
sem exigir dos indivíduos sacrifícios inaceitáveis. Sem este equacionamento não saberíamos como
resolver os conflitos de interesses e, portanto, como construir formas de convivência, ou contratos,
aceitáveis por todos os integrantes de uma comunidade moral, a não ser "na marra". Mas, neste
último caso, estaríamos nos afastando da tradição política democrática e pluralista, que constitui uma
das conquistas da cultura moderna e talvez (para utilizar uma famosa afirmação de Sir Winston
Churchill) "o menos ruim dos sistemas políticos" até hoje criados. De fato, este é provavelmente um
dos maiores desafios das sociedades democráticas contemporâneas, que além de não terem
conseguido, até hoje, encontrar uma solução prática satisfat ória, tampouco têm conseguido pensar
uma solução teórica convincente (2).
Etimologicamente, autonomia é palavra de origem grega composta pelo adjetivo pronominal autos,
que significa "o mesmo", "ele mesmo" e "por si mesmo", e pelo substantivo nomos, com o
significado de "compartilha", "instituição", "lei", "norma", "convenção" ou "uso" (4). O sentido geral
da palavra autonomia indica, portanto, a capacidade humana em dar-se suas próprias leis e
compartilhá-las com seus semelhantes ou "a condição de uma pessoa ou de uma coletividade, capaz
de determinar por ela mesma a lei à qual se submeter" (5).
De forma mais geral, o conceito de autonomia pode estar referido a uma realidade não
necessariamente humana, isto é, ao "fato de uma realidade se reger por uma lei própria, distinta de
outras leis, mas não forçosamente incompatível com elas" (6). Este sentido vale, por exemplo,
quando se queira distinguir a realidade orgânica da realidade inorgânica, ou seja, quando nós nos
referimos aos assim chamados sistemas autopoiéticos, descritos por Maturana e outros. Entretanto,
não é desse sentido geral que queremos falar aqui, nem da questão, propriamente epistemológica, das
raízes biológicas do conhecimento e da moral, mas t ão só dos "sistemas" autônomos humanos (7).
Já nesta primeira defini ção "restrita" de autonomia pode-se constatar a existência de uma
ambigüidade semântica entre a referência à esfera individual e à esfera coletiva ou, ainda, entre um
conteúdo ideal _ que indica a capacidade de autodeterminação e de um agente moral ser o verdadeiro
autor de suas ações (teorizada por Kant como autonomia da "boa vontade", enquanto condição
necessária da moralidade de uma ação) _, por um lado, e um conteúdo de realidade, por outro,
consistente no fato do ser humano estar vinculado aos seus semelhantes por meio de instituições tais
como leis, normas, convenções e usos, legitimadas coletivamente. Mas esta relação entre autonomia
e heteronomia é de fato de tipo "dialético" (para utilizar uma palavra aparentemente demodé), pois se
"a verdadeira autonomia" _ isto é, a autonomia sem alguma relação com seu antônimo: a
heteronomia _ pode ser considerada um mito, não podemos, contudo, esquecer que "mesmo assim o
conceito é importante, já que é plausível sustentar que só os agentes que agem de forma autônoma
são responsáveis por suas ações" (8). Assim sendo, "autonomia" e "heteronomia" fazem parte de um
conjunto complexo, cujos elementos são, em princípio, distinguíveis (para evitar a confusão) e
inseparáveis (para evitar o reducionismo), e é nisso que a concepção complexa se diferencia, por
exemplo, da holística.
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Além desse sentido mais geral, a autonomia indica um dos princípios da bioética, tendo sido
utilizado com sentidos técnicos diferentes pelas várias correntes da ética moderna e contemporânea.
Entretanto, e apesar dessas diferenças, é legítimo afirmar que existe um denominador comum entre
tais correntes, que consiste em opor, de alguma forma, o princípio de autonomia ao princípio
heterônomo paternalista, quer dizer, à forma de resolver os problemas de autoridade, poder,
obediência e liberdade através dos meios tradicionais embasados na estrutura familiar patriarcal, na
qual o pater decide e faz todas as escolhas, aplicando o modelo de sua relação com os filhos e,
supostamente, em prol do maior bem-estar dos seus protegidos.
