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Alexandre Felipe Fiuza


Gilmar Henrique da Conceição
(Organizadores)

POLÍTICA, EDUCAÇÃO E CULTURA

Coleção Sociedade, Estado e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação


Mestrado em Educação - PPGE
Pró-Reitoria de Pesquisa Pós-Graduação em Educação
Universidade Estadual do Oeste do Paraná

EDUNIOESTE
CASCAVEL - PR
2008

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


© 2008, dos autores

Diagramação:
Antonio da Silva Junior

Foto da capa:
Paulo Porto, © 1991

Catalogação:
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924


http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura/ organização de Alexandre Felipe


Fiuza, Gilmar Henrique da Conceição. — Cascavel :
Edunioeste, 2008.
214 p. — (Coleção Sociedade, Estado e Educação ; n. 1)

Vários autores

ISBN: 978-85-7644-175-5

1. Educação - Estudo e ensino (Pós-graduação) - Brasil 2.


Pesquisa educacional 3. Universidades e faculdades - Brasil -
Pós-graduação I. Fiuza, Alexandre Felipe, Org. II. Conceição,
Gilmar Henrique da, Org.

CDD 20. ed. 378.1098162


370.78

Impressão e Acabamento
Editora e Gráfica Universitária - Edunioeste
Rua Universitária, 1619 - E-mail: editora@unioeste.br
Fone (45) 3220-3085 - Fax (45) 3324-4590
CEP 85819-110 - Cascavel-PR - Caixa Postal 701

Política, Educação e Cultura


Alexandre Felipe Fiuza
Gilmar Henrique da Conceição
(Organizadores)

POLÍTICA, EDUCAÇÃO E CULTURA

Coleção Sociedade, Estado e Educação


COLEÇÃO SOCIEDADE, ESTADO E EDUCAÇÃO
(NÚMERO 1)

Programa de Pós-Graduação em Educação


Mestrado em Educação - PPGE
Pró-Reitoria de Pesquisa Pós-Graduação em Educação
Universidade Estadual do Oeste do Paraná

EDUNIOESTE
CASCAVEL - PR
2008

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


UNIVERSIDADE ESTADU
ESTADUAL DO OESTE DO P
ADUAL ARANÁ - UNIOESTE
PARANÁ

REITOR
Alcibiades Luiz Orlando

VICE-REITOR
Benedito Martins Gomes

PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO


Geysler Rogis Flor Bertolini
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

PRÓ-REITOR DE GRADUAÇÃO
Eurides Küster Macedo Júnior
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO
Wilson João Zonin

PRÓ-REITORA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


Fabiana Scarparo Naufel

CONSELHO EDITORIAL
Alfredo Aparecido Batista
Ana Alix Mendes de Almeida Oliveira
Angelita Pereira Batista
Antonio Donizeti da Cruz
Clarice Aoki Osaku
Eurides Kuster Macedo Júnior
Fabiana Scarparo Naufel
Fernando dos Santos Sampaio
José Carlos dos Santos
Lourdes Kaminski Alves
Maria Erni Geich
Miguel Ângelo Lazzaretti
Mirna Fernanda Oliveira
Neide Tiemi Murofuse
Paulo Cezar Konzen
Reinaldo Aparecido Bariccatti
Renata Camacho Bezerra
Rosana Katia Nazzari
Silvio César Sampaio
Udo Strassburg
Wilson João Zonin

Política, Educação e Cultura


APRESENTAÇÃO

No bojo do processo de verticalização acadêmica,


implementada institucionalmente na UNIOESTE pelos diferentes
Centros e, no âmbito de sua atuação, pelo Centro de Educação,
Comunicação e Artes (CECA), com seus respectivos colegiados de
cursos, desde 2000, especialmente, colocou, coletivamente, a
necessidade de iniciarmos a elaboração do Projeto de Mestrado em
Educação, para ser submetido à CAPES ainda que algumas debilidades
se apresentassem claramente na ocasião, tais como as relativas a
definição e articulação dos elementos constitutivos da proposta e as
relativas à produção dos docentes. Não tínhamos a pretensão de
que o projeto fosse recomendado pela CAPES, ao menos naquele
momento. A idéia era exatamente mapearmos nossas fragilidades, e

Coleção Sociedade, Estado e Educação


a partir daí focarmos todas as nossas energias com vistas à sua
superação. Foi o que ocorreu. Muitos deram sua inestimável
contribuição, de modo que não podemos ignorar o esforço mútuo,
nem apagar fotografias. No histórico deste Programa não há marco-
zero propriamente dito. Foram anos cumulativos de agregação de
forças e as debilidades constatadas por ocasião da primeira versão
serviram de referência para sua superação exitosa em 2005.
Em termos da implementação do Mestrado em Educação, um
passo importante dado em 2002 foi a definição da área de
concentração “Sociedade, Estado e Educação” e que, após ajustes
necessários, se manteve na proposta aprovada pela CAPES em 2005.
Agora, porém, de forma mais articulada com a linha de pesquisa
“Educação, Políticas Sociais e Estado”, constitui um conjunto temático
no qual as pesquisas e produções acadêmicas lhe dão sustentação
orgânica, visto que congrega estudos orientados para a compreensão
de diferentes dimensões da práxis educativa, a partir da análise dos
fundamentos e/ou ações do Estado e da sociedade civil nos distintos
campos das políticas sociais.
Nessa direção podemos ressaltar duas iniciativas editoriais: a
criação da Coleção Sociedade, Estado e Educação (aqui inaugurada)
e a criação da revista Educere et Educare para publicação técnico-
científica objetivando a divulgação do resultado de estudos ou de
pesquisas em andamento de docentes e discentes do Mestrado em
Educação, além de artigos de pesquisadores externos à UNIOESTE
e do exterior, que dão seqüência ao conjunto de debates com o intuito
de aprofundar os estudos acerca da sociedade, do Estado e da
educação.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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Quanto à criação da Educere et Educare – Revista de Educação


(versão impressa e eletrônica), vinculada ao Mestrado em Educação
e ao Colegiado de Pedagogia, a mesma se encontra em seu quinto
número. A revista publica Núcleos Temáticos e está dividida em três
áreas de conhecimento: Fundamentos da Educação, Fundamentos
Metodológicos e Políticas Educacionais. Esta revista é resultado direto
dos esforços conjuntos de nossos Grupos de Pesquisa em Educação
do CECA, quais sejam: “Políticas Sociais”, “Trabalho, Estado,
Sociedade e Educação”, “Política Educacional e Social”,
“Aprendizagem e Ação Docente”, “Gestão Escolar”, “Educação,
Cultura, Linguagem e Arte”, “História, Sociedade e Educação no
Brasil” e “História e Historiografia na Educação”.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Quanto à criação da Coleção Sociedade, Estado e Educação


aqui em apreço trata-se do início de uma coleção que se expressará
doravante por meio de duas coletâneas anuais de artigos de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

pesquisadores docentes e discentes afetos ao Programa, bem como


de pesquisadores externos. Neste primeiro volume estamos
produzindo o ponto de partida para a sua regularidade que se
estenderá nos próximos anos. Ou seja, a cada ano a Coleção
Sociedade, Estado e Educação publicará dois números cuja
abordagem temática e tratamento teórico serão definidos pelo
Colegiado do curso de Mestrado.
Neste volume buscamos estudar o trabalho como elemento
determinante e fundamental de todo o processo educativo, logo, de
toda instituição escolar. Em razão disso afirma-se que o conceito de
unitariedade da escola ainda está sendo construído e não exclui a
especialização de cada um dentro de seus gostos e inclinações,
usufruindo de todos os elevados prazeres humanos. De modo que
faz sentido recuperar o significado de educação, tendo por ponto de
partida a atividade humana em luta pela sobrevivência como condição
básica da hominização. Nesta seara, o texto de Paolo Nosella, A
construção histórica do trabalho como um princípio educativo, retoma
um tema de grande relevância e avalia como surge um novo conceito
de instituição escolar unitária, em particular a partir das reflexões de
Mario Manacorda. O tema do trabalho também é revisitado em um
outro artigo, Elementos sociais do mundo do trabalho na ficção
cinematográfica: provocações de “O Corte”, de Georgia Sobreira dos
Santos Cêa e Rosane Zen, desta feita a partir da análise das mudanças
estruturais no mundo do trabalho sugeridos em assuntos e cenas
que constituem o filme de Costa-Gavras e se ocupando de uma
bibliografia que discute o mundo do trabalho e as mudanças que
afetam diretamente os trabalhadores.

Política, Educação e Cultura


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Nesse sentido, a luta política para a redução e eliminação das


desigualdades sociais continua e até mesmo se acentua. Assim, indica-
se que reconverter o professor é um empreendimento que implica
em reconverter as próprias instituições de formação docente ou os
projetos institucionais por elas implementados. Desse modo, o
propósito de reconversão profissional supõe a reconversão conceitual,
ou seja, deve-se assumir que estamos frente ao colapso do conceito
de professor, articulado ao colapso de uma determinada concepção
de escola. No âmago desta temática, o texto Redes para reconversão
docente de Eneida Oto Shiroma e Olinda Evangelista, analisa o
destaque adquirido pelos programas de capacitação profissional, em
particular, se detendo na requalificação docente, mediante o exame
de políticas no âmbito nacional e internacional, além de avaliar as
parcerias estabelecidas para tais programas. Por sua, vez, no texto
Integração da educação profissional técnica de nível médio na

Coleção Sociedade, Estado e Educação


modalidade de educação de jovens e adultos: algumas reflexões sobre
o currículo, as autoras Edaguimar Orquizas Viriatto e Renata Gotardo
tecem considerações sobre o currículo integrado para o ensino médio
profissional na modalidade da Educação de Jovens e Adultos, e em
particular se detém no PROEJA e nas suas diferenças em relação a
projetos similares.
Em Para que servem os cursos de formação de professores?,
Lizia Helena Nagel pondera sobre os conceitos de educação, ensino
e aprendizagem, e analisa os resultados produzidos pelo Programa
Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), se detendo no exame
do desempenho de alunos brasileiros e relacionando-os às
orientações pedagógicas que embasaram a educação brasileira nos
últimos anos. Ainda tendo como horizonte a preocupação com a
escola, os professores Cezar Ricardo de Freitas e Maria Inalva Galter,
remontando ao século anterior, analisam em Reflexões sobre a
educação em tempo integral no decorrer do século XX, como o
conceito e sua aplicação prática foi ressignificado na atualidade, seja
nos projetos nacionais ou naqueles implementados na cidade de
Cascavel. Com uma temática similar, o artigo Gramsci e a educação:
A relação Escola-Partido no contexto da construção da sociedade
capitalista, de Luiz Carlos de Freitas, explora o debate que envolve a
Escola Única proposta por Gramsci e sua insuficiente relação com
as propostas políticas do autor em relação à intervenção e à
transformação social.
Com base na teoria de Vigotski e de Leontiev, o pesquisador
Enio Rodrigues da Rosa, em seu texto A educação das pessoas cegas
ou com visão reduzida no Estado do Paraná, esquadrinha as políticas

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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educação e legislação no tocante à educação de pessoas cegas no
Paraná, além de perscrutar os movimentos organizativos em âmbito
regional. Com um tema similar, Alfredo Roberto de Carvalho, em
Inclusão social no contexto da reorganização capitalista do final do
século XX: pessoa com deficiência, educação inclusiva e reserva de
postos de trabalho, a partir de uma perspectiva histórica, pondera
sobre a inclusão social de pessoas com deficiência na escola e no
trabalho, verificando pressupostos de modelos inclusivos e sua
relação com o contexto econômico, político e social. Ainda no que
tange as cotas, e com uma temática que tem gerado calorosos
debates, Luis Fernando Cerri, em Notas críticas aos argumentos contra
cotas para negros nas universidades públicas, escrutina
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

cuidadosamente as argumentações contrárias às cotas para negros


nas universidades, trazidas à cena pelos grandes meios de
comunicação e representativas dos interesses políticos dos grupos
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que controlam tais mídias. Outro trabalho que se ocupa de uma


outra faceta do campo midiático é o artigo A educação pela censura:
o controle musical como agente de educação não-formal na ditadura
portuguesa, de Alexandre Felipe Fiuza, que identifica a censura
musical portuguesa como um meio de educação não-formal da
população na medida em que a ditadura controlou os discursos deste
que era um dos produtos culturais mais consumidos no país.
Tratando sobre o curriculo, no artigo Multiculturalismo e
Diretrizes Curriculares Nacionais: uma questão em debate, Vanice
Schossler Sbardelotto traz elementos que tem em vista contribuir
para a compreensão do multiculturalismo, que segundo sua
perspectiva, tem deslocado a desigualdade entre as pessoas da base
material para uma diferença cultural, individual, de guetos ou
minorias. A expressão dessa perspectiva nas DCNs indicaria a ruptura
da primazia do conhecimento científico e a supervalorização de
aspectos culturais, éticos e morais.
Enfim, em meio a esta dinâmica social, temos aqui nesta
coletânea uma série de artigos que não resvalam na realidade, mas
se ocupam detidamente da concretude dos problemas educativos e
de temas prementes no debate educacional contemporâneo. É com
base nos relevantes temas aqui elencados que temos a grata
satisfação de convidar a todos a se debruçarem sobre este livro,
pois encontrarão aqui material de investigação relevante nas
temáticas abordadas pelo coletivo do Mestrado em Educação.

Cascavel, março de 2008.


Os Organizadores.

Política, Educação e Cultura


SUMÁRIO

A educação das pessoas cegas ou com visão reduzida


no Estado do Paraná .............................................................. 11
Enio Rodrigues da Rosa

Redes para reconversão docente .......................................... 33


Eneida Oto Shiroma e Olinda Evangelista

Para que servem os cursos de formação de professores? ...... 55


Lizia Helena Nagel

Notas críticas aos argumentos contra cotas para negros

Coleção Sociedade, Estado e Educação


nas universidades públicas .................................................... 73
Luis Fernando Cerri

A construção histórica do trabalho como


um princípio educativo ......................................................... 91
Paolo Nosella

Inclusão social no contexto da reorganização capitalista


do final do século XX: pessoa com deficiência, educação
inclusiva e reserva de postos de trabalho .............................. 101
Alfredo Roberto de Carvalho

Reflexões sobre a educação em tempo integral


no decorrer do século XX ...................................................... 121
Cezar Ricardo de Freitas e Maria Inalva Galter

Integração da educação profissional técnica de nível


médio na modalidade de educação de jovens e adultos:
algumas reflexões sobre o currículo ...................................... 139
Edaguimar Orquizas Viriato e Renata Cristina da Costa Gotardo

Elementos sociais do mundo do trabalho na ficção


cinematográfica: provocações de “O Corte” ......................... 157
Georgia Sobreira dos Santos Cêa e Rosane Toebe Zen

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


Gramsci e a educação: A relação Escola-Partido
no contexto da construção da sociedade capitalista .............. 173
Luiz Carlos de Freitas

A educação pela censura: o controle musical


como agente de educação não-formal
na ditadura portuguesa ......................................................... 191
Alexandre Felipe Fiuza

Multiculturalismo e Diretrizes Curriculares Nacionais: uma


questão em debate ............................................................... 203
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Vanice Schossler Sbardelotto


http://www.unioeste.br/pos/educacao/

SOBRE OS AUTORES ............................................................ 215

Política, Educação e Cultura


Coleção Sociedade, Estado e Educação

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura


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A EDUCAÇÃO ESCOLAR DAS PESSOAS CEGAS OU COM


VISÃO REDUZIDA NO ESTADO DO PARANÁ

Enio Rodrigues da Rosa

“A palavra vence a cegueira.”


(VIGOTSKI, 1997, p. 82).

Este artigo pretende assinalar alguns aspectos históricos,


políticos e psicológicos sobre o processo de educação escolar das
pessoas cegas ou com visão reduzida no Estado do Paraná, tomando

Coleção Sociedade, Estado e Educação


como marco referencial histórico o surgimento do Instituto
Paranaense de Instrução e Trabalho para Cegos (IPC),, em 1939, na
cidade de Curitiba, capital do Estado.
É importante deixar claro que este estudo apresenta um exame
da questão e não tem a pretensão de esgotar a análise em função de
duas condicionantes: a) os limites de um artigo impõem selecionar
das fontes primárias e secundárias disponíveis os principais
elementos e abordá-los de modo sucinto; b) até onde foi possível
levantar as fontes, existe pouca produção sobre este assunto no
Estado, por isso, uma pesquisa de maior alcance e abrangência, tanto
na coleta e catalogação das fontes primárias e secundárias, bem como
na exploração dos dados, ainda está por ser realizada sobre o tema
em questão. Ao lado dessas considerações, outra também se faz
necessária: o trabalho procura conjugar as reflexões teóricas e as
observações empíricas da realidade das pessoas cegas ou com visão
reduzida, como fruto das próprias experiências e vivências do autor
como pessoa cega e militante do movimento das pessoas com
deficiência.
Antes de avançar na exposição, e procurando lastrear o
percurso educacional das pessoas cegas, é preciso pontuar alguns
elementos históricos que antecederam e serviram de base na
constituição e propagação dos serviços especializados de apoio aos
alunos matriculados na rede do ensino comum do Estado do Paraná.
Desde o início da Independência do Brasil (1822), tanto na
educação como em outros setores da sociedade, a presença da
iniciativa privada de natureza filantrópica assistencial foi uma das

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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características que acompanharam o desenvolvimento de programas


e serviços voltados para o atendimento das carências das massas
excluídas dos bens elementares de sobrevivência, principalmente
no que toca ao atendimento das necessidades das pessoas com
deficiência.
Preocupadas apenas com a formação dos quadros dirigentes
dos destinos da nação, as elites brasileiras investiram na educação
superior, deixando a cargo das iniciativas particulares a educação
primária das primeiras letras, mesmo tendo a Constituição Imperial
de 1824 estabelecido que esta fosse gratuita e da responsabilidade
das províncias.
A Constituição de 1824, era de
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

[...] orientação liberal, mas não democrática, assegurava direitos civis


(de cidadania) aos brasileiros brancos, mas não aos índios e escravos, e
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

direitos políticos (de voto) aos brasileiros brancos que tinham, no


mínimo, renda de 100 mil réis anuais: quem é “coisa” não tem direitos,
quem é “povo” ou “plebe” tem direitos civis e políticos diferenciados,
proporcionais à renda. Considerando a questão do ângulo do princípio
liberal proclamado de igualdade, essa repartição mostrava-se
enormemente restritiva, pois, na época, três quartos da população
compunha-se de escravos e grande parte do restante era de brancos
livres e pobres (HILSDORF, 2003, pp. 43 e 44 - grifos da autora).
É neste contexto que surge no Brasil a primeira instituição
educacional especializada para os filhos cegos das classes
economicamente subalternas – vale lembrar, com exceção dos
escravos e dos índios. De acordo com o Decreto Imperial nº 1.429,
de 12 de setembro de 1854, foi criado o Imperial Instituto dos
Meninos Cegos, inaugurado solenemente em 17 de setembro do
mesmo ano, na cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte (LOBO,
1997, p. 558). Na opinião de Silveira Bueno, o surgimento desta
instituição dedicada à educação especial parece refletir mais a
importação de certo espírito “cosmopolita” dos grandes centros,
como resultado do interesse de figuras próximas ao poder constituído
do que pela sua real necessidade (1993, p. 85).
Este modelo institucional segregado teve início na França, em
1784, com a criação do Instituto dos Jovens Cegos de Paris, onde o
capitalismo já havia alcançado um grau mais avançado de
desenvolvimento das forças produtivas, possibilitando inclusive o
aproveitamento da mão-de-obra de certos cegos em alguns tipos de
atividades econômicas. Transposto para uma realidade econômica
baseada na monocultura para a exportação ainda movida por

Política, Educação e Cultura


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mão-de-obra escrava, a criação do Instituto serviu para retirar das


famílias e colocar em espaços segregados aquelas pessoas que não
necessitavam ficar isoladas do convívio da sociedade.
De acordo com algumas informações, mesmo antes da
fundação da escola especializada, já havia no Brasil algumas pessoas
cegas escolarizadas, tanto que no ato de inauguração do Instituto, o
Dr. José Sigaud aponta dois casos de sucesso quanto às meninas
cegas: “Olineina de Azevedo que vivia na província do Ceará e se
casara com um fazendeiro local e que também estudara em Paris;
Delfina da Cunha que vivia em Pelotas na província do Rio Grande
do Sul e que publicara ‘[...] um livro de poesia no reinado do Sr. D.
Pedro I’” (ZENI, 1997, p. 122, grifos do autor).
Como parte da propagação do modelo institucional segregado,
baseado no Instituto Benjamin Constant, em 1939, foi fundado em

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Curitiba o Instituto Paranaense de Instrução e Trabalho para Cegos
(IPC). “Em 1939, foi fundada a primeira entidade de assistência aos
portadores de deficiência visual, o Instituto Paranaense de Cegos”
(PARANÁ, 1994, p. 10). Esta entidade é a mantenedora da única Escola
Especializada ainda existente no Estado, criada em 1941, quando
este modelo era predominante em todo o País.
Em 1932, merece registro o fato de um estudante cego da
cidade de Curitiba ter recorrido ao recém criado Conselho Nacional
da Educação (1932) para ter assegurado o seu direito de estudar
numa escola comum. Conforme o parecer do relator do Processo n
º 291, de 04 de novembro de 1932, o Professor Cesário de Andrade,
apesar de entender que não seria possível para um professor da
escola comum ministrar aulas para um aluno cego que se vale de
métodos de ensino tão diferente, junto com os demais alunos, tocado
pela compaixão e com base na eqüidade, acabou concedendo o
direito do aluno cego freqüentar uma sala de aula do ensino comum.
O professor Cesário de Andrade mostra que não é possível ministrar
em conjunto o ensino de classes de alunos cegos, que se valem de
sistemas especiais e ainda deficientes e de alunos videntes que seguem
métodos pedagógicos comuns. O referido Parecer concluiu pela
concessão da matrícula pleiteada, porque: seria realmente
profundamente doloroso que, além do cárcere das trevas, privássemos
o requerente desse bálsamo espiritual, que tanto o ajudará a quebrar o
cepticismo tão próprio dessa grande desgraça que é a cegueira
(SOMBRA, 1983, p. 25).
Mesmo durante a Idade Média, as pessoas cegas filhas das
elites que não eram abandonadas a sua própria sorte conseguiram

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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atingir níveis elevados de instrução formal e ocuparam posição de


destaque na sociedade. Silva (1986, p. 251-254) fala dos cegos
“brilhantes”, dos quais destacam-se aqui três como exemplo: Nicolas
Saunderson (Professor em Cambridge), John Metcalf (Engenheiro) e
Maria Tereza Von Paradis (Concertista). No entanto,
esses cegos só conseguiram alcançar níveis de realização tão notáveis
porque não eram abandonados ou entregues à própria sorte. Para que
qualquer indivíduo se tornasse professor de Cambridge, engenheiro
ou concertista, quer fosse vidente ou cego, seria preciso ter recebido
instrução formal, fato que parece ter passado desapercebido por esses
historiadores (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 62).
Silva (1986) também fala de moças cegas usadas como
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

prostitutas e rapazes cegos utilizados como remadores nas Galés.


Porém, esses são apresentados sem nomes e sem nenhuma menção
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

de “brilhantismo”. Em qualquer lugar em que os Institutos foram


criados, os dados revelam que em sua esmagadora maioria, as
pessoas cegas que deles fizeram uso pertenciam às famílias da classe
trabalhadora que não tinham alternativa de educação para os seus
filhos cegos. Zeni (1997) demonstra que, quando da fundação do
Imperial Instituto dos Meninos Cegos do Brasil, em 1854, por razões
diferentes, tanto as famílias abastadas como as famílias pobres
ofereciam resistência quando se tratava de mandar os seus filhos
cegos para a instituição.
Não é objetivo deste estudo explorar com detalhes as
principais controvérsias e polêmicas travadas envolvendo os
defensores do modelo educacional segregado e os defensores da
integração das pessoas cegas ou com visão reduzida nas escolas do
ensino comum. Contudo, é interessante observar o que diz Araújo,
citando Lemos:
A integração no ensino primário foi iniciativa da Fundação para o Livro
do Cego no Brasil, em São Paulo. O ensino integrado de 2º grau foi
resultado dos esforços desenvolvidos pelo Instituto Benjamin
Constant, no Rio de Janeiro. A integração das pessoas cegas no ensino
superior foi uma conseqüência de sua admissão ao ensino de 2º grau e
se fez através de atividades isoladas dos interessados, mediante a
obtenção de pronunciamento do então Conselho Nacional de
Educação (1993, p. 50).
No período entre 1946 e 1979, pelo menos seis
acontecimentos merecem destaque na luta pela integração dos
alunos cegos ou com visão reduzida nas escolas do ensino comum:
no ano de 1946, a criação da Fundação para o Livro do Cego no
Brasil; 1958, a instituição da Campanha Nacional de Educação

Política, Educação e Cultura


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para Cegos junto ao MEC; 1961, a promulgação da primeira LDBN,


Lei n. 4.024/1961, particularmente o Título X, Da “Educação de
Excepcionais”, Artigos 88 e 89; 1964, a realização do Primeiro
Congresso Brasileiro para a Educação das Pessoas com Deficiência
Visual; 1973, a criação do Centro Nacional da Educação Especial –
CENESP/Departamento da Deficiência Visual; e 1979, a divulgação
das quatro propostas Curriculares para a área da deficiência visual.
“De 1975 a 1977, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em
convênio com o CENESP, trabalhou no Projeto de Reformulação de
Currículos para Deficientes Visuais, considerando o instrumento
básico de ação no processo ensino-aprendizagem” (BRASIL, 1979,
p. 09).
Embora este processo tenha ocorrido paralelamente, é preciso
compreendê-lo como parte dos debates e disputas travadas em torno

Coleção Sociedade, Estado e Educação


da elaboração da primeira LDBN, Lei de Diretrizes e Bases Nacional,
Lei n. 4.024/1961. Como não há espaço aqui para explorar os
principais pontos polêmicos que envolviam as discussões sobre a
Educação Especial neste período, sobretudo na área da Deficiência
Visual, entre os defensores do modelo segregado e os defensores da
integração dos alunos cegos nas escolas do ensino comum, vale
mencionar que para alguns autores a década de 1970, de fato
representou um marco histórico importante da Educação Especial
brasileira. Por exemplo, de acordo com Jannuzzi,
[...] podemos colocar a década de 1970 como um marco divisor da EE,
porque até então ela esteve mais sujeita à sensibilidade das associações
principalmente filantrópicas. Agora, em 1973, no governo Médici,
criava-se um órgão diretamente subordinado ao MEC para cuidar de
política da educação especial em termos nacionais, o CENESP (Decreto
72.425/73). [...] o Grupo de Trabalho encarregado de operacionalizar o
Projeto Prioritário n.º 35, e que vai propor a criação do CENESP,
fixando suas diretrizes, contou com a consultoria de James Gallagher
da University of North Caroline, por intermédio do Escritório de
Recursos Humanos da USAID/Brasil (1997, p. 195-196).
Com o objetivo de atender o previsto na Lei n. 4.024/1961,
particularmente do Título X, “Da Educação de Excepcionais”, em
1961, a Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Paraná criou
o Serviço de Educação dos Excepcionais. Dez anos depois, em 1971,
a partir das alterações introduzidas pela Lei n. 5.692 de 1971, foi
criado o Departamento da Educação Especial (DEE). De acordo com
documento elaborado pelo DEE, a educação escolar dos educandos
com deficiência “[...] desenvolveu-se em duas vertentes distintas:

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


16

instituições privadas e programas especializados na rede pública de


ensino” (PARANÁ, 1994, p. 11).
É a partir deste quadro que se pretende assinalar e refletir
sobre alguns elementos da educação das pessoas cegas ou com visão
reduzida matriculadas nas escolas do ensino comum. A referência
inicial será o documento preliminar, elaborado pela professora do
CENESP, Jurema Venturini, denominado “Projeto Especial
Multinacional de Educação”, que envolvia o Brasil, Paraguai, Uruguai
e a Organização dos Estados Americanos. De acordo com este
documento, o objetivo era a “[...] elaboração de um plano de atuação
visando a implantação de serviços de atendimento a cegos e
deficientes da visão na região oeste do Estado do Paraná”
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

(VENTURINI, 1975, p. 01).


Fazendo menção às condições de alguns municípios para a
implantação dos serviços, o documento afirma:
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

O que se pode destacar das informações existentes é que a utilização


do sistema educacional, das unidades de ensino, dos recursos sociais
existentes nos diferentes municípios, principalmente Cascavel, Toledo
e Foz do Iguaçu, permite a organização e funcionamento de programas
educacionais para cegos e deficientes da visão (VENTURINI, 1975, p.
17).
Na perspectiva da integração, “[...] a educação e reabilitação
de cegos e deficientes da visão passa a sofrer nova abordagem,
beneficiando-se do nível técnico e científico atingido pelas ciências
em geral e mais particularmente pelo surgimento das especializações
nas ciências médicas e para-médicas e nas ciências do
comportamento” (VENTURINI, 1975, p. 03).
Dessa forma, com base nos pressupostos teóricos deste
documento, o atendimento especializado deveria ser realizado nas
Salas de Recursos que seriam instaladas em unidades de ensino
regular e com atendimento contínuo do professor especializado. A
Sala de Recurso desenvolve diversas atividades de apoio aos alunos
matriculados nas escolas do ensino comum. Entre as atividades
especializadas, destacam-se: o ensino itinerante, em que o professor
especializado realiza o atendimento periódico ao aluno matriculado
na unidade de ensino mais próximo de sua residência; atividades
adicionais escolares, tais como: orientação e mobilidade, atividades
da vida diária; reeducação da visão, uso de recursos especiais de
leitura e escrita e orientação vocacional. Do ponto de vista dos
materiais adaptados, são considerados como imprescindíveis os livros
em braile, tipos ampliados, livros falados; aparelhos de escrita:
regletes, punções, máquinas de datilografia braile e comum;

Política, Educação e Cultura


17

especiais: aparelhos para cálculo, sorobã e cubaritímo; materiais para


ensino nas diferentes salas de estudo; gravadores e reprodutores;
auxílios ópticos (VENTURINI, 1975).
Numa perspectiva multiprofissional de atendimento, além do
professor especializado, as Salas de Recursos deveriam contar
também com o serviço do médico, do psicólogo, do assistente social
e do orientador vocacional. Além disso, a família também teria um
papel importante no apoio ao processo educacional das pessoas
cegas ou com visão reduzida, tanto que no caso do Estado do Paraná
houve uma tentativa de criação de uma rede de Associações de Pais
e Amigos na mesma linha das APAES – Associação de Pais e Amigos
dos Excepcionais.
Em Curitiba, tomando por base o “sucesso” das APAES, um grupo de
pais, profissionais da área e voluntários da comunidade, reuniram-se e
em 1972 fundaram a Associação de Pais e Amigos dos Deficientes

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Visuais (APADEVI), com o propósito de oferecer um conjunto de
serviços denominados especializados para apoiar as pessoas cegas ou
com visão reduzida, matriculadas ou não na rede escolar de ensino.
Os estatutos e a organização da APADEVI, na esteira do modelo
apaeano, mantinham a continuidade da instituição filantrópica, ainda
que os destinatários de seus serviços fosse um segmento com
características absolutamente diversas daquele, próximos apenas na
concepção histórica de dependência e incapacidade (TURECK, 2003,
p. 53 – grifos da autora).
Entretanto, ao contrário do movimento apaiano, além de
inexpressivas em termos de força política, hoje, as APADEVIS -
Associações de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais, e outras
instituições prestadoras de serviços na área da Deficiência Visual
não passam de uma dúzia em todo o Estado. Se na área da deficiência
mental o governo incentivou a consolidação e expansão de uma rede
privada, filantrópica e assistencialista, na área da deficiência visual
preferiu aproveitar a estrutura já instalada das escolas estaduais para
colocar em funcionamento os serviços públicos de atendimento
especializados para as pessoas cegas ou com visão reduzida, evitando
sobretudo gastos financeiros com novas construções. Isso
provavelmente foi um dos fatores que inibiu a consolidação de uma
rede privada na área da deficiência visual.
Fazendo menção ao trabalho do DEE, quando elaborou a
proposta, a professora Jurema Venturini destacou o trabalho do Setor
da Deficiência Visual como elemento positivo na implantação de
uma rede de serviços especializados nos principais municípios do
interior.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


18

Quanto aos recursos existentes em Curitiba, cabe destacar em primeiro


plano a atuação do Departamento de Educação Especial do Estado que
funciona como órgão centralizador, promotor, realizador e supervisor
de todos os programas de atendimento ao excepcional no Estado, tanto
no que se refere a rede de ensino oficial como particular
(VENTURINI, 1975, p. 17-18).
De acordo com a estratégia da implantação da rede,
Um projeto de caráter experimental e inovador poderá partir de um
programa de identificação diagnóstico e avaliação com o objetivo de
obter a caracterização da clientela existente e planejar programas
adequados as suas necessidades. Esse estudo servirá de base para a
escolha de instrumentos e medidas que poderão ser utilizadas em outras
regiões (VENTURINI, 1975, p. 17-18).
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

O estudo também procurou levantar alguns números


aproximados de pessoas cegas ou com visão reduzida que poderiam
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

ser beneficiadas com os serviços especializados. Pelos dados


estimados, existiam 28.000 cegos no Estado e 3.200 na Região Oeste
do Paraná. Quanto à população escolar, o documento fala em
aproximadamente 400 alunos com visão “subnormal” na Região,
dos quais 50 em Cascavel e 25 em Foz do Iguaçu (VENTURINI, 1975).
Os atendimentos educacionais especializados não poderiam
ser concretizados sem recursos humanos preparados para fazer a
identificação dos usuários e desenvolver os serviços. A iniciativa
política de criar e expandir uma rede de serviços públicos
especializados para os principais municípios do Estado somente
poderia ser levada adiante a partir da definição e implementação de
uma política de formação de recursos humanos para atuar na
educação suplementar dos alunos cegos ou com visão reduzida
matriculados na rede do ensino comum. Com a intenção de avaliar
e propor medidas para a Educação Geral e a Educação Especial, em
1984, a Secretaria Estadual da Educação elaborou o documento
“Fundamentos e Explicitações”, o qual elencava um conjunto de
medidas, entre as quais figurava a implantação gradativa da Educação
Especial na rede regular de ensino.
Apesar de ainda não se contar com dados objetivos sobre a incidência
regional das pessoas portadoras de deficiências, sabe-se que, de acordo
com parâmetros estabelecidos pela ONU, aproximadamente 10 por
cento da população é portadora de algum tipo de deficiência e necessita
de atendimento especializado. Numa filosofia que enfatiza a igualdade
de direitos, esse atendimento constitui, aos portadores de deficiências,
uma prerrogativa fundamentada na legislação brasileira, expressa na
Constituição Federal, nas Leis Educacionais e nas Diretrizes do

Política, Educação e Cultura


19

Conselho Estadual de Educação. Com o intuito de dar cumprimento


aos enunciados legais, o Governo do Estado do Paraná, através do
Departamento de Educação Especial da Secretaria de Estado da
Educação, vem somando seus esforços e recursos aos da iniciativa
comunitária (PARANÁ, 1984, p. 25-26).
De acordo com o documento,
Para alunos cujo grau de desenvolvimento lhes permite freqüentar
Programas Especiais nos estabelecimentos de ensino regular, são criadas
Classes Especiais e Salas de Recursos sob inteira responsabilidade do
ensino oficial. No entanto, assegurar aos deficientes os recursos para
o exercício dos seus direitos, constitui um constante desafio às
comunidades e ao Sistema Educacional, pois a maioria não tem
condições para usufruir das oportunidades concedidas aos demais.
Assim sendo, o Departamento de Educação Especial, ao promover a
implantação gradativa da Educação Especial na Rede Pública Estadual,

Coleção Sociedade, Estado e Educação


acrescentará ao sistema de atendimento ao excepcional novas
alternativas de participação oficial, bem como executará medidas que
permitam ao Governo do Estado, assumir sua responsabilidade na
oferta de oportunidades de educação e integração social dos portadores
de deficiências (PARANÁ, 1984, p. 26).
Quanto à formação de professores, o documento apenas
menciona a necessidade da “Capacitação de Recursos Humanos”
(PARANÁ, 1984, p. 26), sem, contudo, avançar de que maneira e
onde tal formação deveria acontecer. Para levar adiante o projeto da
capacitação dos professores, o Conselho Estadual da Educação
aprovou a
Deliberação 025/84, que dispõe sobre atualização e consolidação das
normas relativas à implantação, estruturação e funcionamento dos
estudos adicionais, a que se refere o parágrafo 1° do artigo 30 da Lei
5.692/71, alterado pelo artigo 1° da Lei 7.044/82, na qual se
fundamentam os cursos de formação de professores para a Educação
Especial, na forma de Estudos Adicionais (PARANÁ, 1984, p. 12).
Definida as regras pelo Conselho Estadual da Educação, a partir
de 1985, o Departamento da Educação Especial iniciou um processo
de abertura dos cursos dos Estudos Adicionais, cuja oferta aconteceu
em praticamente todas as regiões do Estado através de instituições
de ensino públicas ou privadas. Na Região Oeste do Estado, por
exemplo, a Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Cascavel –
FECIVEL, em 1985, iniciava o primeiro curso de formação na área da
deficiência visual.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


20

Não foi possível levantar a documentação referente à primeira


turma da área da deficiência visual que concluiu o curso em meados
de 1986, cuja incumbência foi a de organizar o primeiro Centro de
Atendimento Especializado da Região Oeste na cidade de Cascavel,
inaugurado em 1987, no Colégio Eleodóro Ebano Pereira.
A partir da constituição de um grupo composto por cinco professoras,
oriundas do curso de Formação de Professores para a Educação Especial
– área de deficiência visual, na modalidade de Estudos Adicionais, na
Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Cascavel (FECIVEL), hoje
UNIOESTE, em agosto de 1987 foi criado o primeiro CAEDV. Esse
primeiro centro foi integrado ao Colégio Estadual Eleodoro Ébano
Pereira, na zona central de Cascavel, contando inicialmente com a
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

atuação de cinco professoras, entre elas esta pesquisadora, num total


de cento e quarenta horas semanais (TURECK, 2003, p. 55).
Em 1987, através da Resolução n. 78/87 – GD, do Conselho
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Estadual de Educação, foi aprovado o Regulamento para o


Funcionamento do Curso de Formação de Professores para Educação
Especial com Habilitação de Deficiência Visual e Deficiência Mental,
destinado à segunda turma dos Estudos Adicionais. De acordo com
o Artigo 1º. desta Resolução, fica estabelecido que “para implantação,
estruturação e funcionamento dos Estudos Adicionais, estão sendo
observados as Deliberações n.º 025/84 e n.º 035/84 do Conselho
Estadual de Educação”. Conforme o Parágrafo 1o, “o Curso de
Formação de Professores para Educação Especial será estruturado
como curso de Formação Regular, ampliando a formação básica do
professor de 1a a 4a séries, conferindo-lhe Habilitação específica para
atuação em Classes Especiais”. Já o Parágrafo 2o afirma que: “o Curso
de Estudos Adicionais na área de Educação Especial, autorizado pelos
Pareceres n. 418/85, 155/86 e n.º 189/87 do C.E.E. e pela Resolução
Secretarial n.º 4284/86) será mantido pela Fundação Federação
Estadual de Instituições do Ensino Superior do Oeste do Paraná –
UNIOESTE – e ofertado pela Faculdade de Educação,Ciências e Letras
de Cascavel – FECIVEL”.
De acordo com o Artigo 2º, “a integralização do currículo do
Curso de Formação de professores para Educação Especial ocorrerá
de forma regular e também de forma concentrada em finais de
semana, perfazendo um total de 990 horas/aula, incluindo o tempo
de estágio supervisionado”. Pelo Currículo do Curso, eram as
seguintes as disciplinas básicas: Psicologia do Desenvolvimento;
Etiologia da Excepcionalidade; Fundamentos da Educação Especial;
Modalidade de Atendimento em Educação Especial; Planejamento

Política, Educação e Cultura


21

Pedagógico; Técnicas de Observação em Educação; Noções de


Psicomotricidade; Psicologia da Aprendizagem; Introdução à
Metodologia Científica e Educação para o Trabalho. Quanto às
disciplinas específicas da área da deficiência visual, o currículo
contava com noções de anatomia e fisiologia dos órgãos da visão;
Características do desenvolvimento da pessoa com deficiência visual;
Prevenção, conscientização e orientação familiar; Artes e Recreação
da pessoa com deficiência visual; Metodologia do Ensino do Sistema
Braille; Metodologia do Ensino do Sorobã; Metodologia da
Reeducação visual; Princípios de Orientação e Mobilidade;
Orientação Vocacional da pessoa com deficiência visual; Estimulação
Precoce e Métodos e Técnicas de Alfabetização. Definido os
conteúdos e encaminhado o processo de formação do professor
especializado para a área da deficiência visual, o Departamento da
Educação Especial precisaria também definir o formato dos serviços

Coleção Sociedade, Estado e Educação


de Atendimento Especializado. De acordo com as normas do DEE,
É importante frisar que todos os educandos portadores de deficiência
visual, em idade escolar, deverão estar regularmente matriculados em
escolas comuns e subordinados à estrutura e funcionamento do ensino
fundamental. Os Centros de Atendimento Especializado (CAEDV)
constituir-se-ão unicamente em suporte pedagógico ao aluno portador
de deficiência visual e ao professor do ensino regular. A matrícula desses
educandos aos CAEDV é opcional e deverá ocorrer, sempre, em
período contrário ao da escolaridade regular, sendo que a freqüência é
obrigatória (PARANÁ, 1994, p. 70).
Os Centros devem ofertar no sistema de contraturno os
seguintes serviços: habilitação e reabilitação para a escrita e leitura
braile, estimulação precoce, reeducação visual, orientação e
mobilidade, atividades da vida diária, serviço de apoio itinerante,
entre outras atividades ligadas à área. Quanto à equipe dos recursos
humanos, enquanto o CENESP propunha além do professor
especializado, o médico, o psicólogo, o assistente social, o orientador
vocacional, entre outros, o Estado do Paraná manteve somente o
professor especializado.
Se por um lado, esta opção pode ser interpretada como uma
forma de valorizar os aspectos pedagógicos, afastando as influências
da área médica, da psicologia e do serviço social, por outro, porém,
pode perfeitamente também ter sido uma decisão com o fim de
evitar maiores gastos financeiros na implantação dos serviços, opção
que parece mais provável, já que a ênfase da formação dos
professores visivelmente recaiu nos aspectos médicos psicológicos.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


22

Acompanhando o processo de implantação dos Centros de


atendimento, verifica-se que isso ocorreu basicamente entre o
período de 1987 e 1994. Em 1987, foram 66 Centros; em 1988, 24;
em 1989, 27; em 1990, 31; em 1991, 14; em 1992, 09; em 1993,
10; e 1994, 04. Total 185 (PARANÁ, 1994, p. 14). Mais de dez anos
depois, em 2007, 203 CAEDVS estavam em funcionamento em 181
municípios do Estado. Desses, 48 eram da responsabilidade do DEE
e 155 estavam municipalizados. Quanto ao número dos professores
especializados, eram 208 municipais, 127 do quadro do Estado e 46
trabalhando nas entidades prestadoras de serviços contratados
mediante convênio entre essas instituições e o Estado. Em 2005,
esta rede de serviço especializado atendia apenas 3.905 pessoas
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

cegas ou com visão reduzida em todo o Estado. Deste total, 1679


eram pessoas com “baixa visão” e 221 cegas que estavam
matriculadas no Ensino Fundamental. No Ensino Médio, eram 98
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

com “baixa visão” e 63 cegos, ao passo que 213 estavam


matriculados nos Centros de Jovens e Adultos1 .
O governo do Estado, através do DEE, tem insistentemente
divulgado que, dos 399 municípios do Estado, apenas 40 não contam
com algum tipo de atendimento especializado. Esses dados
publicizados assim, de modo genérico e sem fazer a distinção das
áreas específicas atendidas, acabam transmitindo uma falsa realidade
que não contribui para aclarar a questão. No que diz respeito à área
da deficiência visual, é preciso deixar claro que, dos 399 municípios,
apenas 181 contam com algum tipo de atendimento especializado.
Isso significa que as pessoas cegas ou com visão reduzida de mais
de 50% dos municípios estão sem o atendimento, ou deslocando-se
para recebê-los em outro lugar, o que certamente dificulta ou impede
o acesso.
Em 1992, ainda durante o primeiro mandato do governador
Roberto Requião, o governo baixou a Instrução Normativa conjunta
SUED/DEE, nº 02/1992, “[...] que estabeleceu critérios para a
condução da Educação Especial no processo de Municipalização do
Ensino”. De acordo com a normativa, os princípios de Universalização
e Democratização do ensino só serão alcançados através do efetivo
atendimento aos alunos portadores de necessidades educacionais
1 Esses dados foram obtidos da Área da Deficiência Visual do DEE/SEED, através do correio eletrô-
nico, em 2005 e 2007. Esses números são repassados sempre com a ressalva de que pode não
corresponder exatamente à realidade, devido a dificuldade de coletar essas informações junto à rede
institucional. Embora a realidade não deva fugir muito disso, eles precisam ser interpretados como
uma amostra. Na busca de maiores informações, no dia 03/09/2007, escrevi para a chefia do DEE e
para a coordenação da área de DV. No entanto, até a data de fechamento do artigo não houve nenhum
retorno.

