A BANALIZAÇÃO DA INJUSTIÇA SOCIAL -Christophe Dejours
Hoje o grande palco do sofrimento nas sociedades neoliberais é certamente o do trabalho. Nas empresas, cada vez mais adotam-se métodos de gestão que questionam as conquistas sociais, lançam mão da ameaça e apóiam-se na precarização do emprego para obter dos trabalhadores produtividade, disponibilidade e abnegação sempre maiores. Com base nos conceitos de banalidade do mal e de distorção comunicacional, o autor descreve um processo que funciona como uma armadilha: a aceitação do sofrimento e das pressões no trabalho mediante a adoção de estratégias coletivas de defesa. Para manterem seu emprego, para não enlouquecerem, os trabalhadores acabam cometendo atos que reprovam e reforçando a perversidade de um sistema que põe em risco sua integridade mental e física. A adoção dessas estratégias permite-lhes continuar a participar do sistema, mas, paradoxalmente, acabam por precarizar não somente o emprego, mas toda a condição social e existencial - desdramatizando o mal, atenuando as reações de indignação e a mobilização coletiva para a ação em prol da solidariedade e da justiça. A partir dos anos 70, a crítica ao modelo social denominado de welfare state, adotado principalmente pelos governos europeus, fez renascer a ideia liberal de Estado mínimo e liberdade econômica, rebatizada de neoliberalismo, que atingiu durante as duas décadas seguintes proporções que podem ser consideradas globais, ou seja, teve sucesso absoluto. Mostrar a forma como essa mudança foi assimilada e aceita pelas pessoas que mais sentiram seus efeitos – trabalhadores, cidadãos, eleitores – e como elas consentiram o sucesso de um sistema que não trouxe benefícios em termos sociais e salariais é o principal objetivo da obra A banalização da injustiça social, de Christophe Dejours. O autor inicia sua análise defendendo a importância da vontade humana como princípio que dinamiza a mudança, ou seja, é necessário que se deseje algo, caso contrário qualquer tentativa de implantação de um plano econômico é impossível. Essa afirmação descarta, portanto, a teoria econômica de que o neoliberalismo e a globalização são efeitos naturais do sistema econômico atual. O texto levanta as causas que levaram e levam o trabalhador a se sujeitar às imposições capitalistas. Dejours tece críticas à perspectiva de que os indivíduos somente sobreviverão no mercado se superarem a si próprios, tornando-se cada vez mais competitivos e eficientes que os colegas, pares, ou concorrentes, primando pelo individualismo. Aponta que essa contradição presente nos cenários do trabalho precisa ser enfrentada, pois, do contrário, estar-se-á passando por cima de alguns dos princípios que, muitas vezes, se considera importantes, mas que se passa a relegar, devido à necessidade de manter os empregos e, por conseqüência, a sobrevivência. E deixa claro que a crise que se apresenta aos trabalhadores tem sua gênese na natureza do sistema econômico, no mercado ou na globalização, contudo, explica que as condutas humanas diante dessas situações têm contribuído e muito para o agravamento de problemas laborais,principalmente no que se refere ao sofrimento no cotidiano do trabalho. Questiona o por quê se permite que o sistema faça o indivíduo sofrer. As reflexões propostas estão pautadas em questões profundas, situadas no âmbito da subjetividade dos indivíduos, ou seja, os trabalhadores, com o passar do tempo, vão perdendo a esperança, e acabam chegando à conclusão de que os esforços, a dedicação, a boa vontade, o bom relacionamento com os colegas, e produzir o máximo para as empresas/instituições não têm contribuído para que se estabeleça um equilíbrio na relação de prazer- sofrimento. Assim sendo, adota-se, cada vez mais, o distanciamento das questões relacionadas à criação dos conflitos do dia-a-dia laboral. Tal perspectiva afirma o autor, refletirá diretamente não só no desempenho das tarefas no trabalho, mas, também, nos relacionamentos interpessoais que tendem à deteriorização no âmbito do trabalho, da família e em outras instâncias do convívio de cada um. As conseqüências advindas do sofrimento patogênico desencadeado pelo trabalho repercutem tanto na saúde física quanto na saúde psíquica do trabalhador. Entretanto, o que ocorre é a busca de estratégias de defesa para suportar o sofrimento e não se deixar abater. O texto enfatiza como o indivíduo se protege, para poder “agüentar” o sofrimento sem perder a razão. As estratégias utilizadas podem ser coletivas e individuais, e contribuem para tornar aceitável o que muitas vezes não deveria sê-lo. Porém, chama atenção para o processo de cristalização que se transforma em uma cilada, insensibilizando para a percepção daquilo que faz sofrer. Para o autor, trabalhar não é apenas ter uma tarefa para cumprir, significa também viver a experiência, enfrentar a resistência do real, construir sentido do trabalho, para a situação e para o próprio sentimento de prazer ou sofrimento. Fica evidenciado que os trabalhadores, os gerentes e até a alta cúpula das empresas, ou seja, todos tendem a se defender da mesma maneira, negando o sofrimento alheio e calando o seu. Há um debate acerca das questões que acontecem no dia-a-dia do trabalho, nas diversas áreas, pode ser transposto para o processo de trabalho da equipe de enfermagem, pois as atividades desempenhadas podem ser em parte uma construção dos próprios trabalhadores, cabendo-lhes a responsabilidade