Por outro lado, o conceito de autonomia moral pode indicar e referir-se a pelo menos três sentidos
diferentes: a) ao autor de seus princípios morais; b) a quem escolhe seus princípios morais, dentro
daqueles disponíveis; c) a quem não aceita nenhuma autoridade moral sem uma análise prévia e
pessoal. O primeiro sentido, "forte" e de origem kantiana, pode valer, aparentemente sem maiores
problemas, na esfera privada, e diz respeito às escolhas de estilos de vida que não prejudiquem
terceiros, sendo dificilmente aplicável à esfera pública, onde sempre prevalece alguma forma de
legitimação pelo(s) outro(s). O segundo sentido, "fraco", é em substância a forma standard do
pluralismo democrático, mas sua "fraqueza" consiste no seu caráter conformista e na sua baixa
criatividade, ou seja, na incapacidade de encontrar soluções criativas perante situações inéditas e de
conflitos agudos. O terceiro, que chamaremos de "crítico", consiste numa espécie de "síntese
dialética" entre os dois primeiros, pois tem a vantagem de aliar o reconhecimento (mas não
necessariamente a aceitação) das regras existentes à análise crítica e vigilante de eventuais
preconceitos vigentes no imaginário social, responsáveis por histerias coletivas, discriminações e
injustiças.
Como já vimos, historicamente o conceito de autonomia surge na filosofia política grega com o
sentido de poder autárquico, quer dizer, a capacidade das cidades-estado em dar-se suas próprias leis,
sem estar submetidas às leis ou vontades de outras cidades-estado. Portanto, neste primeiro sentido a
autonomia não estava referida a indivíduos, e isso só se tornará possível durante o Iluminismo,
graças sobretudo à crítica kantiana.
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Com efeito, o conceito de autonomia é central na ética kantiana, e mais do que isso: antes da reflexão
kantiana não se pode propriamente falar em conceito de autonomia como ainda o entendemos (pelo
menos parcialmente) hoje. Mas Kant desenvolve seu conceito em reação à Hume, que pretendia
resolver a contradição entre as idéias de liberdade humana e de necessidade humana, considerando-
as uma contradição aparente. Para Hume, se entendermos a liberdade como liberdade dos
condicionamentos externos e a necessidade como o oposto do acaso, a contradição desaparece. Para
Kant, ao contrário, a liberdade é mais do que a mera ausência de condicionamentos externos, e o
sujeito moral é aquele que faz suas livres escolhas embasando-as em princípios morais que devem
também ser escolhidos livremente, condição necessária da responsabilidade. Um agente moral é
assim autônomo se for ele, e unicamente ele, a escolher sua lei moral, ou seja, se for livre. Ao
contrário, ações embasadas em princípios morais que não forem escolhidos autonomamente devem
ser consideradas heterônomas. Mas como escolher tais princípios? Para Kant, é a razão que permite
esta escolha, que deverá estar embasada na "vontade boa" (das gute Wille), e somente assim a
autonomia será "co-extensiva à racionalidade" (5), visto que a autonomia designa a própria
competência da razão prática humana em dar-se suas próprias leis, sem derivá-las de algo exterior a
ela, a saber, nem de uma "vontade inferior" ou "má" (das böse Wille) representada, por exemplo, por
desejos e interesses, nem por uma "vontade superior", representada, por exemplo, pela suposta
vontade divina. Em outros termos, a autonomia é a competência da vontade humana em dar-se a si
mesma sua própria lei. Além disso, é nosso dever tentar atingir a autonomia moral, assim como
respeitar a autonomia dos outros, que Kant sintetiza pelo imperativo universal do dever: age sempre
como se a máxima de tua vontade devera tornar-se também o princípio de uma lei universal, e pelo
imperativo prático age de tal modo que possas tratar a humanidade, tanto em tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, nunca somente como mero meio mas sempre também como um fim (11).
De fato, Kant retoma uma idéia política do Contrato Social de Rousseau, aplicando-a ao terreno da
moral (fato que confirma a origem social da conceituação da autonomia). Para Rousseau, a
democracia é aquela forma constitucional (simbolizada pelo contrato social) que garante a soberania
do cidadão, na medida em que este pode participar do poder legislativo. Por outro lado, o cidadão é
também súdito, pois está vinculado pela lei (que contribuiu a promulgar no exercício de seu poder
legislativo). Entretanto, Kant inova num ponto essencial a teoria de Rousseau pois, para ele, a
moralidade é a submissão à lei que o homem se dá a si mesmo graças à vontade e à razão. Isto
implica que a vontade esteja livre dos condicionamentos externos, e esta constitui a condição
necessária e suficiente para se fazer a distinção entre autonomia e heteronomia. Porém, hoje _ depois
das suspeitas lançadas por Nietzsche e Freud, dentre outros _, sabemos que o modelo kantiano é um
modelo ideal e que a autonomia factual está numa relação de tipo complexo com aquilo que sempre a
ameaça e pode destruí-la: a heteronomia.