Política, Educação e Cultura


23

especiais, mediante uma “parceria responsável” entre o Estado e os


municípios.
Não está em discussão aqui o mérito da municipalização, se
ela tem produzido resultados positivos ou negativos, os seus
desdobramentos e os múltiplos interesses sócio-econômicos e
políticos que envolvem todo este complexo processo. Porém, neste
caso, é inevitável não estabelecer nenhum tipo de relação entre o
fato do governo ter transferido para os municípios toda a
responsabilidade pela solicitação da abertura e manutenção dos
serviços e a redução do número dos mesmos após 1992.
Olhando a localização dos atuais 181 Centros de Atendimento
Especializados, fica claro que esta decisão atingiu justamente as
pessoas cegas ou com visão reduzida que residem nos municípios
de pequeno porte. Quando questionados, os dirigentes desses
municípios alegam não terem condições financeiras e nem

Coleção Sociedade, Estado e Educação


professores especializados para abrirem e manterem os serviços.
Outro problema muito sério ainda não solucionado, nem no
Estado do Paraná e nem no Brasil, diz respeito aos livros didáticos
adaptados (em braile ou com caracteres ampliados) para os alunos
cegos ou com visão reduzida matriculados nas instituições públicas
ou privadas, desde as séries iniciais até o ensino superior. Com o
objetivo de suprir, ao menos em parte, esta demanda, em 1995,
com a aquisição de algumas impressoras braile, computadores e
outros recursos necessários, o governo do Estado, através do DEE,
atendendo diversas reivindicações do movimento das pessoas cegas
ou com visão reduzida de todo o Estado, deu início à implantação
das Centrais de Produção de Material em Braile.
Na esteira da municipalização, os equipamentos adquiridos
pelo DEE foram repassados para alguns municípios mediante termo
de concessão de uso, por meio dos quais os municípios assumiam
não só a responsabilidade com a guarda e a sua conservação, como
também precisavam fazer a manutenção dos equipamentos, assumir
o espaço físico, funcionários e demais materiais de expedientes.
Através deste procedimento, foram colocadas em funcionamento
as Centrais de Produção de Material em Braile de Cascavel, Curitiba,
Maringá, Francisco Beltrão e Londrina. Mesmo reconhecendo o
avanço que esta iniciativa representou, é preciso deixar claro que o
problema da falta dos livros adaptados ainda permaneceu sem uma
solução definitiva.
Um passo a mais neste rumo foi dado pelo Estado em 1999,
quando o MEC/SEESP repassou para o DEE, um CAP – Centro de
Apoio Pedagógico às Pessoas com Deficiência Visual, que inicialmente

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


24

foi instalado junto à Seção Braile da Biblioteca Pública do Estado. De


acordo com o projeto, o governo federal adquire todos os
equipamentos que compõem o CAP e transfere para os interessados
– Municípios, Estados e Entidades Privadas, desde que estes arquem
com as demais despesas para colocar o Centro em funcionamento –
recursos humanos, espaço físico, materiais de expedientes, entre
outros. De acordo com a justificativa do Projeto:
Essa proposta vem consagrar os objetivos e as diretrizes estabelecidos
na Política Nacional de Educação Especial no que concerne ao
atendimento educacional dos educandos com necessidades especiais,
compreendidos em sua dimensão não só educativa, mas também
sociocultural, cujo objetivo é criar condições adequadas para o
desenvolvimento pleno de suas potencialidades e o preparo para o
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

exercício da cidadania. O projeto CAP reveste-se de importância por:


- consolidar o processo de unificação do movimento associativista no
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

País, pela efetiva participação nas principais organizações nacionais por


meio da UBC, numa ação conjunta com o Governo, na formulação e
execução de uma política de atendimento especializado às pessoas cegas
e às de visão subnormal; - demonstrar claramente o compromisso
efetivo do Governo como responsável pela política de atendimento
aos cegos no Brasil; - disciplinar a implantação e o funcionamento dos
serviços de produção Braille; - institucionalizar a distribuição do livro
didático em Braille. A consecução dos ideais e das metas do projeto,
somente se fará plena pelo envolvimento e comprometimento de todos
(Governo e Comunidade) no desenvolvimento das ações institucionais
do CAP que foi concebido como política pública (ABEDEV, 2000).
No ano de 2001, de acordo com a Resolução n.º 2473-GS/
SEEB/2001, foi
[...] criado, no âmbito da Secretaria de Estado da Educação, vinculada
administrativamente e pedagogicamente ao Departamento de Educação
Especial, o CAP-PR Centro de Apoio Pedagógico para Atendimento
às Pessoas com Deficiência Visual, do Estado do Paraná, com a
finalidade de garantir a inclusão da pessoa com deficiência visual no
sistema regular de ensino, bem como promover o pleno
desenvolvimento e a integração desses alunos em seu grupo social (Art.
1º).
Conforme o Artigo 3º, compete ao CAP, entre outras
atribuições, oferecer serviço de apoio pedagógico complementar,
por meio de 04 (quatro) núcleos de atuação, que ficam assim
instituídos: I – Núcleo de Apoio Pedagógico; II – Núcleo de Produção
Braille; III – Núcleo de Tecnologia; e IV – Núcleo de Convivência.
Para garantir o funcionamento dos Centros, a Secretaria de
Estado da Educação deverá prover recursos financeiros para aquisição

Política, Educação e Cultura


25
e manutenção de materiais pedagógicos e equipamentos
indispensáveis ao funcionamento do CAP, bem como dos novos que
vierem a ser criados. Como desdobramento do projeto central,
através de Resolução do DEE/SEED, as Centrais de Produção de
Material em Braile antes descritas foram transformadas em CAP. Além
do CAP de Curitiba, estão em funcionamento o de Cascavel, de
Maringá, de Francisco Beltrão e o de Londrina. No entanto, esta
transformação aconteceu apenas no papel, porque do ponto de vista
das condições materiais e dos recursos tecnológicos, em comparação
com o previsto no projeto do CAP elaborado pelo MEC/SEESP, existe
uma enorme distância, com exceção das unidades de Curitiba e de
Maringá, que receberam os equipamentos completos que compõem
o projeto diretamente do governo federal.
Apesar da confecção e distribuição dos livros adaptados ser
da responsabilidade do Programa Nacional do Livro Didático, ligado

Coleção Sociedade, Estado e Educação


ao MEC, a falta de investimento financeiro por parte do Estado,
através do DEE e dos municípios, nesta área também é visível. A não
garantia dos livros didáticos adaptados por parte do Estado,
independente da pendenga meramente formalista entre União,
Estados e Municípios, constitui-se numa das mais flagrantes violação
dos direitos previstos nos artigos n.º 205 e 208, inciso III, da
Constituição brasileira de 1988.
Em conseqüência disso, a Associação Cascavelense das
Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI), além de diversas
propostas e moções retiradas durante a realização dos seus sete
Seminários de abrangência estadual com repercussão nacional,
também já promoveu até manifestação de rua para denunciar e exigir
que os livros didáticos sejam assegurados aos alunos.
Cansados de esperar o cumprimento das promessas do Estado em
relação ao fornecimento do livro didático adaptado, cegos de Cascavel
se mobilizaram ontem e realizaram uma passeata reivindicando o
direito à educação de qualidade, partindo do terminal leste em direção
ao Núcleo Regional de Educação, onde demonstraram sua insatisfação.
‘Cego na rua, a luta continua’ e ‘Chega de enrolação, queremos
educação’ eram as frases mais usadas para chamar a atenção da sociedade
sobre o descaso que as autoridades têm demonstrado em relação às
pessoas cegas. A Acadevi (Associação Cascavelense de Deficientes
Visuais), que organizou o protesto, informou que novas manifestações
estão sendo preparadas, de forma a radicalizar ações, já que está cansada
de ouvir promessas que não se materializam (PARANÁ, 2004, p. 09,
grifos no periódico).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


26
De acordo com as palavras de uma dirigente da entidade:
Estamos sendo prejudicados no nosso direito à educação. Todo o ano
é a mesma situação e agora queremos solução, pois os alunos têm
continuado seus estudos, embora sem livros, porque sabem da
importância de se prepararem. Os professores estão se desdobrando
para conseguir que eles absorvam algum conteúdo, já que o livro em
braile é imprescindível no aprendizado do cego”, disse Patricia da Silva
Zanetti 23 anos, formada em pedagogia, que integra o movimento
(ZANETTI, 2004, p. 09, grifos no periódico).
Enquanto as crianças sem deficiência contam com os livros
durante todos os dias, desde o início até o fim do ano letivo, durante
todos os anos da sua formação, além de outros inúmeros recursos
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

visuais e escritos a sua disposição, as crianças cegas ou com visão


reduzida sequer contam com os livros, sem mencionar as demais
dificuldades que enfrentam todos os dias nas escolas. Escrevendo
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

nas primeiras décadas do século XX, Vigotski destacou um elemento


fundamental na educação dos cegos: “Um ponto do sistema braile
tem feito mais pelos cegos que milhares de filantropos; a
possibilidade de ler e escrever tem resultado ser mais importante
que o ‘sexto sentido e a agudeza do tato e da audição’” (1997, p. 77,
grifos do autor).
Além da falta dos livros e outros recursos pedagógicos no
processo ensino-aprendizagem, a avaliação dos alunos cegos ou com
visão reduzida tem se fundamentado na concepção que Vigotski
(1997) caracterizou de biológica ingênua. Para esta concepção, “o
desenvolvimento perceptivo, envolvendo a audição, olfato, paladar,
tato e a noção de tempo e espaço, constitui canais de interação e
estruturação do mundo exterior e será avaliado, a partir da proposição
em fichas apropriadas” (PARANÁ, 1994, p. 65). Segundo Vigotski,
no plano teórico, esta “[...] concepção tem se expressado na teoria
da substituição dos órgãos dos sentidos. De acordo com esta opinião,
o desaparecimento de uma das funções da percepção, a falta de um
órgão, se compensa com o funcionamento elevado e o
desenvolvimento dos outros órgãos” (1997, p. 76).
De acordo com Leontiev (1978, p. 228), “primeiro o trabalho,
escreve Engels, depois dele, e ao mesmo tempo que ele, a linguagem
(...)”. De fato, na educação dos cegos, primeiro a linguagem, depois
o tato, a audição, a memória, o olfato e o paladar. Da mesma forma,
primeiro a reorganização de todo o aparato psicológico do indivíduo
cego, ponto crucial para orientar o redirecionamento dos órgãos
remanescentes, de modo que eles possam desempenhar a sua nova
função no rumo da super-compensação. Por isso, é preciso

Política, Educação e Cultura


27

compreender a substituição não no sentido de que outros órgãos


assumam diretamente as funções fisiológicas da visão, senão no
sentido da reorganização complexa de toda atividade psíquica,
provocada pela alteração da função mais importante, e dirigida por
meio da associação, da memória e da atenção à criação e formação
de um novo tipo de equilíbrio do organismo para mudança do órgão
afetado (VIGOTSKI, 1997).
Em outras palavras, isso significa que, se as pessoas cegas ou
com visão reduzida matriculadas nas escolas, mesmo sem os livros
didáticos, estão conseguindo apropriar-se de algum conhecimento,
certamente não é em função da memória elevada, da audição mais
aguçada, do olfato mais sensível ou do paladar – apesar do prato
indigesto que são obrigadas a digerir todos os dias. O mais
característico na personalidade do cego é a contradição entre a

Coleção Sociedade, Estado e Educação


incapacidade relativa no aspecto espacial e a possibilidade de manter,
mediante a linguagem, uma relação total e completamente adequada
com os videntes e conseguir a compreensão mútua, o que entra
totalmente no esquema psicológico do defeito e da compensação.
Este exemplo é um caso particular da contradição que estabelece a lei
dialética fundamental da psicologia, entre a insuficiência organicamente
dada e as aspirações psíquicas. No caso da cegueira, não é o
desenvolvimento do tato ou a agudeza do ouvido, senão a linguagem,
a utilização da experiência social, a relação com os videntes, que
constitui a fonte da compensação (VIGOTSKI, 1997, p. 82).
A importância da linguagem na formação das funções cerebrais
“especializadas” também é confirmada e destacada por um dos
principais colaboradores e divulgadores da obra de Vigotski. Nas
palavras de Leontiev,
a criança entra muito cedo em comunicação verbal com os que a
rodeiam. Trava conhecimento com as palavras, começa a compreender
a sua significação e a utilizá-las activamente na sua linguagem. A
apropriação da linguagem constitui a condição mais importante do seu
desenvolvimento mental, pois o conteúdo da experiência histórica dos
homens, da sua prática socio-histórica não se fixa apenas, é evidente,
sob a forma de coisas materiais: está presente como conceito e reflexo
na palavra, na linguagem. É sob esta forma que surge à criança a riqueza
do saber acumulado pela humanidade: os conceitos sobre o mundo
que a rodeia. A tarefa da criança consiste em apropriar-se destes
conhecimentos, destes conceitos. Deve efectuar para isso processos
cognitivos adequados (mas não idênticos, evidentemente) aos processos
que produziram os conceitos considerados (1978, pp. 328 e 329).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


28

No caso das pessoas cegas, como exemplificação, é


interessante mencionar que normalmente essas pessoas são
identificadas muitas vezes de modo pejorativos como “tagarelas”,
deixando nas entre linhas a impressão que, ao falarem demais, elas
são em alguns momentos “chatas” por conta disso. Para que
afirmações desta natureza, eivadas de preconceitos, possam ser
minimamente consideradas com alguma seriedade, seria preciso
antes reconhecer que se falar demais pode fazer uma pessoa chata,
então devemos admitir que esta não é uma característica apenas de
algumas pessoas cegas. Enquanto para certas pessoas que enxergam
o falar demais pode ser uma coisa banal, sem sentido e significado
mais elevado, para as pessoas cegas, ao contrário, a fala ocupa um
papel fundamental, tanto no sentido de se situar no espaço, captar
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

informações e as movimentações do ambiente, como também na


formação dos processos psicológicos mentais superiores, na
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

organização das idéias e da comunicação, ou seja, como forma de


compensação do prejuízo que o defeito da vista provoca.
Quando Vigotski (1997, p. 82) chama a atenção enfatizando
que “a palavra vence a cegueira”, ele está afirmando que a
apropriação das coisas do cotidiano ou dos conhecimentos
científicos, artísticos e filosóficos nas instituições de ensino, tanto
para as pessoas cegas como também para as não cegas, acontece
fundamentalmente através do uso da linguagem. Se a tese segundo
a qual cerca de 80% dos conhecimentos das pessoas são adquiridos
por meio da visão - aliás, tese falsa reforçada pela enorme maioria
dos professores de cegos - fosse realmente verdadeira, então, de
fato, se poderia concluir que a cegueira não passa de uma grande
desgraça, como ainda acreditam certas pessoas, mesmo com um
nível de formação intelectual mais elevado, independente da posição
de classe social.
Nesta exposição, foram examinados alguns aspectos
históricos, políticos e psicológicos que podem contribuir na formação
de um quadro provisório sobre o percurso que a educação escolar
das pessoas cegas ou com visão reduzida trilhou e como ela se
encontra organizada no momento no Estado do Paraná. Apesar de
mais de 50% dos municípios ainda não contarem com atendimentos
especializados e, mesmo aqueles que possuem, seus serviços
funcionam com bastante precariedade - locais inadequados, falta de
recursos materiais e humanos, etc., o fato desta rede estar sob a
responsabilidade dos municípios e do Estado, através do DEE, indica
um aspecto interessante. Desde a criação da primeira escola,
organizada por Valentin Hauy em 1784, na França, a educação escolar
das pessoas cegas ou com visão reduzida pertencentes à classe
Política, Educação e Cultura
29

trabalhadora, independente do modelo segregado ou nas escolas


do ensino comum, não padece apenas de falta de recursos materiais,
didáticos pedagógicos e humanos. Embora Vigotski tenha assinalado
acertadamente que “um ponto do sistema braile tem feito mais pelos
cegos que milhares de filantropos”, constata-se que a educação
escolar dessas pessoas ainda continua muito permeada pelo
sentimento da filantropia - este sentimento não é uma exclusividade
das instituições privadas, ele também está presente nos serviços
públicos.
Quando o próprio Estado Democrático de Direito nega o
democrático direito dos alunos cegos contarem com o atendimento
educacional especializado, conforme previsto no artigo n.º 208, III,
da Constituição de 1988, não só deixa o caminho aberto como
também acaba estimulando a atuação do voluntariado nesta área.
Diante da conjuntura brasileira e paranaense, em que a política

Coleção Sociedade, Estado e Educação


educacional da responsabilidade do Estado vem cada vez mais se
convertendo na política educacional da “responsabilidade social” das
iniciativas privadas, é valida a critica segundo a qual
em terras brasileiras, e ainda nas sul-americanas, o processo histórico
converteu o Estado de Direito em ave rara. Vive-se aqui sob o signo da
antrofagia, como dizia Oswald de Andrade. Veja-se: o Estado de Direito
tem sucumbido ante o esforço de seus amigos e inimigos. No Brasil,
ele é débil ao enfrentar a voragem dos que, por um ou outro motivo,
acabam desrespeitando as regras do jogo político (VIEIRA, 1992, p.12).
Mesmo assim, negando a tese da cegueira como uma desgraça
e das pessoas cegas como mero objeto da compaixão, da ênfase
nos aspectos biológicos da substituição automática dos órgãos
remanescentes em detrimento do uso da linguagem, cada vez mais
multiplica-se o número de cegos e cegas conseguido graus mais
elevados de formação acadêmica e ocupando alguns postos de
trabalho ou realizando certas atividades profissionais consideradas
de maior relevância social, de acordo com o padrão e as exigências
da sociedade capitalista.
Em Cascavel, por exemplo, as experiências desenvolvidas pela
Associação Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual
(ACADEVI), com a sua práxis coletiva engajada nas lutas sociais, vêm
confirmando que “(...) as funções particulares podem representar
um desvio considerável da norma e, não obstante, a personalidade
ou organismo em geral podem ser totalmente normais. A criança
com defeito não é indispensavelmente uma criança deficiente”
(VIGOTSKI, 1997, p. 84). O trabalho desenvolvido pela ACADEVI,
ao longo de treze anos, também vem confirmando outro postulado

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


30

muito importante de Vigotski, segundo o qual, as pessoas cegas ou


com visão reduzida devem ser consideradas e educadas como
sujeitos de plena “validade social” (VIGOTSKI, 1997, p. 82).
Nesse sentido, uma educação escolar de fato, comprometida
com a formação de indivíduos de plena “validade social” não pode
continuar atolada até a medula no “vale de lágrimas” onde nasceu,
junto com a ciência positivista burguesa, da qual permanece
prisioneira até hoje, apesar de todos os avanços das tecnologias,
dos métodos e processos comprovadamente mais adiantados de
ensino e aprendizagem. Por isso, enquanto não se libertar das visões
mitológicas, religiosas e folclóricas, dos dogmas, dos determinismos
das ciências médicas e das influências da psicologia
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

comportamentalista, a educação escolar das pessoas cegas


continuará preocupada com as particularidades do defeito da vista,
esquecendo-se do enorme manancial de potencialidades existentes
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

quando as pessoas cegas são vistas na sua totalidade.


Com relação à teoria sócio-psicológica ou histórico-cultural
desenvolvida por Vigotski, da qual alguns postulados foram aqui
apropriados para refletir sobre a validade social das pessoas cegas,
bem como da sua aplicação no processo de ensino-aprendizagem
desses educandos, vale ressaltar que, essa teoria, vem sendo objeto
de investigação de um grupo de estudos do Programa de Educação
Especial (PEE) da UNIOESTE e da Associação Cascavelense de
Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI). De acordo com as
primeiras aproximações, pode-se afirma que a concepção vigotskiana
de pessoa cega, de educação escolar, de sociedade e de mundo, de
fato representa uma importante contribuição na perspectiva da
superação da educação burguesa.

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Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura


REDES PARA RECONVERSÃO DOCENTE
Olinda Evangelista
Eneida Oto Shiroma

Durante a década de 1980, estratégias de formação


profissional ganharam proeminência na agenda global e a educação
foi instada a atuar na requalificação necessária às demandas da
reestruturação produtiva. Contraditoriamente, para apresentá-la
como solução da crise econômica e social, apologetas das políticas
de ajustes e da reforma do Estado, com apoio da mídia, construíram
e difundiram a imagem da educação como a causadora do atraso e
da pobreza. Atribuiu-se à área educacional a responsabilidade pela
crise econômica e social, pelo desemprego e pela geração do que

Coleção Sociedade, Estado e Educação


denominaram “empregabilidade”.
A reconversão profissional para a adaptação do trabalhador
ao novo ordenamento social foi colocada, desde então, no horizonte
das tarefas da educação. Sabemos, contudo, que a problemática do
acesso ao emprego é muito mais complexa e envolve outras variáveis
como idade, experiência prévia, rede de relacionamentos, origem
social, valores, conhecimento tácito entre outros. Gitahy argumenta
que a inserção no mercado de trabalho não se limita aos requisitos
da formação. Para a autora (1996, p. 1),
Este processo tem levado a um renovado interesse pela forma em que
se articulam a organização da produção e do trabalho, as condições de
emprego, e as exigências de qualificação, o que torna necessário a análise
simultânea do que ocorre dentro e fora das empresas. Nesse sentido,
um tema relevante passa a ser o da construção social das redes
produtivas e as suas novas formas de articulação institucional.
Essa parece ser a perspectiva com base na qual muitas
iniciativas de reciclagem, requalificação e capacitação são
recomendadas tanto por empresários, quanto por trabalhadores. O
termo reconversão profissional tem sido adotado para designar o
“processo estratégico e negocial de enfrentamento das mudanças
tecnológicas e organizacionais e seus impactos sobre o trabalho,
que considera e gerencia as inúmeras necessidades técnicas da
empresa” (RODRIGUES E ARCHAR, 1995, p. 127) e, não raro, é
utilizado como sinônimo de requalificação e correlatos1 . A idéia de
uma demanda mercadológica a impulsionar os trabalhadores

1 “A reconversão produtiva dentro das empresas, com a incorporação de novas tecnologias e modos de

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


34

em direção ao cumprimento das exigências de adequação às novas


regras do mercado influenciou profundamente as reformas
educacionais das últimas duas décadas.
Neste capítulo, discutimos a temática da reconversão,
particularmente a docente, com base na hipótese de que foi este o
imperativo que orientou mudanças radicais na formação inicial e
continuada do professor e nas formas de gestão do trabalho docente
e do sistema de ensino. De outro lado, consideramos em nossa
abordagem a ênfase nas recomendações de organismos
internacionais para a reconversão docente, assim como o papel
disseminador dessa proposta, realizado por redes sociais interessadas
em educação.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

A RECONVERSÃO ANUNCIADA
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

O tema da reconversão, pouco debatido no Brasil, é referido


em abundância na literatura educacional portuguesa e em
documentos de organismos internacionais. O pressuposto destas
agências é o de que, dadas algumas condições objetivas – falta de
professores em algumas áreas, sobra de professores em outras –,
dever-se-ia introduzir mudanças na formação inicial e continuada
de docentes tendo em vista prepará-los para um espectro de atuação
ampliado.2. Segundo a Organização dos Estados Iberoamericanos:

organização da produção, promove a diminuição da dotação de pessoal, a terceirização de funções e a


preocupação por integrar o trabalhador à empresa, se esforçando por desarticular o coletivo assalariado
(MARTÍNEZ, 1994). A privatização de empresas estatais industriais e de serviços faz parte desta reconversão
e debilita o sindicalismo em alguns dos lugares em que tinha mais gravitação.” (GINDIN, 2006, p. 45) “A
polivalência, enquanto proposta destinada ao desenvolvimento de conhecimentos e competências pro-
fissionais duráveis, supõe mais do que a aprendizagem ativa e reflexiva de conteúdos significativos.
Supõe que os indivíduos, em face das transformações do mundo do trabalho, tenham assegurada a
possibilidade de organizar seus próprios processos de reconversão ou requalificação.” (SENAC, 1995, p.
61) “A certificação de competências é um processo em curso nos países europeus e nos EUA desde os
anos 80. No Brasil e em outros países da América Latina, é um processo mais recente. Foi introduzido
por empresários e pelos governos, estimulados pelos organismos internacionais, acompanhando os pro-
cessos de reconversão produtiva, em relação ao desempenho profissional, especialmente em atividades
altamente especializadas [...].” (MEC. SEMTEC. PROEP, 2003)
2 Podemos referir no Brasil a recente reforma do Curso de Pedagogia, concretizada na Resolução CNE nº
1/2006 (BRASIL, 2006). Nela se definem pelo menos oito campos de atuação: docência na Educação
Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, na Educação Profissional e no Curso Normal em nível
médio, na gestão, na pesquisa, em EJA e em outras áreas da escolha da instituição de ensino (BRASIL,
2006). A construção de um profissional polivalente fica aqui explicitada, assim como o movimento de
reconversão do professor, antes entendido com funções diretamente ligadas ao ensino.

Política, Educação e Cultura


35

[...] en los noventa detectamos el empeño puesto en que los docentes se


“perfeccionen”, “reconviertan”, “actualicen”, según las distintas miradas que se
hicieron del problema. No fue una cuestión menor para los espíritus reformistas
normalizar las habilidades, “competencias”, de los docentes para una nueva
escuela, es decir, que se apropiaran de nuevos saberes útiles para la escuela del
siglo XXI. (OEI, 2003).
Na Espanha e em Portugal, por exemplo, essa é uma exigência
das políticas educacionais. Aguerróndo (2002, p. 17) assinala que a
reconversão é uma estratégia para “aproveitar o excesso de
professores de uma disciplina” e “cobrir novas necessidades” que,
bem organizadas e monitoradas, podem evitar as “fortes resistências”
docentes. Entre as formas de se produzir tal reconversão, figuram,
segundo a autora, os “encontros de reflexão”. Entretanto, tal modelo
“resultou ser de uma interessante eficácia individual”, ou para
“pequenos grupos, mas se mostrou bastante inadequado como

Coleção Sociedade, Estado e Educação


estratégia para a reconversão rápida e maciça do professorado em
seu conjunto.” (AGUERRÓNDO, 2002, p. 18-19) Desse modo,
segundo a autora,
a urgência das transformações maciças levou à etapa atual, que começa
a aparecer de maneira cada vez mais promissora na abertura de âmbitos
de aperfeiçoamento institucional, mas deve-se ressaltar que isso implica
em transformações no campo da organização da instituição escolar e
da administração do sistema. (AGUERRÓNDO, 2002, p. 18-19).
Também Alves (2002, p. 3) defende essa concepção. Para ele,
O professor deve incorporar em sua práxis pedagógica as novas
linguagens, intermediadas pela tecnologia e tende a ser guiado para se
adaptar ao novo contexto das mudanças pedagógicas. Manter ou
readquirir a competitividade no mundo de trabalho e trabalhar no
sentido da reconversão profissional e atualização da demanda
profissional é importante. A flexibilidade, a mobilidade, o acesso
democrático à internacionalização do conhecimento vêm constatar a
universalização do ensino em seus vários segmentos e mudança na
formação do perfil do docente.
Os autores referidos veem a reconversão docente como fator
de mudança na educação e como modo de se conseguir o que
denominam “educação de qualidade” e, mesmo, democrática. De
uma perspectiva diferente, De Rossi (2005) assinala que no interior

Se o espectro da atuação do licenciado em Pedagogia é vasto, a formação resulta restrita. Desse modo, ao
lado da polivalência do “pedagogo” teremos o esvaziamento teórico e político de sua formação.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


36

das políticas de “modernização educativa” em curso na América


Latina dois são os modos predominantes:
a escola expansiva, afirmada no ciclo quantitativo (1950-1970) e utilizada
para consolidar os sistemas de educação de massa pelo paradigma do
desenvolvimento econômico, e a escola competitiva, das necessidades
básicas de aprendizagem impulsionadas pela reconversão da educação
para refundar os sistemas de ensino.
O excerto indica uma outra abordagem do fenômeno da
reconversão docente: diz respeito a um tipo de procedimento que,
expressando “o conjunto de estratégias adotadas por distintas
instâncias e centros de poder para racionalizar os sistemas
educativos”, tem jem vista adequar as políticas educacionais “às
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

pressões econômicas das agências (inter)nacionais.” (DE ROSSI,


2005). Gindin (2006, p. 98) corrobora essa análise, chamando a
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

atenção para o incentivo, nos anos de 1990, às “políticas


produtivistas” que “impulsionam medidas de reconversão neoliberal
do trabalho docente”. Exemplo de impulso a estas medidas pode
ser encontrado no Plano trienal para o setor educação do Mercosul3 :
“Além disso, é necessário o estabelecimento de uma nova aliança
entre o setor educativo e o setor produtivo, face aos processos de
reconversão competitiva em que estão envolvidos os países da área.”
(MERCOSUR, s.d.)
Como referimos, organismos internacionais elaboraram
inúmeras recomendações acerca do professor. Interessa-nos, no
próximo tópico, sistematizar as principais buscando apreender os
sentidos dessa reconversão e como pretendem implementá-la no
continente.

ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS, RECONVERSÃO


DOCENTE E REDES

Uma das estratégias utilizadas para operacionalizar tais


propostas é a constituição de redes encarregadas de difundir
concepções e direcionar os processos de reconversão docente. No
caso da América Latina e Caribe, duas redes serão aqui destacadas.
A primeira delas, a Rede Kipus de Formação Docente, pertence à

3 O Mercosul – Mercado Comum do Cone Sul – foi criado em 1994 e é integrado por Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai. Além desses países, a Venezuela também aderiu ao grupo em julho de 2006.

Política, Educação e Cultura


37

UNESCO, mas sua atuação é regional.4 A segunda é o Programa


Regional da Reforma Educativa na América Latina (PREAL).
A preocupação da UNESCO com a formação docente é grande
e seus dados demonstram que existem no mundo 60 milhões de
professores, mas ainda há carência de 30 milhões para se atingir as
metas estabelecidas no Compromisso de Dakar, Educação para Todos,
até 2015.5 Em função desses índices muitas agências internacionais
justificam sua atuação na área. Embora a UNESCO reconheça que
parte de suas diretrizes não deu certo – a exemplo das políticas de
treinamento docente – e atribua seu insucesso, não raras vezes, à
má condução pelos Estados nacionais, ela parece ter especial
predileção por atribuí-lo aos próprios professores. As exigências que
incidem sobre o professor ultrapassam e ampliam os tempos e
espaços da formação, e construir o professor adaptável in totum
torna-se uma tarefa para toda a vida. Insistindo no slogan da

Coleção Sociedade, Estado e Educação


“formação ao longo da vida”, a UNESCO delineia o horizonte de sua
política de superação do professor tradicional:
Sob essa perspectiva, é requerido que as políticas e estratégias
docentes, além de desenvolverem capacidades para o trabalho em
sala de aula, fomentem e fortaleçam a participação dos professores
na gestão de suas instituições, assim como colaborem para formular
políticas educacionais. Assim, se contribuirá para modificar o enfoque
tradicional que tem considerado o docente como um executor de
políticas que são definidas sem sua opinião e conhecimento, o que
também tem limitado as possibilidades de que as políticas
educacionais se traduzam em práticas efetivas nas escolas e nas salas
de aula (UNESCO/OREALC, 2002, p.73).6

4 A UNESCO conta com nove redes: 1) Red de Educación Científica; 2) Foro Regional de Educación para
Todos; 3) Red de Escuelas Asociadas de la UNESCO; 4) Foro Permanente de Educación Secundaria; 5)
Red de Innovaciones Educativas, INNOVEMOS; 6) Red de Liderazgo Escolar; 7) Laboratorio
Latinoamericano de Evaluación de la Calidad de la Educación (LLECE); 8) Sistema Regional de Información
(SIRI) e 9) KIPUS, la Red Docente de América Latina y el Caribe (Disponível em: <http://www.unesco.cl/
esp/redes/>. Acesso em: 29.05.2007).
5 Dados obtidos no portal da UNESCO <http://portal.unesco.org/education/en/ev.php-
URL_ID=32260&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>.
6 Encontramos em Marchesi (apud PRELAC, 2007a, p. 50) a definição do professor moderno: “(Atualmen-
te) a tarefa que se espera de um professor é um tanto mais ampla do que transmitir conhecimentos aos
seus alunos, o que, faz muito pouco tempo, era sua atividade principal e para o que se preparava. Agora
fazem falta muitas outras habilidades, sem as quais é difícil conseguir que os alunos progridam na aqui-
sição do saber: o diálogo com os alunos, a capacidade de estimular o interesse por aprender, a incorpo-
ração das tecnologias da informação, a orientação pessoal, o cuidado do desenvolvimento afetivo e
moral, a atenção à diversidade do alunado, a gestão da aula e o trabalho em equipe.”

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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Infere-se do excerto que a popularização da noção de


professor-gestor visa disseminar a idéia de que os professores
também participam da formulação de políticas educacionais, sendo
co-responsáveis por seu sucesso. A questão, entretanto, permanece:
como iriam os professores das unidades escolares dos mais remotos
municípios da grande e heterogênea região da América Latina e Caribe
sentirem-se motivados, envolvidos e até mesmo responsáveis por
uma política pensada em reunião de Ministros no âmbito do
Compromisso Educação para Todos? Os próprios documentos
respondem a questão, assinalando a importância fulcral da promoção
de redes sociais e de redes de instituições de formação docente em
nível superior, a exemplo do PREAL e da Kipus, estratégicas para
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

melhorar a performance dos professores em muitos países. Segundo


documento do Banco Mundial, específico para professores do Brasil,
as redes têm se mostrado um dos catalisadores mais eficientes para
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

a formação de professores e contínuo reforço de treinamento


(DELANNOY E SEDLACEK , 2000).
Em documento recente, Education Sector Strategy Update, o
Banco Mundial (2006, p. 71) explicita a compreensão do papel
ocupado pelas redes para a formulação de consensos e disseminação
de idéias. Anuncia que, para dar mais ênfase aos resultados, o Banco
se articulará com redes nacionais e regionais de pesquisa para
construir sentimento de pertença e foco nos resultados e sustentá-
los localmente (BANCO MUNDIAL, 2006, p. 69)7 .
A forte recomendação do uso de redes para difusão e
implantação de reformas educativas na região encontra-se no cerne
de nossa motivação para compreender como se disseminam as
prioridades da reforma educativa pela região, como serão
implementadas, como atingirão as escolas, como pretendem
modificar as concepções e práticas dos trabalhadores da educação.
Buscamos entender o interesse e o papel dos sujeitos históricos que
as organizam e orientam. Pretendemos apreender as práticas políticas
articulatórias das ações localizadas por meio da ação das redes. Ou
seja, trata-se de passar da análise fragmentada de organizações
específicas para a compreensão do movimento que decorre de sua
articulação em redes, tentando perceber as interconexões entre o
local, o regional e o global (supranacional, transnacional). As duas
redes escolhidas para estudo foram o Programa Regional da Reforma
Educativa na América Latina, que possui um Grupo de Trabalho

7 O Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe, PRELAC (2002), sugere como requisito
aos professores trabalhar em redes e aprender com o trabalho cooperativo entre pares.

Política, Educação e Cultura


39

especificamente voltado à profissionalização docente, e a Rede Kipus


de Formação Docente.

DUAS REDES, UM PROJETO

O PREAL
O Programa Regional da Reforma Educativa na América Latina,
criado em 1995, é uma parceria entre organizações do setor público
e privado do hemisfério que procura identificar problemas e
promover e implementar políticas educacionais. O PREAL tem três
objetivos intermediários: 1) envolver a sociedade civil na reforma
educacional; 2) monitorar o progresso da educação e 3) enriquecer
o pensamento dos tomadores de decisão (decision-makers) e
formadores de opinião sobre política educacional. Suas atividades

Coleção Sociedade, Estado e Educação


incluem o patrocínio de grupos de trabalho regionais sobre questões
políticas, workshops e conferências, parceria empresa-educação,
pesquisa e publicações. As atividades do PREAL recebem apoio da
United States Agency for International Development (USAID), Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial, Fundação
General Eletric, entre outros. Do PREAL participam brasileiros da mais
alta expressão no cenário educacional, como o ex-Ministro da
Educação, Paulo Renato Souza (1994-2002), assessores do BID e
Banco Mundial, como Cláudio Moura Castro e Guiomar Namo de
Mello, a ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Maria Helena Guimarães.
Identificando os membros brasileiros que participam do GT
Profissionalização Docente (GTD) no PREAL e mapeando os cargos
públicos que já ocuparam, vínculos com Organismos Internacionais
e as organizações a que pertencem atualmente, encontramos
diversos tipos de relações interessantes que evidenciam que este
GT é formado por ex- membros do executivo, do CNE, do INEP, que
ocuparam postos estratégicos no cenário educacional e, agora, fora
do aparelho de Estado, atuam como consultores, formadores e
assessoram a implantação de reformas educacionais em vários
estados, municípios e fazem a formação de gestores atuando em
parceria com várias Secretarias de Educação, União Nacional de
Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) ou Conselho Nacional
de Secretários de Educação (CONSED). Cite-se a atuação de Paulo
Renato Souza que, estando à frente do Ministério da Educação (MEC)
nos governos FHC, junto ao Conselho Nacional de Educação (CNE)

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


40

e INEP, exigiu determinadas adequações dos sistemas educacionais,


escolas e professores por meio da aprovação de várias reformas
educacionais em sua gestão (1994-2002). Ao deixar o governo,
fundou a empresa Paulo Renato Souza Consultores, com ex-membros
do MEC que atuam como consultores associados, para assessorar a
implantação de reformas por eles criadas enquanto ocupavam cargos
no Ministério. Dentre os clientes dessa empresa, encontram-se o
Banco Mundial, BID, Editora Moderna, Grupo Positivo, Fundação
Gerdau, Fundação Jacobs, Fundação Lemann, entre outras. Paulo
Renato Souza também integra o quadro diretor da Fundação Lemann,
de capital suíço, que fornece cursos para gestores da educação em
vários estados. Em 2003 e 2004 ofereceram o curso Gestão para o
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sucesso escolar nos estados de São Paulo e Santa Catarina, em seguida


atuaram na formação de gestores de escolas do Ceará, Tocantins e
São Paulo (FUNDAÇÃO LEMANN, 2007). Este curso foi realizado
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

em parceria com o Instituto Protagonistés, cuja diretora-presidente


é a ex-Secretária de Educação de São Paulo, Tereza Roserley
Neubauer, no governo Covas (1995-2001). Neubauer foi membro
do CNE nas gestões FHC, consultora do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP)
ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Banco Mundial
(1995-2002) e é membro do GT Descentralização e Autonomia do
PREAL. Um dos objetivos da Fundação Lemann é dar “apoio à
elaboração de Planos Municipais de Educação junto às Secretarias
Municipais de Educação”. A Fundação Lemann desenvolve, em
parceria com o Instituto Ayrton Senna e a Fundação Banco do Brasil,
o projeto Escola Campeã, utilizando a metodologia da Fundação Luis
Eduardo Magalhães (FLEM) com sede na Bahia.
A FLEM desenvolveu um Sistema de Certificação Ocupacional
que visa estabelecer padrões de mérito e competência para a escolha
de seus profissionais. Sua Agência de Certificação Ocupacional é
composta de Câmara de Educação e Câmara da Gestão Pública. Da
primeira fazem parte Rubens Portugal8 , Célio Cunha, da UNESCO,

8 Rubens Junqueira Portugal, como executivo de empresas, foi vice-diretor de Planejamento de RH do


The Chase Manhattan Bank e Diretor de RH e Planejamento Estratégico no Grupo Fininvest. Fundador do
Instituto Rubens Portugal de Aprimoramento de Professores, em São José dos Pinhais (PR), tem trabalha-
do junto às redes públicas de ensino estadual e municipais de vários estados. Organizou e coordenou
vários eventos para formação de professores, em sua maioria na Universidade do Professor em Faxinal
do Céu, no Paraná. (IPD, 2007)

Política, Educação e Cultura


41

Clemenceau Chiabi Saliba, consultor do Instituto Ayrton Senna, e


da Câmara da Gestão Pública, Heloísa Lück, consultora sobre Gestão
Educacional do CONSED e coordenadora da Rede Nacional de
Referência em Gestão Educacional (RENAGESTE). Em 2006, a revista
Gestão em Rede ganhou grande impulso e distribuição com apoio
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE. O
FNDE também garante a distribuição do periódico Nova Escola,
produzido pela Fundação Victor Civita (FVC), um dos mais populares
entre os professores. Além da revista, a FVC edita as coleções Ofício
de Professor e Ofício de gestor e desenvolve o projeto Reescrevendo
a Educação, com a Editora Ática e Scipione, do qual participam como
articulistas outros membros do GTD, como Cláudio Moura Castro,
Gustavo Ioschpe, Paulo Renato de Souza e o presidente do Grupo
Gerdau.
A diretora executiva da Fundação Victor Civita, Guiomar Namo

Coleção Sociedade, Estado e Educação


de Mello, membro do GTD, foi Secretária Municipal de Educação de
São Paulo, no governo do prefeito Mario Covas (1982-1985),
consultora do Banco Mundial, membro do CNE no governo FHC,
relatora e membro de comissões que elaboraram pareceres
importantes para a reforma educacional, como as diretrizes
curriculares para o Ensino Médio (1998), para a Educação Profissional
(1999) e para a formação de professores da Educação Básica (2001).
Em suma, atuou como consultora de organismo internacional, ajudou
a elaborar a política educacional como membro do MEC, presta
consultoria para implementar a política recomendada em nível
municipal, é parceira da UNDIME e do CONSED.
A revista Nova Escola, publicada pela FVC, é subsidiada pelo
FNDE e distribuída em todas as escolas públicas de ensino
fundamental, pré-escolas e classe de alfabetização com mais de 50
alunos do país, totalizando 106.867 escolas em 2006. Naquele ano,
a FVC teve como parceiros o MEC, a UNDIME, o CONSED, o Inter-
American Dialogue (IAD), o PREAL, a Fundação Roberto Marinho.
Essa imensa rede institucional certamente decorre dos
relacionamentos de seus dirigentes, por exemplo, Claudia Costin,
vice-presidente da Fundação Civita, foi Gerente de Políticas Públicas
do Banco Mundial. Integram o conselho curador da FVC Cláudio
Moura Castro, aposentado do BID, e a ex-primeira dama Ruth
Cardoso.
O PREAL foi criado em 1995 pelo IAD. Publica Boletins com
informações sobre a educação na região a partir de dados e análises
fornecidos pela UNESCO, CEPAL, BID e Banco Mundial e conta com:

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


42

o apoio generoso da United States Agency for International Development


(USAID), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a
AVINA Foundation, a Tinker Foundation, o Banco Mundial, a GE
Foundation e outras. Estas instituições têm demonstrado um
compromisso permanente com a reforma educacional na América
Latina. Seu apoio contínuo e flexível ao PREAL foi crucial para a
conformação das redes institucionais e de informações necessárias para
fazer com que este projeto fosse bem-sucedido. (PREAL, 2006, p.8)
Brasileiros de expressão participam do IAD, Armínio Fraga e
Henrique Meirelles, ex-presidentes do Banco Central, Roberto
Teixeira da Costa e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
integram o quadro de diretores.
A Fundação Lemann, Jacobs e o Grupo Gerdau promoveram
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

em 2006 a Conferência Ações de Responsabilidade Social em


Educação: melhores práticas na América Latina. Vários membros do
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

GTD, representante do PREAL, do IAD, participaram das sessões


como conferencistas, palestrante ou comentaristas. Um dos
momentos mais aguardados da conferência internacional foi a
reunião de países em seis grupos. O Brasil reuniu personalidades e
representantes de empresas para propor compromissos concretos
para a melhoria da educação na região, discutindo ações que
comporiam um documento final do movimento. Tal documento
intitula-se Compromisso todos pela Educação. Analisando os
membros que compõem o conselho de governança, comitê gestor
e comissões técnica e de articulação, reencontramos muitos dos
membros brasileiros do PREAL.
O Compromisso Todos pela Educação visa mobilizar a
iniciativa privada e organizações sociais (terceiro setor) para atuar
de forma convergente, complementar e sinérgica com o Estado na
definição das políticas públicas. O ponto central de sua estratégia é
a co-responsabilidade e a busca de eficiência, eficácia e efetividade.
Seu enfoque é primordialmente voltado à melhoria da qualidade do
ensino, traduzida em resultados mensuráveis obtidos por meio de
avaliações externas.
Em consonância com o ideal de Educação de qualidade para todos,
defendido pelo Todos Pela Educação, o MEC lançou o Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE). Dentre as medidas apresentadas
no PDE, destacam-se as que tratam da Educação Básica. Elas estão
reunidas principalmente no “Programa de Metas Compromisso Todos
Pela Educação”, batizado em homenagem Todos Pela Educação (Todos
pela Educação, 2007)

Política, Educação e Cultura


43

Esse breve mapeamento de parte da rede permite observar a


marcante influência dos organismos internacionais e regionais, em
especial do PREAL, nas atividades de fundações que, por meio de
parcerias, difundem idéias via empresas de telecomunicações e
parque editorial. O PREAL exerce, também, papel importante na
difusão de diretrizes para a reforma educacional, disseminando
valores, diretrizes, orientações, conceitos e preconceitos, atuando
sobre gestores, legisladores e formadores de opinião.
Ora atuando no governo, ora em fundações e organizações
não-governamentais, os membros do GT Profissionalização Docente
do PREAL influenciam os rumos da reforma educacional brasileira,
fornecendo consultorias, assessorando a construção de planos
estaduais e municipais de educação, formando professores e gestores
educacionais, certificando suas competências, atuando em
instituições que vendem serviços para implantar a reforma

Coleção Sociedade, Estado e Educação


educacional em vários estados do Brasil.
Os dados coligidos entre 2005 e 2007, com base em
informações de domínio público, permitiu-nos verificar que os
membros do PREAL realizam uma parte substancial da
implementação da reforma educacional, ou seja, difunde idéias,
avaliações e análises sobre a reforma. O programa é formador de
opinião, influencia os tomadores de decisão, faz consultoria para a
UNDIME e o CONSED, está articulado a organismos internacionais
e presta assessoria para formação de professores e gestores em vários
estados do Brasil. Possui, portanto, um papel fundamental na
capilarização das diretrizes internacionais por meio de organizações
governamentais e não-governamentais regionais e locais.