de pensá-las e ressignificá- lás de modo que os conflitos, a insatisfação, o desprazer sejam equacionados e negociados revertendo em danos, os menores possíveis. Por fim, o texto propicia que se faça uma reflexão sobre importantes implicações do trabalho no âmbito das instituições, dos grupos laborais e particular para cada um, enquanto sujeito-trabalhador. Dessa forma o autor, propõe que os perversos e paranóicos cumprem efetivamente importante papel na construção da doutrina e na ação: são menos “colaboradores” do que lideres da injustiça infligida a outrem. Pois são eles que concebem o sistema e carecemos de uma analise e de uma interpretação da banalidade do mal não somente no sistema totalitário nazista, mas também no sistema contemporâneo da sociedade neoliberal, em cujo centro esta a empresa. O mal, no âmbito desse estudo é a tolerância a mentira, sua não denuncia e alem disso a cooperação em sua produção e difusão. O mal é também a tolerância, a não denuncia e a participação em se tratando da injustiça e do sofrimento infligido a outrem. Este diz respeito igualmente a todas as injustiças deliberadamente cometidas e publicada mente manifestadas, concernentes a designações discriminatórias e manipulador as para as funções mais penosas ou mais arriscadas. Porquanto a banalidade do mal diz respeito à maioria dos que se tornam zelosos colaboradores de um sistema que funciona mediante a organização regulada, acordada e deliberada da mentira e da injustiça. É ainda a manipulação da ameaça, da chantagem, e de insinuações contra os trabalhadores, no intuito de desestabilizá-los psicologicamente, de levá-los a cometer erros para depois usar a s conseqüências desses atos como pretexto para a demissão por incompetência profissional, como sucede aos gerentes. Faz parte dos planos sociais, isto é, nas demissões cumuladas de falsas promessas de assistência ou d ajuda para tornar a obter emprego, ou então, ligadas a justificações caluniosas para a inadaptabilidade, a lerdeza, a falta de iniciativa, etc. A participação das pessoas de bem no mal como sistema de gestão, frente aos princípios organizacionais referentes aos atos contrários ao direito e à moral são cometidos com a colaboração de pessoas tidas como responsáveis pelo direito comum, vistas como cúmplices, embora quando se apresente vista pelas normas dos atos civis, revelam-se “colaboradores”. É inegável ser desprezível para a colaboração (ou a injustiça), tanto no caso dos operários que aceitam usar os meios que estejam a seu alcance para comprometer o colega, argumentando-lhe a chance de ser incluído na próxima lista de demissões, quanto no caso dos gerentes que aceitam fazer o mesmo em relação a seus iguais e seus subordinados. A maioria dos que se tornam “colaboradores” também possui, como o observador de fora, um senso moral. Os “colaboradores” e os “lideres” das ações injustas (ou da injusta para com o outrem) seriam essencialmente perversos e paranóicos: os perversos são os que precisamente, do ponto de vista psicopatológico apresentam uma particularidade de funcionamento das instâncias morais (super ego, ideal do ego, conflito entre ego e super ego). Em virtude da qual um arranjo permite ao sujeito funcionar, se necessário, segundo um ou outro de dois registros antagônicos – um que é moral e outro que ignora a moral, sem comunicação entre os dois modos de funcionamento(tópico da clivagem do ego). Os paranóicos, ao contrario são dotados de uma rigidez moral, máxima em comparação com todas as demais estruturas de personalidade descrita em psicologia. “Trabalho sujo” surge com uma expressão para os que exercem cargos de direção, os lideres do trabalho do mal – representantes da virilidade. A subversão da razão ética só pode sustentar-se publicamente e lograr à adesão de terceiros quando toma como pretexto o trabalho, sua eficácia e sua qualidade, que esta virilidade é construída socialmente, figurando-se como essencialmente masculina. No sistema da virilidade, aqueles que não se abastecem destas praticas iníquas revelam-se fracos ou covardes. Dessa concepção forjada pelos homens nem sempre é partilhada pelas mulheres, mas pode vir a sê- lo. Já que se trata, de uma análise proposta de uma dimensão rigorosamente ética das condutas manipulada por forças propriamente psicológicas e sexuais. A abolição do senso moral passa pela ativação da escolha em função da racionalidade prática, em detrimento das escolhas em função, da racionalidade, moral prática,. A racionalidade estratégica não constitui uma referência de primeiro plano na gênese das condutas de virilidade, é como a racionalidade ética pode perder seu posto de comando, a ponto de ser não abolida, mas invertida. O sendo moral é realmente conservado, mas funciona a base de uma subversão dos valores a qual tem a ver propriamente coma ética. A leitura nos leva a analisar a virilidade socialmente construída como uma das formas principais do mal em nossas sociedades e fundamentalmente associado ao masculino. Considerada como um atributo sexual, isto é, tido como uma evidência em nossas sociedades. A virilidade é o atributo que confere à identidade sexual masculina a capacidade de expressão do poder (associado ao exercício da força, da gravidade, da violência e da dominação sobre outros). O resultado social político dessa conotação, associado a capacidade de usar a força e a violência e através desse juízo de atribuição, a atitude de fuga é vista como covardia.