Já na concepção ética contemporânea, pode-se detectar pelo menos três momentos de "altos e
baixos" no valor atribuído à autonomia.
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desculpa que o possa libertar dessa responsabilidade (uma concepção parecida é defendida também
por Camus).
A partir do final dos anos 70, quando a filosofia moral se preocupa, de forma crescente, com os
problemas práticos decorrentes dos avanços das tecnociências biomédicas, e surge a ética aplicada, o
conceito de autonomia adquire um papel cada vez mais preponderante, a tal ponto que para alguns
autores ela constitui o princípio moral mais importante, senão o único. Em outros termos, assiste-se a
uma espécie de retorno de interesse para a ética kantiana, ou mais provavelmente constata-se que, de
fato, algumas correntes da ética biomédica nunca deixaram de dialogar com o kantismo, no qual
encontravam um potente antídoto contra o paternalismo médico tradicional.
Uma das teorias talvez mais conhecidas na área biomédica é a teoria dos quatro princípios
(beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça) formulada por Tom Beauchamp e James
Childress, nos Estados Unidos, defendida na Europa por Ranaan Gillon, entre outros, e aqui no
Brasil também pelo autor.
O principialismo é uma teoria moral embasada em princípios prima facie e aplicada ao campo dos
dilemas e conflitos morais que surgem na área biomédica, que foi muito criticada nos anos 80 por
supostamente atribuir uma ênfase demasiada ao princípio do respeito à autonomia individual, em
detrimento dos outros princípios prima facie e por ser (supostamente) o típico produto do
individualismo protestante norte-americano (e em parte britânico) e seus valores não serem
necessariamente pertencentes a outras culturas morais, inclusive à cultura "mediterrânea" e "latino-
americana". Não temos espaço para entrar nos detalhes desta polêmica (que abordamos num outro
trabalho) (12), mas podemos dizer que se, por um lado, é razoável estigmatizar o principialismo se
este privilegia de fato e a priori o princípio da autonomia em detrimento dos demais princípios (por
exemplo, o princípio de justi ça), sobretudo quando temos em conta as profundas injustiças sociais
que assolam muitas sociedades atuais ("mediterrâneas", "latino-americanas" e outras), por outro, a
crítica nem sempre procede porque o principialismo, quando corretamente aplicado, não procede
desta forma, De fato, o principialismo é simultaneamente analítico e pragmático, quer dizer, uma
metodologia da análise moral que analisa, de forma racional e imparcial, os argumentos morais em
situações concretas de conflitos de interesses e valores prima facie, visando dirimir, quando possível,
os conflitos pela escolha dos melhores argumentos. Em outros termos, o principialismo é exatamente
o contrário de uma operação reducionista, como pretende, muitas vezes, a crítica antiprincipialista,
pois o principialismo (pelo menos como o entendemos) não atribui de fato nenhuma prioridade
lexical (ou a priori) ao princípio de autonomia sobre os demais princípios, nem se restringe
necessariamente aos quatro princípios "canônicos" (beneficência, não-maleficência, autonomia,
justiça), mas constitui, antes, uma opção metodológica para lidar com situações trágicas no campo
biomédico, qual seja, onde existem dilemas morais resultantes de valores legítimos em competição
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entre si. Ademais, a lista dos princípios do principialismo não é necessariamente fechada, podendo
integrar ou excluir princípios que não correspondam ao ethos vigente numa sociedade determinada.
Dito isso, e considerando que alguma forma de autonomia e de autodeterminação faz parte do senso
comum da cultura secular dos direitos humanos, acredito que o princípio de respeito à autonomia
pertença ao patrimônio moral da humanidade, quer se queira ou não. Caso contrário, não poderíamos
evitar a suspeita de que minimizar a importância do princípio de respeito da autonomia pessoal
venha a negar a própria cultura dos direitos humanos e seus inegáveis (embora ainda insuficientes)
avanços sociais e pol íticos. Em suma, a negação da importância do princípio de autonomia poderia
muito bem ser uma espécie de regressão a estágios pré-modernos, mais que um avanço para um
suposto estágio pós-moderno.