A REDE KIPUS
Com estratégia assemelhada à do PREAL, a Rede Kipus, Rede
Docente da América Latina e Caribe, também se dedica a formar
opiniões e difundir idéias acerca da formação docente, mas no âmbito
das instituições superiores de formação. Não tão estruturada quanto
o PREAL, a Kipus nasceu da iniciativa de universidades, apoiada pela
UNESCO, em 2003, no Chile e conta, atualmente, com 162
organizações filiadas.9 Liga-se ao Projeto Regional de Educação para

9 A Rede foi criada durante o Seminário Latino-americano de Universidades Pedagógicas, realizado na


Universidade Metropolitana de Ciências da Educação, Santiago do Chile, 8 e 9 de maio de 2003.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


44

a América Latina e o Caribe (PRELAC)10 e é parte da estrutura da


UNESCO 11 . Constituiu-se, segundo informações em sua página
eletrônica, como uma aliança entre organizações, instituições e
pessoas de algum modo envolvidas em processos de
“desenvolvimento profissional e humano de docentes”12 . A análise
preliminar de seus documentos possibilitou verificar que não se
configura como estratégia de junção de órgãos estatais, mas, sim,
de universidades, faculdades, institutos, redes profissionais,
organizações não-governamentais, sindicatos de professores e, entre
eles, órgãos da administração estatal.
O objetivo central dessa rede é a busca do fortalecimento
docente, de seu protagonismo, posto que es una de las claves para
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

las transformaciones educativas. (UNESCO, 2006). Sua estratégia


consiste em reunir o conhecimento acumulado pelas instituições de
formação docente da região em nível superior e oferecer elementos
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

para o que denomina “uma formação inovadora”, isto é, uma


formação que concilie demandas locais ou regionais, apresentando-
as como universais. Sua tarefa é a de coordenar um movimento
regional de produção de conhecimento e de re-significação da
educação no interior das universidades e correlatos – e aí está o
sentido de uma organização lastreada em instituições universitárias
ou de nível superior pedagógicas (UNESCO, 2003, p. 4).
Segundo documentos disponíveis no website da UNESCO,
gerar conhecimentos e aprender são condições basilares para que
se produzam projetos e programas de investigação conjunta. Segundo
o texto de abertura de sua página, o seu compromisso refere-se a:

10 O PRELAC prevê um modelo de acompanhamento das reformas. Entre outras, propõe: “maior partici-
pação de atores e instâncias e criação de redes”. [...] “incide na institucionalização de redes, as quais
supõem uma organização muito diferente daquelas existentes nos sistemas educacionais atuais, já que
exigem uma estrutura aberta, uma grande autonomia, hierarquias não lineares, múltiplas conexões e
limites flexíveis. Isso significa um grande desafio na reordenação dos sistemas educacionais.” [...] “Será
realizado um conjunto de ações com os países pelas redes regionais coordenadas pela UNESCO ou por
redes de apoio lideradas por outros organismos de cooperação internacional.” (PRELAC, 2002, p. 22)
11 Los QUIPUS fue un sistema o una forma de comunicación de los pueblos andinos, según algunos investi-
gadores; otros mencionan que fue un mecanismo de registro de información, estadísticas o hechos históri-
cos. También hay quienes afirman que era una forma de levantar información actualizada para planificar y
“rendir cuentas” (UNESCO, 2006).
12 Embora se afirme como uma rede interessada em congregar instituições de ensino superior voltadas à
formação docente, muitos dos documentos que utiliza originam-se de relatórios sobre as políticas edu-
cacionais dos países da região, patrocinados pela UNESCO em conjunto com ministérios da educação.
Na página da UNESCO estão publicados em torno de 15 relatórios, entre eles o do Brasil.

Política, Educação e Cultura


45

todo lo que signifique fortalecer la profesión y la profesionalidad


docente, en el contexto de una educación de calidad con equidad
para toda la población (UNESCO, 2006). A particularidade da Rede
Kipus encontra-se, pois, na intenção de investir na “re-significação
da educação” no interior das universidades e outras instituições de
formação docente para, por esse meio, construir novos significados
para a própria formação. Em 2004, com oito instituições filiadas, a
Kipus realizou um encontro em Honduras, onde foram considerados
temas emergentes a formação de docentes, os sistemas de
desenvolvimento profissional, a profissionalização do trabalho, o
perfil dos formadores e a avaliação do desempenho nas instituições
formadoras13 . Na Colômbia, em 200514 , discutiram-se modelos e
enfoques na formação da perspectiva do ensino-aprendizagem, tanto
de disciplinas quanto de pedagogia, assim como as práticas
pedagógicas e a reflexão sobre a integração entre conhecimento

Coleção Sociedade, Estado e Educação


disciplinar e saber pedagógico para uma difusão justa e eqüitativa
do conhecimento como bem público15 . Além disso, a própria idéia
de “redes pedagógicas e de professores” foi tematizada e considerada
um importante espaço de formação docente e de difusão de
conhecimento (UNESCO, 2006)16 .
Entre os documentos produzidos pela Rede, ou por ela
encomendados, está a Carta de Santiago do Chile (UNESCO, 2003),
que elenca entre seus principais compromissos os que seguem:
a) atuar em consonância com as recomendações relativas à
educação formuladas em conferências internacionais e por comissões
mundial e regionais (UNESCO, 2003, p. 1)17 ;

13 Esse encontro contou com a presença de 15 países da região, representados por universidades peda-
gógicas, faculdades de educação, ONGs relacionadas à formação docente, além de alguns ministérios de
educação.
14 O encontro realizou-se em Bogotá, em setembro de 2005.
15 O tema desse III Encuentro Internacional de la Red de Formación Docente de América Latina y el Caribe,
KIPUS, foi El conocimiento que educa. A Rede Kipus tiene como uno de sus propósitos fundamentales el
mejoramiento de la calidad de la educación, en la cual, como es natural, se ve seriamente comprometida la
circulación del conocimiento que las distintas comunidades acadêmicas construyen, y que fluye por distin-
tos canales sociales, encontrándose comprometido en múltiples implicaciones éticas, políticas y educativas,
que surgen de su consideración como bien público. (OREALC/UNESCO, 2005)
16 Em outubro de 2006, na Venezuela, ocorreu o IV Encontro, tematizando Políticas Públicas y Formación
Docente para un Proyecto de País, tendo em vista o fortalecimento de alianças e o desenvolvimento de
projetos entre instituições, organizações e pessoas responsáveis pelo desenvolvimento profissional e
humano de docentes. (UNESCO, 2006)
17 A Carta refere a Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, Tailandia, 1990), o Fórum
Mundial de Educação (Dakar, Senegal, 2000), as Conferências dos Ministros de Educação da América
Latina e Caribe, e o PRELAC.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


46

b) considerar a formação de docentes como eixo fundamental


para o sucesso das reformas educativas na região e, simultaneamente,
para enfrentar os desafios do Fórum Mundial de Educação de Dakar,
tendo em vista a redução da pobreza e o desenvolvimento social e
econômico (UNESCO, 2003, p. 1);
c) considerar como tarefa principal dos sistemas educacionais
e dos professores el mejoramiento de la calidad de la educación y su
pertinência (UNESCO, 2003, p.1);
d) verificar se os currículos são relevantes, valorizar a pesquisa
que tenha em vista melhorar a formação, ressaltando-se aqui a
formação dos formadores de docentes e a prática profissional como
eixo da formação e como horizonte da acreditação e controle de
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

qualidade das instituições formadoras (UNESCO, 2003, p. 2);


e) difundir uma educação que forme integralmente o ser
humano e esteja à disposição de todos os segmentos sociais, com
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

qualidade, assegurando-se a profissionalidade docente e se


envolvendo em discussões que conduzam as universidades a
resignificar la educación (UNESCO, 2003, p. 1) e
f) considerar que as universidades pedagógicas e as
instituições formadoras de docentes contribuem significativamente,
e mesmo preponderantemente, para a formação dos docentes
necessários aos sistemas escolares (UNESCO, 2003, p. 1-2).
Interessa realçar que, embora muitos dos compromissos
acima referidos façam parte da agenda estatal dos países da Região,
a Rede Kipus os assume como organização constituída de instituições
prioritariamente voltadas à formação docente em nível superior,
como assinalado. Também é importante observar que tais
compromissos indicam uma reorientação de rumo. A proposta de
“re-significar a educação” mediante a alteração da formação dos
formadores nas instituições de formação inicial – ainda que articulada
à formação contínua – parece evidenciar que não se trata apenas de
reformar as mentes dos professores da ativa, mas também – e talvez
até principalmente – da consciência da próxima geração de
professores.
Esse objetivo se expressa em um conjunto de medidas em
curso que tendem a reconfigurar a formação e o trabalho docente
no continente, a saber: estabelecimento de diretrizes curriculares
nacionais para a formação inicial de professores; redefinição das
funções docente; ênfase na profissionalização docente; implantação
da certificação periódica de docentes; instituição de gratificações
por desempenho.

Política, Educação e Cultura


47

Outras tarefas que caracterizam a reconversão docente estão


intimamente relacionadas à organização do trabalho e à gestão, tanto
no nível da escola quanto do sistema educacional. Dizem respeito à
introdução do gerencialismo na educação que se manifesta em
crescentes incentivos à descentralização e autonomia, na
flexibilização da legislação, na compreensão da escola como uma
organização complexa que deve prestar contas (accountability) sobre
a aplicação dos recursos, mas, fundamentalmente, ser
responsabilizada pelos resultados dos alunos nos exames nacionais.
A avaliação de impacto e de resultados tão recomendada pelo
Education Sector Strategy Update (BANCO MUNDIAL, 2006) está
sendo implementada nos vários níveis de ensino, dos anos iniciais à
pós-graduação18 . A avaliação incidirá não apenas sobre os alunos,
mas também sobre os professores, os gestores e as instituições.
A Rede Kipus evidencia que é preciso preparar adequadamente

Coleção Sociedade, Estado e Educação


o professor, mas prepará-lo apropriadamente pressupõe formar
também os formadores, líderes de escola e gestores, decorrendo
daí sua proposta de intervenção nas instituições formadoras,
portanto, sobre a formação da intelectualidade da área.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As evidências arroladas neste texto indicam que reconverter


o professor é um empreendimento que implica em reconverter as
próprias instituições de formação docente ou os projetos
institucionais por elas implementados. Desse modo, o propósito de
reconversão profissional supõe a reconversão conceitual, ou seja,
deve-se assumir que estamos frente ao colapso do conceito de
professor, articulado ao colapso de uma determinada concepção de
escola19 . Para Campos (2004, p. 12):
na escola tradicional [...] os docentes (estão) associados exclusivamente
ao trabalho de classe e não necessariamente ao espaço maior da gestão

18 O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado em 2007 pelo MEC, prevê um conjunto de
40 ações muitas das quais expressam a incorporação da avaliação de resultados na gestão da educação
como o Provinha Brasil, IDEB, Nova CAPES entre outras.
19 Para Campos (2004, p. 11), “As mudanças no atual cenário levaram a um esgotamento do papel do
professorado na educação tradicional, associado principalmente à transmissão unidirecional de infor-
mação, à memorização de conteúdos, a uma parca autonomia nos projetos e na avaliação curriculares,
a uma atitude passiva diante da mudança e da inovação educacional, e a um modo de trabalhar de
caráter mais individual do que cooperativo.”

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


48

da escola e do sistema educacional, com o que se poderia entender o


trabalho docente como uma tarefa claramente pedagógica.
Os “cursos de capacitação” e correlatos como estratégia de
atualização ou “reciclagem” docente – promovida pelo Estado e por
agências de formação – são considerados pela UNESCO uma “via
do passado” 20 . A crítica assenta-se sobre a idéia de que este
procedimento não levou à ruptura com a feição tradicional da escola
e do professor. Está explicitada aqui a posição de que o Estado, em
suas estratégias de formação permanente ou em serviço, não logrou
uma mudança substantiva na mentalidade docente, não conseguiu
opor-se a uma perspectiva considerada fortemente tradicional e não
conseguiu sucesso em suas tentativas de “modernizar” o professor21 .
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Essa avaliação conduziu a uma compreensão de reconversão docente


que põe sobre as instituições de formação a responsabilidade por
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

essa iniciativa. O item 25, do ponto V. Los docentes y el derecho de


los estudiantes a aprender, das Recomendações do PRELAC (2007b,
p. 5), assinala que é necessário reforzar los procesos de formación
de quienes forman a los docentes y de los equipos que dirigen las
escuelas para que se generen cambios pedagógicos e institucionales
en los centros educativos.
Desse ponto de vista, o professor tradicional ou o experto
rutinario deve tornar-se experto adaptativo, ou seja, os docentes
reconvertidos deverão incorporar a capacidade de adaptar-se em
tempo integral ou ao longo da vida (UIS, 2006, p. 54). Assim, a
declamada obsolescência de los saberes docentes exigiriam não
apenas sua reconversão profissional por meio de novas estratégias
de formação, como também produziria novas formas de regulação
do trabalho docente que, ao contrário de produzir a democratização
do acesso ao conhecimento, son funcionales a la reconversión de la
educación como mercancía subordinada a los requerimientos de la
competitividad. (IMEN,s.d., p. 11).

20 Campos (2004, p. 14) entende que se trata da “re-significação de seu trabalho e (da) recuperação da
posição central dele (que) pressupõem um reconhecimento de que há um conjunto de fatores que
determinam o desempenho, e de que esses fatores interagem e influenciam uns aos outros. Entre eles:
formação inicial, desenvolvimento profissional em serviço, condições de trabalho, saúde, auto-estima,
compromisso profissional, clima institucional, valorização social, capital cultural, salários, estímulos, in-
centivos, carreira profissional, avaliação do desempenho.”
21 O professor moderno deve ser capaz de se co-responsabilizar pelos resultados do trabalho da sua
escola, articulando as políticas internacionais com as locais e nacionais, ser protagonista nas mudanças
educativas e garantir o aprendizado dos estudantes (PRELAC, 2007a, p. 60); comprometer-se com os
resultados de seu trabalho, combater os baixos resultados de aprendizagem e da insatisfação, frustração
e situação de conflito em que vivem os docentes (Idem, p. 61).

Política, Educação e Cultura


49

Pode-se perceber que a transformación educativa reduz-se a


políticas que produzem a precarização do trabalho do professor
(OLIVEIRA, 2004), agravada pela reconversão laboral, num
mecanismo em que o professor é responsabilizado individualmente
por suas condições de acesso e permanência no mundo do trabalho.
As redes aqui referidas, por meio de seus intelectuais e
instituições, encarregam-se de difundir esse tipo de ideário na região.
Evidencia-se um dado da realidade social contemporânea pouco
explorado nas pesquisas educacionais, ou seja, o de que os indivíduos,
dotados de recursos e capacidades propositivas, organizam suas
ações e criam espaços políticos, por vezes virtuais, para atuar em
defesa de seus interesses. Mesmo nascendo em uma esfera informal
de relacionamentos pessoais ou institucionais, os efeitos das redes
podem ser percebidos em várias conexões/interações com o Estado.
Essas conexões ajudam a compreender porque encontramos, em

Coleção Sociedade, Estado e Educação


nível nacional, reprodução fiel de justificativas, argumentos e
discursos presentes em documentos de organismos internacionais.
Compreender a articulação local-global e as determinações
fundamentais que estão fora dos muros da escola, mas influenciam
profundamente as decisões tomadas em seu interior, além das
mudanças nas relações e no trabalho realizado no “chão da escola”,
são desafios para os pesquisadores da área.
A atuação de redes em âmbito nacional, regional e
internacional, visando reconverter “espaços” e “funções” dos
professores de modo a provocar uma re-significação da educação, é
um tema de investigação importante, de nosso ponto de vista. Mapear
e acompanhar as ações das redes tem o propósito de contribuir para
conhecer as estratégias de disseminação, cooptação e também de
enfrentamento e resistência à produção de consensos na disputa
pela hegemonia na sociedade capitalista.

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Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura


PARA QUE SERVEM OS CURSOS
DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES?
Lizia Helena Nagel

INTRODUÇÃO

I - Recuperando o significado e a função da educação

Coleção Sociedade, Estado e Educação


A pergunta: Para que servem os cursos de formação de
professores? não pode ser respondida sem o prévio esclarecimento
sobre o que se entende por educação em seus desdobramentos
naturais de ensino e de aprendizagem
aprendizagem, Na verdade, se existe
interesse na formação de professores, isso parece ser justificado
porque se credita à figura docente uma função própria ao trabalho
de educar. Mesmo assim, avançando na questão, indaga-se: Qual é
a função conferida ao professor
professor,, hoje?
Diante desse questionamento, deve-se lembrar que o trabalho
de educar tem cunho social exatamente porque, na história dos
homens, ele sempre aparece sob a elucidação de atos ou
pressupostos considerados válidos para assegurar uma
sobrevivência (entre os pares) igual, ou melhor
melhor,, a já existente
existente.
Com maior ou menor racionalidade, com maior ou menor
consciência sobre a intencionalidade educativa, espiando pelo “túnel
do tempo”, apreende-se que filhos aprendiam com os mais velhos a
forma mais eficiente para se abrigarem das intempéries, adaptarem-
se ao meio, caçarem, plantarem, confeccionarem utensílios e
ferramentas, tudo com o interesse de evitar dores ocasionadas pela
mera reprodução de tentativas anteriores infrutíferas.
Partindo do crédito que o homem não nasce feito, mas se
hominiza no percurso de sua luta por sobrevivência, no processo
angustiante de manter-se vivo, deve-se lembrar dos aspectos culturais
(emocionais, psicológicos, comportamentais e intelectuais) que vão
surgindo, no tempo, na dinâmica das relações humanas. Assim, é

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


56

bom recordar que o amor platônico já foi vivido como ideal; que os
adolescentes não se afirmavam como contestadores de qualquer
autoridade; que os cavaleiros achavam correto ajoelharem-se diante
de um senhor e que as refeições não exigiam o uso de garfo e faca.
Também é preciso lembrar o desenvolvimento da linguagem em sua
forma articulada, a elaboração de conceitos abstratos, a capacidade
de julgar o já dado. Enfim, nenhum comportamento humano pode
ser visto como produto de uma evolução natural, biológica e/ou como
resultado de aprendizagem solitária, peculiar a uma única pessoa.
Assumindo-se, também, que a hominização, como processo
próprio aos homens em sociedade, não é uma trajetória apenas de
aperfeiçoamento contínuo, lembra-se Adorno e Horkheimer (1985,
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

p. 195), quando, impressionados com o horror provocado pelo anti-


semitismo, dizem: “A A transformação da inteligência em estupidez
é um aspecto tendencial da evolução histórica
histórica”. Essa não-
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

linearidade no aperfeiçoamento, que consiste, segundo os autores


referenciados, na possibilidade de estupidez da própria inteligência
(1985), não pode ser esquecida caso se pense na educação como
algo inerente ao nosso amanhã.
Sem escapar da possibilidade de o homem agir por razões
que possam tornar-se calamitosas, isso não elimina, mas, ao
contrário, confirma o ato de educar como uma necessidade gerada
por expectativas e por práticas que se impõem, mesmo quando
coordenadas por mero desejo de manutenção do mínimo já
conquistado. Assim, para além de um provável preço a pagar em
função de um afã estúpido de sobrevivência, o homem não deixa de
ser um Prometeu Acorrentado que, na tragédia de Ésquilo (1998:
pp. 35,36), diz:

Eles desconheciam as casas bem feitas


com tijolos endurecidos pelo sol,
e não tinham noção do uso da madeira;
como formigas ágeis levavam a vida
no fundo de cavernas onde a luz do sol
jamais chegava, e não faziam distinção
entre o inverno e a florida primavera
e o verão fértil; (vs 580-587)

[...] O mais importante de tudo:


não existiam remédios para os doentes,
nem alimentos adequados, nem os bálsamos,
nem as poções para ingerir, e finalmente,

Política, Educação e Cultura


57

por falta de medicamentos vinha a morte,


até o dia em que mostrei às criaturas
maneiras de fazer misturas salutares
capazes de afastar inúmeras doenças. (vs 617-624).

Enfim, o homem, ou melhor, o educador traduziu o seu


trabalho na esteira da responsabilidade que Prometeu se atribuiu.
Sua função, decodificada socialmente, foi a de repassar aos outros
os engenhos e saberes já construídos, tentando impedir a
possibilidade de reprodução das dificuldades já vividas, como
também, interrompendo o fantasmagórico ciclo do “eterno eterno
recomeço
recomeço” em qualquer trabalho, em qualquer fazer fazer, em qualquer
saber
saber.
Ligando materialidade, necessidade, intencionalidade e
trabalho
trabalho, chega-se à conclusão de que o ato de educar educar,, em sua
operacionalização, não se constitui um simples produto da

Coleção Sociedade, Estado e Educação


consciência de homens ilustrados. Tampouco se constitui um mero
desejo de adultos bem intencionados ou, ainda, um conjunto de
pressupostos arbitrários de indivíduos que. por natureza, ou
prerrogativas econômicas, divertem-se em ter poder, impondo aos
outros o seu saber! O ato de ensinar não pode ser simplesmente
confundido com o repasse de conhecimentos e valores considerados,
a priori, ilegítimos, como propõe uma tese que vem sendo defendida
por diferentes autores na pós-modernidade.
Incrível acreditar que, até a data de hoje, o mundo construído
e pensado pelos homens foi, simplesmente, um conjunto de erros e
de ilusões, a não ser que se faça uma atualização da leitura religiosa
que conferia a Adão, e aos seus descendentes, uma natureza tão
decaída quanto incapaz, tal como teria sido definida por São Paulo,
na Bíblia Sagrada. Dizia o apóstolo:

[Os homens] Então, cheios de toda espécie de malícia, perversidade,


cobiça, maldade, cheios de inveja, homicídio, contenda, engano,
malignidade. (cap. 1. v. 29)
...
São difamadores, maldizentes, inimigos de Deus, insolentes, soberbos,
altivos, inventores de maldades, desobedientes aos pais. (cap. 1, v. 30)
...
São insensatos, imodestos, sem afeição, sem palavra e sem
coração, sem misericórdia... (cap.1. v. 31)

Não parece, na verdade, ser por obra dessa natureza,


qualificada apenas por seus defeitos e/ou limites, que o homem tenha

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


58

se manifestado, historicamente, a favor do conhecimento relacionado


fazer e/ou saber do passado
com o “fazer passado”” como mediação para o “fazer
e/ou saber do futuro
futuro””. No mesmo sentido, não parece justificável
tomar os erros, ou as ilusões do conhecimento, para legitimar a
ensinar,, justificando e glorificando apenas as
impossibilidade de ensinar
experiências privadas como condição para o desenvolvimento
do ser humano. O conhecimento sobre o fazer e/ou o saber do
passado
passado, não descolado do seu oposto íntimo, o fazer e/ou o saber
do futuro
futuro, fundado na apreensão do trabalho necessário à
sobrevivência, implica, obrigatoriamente a noção de comunidade,
que se renova, sob maior ou menor conscientização, por atos
educativos. Atos educativos que levam a pensar o homem como um
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

ser ativo, com intencionalidade, como um ser que não se caracteriza


nem pelo vazio, nem pela falta de projetos. Nesse sentido, como
Saviani (1995, p. 17), assume-se o entendimento do o ato educativo
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

como o:
[o] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo
singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de
um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam
ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se
tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à
descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo
(Grifo nosso).
Apresenta-se, pois, a educação, imersa nos interesses de uma
dada sociedade que pleiteia sobreviver da maneira sempre mais
otimizada possível (seja ela capitalista, ou não). Assim como
intimamente vinculada ao trabalho que, para além das classes sociais,
produz o ser social, o homem que se expressa buscando existir sob
os limites da qualidade possível de acordo com tal ou qual época
histórica. Nesse quadro, pensa-se a educação como uma prática
social que se afunila no ensino propriamente dito, formalizado,
preferencialmente, pelas instituições educacionais e ministrado,
efetivamente, por professores.

II - Expondo os dados sobre os resultados educacionais

Recuperado, de forma mais ampla e remota, o significado de


educar, preso por suas raízes à concepção de homem como um ser
social que se faz ao longo do trabalho, capaz de prover e de modificar
os meios ou as condições de existência, passa-se a expor informações

Política, Educação e Cultura


59

e/ou dados oferecidos pelos órgãos responsáveis pelo sistema


educacional, os quais remetem a reflexões mais abrangentes.
Iniciando pelo Programa Internacional de Avaliação dos
Estudantes (Pisa1 ) realizado no ano 2000, com 250 mil estudantes
na faixa de 15 anos, do qual os brasileiros participaram por convite
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), tem-se, pelos resultados obtidos, a informação do
despreparo de nossos educandos para enfrentar os atuais desafios
da sociedade contemporânea. A “sobrevivência” dos nossos jovens,
se estimada em relação com as “competências”2 apresentadas pelos
estudantes de outras nacionalidades, encontrar-se-ia em níveis de
dificuldade bem maiores do que a de seus pares na mesma época.
No ano de 2000, entre 31 países, os brasileiros conseguiram
ficar em último lugar na prova de Leitura, garantindo apenas
pontuação nos níveis mais baixos da escala de avaliação. Incapazes

Coleção Sociedade, Estado e Educação


de compreender os textos escritos, as ordens dadas, mostram uma
tendência a responder de forma subjetiva, de acordo com o que
cada um pensa, as questões apresentadas. Com os resultados de
outras dez nações que aplicaram o teste no ano subseqüente, o Brasil
consegue sair, no campo da Leitura, do 31º lugar e colocar-se no
37º, e assegurar o penúltimo lugar, ou seja, o 400, em Matemática e
em Ciências. O quadro a seguir mostra as pontuações obtidas pelos
países com pior desempenho.

1 O Pisa surge como um teste sobre as competências de uso da linguagem que se tornaram cruciais no
mundo moderno, segundo o entendimento dos países mais avançados do globo. Pisa 2000 - Relatório
Nacional (2001, p.87).
2 Competência, conceito de Phillipe Perrenoud (1993) adotado nos documentos oficiais da educação, é
entendida como a “capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiando-se
em conhecimentos, mas sem se limitar a eles”. (In: INEP, Saeb, 2002 a)

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


60

Quadro 1 - Ranking dos países que participaram do Pisa: Piores


Desempenhos (2000-2001)

Or dem Leitur a Matem ática C iências

37
37 B rasil A l b â n ia Argentina

38
38 Macedônia Macedônia Indonésia

39
39 Indonésia Indonésia A l b â n ia

40
40 A l b â n ia B rasil B rasil

41
41 Peru Peru Peru
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Fontes: www.inep.org.br e http://www.pisa.oecd.org. Acesso em: 18/08/05.

Dentro dessa mesma classificação, na qual a Coréia do Sul se


http://www.unioeste.br/pos/educacao/

situa em 7º. lugar, outra reflexão se impõe, baseada em documento


anterior, no PISA 2000 - Relatório Nacional (2001, p. 79), que registra:
[...] A Coréia nos idos 60 não estava melhor do que o Brasil,
seja em qualidade, seja em quantidade. Não era um país mais rico
do que o Brasil. Não obstante, atingiu os níveis quantitativos dos
mais avançados países da OCDE e níveis qualitativos acima de quase
todos eles.
Qualquer análise que possa ser feita dos dados obtidos, no
conjunto das avaliações dos jovens brasileiros, leva à seguinte
conclusão: a aprendizagem dos alunos no campo da leitura e da
produção de textos é insignificante
insignificante. Problema tanto maior para o
sistema de ensino quanto mais se credita à economia moderna
maiores exigências relativas ao manejo rigoroso e analítico da
linguagem. (Pisa, 2000. Relatório Nacional, 2001) Para a faixa etária
que está a concluir a escolaridade básica obrigatória, o desempenho
apresentado por eles, quer em nível internacional3 ou nacional, no
máximo, poderia ser qualificado como medíocre. Medíocre por
expressar a fragilidade das estruturas mentais4 até então adquiridas,

3 “Nossa última incursão em comparações internacionais nos deixa em penúltimo lugar em Ciências.
Fomos salvos do último lugar pela presença de Moçambique, em plena guerra civil. Pior, o anúncio de
tão trágico resultado passou quase despercebido e foi minimizado pelo MEC.” (Pisa 2000. Relatório
Internacional, 2001, p.80).
4 Segundo o Exame Nacional do Ensino Médio 2002 - Relatório Pedagógico, as estruturas mentais são as
responsáveis pela construção contínua de conhecimentos e são desenvolvidas por suas interações com
o mundo físico e social desde o nascimento (2002, p. 11).

Política, Educação e Cultura


61

produzidas, nesse nível, em nosso entendimento, por falta de


interações mais efetivas com o universo que os cerca, por falta de
interação com o saber e o fazer já existente, ou já produzido, no
mundo.
Com 15 anos em média, os alunos não conseguem raciocinar
e se comunicar eficientemente, embora essa seja a preocupação
central do instrumento de avaliação que enfatiza o domínio de
conhecimentos e habilidades básicas, indispensáveis para uma
participação efetiva na sociedade. Perceber os diversos tipos de textos
ou documentos em suas funções diversas, interpretar formulários,
gráficos, correspondência oficial, cartas pessoais, etc., identificar e
recuperar informações, são algumas das operações reconhecidas
como necessárias aos indivíduos de hoje e que, infelizmente, não
conseguem ser concretizadas, com destreza, pelos concluintes do
Ensino Médio.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Importante frisar que o Relatório Pisa 2000 (2001) registra
um dado importante nesse quadro de dificuldades de aprendizagem.
Os resultados aferidos excluem as possíveis diferenças entre as
classes sociais. Os jovens com amplo acesso a bens culturais e
tecnológicos não apresentam desempenho diferenciado dos demais
que não possuem condições econômicas similares. As escolas
públicas não se distanciam, em seus resultados, das escolas
particulares.
Numa linha de tempo, sem superar as dificuldades apontadas
no ano de 2000, o Pisa de 2003 mostra que o desempenho do país,
na Leitura, não apresenta afastamento significativo do escore
anterior5. No entanto, a preocupação com a eficiência do ensino no
Brasil não começou pela primeira participação do Brasil no Pisa. O
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) foi criado
em 1990 e realiza, desde então, avaliações, a cada dois anos, nas
Unidades da Federação, dimensionando o desempenho dos alunos
nas diversas regiões brasileiras.
Por acompanhar, portanto, há mais tempo, o desempenho
dos alunos das 4ªs. e 8ªs. séries do Ensino Fundamental e das 3ªs.
séries do Ensino Médio, em 2007, o Saeb pode apresentar o quadro
do desenvolvimento do ensino no país, através de indicadores
expostos em uma sucessão histórica.

5 Pequenos avanços, pouco significativos, no entanto, foram verificados em Matemática (nas áreas “Espa-
ço e Forma” e “Mudança e Relação”) e em Ciências, que apresentou uma melhora de 25 pontos em
relação à avaliação anterior.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


62

Quadro 2 – Proficiência por Série e por Curso em Língua Portuguesa


Medidas de Pr of iciência em Líng ua Por tug ues a

Sér ie e C ur s o 1995 1997 1999 2001 2003 2005

4ª. Série do Ensino Fundamental 188,3 186,5 170,7 165,1 169,4 172,3

8ª. Série do Ensino Fundamental 256,1 250,0 232,9 235,2 232,0 231,9

3ª. Série do Ensino Médio 290,0 283,9 266,6 262,3 266,7 257,6

MEC.INEP.SAEB. Primeiros resultados. Medidas de desempenho do SAEB 2005 em perspectiva comparada


comparada.
D.F. Brasília, fev.2007.

Quadro 3 – Proficiência por Série e por Curso em Matemática


Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Medidas de Pr of iciência em Matem ática

Sér ie e C ur s o 1995 1997 1999 2001 2003 2005

4ª. Série do Ensino Fundamental 190,6 190,8 181,0 176,3 177,1 182,4

8ª. Série do Ensino Fundamental 252,2 250,0 246,4 243,4 245,0 239,5

3ª. Série do Ensino Médio 281,9 288,7 280,3 276,7 278,7 271,3

MEC.INEP.SAEB. Primeiros resultados. Medidas de desempenho do SAEB 2005 em perspectiva comparada


comparada.
D.F. Brasília, fev.2007.

De 1995 a 2005, as medidas de proficiência dos alunos, tanto


em Língua Portuguesa como em Matemática, quer do Ensino
Fundamental, quer do Ensino Médio, caem de modo expressivo. Isso
se torna mais relevante quando se especulam os resultados obtidos
em relação aos objetivos declarados nessas áreas, facilmente
identificáveis tanto nos diversos documentos legais dos órgãos
competentes como em revistas científicas, credenciadas no país pelo
próprio MEC/INEP/CAPES. Com o auxílio dos chamados descritores6 ,
as expectativas sobre o desempenho dos alunos são detalhadas nos

6. Os descritores, em seus diferentes graus de complexidade, expressam os objetivos mais relevantes do


ensino, apontando para as habilidades que devem ser desenvolvidas nos alunos por serem consideradas
essenciais à vida em sociedade. Os descritores de Língua Portuguesa, por exemplo, apontam para algu-
mas das competências discursivas dos sujeitos tidas como essenciais nas diversas situações de leitura
(INEP, 2002 a).

Política, Educação e Cultura


63

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN´s), que fundamentam, de


forma clara, não só os itens das avaliações elaborados pelo Saeb e
Enem, como são ratificadas nos comentários que dão corpo aos
Relatórios sobre os resultados obtidos nos anos de 2001, 2003 e
2005.
Essas informações oficiais que servem para demarcar, ou
circunscrever, o ensino brasileiro, no entanto, insistem em alguns
refrões que precisam ser identificados pela pertinência com que
aparecem e, principalmente, pelas conseqüências que possam causar.
São, entre outros, os seguintes: a) negação da memorização como
um ato sem sentido para a aprendizagem; b) afirmação da exigência
de habilidades dos alunos tomadas de modo independente dos
conteúdo
conteúdos (externos, objetivos,) que lhes dariam significado ou
forma; c) ênfase na criatividade dos discentes, como um processo
de desenvolvimento natural, biológico, independentemente de

Coleção Sociedade, Estado e Educação


qualquer produção humana anterior; d) valorização da construção
individualizada de significados para além de parâmetros existentes;
e) desvalorização do conhecimento científico,
científico em favor de um
novo tipo de conhecimento personalizado. Princípios que, centrados
não na defesa de relações, mas na defesa da autonomia e da
subjetividade dos indivíduos (potencialmente emuladores do
cidadania”
“narcisismo”), são creditados como responsáveis pela “cidadania”
e/ou pelo “comprometimento com atuações sociais significativas”!
Nesse quadro, a proposta educacional do MEC, saltando dos
seus pressupostos para seus objetivos, sem estabelecer correlação
entre os meios e os fins, entre os pressupostos e os objetivos, exige,
através de avaliações sistemáticas, que os alunos demonstrem a
sociabilidade adquirida em seus cursos”
“sociabilidade cursos”, ou, melhor, demonstrem
ter recebido a educação necessária para a sociedade
contemporânea
contemporânea. Os resultados podem ser aqui dimensionados.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


64

Quadro 5 – Percentual de estudantes nos estágios de construção de


competências em Língua Portuguesa: 2001-2003
C o m p e t ê n c i a e m Lí n g u a Sa eb 2 0 0 1 Sa eb 2 0 0 3
P or tuguesa : Está gio 4ª.E.F 8ª.E.F 3ª. E.M 4ª.E.F. 8ª. E.F 3ª. E.M

Muito crítico 22,21 4,86 4,92 18,7 4,8 3,9

Crítico 36,76 20,08 37,20 36,7 22,0 34,7

I n t e r m e d iá r io 36,16 64,76 52,54 36.2 63,8 55,2

A d eq u a d o 4,42 10,23 5,34 4,9 9,3 6,2

A v a n ç a do 0,43 0,06 - * * *

Fonte: INEP Relatório Saeb 2001e Saeb 2003. 7


Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Quadro 6 – Percentual de estudantes nos estágios de construção de


competências em Matemática: 2001-2003
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Com petênc ia em Sa eb 2 0 0 1 Sa eb 2 0 0 3
Ma t e m á t i c a : E s t á g i o 4ª.E.F 8ª.E.F 3ª. E.M 4ª.E.F. 8ª. E.F 3ª. E.M

Muito crítico 12,5 6,65 4,84 11,4 7,3 6,5

Crítico 39,79 51,71 62,60 40,1 49,8 62,3

I n t e r m e d iá r io 40,89 38,85 26,57 41,9 39,7 24,3

A d eq u a d o 6,78 2,65 5,99 6,4 3,3 6,9

A v a n ç a do 0,01 0,14 - * * *

Fonte: INEP Relatório Saeb 2001e Saeb 2003.

Assumindo-se, hoje, o nível Adequado como referência para


pensar o aluno brasileiro possivelmente bem sucedido socialmente
- tem-se que o percentual dos escolarizados nesse nível é muito
pequeno. Distanciam-se, portanto, os resultados da escola do
propugnado por Jacques Delors (2001), patriarca estrangeiro da
educação brasileira em tempos de globalização que define a
aprendizagem relevante como aquela própria a um aluno capaz de

7 O Relatório do SAEB de 2001 se distingue do Relatório do SAEB de 2003 porque os intervalos das
escalas de desempenho das áreas de conhecimento avaliadas em 2001 foram reduzidos para 4. O nível
5, Avançado, em 2003, é diluído no nível Adequado, fazendo com que as concentrações nos diversos
estágios se alterem. O nível Avançado que qualificava os leitores como tendo habilidades consolidadas,
como leitores maduros, capazes de transpor para situações novas o conhecimento adquirido, desapare-
ce no último Relatório. O nível Adequado, em 2003, passa a expressar competência nas habilidades
compatíveis com a série.

Política, Educação e Cultura


65

viver em sociedade
sociedade, capaz de descobrir o outro, de ter objetivos
comuns
comuns, de transformar-se em uma personalidade rica, capaz de
mostrar competência para a comunicação
comunicação!
Nesse ponto, retorna, com mais fôlego, a questão básica deste
texto: Afinal, quais informações estão sendo repassadas nos cursos
de formação dos professores para que os docentes possam
responsabilizar-se por egressos da rede de ensino com
“personalidade rica”, com “competência na área do diálogo”? Como
a escola está administrando meios e instrumentos para a obtenção
do sucesso de seus alunos ao término de seus cursos? Quais
estimulações feitas aos docentes podem repercutir em resultados
tão indesejados? Quais atuações didáticas propugnadas vêm
garantindo aos profissionais tantos insucessos? Até quanto os
educadores estão obedecendo às orientações do MEC, que assumiu,
em atitude inédita, uma única e particular concepção pedagógica - o

Coleção Sociedade, Estado e Educação


construtivismo - como verdadeira e legítima opção para o ensino
de todos os aprendentes matriculados?
Ora, essas perguntas têm maior procedência porque, em
primeiro lugar, a escola está regulada, em todos os níveis de ensino,
pela filosofia e pela pedagogia dos PCNs, que conferem ao aluno o
direito natural, individual e acadêmico de aprender a aprender
aprender, de
aprender a fazer
fazer, de aprender a viver e de aprender a ser ser,, em
todos os níveis de ensino, por si mesmo. Ora, as competências e
habilidades, que já deveriam ter sido adquiridas ou, melhor, que já
deveriam ter sido progressivamente acumuladas pelos alunos, desde
a década de 90, ao longo de sua escolarização e de seu crescimento
fisiológico, não se revelam em índices progressistas. Dados que
podem ser lidos no documento do INEP, Qualidade da Educação:
uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 3ª. série do Ensino
Médio (2004 (b) p. 8), que diz:
Os dados indicam que 42% dos alunos da 3ª. série do ensino médio
estão nos estágios “muito crítico” e “crítico” de desenvolvimento de
habilidades e competências em Língua Portuguesa. São estudantes com
dificuldade de interpretação de textos de gêneros variados. Não são
leitores competentes e estão muito aquém do esperado para o final do
ensino médio. Os denominados “adequados” somam 5%. São os que
demonstram habilidades de leitura de textos argumentativos mais
complexos. Relacionam tese e argumentos em textos longos,
estabelecem relações de causa e conseqüência, identificam efeitos de
ironia ou humor em textos variados, efeitos de sentidos decorrentes
do uso de uma palavra, expressão e da pontuação, além de
reconhecerem marcas lingüísticas do código de um grupo social.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


66

Ora, se de fato se atribuir, ou se responsabilizar, simplesmente,


o alunado pelas aprendizagens que deve realizar, conforme determina
a pedagogia da globalização
globalização, por que essas mesmas aprendizagens
ainda não teriam se realizado?
São, pois, com essas aprendizagens não realizadas, declaradas
pelo próprio INEP, que os alunos do Ensino Médio adentram na
Universidade, sequer tendo conhecimento sobre a norma culta de
sua própria língua ( SOARES, 1999, 2004).
Nesse ponto, nada melhor do que oferecer alguns dados sobre
a escrita dos egressos dos Cursos Superiores. Marin e Giovani (2007,
p.15-41) ajudam nessa tarefa com sua pesquisa sobre o perfil dos
concluintes que receberam formação para assumirem a função de
professores. As pesquisadoras em tela, analisando as redações feitas
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

pelos alunos, examinando a expressão escrita e os argumentos


utilizados nas respostas às questões apresentadas a eles, revelam o
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

baixo índice de compreensão das questões formuladas e/ou das


ordens dadas para o cumprimento das tarefas. Dentre os resultados
encontrados, as dificuldades são assim listadas: a) usam expressões
vagas, ambíguas ou pouco adequadas; b) não conseguem organizar
as tarefas; c) incluem informações estranhas aos textos; d) dão
respostas inadequadas; e) não articulam os elementos com os
conhecimentos já adquiridos; f) mostram conhecimentos limitados,
pobres; g) têm percepção fragmentada; h) repetem coisas já ditas;
i) defendem argumentos sob alternativas que se opõem; j) não
demonstram nem memória nem atenção; k) apresentam erros de
ortografia, acentuação, concordância e pontuação.
Para completar esse quadro pouco alvissareiro, o Inep, com
base no questionário sócioeconômico aplicado aos estudantes que
participaram do Enade, em 2006, informa que apenas 34% dos
universitários lêem, no máximo, dois livros por ano, excetuando os
escolares. Outra fonte, como o Centro Integrado Empresa – Escola
(CIEE), também revela, a partir de 1104 entrevistas com estudantes
de universidades públicas e privadas, que não só os universitários
lêem pouco, como 18% deles declararam não gostar da leitura.
Despreocupados em buscar informações em jornais e revistas, 77%
desses mesmos estudantes revelaram que nenhuma obra lida os
teriam influenciado de modo significativo em sua vida.
Provavelmente, diga-se de passagem, nenhum professor deve ter
recebido aconselhamento direto (pelos limites da pedagogia da “não-
coerção” ou “da não imposição externa”) para imiscuir-se nas
decisões do aluno sobre sua formação literária, intelectual!

Política, Educação e Cultura


67

Tais resultados, mais uma vez, obrigam ao retorno da pergunta


básica deste texto, agora, sob forma variada. Assim, se as
competências e habilidades esperadas dos alunos não se confirmam
após escolarização de oito, onze ou quinze anos, quais relações
podem ser feitas com a formação dos professores, orientada por
órgãos e/ou documentos legais, em diferentes cursos e/ou
Universidades? Quais hipóteses podem ser dadas para um ensino
tão malsucedido após formação específica direcionada para a
educação?
Ou, ainda, não seria melhor afirmar que os resultados obtidos
nas avaliações do sistema escolar são um verdadeiro sucesso e que
provém, de modo natural, das medidas pedagógicas encaminhadas
sob a orientação do Banco Mundial, da UNESCO, de Jacques Delors,
de Perrenoud, entre outros assessores brasileiros do MEC? Afinal,
nunca é demais lembrar o decálogo de Perrenoud (2000) que, entre

Coleção Sociedade, Estado e Educação


outras recomendações, põe aos educadores a obrigação de preservar
os direitos imprescritíveis do aprendiz. Dentre estes direitos
proclamados apresentam-se alguns para reflexões obrigatórias sobre
as possíveis conseqüências da atual metodologia educacional,
adotada pela pós-modernidade:

• O direito do aluno de não estar constantemente atento.


• O direito de só aprender o que tem sentido.
• O direito de não obedecer seis a oito horas por dia.
• O direito de se movimentar.
• O direito de não manter todas as promessas.
• O direito de não gostar da escola e de dizê-lo.
• O direito de escolher com quem quer trabalhar.
• O direito de não cooperar para seu próprio processo.

III - Considerações pouco exploradas

Perrenoud (1999), como parceiro ativo dos educadores


brasileiros que se propõem de vanguarda, não acentua apenas os
deveres do professor para com seus alunos. Com tal orientação,
confirma o que vários outros adeptos dessa pedagogia da
globaliz ção sugerem: a redução da função do professor em nome
globalização
do desenvolvimento natural e autônomo das operações
intelectivas dos alunos.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


68

Perrenoud também se associa às propostas de “ensino” que


atenuam a importância do saber já construído historicamente.
Embora diga que não há competências sem saberes, deixa claro que
o tempo destinado ao repasse dos saberes deve ser menor que
os dedicados às competências. ““Competências” já definidas, no
documento do Saeb (2001 (a), p. 11), como
[...] diferentes modalidades estruturais da inteligência que
compreendem determinadas operações que o sujeito utiliza para
estabelecer relações com e entre os objetos físicos, conceitos, situações,
fenômenos e pessoas(Grifo nosso).
É com esse mesmo posicionamento que o Inep/Saeb (2001
(a), p.19), salientando a importância das “competências” e, dentre
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

elas, a exploração discursiva da língua, diz:


Como se sabe, tal perspectiva rompe com a tradição
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

“conteudística” de abordagens descontextualizadas (sic!) e,


assim, favorece o desenvolvimento das múltiplas capacidades
comunicativas de que o indivíduo deve dispor para responder às
exigências de sua condição de ser social e participativo (...) (Grifo nosso)
.
Na associação imediata da tradição “conteudística” com “a
negação de conhecimentos impostos”, com “a rejeição de
imposições coercitivas de parâmetros”, Foucault e seus pares são
absorvidos espontaneamente pela rede de ensino, nos limites de
um pragmatismo conveniente à defesa da própria tendência
educacional. Por superficialidade analítica, um pós-estruturalista,
negado pelo próprio Piaget (1981), é integrado ao estruturalismo
piagetiano, ou melhor, é absorvido pela tendência pedagógica
construtivista, admitida pelo governo brasileiro como única
concepção a ser adotada em todo território nacional.
Na verdade, encobertas pela pós-modernidade, as orientações
pedagógicas que partem dos órgãos responsáveis pela educação
brasileira apóiam pressupostos contraditórios. Ao lado da apologia
do educar, do ensinar, consideram todos os discursos como
plausíveis, admitem encontrar a verdade, inclusive, em sistemas
opostos ou antagônicos, recusam normas, regras e princípios,
renegam referenciais, rejeitam qualquer uniformidade ou
padronização, abandonam preocupações com os determinantes
sociais e aceitam, naturalmente, a imprecisão de termos e a falta de
rigor nos discursos.
Com essa pauta, a pedagogia oficial também conclama os
professores a aperfeiçoar a democracia nos limites da concepção do

Política, Educação e Cultura


69

indivíduo, ou da concepção de sujeito, já proposto pelo liberalismo


clássico. Da mesma forma, estimula a cidadania, embora o teórico
que dê cobertura a essa proposta, Piaget (1999, p.84), diga:
Não compreendemos nem moralmente nem intelectualmente
o mundo atual. Ainda não encontramos o instrumento intelectual
que nos tornará possível a coordenação dos fenômenos sociais, nem a
atitude moral que nos permitirá dominá-los pela vontade e pelo coração
(Grifo nosso).
Diante de afirmações tão categóricas e tão contraditórias que
impregnam as diretrizes educacionais, o conjunto de interrogações
que dá corpo ao texto reaparece sob outras formas. Assim, questiona-
se:
• É possível formar educadores quando não mais se
credita relevância ao trabalho do professor ?
• Qual a função do professor, hoje, com base na

Coleção Sociedade, Estado e Educação


pedagogia que considera o indivíduo capaz de aprender
a ser, fazer e conhecer por conseqüência de mera
estimulação de sua autonomia para a realização de
operações mentais?
• É factível educar o educador que não considera mais
possível conhecer e/ou compreender o próprio mundo
em que vive?
• É viável o sucesso da escola quando essa não mais se
propõe a ensinar?
• Não se poderia dizer que os resultados atuais das
avaliações do sistema de ensino são um verdadeiro
sucesso?

E, por último, a pergunta mais importante:


• De fato, dentro do quadro descrito, para que servem
os cursos de pós-graduação em educação?

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Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura


NOTAS CRÍTICAS AOS ARGUMENTOS CONTRA COTAS
PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS
Luis Fernando Cerri

Quando você for convidado pra subir no adro


Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos

Coleção Sociedade, Estado e Educação


(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão.

(Haiti – Caetano Veloso)

INTRODUÇÃO

As políticas afirmativas para acesso de estudantes negros às


universidades públicas estão em um novo nível de debate. Num
primeiro momento, no início da década, o debate centrava-se na
constitucionalidade, justiça e efetividade da iniciativa em cumprir seus
objetivos. Hoje, o quadro atual das também chamadas políticas de
cotas é outro. Estudos e relatórios recentes (p.ex. BRANDÃO, 2007)

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


74

afastam alguns questionamentos anteriores, como o


comprometimento da qualidade acadêmica do aluno que ingressou
por cotas. No que se refere à constitucionalidade, consolidou-se no
judiciário o princípio de que as políticas afirmativas são legais, a partir
do princípio de dever do Estado na produção de igualdade
substantiva, para além da igualdade formal.
Nesse quadro, em meados de 2007, é possível observar uma
reação em setores da sociedade brasileira, procurando abrir um novo
ciclo de discussões e reverter uma política que começa a dar sinais
de consolidação e adaptação, tendendo, portanto, a generalizar-se
no curto prazo. Assim, reportagens, sobretudo no jornalismo
televisivo da Rede Globo e na revista Veja, do Grupo Abril (portanto
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

dois dos maiores conglomerados da comunicação de massa no país)


recolocaram a questão das cotas. Essa reação procura atingir, além
dos pressupostos teóricos, seu modus operandi, a partir da afirmação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

de que o conceito de raça (base da política implementada) não existe


ou não é minimamente objetivo para ser aplicado. Além disso essas
políticas tiveram reforçada sua ligação com o Governo Lula, o que
acabou por constituir uma manobra para associar a insatisfação
oposicionista com a crítica a uma política pública supra-
governamental, e mesmo, em muitos casos, além do alcance do
poder decisório dos governos, uma vez que fica no âmbito da
autonomia universitária, em boa parte dos casos.
Além de um fenômeno midiático, que pode ser associado à
oposição política a um governo em particular, seu lugar social é o
âmago de empresas capitalistas envolvidas em processos de
oligopolização de seu mercado. Nesse quadro, o recurso ao
radicalismo do discurso liberal – contrário portanto a qualquer
intervenção do estado em qualquer campo da vida social ou
econômica – ajuda a explicar uma predisposição natural contra
políticas públicas compensatórias em geral, e as políticas de cotas
em particular.
Esse texto objetiva discutir as bases da argumentação usada
nesse processo de reação. A pergunta no final das contas é: “temos
um compromisso, como nação, com a reparação de prejuízos
históricos causados aos negros?” A estratégia para responder
negativamente a essa pergunta tem duas linhas principais: 1) não há
prejuízos históricos que sejam verificáveis ou não é possível definir
quem é negro (linha predominante em Ali Kamel, por exemplo) e 2)
há desvantagens históricas impostas aos negros, mas elas não podem
ser resolvidas através de políticas afirmativas: elas não funcionarão,

Política, Educação e Cultura


75

porque não funcionaram em parte alguma em que foram implantadas


(linha predominante em Thomas Sowell). Pretendemos discutir
preliminarmente esses argumentos, de um ponto de vista favorável
a políticas educacionais afirmativas para negros. Parte-se da idéia de
que há, sim, uma desvantagem social e educacional da população
negra, desvantagem essa que foi construída historicamente no Brasil
e que tem sido combatida, sobretudo, por pressão do movimento
negro sobre o Estado, cobrando-o por seu discurso republicano /
democrático. Entretanto, não tem sido enfrentada decisivamente a
desigualdade que separa brancos e não-brancos.
No título, a expressão “notas críticas” demonstra o caráter
não exaustivo desse capítulo, bem como o fato de ter sido produzido
por um leitor crítico envolvido no debate e com um ponto de vista
específico (historiador, com formação em Educação, favorável e
avaliador da implementação de uma política de cotas universitária

Coleção Sociedade, Estado e Educação


para negros em especial), e não um especialista com formação nas
questões em tela.

“NÃO SOMOS RACISTAS” – O ARGUMENTO DE QUE NÃO HÁ O


QUE REPARAR.

O livro do sociólogo e executivo da Rede Globo de Televisão,


Ali Kammel, tem como título “Não somos racistas”. Ele é um dos
principais divulgadores da tese de que não há reparação a ser feita
para os negros, porque não há efetiva desigualdade baseada no
critério racial. Seu raciocínio fica na borda da idéia de que no Brasil
não há racismo, embora não entre de vez nessa idéia, apenas
sugerindo que “não somos racistas”. A primeira pessoa do plural
indefinida (quem somos nós, que não somos racistas?) permite essa
proximidade, sem adesão definida, com a idéia de Brasil como
democracia racial.
Apesar de se tratar de um ensaio, com características de
material de divulgação, o livro de Kamel é relevante por dois motivos.
Primeiro, porque teve ampla divulgação e repercussão, alcançando
diversas edições e ganhando espaço nos meios de formação de
opinião. Por outro, é representativo devido ao estrato social a que
pertence – uma parcela específica da elite econômica brasileira,
proprietária e/ou financiada por instituições conservadoras de
comunicação social. Kamel atua como “intelectual orgânico” da
classe social que representa / serve / pertence.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


76

O indicativo importante que discutiremos a seguir é que esse


autor demonstra que os desenvolvimentos da sociologia brasileira
desde os anos 50 não tiveram repercussão nessa elite nacional. Assim,
a crítica à idéia de democracia racial, o reconhecimento da
especificidade do racismo brasileiro - diverso do norte-americano,
mas nem por isso menos nefasto em suas conseqüências - e o
reconhecimento das contribuições das culturas negras ao processo
civilizatório nacional, que são hoje dominantes na academia e mesmo
em amplas parcelas dos setores do Estado que são responsáveis por
políticas sociais, apresentam-se como não–hegemônicos na
sociedade e, por isso, combatidos por uma parcela fundamental da
classe dominante.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Um auxílio à caracterização do lugar social ocupado por Kamel,


necessária, embora não suficiente para a análise de sua
argumentação, é feito pela professora Yvonne Maggie (UFRJ), no
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

prefácio à mencionada obra. Afirma Maggie1 :


Executivos de grandes redes, usualmente, não manifestam suas
posições pessoais sobre temas nacionais. Por isso sua participação no
debate público é tão importante para demonstrar que as empresas da
mídia são instituições formadas por alguns indivíduos que têm opiniões
próprias, uma outra batalha que Ali Kamel vem travando com muitas
patrulhas de plantão (p. 10).2

1 Maggie é antropóloga e estuda as relações raciais, entre outros temas. Destacamos o artigo “Racismo e
anti-racismo: preconceito, discriminação e os jovens das escolas cariocas”, cuja principal conclusão é a
de que os marcadores raciais não são significativos na definição de conflitos e afinidades entre os alunos.
Subsidiariamente, sugere que não cabe ao Estado propor estratégia distinta das definidas pelos alunos
em seu enfrentamento de conflitos e desigualdades, argumentando contra as políticas de reserva de
vagas nas universidades.
2 Os meios de comunicação são dirigidos por pessoas com opinião própria, isso é amplamente reconhe-
cido. Os proprietários de um veículo também têm opinião própria, e em geral o alinhamento com essa
opinião é um fator positivo para que o jornalista ou o executivo galguem posições na hierarquia da
empresa. É importante rememorar as posições da Rede Globo em alguns casos da história recente, de
modo a temperar a visão um pouco (ou sem nenhum adjetivo) idealizada de Maggie. Temos, por exem-
plo, o caso da eleição de Brizola para o governo do Rio de Janeiro em 1982, em que as pesquisas de
opinião divulgadas pela emissora davam a vitória a outro candidato, criando condições para uma fraude
eleitoral que não se realizou, afinal. Podemos citar também: a ocultação do movimento das Diretas Já
nos programas jornalísticos da emissora até quando não foi mais possível, pela evidência dos movimen-
tos de massa; a edição do debate do 2º turno da eleição presidencial de 1989, favorável ao candidato
Collor e desfavorecendo o candidato Lula; a gafe da entrevista do então ministro Rubens Ricupero,
expondo os favores da emissora à propaganda eleitoral de Fernando Henrique Cardoso em 1994, sem
saber que toda a conversa estava sendo transmitida; mais recentemente, pode-se destacar a ação da
emissora para forçar o 2º. turno das eleições presidenciais em

Política, Educação e Cultura


77

A síntese da obra de Kamel pode ser feita em quatro linhas


principais. Inicialmente está a negação do racismo como convicção,
difícil de comprovar ou refutar, pois é um elemento subjetivo e não
necessariamente verbalizado pelas pessoas, mesmo porque é crime
inafiançável definido na Constituição Federal. Com isso, pretende-
se negar a amplitude da discriminação racial, o que é mais difícil por
tratar-se de uma prática social, refletida em dados objetivos. Por
isso, a obra conta com um exercício estatístico na tentativa de
demonstrar que os negros não compõem a maior parte da população
pobre do país, bem como não há diferença de remuneração ou de
acesso a emprego entre negros e não-negros. Outra linha de
raciocínio importante da obra é a negação dos “pardos” como
negros. Em seguida, vem a assertiva de que os problemas de renda
e acesso a bens sociais, entre eles a educação, por parte de “pardos
e negros” resultam da pobreza e do nível educacional, e não dos

Coleção Sociedade, Estado e Educação


efeitos do racismo. Por fim, defende que a saída para esse problema
seja o investimento maciço na educação básica, o que é uma
decorrência lógica do não - reconhecimento da desigualdade como
fator central: se todos são formal e teoricamente iguais, uma política
universalista de distribuição de recursos deve ser capaz de resolver
as desigualdades que não se devem a fatores raciais, mas a fatores
econômicos.
Sem pretensão de sermos exaustivos, comentaremos cada
um desses tópicos.
“Não somos racistas”, mas no Brasil há racismo. Essa é a
conclusão de uma pesquisa desenvolvida pelo Fórum Diálogos Contra
o Racismo 3 , ou seja, a maioria da população entrevistada não se
assume como racista, e a maioria afirma que há racismo no Brasil,
levando-nos ao paradoxo do racismo sem racistas, que motivou o

2006, expondo ilegalmente a foto de uma pilha de dinheiro apreendida pela Polícia Federal, supostamen-
te para o pagamento, pelo Partido dos Trabalhadores, de um dossiê contra o candidato presidencial
Geraldo Alckmim, que contou com a ativa participação política de Kamel, não apenas noticiando mas,
como o cidadão Kane, criando a história. Esse acontecimento gerou um amplo debate sobre o papel da
mídia, da Globo e de Kamel, nas revistas Carta Capital e Caros Amigos na época. Por fim, Kamel envol-
veu-se nos debates sobre a compra, pelo Programa Nacional do Livro Didático do Governo Federal, do
livro “socialista” de Mário Schmidt, da editora Nova Geração. Isso foi feito no bojo de uma crítica ao
governo Lula, como se o mesmo, através disso, estivesse procurando doutrinar estudantes, embora o
livro tenha sido adotado durante o governo FHC e eliminado durante o governo Lula. O executivo
consolida-se, portanto, como uma voz relevante na defesa dos interesses dos grandes conglomerados de
comunicação e suas posturas político-ideológicas de longa data.
3 Disponível em: <http://www.dialogoscontraoracismo.org.br>. Texto apresentado por Paolo Nosella no
IV Colóquio de Pesquisa sobre instituições escolares, no PPGE da UNINOVE, São

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


78

desenvolvimento de diversas campanhas de esclarecimento,


com o mote “Onde você guarda o seu racismo?”.
A negação dos efeitos práticos do racismo começa por um
item que Kamel intitula como “A gênese contemporânea da nação
bicolor”. Manifesta um susto com o que chama de “transformação
de pardos em negros”:
Certo dia, caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles
que não eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho,
moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram brancos ou
eram negros. De repente, nós que éramos orgulhosos da nossa
miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fomos reduzidos
a uma nação de brancos e negros. Pior: uma nação de brancos e negros
onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

o meu.(KAMEL, 2006, p. 18).


Temos nesse trecho um autor chocado, como Adão e Eva
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

diante da “expulsão do paraíso”, dando-se conta de que as estatísticas


oficiais incorporaram toda a discussão da sociologia sob o impacto
da obra de Florestan Fernandes e outros: o Brasil não é uma
democracia racial. Seguindo seu argumento, retoma Gilberto Freyre
e a concepção de que ele não acreditava na democracia racial como
realidade, mas apenas como ideal a ser buscado; portanto, para
Kamel, o racismo existia e existe (p. 20), mas a nação não se queria
racista, além de sempre condenar o racismo.
Há dois problemas nessa argumentação: um é reduzir a nação
a uma generalidade abstrata e homogênea. Não existe “a nação”
como sujeito que faz ou deixa de fazer alguma coisa, existe a nação
como conjunto de pessoas e grupos concretos que disputam projetos
de nação e interesses entre si. A metonímia da nação é um recurso
retórico da luta ideológica, que não é admitida quando adentramos
a esfera do rigor acadêmico. Assim, é de se reconhecer que não é “a
nação” que sempre combateu o racismo, mas uma parcela dela. Se
combateu, tinha opositores, e esses certamente são os que praticam
/ praticavam o racismo, assumidamente ou não. Uma das grandes
conquistas dos movimentos negros e contra o racismo em geral é a
identificação de que o racismo no Brasil, ao contrário de uma
convicção (como em partes dos Estados Unidos ou na África do Sul

Paulo, 29 de agosto de 2007 e no Encontro de Estudos e Pesquisas em História, Trabalho e Educação, do


HISTEDBR, UNICAMP, Campinas, 04 de setembro de 2007. Contou com atenta leitura e sugestões da
Profa. Dra. Ester Buffa.

Política, Educação e Cultura


79

sob o Apartheid), é um conjunto de práticas discriminatórias não


assumidas como tal, que incluem mesmo o paternalismo exercido
sobre pessoas negras. É o que se caracteriza como “racismo cordial”
(TURRA e VENTURI, 1995). É o que evidencia, por exemplo, o Fórum
Diálogos contra o Racismo, mencionado acima.
O primeiro passo para o combate ao racismo é reconhecê-lo,
não só como abstração e coisa dos outros, mas como uma estrutura
psicológica coletiva sobre a qual temos pouco controle, até o
momento que o reconhecemos em nós, independente do grupo racial
a que pertencemos e da forma que ele assume. Ora, no discurso de
Kamel, tanto a nação quanto o racismo são desprovidos de
subjetividade, materialidade e de complexidade.
Kamel busca na Sociologia dos anos 50 o “desvio errado” que
o Brasil teria tomado, pelo qual estaríamos chegando a uma nação
bicolor, através do que caracteriza de equívoco teórico, ou seja, a

Coleção Sociedade, Estado e Educação


classificação de pretos e pardos como negros. Como força de seu
discurso, ignora os índios (cuja população e auto-declaração tem
crescido, e cuja identificação racial ou cultural é inequívoca) e os
orientais. Afirma também que a denúncia do racismo brasileiro
desconsideraria as relações de amizade e as relações conjugais inter-
raciais. É outro equívoco. O fato de que no Brasil se encontram essas
relações é um ponto positivo, mas não invalida a construção teórica
referente ao racismo brasileiro e suas especificidades. Pelo contrário,
combater o racismo não passa por identificar os pontos em que a
sociedade brasileira não pratica a discriminação, mas exatamente
pelo reconhecimento dos pontos em que essa discriminação existe,
e as formas pelas quais essa discriminação é exercida. E nessa tarefa,
o livro de Kamel não só não ajuda em nada, mas atrapalha ao tentar
recuperar elementos do mito do Brasil como democracia racial,
beneficiado pela ausência de um racismo tal qual se praticaria em
outros países, cujo arquétipo é sempre os Estados Unidos da América.
Para o argumento de que não há o que se possa reparar
especificamente nas relações raciais brasileiras, uma das idéias mais
importantes esgrimidas por Kamel é a de que as raças não existem.
Desse argumento biologizante (e, portanto, de certo modo, filiado
ao positivismo) derivam a crítica à junção de pretos e pardos na
categoria única de negros, bem como a crítica à idéia de que seríamos,
sim, um país racista. Também depende desse raciocínio a crítica à
idéia subsidiária de que a pobreza no Brasil é predominantemente
negra, base das políticas afirmativas por parte das Universidades e
do poder público em geral.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


80

A “redescoberta”, por parte do discurso contra as políticas


afirmativas para negros, da ausência de raças na espécie humana
pela Antropologia, num primeiro momento, e depois pela Genética,
são um esforço conservador de restabelecer o desgastado princípio
de igualdade formal que permita a continuidade do tratamento igual
aos que são, na verdade, desiguais, de modo a não colocar o Estado
a promover igualdade. É significativo que esse argumento seja
recuperado no momento atual, em que o antigo argumento da
igualdade formal entre os brasileiros (expresso na máxima liberal de
que todos são iguais perante a lei) tem perdido seu efeito prático de
manter as desigualdades. Sim, porque as decisões judiciais nos litígios
por vagas em universidades que adotaram a política de cotas vêm
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

tendendo a estabelecer a insuficiência do princípio da igualdade


formal (e, portanto, dos direitos formais) diante das evidências de
que as condições das pessoas as desigualam e mesmo as impedem,
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

na prática, de exercer sua igualdade formal. Tem vencido, portanto,


o princípio dos direitos substantivos, práticos, que a justiça deve
favorecer.
A partir dessa realidade, a reação às políticas afirmativas, da
qual Kamel participa, passa a buscar um outro argumento no qual
possa sustentar a existência de igualdade em algum plano, e o
encontra na negação do conceito de raça e na “confusão genética”
de nosso povo. Assim, recentemente, desenvolveram-se análises
genéticas de negros famosos e comprovou-se a presença de origens
genéticas européias predominantes em pessoas que fenotipicamente
jamais seriam reconhecidas como européias. Deixemos de lado o
fato de que se recorre a um expediente cientificista, pelo qual os
detalhes da pesquisa são deixados de lado (como o significado exato
de “origem européia dos genes”) em favor do discurso de autoridade
fascinante do laboratório e do jaleco branco na emissão de
“verdades”. Trata-se aqui de discutir o conceito de raça diante desse
quadro cientificista.
É importante notar que nos Estados Unidos não se fazem
análises genéticas da população latina para verificar o quanto de
europeu ela tem no corpo. Afinal, latino-americanos descendem de
europeus, índios e negros, em diferentes perspectivas. O autor dessas
linhas, por exemplo, que tem origem majoritariamente italiana e
aparência caucasiana, nos EUA é “latino”, e no Brasil é “branco”. Já
o Neguinho da Beija-Flor, que no Brasil tem sua genética exposta
como mais europeu que negro, nos EUA é claramente negro. E no
Brasil também, apesar de sua carta genética. Por que isso ocorre?

Política, Educação e Cultura


81

Da constatação de que raças não existem, não deriva


logicamente a afirmação de que somos todos iguais. Ora, temos
aparências diferentes, fenótipos distintos, e isso não é irrelevante
nas relações sociais. Nenhuma criança pede à outra seu exame de
DNA para isolá-la na escola, na hora do lanche: elas o fazem a partir
da aparência do(a) colega. Ninguém é recusado num emprego pelo
seu código genético, mas pela aparência. Se a raça não existe como
conceito biológico ou antropológico, a raça existe nas relações sociais!
A raça existe na Sociologia, na História, na porta da casa noturna, na
hora do mau policial decidir se atira primeiro e pergunta depois, ou
o contrário. A raça não reúne as pessoas pelo mapa genético, mas
pela experiência social compartilhada, pelos relacionamentos,
pressupostos, preconceitos. Que essas relações sejam temperadas,
no Brasil, pela posse ou não de dinheiro e bens, é uma especificidade
das relações sociais brasileiras, não um fator que negue o peso das

Coleção Sociedade, Estado e Educação


relações raciais.
Caetano Veloso, na letra da canção que é epígrafe do presente
texto, traduz poeticamente o significado desse argumento: no Brasil,
“branco” é todo aquele que não é “quase preto” ou “quase branco”.
Então, porque pretos e pardos podem ser reunidos, estatisticamente,
em uma categoria única, a de negros? Pela similaridade das suas
experiências e relações! Por que ser “quase branco” ou “quase preto”
ou “preto” faz diferença nas relações sociais. Sobretudo, cumpre
questionar esse debate, evidenciando que, historicamente, para sofrer
discriminação racial, “cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho,
moreno, marrom-bombom” (Kamel) são “tratados como pretos /
Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos)
/E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos,
pobres e mulatos /E quase brancos quase pretos de tão pobres são
tratados” (Veloso). Porém, quando se trata de definir políticas
redistributivas, a raça (o que identifica um grupo pelas aparências e
experiências sociais que compartilha) não é aceita como critério.
A revista Veja chegou a aproximar os defensores das cotas
raciais com os nazistas ou os africâners do regime do Apartheid,
misturando alhos com bugalhos e fazendo a clássica inversão que o
Marx da Ideologia Alemã identificaria claramente como ideologia
burguesa. As cotas constituem uma prática redistributiva e visam
beneficiar os “discriminados” (e não prejudica-los ou extermina-los),
e não estão baseadas em bases pseudocientíficas e biologizantes da
questão racial, exatamente o contrário dos nazistas e arquitetos do
Apartheid.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


82

Por fim, os estudos estatísticos de Kamel são malabarismos


para tentar demonstrar que o racismo não é a causa das diferenças
entre negros e brancos no que se refere à renda e acesso a bens em
geral. Nesse exercício, acaba por demonstrar a toda curva e a cada
atalho de seu raciocínio, a situação de inferioridade contra a qual
negros – pretos e pardos – se debatem no Brasil. Essa situação
precisaria ser negada pelo autor, pois ela é a evidência material de
que o racismo não só existe no campo das idéias, mas manifesta-se
na produção material de desigualdades. Por exemplo, quando afirma
que negros ganham menos que brancos em uma determinada
categoria, por serem menos escolarizados, cai na própria armadilha,
ao evidenciar que negros e brancos não têm o mesmo tipo de acesso
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

à educação. Ao tentar afirmar que essas situações não se devem ao


racismo, roça-se – implícita e perigosamente - a idéia de que os
negros seriam menos dotados intelectualmente (afinal, se não há
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

obstáculos racistas, por que os negros têm desempenhos inferiores?).


Ao contrário dessas formulações, outros estudos, como os
patrocinados pela UNESCO (por exemplo HENRIQUES, 2002)
evidenciam que a cor da pele é fator de piora na situação social,
educacional, econômica, enquanto trabalhos como os de Cavalleiro
(2000) e Fazzi (2004) analisam o impacto do preconceito e da
discriminação (sobretudo por parte de professores) no aprendizado
de crianças e jovens negros.

“AÇÃO AFIRMATIVA NÃO FUNCIONA” – O CAMINHO PARA


SUPERAR A DESIGUALDADE É O TRATAMENTO IGUALITÁRIO.

Kamel e outros debatedores contrários às políticas afirmativas


sustentam-se sobretudo no estudo de Thomas Sowell para afirmar
que as cotas não funcionam: beneficiariam apenas os estratos mais
altos dos grupos favorecidos, ou ainda poderiam levar à exacerbação
dos preconceitos dos não–beneficiados. Por isso, essa parte do texto
é dedicada a comentar a obra “Ação afirmativa ao redor do mundo.
Estudo empírico”, de Sowell. O título é revelador do eixo do
argumento do autor, um argumento neopositivista, de que sobra
emoção e faltam dados empíricos ao debate sobre cotas e outras
ações afirmativas. Entretanto, na medida em que ele promove uma
pesquisa ampla e comparativa de diversas experiências em distintos
países, sustenta a posição de que seu objeto mostrou-se
invariavelmente nefasto em todos os casos estudados. O fetiche do
dado bruto como emissor de verdade é algo superado no debate
acadêmico há muito tempo, afinal, a opinião está na base da
Política, Educação e Cultura
83

construção dos instrumentos que extraem os dados do real, e por


isso os dados não logram ter a força bruta que positivistas e
neopositivistas lhe imputam. Antes do dado, temos a discussão de
como esse dado foi produzido, ou seja, a validação dos enunciados
não ocorre mais no autoritarismo frio dos dados, mas na razoabilidade
dos instrumentos, dados e argumentos construídos
intersubjetivamente. É ao rascunho dessa tarefa que nos dedicamos
a seguir.
O historiador José Roberto Pinto de Góes apresenta a obra e
oferece um panorama interessante sobre a utilização das idéias e
argumentos de Sowell em função da realidade brasileira. Em outros
termos, a ele cabe comentar o significado da obra traduzida a ser
lida pelos brasileiros, e espera-se que procure traçar paralelos com
o caso brasileiro, não analisado por Sowell. Afirma Góes que “O
sistema só tem beneficiado uma minoria. Não a minoria, mas uma

Coleção Sociedade, Estado e Educação


minoria preexistente no interior de uma minoria” (in SOWELL, p. x),
e por isso apenas os negros com melhores condições educacionais
terão acesso à universidade. O argumento de Góes evidencia alguns
dados correlatos importantes: a) no Brasil, atualmente, nem a minoria
da minoria vinha tendo acesso à universidade pública, o que garante
o argumento de que o racismo é um fator central na exclusão
educacional de negros e b) as políticas de cotas não se opõem
necessariamente ao mérito acadêmico. Em outros termos, se há uma
parcela afortunada na minoria negra brasileira, porque afinal ela
permanecia praticamente ausente dos bancos universitários?
Beneficiados pelos estudos posteriores (p. ex. BRANDÃO, 2007),
podemos afirmar que a minoria da minoria está acessando a
universidade (ou seja, aqueles negros filhos de pais de classe média
baixa e classe baixa que conseguem sair do mercado de trabalho e
receber algum apoio financeiro da família). Além dessa “elite”, outros
alunos que não poderiam permanecer na universidade sem apoio
financeiro do Estado ou das universidades têm se agarrado às franjas
dos combalidos serviços de apoio aos estudantes e têm-se mantido
na graduação. Outros tantos entre esses, por sua vez, não resistem
e são obrigados à evasão. No fim das contas, as cotas têm a) permitido
à “minoria da minoria” acessar a universidade, que antes não o fazia;
b) permitido a uma parcela da maioria da minoria o mesmo acesso
e permanência e c) falhado em garantir a permanência de outros
cotistas da maioria da minoria. Inegavelmente estamos um passo
adiante do que estávamos antes das cotas no quesito da inclusão. E
não cabe à política afirmativa resolver todos os problemas
educacionais, apenas os problemas de desigualdade.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


84

Góes também entra em discussões reveladoras, como a


oposição a políticas de transferência de renda em geral para os
pobres, a idéia de que cotas fornecerão diplomas, mas não educação
(o que em 2004 era um palpite, largamente desmentido pelos
resultados atuais no desempenho acadêmico dos cotistas) e o orgulho
da mestiçagem versus divisão entre brancos e não-brancos nas
estatísticas. Mas um dado muito mais interessante do conjunto de
elementos que esgrime é a crítica ao “imperialismo cultural” norte-
americano, que estaria presente nos financiamentos da Fundação
Ford para o estudo de questões raciais brasileiras até a importação
das cotas como política inclusiva. Essa crítica convive sem problemas
de consciência com o fato de que o cabedal de informações de Sowell,
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

que Góes está a apresentar, é produção de um pesquisador norte-


americano, financiado e comissionado pela norte-americana Hoover
Institution on War, Revolution and Peace, da Universidade de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Stanford. Não é uma contradição, é o reconhecimento de que, com


as devidas ressalvas críticas e análise de interesses, o conhecimento
não tem validade a partir do país ou instituição, mas pela sua
coerência, consistência e relevância. Nesse rumo, Góes questiona
porque o Brasil imita as cotas dos estadunidenses, e não o profundo
respeito, em sua cultura política, pelos direitos individuais. Embora
a afirmação soe um pouco estranha após o Patriotic Act de George
W. Bush e os fatos nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib,
podemos responder que não imitamos essa característica pelo
mesmo motivo de não imitar a riqueza norte americana. Prosperidade
econômica e cultura política são elementos construídos durante
dezenas de gerações. Cotas são uma política pública de curto prazo.
Além disso, é questionável a idéia de imitação norte-americana,
porque o livro que Góes apresenta tem exatamente o caráter
demonstrativo da amplitude das ações afirmativas no mundo, com
casos que precedem o dos Estados Unidos.
Para passarmos a Sowell propriamente, já que não cabe aqui
esgotar toda a contra-argumentação possível a Góes, basta indicar
que o assunto é apaixonante, e é um exercício formidável à vigilância
constante que o estudioso precisa ter para não passar do debate
fundamentado e razoável para a provocação gratuita em favor de
suas paixões. Góes dedica seus últimos parágrafos à paixão, e num
texto apaixonado critica a paixão de seus opositores nessa discussão.
E para tanto, termina citando o padre Antonio Vieira, sobre os males
da paixão conjugal, o que pode não ser uma referência confiável,
uma vez que ao jesuíta casto e celibatário deveria faltar exatamente

Política, Educação e Cultura


85

aquilo que é tido em Sowell como critério de autoridade e validade


do discurso: o conhecimento empírico. Qualquer leitor de primeira
viagem percebe, entretanto, que sob o véu do empirismo e da
neutralidade está o conceito apriorístico do autor, que procura negar
as ações afirmativas como ações viáveis para diminuir as
desvantagens de grupos sociais. Pode-se perceber isso,por exemplo,
quando o autor afirma que seu estudo dá espaço para opiniões de
ambos os lados, quanto às ações afirmativas, mas as opiniões
favoráveis têm pouco ou nenhum espaço, e aparecem já
decompostas (e por vezes mutiladas) pela análise do autor.
Sowell desenvolve um estudo extenso, e foge às dimensões
deste capítulo discutir cada um dos seus encaminhamentos
metodológicos ou argumentativos, motivo pelo qual discutiremos
apenas alguns deles. Já que o autor, após a análise de 5 casos
nacionais, afirma que tanto as características em cada país quanto

Coleção Sociedade, Estado e Educação


os argumentos pró-ações afirmativas são mais universais do que se
admite, e já que debatedores como Kamel e Góes derivam daí a
idéia de que tais ações são universalmente nefastas, procuraremos
fazer nossas anotações numa perspectiva de comparação / adaptação
com o caso brasileiro.
Uma das primeiras conclusões apresentadas por Sowell é que,
em todos os países estudados, as pessoas que se auto-declaram
pertencentes a uma minoria beneficiada por ações afirmativas
crescem em número rapidamente. Há um tom de condenação a
essa prática, como se a assunção de uma tal identidade tivesse algo
de ilegítimo a priori. Não podemos afirmar nada sobre os casos
apresentados por Sowell, mas podemos traçar algumas linhas sobre
o caso brasileiro.
O processo de construção de identidades é complexo, e essa
característica é acirrada nos tempos em que vivemos, sejam eles
chamados de pós-modernidade, modernidade tardia, ou o que quer
que seja. O fato é que atualmente, em quase todos os espaços, a
identidade não é atribuída irreversivelmente de fora para dentro do
indivíduo, a partir de relações sociais e aparências fechadas, mas
também de dentro para fora, o que nos coloca na condição de uma
estrutura dinâmica e variável de composição de identidades (cf., p.
ex., Hall, 2005). Por outro lado, assumir uma identidade, por exemplo,
ao ser perguntado em uma entrevista do censo populacional, é um
exercício de representação de si mesmo, com bases que podem ser
mais ou menos concretas, dependendo do significado dessa
identidade para a convivência social.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


86

A população indígena brasileira nos censos populacionais e


Pesquisas Nacionais por Amostra Domiciliar (PNAD), vem crescendo
muito acima de sua taxa de fertilidade, o que significa que mais
pessoas estão se identificando como índias. Embora não haja
nenhuma vantagem direta nisso, esforços de diversas instituições
em valorizar as diversas culturas e povos nativos podem estar
tornando “ser índio” um dado não carregado de desvantagens
pessoais, somente. Ou seja, a reaproximação de alguém com suas
origens não depende necessariamente de vantagens materiais
imediatas, mas também de um processo de reconciliação com uma
identidade negada, pelo reencontro mental com suas virtudes. É o
que se chama de orgulho cultural ou étnico das próprias origens. E a
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

lógica das identidades impede que alguém assuma uma origem que
somente lhe traga prejuízos. Mesmo quando ela continue alvo de
discriminações e sofrimentos, entretanto, obter a aprovação e o
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

reconhecimento dentro do próprio grupo oprimido, mas unido, pode


ser compensação suficiente, e não obtê-la pode ser vergonha
suficiente para superar os eventuais benefícios a se obter ocultando
as próprias origens.
A identidade ameríndia, tanto em termos étnicos quanto
culturais, é quase inequívoca na experiência social brasileira. Trata-
se de um assunto privado, até o momento em que essas identidades
passem a significar o acesso facilitado a recursos providos pelo poder
público. Desse ponto em diante, instala-se a pantanosa discussão
sobre a autenticidade da identidade assumida, que não é capaz de
alcançar a objetividade absoluta, já que se instala entre os sujeitos
sociais, posicionados e interessados nos resultados desse debate.
O caso da identidade negra tem outros elementos que
ampliam sua complexidade, a começar pelos recursos que ela em
tese permitirá acessar, com a recente inserção das ações afirmativas
no quadro das relações econômicas e sociais. Mas antes disso, é
necessário considerar um outro complicador, que é o fato de que a
assunção de uma identidade negra se dá no interior de uma
“sociedade dos brancos”, e portanto tem um caráter, na prática, de
subversão social e de construção de espaços alternativos de
convivência e reconhecimento. O conceito está implícito no título
de uma das obras-chave da sociologia brasileira, “O negro no mundo
dos brancos”, de Florestan Fernandes. Para ele, em suma, o Brasil
não resulta da integração das três raças, mas da criação de um mundo
que serve ao branco, para o qual negros e índios foram coagidos a
trabalhar, e do qual não tomam parte senão negando a si próprios.
Um exemplo típico desse princípio pode ser encontrado na idéia

Política, Educação e Cultura


87

de que, quando tem dinheiro, o negro alcança a mesma condição


do branco e não é mais discriminado. Todas as conexões da frase
anterior confirmam a tese do mundo dos brancos. O mesmo se dá
com a idéia que estrutura um outro caso cotidiano, pelo qual alguém
se horroriza por um conhecido ter sido chamado de negro ou de
preto: “Imagine, fulano, você não é preto, é moreno!”. Ser negro é
entendido como desvantagem, e ao estabelecer relações positivas
com um afrodescendente com características físicas que o colocam
na mira da discriminação, uma estratégia de proteção que confirma
a opressão é negar sua negritude.
No caso do Brasil, é nesse quadro que se assume a condição
de negro. É verdade que existe a “negritude de ocasião”, e que por
vezes falham grotescamente os mecanismos criados pelas
universidades para coibir os abusos da autodeclaração no acesso
aos benefícios das políticas afirmativas. Mas, em geral, assumir a

Coleção Sociedade, Estado e Educação


condição de um grupo tradicionalmente oprimido, explorado e
marginalizado significa um enfrentamento de uma ordem social
tradicional, com conseqüências políticas importantes no sentido da
democratização do Brasil. Aqui, não se pode inferir nenhuma
leviandade generalizada ou prejuízo político coletivo para o fato de
que mais pessoas assumam sua negritude. O oportunismo nesse
ato não compensa seu preço.
Para cumprir o objetivo prévio de refutar as ações afirmativas
como um todo, Sowell acaba por defini-las de modo incorretamente
amplo, como todo e qualquer tratamento que privilegie uma parte
da população e persiga outra, com o que se inverte completamente
o princípio em suas vinculações originais, seja em termos de filosofia
política (uma abordagem redistributiva em perspectiva laica e
democrática, de raiz iluminista), seja em termos de história (a luta
por produção de igualdade em sociedades marcadas fortemente por
desigualdades e opressão). É essa manobra que permitirá a Sowell
(e a seus tributários no Brasil, Kamel, o jornalismo da Editora Abril
na revista Veja / jornal Folha de São Paulo) a curiosíssima identificação
das ações afirmativas ao nazismo e ao anti-semitismo em geral. Isso
pode ser verificado quando, ao fornecer um panorama geral da
questão, afirma:
Em alguns países, tem ocorrido a total debandada física do grupo sem
preferências como resultado da política preferencial que reduz suas
perspectivas. O êxodo em resposta à discriminação dos chineses da
Malásia, dos indianos das Ilhas Fiji, dos russos da Ásia Central, dos
judeus de grande parte da Europa pré-guerra e dos huguenotes da

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


88

França do século XVII drenou esses países de capacitações e talentos


muito necessários. Sintetizando, as políticas preferenciais representam
não apenas a transferência de benefícios de um grupo para outro, mas
podem também resultar em perda para o conjunto, quando os dois
grupos reagem com uma contribuição menor para a sociedade
(SOWELL, 2004, p. 15).
Não é difícil perceber que o conceito de ação afirmativa
aplicado por Sowell é excessivamente amplo, e, portanto, falho em
termos de historicidade e critério de seleção. A conseqüência é a
comparação de fenômenos históricos completamente díspares e uma
conclusão que não é sustentável: o anti-semitismo ou a opressão de
uma elite contra os estrangeiros seriam formas de ação afirmativa!
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Outra distorção promovida pela frouxidão do conceito de ação


afirmativa em Sowell está em superdimensionar os conflitos
interétnicos como resultado, principalmente, da aplicação de ações
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afirmativas. Desse modo, argumenta, a reação contra as políticas


pelos que não são beneficiados por elas é desproporcional aos
benefícios concedidos, aumentando os conflitos e o ressentimento
entre os grupos. Em alguns casos, como o do Sri Lanka, fica faltando
pouco para o autor afirmar que cotas ou listas levaram o país à guerra
civil, o que certamente seria desconsiderar que um evento dessa
magnitude, via de regra, não é amarrado a uma única causa, e que
no conjunto de causas que levam a guerras civis, a reação às ações
afirmativas não jogam um papel decisivo.
No caso brasileiro, o argumento de que as políticas afirmativas
incrementarão o racismo vem sendo esgrimido com alguma
freqüência. Talvez seja o caso de pensar se, a partir delas, o salário
dos negros e, sobretudo, o das mulheres negras, passe a ser inferior,
em média, aos dos demais grupos sociais, que o acesso a
determinados empregos passe a ser restringido para negros, que os
negros sejam o grupo definitivamente majoritário entre os que são
pobres, ou os mais atingidos pela violência policial e 3 vezes mais
vitimados por mortes por arma de fogo que os não-negros (SALES,
2006, p. 38). Poderiam ainda as cotas ser origem da ausência prática
de negros nos altos escalões do executivo, legislativo e judiciário,
bem como na comunicação de massa? Poderiam acabar gerando
comportamentos discriminatórios e intimidadores, como anedotas,
apelidos pejorativos, restrições a relacionamentos pessoais? Se todas
essas coisas já não existissem, talvez fosse considerável a hipótese
de que políticas afirmativas viessem a criá-las no Brasil.