Seja como for, existe atualmente uma inegável retomada da reflexão sobre o princípio do respeito à
autonomia, desde aquela "pós-moderna" de Engelhardt _ que propõe a teoria dos "estranhos morais"
e a substituição do princípio de autonomia pelo "princípio de permissão" (principle of permission)
como forma de respeitar as escolhas individuais (13) _ até novas formulações do principialismo,
capazes de considerar todos os princípios prima facie existentes e legítimos de uma determinada
sociedade e cultura, sem hierarquias a priori entre eles, isto é, sem atribuir a nenhum deles uma
prioridade lexical sobre os demais e independentemente do contexto concreto em que se dão, de fato,
os dilemas e disputas morais e se constróem os argumentos racionais e imparciais a favor de uma ou
outra solução. Além disso, visto que o principialismo atual não faz abstração dos casos concretos,
isto é, de alguma casuística, ele pode muito bem dialogar com outras teorias morais, como afirmou
recentemente um dos próprios teóricos da teoria dos quatro princípios ao escrever: "Na minha
avaliação, as duas abordagens _ a principialista e a casuística _ são perfeitamente compatíveis entre
si, e até necessárias uma à outra, nas deliberações relativas a políticas sanitárias" (14).
Nessa vertente sociológica, adquirem particular relevância a questão semântica sobre o que é, afinal,
a autonomia numa sociedade complexa, num mundo globalizado pela tecnociência e biotecnoci ência,
a economia e os mercados, a informação e as modalidades de identificação cultural, e até que ponto
podem e devem ser respeitadas as escolhas autônomas e as diferenças, como formas de conseguir,
simultaneamente, a democracia e o pluralismo.
Ao longo destas reflexões, tentamos mostrar, primeiro, que o conceito de autonomia é um conceito
aparentemente simples, mas de fato complexo, derivado. Ele é um ponto de chegada do projeto
moderno de emancipação do indivíduo e da sociedade das leis heterônomas, sejam estas entendidas
como leis naturais, sobrenaturais ou decorrentes de qualquer outro princípio de autoridade válido a
priori. Ademais, ele se entrelaça com seus sinônimos, tais como "liberdade" e "autodeterminação", e
com antônimos como "vínculo", "coerção" e "heteronomia". Entretanto, os vários sinônimos não são
co-extensivos, embora se imbriquem e se sobreponham.
Por exemplo, o sentido de autonomia _ que chamaremos aqui de "negativa" _ entendida como
"liberdade" dos condicionamentos externos (no sentido tanto de Hume como de Kant) é certamente
uma condição necessária do exercício da cidadania, pois sem esta liberdade não é possível nenhum
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Neste sentido, uma outra condição necessária parece ser a competência da reflexão de segunda
ordem sobre as preferências, que pode ter o resultado de fazer mudar, após uma análise racional e
imparcial (e, diríamos, com Kant, graças à " vontade boa"), a preferência de primeira ordem quando
a reflexão assim o indicar (e a vontade o permitir). Mas mesmo neste caso existem problemas, pois
falta ainda definir o grau de auto-reflexão necessária para poder considerar uma prefer ência como
plenamente autônoma. Em suma, a autonomia plena é mais um ideal do que uma realidade, pois é
praticamente impossível, pelo menos para o cidadão comum, atingi-la. Ademais, fora de um contexto
kantiano de discussão, que obriga a sempre respeitar um princípio, como avaliar o grau de autonomia
em contextos específicos?
Neste caso, destaca-se o respeito ao princípio de autonomia defendido prima facie pelo
principialismo, junto com os demais princípios de não-maleficência, de beneficência, de justiça, quer
dizer, um conjunto de princípios que em princípio (se permitem o jogo de palavras) possibilita
encarar os vários dilemas éticos que se apresentam na prática clínica, para os quais o principialismo
oferece um modelo e um método de análise (certamente imperfeito como todos os modelos) que tem
sua força operacional no fato de não estar vinculado por uma hierarquia estabelecida a priori , ou
seja, de não comportar uma ordem lexical preestabelecida que, em muitos casos, só pode
"atrapalhar". Entretanto, e foi esta uma das principais críticas movidas ao modelo do principialismo,
o princípio de respeito à autonomia parece de fato sobrepor-se aos demais, salvo em casos em que
esteja envolvido o princípio de não-maleficência, isto é, quando está envolvida a possibilidade de
ocasionar um dano a terceiros. Uma versão hard desta tendência é defendida por Engelhardt (13)
com a teoria dos estranhos morais, segundo a qual cada pessoa tem sua vida e sua concepção moral
legítima embasada nos princípios e hierarquias de sua comunidade moral. Por isso, ninguém teria, a
princípio, o direito de impor aos outros seus estilos de vida e suas concepções sobre o que é o bem
ou o mal, nem o direito de limitar a expressão de tais concepções. Ademais, devido ao fato de
vivermos num mundo em princípio democrático e pluralista, no qual vige uma concepção secular da
moral, não existe tampouco um meio canônico de "calcular" e "avaliar" o grau de autonomia pois,
caso contrário, adotar-se-ia o ponto de vista específico de uma comunidade moral particular sobre tal
conceito. É por essa razão, acredito, que Engelhardt substitui o princípio de autonomia pelo princípio
de permissão (principle of permission) que, na nossa avaliação, é mutatis mutandi o sinônimo do
princípio do consentimento informado, talvez a primeira versão contemporânea do princípio de
autonomia, pois foi enunciado pela primeira vez na época do Processo de Nuremberg para condenar
as práticas dos cientistas nazistas e constitui, hoje, uma das ferramentas principais das várias
legislações e diretrizes que regulam a pesquisa biomédica (como é o caso de nossa Resolução n°
196/96).