Política, Educação e Cultura


89

O que efetivamente temos visto, no campo dos fatos novos


quanto à discriminação racial que remotamente poderiam ser
relacionados às cotas, não chegam a ser fatos novos. Pichações
racistas em locais públicos, atentados intimidatórios isolados,
manifestações racistas em cursos em que isso antes não ocorria,
não porque os alunos não fossem racistas, mas pelo fato de que não
haviam antes sujeitos passíveis de discriminação racial, são exemplos.
Nenhum deles escapou ao controle, e todos podem ser enquadrados
com os instrumentos que a lei brasileira dispõe para coibir
discriminação.
Um outro exemplo das estratégias de Sowell para a defesa de
sua tese pode ser encontrado na informação que dá sobre os avanços
econômicos e sociais da população negra norte-americana antes dos
anos 60, marco da conquista dos direitos civis e das garantias contra
os efeitos do racismo. Para o autor, a melhoria da condição de vida

Coleção Sociedade, Estado e Educação


da população negra norte americana já havia começado antes das
políticas afirmativas, e demonstra isso com estatísticas sobre essa
população. Trata-se, entretanto, de um período de prosperidade e
crescimento contínuo da economia, mas falta o dado sobre o mesmo
avanço econômico e social da população não–negra, para podermos
entender o comparativo. Assim, o argumento fica incompleto: a
melhoria das condições de uma população não é um dado absoluto,
mas relativo ao desenvolvimento de outros grupos. Quando todos
avançam, a taxa de avanço de cada um passa a ser um fator decisivo
para a compreensão do processo e das desigualdades referentes a
ele.
As críticas de Kamel, Sowel, Maggie e Góes às políticas
afirmativas não são uniformes em termos de qualidade e
profundidade. Muitas delas não se aplicam à experiência brasileira
em hipótese alguma, e outras são apenas inválidas para o momento
atual, mas não se pode imaginar que a realidade seja estática e que
algumas dessas críticas não possam vir a valer num futuro próximo.
A operação de interferir nas relações sociais e educacionais –
sobretudo quando se trata de uma instituição relativamente
autônoma, como é o caso da Universidade Pública – é uma operação
legítima, mas ao mesmo tempo arriscada. Por isso, o cuidado e a
atenção constante às novas características e dimensões dos projetos
e sua realização configuram-se hoje como uma tarefa irrecusável,
para a qual a crítica dos opositores é uma contribuição constante.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


90

REFERÊNCIAS

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Política, Educação e Cultura


A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO
COMO UM PRINCÍPIO EDUCATIVO1

Paolo Nosella

ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Se na história dos homens o trabalho sempre foi um fato
educativo, a originalidade de Marx consistiu em erigir este fato
universal à categoria de princípio
princípio. Com isso, Marx introduziu e
consagrou, na ciência pedagógica, a idéia de ser o trabalho o elemento
determinante e fundamental de todo o processo educativo, logo, de
toda instituição escolar:
Eu diria, com Marx, que a base ou o fio vermelho (filo rosso) que costura
o conjunto da história é o trabalho do homem, em colaboração com
os outros homens, para dominar a natureza e humanizá-la, de forma a
produzir e aumentar a própria vida material e espiritual. Esta sempre
foi a raiz da história, isto é, o trabalho entendido como atividade do
homem para produzir a própria vida; é a confrontação com a natureza
que só acontece em associação com os outros homens. Naturalmente,
exatamente aí nascem as contradições maiores da história humana: o
trabalho, de manifestação de si, como Marx dizia, torna-se perdição
do homem a si mesmo... Esperamos podê-lo recuperar esse homem
perdido (MANACORDA, DVD, 2007).
Entretanto, esta idéia, incipiente na época de Marx, teve uma
longa elaboração teórica ao longo da história, sendo, ainda hoje,
objeto de explicitações.
Em 1847/48, n’Os Princípios Básicos do Comunismo e no
Manifesto, Marx e Engels lançam as bases de uma nova concepção

1
Texto apresentado por Paolo Nosella no IV Colóquio de Pesquisa sobre instituições escolares, no PPGE da
UNINOVE, São Paulo, 29 de agosto de 2007 e no Encontro de Estudos e Pesquisas em História, Trabalho
e Educação, do HISTEDBR, UNICAMP, Campinas, 04 de setembro de 2007. Contou com atenta leitura
e sugestões da Profa. Dra. Ester Buffa.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


92

educacional , recomendando “combinar educação e trabalho fabril”.


Esta combinação inaugurou uma discussão pedagógica
revolucionária, que, porém, era muito incipiente naquela época (In:
Manacorda, 1991, p. 16). Com efeito, a recomendação se apresenta,
do ponto de vista pedagógico, por demais genérica. Ou seja, didática
e concretamente, como se poderia “combinar”, para as crianças, os
tempos e as atividades da escola e da fábrica? Por que Marx e Engels
recorreram a essa fórmula? Sabemos a consideração que estes
autores tinham pelas fábricas, ou melhor, pelo industrialismo
nascente. Sabemos também que, na época, crianças que trabalhavam
nas fábricas jamais freqüentavam escolas; de outro lado, Marx e
Engels pensavam que o industrialismo nascente não poderia
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

prescindir das ágeis e pequenas mãos das crianças. Quanto tempo


e quantos estudos se passaram até Vigotsky (anos 1920) afirmar
que a essência das atividades das crianças é representada pela
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

brincadeira. Não, porém, no sentido atribuído a essa palavra pelo


senso comum; pois a “brincadeira” das crianças é um verdadeiro
“trabalho” de estruturação da personalidade. Por isso, para uma
criança, o que importa é o processo da atividade, não seu resultado
final. Por isso, ainda, a atividade lúdica das crianças é historicamente
determinada, não apenas por utilizar brinquedos e brincadeiras
característicos de cada fase da história dos homens, mas
principalmente porque é nesta atividade que o ser humano, durante
seus primeiros anos, produz historicamente sua personalidade. Em
suma, a intuição marxiana encontrará nas pesquisas de Vigotsky sua
explicitação adequada.
Em 1866/67, vinte anos depois, nas Instruções aos delegados
e n’O Capital (livro 1, cap. 13), Marx apresenta a conhecida fórmula
pedagógica de educação politécnica e/ou tecnológica. Isso
representou um notável passo adiante no sentido de esclarecer a
idéia pedagógica marxiana de combinação da educação com o
trabalho fabril (In: Manacorda, 1991, p.25).
Em 1875, n’O Programa de Gotha, Marx insiste na afirmação
de que trabalho e educação possuem uma base social comum,
historicamente determinada e que por isso não poderia haver na
sociedade burguesa escolas iguais para classes desiguais. (In:
Manacorda, 1991, p. 38).
Em 1919/20, na Revolução de Outubro e no Esquerdismo,
doença infantil do comunismo, Lênin reafirmou que não se pode
conceber o ideal de uma sociedade futura sem unir, na educação
das jovens gerações, ensino e trabalho produtivo. Formulou e

Política, Educação e Cultura


93

determinou a opção programática de uma escola politécnica, para


todos, “que faça conhecer, em teoria e na prática, todos os principais
ramos da produção”. Por meio de tal escola, diz Lênin, “se passará à
supressão da divisão do trabalho entre os homens, à educação, ao
ensino e à preparação de homens omnilateralmente aptos, capazes
de tudo fazer” (In: Manacorda, 1991, p. 40-42).
Em 1916, Gramsci firma posição contrária ao ensino
profissionalizante, precoce, pragmatista e tecnicista, defendendo a
idéia de que a relação entre escola e trabalho produtivo, assim como
o marxismo a entende, inscreve-se numa concepção de cultura
“desinteressada”, isto é, de longo alcance, porém científica,
humanista e moderna. (Gramsci, 1980, p. 440-442 e 536-537).
Em 1920, o projeto da escola-do-trabalho de Gramsci
relacionava-se à libertação dos trabalhadores: “a concepção
desenvolvida por nós (Ordine Nuovo) girava em torno de uma idéia,

Coleção Sociedade, Estado e Educação


a idéia de liberdade (concretamente, no nível da produção histórica
atual e dentro da hipótese de uma ação autônoma e revolucionária
da classe operária)” (Gramsci, 1980, p. 616). Ou seja, para ele,
naquele momento, a escola do trabalho tinha como função efetivar
a aspiração de liberdade existente nos ânimos da classe trabalhadora.
Em 1932, no cárcere fascista, Gramsci escreveu seus famosos
Cadernos do Cárcere, sobretudo os nº 12 e nº 22, respectivamente
Os Intelectuais e a Organização da Cultura (1975, p. 1511) e
Americanismo e Fordismo (1975, p. 2137), nos quais o autor expõe
o conceito de trabalho e de instituição escolar unitária. O eixo
curricular principal de sua proposta é o estudo do processo de
produção e reprodução da vida humana (no lugar do ensino do latim
da escola tradicional). A escola unitária objetiva entender o mundo
do trabalho, refletir sobre ele e moldar os hábitos fundamentais de
um cidadão útil à sociedade. Não, porém, à sociedade “de marca
americana”. É a escola que modela os instintos, o corpo, o olhar, a
mente, o coração, a vontade, em consonância com os valores ético-
políticos e os processos científicos do trabalho industrial moderno,
integrando os valores da escola tradicional de cultura desinteressada:
a crise (escolar) terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir
esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa,
que equilibre, de modo justo, o desenvolvimento da capacidade de
trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual (GRAMSCI,
2000, p.33).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


94

Mais adiante, no mesmo Caderno, Gramsci adverte:


o advento da escola unitária significa o início de novas relações entre
trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em
toda a vida social (GRAMSCI, 2000, p. 40).
Ou seja, o ideal da escola unitária não se concretiza numa
sociedade desigual, fragmentada e injusta, mas cresce -junto-- com
-junto
cresce-junto
o desenvolvimento de uma sociedade economicamente unitária.
Dos anos 1930 em diante, os educadores não mais duvidam
que o processo industrial pôs em crise a escola tradicional retórica
de cultura geral e que a nova escola terá que considerar, de alguma
forma, os modernos processos de produção.
Entretanto, como essa unitariedade econômica e social não
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

ocorreu, cada setor social e produtivo continua criando escolas para


formar seus dirigentes e especialistas, de forma desarticulada. Para
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

uns, importa, antes de tudo, a produção, a tecnologia e o lucro e,


para outros, o mais importante é a formação e a libertação de todas
as pessoas. Estes últimos, que desejam uma sociedade mais
igualitária, mais humanista, pensam numa escola na qual a cultura
geral esteja ligada à produção moderna, mas, concretamente, não
sabem como efetivá-la. Os primeiros, mais realistas, pensam em
escolas específicas e diferenciadas para dirigentes e para
trabalhadores. Para estes, a escola do trabalho é a instituição que
qualifica a mão de obra necessária ao desempenho das diferentes
profissões, de forma mecânica e unidirecional. Justificam tal opção
com a teoria do capital humano, discurso pedagógico oficial que
entendeu, nos anos 1960 e 1970, (e que ainda perdura) a
escolarização como investimento na qualificação profissional.
A crítica à teoria do capital humano feita por educadores que
privilegiam o ideal da igualdade social se avolumou nos anos 1970 e
1980 e o trabalho como princípio educativo foi explicado como
sendo uma relação mais complexa e mais abrangente. A principal
bandeira destes críticos foi a defesa da educação politécnica para
todos
todos. No entanto, este ideal é sempre frustrado diante de uma
sociedade fragmentada. Ou seja, enquanto a sociedade for esta que
aí está, teremos, de um lado, escolas técnicas profissionalizantes
que, mesmo quando competentes, não ensinam arte, nem filosofia,
nem política. De outro lado, teremos algumas poucas escolas
humanistas que ensinam arte e filosofia, porém desvinculadas do
mundo do trabalho. Haverá ainda outras, assistencialistas, que quase
nada ensinam.

Política, Educação e Cultura


95

O DEBATE, HOJE

Todos sabemos que o fator responsável pela dualidade escolar,


ou seja, ensino profissional para os trabalhadores e de cultura
desinteressada para os dirigentes, é a sociedade de classes, que
frustrou o sonho iluminista de integrar as artes liberais com as artes
mecânicas. Mas, tal assertiva geral, teoricamente indiscutível,
esconde importantes questões culturais que merecem hoje ser
destacadas.
Uma delas se refere à linha de sombra de desprestígio que
acompanha até mesmo a franca defesa que se faz da escola
profissional. É preciso, em suma, explicar porque o ensino
profissional, prático e disciplinado, por todos elogiado e solicitado, é
marginalizado no sistema de ensino regular; inversamente, porque
o ensino regular de cultura geral é por todos criticado, por ser

Coleção Sociedade, Estado e Educação


indisciplinado, pobre de conteúdos, retórico, inútil, porém é
prestigiado e central no sistema. Considerando insuficiente a tese
da conspiração política, valeria a pena pesquisar para entender melhor
o que está por trás deste paradoxo.
Outra questão: há educadores que não concordam com a
utopia de uma escola unitária, básica e para todos, porque pensam
ser impossível integrar, num mesmo currículo, estudos teóricos
sérios, atividades culturais e artísticas metódicas e rigorosas, com
práticas produtivas e tecnicamente avançadas. O próprio Gramsci
escreveu: “A escola, se é feita seriamente, não deixa tempo para a
oficina e, vice versa, quem trabalha seriamente, somente com um
enorme esforço de vontade, pode instruir-se. Encaixá-las uma na
outra, assim como estão fazendo, é uma das inúmeras aberrações
pedagógicas que impossibilitaram à escola na Itália de ser algo sério.”
(Gramsci, 1980, p. 537)
Todavia, há também educadores que, mesmo sabendo que a
superação da dualidade escolar é concomitante à superação da
sociedade de classes, entendem que manter a tensão entre o ideal
de uma escola unitária e a realidade existente dinamiza as forças
políticas projetualmente em direção a uma escola e a uma sociedade
mais igualitárias. Temem que, se o ideal da escola unitária esmorecer,
a fragmentação escolar perpetuar-se-á representada, no imaginário
social, como se fosse uma realidade metafísica ou a-histórica, e
imutável. Há, finalmente, outros educadores, idealistas, que
acreditam na realização do projeto pedagógico da escola unitária
independentemente da conformação sócio-econômica.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


96

Estas posições teóricas existem entre nós há tempo e pouco


se modificam, pois ideologicamente visam, sobretudo, a contrapor-
se aos outros, isto é, a convencer os oponentes. A isso se acrescente
o fato de que as inúmeras experiências escolares de integração entre
formação profissional e cultura geral, no ensino básico, sempre
fracassaram, inclusive entre nós, no Brasil. Talvez, cometamos o
equívoco de pensar que o conceito e o modelo de unitariedade
escolar
escolar,, propostos pelo marxismo (e não somente por este),
estejam historicamente definidos
definidos.
De nossa parte, acreditamos poder contribuir com este debate
afirmando que o conceito de unitariedade da escola ainda está
sendo construído
construído. Desde a “combinação de educação e trabalho
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

fabril” de Marx e Engels (1847), passando pela “escola politécnica”


de Lênin (1919) e pela “escola unitária de cultura desinteressada do
trabalho” de Gramsci (1932), a elaboração teórica da intuição
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

marxiana continua ainda hoje. Por exemplo, Manacorda (2007)


propõe a “escola plena”, que integre uma formação rigorosa,
indispensável ao homem contemporâneo, com as condições
concretas para que cada um, livremente, se forme naquilo que é do
seu gosto: arte, matemática, aeromodelismo, informática,
astronomia, esporte ou até mesmo técnicas artesanais (Manacorda,
2007, dvd).
Em outras palavras, a fórmula pedagógica de escola unitária,
defendida pelos marxistas, vem se construindo e modificando ao
longo do tempo conforme as mudanças objetivas e culturais que
ocorrem na sociedade, uma vez que as novas tecnologias e as novas
situações culturais transformam os sentidos de muitas coisas. Por
exemplo, o sentido da solidão, fruto de exclusão ou abandono, não
é o mesmo sentido que tem a solidão voluntária, cercada de muitos
instrumentos técnicos como televisão, telefone, internet, que podem
garantir os contatos com outras pessoas.
Da mesma forma, no início da revolução industrial, eram raras
as pessoas integralmente formadas, capazes de se dedicarem a
variadas atividades, de forma satisfatória. Em geral, a formação era
fortemente especializada. Por isto, naquela conformação social, a
fórmula crítica da escola politécnica fazia sentido. Entretanto, hoje,
cada vez mais aparecem pessoas que são muito especializadas, mas
que, ao mesmo tempo, utilizam e usufruem de inúmeras outras
especializações. Hoje, não é preciso ser músico para se ter acesso e
apreciar músicas sofisticadas; nem é preciso ser técnico em
computação para usufruir dos instrumentos da informática e da
comunicação virtual; nem é preciso ser de tradicional família de

Política, Educação e Cultura


97

políticos para dedicar-se a atividades político-sociais em ONGs,


partidos, sindicatos, associações, etc. (exemplo, ver o efeito político
da internet no recente caso da Campanha “Criança Esperança” da
Globo).
Portanto, na sociedade atual, chamada por alguns de pós-
industrial, é construído um novo conceito de formação unitária
que não exclui a especialização de cada um dentro de seus gostos e
inclinações, desde que se possa e saiba usar e usufruir dos resultados
das demais especializações. A questão principal não é o efetivo saber
operar, mas a possibilidade de optar e usufruir “de todos os elevados
prazeres humanos” (MANACORDA, DVD, 2007). Ou seja, a
liberdade de opção é o cimento da nova unitariedade escolar. A
frustração da profissionalização precoce decorre da exclusão, e não
tanto da especialização em si. A possibilidade de optar, naturalmente,
exige a eliminação da desigualdade social, pois é esta que reduz as

Coleção Sociedade, Estado e Educação


opções para muitos e as multiplica para poucos. Nesse sentido, a
luta política para a redução e eliminação das desigualdades sociais
continua e até mesmo se acentua.
Deste ponto de vista, a fórmula escolar de Manacorda parece
hoje mais apropriada para traduzir o novo conceito de instituição
escolar unitária, pois harmoniza de forma original o tempo de
formação rigorosa para todos com o tempo de opção individual:
É preciso que a escola, ao invés de ser um lugar aberto cinco horas
diárias, durante nove meses por ano e pelo resto do tempo permanecer
fechada e vazia, seja o espaço dos adolescentes, onde estes recebam da
sociedade adulta tudo o que é possível receber e, ao mesmo tempo,
sejam estimulados em suas qualidades pessoais e capacitados a gozar
todos os elevados prazeres humanos (MANACORDA, DVD, 2007).

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Política, Educação e Cultura


INCLUSÃO SOCIAL NO CONTEXTO DA
REORGANIZAÇÃO CAPITALISTA DO FINAL DO SÉCULO
XX:
PESSOA COM DEFICIÊNCIA, EDUCAÇÃO INCLUSIVA E
RESERVA DE POSTOS DE TRABALHO
Alfredo Roberto de Carvalho1

A partir da segunda metade do século XX, num contexto

Coleção Sociedade, Estado e Educação


marcado pelo fortalecimento das lutas contra as práticas
preconceituosas e discriminatórias, como as de gênero e de raça, o
movimento organizado de pessoas com deficiência começa a se
colocar no cenário político em diversos países do mundo,
reivindicando o fim dos procedimentos segregativos e a adoção de
medidas que favorecessem a sua inclusão nos diferentes espaços e
atividades sociais, em especial, na escola comum e no trabalho
formal. No final do século, estas reivindicações e outras passaram a
fazer parte de um conjunto de documentos resultantes de
conferências internacionais que vão propor o paradigma inclusão
social. Este paradigma passa a ser proposto num momento em que
o capitalismo, comandado pelo capital financeiro, vem implantando
um novo modelo de acumulação, caracterizado pela privatização,
desregulamentação, flexibilização, globalização e a ideologia do
estado mínimo e do livre mercado. Tudo isto e muito mais, buscando
minimizar os custos e maximizar os lucros dos capitalistas. Neste
atual processo, o que mais tem ocorrido é o aumento das parcelas
excluídas da sociedade, principalmente em relação ao mercado de
trabalho, do qual as pessoas com deficiência, com raras exceções,
jamais tiveram acesso. Diante desta situação, parece não fazer sentido
se falar no paradigma inclusão social, principalmente quando se refere
a este segmento historicamente excluído.
Este trabalho busca levantar e refletir algumas questões que
podem contribuir no entendimento a respeito da inclusão social de
pessoas com deficiência no contexto da reorganização da acumulação
capitalista, verificado nas últimas décadas do século XX, em especial
a questão da inclusão escolar e a reserva de postos de trabalho. Para

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


102

tanto, busca-se: levantar e analisar os modelos de tratamento e


compreensão desenvolvidos pela humanidade em relação às pessoas
com deficiência ao longo da história; apontar os pressupostos do
modelo inclusivo e o contexto econômico, político e social em que o
mesmo está sendo defendido e verificar até que ponto as propostas
de educação inclusiva e de trabalho formal, para este segmento social,
estão articuladas com a reestruturação do processo de produção
capitalista do final do século XX; e, finalmente, algumas considerações
a respeito da possibilidade de se falar e lutar por inclusão social num
contexto marcado pelo aprofundamento da exclusão.
Na abordagem deste tema, o ponto de partida é a existência
dos homens como seres ativos, produzindo sua existência a partir
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

de determinadas condições presentes na sua vida real, pois é esta


produção que determina o que eles são. “O que eles são coincide,
portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende


das condições materiais de sua produção” (MARX e ENGELS, 1984,
p. 27-28). Procurando conceituar a deficiência a partir da vida real
dos homens, parece ser correto defini-la como sendo “toda perda
ou anormalidade de uma estrutura ou função (...) que gere
incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão
considerado normal para o ser humano” (BRASIL, 1999, art. 3º, inc.
I). Sendo assim, a deficiência não é simplesmente sinônimo de um
defeito físico, sensorial ou mental, mas está relacionada à capacidade
do indivíduo de dar conta das tarefas que lhe são colocadas
historicamente, ou seja, ela se define a partir do modo pelos quais
os homens estão produzindo sua existência.
No que se refere aos modelos de compreensão e tratamento
dispensados às pessoas com deficiência ao longo da história, a
maioria dos poucos escritos que de alguma forma tratam ou fazem
referência a este tema indica que estas, com raras exceções, sempre
foram marginalizadas ou, até mesmo, excluídas do convívio social.
Este trabalho parte do pressuposto de que tais procedimentos são
determinados por razões objetivas presentes em diferentes contextos
sociais, como é o caso das sociedades primitivas e dos modos de
produção escravista, feudal e capitalista. Ao se trabalhar com estes
quatro períodos históricos, não se nega a existência de outros, como
é o caso do modo de produção asiático, que ainda necessitam ser
melhor conhecidos em relação a esta temática.

Política, Educação e Cultura


103

As sociedades primitivas se constituíram no período histórico


mais extenso vivenciado pela humanidade. Na maior parte do
mesmo, a humanidade se constituía de pequenos agrupamentos
nômades, os quais sobreviviam perambulando pela terra, enfrentando
um mundo selvagem, em busca da caça, da pesca e de tudo aquilo
que a natureza podia lhes oferecer. “O regime comunitário primitivo
caracterizava-se por um nível extraordinariamente baixo de
desenvolvimento das forças produtivas ao qual correspondia uma
produtividade do trabalho muito baixa. Os homens daquela época
produziam tão pouco que quase logo consumiam todo o produto”
(ERMAKOVA e RÁTNIKOV,1986, p. 35).
Devido às dificuldades existentes nesse mundo selvagem, para
que cada pessoa pudesse sobreviver, era indispensável que cada um
estivesse em condições de produzir os seus meios de vida e auxiliar
os demais membros do grupo a fazer o mesmo e, ainda, ser capaz

Coleção Sociedade, Estado e Educação


de se livrar dos perigos impostos pela natureza. Mais tarde, com o
desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, os homens passam
a se fixar em determinadas regiões, iniciando sua fase de
sedentarização e estabelecendo condições mais favoráveis para a
sobrevivência do agrupamento. Segundo SILVA (1986), ao se analisar
estudos de renomados antropólogos e historiadores da medicina,
pode-se constatar dois tipos de procedimentos em relação às pessoas
com deficiência nas sociedades primitivas “uma atitude de aceitação,
tolerância, apoio e assimilação e uma outra, de eliminação,
menosprezo ou destruição” (SILVA, 1986, p. 39). A explicação para
a existência destas duas formas de tratamento em relação às pessoas
com deficiência pode ser encontrada nas características e no processo
de desenvolvimento das sociedades primitivas.
O primeiro fato a ser considerado é o de que, na maior parte
deste período histórico, os homens viviam no nomadismo, o que
colocava a cada membro do agrupamento a necessidade de ser capaz
de garantir a sua sobrevivência num mundo selvagem. Diante desta
realidade, não havia condições objetivas que permitissem a
sobrevivência de pessoas com deficiência, já que elas não conseguiam
acompanhar o ritmo dos demais membros do grupo nos constantes
deslocamentos em busca de novos campos de caça e coletas de
frutos, bem como nos enfrentamentos com animais ferozes e com
outros agrupamentos de seres humanos. Sendo assim, estes povos
primitivos, por uma questão de sobrevivência, não tinham outra
alternativa a não ser livrarem-se daqueles que estavam sem condições
de acompanhá-los em seu ritmo de vida promovendo, desta forma,
uma “seleção natural”.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


104

O segundo fato a ser considerado refere-se ao processo de


sedentarização dos homens. Além da descoberta da agricultura e da
domesticação de alguns animais, também houve um maior
incremento na produção de instrumentos artesanais, os quais
potencializaram as ações humanas, permitindo aos povos primitivos
melhorarem as suas condições de vida. Também é importante
considerar que tais povos produziam seus meios de vida sobre um
regime comunitário, “comunismo primitivo”, no qual se podia adotar
o princípio de que cada um contribuiria com o grupo conforme as
suas possibilidades e receberia para si aquilo que o mesmo pode lhe
dar. Nessa sociedade, é perfeitamente possível se adotar atitudes de
aceitação, tolerância, apoio e assimilação em relação às pessoas com
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

deficiência, já que estas poderiam desenvolver atividades que


estavam em conformidade com a sua forma de ser e, assim,
contribuírem na manutenção do grupo.
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Apesar destas condições, alguns povos primitivos


sedentarizados continuaram a adotar a prática do extermínio,
menosprezo e destruição. Esse procedimento pode ser explicado
como o resultado da herança de antigos costumes que, como já
exposto, decorriam de razões objetivas que a natureza impunha aos
agrupamentos de nômades e que, mesmo num ambiente já favorável
à sobrevivência de tais pessoas, continuaram a ser praticados. Este
procedimento, que não mais encontrava razão de ser na própria
realidade, fundamentou-se em explicações místicas a respeito da
existência de pessoas com deficiência, as quais perpassam toda
história e ainda hoje figuram no imaginário social.
Na quase totalidade da existência da sociedade primitiva,
quando diferentes agrupamentos humanos entravam em conflitos,
a tribo vencedora não podia fazer prisioneiros aqueles que pertenciam
ao grupo dos vencidos, já que ela não possuía meios de alimentá-
los, assim as alternativas eram assassinar todos os inimigos ou aceitá-
los como novos membros da comunidade. Porém, o processo de
sedentarização e a elevação do nível de desenvolvimento das forças
produtivas “(...) tornou a força de trabalho do homem capaz de
produzir mais do que o necessário para a sua manutenção” (ENGELS,
1984, p. 181). Com esta possibilidade, criaram-se condições para
que os prisioneiros fossem transformados em escravos. Desta forma,
“(...) passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o
que se logrou através da guerra” (ENGELS, 1984, p. 181). O
desenvolvimento deste processo levou a constituição do modo de

Política, Educação e Cultura


105

produção escravista e as principais formações sociais dessa época


histórica foram a grega e a romana. Em ambas sociedades, o trabalho
era concebido enquanto uma atividade degradante para os homens
e só deveria ser desenvolvida por aqueles considerados como seres
inferiores. Estes, com exceção de uma pequena minoria de
trabalhadores livres, eram prisioneiros de guerras que, para terem
direito a uma sobrevida, eram obrigados a trabalhar como escravos.
Devido à intensidade da exploração, a vida destes trabalhadores era
rapidamente consumida. “Freqüentemente, a exploração impiedosa
do escravo durante 7-8 anos causava a sua morte” (ERMAKOVA e
RÁTNIKOV, 1986, p. 43).
Este fato colocava para a classe dominante a necessidade de
sempre renovar a força de trabalho, o que era feito, principalmente,
através da guerra, com a qual se podia, além de conquistar territórios
e promover saques, obter novos escravos. Para tanto, se recorria a
um exército formado por indivíduos da própria classe dominante, a

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qual necessitava iniciar a educação de seus filhos nas artes guerreiras
ainda na infância. Um exemplo típico deste fato é o que acontecia
em Esparta: “aos sete anos, o Estado apoderava-se do jovem
espartano e não mais abria mão dele. De fato, até aos quarenta e
cinco anos pertencia ao exército ativo, e até aos sessenta, à reserva”
(PONCE, 1992, p. 40).
Um dos procedimentos mais conhecidos desta época em
relação às pessoas com deficiência foi o adotado em Esparta. Nesta
cidade-estado, toda a criança que nascia e que era filho da nobreza
tinha que ser, em conformidade com as leis vigentes, examinada por
uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida
autoridade, que se reunia para tomar conhecimento do novo cidadão.
Conforme estas leis,
se fosse um bebê normal e forte (se o achavam belo, bem formado de
membros e robusto) ele era devolvido ao pai que passava a ter a
incumbência de criá-lo. Depois de certa idade - entre os 6 e 7 anos - o
Estado tomava a si a responsabilidade e continuava sua educação
(PLUTARCO apud SILVA, 1986, p. 121).
O que a comissão buscava era evitar que as crianças, que se
encontravam fora da normalidade exigida, pudessem sobreviver. Para
tanto:
se lhes parecia feia, disforme e franzina (...), esses mesmos anciãos,
em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam,
ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir e a levavam a um
local chamado “Àpothetai”, que significa “depósitos”. Tratava-se de

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


106

um abismo situado na cadeia de montanhas Taygetos, perto de Esparta,


onde a criança era lançada e encontraria sua morte (SILVA, 1986, p.
122).
A exigência de perfeição física, sensorial ou mental também
estava colocada para as pessoas com deficiência oriundas das classes
exploradas, pois do contrário elas não serviriam nem mesmo para
serem submetidas à escravidão. Plutarco, ao se referir à forma pelas
quais um escravagista tratava os seus escravos, afirma que “Catão
não só martirizava os seus escravos, como os instruía em certas
artes, para vendê-los mais caro posteriormente; não só abandonava,
como o ‘ferro velho’, os escravos inservíveis, como cobrava uma
taxa dos que queriam se divertir com as suas escravas” (PLUTARCO
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

apud PONCE, 1992, p. 65).


Embora não esteja explicitado que os “escravos inservíveis”
fossem aqueles que possuíssem alguma deficiência, certamente
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estavam enquadrados nesta categoria os que, ao longo de sua vida,


viessem a adquirir graves problemas físicos, sensoriais e mentais
que lhe impedisse a obtenção de uma produção acima daquilo que
necessitavam consumir para continuar vivos, ou seja, um excedente
para contribuir no financiamento da superestrutura que se fazia
necessária nas relações de produção escravista.
Apesar das dificuldades para uma pessoa com deficiência ser
escravizada, algumas eram submetidas a esta condição, vivendo nas
tabernas, nos bordéis, nos circos romanos, etc, “para serviços simples
e às vezes humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos
séculos na História da Humanidade” (SILVA, 1986, p. 130). Quando
estas, em razão de sua anormalidade, começaram a ser utilizadas
economicamente como pedintes ou enquanto seres bizarros em
espetáculos, as mesmas passaram a ter algum valor mercantil. “(...)
existia em Roma um mercado especial para compra e venda de
homens sem pernas ou braços, de três olhos, gigantes, anões,
hermafroditas” (DURANT apud SILVA, 1986, p. 130).
No final deste período histórico, para abrigar alguns dos que
conseguiam escapar do extermínio ou sobreviver ao abandono,
passaram a ser organizadas algumas instituições: “lares para
deficientes (“paramonaria”); lares para pessoas cegas
(“tuflokoméia”); instituições para pessoas com doenças incuráveis
(“arginoréia”); e também organizações para pessoas muito pobres
e para mendigos (“ptochéia”).” (SILVA, 1976, p. 126-127).
Este procedimento, denominado como modelo da
institucionalização, e que foi aprofundado no modo de produção

Política, Educação e Cultura


107

feudal e se tornou predominante na quase totalidade do capitalismo,


esteve voltado, principalmente, para aquelas pessoas com deficiência
pertencentes às classes exploradas da sociedade. No feudalismo, os
asilos, hospitais e hospícios geralmente eram mantidos pela Igreja
Católica, principal organização econômica e política deste período.
Apesar da existência dessas instituições, é importante salientar que,
no feudalismo, a maioria das pessoas com deficiência não eram
internadas. Isso ocorria porque a sociedade não dispunha de recursos
suficientes para adotar tal procedimento, o que levava boa parte
dessas pessoas a sobreviver da mendicância. Existiam também
aqueles que eram aproveitados nas atividades laborais desenvolvidas
no interior dos feudos, o que se tornava possível devido a maior
parte da produção ocorrer no âmbito familiar, em que cada indivíduo
poderia trabalhar segundo as suas condições físicas, sensoriais ou
mentais.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Até o final do feudalismo, a pessoa com deficiência era
compreendida somente a partir de uma abordagem mística, a qual
surgiu nos seio dos povos primitivos e foi incorporada pelos principais
pensamentos religiosos e ainda hoje se faz presente no senso comum.
No que se refere ao cristianismo, que é o pensamento teológico
predominante no ocidente, existem passagens bíblicas em que
aparecem pessoas com deficiência sendo “curadas” por Jesus. Estas
passagens encontram-se especialmente nas palavras dos
evangelistas, em que, “segundo seus relatos, Jesus fez mais de 40
milagres notórios. Deles todos, pelo menos 21 são relacionados a
pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais (...)” (SILVA,
1986, p. 88). Nestas passagens, as causas das deficiências são
atribuídas à possessão de maus espíritos, castigos por pecados seus
ou de ancestrais e ainda como instrumentos para realização de obras
divinas.
O modelo místico começa a ser contestado a partir de alguns
acontecimentos que passaram a ocorrer ainda no final do feudalismo.
As descobertas geográficas do final da primeira metade do segundo
milênio contribuíram para que, nos séculos XVI e XVII, ocorresse
um gradativo aumento do mercado por produtos manufaturados,
ampliando a acumulação de capitais e o desenvolvimento da ciência
e da tecnologia, potencializando as condições do homem na luta
para dominar a natureza. Estes acontecimentos foram consolidando
um novo modo de produção assentado na propriedade privada, na
compra e venda de mercadorias, no trabalho assalariado e na extração
da mais-valia.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


108

O progresso científico, impulsionador e impulsionado pelo


desenvolvimento econômico, político, social e cultural, verificado
na sociedade moderna, começou a refletir na forma de se ver,
compreender e tratar as pessoas com deficiência. A primeira forma
de compreensão destas pessoas, derivada da ciência moderna ainda
fortemente presente na consciência social, é definida por VIGOTSKI
(1997) como “Biológica Ingênua” (p. 33). Segundo este mesmo autor,
esta teoria afirma que “as relações entre os órgãos dos sentidos se
equiparam diretamente com as relações entre os órgãos pares; o
tato e a audição compensam diretamente a visão que há declinado,
como o rim são, compensa o doente; o menos orgânico se cobre
mecanicamente do mais orgânico (...)” (VIGOTSKI, 1997, p. 33-34).
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Esta teoria tem servido para fundamentar, dentre outros


entendimentos, a idéia de que o tato e o ouvido dos cegos substituem
a sua visão, e que a audição dos surdos é substituída pela sua grande
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capacidade de ver.
A prática e a ciência faz tempo desmascararam a falta de fundamento
desta teoria. Uma investigação baseada em fatos tem demonstrado que
na criança cega não há o aumento automático do tato ou da audição
devido à visão que lhe falta (...). Pelo contrário, a visão por si mesma
não se substitui, senão que as dificuldades que surgem devido à sua
falta se solucionam mediante o desenvolvimento da superestrutura
psíquica (VIGOTSKI, 1997, p. 34).
A despeito desses equívocos, a teoria biológica ingênua foi
importante na medida em que deu as primeiras contribuições para
romper com o fatalismo da abordagem mística a respeito das
possibilidades de existência das pessoas com deficiência e começou
a colocar a questão no âmbito da ciência. Com este novo enfoque,
“no lugar da mística foi posta a ciência, no lugar do preconceito, a
experiência e o estudo” (VIGOTSKI, 1997, p. 76).
Apesar desse avanço, que começa a ocorrer já nos dois
primeiros séculos da sociedade moderna (XVI e XVII), o que se
verificou, principalmente com aqueles que pertenciam aos setores
explorados da população, foi o aprofundamento do modelo de
institucionalização das pessoas com deficiência e outros divergentes.
“O que ocorreu, na verdade, foi o isolamento daqueles que
interferiam e atrapalhavam o desenvolvimento da nova forma de
organização social, baseada na homogeneização e na racionalização”
(SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63). Segundo este mesmo autor:

Política, Educação e Cultura


109

O que se pode depreender destes dois séculos é o início do movimento


contraditório de participação-exclusão que caracteriza todo o
desenvolvimento da sociedade capitalista, que se baseia na
homogeneização para a produtividade e que perpassará toda a história
da educação especial (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63).
A educação sistematizada das pessoas com deficiência, que
passou a ocorrer nesse período, se restringiu basicamente aos filhos
da nobreza e da nascente burguesia enriquecida, os quais puderam
usufruir de sua condição de membros das elites. Os demais estavam
largados à própria sorte.
Essa massa não tem nome, não tem história, não tem pátria. Eram,
juntamente com muitos outros que não quiseram ou não puderam se
submeter à nova ordem, a escória da qual nada mais resta senão as
estatísticas dos asilos e a menção de que fazia micagens na feira ou que
tocava desafinadamente uma rabeca pelas ruas em troca de alguns

Coleção Sociedade, Estado e Educação


níqueis (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63).
Na segunda metade do século XVIII, foram organizadas em
Paris, na França, as primeiras instituições do mundo voltadas para a
educação de surdos (1760) e cegos (1784). O surgimento das
primeiras instituições especializadas na educação de pessoas com
deficiência quase sempre é apresentado pelos historiadores como
sendo o resultado do esforço da moderna sociedade em oferecer
educação escolar a este segmento.
Se o surgimento das primeiras instituições escolares especializadas
correspondeu ao ideal liberal de extensão das oportunidades
educacionais para todos, (...) respondeu também ao processo de
exclusão do meio social daqueles que podiam interferir na ordem
necessária ao desenvolvimento da nova forma de organização social
(SILVEIRA BUENO, 1993, p. 64).
Isso passou a ocorrer na medida em que essas instituições
foram rapidamente perdendo o seu caráter educativo e se
transformando em espaço de isolamento e exploração das pessoas
com deficiência pertencentes às classes exploradas, pois estas eram
obrigadas à internação e ao “(...) trabalho forçado, manual e tedioso,
parcamente remunerado, quando não em troca de um lugar no
maravilhoso espaço do asilo-escola-oficina” (SILVEIRA BUENO, 1993,
p. 69).
Com o tempo, este modelo se espalhou para praticamente
todos os países do mundo, geralmente mantido por ações
filantrópicas e tendo como função principal recolher e isolar do

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


110

convívio social todas as pessoas que interferiam e atrapalhavam o


desenvolvimento da nova forma de organização social, baseada na
homogeneização e na racionalização, orientada por uma lógica
voltada para a produção e o lucro.
Este processo, combinado com a popularização da educação
formal, provocou uma grande expansão da educação especial ao
longo do século XX.
Porém, é preciso considerar que isso ocorreu com a incorporação de
alunos que, no seu surgimento, não faziam parte de suas preocupações,
isto é: daqueles que apresentavam distúrbios de linguagem, distúrbios
emocionais e os considerados com problemas de aprendizagem, os
quais passaram a ser a imensa maioria dos freqüentadores do ensino
especializado (CARVALHO, ROCHA e SILVA, 2006, p. 47).
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Sendo assim, pode-se afirmar que


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a ampliação da educação especial espelhou muito mais o seu caráter de


avalizadora da escola regular que, por trás da igualdade de direitos,
oculta a função fundamental que tem exercido nas sociedades
capitalistas modernas: o de instrumento de legitimação da seletividade
social (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 80).
Por volta da metade do século XX, num contexto marcado,
principalmente nos países do capitalismo central, pela política do
estado do bem estar social e pela defesa dos direitos das minorias
sociais, o paradigma da Institucionalização começou a ser
criticamente examinado e denunciado como sendo uma prática que
violava os direitos do homem. Em oposição à institucionalização,
surgiu o modelo da integração, o qual encontra-se alicerçado na oferta
de serviços, com a finalidade de “normalizar” as pessoas com
deficiência. Para tanto, há a “(...) necessidade de modificar a pessoa
com necessidades educacionais especiais, de forma que esta pudesse
vir a se assemelhar, o mais possível, aos demais cidadãos, para então
poder ser inserida, integrada, ao convívio em sociedade” (BRASIL,
2000, p. 16).
Devido ao seu caráter também segregativo, este paradigma
logo passou a ser criticado: “diferenças, na realidade, não se
“apagam”, mas sim, são administradas na convivência social”
(BRASIL, 2000, p. 17). Estas críticas, que se espraiaram pelos mais
diferentes espaços sociais, tiveram origem em dois segmentos: o
primeiro foi o das próprias pessoas com deficiência, que a partir do
crescimento da sua organização enquanto movimento social,
verificado, principalmente, nas últimas três décadas do século XX,
permitiu que algumas fossem tomando consciência e lutando contra

Política, Educação e Cultura


111

os determinantes que as têm colocado na condição de excluídas


socialmente; o segundo foi o acadêmico, em que alguns estudiosos,
a partir da formulação e apropriação de novos entendimentos a
respeito do processo de aprendizagem e desenvolvimento das
pessoas com deficiência, se colocaram ao lado destas na luta contra
os procedimentos excludentes.
Estas críticas contribuíram para formular o paradigma inclusão
social, afirmando que não é a pessoa que deve se ajustar ao meio,
mas é a sociedade que deve garantir os suportes necessários para
que todos possam usufruir da vida em comunidade. Nesta proposta,
não se nega que as pessoas com deficiência necessitam de serviços
especializados, mas estas não são “(...) as únicas providências
necessárias caso a sociedade deseje manter com essa parcela de
seus constituintes uma relação de respeito, de honestidade e de
justiça” (BRASIL, 2000, p. 18).

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Na última década do século XX, dois documentos
internacionais vêm propor, dentre outras mudanças, o
estabelecimento de um novo paradigma em relação ao atendimento
educacional das pessoas com deficiência. O primeiro é a Declaração
sobre Educação para Todos, (Jomtien, Tailândia, 1990).
Um dos itens desta Declaração propõe que as necessidades básicas de
aprendizagem das pessoas portadoras de deficiências requerem atenção
especial. É preciso tomar medidas que garantam a igualdade de acesso
à educação aos portadores de todo e qualquer tipo de deficiência, como
parte integrante do sistema educativo (ROSA e ANDRÉ, 2006, p. 76-
77).
O segundo documento, apontando na mesma direção,
denominado Declaração de Salamanca (Espanha, 1994), propõe que
todos os governos devem dar “(...) a mais alta prioridade política e
orçamentária à melhoria de seus sistemas educativos, para que
possam abranger todas as crianças, independentemente de suas
diferenças ou dificuldades individuais” (p. 10).
Paradoxalmente, a proposta inclusiva aparece num contexto
em que o estado passa a encolher ou a extinguir suas políticas sociais.
Este contexto começa a ser formado a partir dos anos setenta, com
a necessidade do capitalismo em estabelecer um novo modelo de
desenvolvimento assentado nos pressupostos ultraliberais ou
neoliberais, com profundas conseqüências para as mais diversas
áreas dos fazeres humanos. Tratou-se da saída burguesa para a grande
recessão econômica internacional de 1973, decorrente da diminuição
nas taxas de lucros e agravadas com o “choque do petróleo”, a qual

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


112

levou os detentores do capital financeiro a adotar um novo padrão


de acumulação, denominado de “acumulação flexível”, o qual:
(...) se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados
de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras
de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo,
taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e
organizacional (HARVEY, 1992, p. 140).
A acumulação flexível recoloca alguns problemas que o
capitalismo havia contido, principalmente nos países centrais, na
chamada “era de ouro”.
Na década de 1980 e início da de 1990, o mundo capitalista viu-se
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novamente às voltas com problemas da época do entreguerras que a


Era de Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa, depressões
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cíclicas severas, contraposição cada vez mais espetacular de mendigos


sem teto a luxo abundante (...) (HOBSBAWM, 1995, p. 19).
A entrada em cena do modelo de acumulação flexível
encontra-se articulado com o processo de mundialização financeira,
a qual:
(...) designa as estreitas interligações entre os sistemas monetários e os
mercados financeiros nacionais, resultantes da liberalização e
desregulamentação adotadas inicialmente pelos Estados Unidos e pelo
Reino Unido, entre 1979 e 1987, e nos anos seguintes pelos demais
países industrializados (CHESNAIS, 1998 p. 12).
O resultado deste processo foi e tem sido o aumento da
exploração dos trabalhadores em todo o mundo, com redução salarial
e dos direitos trabalhistas, enfraquecimento do movimento sindical
e a ampliação do exército de mão-de-obra de reserva. O novo
processo de acumulação exige um conjunto de reformas que favoreça
a ampliação dos mercados, permitindo que o processo de
acumulação capitalista possa recobrar o fôlego perdido. Estas
reformas passam a ser introduzidas nos países periféricos através
de um receituário coordenado por organismos internacionais como,
o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), Banco Internacional para a Reconstrução e
Desenvolvimento - Banco Mundial (BIRD) e a Organização Mundial
do Comércio (OMC). A partir do início dos anos noventa, as
recomendações destes organismos internacionais atingem o Brasil
através de uma política fundada na “... (i) abertura comercial; (ii)
âncora cambial no Dólar; (iii) privatização de empresas e atividades
exercidas pelo Estado; (iv) austeridade fiscal; (v) desregulamentação

Política, Educação e Cultura


113

(flexibilidade) das relações econômicas e de trabalho e (vi) focalização


das políticas públicas.” (DEDECCA apud DEITOS, 2005, p. 70).
Articulado com o receituário dos organismos internacionais,
o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com a
justificativa de racionalizar e reduzir os gastos públicos, além de
acelerar o processo de privatização, também propôs:
a) a renovação e/ou eliminação em grande escala de muitas instituições
e programas existentes; b) a modificação e a desregulamentação das
relações entre os setores público e privado; e c) a redefinição dos
beneficiários dos programas sociais para atender mais eficientemente
as necessidades dos que são realmente pobres (VIANNA, 1998, p. 172).
A prioridade no desenvolvimento de políticas focalizadas, em
detrimento das universais, passou a se dar não com o rompimento
do tradicional modelo de “atendimento” aos segmentos mais
“vulneráveis socialmente”, o qual ocorria através da ação de

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entidades assistencialistas e filantrópicas e, sim, tratou-se da plena
participação do estado na mobilização da sociedade civil para um
“neofilantropismo”, com a implantação do programa Comunidade
Solidária. “O eixo da estratégia do governo para reduzir as
desigualdades e atenuar a pobreza é assegurar que os programas
sociais atendam genuína e eficientemente as necessidades dos pobres
e dos desempregados mediante uma colaboração inovadora com a
sociedade civil” (VIANNA, 1998, p.73).
O que se pode depreender deste contexto é que a luta das
pessoas com deficiência contra as históricas práticas excludentes
vem se dando num momento marcado por reformas neoliberais ou
ultraliberais, em que as novas políticas sociais estão articuladas com
o estabelecimento de um novo padrão de acumulação capitalista,
centrado principalmente na privatização, na desregulamentação, na
flexibilização, na globalização, na ideologia do estado mínimo, do
livre mercado e da equidade social com a denominada equiparação
de oportunidades por meio do desenvolvimento de políticas
focalizadas.
As principais reivindicações das pessoas com deficiência
colocadas neste contexto, no paradigma inclusão social, dizem
respeito ao direito de freqüentarem as escolas comuns e de terem
acesso ao trabalho formal. A primeira tem se configurado na busca
da superação das instituições educacionais segregativas e a adoção
de uma educação inclusiva, e a segunda na luta pela reserva de
postos de trabalho para aqueles que vêm sendo rejeitados pela lógica
do processo de produção capitalista.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


114

No que se refere à educação, o que se tem buscado é superar


o dualismo entre escolas segregadoras e exclusivistas. Este dualismo,
como já demonstrado, surgiu para retirar do convívio social aqueles
que podiam perturbar a ordem necessária ao desenvolvimento do
capital, fazendo parte desta, a tarefa colocada pela burguesia para a
educação escolar de massas, isto é: transmitir à população os
conhecimentos técnicos, políticos, e os valores ideológicos
necessários à produção e à reprodução da sociedade capitalista. Na
atualidade, a exclusão educacional não tem ocorrido somente com
aqueles que estão fora das escolas comuns. O novo padrão de
acumulação capitalista, que se tornou hegemônico no Brasil na
década de noventa, exige dos trabalhadores um conhecimento menos
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discursivo e amplamente operativo e interativo, menos intelectivo e


mais pragmático. Nesse contexto histórico, o que se requer
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principalmente do aluno é a competência para buscar novas


informações e habilidades. Essas exigências retiram da escola um
conjunto de conteúdos científicos e filosóficos necessários à
emancipação intelectual do educando, contribuindo para ajustá-lo,
de forma a-crítica, à realidade.
A corrente teórica que mais tem defendido a superação deste
dualismo é a abordagem Histórico-cultural, que tem como principais
expoentes Vigotski, Leontiev e Lúria. Esta defesa, não decorre por
razões humanitárias, respeito à diversidade e valorização das
diferenças, mas do entendimento científico de que a deficiência não
é apenas defeito e limitação, mas também fonte geradora de energia
motriz, a qual pode levar à constituição de uma superestrutura
psíquica capaz de reorganizar toda a vida da pessoa, tornando-a
alguém de plena valia social.
Se algum órgão, devido à deficiência morfológica ou funcional, não
consegue cumprir inteiramente seu trabalho, então o sistema nervoso
central e o aparato psíquico assumem a tarefa de compensar o
funcionamento insuficiente do órgão, criando sobre este ou sobre a
função uma superestrutura psíquica que tende a garantir o organismo
no ponto fraco ameaçado. (VIGOTSKI, 1997, p. 77).
Em relação à escola especial, Vigotski afirma que a mesma
(...) cria um mundo pequeno, separado e isolado, no qual tudo está
adaptado e acomodado ao defeito da criança, tudo fixa sua atenção na
deficiência corporal e não o incorpora a verdadeira vida (...) em lugar
de tirar a criança do mundo isolado, desenvolve geralmente nesta
criança hábitos que a levam a um isolamento ainda maior e intensifica
a sua segregação (VIGOTSKI, 1997, p. 41-42).

Política, Educação e Cultura


115

Em relação à reserva de postos de trabalho para pessoas com


deficiência, existem registros que atestam que já no início do século
XIX este procedimento era adotado pelo menos numa região da
Inglaterra: “Em 1815, no Parlamento inglês, assinalou-se o caso de
uma paróquia de Londres que estabeleceu um contrato com um
fabricante do Lancashire pelo qual este se comprometia a receber,
por cada 20 crianças sãs física e mentalmente, uma idiota” (MARX,
1982, p. 189).
Ainda na Europa, no início do século XX, com o advento da
Primeira Guerra Mundial, aumentou consideravelmente o número
de pessoas com deficiência, os quais, em muitos países, passaram a
reivindicar o direito de voltar a ocupar um posto de trabalho. Como
resultado destas reivindicações,
(...) em 1923 a OIT recomendou a aprovação de leis nacionais que
obrigavam entidades públicas e privadas a empregar um certo montante

Coleção Sociedade, Estado e Educação


de portadores de deficiência causada por guerra. Em 1944, na Reunião
de Filadélfia, a OIT aprovou uma recomendação, visando induzir os
países-membro a empregar uma quantidade razoável de portadores
de deficiência não-combatentes (PASTORE, 2000, p. 157).
Nas décadas seguintes, esta recomendação da Organização
Internacional do Trabalho foi transformada em lei em diversos países
europeus. “Os primeiros países que aderiram à idéia foram a
Inglaterra e a Holanda, sendo seguidos pela Grécia, Luxemburgo,
Espanha, Irlanda, Bélgica. O Japão entrou no esquema bem mais
tarde (1960)” (PASTORE, 2000, p. 158).
No Brasil, um dos primeiros documentos federais que tratou
de certa forma deste tema foi o Decreto- Lei nº 5895 de 20/10/
1943, o qual propunha que: “fica o Departamento Administrativo
do Serviço Público autorizado a estudar e a expedir normas para o
aproveitamento de indivíduos de capacidade reduzida nos cargos
ou funções do Serviço Civil Federal” (BRASIL, 1943, art. 1º)
Mas, foi nos anos de 1990 e 1991 que foram aprovadas duas
leis federais estabelecendo reservas de postos de trabalho para
pessoas com deficiência, tanto no setor público quanto na iniciativa
privada.
A primeira (Lei 8112) criou uma reserva de empregos para pessoas
com deficiência nos órgãos civis da União, autarquias e fundações
públicas federais (...) A Segunda (Lei 8213), por sua vez, estabeleceu
cotas compulsórias a serem respeitadas pelas empresas privadas na
admissão e demissão de pessoas com deficiência (CARVALHO e
ORSO, 2006, p. 172).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


116

No Brasil, mesmo com estas leis, são raras as pessoas com


deficiência que têm conseguido se fixar numa relação de trabalho
formal. “O Brasil é possuidor de um dos maiores contingentes de
pessoas com deficiência (16 milhões), sendo que destes, 60%
encontram-se em idade de trabalhar e 98% dos mesmos encontram-
se desempregados” (PASTORE apud CARVALHO e ORSO, 2006, p.
158). A justificativa dos liberais do final do século XX, em relação a
esta situação, é a mesma utilizada para explicar o desemprego
estrutural na sociedade contemporânea, ou seja, a falta de
qualificação profissional. “No mundo inteiro, os portadores de
deficiência sofrem restrições em termos educacionais, o que
dificulta a sua inserção no mercado de trabalho” (PASTORE, 2000,
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

p. 76).
Se na perspectiva liberal, a falta de qualificação é apresentada
como um empecilho para o ingresso das pessoas com deficiência
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

no regime de trabalho formal, as novas tecnologias são apresentadas


como a grande redentora deste seguimento social.
As novas tecnologias estão viabilizando certas atividades até então
impensáveis pelos portadores de deficiência. Esse é o caso da
informática e das telecomunicações. Essas tecnologias estão permitindo
aos portadores de deficiência um domínio de atividades até pouco
tempo inexeqüíveis (PASTORE, 2006, p. 86).
Ao contrário do que afirma os liberais, o avanço tecnológico
não tem resultado em melhores condições de existência para as
pessoas com deficiência, a não ser para aquelas que pertencem às
classes dominantes, que não necessitam trabalhar e podem ter acesso
às novas tecnologias para usufruir do ócio. No caso das pertencentes
às classes exploradas, pode-se afirmar que hoje a sua exclusão do
processo de trabalho é até maior que em outros tempos, como na
Idade Média, isto porque naquela sociedade alguém que só possuísse
trinta por cento de visão e ainda fosse coxo poderia perfeitamente
trabalhar “pilotando” o principal veículo de transporte terrestre, ou
seja, uma carroça. Na atualidade, com todo o desenvolvimento
tecnológico, esta pessoa foi transformada em “deficiente”,
considerada pela própria legislação previdenciária como incapacitada
para o trabalho.
Em relação à utilização das novas tecnologias por parte das
pessoas com deficiência pertencentes às classes exploradas, pode-
se elencar pelo menos três fatores que vão na direção oposta ao
pregado pela ideologia liberal:

Política, Educação e Cultura


117

O primeiro refere-se à apropriação privada das tecnologias por parte


da classe dominante, que acaba impedindo que a maioria da população,
dentre ela, as pessoas com deficiência pertencentes à classe explorada,
possa ter acesso àquelas de uso pessoal (...) O segundo diz respeito ao
fato de que, por mais desenvolvidas que possam ser as tecnologias,
não têm conseguido substituir os órgãos dos sentidos, a ausência ou
anormalidade de membros do corpo humano e nem graves deficiências
mentais ao ponto de tornarem a capacidade produtiva deste segmento
social tão rentável para o capitalista quanto a dos demais trabalhadores
(...) O terceiro refere-se ao fato de que a tecnologia da produção
capitalista é desenvolvida a partir das necessidades impostas pelo tipo
de mercadoria a ser produzida e está “adequada” a exploração de um
padrão médio de ser humano (CARVALHO e ORSO, 2006, p. 167-
168).
Desta forma, o capitalismo, por estar assentado na
propriedade privada dos meios de produção, na relação assalariada
de trabalho, na produção de mercadorias e na obtenção do lucro

Coleção Sociedade, Estado e Educação


por meio da extração da mais-valia, a incorporação de novas
tecnologias não favorece a inclusão de mais pessoas no mercado de
trabalho, mas pelo contrário, amplia o contingente de
desempregados.
Aumentando em extensão, em concentração e eficácia técnica, os meios
de produção tornam-se cada vez menos meios de emprego do operário
(...) o capital adicional, formado no curso da acumulação atrai pois, em
proporção à sua grandeza, operários em número cada vez menor
(MARX, 1992, p. 159).
As informações e idéias apresentadas ao longo deste trabalho
permitem a formulação de algumas considerações a respeito da
inclusão social das pessoas com deficiência no contexto da
reorganização do processo de acumulação capitalista do final do
século XX.
Se o dualismo educacional entre escola especial e exclusivista
foi uma criação imposta pela ordem capitalista e, se a primeira só
tem servido para atrofiar o processo de aprendizagem e
desenvolvimento das pessoas com deficiência, então lutar contra o
modelo segregativo é se colocar contra um dualismo que só tem,
por um lado, servido para favorecer a formação de um indivíduo
padronizado para melhor atender as exigências do processo de
produção capitalista e, por outro, segregar aqueles que, por razões
biológicas ou sociais, desviam do almejado padrão.
No atual modelo de acumulação capitalista, em que a classe
dominante cada vez mais se apropria do conhecimento tecnológico,
colocando-o a serviço da exploração dos trabalhadores, promovendo

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


118

a concentração da riqueza e o desemprego e a miséria do


proletariado, é necessário não se deixar seduzir com o “canto das
novas tecnologias”, pois a tendência que se apresenta para as pessoas
com deficiência não é a sua inclusão no processo produtivo formal,
mas sim, o aprofundamento da exclusão de que são vitimas aqueles
que pertencem as classes sociais exploradas.
Tendo em vista que a base objetiva da exclusão da maioria
das pessoas com deficiência decorre da impossibilidade destas de
atender ao padrão de “produtividade” imposto pela exploração de
classe, e que o estabelecimento e expansão da escola segregada na
sociedade moderna têm respondido, fundamentalmente, à
necessidade de legitimar este processo, então defender a reserva de
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

postos de trabalho para aqueles que não podem se ajustar à lógica


da exploração capitalista e lutar contra a segregação educacional
dos mesmos não é se colocar ao lado da reorganização capitalista
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

que começou a se verificar nas últimas décadas do século XX, pelo


contrário, a radicalização destas reivindicações pode contribuir na
denúncia da lógica exploradora excludente que caracteriza toda a
história da sociedade capitalista e ainda permitir às pessoas com
deficiência a compreensão de que a sua exclusão social resulta,
fundamentalmente, da exploração classista.

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http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura


REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO EM TEMPO
INTEGRAL NO DECORRER DO SÉCULO XX1
Cezar Ricardo de Freitas
Maria Inalva Galter

Quando se discute a educação em tempo integral, é preciso


deixar claro sobre qual conceito estamos falando: educação em
período integral, educação integral ou educação integrada. Suas
definições expressam diferentes concepções de sociedade e precisam
ser esclarecidas, pois aparecem mescladas nos discursos. No entanto,
há que serem analisadas separadamente.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Não obstante isso, é preciso entender o que vem sendo essa
forma de atendimento escolar, como vem sendo construída e qual
opção tem sido implementada no processo de escolarização em
nossa sociedade, tendo sempre em vista que a chamada “educação
em tempo integral” é um resultado dos embates que acontecem na
sociedade entre classes com interesses antagônicos.
Para tentar entender a primeira definição – educação em
período integral – apresentaremos aqui a escola brasileira de fins
do século XIX, numa leitura a partir de dois clássicos da literatura:
Manuel Antônio de Almeida e Raul Pompéia. Para analisar o segundo
conceito - educação integral - traremos brevemente a concepção de
educação dos teóricos Miguel Bakunin e Karl Marx. Por fim, o que
chamamos de “educação integrada”, discutiremos a partir de uma
experiência educacional de Anísio Teixeira, realizada na Bahia. É
também, a partir deste ensaio que buscaremos traçar o
desenvolvimento das experiências de jornada escolar prolongada,
como ela foi se construindo até chegar aos nossos dias e a quais
necessidades buscava atender.
Passemos então para a primeira questão. A educação em
tempo integral não é uma novidade histórica. Quando a escola se
constituía como privilégio de uma pequena parcela da população, e
era voltada para a formação dos quadros dirigentes da sociedade, a
tarefa educativa era realizada em período integral.

1 Este artigo é parte do segundo capítulo da monografia: A experiência da escola em tempo integral na rede pública municipal de Cascavel
(2001-2005), defendida em fevereiro de 2006. A mesma resultou de uma pesquisa desenvolvida no Curso de Especialização em História da
Educação Brasileira da Unioeste - Campus de Cascavel. Uma versão preliminar desse estudo foi publicado na Revista Educere et Educare (vol.
2 - n. 3 - 2007). Versão eletrônica disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/educereeteducare/article/view/660.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


122

Busquemos indícios na literatura brasileira, na obra Memórias


de um Sargento de Milícias (ALMEIDA, 1999), escrita em meados do
século XIX. Em um capítulo específico, o narrador alude ao fato de
que certo personagem, pertencente às camadas médias da sociedade,
não estará o dia todo na escola realizando seus estudos. No capítulo
podemos ler:
Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo (na escola) e a primeira notícia
que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela
tarde. (...)

Um dos principais pontos que ele passava alegremente as manhãs e


tardes em que fugia à escola era a Igreja da Sé. (ALMEIDA, 1999, p.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

52-54, grifos nossos)


Entretanto, essa não era a única forma que se apresentava a
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

escola para as classes mais abastadas. Havia também aquelas em


regime de internato, desnudadas pelo romance O Ateneu de Raul
Pompéia, escrito em 1888. O autor descreve nesse “romance auto-
biográfico” as atividades desenvolvidas pela personagem naquela
instituição. Um destaque são as atividades esportivas (base das
escolas em tempo integral contemporâneas), que inclusive serviam
de vitrine para a escola: “com maior concorrência preferia sempre a
exibição dos exercícios ginásticos (...) e o público, pais e
correspondentes em geral (...) compareciam no dia da festa da
educação física.” (POMPÉIA, s/d, p. 43-45)
De uma certa forma, a passagem pela instituição não traz
boas lembranças para o “autor-personagem”. Porém, no fim da obra,
ele apresenta o discurso de uma outra personagem em defesa do
regime de internato: “e não se diga que é um viveiro de maus germes,
seminário nefasto de maus princípios, que hão de arborecer depois.
Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A
corrupção que ali viceja, vai de fora.” (Idem, p. 190)
A escola ilustrada tanto na obra de Antônio de Almeida, quanto
na de Pompéia, demonstra uma educação que ocorria em tempo
integral e que era voltada para uma elite brasileira. Esse modelo
escolar, bastante limitado socialmente, permaneceu até as décadas
de 20 e 30 do século XX. Quando, porém, transformações no modelo
econômico brasileiro determinaram as demandas por uma escola
universal, reduziu-se, então, a jornada diária, inclusive a própria
duração da escola primária passou a ser questionada como
uma das condições para poder estendê-la a toda a população,
conforme analisou Anísio Teixeira:

Política, Educação e Cultura


123

No Estado de São Paulo, que liderou o movimento, chegou a sugerir


uma escola de dois anos e com esforço é que alguns educadores
conseguiram elevá-la a quatro anos de estudo, no meio urbano, e três,
na zona rural.

(...)

E a escola primária, reduzida na sua duração e no seu programa, e


isolada das demais escolas do segundo nível, entrou em um processo
de simplificação e de expansão de qualquer modo. Como já não era a
escola da classe média, mas verdadeiramente do povo, que passou a
buscá-la em uma verdadeira explosão de matrícula, logo se fez de dois
turnos, com matrículas independentes pela manhã e pela tarde e, nas
cidades maiores, chegou aos três turnos e até, em alguns casos, a quatro.
(TEIXEIRA, 1994, p. 161-162)
Para além da discussão do tempo da jornada diária, é preciso,

Coleção Sociedade, Estado e Educação


também, apontar alguns elementos referentes à concepção de
educação. Ao lado daquelas instituições elitistas, o século XIX traz
também discursos de uma educação integral. Um dos defensores
dessa tese era Bakunin, conforme nos atesta Portilho (2005). Segundo
a autora, por volta de 1830, Bakunin apresenta na Rússia a concepção
de educação integral. No entanto, essa proposta era para um modelo
de sociedade em que não existissem classes. Nessa sociedade
idealizada, o ensino integral seria um aliado para consolidar a
liberdade dos trabalhadores, por meio de uma educação científica,
compreendendo também o ensino industrial ou prático:
A instrução deve ser igual em todos os graus para todos; por
conseguinte, deve ser integral, quer dizer, deve preparar as crianças
de ambos os sexos tanto para a vida intelectual como a vida do trabalho,
visando que todos possam chegar a ser pessoas completas.
(BAKUNIN, 2003, p. 78)
A concepção integral aparece aqui mais vinculada, a uma
questão de formação abrangente de todos os aspectos humanos, e
não se referindo especificamente a tempo integral. Porém, seria
impossível essa formação nos moldes da escola que foi universalizada
no século XX, que chegou a ter até 3 horas diárias de estudo.2

2 Essa foi uma alternativa no Brasil, devido à grande demanda. Ao invés de aumentar o número de salas de
aula, diminui-se a carga horária. Assim cada sala de aula podia receber até quatro turmas por dia - três no
diurno e uma no noturno (TEIXEIRA, 1994).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


124

Uma formação integral implica em o aluno permanecer mais


tempo envolvido com a sua educação, ainda que não seja o tempo
todo na escola, pois existem outros espaços em que a sua formação
pode ser completada (ginásios, espaços culturais, locais de lazer,
etc.). Essa formação ampla, envolvendo inclusive a esfera produtiva,
também foi desenvolvida por Marx3 , porém, não no sentido que
defendia Basedow4 . Para Marx, a educação na sociedade capitalista
atende aos interesses do capital. Ela é determinada pela forma como
se organizam as relações sociais mais amplas.
Nesse sentido, a lógica da educação no capitalismo é voltada
para a produção, para aumentar os lucros, objetivando o interesse
da classe privilegiada: a burguesia. Nesse sistema, inclusive, o
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

conhecimento é concebido como uma propriedade privada.


Desenvolve-se, então, apenas uma das potencialidades do sujeito,
aquela voltada para o econômico. A educação escolar da sociedade
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

capitalista forma o “homem unilateral”.


Ao propor uma educação, Marx, assim como Bakunin, sugere-
a para uma sociedade em que não haja divisão de classes e sem a
propriedade privada dos meios de produção. Ele defende uma
formação para que o homem tenha todas as suas potencialidades
desenvolvidas, não apenas aquela voltada para a produção:
Torna questão de vida ou morte substituir a monstruosidade de uma
população operária miserável (...) pela disponibilidade absoluta do ser
humano para as necessidades variáveis do trabalho; substituir o
indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma
operação parcial, pelo indivíduo integralmente desenvolvido para o
qual as diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes
e sucessivas de sua atividade. (...) Mas não há dúvida de que a conquista
inevitável do poder político pela classe trabalhadora trará a adoção do
ensino tecnológico, teórico e prático, nas escolas dos trabalhadores.
(MARX, 1994)
Nessa proposta educacional, segundo a leitura que Enguita
(1993) faz de Marx, ensino intelectual, trabalho físico e trabalho
produtivo devem estar articulados, mas no sentido de proporcionar
ao trabalhador o controle e a intervenção no processo produtivo.

3 Karl Marx (1818-1883) não escreveu sistematicamente sobre educação. Ela sempre aparecia quando ele
discutia outras questões: críticas à sociedade capitalista, propostas para uma nova sociedade, etc.
4 Basedow (1723-1790) defendia que as crianças das camadas populares articulassem trabalho e estudo,
mas apenas para consolidarem a sua condição social: “(...) Felizmente, as crianças plebéias necessitam
de menos instrução do que as outras, e devem dedicar metade do seu tempo aos trabalhos manuais.”
(BASEDOW apud PONCE, 1992, p. 137).

Política, Educação e Cultura


125

É preciso que o trabalhador entenda os fundamentos, as


relações e a lógica de funcionamento do trabalho. Uma aprendizagem
para além da concorrência na sociedade capitalista, em que todas as
potencialidades humanas (científica, artística, cultural, produtiva)
sejam consideradas e desenvolvidas – homem omnilateral. É preciso,
portanto, uma educação integral.
A questão da educação integral chegou até nós. Entretanto,
sabemos que ela não é aquela de O Ateneu, pois não está voltada
para uma classe privilegiada; tampouco é a de Bakunin ou Marx,
posto que ainda vivemos em uma sociedade classista. Qual é então
a concepção de educação integral que é discutida hoje?
A resposta está num movimento que ficou conhecido como
Escola Nova, que aconteceu no início do século XX, influenciando
massivamente o pensamento sobre educação. Segundo Paro (1988),
com esse movimento a escola passa a ser vista como instância

Coleção Sociedade, Estado e Educação


transformadora da sociedade, com a capacidade de diminuir os
conflitos sociais. Tudo isso baseado nos ideais liberais, objetivando a
formação de um “cidadão” inserido numa sociedade democrático-
burguesa.
Um dos expoentes do escolanovismo foi John Dewey (1859-
1952), que fazia uma crítica ao ensino vigente à época, concebido
por ele como tradicional, intelectualista, mecânico e formal. Propõe,
então, uma nova pedagogia, na qual o centro do ensino seja o aluno
e não o professor, com ênfase nos procedimentos e não nos
resultados (TEIXEIRA, 1954).
Essas idéias tiveram grande influência mundial, embora muito
criticadas pelas conseqüências que causaram para a classe
trabalhadora. Entre as críticas, um autor influente da análise da
História da Educação Brasileira, Ghiraldelli Jr (1991), afirma que o
escolanovismo foi uma forma da burguesia “queimar os seus
pertences”, ou seja, ao invés dela proporcionar às classes
trabalhadoras uma escola que garantia o conhecimento, optou por
desconfigurá-la para, então, universalizá-la.
Nosso objetivo, entretanto, não é fazer aqui uma análise da
Escola Nova. Queremos entender apenas qual foi sua influência para
as idéias de educação integral, tendo em vista que, ainda hoje,
grandes estudiosos da escola de jornada ampliada vão buscar
subsídios teóricos nessa fonte. Um exemplo disso é CAVALIERE
(2002a), que tem influenciado muito os estudos dessa questão:
Vamos retomar a concepção de educação integral, tendo por base o
conceito de “educação como reconstrução da experiência”, no contexto

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


126

da corrente filosófica pragmatista e seu destacado autor John Dewey.


Buscamos aqui uma possível base teórica para a elaboração de uma
proposta de educação fundamental que possa corresponder às novas
necessidades e problemas que hoje apresentam as escolas públicas
brasileiras voltadas para esse segmento do sistema. (CAVALIERE,
2002a, p. 248)
Segundo Vítor Paro (1988), o escolanovismo defendia que
não bastava “desanalfabetizar” as grandes parcelas da população,
era preciso uma reformulação interna da escola, para que esta
fornecesse uma educação integral para formar o “cidadão”.
Entretanto, nesse momento histórico, o país não dispunha de
condições materiais suficientes para universalizar essa educação.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Portanto, somente as famílias com melhores condições financeiras


tiveram acesso a ela.
A universalização do ensino só vai atingir índices significantes
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

a partir da década de 50, sentindo profundamente as influências do


escolanovismo, principalmente no deslocamento da função científica/
instrutiva da escola. É justamente nesse momento que a educação
em tempo integral ressurge como proposta para a rede pública:
Na década de cinqüenta encontramos as propostas de educação em
tempo integral, só que, dessa feita, advogando-se sua extensão para o
âmbito dos sistemas escolares. As bases são ainda escolanovistas,
preocupadas com a formação integral, só que agora voltadas para as
camadas populares. (PARO, 1988, p. 191)
Novamente a educação em tempo integral se efetiva apenas
para uma parcela restrita da população, devido aos altos custos
envolvidos. O exemplo significativo é o Centro Educacional Carneiro
Ribeiro – CECR – idealizado por Anísio Teixeira, grande difusor do
escolanovismo no Brasil, e que em seu discurso de inauguração da
instituição (21 de outubro de 1950), percebemos proposições atuais,
com destaque às novas funções atribuídas à escola:
E desejamos dar-lhe [à escola] seu programa completo de leitura,
aritmética e escrita, ciências físicas e sociais, artes industriais, desenho,
música, dança e educação física. Além disso, desejamos que a escola
eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare
realmente, a criança para a sua civilização (...) E, além disso, desejamos
que a escola dê saúde e alimento à criança, visto não ser possível educá-
la no grau de desnutrição e abandono em que vive. (TEIXEIRA apud
EBOLI, 1969, p. 14)
Diante disso, percebemos que as idéias de Anísio Teixeira
implantadas no CECR não são de uma educação integral, mas de

Política, Educação e Cultura


127

uma educação integrada, ou seja, é uma escola preocupada


explicitamente em integrar outras funções sociais (saúde, segurança
etc.). Esse ensaio merece uma atenção especial, pois muitos dos
elementos criados na experiência baiana são percebidos nas
experiências de jornada escolar prolongada realizadas atualmente.
O CECR era composto por quatro “Escolas-classe” destinadas
ao “ensino de letras e ciências” e uma “Escola-parque” para atividades
sociais, artísticas e esportivas. Todo o complexo tinha a capacidade
de atender até 2000 crianças. Os alunos ficavam um turno na Escola-
classe e o outro na Escola-parque, num regime de semi-internato
(5% dos alunos ficavam em regime de internato).
O corpo docente era diferenciado. Segundo Eboli (1969),
professores primários “comuns” para as Escolas-classe, e para a
Escola-parque professores primários especializados, em música,
dança, teatro, artes industriais, desenho, biblioteca, esportes e
recreação.

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O CECR foi construído num bairro pobre da periferia de
Salvador, uma característica constante nos projetos de educação em
tempo integral para as camadas populares. Estas por sua vez, de
acordo com Paro, enxergam na escola uma “salvação” das suas
crianças, entregues aos riscos da criminalidade:
A experiência do CECR, ao centrar-se nas camadas populares e em
sua formação, antecipa, de certa forma, as questões que se farão
presentes, incisivamente, nas décadas posteriores, quando se procurava
atribuir à escola o papel de contribuir para a solução de problemas
sociais relacionados com a condição de pobreza da população. (PARO,
1988, p. 192)
Depois dessa experiência baiana, a questão da educação em
tempo integral volta a tomar fôlego somente na década de 80, com
os Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs – no Rio de
Janeiro. Essa é, sem dúvida, a maior experiência, numericamente
falando, de escola com jornada prolongada. Chegou a ter em torno
de 500 escolas desse tipo funcionando em todo o Estado. Essa
experiência foi amplamente estudada5 , despertando o interesse
quanto à possibilidade (ou não) de estendê-la à toda rede pública de
ensino.
Quanto à organização das atividades executadas pelos alunos,
permaneceu a distinção. Num turno as crianças tinham aulas do
núcleo comum, e no contra-turno as atividades diversificadas
(MACHADO, 2002). Até houve tentativas de intercalar disciplinas
do núcleo comum com as outras, mas não deu certo, pois:
5 Sobre os CIEPs ver estudos de CAVALIERE (1996, 2002a, 2002b e 2003); PORTILHO (2005); MACHA-
DO (2002) e SOBRINHO & PARENTE (2005).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


128

(...) para a construção de uma organização do tempo escolar mais


flexível (...) necessita-se, ao contrário do que possa parecer à primeira
vista, de um nível de organização muito mais desenvolvido. Isso inclui
um corpo de profissionais que seja capaz de organizar o trabalho
pedagógico de forma consciente do ponto de vista político-filosófico
e complexa do ponto de vista técnico-pedagógico (CAVALIERE, op.
cit., p. 123).
O fundamento da proposta baseava-se, de certa forma, na
experiência baiana, mas era ambiciosa no que se referia à
abrangência. Buscava atender não apenas a função instrucional, mas
também aquelas outras funções sociais que a escola vinha
incorporando historicamente:
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Tratava-se da idéia de que o tempo ampliado, se posto à serviço não


apenas da dinamização e intensificação das atividades de ensino-
aprendizagem estrito-senso, mas também da vivência de um conjunto
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

de experiências definidas como culturais, esportivas e artísticas,


possibilitando às crianças das classes desfavorecidas, além da superação
do renitente fracasso escolar, o ingresso num universo cultural mais
amplo e propiciador de percursos emancipatórios (Idem, p. 123).
A proposta do CIEP, inicialmente, foi implantada nos três níveis
de ensino da Educação Básica do Rio de Janeiro, porém,
paulatinamente foram se concentrando na Educação Infantil e Séries
Iniciais do Ensino Fundamental. Isso pode ter acontecido por dois
motivos: primeiramente, que as crianças menores constituem a maior
demanda para ficar o dia inteiro na escola, tendo em vista que seus
pais trabalham e elas não deveriam ficar sozinhas pelo risco que
isso envolve. Em segundo lugar, os jovens não dispõem de mais
tempo para ficarem na escola o dia todo, pois muitos precisam se
lançar ao mercado de trabalho, a fim de completar a renda da família.
Isso tende a reforçar a concepção que se tem hoje, principalmente
entre os educadores contrários à educação em tempo integral, que
a vêem como prática assistencialista, como um local onde os pais se
obrigam a deixar seus filhos para poderem ir trabalhar. Uma visão
que desconsidera as demandas sociais exercidas historicamente pela
escola pública.
A experiência carioca acaba influenciando, também, outros
diversos projetos semelhantes. Ainda que mantidas as diferenças
que cada particularidade exige, temos o PROFIC (Programa de
Formação Integral da Criança) em São Paulo, os CEIs (Centro de
Educação Integral) em Curitiba, e os CAICs em nível nacional.6

6 Em relação ao Profic, Paro (1988) faz uma análise comparativa entre essa experiência e os CIEP´s.
Quanto à experiência curitibana (CEI), esta foi analisada por Gomes (1994).