Assim sendo, o princípio de respeito da autonomia implica também o dever prima facie de respeitar
todas as concepções de autonomia das várias comunidades morais como um meio procedural e
pacífico de debate.
Infelizmente, este modelo ideal da posição libertária, defendida por Engelhardt (e outros como
Richard Nozick), parece impraticável de um outro ponto de vista, que é dos vínculos sociais da
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autonomia, isto é, do ponto de vista dos vínculos que ela tem, conceitual e praticamente, como seu
antônimo: a heteronomia. Neste caso, o respeito à autonomia individual deve ser balanceado com
outras considerações. Tomemos o caso do paternalismo médico e vejamos, para finalizar, como
alguma forma de paternalismo soft poderia ser justificada.
Como já vimos falando da concepção de Mill, uma limitação da autonomia pessoal é razoável
quando estão em jogo a autonomia e a livre vontade de terceiros. No extremo oposto, temos a
concepção paternalista hard segundo a qual podemos limitar a autonomia se esta limitação tem a
conseqüência (suposta) de beneficiar a própria pessoa, a qual Mill responde negativamente (e a ética
biomédica atual parece estar cada vez mais sensível). Entre os dois extremos, existe toda uma gama
de possibilidades que formam o campo da casuística e que, como afirma Childress, não é
incompatível com o método de análise principialista, sendo até complementar, pois é da análise de
novos casos que podemos construir, por comparação, séries que apresentem características comuns e
que poderão indicar, por exemplo, a emergência de um novo princípio moral importante ou a
obsolescência de um princípio antigo (como parece atualmente o princípio da sacralidade da vida).
Em outros termos, se aceitamos a constatação de que num mundo secular e pluralista existem várias
comunidades legítimas de estranhos morais (como propõe Engelhardt) não podemos razoavelmente
saber o que é o melhor para um indivíduo de uma outra comunidade moral, pois somente este está,
em princípio, na melhor condição de saber e decidir o que é o melhor para ele. Neste caso, abre-se
uma nova discussão sobre a tolerância, um outro princípio importante vindo da Aufklärung, mas
sobre o qual deveremos pensar em outra ocasião.
The concept of autonomy applied to a person is a slow conquest of Western culture, as a result of a
modern individualistic humanism. Its historical, conceptual roots are based on the Greek political
culture; initially, it refers to "polys", indicating autarchic cities not submitted to the power of other
cities. Subsequently, this concept indicates an emancipated social imagination, which finds in itself
the principles that institutes its legitimacy by overcoming authority transcending principles, either
natural or divine ¾¾ a phenomenon usually known as secularization. At last, this concept is applied
to individuals, who have rights and duties. Over the latest decades, the autonomy principle of has
become one of the main conceptual tools of applied ethics, being used in opposition to the so-called
medical paternalism within clinical practice.
It is, in particular, one of the conceptual bases for a moral analysis of the principled bioethical
theory, in which all principles must be considered prima facie, that is, as not absolute and within a
context without any hierarchy established a priori. Here we discuss the connection between
autonomy and heteronomy; liberty and justice; individual and social views, in an attempt to prove
that the concept of autonomy is indeed theoretically complex and difficult to apply. Then, we
propose a complex concept of autonomy capable of gathering without confusing, in order to
encompass the real conflicts that occur throughout a secularized, diversified world, where familiarity
principles are instituted by social imagination itself, and where cosmovisions (Weltanschauungen)
and legitimate, divergent interests are in force, thus needing to be often negotiated and reviewed.
Referências
1. Schramm FR. Princípio de justiça: eqüidade e/ou imparcialidade? Medicina (CFM) 1998
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A Autonomia Difícil Page 11 of 11
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