Política, Educação e Cultura


129

Este último vai influenciar, por sua vez, outras experiências a


nível municipal por todo o país, inclusive em Cascavel, merecendo,
portanto, maior atenção neste estudo7 .
O projeto dos CAICs inicia-se a partir de 1990, com o então
presidente Fernando Collor de Mello. Parte das políticas sociais do
governo federal visava desenvolver ações integradas de educação,
saúde, assistência e promoção social para crianças e adolescentes
(SOBRINHO & PARENTE, 1995). Inicialmente, denominava-se Projeto
Minha Gente e sua característica principal era a construção do Centro
Integrado de Atenção à Criança e ao Adolescente – CIAC, que previa
o atendimento em creches, pré-escola e ensino de 1º grau; saúde e
cuidados básicos; convivência comunitária e desportiva. Tinha como
meta definida a construção de 5 mil CIACs e atender a cerca de 6
milhões de crianças (IDEM, p. 10).
A partir de 1993, o projeto é assumido pelo Ministério da

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Educação8 e passa a se chamar Programa Nacional de Atenção
Integral à Criança e ao Adolescente – PRONAICA – que buscava
articular-se com órgãos federais, estaduais e municipais, ong’s e
organismos internacionais para o desenvolvimento de ações de
atenção integral à criança e ao adolescente. Os CIACs passaram a
ser denominados CAICs – Centro de Atenção Integral à Criança.
Essa mudança, segundo SOBRINHO & PARENTE (1995), deve-
se à ênfase dada pelo MEC à “pedagogia de atenção integral”, e que:
Na denominação adotada pelo Projeto Minha Gente (CIAC),
destacava-se a característica arquitetônica do centro Integrado. Com o
nome Centro de Atenção Integral à Criança – CAIC, a tônica desloca-
se para o atendimento integral, que requer a adoção de pedagogia
própria independente do espaço físico a ser utilizado. ( SOBRINHO
& PARENTE, 1995, p. 10)
Na prática, essa mudança não alterou muito a concepção do
projeto, que manteve basicamente a mesma estrutura física. A
intenção da mudança é que para o atendimento integral utilizar-se-
iam estruturas físicas já existentes, apenas se faria uma ação integrada
com elas. No entanto, o projeto só se efetivou com a construção de
outras unidades físicas, os CAIC’s.

7 Foi a experiência de Cascavel-PR que motivou-nos a desenvolver este estudo (ver FREITAS, 2006).
8 Conforme Lei Federal nº 8642, de 31 de março de 1993.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


130

Quanto ao financiamento, o Pronaica era compartilhado entre


o governo federal (construção dos CAIC’s), os Estados (recursos
humanos) e municípios (aquisição do terreno e manutenção).
Ao manter as crianças envolvidas o dia todo nos CAIC’s, o
projeto tinha dois objetivos: primeiramente, oferecer àquelas famílias
marginalizadas pela estrutura econômica, condições mínimas para
que seus filhos freqüentassem a escola, onde lhes era oferecido o
que a sua família não teria condições de proporcionar: comida,
vestuário (uniforme), assistência médico-odontológica, etc. Em
segundo lugar, evitar que essas crianças se lançassem precocemente
no mercado de trabalho (sub-empregos). Os dois objetivos
unificaram-se na tentativa de diminuir o índice de evasão e repetência
escolar, sem, no entanto, considerarem os motivos que realmente
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

levavam essas famílias a se tornarem marginalizadas pela sociedade.


Segundo Vitor Paro, a preocupação com a educação integral
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

é secundarizada na medida em que as atividades de arte, cultura e


esporte são utilizadas apenas para manter as crianças o dia todo nos
centros. A escola é vista, por um lado, como uma forma de minimizar
os efeitos gerados pela estrutura econômica, e, por outro, como
reprodutora da lógica excludente (PARO, 1988).
Entendemos, porém, que é inegável que o projeto dos CAIC’s
ajudou, em muito, a difundir a idéia de uma escola pública de tempo
integral. Não é ele quem inicia, mas juntamente com os CIEP’s do
Rio de Janeiro, constituem a realização em grande escala, apesar de
seus problemas e limites, de um projeto que era visto como
impossível. As experiências desenvolvidas ali serviriam de modelo
para inúmeras outras, que chegam até os nossos dias.
A utilização da educação como uma forma de atender a outras
demandas sociais também se realiza em nossa sociedade por meio
de outras instituições que não são escolas públicas. Segundo PARO
(1988), desde que o regime de internato (nos moldes de O Ateneu)
passou a ser questionado como solução para as elites, ele foi atribuído
às classes subalternas. Com o desenvolvimento no Brasil de uma
sociedade urbano-industrial a partir do século XX, as relações sociais
também sofrem algumas modificações, alterando inclusive a forma
da sociedade pensar a educação. A tradicional escola em regime de
internato ou semi-internato, segundo Paro, além de muito onerosa,
não respondia mais aos interesses da classe com maior poder
aquisitivo. Essas pessoas podiam oferecer outras oportunidades
educacionais aos seus filhos (música, teatro, esportes,...) além
daquelas ofertadas pelas escolas.

Política, Educação e Cultura


131

Assim, ao invés de segregar os filhos das classes mais


abastadas, passa-se a fazê-lo com os filhos das classes menos
favorecidas. Porém, como não poderia deixar de ser, com outra
roupagem:
Sem ilusões. A segregação das crianças e adolescentes oriundos das
classes dominadas, quando tais crianças e jovens se revelaram como
“ameaças sociais” sempre foi proposta pela classe dominante, atribuindo
ao Estado o papel de executor dessa segregação. Essa é a origem de
instituições como a FEBEM, os reformatórios de menores e as
entidades “filantrópicas” subvencionada pelos órgãos oficiais. (PARO,
1988, p. 207)
Essas instituições cumpririam um papel de “ressocialização”,
que ocorreria através de práticas educativas, como esportes, teatros,
oficinas profissionalizantes, etc. As instituições do tipo FEBEM e os
reformatórios para menores se apresentam como “cadeias” para

Coleção Sociedade, Estado e Educação


menores, e caracterizam-se por uma prática essencialmente
repressiva. Nos últimos anos, tornaram-se “panelas-de-pressão”
prestes a explodir, devido à superlotação. As freqüentes rebeliões
mostram, de certa forma, a falência desse tipo de instituição como
forma de ressocialização.
Para entender melhor a relação dessas instituições com o
objeto deste artigo - a educação em tempo integral – tomamos o
exemplo de Cascavel-PR. Nesse município foi criada uma instituição
no fim da década de 80, seguindo alguns direcionamentos das
FEBEM’s, embora detenha particularidades. Trata-se do CAOM –
Centro de Assistência e Orientação ao Menor. Araci Jost (2001)
analisou essa instituição e segundo ela:
O CAOM, como instituição assistencial para o enfrentamento da
pobreza em Cascavel, organizou a questão do atendimento a essas
crianças e adolescentes (...) tendo como preocupação central: o
suprimento das necessidades básicas e o afastamento desses menores
das ruas. Assim, desenvolveu o seu processo de trabalho dentro de
uma concepção formativa de cunho repressivo, amparado no Código
de Menores, tendo como enfoque as questões de segurança, deixando
de lado as questões sócio-educativas (JOST, 2001, p. 21-22).

Essa autora reivindica, no decorrer do seu trabalho, que a


instituição assuma questões mais educativas (no sentido escolar) do
que repressiva, seguindo inclusive, uma certa tendência de outras
instituições similares9. A autora propõe que na realização de seu

9 Sabe-se que atualmente até nos presídios há uma preocupação em levar educação escolar aos detentos
como uma forma de ressocialização.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


132

trabalho, a instituição se preocupe com a qualidade da formação


escolar do menor atendido, utilizando recursos didáticos para auxiliar
na pesquisa, na leitura, nas atividades esportivas, além de uma
iniciação profissional. Todas essas atividades desenvolvidas no
período de contra-turno escolar.
Quanto às entidades “filantrópicas”, estas parecem ter uma
preocupação mais pacífica, desenvolvendo trabalhos que são muito
bem vistos pela sociedade. Em Cascavel, uma instituição desse tipo
merece destaque: o CEMIC – Centro de Estudos do Menor e
Integração na Comunidade. Numa pesquisa in locus Vera Anger
(2003), fez uma importante análise dessa instituição:
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

O CEMIC surgiu para atender o menor marginalizado ou em vias de


marginalização em suas necessidades básicas, como educação integral,
reforço escolar, lazer, alimentação, vestuário, atendimento médico e
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odontológico (...) objetivando melhorar o relacionamento familiar e


as condições de vida da família (ANGER, 2003, p. 41).
No CEMIC as atividades desenvolvidas são divididas em: Área
Educacional; Área Educacional Complementar; Área Sócio-recreativa;
Área de Trabalho Educativo; Área de Saúde; Área Familiar e Trabalho
Voluntário (IDEM, p. 46) Interessam-nos, neste trabalho, as quatro
primeiras áreas pela identificação com as propostas da educação
em tempo integral.
Na Área Educacional são oferecidas oficinas artesanais,
informática, pesquisas e experiências práticas, buscando aprofundar
conteúdos escolares, além de culinária, cultivo e preparo de plantas
medicinais e hortaliças, recreação e esportes, atividades culturais e
cívicas. Na Área Educativa Complementar, a preocupação é específica
com o reforço escolar da criança ou adolescente. A Área Sócio-
recreativa responsabiliza-se pela realização de jogos, gincanas,
exercícios físicos, apresentações artísticas, brincadeiras, etc. Já a Área
de Trabalho Educativo é mais voltada para os adolescentes que
desenvolvem atividades com características profissionalizantes:
padaria, cozinha, horta e marcenaria.
Percebe-se, tanto no CAOM quanto no CEMIC, uma
identificação com a proposta de escola de tempo integral. Entretanto,
no primeiro ela aparece mais como uma maneira da instituição
cumprir a sua função corretiva, ao passo que, no segundo a proposta
tem um caráter de “prevenção” às situações que propiciem o
envolvimento do menor com atividades ilícitas ou insalubres,
aproximando-se esta muito mais da proposta da ETI. Entretanto, a
especificidade do CEMIC é outra. É uma instituição mantida por

Política, Educação e Cultura


133

entidades não-estatais, apesar de receber apoio financeiro dos


governos federais, estaduais e municipais.
As duas entidades são reconhecidas como assistencialistas,
mas, apesar disso, desenvolvem atividades de atribuições da escola.
Algumas, inclusive, são “complementos” ou “preenchimentos de
lacunas” da escola, como é o caso do reforço escolar.
Paradoxalmente, agora nos parece acontecer o contrário, é a
instituição escolar que assume as atribuições das entidades
assistenciais. Duas questões merecem esclarecimento aqui:
primeiramente a escola já vem há muito tempo desempenhando
outras funções sociais que não são especificamente “conhecimentos
formais”; em segundo lugar, há uma “crença” de que a escola pode
evitar todos os males da sociedade, e que, portanto, se ela
desempenhar bem a sua função, não mais precisaríamos daquelas
instituições sociais. São questões que não resolvem, nem que

Coleção Sociedade, Estado e Educação


superficialmente, os reais problemas estruturais que geram aqueles
“potenciais menores infratores”.
A evolução da tendência da escola de jornada prolongada tem
um marco importante na década de 90: a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional de 1996. Com a aprovação dessa lei, a
educação em tempo integral já recebe um indicativo. Segundo o
artigo 34:
A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro
horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente
ampliado o período de permanência na escola (...).

§ 2º O ensino fundamental será ministrado progressivamente em


tempo integral a critério dos Sistemas de Ensino (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Brasília: Centro de Documentação e
Informação Coordenação de Publicações, 1997).

Fica evidente, assim, que não é uma lei que cria a educação
em tempo integral, pois ela já vinha acontecendo de várias formas.
Isso também mostra como as políticas educacionais são um reflexo
dos embates na sociedade. Se a ETI aparece apontada na legislação
é porque já existe uma demanda social a que ela visa atender.
É necessário, ainda, levar em conta uma outra função social
desempenhada pela escola, apontada por Gilberto Alves (2001). É
preciso considerar que, a sociedade em que vivemos é histórica,
está em constante transformação. De certa forma, os espaços de
socialização também se transformam.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


134

A rua, que foi durante certo tempo, espaço privilegiado para as


crianças brincarem, se socializarem, hoje já não oferece as condições
para isso, por conta da insegurança que nos envolve.
Nesse sentido, a criança tem encontrado na escola o seu
principal espaço de lazer e socialização. Essa é uma das demandas
sociais da escola de tempo integral, destinada às classes menos
favorecidas, um espaço para a prática de atividades desportivas,
culturais (dança, teatro,...) e de lazer.
Por fim, percebemos que a educação em tempo integral
apresentou-se de diferentes maneiras. Dessa diversidade de
manifestações, emergem confusões (intencionais ou não) a respeito
do seu conceito. Conforme mostramos no início, ETI pode significar
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

apenas ensinar a criança durante todo o dia, como ocorria nos liceus.
Por outro lado, para Marx e Bakunin educação integral deve
desenvolver todas as potencialidades humanas, integrando-as para
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

que o homem vivesse numa nova sociedade sem classes. Já com o


escolanovismo no Brasil, a educação integral volta-se para a formação
de um “novo cidadão”, a escola integraria o sujeito na medida em
que o alfabetizasse e o preparasse para o novo contexto econômico-
social. Com as propostas dos Caic´s, a ETI passa a ser vista como
uma forma de atender integralmente as crianças, nos seus aspectos
educativo, alimentar, da saúde e segurança (não necessariamente
nessa ordem).
Diante disso, uma questão urgente entre os educadores é
entender essa tendência de extensão da jornada escolar que vem
sendo implementada em um número cada vez maior de municípios,
e buscar subsídios teóricos para construção de uma proposta
pedagógica consistente. Faz-se mister que o adjetivo “integral” não
se direcione apenas ao tempo escolar, mas abarque, primeiramente,
o desenvolvimento de uma educação que consiga integrar os
conteúdos apresentados ao aluno, para que ele passe a entender os
fundamentos e as implicações históricas daquele conhecimento. Em
segundo lugar, e como conseqüência disso, que contribua para
desenvolver no educando, a sua consciência enquanto ser
determinado socialmente, que entende o seu papel de sujeito
histórico e, sobretudo, social (coletivo), (des)integrado numa lógica
econômica que pode ser superada.

Política, Educação e Cultura


135

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Quantidade e racionalidade do tempo de escola: debates no
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Para onde caminham os CIEP´s? Uma Análise após 15 anos
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CEMIC. Monografia apresentada à Especialização em Fundamentos
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FREITAS, Cezar. A experiência da escola em tempo integral na
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Política, Educação e Cultura


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Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
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Política, Educação e Cultura


139

INTEGRAÇÃO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA


DE NÍVEL MÉDIO NA MODALIDADE DE EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE O CURRÍCULO

Edaguimar Orquizas Viriato


Renata Cristina da Costa Gotardo

Coleção Sociedade, Estado e Educação


INTRODUÇÃO

O artigo tece algumas considerações a respeito do currículo


integrado para o ensino médio profissional na modalidade da
Educação de Jovens e Adultos. Partimos do pressuposto de que a
organização curricular integrada ao ensino médio profissional na
modalidade da Educação de Jovens e Adultos deve primar por um
modo de estruturação das disciplinas e do tempo escolar
comprometidos com a aquisição dos conhecimentos necessários à
construção de um projeto societal no qual todos tenham os mesmos
direitos. No caso do PROEJA, isto requer não somente amparo legal
para a sua efetivação, mas principalmente investimento financeiro,
pedagógico e administrativo por parte do poder público, visto que a
Educação de Jovens e Adultos tem sido marcada por políticas
educacionais frágeis, efêmeras e descontínuas.
Nunca é demais lembrar que integrar currículo não significa
estruturar em uma grade curricular um amontoado de disciplinas
vinculadas à Base Nacional Comum, Formação Específica e Estágios.
Como referenciado pelo Documento Base1 , “o que se pretende é
uma integração epistemológica, de conteúdos, de metodologias e
de práticas educativas” (BRASIL, 2006, p.30). Isto não é pouca coisa,
ainda mais quando nos referimos ao currículo integrado de uma
política educacional, como é o caso do PROEJA, que unifica um nível

1 Referimo-nos ao Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de


Educação de jovens e Adultos.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


140

(Ensino Médio) e duas modalidades de ensino (EJA e Formação


Profissional).
Diante do desafio de construir um currículo que integre o
conhecimento científico, tecnológico e cultural para a formação de
jovens e adultos deste país, que foram alijados do processo regular
de ensino, realizamos a apresentação dos cursos e programas de
educação profissional abrangidos pelo Programa Nacional de
Integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na
Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) e, na
seqüência, problematizamos a organização curricular dos cursos a
serem ofertados, mediante ao disposto no Decreto nº 5.840/2006,
ao prever a:
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

observância às diretrizes curriculares nacionais e demais atos


normativos do Conselho Nacional de Educação para a educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

profissional técnica de nível médio, para o ensino fundamental, para o


ensino médio e para a educação de jovens e adultos (Artigo 4º, Inciso
III).
Esperamos que, a partir da compreensão da legislação,
possamos refletir sobre a implantação e implementação do PROEJA
no sentido de averiguar as possibilidades e os limites de ofertar o
ensino médio integrado à educação profissional, na modalidade de
educação de jovens e adultos, com uma estrutura curricular que
efetivamente integre ciência, tecnologia e cultura.

1. O PROEJA

O PROEJA, instituído pelo Decreto nº 5.478, de 24 de junho


de 20052 , revogado e redefinido pelo Decreto nº 5.840, de 13 de
julho de 2006, abrange cursos e programas de educação profissional
de formação inicial e continuada de trabalhadores e educação
profissional técnica de nível médio (Artigo 1º, parágrafo 1º). Propõe-
se, portanto, formar para o trabalho e, ao mesmo tempo, elevar a
escolaridade dos sujeitos que não puderam concluir os estudos na
faixa etária adequada.
Neste sentido, o PROEJA apresenta-se como uma novidade
no cenário educacional brasileiro, ao visar não somente atender uma

2 O Decreto nº 5.478/2005 instituía o PROEJA na rede de instituições federais de educação. Previa carga
horária máxima de 1600 horas para formação inicial e continuada e 2400 horas para formação técnica
de nível médio. O Decreto nº 5.840/2006 estende a possibilidade de oferta para as redes de ensino
estaduais, municipais e privadas e passa a definir carga horária mínima para a formação.

Política, Educação e Cultura


141

de ensino camada social que já fora excluída do processo educacional,


mas também ao pretender integrar a formação geral à
profissionalização. Sem dúvidas, o PROEJA pode significar
efetivamente o acesso dos trabalhadores que apresentam distorção
idade/escolaridade a um ensino que possibilite qualidade na formação
geral e na formação profissional, elevando seu nível de escolaridade.
Entretanto, as condições concretas para que essa concepção de
educação supere a anterior, caracterizada historicamente por um
ensino dual, exige, como já afirmamos, não somente respaldo legal,
mas principalmente o comprometimento político com as camadas
populares do nosso país, por parte do poder público, expresso em
políticas de financiamento público, de formação inicial e continuada
de professores, de valorização do magistério público oficial.
A instituição do PROEJA pode vir a representar tanto um
avanço como um retrocesso diante dos embates políticos,

Coleção Sociedade, Estado e Educação


econômicos e sociais que nos encontramos. É difícil reconhecer, mas
necessário – senão caímos em ilusionismos educacionais, vivendo
como o grande herói grego, Ulisses, que encantado com o canto
das sereias deixou-se ser conduzido às profundezas do mar, lá
permanecendo e vivendo um grande engodo – que a reestruturação
econômica aliada à reforma do Estado brasileiro na perspectiva
gerencial influenciam diretamente o modo de organizar e gerir a
educação pública. Nunca é demais recapitular que, na última década,
a educação brasileira passou por um processo de reforma cuja matriz
teórica estava sustentada fortemente pelos anseios do neoliberalismo.
Não é à toa que a educação passa a ser compreendida como um
serviço público a ser adquirido em conformidade com o poder
aquisitivo do cliente.
A educação profissional, especificamente, vivenciou trágicas
mudanças que a desvincularam inclusive da forma regular de oferta
do ensino médio3 . A retomada dessa possibilidade de articulação
por meio do Ensino Médio integrado4 não consiste em uma política
consolidada, pelo contrário, ainda é o novo sendo construído a partir
do velho, até porque, entre outros obstáculos, a questão do
financiamento não fora resolvida. Em outras palavras, queremos
reafirmar que a disputa política gira em torno da organização e da

3 Referimo-nos particularmente aos efeitos do Decreto nº 2.208/1997 e ao PROEM (Programa Expansão,


Melhoria e Inovação do Ensino Médio ), instituído durante o governo Jaime Lerner, no Estado do Paraná.
4 Após alguns anos de questionamento do Decreto nº 2.208/1997 e reivindicações da sociedade ao
governo federal, a forma integrada foi regulamentada pelo Decreto nº 5.154/2004.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


142

gestão da educação, confrontando duas perspectivas: numa a


educação é um direito social, portanto pública e estatal e, em outra,
a educação é um serviço social e como tal, o cliente consome/adquire
de acordo com as suas necessidades e possibilidades imediatas.
O PROEJA, neste contexto, é mais uma política pública em
disputa. Sublinhemos que o neoliberalismo, ao contrapor-se ao
keynesianismo, traduz um projeto de organização e gestão societal
distinto; porém, ambos perseguem o mesmo objetivo, qual seja, o
de reproduzir e ampliar a acumulação do capital. Isto significa que a
possibilidade de lutar por uma sociedade embasada nos princípios
socialistas resulta do próprio embate colocado pela atual crise
manifestada, conforme Netto (1995, p. 183-199), pelo colapso do
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

socialismo real e pela crise do capitalismo democrático.


Trata-se, nos dizeres de Netto (1995), de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

implementar reformas que abram modelos de desenlaces explosivos e


insurrecionais, mas sem iludir-se quanto (e preparando-se
politicamente para) à inevitabilidade de momentos traumáticos num
processo certamente pouco idílico – e sem qualquer concessão a uma
pretensão ‘lógica de dois tempos’ (um de ‘reforma’, outro de
‘revolução’); trata-se, aqui, de uma complexa processualidade que
sintetiza num só ‘tempo’todas as dimensões do que Marx chamou de
‘época de revolução social’ (p. 199).
A expressão da disputa pode ser exemplificada pelo Decreto
nº 5.478, de 24 de junho de 2005, que inicialmente instituiu o PROEJA
no âmbito das instituições federais de educação tecnológica. Por
que restringir a oferta de cursos e programas de formação inicial e
continuada de trabalhadores e de educação profissional técnica de
nível médio? Por que limitar a carga horária máxima de mil e
seiscentas horas e duas mil e quatrocentas horas, respectivamente
aos cursos de formação inicial e continuada de trabalhadores e aos
cursos de educação profissional técnica de nível médio?
A primeira indagação nos conduz a ações corporativas em
detrimento a ações ético-políticas (FRIGOTTO; CIAVATTA E RAMOS,
2005, p. 1097-1098). Argumentam os autores
Para a SETEC, a oferta da educação profissional integrada ao ensino
médio na modalidade EJA manteria uma incumbência residual com a
educação básica, da qual ela foi esvaziada... e a educação de jovens e
adultos – com a qual a política de educação profissional nunca havia se
ocupado ... Para a rede federal, essa medida contribui para justificar
sua manutenção na esfera político-administrativa própria e não na esfera

Política, Educação e Cultura


143

da educação superior, na qual sua identidade e diretrizes seriam


compartilhadas com as demais instituições de ensino superior.
Quanto ao limite da carga horária dos cursos significa admitir
que “aos jovens e adultos trabalhadores se pode proporcionar uma
formação ‘mínima’” (FRIGOTTO; CIAVATTA E RAMOS, 2005, p.
1098). Tais indagações também podem ser interpretadas dentro do
contexto de transferência do direito à educação pública estatal para
o não-estatal5 , favorecida pela organização e gestão das instituições
federais de educação tecnológica.
A expressão da disputa pode ainda ser exemplificada pelo
Decreto nº. 5.840/2006 ao constatar alguns indicativos que
contrariam a possibilidade de implementar a integração da Educação
Profissional com a Educação Básica, na modalidade de Educação de
Jovens e Adultos. Observemos, por exemplo, a designação “formação
inicial e continuada de trabalhadores” (Decreto nº 5.840/2006, Artigo

Coleção Sociedade, Estado e Educação


1º, parágrafo 1º, Inciso I). Essa designação, introduzida pelo Decreto
nº 5.154, de 23 de julho de 2004, substitui a denominação “educação
profissional básica” adotada pelo Decreto nº 2.208, de17 de abril de
1997, que dava o suporte legal para que instituições públicas, privadas
e não-estatais, ofertassem cursos de formação profissional de curta
duração e de qualidade duvidosa.
O Decreto que institui o PROEJA, mesmo não definindo o
que denomina de “formação profissional inicial e continuada de
trabalhadores”, articula essa formação “ao ensino fundamental ou
ao ensino médio, objetivando a elevação do nível de escolaridade
do trabalhador” (Decreto nº. 5.840/2006, Artigo 1º, parágrafo 2º,
Inciso I) e vincula essa articulação (ensino fundamental ou ensino
médio) aos termos do Decreto nº 5.154/04, Artigo 3º, parágrafo 2º,
o qual remete essa formação preferencialmente aos cursos de
educação de jovens e adultos, prevendo determinados itinerários
formativos. Sublinhemos que “considera-se itinerário formativo o
conjunto de etapas que compõe a organização da educação
profissional em uma determinada área, possibilitando o
aproveitamento contínuo e articulado dos estudos” (Decreto nº
5.154/04, Artigo 3º, parágrafo 2º). Ou seja, após a conclusão com

5 Transferência dos serviços não-exclusivos do Estado para a esfera do público não-estatal, composto por
instituições jurídicas, sem fins lucrativos, que embebidas pelo espírito da solidariedade vêm assumindo
um serviço público, outrora ofertado exclusivamente pelo Estado. Eficiência, eficácia e produtividade
são as metas que orientam tais instituições cujo propósito consiste em melhor servir o cidadão-cliente.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


144

aproveitamento dos cursos e programas do PROEJA, os jovens e


adultos atendidos farão jus a certificados de formação inicial ou
continuada para o trabalho.
A possibilidade de construir itinerários formativos destinados
à formação profissional inicial e continuada de trabalhadores,
articulada ao ensino fundamental ou ao ensino médio, na modalidade
da EJA, poderia representar um avanço legal que repercutiria em
ações de intervenção nesse tipo de formação que é ofertada, como
já dissemos, com uma qualidade duvidosa e de cunho mercadológico.
Entretanto, o Artigo 3º, Inciso I, do Decreto nº 5.840/06, ao prever
cursos para a formação inicial e continuada de trabalhadores com
uma carga horária mínima de 1400 horas, sendo destinadas no
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

mínimo 1200 horas para a formação geral e 200 horas para a


formação profissional, parece não possibilitar a ruptura com o até
agora vigente; pelo contrário, pode continuar reforçando a oferta de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

cursos que se adaptem às demandas do mercado, atendendo a


interesses imediatos dos trabalhadores e seus prováveis
empregadores. Sublinhemos que não há orientações normativas que
regulamentem tais cursos.
Se a formação inicial e continuada de trabalhadores (ensino
fundamental e médio) prevê uma carga horária mínima de 200 horas
destinadas para a formação profissional, essa formação não deveria
ser regulamentada? Diferentemente do proposto pelo Decreto nº
2.208/97, que possibilitava cursos básicos restritos à preparação de
mão-de-obra para o mercado de trabalho, os cursos e programas
destinados à formação inicial e continuada de trabalhadores prevêem
qualificação e aumento do nível de escolaridade. Este fato – um ganho
legal, sem dúvidas – demanda uma regulamentação para que os
cursos não venham a assumir uma proposta curricular que privilegie
o mercado, acontecimento que só parece possível mediante
mobilização política por parte daqueles que estão diretamente
envolvidos com o processo de ensino-aprendizagem, uma vez que
não há interesse por parte do governo em implementar ações que
favoreçam os trabalhadores em detrimento ao mercado.
Outro aspecto a ser considerado quanto à formação inicial e
continuada de trabalhadores de nível médio diz respeito às Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (DCN). Instituída
pela Resolução 02/98, as DCNs indicam o reconhecimento de saberes
relacionados à vida cidadã (art.3º, inciso IV, alínea a) que, a princípio,
não parece constituir-se em um problema, uma vez que os adultos
estão inseridos diretamente nos aspectos do mundo do trabalho

Política, Educação e Cultura


145

(embora não possamos garantir que os compreendam). Como


pensar, no entanto, um curso de formação inicial e continuada de
nível médio, se não temos a garantia de que os conteúdos do ensino
fundamental foram assimilados? Como garantir que o
reconhecimento desses saberes estarão embasados no efetivo
domínio das ciências que os fundam? Uma vez mais abre-se a
possibilidade de, via iniciativa privada, os sujeitos serem certificados,
sem garantir efetivamente sua formação escolar e a aquisição de
conhecimentos.
Além da formação inicial e continuada dos trabalhadores,
articulada ao ensino fundamental ou ao ensino médio, o PROEJA
abrange ainda a educação profissional técnica de nível médio, de
forma integrada ou concomitante, nos termos do Decreto nº 5.154/
04, Artigo 4º, parágrafo 1º, Incisos I e II, e expressa no Decreto nº
5.840/06 pelo Artigo 1º, parágrafo 2º, Inciso II. Aqui também deve

Coleção Sociedade, Estado e Educação


ser prevista a possibilidade de conclusão de curso a qualquer tempo,
o que, como já apontamos, rompe com a possibilidade de integração.
No caso dos cursos de educação profissional técnica de nível
médio do PROEJA, a carga horária mínima prevista é de 2400 horas,
sendo que destas minimamente 1200 horas são destinadas para a
formação geral; para a habilitação profissional técnica deverá ser
respeitada o estabelecido para a devida habilitação (Artigo 3º, Decreto
nº 5.840/06). Lembremos que a carga horária da habilitação
profissional técnica consta na Resolução CEB nº 4, de 8 de dezembro
de 1999, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Profissional de Nível Técnico.
A flexibilidade da oferta do ensino médio, no caso da formação
inicial e continuada de trabalhadores e no caso da educação
profissional técnica de nível médio, integrada ou concomitante, na
modalidade da EJA, precisa ser debatida e problematizada para que
efetivamente possamos, no âmbito legal, encontrar subsídios que
amparem a construção de um currículo voltado para a emancipação
social e produtiva do homem.
O aproveitamento de estudos com obtenção de certificação
a qualquer tempo, previsto no artigo 6º, bem como o reconhecimento
de conhecimentos e habilidades obtidos fora da escola, amparado
pelo art.7º, ambos do Decreto nº 5.840/06, permitem um arcabouço
de possibilidades de formas de oferta e de certificação. Por um lado,
isso garante a autonomia por parte dos sistemas de ensino e, por
outro, admite que a implantação do programa fique a critério daquilo
que for mais conveniente a cada secretaria, seja Estadual ou
Municipal.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


146

No Estado do Paraná, a Secretaria Estadual de Educação –


SEED – adotou como política a integração da educação profissional
ao ensino médio na modalidade de educação de jovens e adultos de
forma presencial e sem previsão de saídas no decorrer do curso6 .
Isso aponta para a possibilidade de elevar a escolaridade de sujeitos
historicamente alijados do processo educacional, sem perder o
horizonte da qualidade do ensino ofertado. Ao considerarmos que a
legislação federal possibilita formas de oferta e de certificação
diversificadas, torna-se fundamental um posicionamento político por
parte das secretarias de estado, o que no Estado do Paraná tem
evidenciado, ao menos enquanto política, um compromisso com a
qualidade de ensino a ser ofertado pelo PROEJA.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

A SEED, no I Seminário do PROEJA 7 , apresentou um


diagnóstico das possibilidades de oferta do PROEJA no Estado. Para
ofertar o programa, os estabelecimentos de ensino deveriam atender
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

aos seguintes requisitos: a) ofertar cursos profissionalizantes na


modalidade regular; b) ofertar PROEJA no mesmo curso
profissionalizante já existente no estabelecimento. Ambos os
requisitos são justificados como forma de garantir uma oferta com
qualidade, pois parte-se do pressuposto de que os estabelecimentos
já contam com infra-estrutura física e humana e experiência na oferta
do curso profissionalizante, para que possam ofertar o PROEJA de
forma a minimizar possíveis entraves.
Ainda durante o evento acima citado, a Secretaria de Educação
mapeou os estabelecimentos que ofertarão PROEJA no ano de 2008:
41% estão em comunidades de baixa renda; 23 % em comunidades
com necessidade de acesso à profissionalização; 21% contam com
trabalhadores que buscam formação e 15% em comunidades
essencialmente agrícolas. Isso demonstra que a oferta do PROEJA
no Estado pretende atender a uma demanda efetiva das comunidades.
Por esse motivo, a forma como o processo está sendo conduzido

6 Informação obtida através da Chefe do Departamento Educação e Trabalho, SEED/PR, durante o I Semi-
nário PROEJA, realizado em Curitiba, PR, nos dias 07,08 e 09 de maio de 2007.
7 O I Seminário PROEJA foi realizado pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná, contando com
representantes dos Núcleos Regionais de Educação e das escolas que pretendiam, a partir de um primei-
ro diagnóstico, ofertar cursos pelo PROEJA em 2008, bem como com representantes das Universidades
envolvidas no projeto de pesquisa “Demandas e Potencialidades do PROEJA no Estado do Paraná”,
financiado pela CAPES/SETEC. O Seminário foi organizado como tentativa de esclarecer, aos envolvidos
,as bases legais do Programa bem como sobre o processo de implantação na rede estadual de ensino.

Política, Educação e Cultura


147

parece bastante condizente com as necessidades dos trabalhadores


que intencionam ingressar nos cursos do PROEJA, e a decisão de
não apenas certificar, e sim formar, é bastante importante para a
garantia do acesso a conhecimentos por parte da classe trabalhadora.

1.1 O Currículo do PROEJA

O desafio de construir um projeto político-pedagógico que


integre o currículo, entendido aqui em sentido stricto, ou seja, um
rol de conhecimentos necessários para formar e qualificar jovens e
adultos na Educação Profissional integrada ao Ensino Médio, exige
enfrentar questões pertinentes aos conteúdos a serem ensinados/
apreendidos por esses jovens e adultos e à metodologia adotada
durante o processo ensino-aprendizagem.
Ao organizar uma estrutura curricular que atenda a esta

Coleção Sociedade, Estado e Educação


exigência, faz-se necessário explicitar de que conhecimentos estamos
falando, que jovens e adultos tomamos como referência, em que
perspectiva o currículo se fundamenta ao distribuir conteúdos
traduzidos em disciplinas, ao longo de determinado tempo escolar,
sobretudo considerando que estes jovens e adultos, excluídos até
então do processo regular de ensino, poderão elevar sua escolaridade
para o ensino médio e ainda obter formação profissional para exercer
determinada atividade laboral. Recapitulemos com Moreira e Silva
que
O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão
desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em
relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e
interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais
particulares (MOREIRA E SILVA, 1994, p. 7-8).
A nosso ver, a importância do PROEJA reside justamente na
possibilidade de debater e enfrentar, entre outras, essas questões,
contrapondo-se inclusive às propostas do governo federal com
relação às Diretrizes Curriculares Nacionais que, ainda em vigor,
amparam a elaboração dos projetos curriculares dos diferentes
Estados da nossa nação, na direção do pragmatismo, desprovidos
do viés da luta de classe.
Dito de outra forma, reafirmar no espaço da educação pública
estatal o compromisso em elaborar uma proposta curricular integrada
que agregue conteúdos necessários para instrumentalizar os jovens
e adultos a exercerem o poder político, participando ativamente na

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


148

sociedade. Para tanto, precisamos “... entender a favor de quem o


currículo trabalha e como fazê-lo trabalhar a favor dos grupos e
classes oprimidos” (MOREIRA E SILVA, 1994, p.16).
Nestes termos, compreendemos o currículo integrado em
duas dimensões: uma ideológica, envolvendo as questões de
conteúdo, método e metodologia, e outra política, comprometida
com os interesses da classe historicamente oprimida por aqueles
que sempre detiveram os meios de produção e reprodução da vida
material.
A dimensão política traduz os embates e conflitos em torno
do conhecimento que represente os interesses hegemônicos da
classe trabalhadora. Lembremos que a política é o “(...) processo
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

mediante o qual se põe em xeque a repartição da riqueza apenas


entre os que são proprietários” (FRANCISCO DE OLIVEIRA, 1999,
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

p. 65). Portanto, a dimensão política visa alterar as relações de poder


que vigoram em prol das classes dominantes com o intuito de
reorganizar os conhecimentos que comporão os conteúdos escolares
por meio das disciplinas, organizados numa estrutura curricular.
A organização curricular, nesta perspectiva exige a participação
dos envolvidos no processo educacional, para que juntos possam
elaborar um projeto de curso no qual haja efetivamente a articulação
entre
... experiências, trabalho, valores, ensino, prática, teoria, comunidade,
concepções e saberes observando as características históricas,
econômicas e socioculturais do meio em que o processo se desenvolve
(BRASIL, 2006, p. 36).
A dimensão ideológica, intrinsecamente articulada à definição
de Sacristán e Gómez (1998, p.125), ao definir currículo como um
percurso a ser realizado, expressa uma forma de currículo que orienta
o processo de ensino-aprendizagem. Para tanto, deve estabelecer
os conteúdos a serem transmitidos para que se formem os sujeitos
numa determinada época. Assim como toda a educação, o currículo
também é espaço/elemento de disputa no interior da escola: por
um lado, busca manter a hegemonia, podendo, no entanto, contribuir
para seu questionamento.
O modo como se organiza um currículo, portanto, influencia
as práticas escolares. Por constituir-se como espaço de luta, é
fundamental que os educadores compreendam quais ações e
intenções estão implícitas, para que possam agir de forma consciente
no processo de ensino-aprendizagem.

Política, Educação e Cultura


149

Como já anunciamos, o Decreto nº 5.840/06 indica como


referência curricular a observância às diretrizes curriculares nacionais.
Isto significa que essas orientações estão inseridas num modelo de
educação que apartava a educação profissional do ensino médio.
A orientação prevista pelo Decreto nº 5.840/06 para os cursos
de educação profissional técnica de nível médio sinaliza, portanto,
para as DCNs para a educação profissional de nível médio, para o
ensino fundamental, para o ensino médio e para a educação de jovens
e adultos (Artigo 4º, Inciso III). Todas num contexto que reforçava a
separação entre ensino médio e educação profissional.
A substituição do Decreto nº 2.208/97 pelo Decreto nº 5.154/
04 não provocou mudanças significativas nas Diretrizes Curriculares
Nacionais. A Resolução nº 1, de 03 de fevereiro de 2005, que
atualizou as DCN para o EM e EP, e a Resolução nº 04, de 27 de
outubro de 2005, que incluiu novo dispositivo à Resolução nº 1/

Coleção Sociedade, Estado e Educação


2005, não alteraram o conteúdo proposto pelas diretrizes referidas.
Na prática, o que parece permanecer é um forte indicativo de
que as escolas não mudem a forma de ofertar os seus cursos, optando
preferencialmente pelos cursos concomitantes ou subseqüentes.
Imaginem os integrados ao EJA? Compreendidas dessa forma, as
DCNs que regulamentam o PROEJA, ao menos em nível nacional,
constituem-se como uma verdadeira “colcha de retalhos”, que
propõem a integração curricular a partir de uma legislação que
fragmenta educação profissional e formação geral. Sublinhemos que
o princípio educativo que fundamenta o currículo integrado é o
trabalho. Isto significa compreender as questões econômicas, sociais,
históricas, políticas e culturais da Ciência e Tecnologia, portanto,
não é possível fragmentar de um lado a educação profissional e de
outro a formação geral, elas são indissociáveis.
Outro aspecto a ser problematizado diz respeito à
possibilidade de conclusão de curso a qualquer tempo. Como pensar
na integração de um currículo que prevê “saída” durante o curso? O
que podemos considerar como fator que está sendo disputado num
currículo organizado dessa forma? Parece-nos um simples
atendimento à demanda por elevação da escolaridade e atendimento
ao mercado de trabalho, sem a efetiva preocupação com a real
formação e qualificação dos alunos-trabalhadores que freqüentarão
o programa.
A nosso ver, para não ficarmos reféns dos posicionamentos
políticos por parte das Secretarias de Ensino, faz-se necessário, por
parte do Ministério da Educação, implementar uma política pública

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


150

relativa ao currículo condizente com os interesses da classe


trabalhadora, para o que torna-se fundamental a organização e luta
política dessa classe.
Outro aspecto apontado nas DCNs para o Ensino Médio
(Resolução 03/98) refere-se à noção de competências, que remete a
um modelo próprio de indivíduo a ser formado. Ramos (2002) chama
a atenção para o fato de que ao se mudar o termo qualificação para
competência, perde-se a noção de coletividade, tanto em seu caráter
social quanto no processo de ensino-aprendizagem, instituindo-se a
noção de individualidade. Cêa (2007), ao discutir quais saberes estão
em disputa no interior da escola, argumenta que nesse momento
histórico temos um ethos competitivo, com a naturalização da
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

exclusão, o que confirma os apontamentos de Ramos. Além disso,


temos a formação de um modus cambiante, com a instabilidade
como norma de vida; e um sapere valorativo, com o pragmatismo
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

do conhecimento. Estes dois últimos aspectos tornam-se bastante


elucidativos ao analisarmos o Documento Base “Programa de
Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na modalidade
de Educação de Jovens e Adultos”, que afirma que não há trabalho
para todos (instabilidade) e que prevê a certificação de
conhecimentos adquiridos fora da escola (pragmatismo).
Novamente podemos apontar para os saberes em disputa no
interior do currículo. Formar indivíduos que não irão participar do
mercado formal de trabalho, dando a eles noções de
“empregabilidade”, para que possam constituir-se como
empreendedores, é corroborar para que aceitem as condições
históricas atuais e acolham a exclusão como um dado natural.
No artigo 4º das DCNEM fica clara a orientação dos quatro
pilares para a educação contida no relatório de Jaques Delors, quais
sejam, aprender a conhecer; aprender a ser; aprender a fazer e
aprender a conviver; também é explicitada a sociedade para a qual
se pretende formar, ao propor o “desenvolvimento da flexibilidade
para novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores”
(Inciso IV). Configura-se realmente aquilo que apontamos acima:
vivemos numa sociedade em que não há postos de trabalho
garantidos a todos e, portanto, devemos formar para as múltiplas
possibilidades que o indivíduo terá de criar para poder sobreviver.
Há uma indicação de constituir currículos por áreas, bem
como a adoção de resolução de problemas ou de projetos como
forma metodológica para a interdisciplinaridade ocorrer (Res. 03/
98, Art. 8º, inciso II). Constituir currículos por áreas é integrar?

Política, Educação e Cultura


151

Resolver problemas e trabalhar com projetos garante a


interdisciplinaridade? São duas questões que merecem
aprofundamento quando o assunto é integração curricular. A
princípio, a constituição de currículos por área parece ser a melhor
forma de integração. No entanto, parece-nos que, ao conseguir
estabelecer o trabalho conjunto de várias disciplinas, através de uma
área de conhecimento, não seria necessário trabalhar com projetos
e resolução de problemas. Metodologicamente, essas são formas
orientadas por correntes pedagógicas/psicológicas que postulam a
construção do saber pelo indivíduo, rompendo com o trabalho
sistemático dos conteúdos por parte do professor, indicando o
ecletismo presente na legislação.
O artigo 9º das DCNEM define que os conteúdos devam ser
trabalhados a partir da relação teoria-prática, entendida como forma
possível de aplicação na realidade do aluno. Se a relação teoria-prática

Coleção Sociedade, Estado e Educação


não for explicitada no interior dos currículos, para além da aplicação
da teoria à prática cotidiana, podemos reduzir o conhecimento a
uma perspectiva utilitária, pragmática, gerando problemas como o
não ensinar-aprender o que não se irá utilizar. Se remetermos a
afirmação para a EJA, considerando que os alunos já dominam os
conhecimentos que necessitam para estar em sociedade e no
mercado de trabalho, o que a escola deverá ensinar, então? Nessa
perspectiva, parece fácil avaliar e reconhecer saberes prévios.
Devemos compreender que aliar teoria à prática numa perspectiva
de emancipação é tornar a teoria um guia da ação e não simplesmente
aplicar o que se aprende no processo de trabalho.
Enfim, as possibilidades de formas de oferta e de organização
curricular propostas no PROEJA parecem estar num contexto de
embate político no interior do próprio MEC/SETEC, uma vez que
tanto possibilita à iniciativa privada maneiras de inserir-se nessa forma
de educação, garantindo os interesses do mercado, quanto oferece
espaço para uma implantação/implementação de políticas
governamentais comprometidas com a efetiva formação escolar/
profissional dos sujeitos que ingressarão nos cursos do PROEJA.

PARA CONCLUIR

Neste artigo, procuramos esboçar criticamente alguns


elementos que podem interferir no processo de implementação do

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


152

currículo integrado para o Ensino Médio Profissional na Modalidade


da Educação de Jovens e Adultos. Destacamos a importância do
currículo como possibilidade de luta pela hegemonia da classe
trabalhadora diante do famigerado discurso neoliberal que,
reiteradamente, procura sua consolidação/legitimação no campo
educacional. Isto exige, no aspecto legal, uma política educacional
comprometida com os trabalhadores, que deve ser construída a partir
da mobilização e luta política dos mesmos, para que, minimamente,
possa ser estabelecida enquanto lei e perseguida enquanto prática.
Observamos que vivenciamos um momento peculiar na
história da educação brasileira, marcado pela imposição visceral de
uma política educacional neoliberal, explicitada por Neves (2005)
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

como uma nova pedagogia da hegemonia do capital. Isso nos obriga,


enquanto profissionais da educação, reafirmar os nossos princípios,
razão pela qual lutamos pela escola pública estatal.
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Tomar como reflexão a legislação que direta ou indiretamente


se relaciona com o PROEJA, permitiu mostrar as contradições e
incoerências a serem enfrentadas para que possamos construir e
implementar um currículo que efetivamente expresse os
conhecimentos necessários à classe trabalhadora para sua
emancipação. Nestes termos, o PROEJA, embora não se proponha a
problematizar as causas que produziram a necessidade de
implementar a EJA – pelo contrário – carrega um cunho moral e
técnico superior aos problemas/entraves educacionais (lembremos
que o documento Base denomina o PROEJA como uma política
perene), pode, no espaço da contradição, dar conta de uma demanda
discriminada, humilhada, marginalizada do processo educacional.
Para tanto, as instituições públicas dos sistemas de ensino
estaduais e municipais bem como as instituições federais de educação
profissional (Universidade Tecnológica Federal do Paraná, os Centros
Federais de Educação Tecnológica, as Escolas Técnicas Federais, as
Escolas Agrotécnicas Federais, as Escolas Técnicas Vinculadas às
Universidades Federais e o Colégio Pedro II) devem assumir o PROEJA
com o comprometimento político com as camadas populares, por
um lado e, por outro, com a busca de implementar políticas que
solucionem os problemas de aprendizagem nas classes regulares.
Obviamente, é uma tarefa coletiva, para além do PROEJA. Este é o
desafio.

Política, Educação e Cultura


153

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº


9.394/96, de 20 de dezembro de 1996
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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-
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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-
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1998. Diretrizes Curriculares

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Nacionais para o Ensino Médio.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-
ca. Resolução nº 3, de 26 de junho de 1998
1998. Institui as Diretrizes
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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-
ca. Resolução nº 1, de 5 de julho de 2000
2000. Estabelece as Diretrizes
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5.154 de 23 de ju-
lho de 2004. Regulamenta o parágrafo 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41
da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, e dá outras providências.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


154

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-


ca. Resolução nº 1, de 3 de fevereiro de 2005
2005. Atualiza as Diretri-
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cação para o Ensino Médio e para a Educação Profissional Técnica
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2005. Institui, no âmbito das instituições federais de educação
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Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

2006. Institui, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração


2006
da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

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Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Política, Educação e Cultura


157

ELEMENTOS SOCIAIS DO MUNDO DO


TRABALHO NA FICÇÃO CINEMATOGRÁFICA:
PROVOCAÇÕES DE “O CORTE”
Georgia Sobreira dos Santos Cêa
Rosane Toebe Zen

INTRODUÇÃO

Coleção Sociedade, Estado e Educação


O filme O corte (Le Couperet), França, 2005, de Costa-Gavras [...] é
mais um filme-bomba com as características semelhantes às de uma
explosão que apenas detona o assunto e tem um final aberto a qualquer
interpretação. Desfecha inesperadamente uma vigilante mirada. Vale
o olhar (GUIMARÃES, 2006)1 .
Concordando com a crítica de cinema e aceitando o desafio
de expor uma interpretação acadêmica das provocações do filme,
este trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações a respeito
das mudanças estruturais no mundo do trabalho a partir de temas e
situações presentes no filme “O Corte” 2 . Após uma breve
apresentação da trama que se desenvolve no filme, ainda nesta
introdução, este artigo destaca o contexto econômico e político do
desemprego, suas implicações para a conduta humana diante da
ausência de oportunidades de ocupação produtiva e reflete, ao final,
sobre as alternativas para o enfrentamento da crise atual.

1 Dinara G. M. Guimarães participou como convidada do site <www.críticos.com.br>, tecendo conside-


rações sobre o filme O Corte. Seu texto, intitulado “Costa-Gravas no divã”, de junho de 2006, está
disponível em <http://criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?secoes =4&artigo=1034>.
2 Baseado em um romance de Donald Westlake (The Ax), o filme tem como título original “Le Couperet”.
O roteiro, elaborado por Constantin Costa-Gravas, que também dirige o filme, contou com a colabora-
ção de Jean-Claude Grumberg. José Garcia, Karin Ward e Geordy Monfils integram o elenco. A produ-
ção envolveu profissionais da França/Bélgica/Espanha e foi elaborado em 2005. No Brasil ele foi lançado
em 2006. 122 min.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


158

O filme que serviu de provocação para a elaboração deste artigo tem


roteiro e direção de Costa-Gravas3. Através de “O Corte”, o cineasta
retrata com doses de humor as conseqüências que o trabalhador vem
sofrendo com a intensa reestruturação produtiva, sobretudo o
desemprego por ela causado.
“O Corte” apresenta a angustiante rotina de Bruno Davert, um
engenheiro, alto executivo da indústria de papel, que é demitido da
empresa em que trabalhou durante quinze anos, depois de um processo
de fusão empresarial e de reestruturação produtiva que incluiu cortes
de funcionários e alocação de filial da indústria em outro país onde a
mão-de-obra é mais barata, e a matéria-prima abundante. Durante os
primeiros meses de desemprego, Bruno Davert vive como se estivesse
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

gozando merecidas férias. A indenização rescisória permitiu manter a


família durante algum tempo com o padrão de vida a que estavam
acostumados. Diferentemente do que imaginara, conseguir outro
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

emprego torna-se tarefa muito difícil. A elevada qualificação para o


trabalho e os anos de experiência, que dão a seu currículo um nível de
excelência de difícil comparação, não lhe ajudam a ingressar numa
nova ocupação, ao contrário: suas credenciais são freqüentemente
consideradas elevadas demais para as vagas disponíveis e ele próprio
se angustia ante a possibilidade de ocupações distantes de suas
capacidades.
Depois de dois anos desempregado, Bruno entra em desespero.
A família de Davert sofre as dificuldades do forçoso rebaixamento do
padrão de vida. Somente sua esposa, Marlène, trabalha em dois
subempregos (bilheteira de cinema e auxiliar de um consultório) que
mal lhe possibilitam arcar com as despesas elementares da casa. Bruno
Davert também sofre a depreciação de sua imagem pessoal, pois já
não se sente mais digno do convívio social e tem dificuldades em
manter a chefia da família, ter segurança na relação amorosa com a
esposa e orientar o casal de filhos. No auge do desespero, elabora um
plano para conseguir o emprego que, acredita, lhe devolverá a
dignidade. Entretanto, seu plano prevê a eliminação física do engenheiro
responsável pela produção de papel da Arcádia, maior indústria do
ramo de produção de papel. Mas somente isto não bastava: precisava
também eliminar todos aqueles em condições de disputar este cargo.
O filme se desenvolve a partir dessa trama armada pelo protagonista.

3 Konstantinos Costa-Gavras nasceu em Loutra-Iraias, Grécia, em 1933. Naturalizado francês, o


cineasta faz uso da crítica e da denúncia política e social como elementos fortes de seus filmes.
Os interessados em sua filmografia podem encontrá-la em <http://www.adorocinema.com/
personalidades/diretores/costa-gavras/corpo.asp>.

Política, Educação e Cultura


159

Apesar do aparente suspense que o filme possa representar, o


clima predominante da trama é a comédia. As situações em que Bruno
Davert se vê envolvido para atingir seu objetivo final são hilárias, e
mexem com o ideário do expectador. Afinal, do que seríamos capazes
para conseguirmos um emprego? Que diferença há em matar agora
por um emprego, ou matar na guerra? Se a sociedade vive em guerra
(ainda que não declarada), então matar para sobreviver é ou não um
problema moral? Que sentido o trabalho assume na vida dos sujeitos
e que tipo de sentimentos e de atitudes sua falta pode desencadear?
Essas e muitas outras são questões despertadas pelo filme, e provocam
a reflexão no expectador.

CONTEXTO ECONÔMICO E POLÍTICO DO DESEMPREGO


E SU AS
SUAS INTERF ACES
INTERFACES COM A SUBJETIVID ADE:
SUBJETIVIDADE:

Coleção Sociedade, Estado e Educação


PROVOCAÇÕES E DENÚNCIAS DE “O CORTE”

A situação de desemprego que o personagem principal do filme


vivencia integra o cotidiano de milhões de pessoas. Segundo estudo
da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2008, p. 9), em 2007
foram identificados 189,9 milhões de desempregados no mundo. Esta
situação se agrava mais ainda visto que, no mesmo ano, “cinco de
cada diez personas con empleo4 eran trabajadores familiares no
remunerados5” (OIT, 2008, p. 12), o que demonstra o significativo
crescimento de formas precárias e não formais de emprego.
O desemprego, mote central de “O Corte”, é o feito social
mais evidente do processo de reconfiguração do capitalismo, iniciado
nas últimas três décadas.
Esse processo, decorrente das crises de produtividade
experimentadas pelo capitalismo6 a partir dos anos 1970, impôs
alterações no regime de acumulação fordista e na regulação econômico-

4 Segundo a OIT (2008, p. 9), “A expressão ‘pessoas com trabalho’ compreende todas as pessoas
empregadas conforme a definição da OIT, incluídas as pessoas que trabalham por conta
própria, as que têm um emprego, os empregadores e os familiares não remunerados. Por
conseguinte, não se faz uma distinção entre o sector da economia subterrânea e o da economia
oficial” (tradução livre).
5 “[...] cinco em cada dez pessoas com emprego eram trabalhadores familiares não remunera-
dos.” (tradução livre).
6 “Embora haja diferentes interpretações da crise do capitalismo contemporâneo (ARRIGHI,
1996, 1997; CHESNAIS, 1996, 1998; HARVEY, 1999; MÉSZÁROS, 2002, 2003), é traço

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


160

política do Estado keynesiano. O cenário do mundo do trabalho passa


a incorporar mudanças que tornam mais flexíveis os processos de
trabalho, os mercados de trabalho, os produtos e padrões de consumo
(HARVEY, 1992, p. 140); em suma, incorpora a flexibilização das
relações de trabalho, que teve como principal conseqüência social a
significativa redução quantitativa do trabalho formal na produção.
Antunes (1995) afirma que ocorreu uma processualidade
contraditória, que de um lado reduziu o operariado industrial e fabril,
mas que de outro aumentou o subproletariado, o trabalho precário e o
assalariamento no setor de serviços. Segundo o autor, configura-se
uma nova morfologia do trabalho, assim descrita:
[...] além dos assalariados urbanos e rurais que compreendem o operariado
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

industrial, rural e de serviços, a sociedade capitalista moderna vem


ampliando enormemente o contingente de homens e mulheres
terceirizados, subcontratados, part-time, que exercem trabalhos
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

temporários, entre tantas outras formas assemelhadas de informalização


do trabalho, que proliferam em todas as partes do mundo. [...] Esta
complexidade do mundo do trabalho nos instiga a refletir sobre as
condições deste ‘novo proletariado’ [...]” (ANTUNES, 2005, p. 17).
A demanda efetiva de força de trabalho, por meio de vínculos
formais, que outrora fora um dos principais sinais de êxito da era
fordista (HARVEY, 1999, p. 125), perde espaço para uma lógica fundada

comum a identificação, no processo de reprodução ampliada do capital, da predominância da


sua forma financeira sobre a sua forma produtiva, tornada possível, fundamentalmente, pela
abundância de capital proveniente da prosperidade do regime de acumulação fordista, assen-
tado na relação (keynesiana) entre aumento da produtividade do trabalho e ampliação das
condições de reprodução do capital e do trabalho. Nesse contexto, a regulação exercida pelo
chamado Estado de bem-estar social ou Estado keynesiano (ou outra variante de Estado
intervencionista no período, como o militar no Brasil), que visava controlar as relações entre
ganhos do capital e do trabalho, se torna inviável. Isso porque se ampliam as possibilidades dos
ganhos do capital se efetivarem majoritariamente fora dos limites tributários e geográficos
impostos pelos acordos de produtividade e, portanto, ao largo da necessidade de incorporação
maciça de trabalhadores na produção (pleno emprego) e longe da intervenção direta do Estado
nas relações que passam a se estabelecer entre capital e trabalho, com ampliada vantagem
para o primeiro, o que vai exigir a reorganização da esfera produtiva em novas bases [...]. A
regulação a ser exercida pelo Estado capitalista, visando sustentar e garantir socialmente o
regime de acumulação que se torna predominante, vai ser justificada por teses e mediada por
políticas neoliberais, visando legitimar a predominância do individualismo do mercado sobre a
socialização da produção. Os custos sociais da predominância do capital financeiro sobre o
capital produtivo (desemprego, acentuação das fissuras sociais, ampliação da pauperização e da
miséria, etc.) e a ampliação da concentração do capital sem demonstração efetiva do aumento
esperado da sua capacidade de acumulação são as principais evidências não só da permanência
da crise, mas de seu agravamento” (CÊA, 2003, p. 39).

Política, Educação e Cultura


161

no enxugamento do quadro de trabalhadores das empresas. O


desemprego, a partir de então, assume um caráter de positividade,
uma demonstração de que as empresas estão envidando esforços para
o aumento da produtividade.
No filme, a empresa Arcádia, após o processo de fusão – que
envolveu a empresa em que Davert trabalhava – e de enxugamento de
seus quadros profissionais, implementa uma maciça campanha
publicitária, informando sobre o processo de reestruturação que lhe
permitiu adquirir a liderança no ramo de papel reciclado.
O perfil profissional fordista – em que a mão-de-obra era peça
central da produção, no qual cabia ao trabalhador a realização de
atividades produtivas bem definidas, atendendo às necessidades da
produção em massa na empresa verticalizada – passa a sofrer
significativas alterações e configura-se uma nova forma de exploração
do trabalho, pautada na flexibilidade.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


A flexibilização contou, dentre outras, com três importantes
ferramentas de operacionalização das transformações no mundo do
trabalho: a reestruturação produtiva, o neoliberalismo e o processo de
financeirização da economia. A reestruturação produtiva afetou de forma
direta os meios de produção – empresas, maquinário, tecnologia,
matérias-primas, organização do trabalho coletivo, etc. –, as formas
de contrato e as exigências de competências profissionais para o uso
mais eficiente da força de trabalho; o neoliberalismo, por sua vez,
consiste na reforma do Estado, para que este, enquanto estrutura de
comando político do capital7, corresponda às novas demandas do
regime de acumulação; a financeirização8 ocorreu pela diminuição da

7 Mészáros (2002, 2003) compreende o Estado moderno como a estrutura de comando ou


controle político do capital. Conforme explica, “é a completa ‘ausência’ ou ‘falta’ de coesão
básica dos microcosmos socioeconômicos constitutivos do capital [produção e controle, produção
e consumo, produção e circulação] – devida, acima de tudo, à separação entre o valor de uso
e a necessidade humana espontaneamente manifesta – que faz existir a dimensão política do
controle sociometabólico do capital na forma de Estado moderno” (id., 2002, p. 123). É a
“subordinação necessária do ‘valor de uso’ – ou seja, a produção para as necessidades humanas
– às exigências de auto-expansão e acumulação do capital” (id., ibid., p. 100) que proporciona
ao capitalismo a sua capacidade de expansão, ao mesmo tempo em que passa a necessitar do
Estado como sua estrutura de comando político que deve diminuir, na medida do necessário, os
desequilíbrios e as distorções das dimensões constitutivas do sistema do capital.

8 Termo utilizado por diversos autores (CHESNAIS, 1996, 1998; SALAMA, 1999) para designar
o sentido e a forma predominantes de expansão do capital, a partir dos anos 1970. Segundo
Chesnais (1996, 1998), as empresas (corporações) não atuam somente como unidades produ-
tivas, mas também como ativos financeiros que se desdobram em autofinanciamento e aplica-
ção financeira, num processo que acaba por criar um novo paradigma de organização e uma
nova estratégia tecno-financeira.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


162

participação do setor produtivo da mais-valia socialmente produzida,


que passou a ser concentrada, em sua maior parte, no setor financeiro.
A financeirização da economia e a reestruturação produtiva são
expressões de um processo amplo e complexo. Seus impactos atingem
todos os setores produtivos, das esferas urbana e rural. Enquanto as
indústrias concentram suas produções em atividades centrais,
terceirizando serviços e atividades secundárias a empresas menores
ou a trabalhadores organizados em subcontratos, a agricultura foi
atingida pela inviabilização da produção em pequena escala, ao mesmo
tempo em que a propriedade da terra sofreu novo processo de
concentração fundiária.
Esse conjunto de transformações foi identificado por Harvey
(1992) como expressão do esgotamento do fordismo, abrindo espaço
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

para a consolidação de um novo regime de acumulação. Para o autor,


está a ocorrer uma transição no regime de acumulação e no modo de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

regulamentação social e política a ele associado, “[...] um processo de


transição rápido, mas ainda não bem entendido” (HARVEY, 1999, p.
134)9 .
O autor denomina as constantes transformações nas relações
capitalistas como um processo de “acumulação flexível”, que designa:
[…] flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho,
dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de
setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento
de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional
(HARVEY, 1992, p. 140).

9 Com base em Harvey (1999), pode-se sintetizar o regime de acumulação flexível da seguinte
maneira: “No âmbito da organização do trabalho, observa-se a flexibilização dos processos de
reprodução do capital – nos quais as empresas passam a também atuar como ativos financeiros
–, a flexibilização dos processos de trabalho – nos quais a aplicação intensiva da tecnologia
permite a variabilidade na produção de mercadorias e na prestação de serviços, rompendo com
o caráter rígido da base técnica fordista –, além de uma mobilidade intensa nos mercados de
trabalho e de consumo. À diminuição exponencial dos custos da produção, por conta do
aumento da produtividade advinda das inovações tecnológicas, corresponde um aumento, em
mesma medida, da exploração absoluta e relativa da força de trabalho, agravado pelo rompi-
mento com o pacto social fordista de pleno emprego. Daí o sentido de uma base produtiva
flexível, que é uma outra dimensão do processo de transferência do capital produtivo para o
âmbito da reprodução fictícia do capital financeiro, o que promove a volatilidade deste em
relação aos diferentes mercados de capitais mundiais, em busca de maiores rendimentos” (CÊA,
1999, p. 40).

Política, Educação e Cultura


163

Como instrumento regulador dessa nova configuração, o Estado


capitalista tem as suas funções alteradas. Nos países do capitalismo
central, as políticas de caráter neoliberal tiveram como alvo prioritário
o estado de bem estar social e suas estruturas adjacentes. Conforme
Vasapollo (2005), na Europa, durante a vigência do Estado keynesiano,
a população foi massivamente atendida, ao menos no que se refere às
necessidades básicas: saúde, educação, trabalho, assistência social.
Nos países periféricos, que jamais tiveram a consolidação desta face
do Estado, os principais alvos foram as instituições e os mecanismos
relacionados aos poucos direitos sociais conquistados pelo trabalho
ao longo da história republicana (BOITO Jr., 1998). O trabalho
assalariado, condição para a sobrevivência da classe trabalhadora no
modo de produção capitalista, é um desses principais alvos.
O resultado mais brutal destas transformações foi a expansão,
sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge

Coleção Sociedade, Estado e Educação


o mundo em escala global, sendo a conseqüência social mais impactante
das mudanças econômicas e políticas em curso. Como estratégia
ideológica mais evidente, o pensamento (neo)liberal burguês produziu
o preceito de que a posição dos indivíduos no mercado de trabalho é
imediatamente definida pelos méritos individuais, para os quais seriam
determinantes a qualidade de seus atributos, a gama de seus
conhecimentos e a eficácia real de suas capacidades pessoais
(MACHADO, 1998).
No filme de Costa-Gravas, tal ideário é posto a nu. Se em outras
fases do modo capitalista de produção as mudanças no modo de
produzir resultaram mais danosas aos trabalhadores com níveis de
qualificação inferiores, o atual modelo consegue dar-se ao luxo de
também dispensar trabalhadores altamente qualificados, como é o caso
do protagonista do filme.
A despeito da complexidade e das contradições deste processo,
a cada membro da sociedade se impõe o desafio de se inserir nas
relações sociais e realizar suas necessidades pessoais. Para tanto, são
necessários, aos trabalhadores, o ingresso, o exercício de atividades e
a vivência de experiências no âmbito do mercado de trabalho. A avaliação
de sua competência passa, portanto, primordialmente, pela capacidade
de internalização, aquiescência, submissão e resposta ao conjunto de
preceitos, normas e regulações que caracterizam histórica e
concretamente o jogo do mercado de trabalho e da relação salarial.
Nesse contexto, verifica-se que as estruturas formais (Estado,
empresas), tanto nos países centrais como nos periféricos, têm tomado

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


164

iniciativas no sentido de estimular as atitudes individuais de


enfrentamento do desemprego, sempre no horizonte e nos limites das
possibilidades apresentadas pelo atual momento de configuração do
processo de reprodução ampliada do capital (subemprego,
terceirização, informalidade, etc.).
Segundo Antunes (2004), a partir dos anos 1970, quando
ocorrem os primeiros impulsos do processo de reestruturação
produtiva, as empresas passam a adotar novos padrões organizacionais
e tecnológicos. Na gestão do trabalho, métodos denominados
participativos são incorporados à produção, atuando como mecanismos
que procuram o envolvimento dos trabalhadores nos planos das
empresas.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

A questão da participação dos trabalhadores no processo de


trabalho – seja ela em maior escala (como nos países do capitalismo
avançado e nas empresas mais fielmente organizadas segundo o
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

paradigma toyotista), seja ela em menor escala (como no caso de


países como o Brasil e das empresas de menor porte, onde ainda
predomina o referencial fordista de organização da produção) –
evidencia o fato de que as relações de trabalho passam a necessitar,
mais que em momentos históricos anteriores, da adesão dos
trabalhadores às perspectivas e objetivos empresariais, conforme
atestam algumas análises.
Segundo Antunes (1995, p. 35), é por meio do “envolvimento
cooptado” do trabalhador que o capital apropria-se do “saber e do
fazer do trabalho”.
Para Alves (2000), a reestruturação produtiva em curso aprimora
a articulação entre coerção capitalista e consentimento operário, de
forma que a captura da subjetividade operária pela lógica do capital
acaba por tornar-se uma necessidade técnica do processo produtivo.
Gounet (2002, p. 46-47), numa interpretação semelhante,
destaca que a aceitação, a colaboração e a adesão à filosofia da empresa
por parte dos trabalhadores tornam-se elementos essenciais para a
efetivação de um novo modelo produtivo, de padrão flexível, integrado
e competitivo: “Se os trabalhadores rejeitam o sistema, ele não pode
funcionar” (id., p. 55).
Na ótica empresarial, essa ênfase na subjetividade operária
representaria uma ampliação da autonomia do trabalhador frente aos
processos de trabalho e uma redução da fragmentação entre pensar e
fazer, com significativo aumento da parcela de trabalho intelectual
envolvido na produção. Interpretações teóricas que se vinculam a essa

Política, Educação e Cultura


165

ótica, mesmo que de forma não assumida, postulam que a


reestruturação produtiva dos últimos vinte anos transformou,
irreversivelmente, o “trabalho operário em trabalho de controle, de
gestão da informação, de capacidades de decisão que pedem o
investimento da subjetividade” (LAZZARATO e NEGRI, 2001, p. 25).
Antunes (1995, p. 34) salienta o caráter aparente da suposta
eliminação da ruptura entre elaboração e execução que as alterações
nas formas de organização do trabalho estariam promovendo. Segundo
ele, essa interpretação prende-se a uma aparência, uma vez que
[...] a concepção efetiva dos produtos, a decisão do que e do como produzir
não pertence aos trabalhadores. O resultado do processo de trabalho
corporificado no produto permanece alheio e estranho ao produtor,
preservando, sob todos os aspectos, o fetichismo da mercadoria (id. ibid;
grifos do autor).
O que ocorre, de fato, é uma mudança qualitativa na forma de

Coleção Sociedade, Estado e Educação


ser da exploração do capital sobre o trabalho, seja agregando valor,
via utilização da tecnologia de ponta nos processos produtivos, seja
precarizando ainda mais as condições objetivas de trabalho, ou, ainda,
estabelecendo como critério de permanência e de inserção nos locais
de trabalho a completa adesão e concordância dos trabalhadores aos
ideais e objetivos das empresas; de toda forma, aprimora-se e refina-
se a especificidade do modo de produção capitalista como uma relação
de exploração do capital sobre o trabalho. Exploração essa que toma a
aparência de uma completa identificação entre os interesses do capital
e os interesses do trabalho, como se fosse possível que as necessidades,
capacidades, expectativas, sonhos e desejos humanos se tornem
imanentes às demandas de produção e reprodução do capital.
O personagem Bruno Davert é o emblema do sujeito que
incorpora, da forma mais radical, a exacerbação da lógica destrutiva
do capitalismo, nos tempos atuais. Ao internalizar a necessidade de
conseguir sua inserção produtiva no mercado de trabalho, por sua
própria conta e risco, o personagem conclui que deve utilizar-se da
mesma estratégia das empresas: é preciso dominar e fazer desaparecer
os concorrentes.
O filme, ao retratar a subjetividade de Davert, dominada e
dirigida pelo desespero do desemprego, e ao apresentar uma
possibilidade trágica de enfrentamento individual desse dilema social,
estimula a reelaboração das reflexões apresentadas ao final da
introdução deste artigo: a lógica destrutiva do capitalismo, típica dos
grandes detentores do capital, pode tender a ser assumida pelos

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


166

homens, na sua individualidade? Essa lógica pode chegar ao extremo


da eliminação física dos concorrentes, envolvendo inclusive os próprios
trabalhadores? Existem saídas individuais para a crise do capitalismo?
A continuidade do tratamento de outros temas provocativos do filme
pode proporcionar o enfrentamento dessas questões.
Num dos episódios de “O Corte”, quando Bruno e Marlène
Davert estão em sessão de terapia para casais, todos os problemas
conjugais (adultério da esposa, apatia social e descontrole emocional
de Bruno) giram em torno do desemprego de Davert. O psicólogo,
procurando convencer Bruno de sua parcela de responsabilidade sobre
a situação, diz-lhe: “Você não é o seu trabalho!”, ao que Bruno, imediata
e convictamente responde: “O trabalho é a minha vida!”. Davert,
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convencido de que seus problemas somente serão sanados se


conseguir outro emprego, empenha-se de forma insana em prol de
seu objetivo.
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Em tempos em que se pretende discutir o papel do homem na


sociedade, procurando retirar do trabalho a centralidade das relações
sociais, uma das maiores contribuições reflexivas que “O Corte” pode
proporcionar é justamente a recolocação deste tema em debate.
Desde o início da crise capitalista instaurada a partir dos anos
de 1970, passando pela dissolução da experiência histórica do
socialismo no leste europeu, a centralidade ou não do trabalho nas
relações sociais passa a ser um tema de disputa entre pensadores
pós-modernos e marxistas-marxianos. Os pós-modernos apresentam
como principal argumento questionador da centralidade do trabalho a
própria inovação tecnológica, o que daria ao homem a possibilidade
do não-trabalho, uma vez que a ampliação da capacidade de
comunicação e de interação permitiria que se extrapolasse e se
subvertesse a ordem “tradicional” de ocupação por meio de empregos.
Para os marxistas-marxianos, a possibilidade do não-trabalho não existe
para o trabalhador, pois sua condição de existência no capitalismo,
enquanto classe, está condicionada à exploração pela outra classe, a
detentora do capital.
[...] as teses que defendem o fim da centralidade do trabalho como traço
constitutivo da chamada “crise da sociedade do trabalho”, sua substituição
pela esfera comunicacional ou da inter-subjetividade encontram seu
contraponto quando se parte de uma concepção abrangente e ampliada
de trabalho, que contempla tanto sua dimensão coletiva quanto
subjetiva, tanto na esfera do trabalho produtivo quanto improdutivo,
tanto material quanto imaterial, bem como nas formas assumidas pela

Política, Educação e Cultura


167

divisão sexual do trabalho, pela nova configuração da classe trabalhadora,


entre os vários elementos aqui apresentados (ANTUNES, 2005, p. 38).
Além desta condição, há ainda uma outra, que aparece com
muita clareza no filme, e é parte fundante do pensamento marxiano: o
homem só se faz homem pelo trabalho.
Essa dimensão dúplice e mesmo contraditória presente no
mundo do trabalho que cria, mas também subordina, humaniza e
degrada, libera e escraviza, emancipa e aliena, manteve o trabalho
humano como questão nodal em nossa vida. E, neste conturbado limiar
do século XXI, um desafio crucial é dar sentido ao trabalho tornando
também a vida fora dele dotada de sentido (ANTUNES, 2005, p. 13;
grifo do autor).
No contexto atual, de crise do trabalho abstrato e de
individualização da problemática da precarização das ocupações e
escassez de empregos, são inúmeros os casos de trabalhadores que

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têm sua condição física e subjetiva abaladas. A perda de sentido da
vida, dentro e fora do trabalho, é um fenômeno cada vez mais
abrangente. Segundo Cêa e Murofuse (2007, p. 3-4),
Um dos principais objetos degradados [na relação homem natureza, por
meio do trabalho] é a própria dimensão biológica do trabalho, expressa
pela capacidade humana de mobilizar energias físicas e mentais que
restam desgastadas para além dos ambientes laborais. Ou seja, o
aniquilamento da saúde por força de uma dada forma de organização do
trabalho destrói não apenas o ser trabalhador, mas também o ser humano
que se manifesta em outras esferas, além daquela constituída pelo
trabalho alienado.
A gravidade desse quadro, subsumida pelos anúncios do fim
do trabalho10, é competentemente exposta por Costa-Gravas, numa
linguagem ficcional que é ao mesmo tempo denúncia e sinal de alarme.
Mas a situação apresentada no filme permite uma outra reflexão: apesar
das teses que postulam a centralidade de outras dimensões na vida
humana, o uso da força de trabalho não é dispensado como medida
de valor, como nos alerta Antunes (2005, p. 17):

10 “Como conseqüência das significativas mutações que ocorreram no mundo da produção e do


trabalho, nas últimas décadas do século XX, tornou-se freqüente falar em ‘desaparição do
trabalho’ (Dominique Meda), em substituição da esfera do trabalho pela ‘esfera comunicacional’
(Jürgen Habermas), em ‘perda de centralidade da categoria trabalho’ (Claus Offe), em ‘fim do
trabalho’ (Jeremy Rifkin), ou, ainda, na versão mais qualificada e critica à ordem do capital,
Robert Kurz, para citar as formulações mais expressivas” (ANTUNES, 2005, p. 59).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


168

[...] se o trabalho ainda é central para a criação do valor, o capital, por sua
parte, o faz oscilar, ora reiterando seu sentido de perenidade, ora
estampando a sua enorme superfluidade, da qual são exemplos os
precarizados, flexibilizados, temporários, além, naturalmente, do enorme
exército de desempregados e desempregadas que se esparramam pelo
mundo.
O drama vivenciado pela família de Davert – por ele e sua esposa,
especialmente – expõe claramente tal superfluidade. Precarizados e
desempregados, muitas vezes tratados como simples números em
estatísticas do mercado de trabalho, são homens e mulheres de carne
e osso, lutando por sua sobrevivência, encontrando estratégias diversas
para se manifestarem como mercadoria, ao mesmo tempo em que
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suas angústias, desesperos, carências e traumas denunciam os riscos


humanos da exacerbação da alienação do trabalho.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa das mais contundentes e profundas análises da forma


de ser do capital nos últimos tempos, Mészáros (2002, p. 41) adverte:
Encher buracos cavando buracos cada vez maiores – o que tem sido a
maneira predileta de solucionar os problemas na presente fase do
desenvolvimento – é algo que não pode continuar indefinidamente.
Descobrir uma saída do labirinto das contradições do sistema do capital
global por meio de uma transição sustentável para uma ordem social
muito diferente é, portanto, mais imperativo hoje do que jamais o foi,
diante da instabilidade cada vez mais ameaçadora.
Na ficção que deu origem às reflexões aqui apresentadas, é
outro personagem, que não Davert, que aponta a necessidade de se
vislumbrar uma lógica social capaz de eliminar o capitalismo e a
desumanização que lhe é parte integrante.
Enquanto Bruno Davert coloca em ação seu plano para
reconquistar o emprego, acaba, mesmo sem querer, estabelecendo
uma relação próxima com um de seus adversários que, assim como
ele, passou um longo tempo desempregado. Diante disso, teve que se
submeter a ocupações completamente distintas da anterior; de alto
executivo, passou a subempregado, atuando como balconista de um
pequeno e decadente restaurante. Bruno fica perplexo ao perceber
que Etienne Barnet, apesar de todas as dificuldades, consegue lidar de
forma centrada e tranqüila com a situação, apesar das adversidades.

Política, Educação e Cultura


169

Barnet, diferentemente de Davert, percebe que o problema não


é individual, portanto não o carrega como se fosse um estigma. Etienne
compreende que o desemprego e todas as demais mazelas que atingem
os trabalhadores são causadas pela lógica do capitalismo – ele esteve
desempregado, hoje desempenha uma atividade precária, distante de
sua capacidade produtiva e intelectual, mas sobrevive; mas se não
fosse ele a passar por isso, seria qualquer outra pessoa. Para o sistema
é indiferente quem fica desempregado ou não. Para o sujeito que está
desempregado é que isso ganha a conotação de um problema. Etienne
não prevê uma solução isolada ou individualizada para as dificuldades
por que vêm passando os trabalhadores: na sua concepção, eles só
terão solução quando o sistema inverter sua lógica, colocando o homem
no centro de tudo.
Quando, finalmente, Bruno Davert consegue dar cabo ao seu
plano e atingir seu objetivo, eliminando todos os seus adversários e

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ainda o sujeito que ocupava a vaga pleiteada, o expectador é induzido
a refletir sobre a possibilidade de que a solução idealizada pelo
personagem para resolver o seu problema pessoal pode não ser inédita,
e que ele próprio pode ser vítima de semelhante estratagema. Isso
porque, se o problema do desemprego, para Davert, foi solucionado,
para os demais desempregados ele ainda persiste. Portanto, a
mensagem final que a obra cinematográfica “O Corte” nos deixa é:
quando a solução dos problemas sociais é individualizada, eles tendem
a persistir. Se solucionados para alguns, são aguçados para outros. E
se todos, absurdamente, tiverem a mesma idéia para resolver o
problema do desemprego11 , então a humanidade tende a se extinguir.

11 No Brasil, em janeiro de 2006, a imprensa noticiou amplamente um crime movido pelo


mesmo motivo encenado na trama de Costa-Gravas: uma estagiária confessou ter planejado a
morte de duas colegas para conseguir uma vaga de emprego em uma indústria de derivados de
petróleo, em Cubatão, São Paulo. A jovem confessou que queria recuperar o emprego na
empresa e, como não havia mais vagas, decidiu planejar o assassinato. Uma das vítimas
sobreviveu, mas ficou gravemente ferida. Outra foi morta com cinco tiros na porta de casa, em
Santos. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI841213-EI5030,00.html.
Acessado em 20 fev. 2008.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação
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Política, Educação e Cultura


GRAMSCI E A EDUCAÇÃO: A RELAÇÃO ESCOLA-PARTIDO
NO CONTEXTO DA CONSTRUÇÃO
DA SOCIEDADE SOCIALISTA
Luiz Carlos de Freitas

INTRODUÇÃO

Gramsci é hoje no Brasil o mais citado intelectual da esquerda,

Coleção Sociedade, Estado e Educação


que fundamenta teoricamente os projetos de educação institucional, a
partir da ótica da classe trabalhadora. Possivelmente nenhum intelectual
da educação voltada para os trabalhadores consegue esboçar qualquer
reflexão teórica sobre este tema, sem lançar mão do pensamento
gramsciano. Contudo, percebe-se algumas lacunas na interpretação
da concepção de educação proposta por Gramsci. Creio que a grande
dificuldade destas interpretações está em relacionar a concepção de
educação gramsciana ao projeto de escola proposto por Gramsci e
como se daria a relação desta com a sociedade no contexto da luta de
classes.
Com isto não estamos afirmando que as teorias educacionais,
fundamentadas no pensamento gramsciano, não demonstrem
teoricamente que Gramsci era um defensor ardente do socialismo e
que se dedicava a esta causa agindo politicamente através de um partido.
A questão que levantamos é que a defesa de um modelo de escola, aos
moldes da Escola Única proposta por Gramsci, que não leve em
consideração a necessidade de uma ação mais organizada fora dos
muros da escola, contrapondo-se ao estado burguês, parece-nos que
não nos possibilita uma compreensão clara da proposta gramsciana
de escola.
Neste texto pretendemos analisar a forma como Gramsci pensou
um modelo de escola voltada para a formação integral do ser humano
e como esta escola se relaciona com a sociedade e com o partido
político. Para dar conta minimamente desta questão é preciso que se
leve em consideração o momento histórico vivido por Gramsci, seu
envolvimento com o movimento revolucionário internacional e sua

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


174

preocupação com as peculiaridades nacionais da Itália. É neste contexto


que Gramsci desenvolve seu projeto de Escola Unitária.
Levando em consideração o critério de totalidade do pensamento
de Gramsci, procuramos desenvolver nossa reflexão sobre a escola a
partir do entendimento de alguns de seus conceitos centrais. O conceito
de partido e o conceito de hegemonia foram considerados em nosso
trabalho como essenciais para a compreensão da relação de seu projeto
de educação com o seu projeto de sociedade. De posse de uma
compreensão mínima destes conceitos pudemos avançar com maior
clareza em sua teoria sobre os intelectuais, sobre a educação em seu
sentido amplo e sobre a educação formal proposta para a Escola
Unitária.
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Após este percurso, poderemos então ter uma visão um pouco


mais transparente do projeto de educação e de escola propostos por
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Gramsci e, talvez, possamos também melhor compreender se a escola


defendida por ele foi pensada como possível em qualquer sociedade,
se apenas para a sociedade socialista ou ainda enquanto interlocutora
entre a sociedade capitalista e o horizonte socialista a ser alcançado,
desde que acompanhada de uma luta pela transformação radical na
sociedade.

A CONCEPÇÃO DE PARTIDO EM GRAMSCI

Podemos observar dois momentos da compreensão de Gramsci


sobre o partido político. Um primeiro momento caracterizado pela
sua militância no Partido Socialista Italiano, de 1913 a 1919. E um
segundo momento que se inicia a partir da experiência “derrotada”
das greves que ocorreram em Turim no ano de 1919 e que culminam
com seu desligamento do PSI e a criação do Partido Comunista Italiano
em 1921. Compreender este processo de amadurecimento do
pensamento de Gramsci é essencial para a compreensão do
desenvolvimento de sua principal contribuição teórica para a organização
da classe trabalhadora. O conceito de hegemonia desenvolvido por
Gramsci e o papel do partido e demais instituições proletárias, incluindo
a escola, na construção da revolução socialista será gestado a partir
das constatações concretas que Gramsci tirou da sua militância prática
deste período.
No período de 1913 a 1919, Gramsci teve uma militância
comum dentro do PSI. Até aquele momento não havia perspectiva

Política, Educação e Cultura


175

revolucionária, a curto prazo, na Itália. A avaliação feita pela II


Internacional, a qual era filiado o PSI, era de que não estavam dadas as
condições objetivas para ocorrer uma revolução proletária, e que
portanto, caberia aos partidos de cunho socialista disputar o parlamento
como caminho para a tomada do poder.
A revolução socialista na Rússia, iniciada em 1917, coloca em
xeque o que era unanimidade em todos os partidos socialistas do
mundo que estavam ligados à II Internacional. O pensamento
mecanicista do marxismo, que direcionava as ações destes partidos,
os colocava em uma posição cômoda. Dado que a realidade concreta
do desenvolvimento capitalista não era ainda suficiente para que
estourasse uma revolução, não haveria porque se preocupar com ela.
No entanto, contrariando esta avaliação, Lênin e os bolcheviques tomam
o poder na Rússia, mesmo este sendo um país de capitalismo
extremamente atrasado. Teoricamente Lênin comprovou, através de

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seu escrito Imperialismo: etapa superior do capitalismo, que o capitalismo
já estava suficientemente desenvolvido a nível mundial e que esta seria
sua última etapa. Observando-o na sua totalidade, era possível derrotar
o capitalismo mesmo em países atrasados, desde que isto
desencadeasse uma onda revolucionária nos países desenvolvidos.
No caso dos socialistas da Itália, mantiveram, mesmo depois
da tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, uma posição
bastante apática.
O socialismo italiano da época de Gramsci era vítima do ‘esperismo’,
tanto da sua ala reformista, comandada por Filippo Tuiratti, para quem
a evolução econômica levaria ao socialismo (...) quanto da ala maximalista
(defensora do programa máximo da social democracia), cujo líder, Serratti,
dissera: ‘Nós marxistas, interpretamos a história e não a fazemos’, o que
o levava a ficar à espera do ‘grande dia’ da revolução (SECCO, 2006,
p.24).
Por este motivo, em 1919 Gramsci, juntamente com outros
militantes do PSI, dentre eles Tasca, Togliatti e Terracini, iniciaram um
debate interno no partido, tendo como principal instrumento de
divulgação de suas idéias a revista, criada por eles, denominada Ordine
Nuovo. A interpretação dada por este grupo, em especial Gramsci,
sobre o caminho revolucionário na Itália divergia daquele pelo qual
trilhava o PSI, esta visão do Ordine Nuovo era fruto da experiência
concreta da revolução bolchevique na Rússia.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


176

Os textos publicados nesta revista, especialmente os de


Gramsci, buscam demonstrar e convencer os militantes da necessidade
da construção da revolução já, ou seja, a partir do momento histórico
em que estavam vivendo. Por isso vão buscar nas organizações de
trabalhadores já existentes na Itália os embriões por onde começar o
processo de construção de um pensamento revolucionário que tencione
a luta de classes para a tomada do poder. Neste aspecto, cabe observar
duas questões que consideramos relevantes para diferenciar o
pensamento de Gramsci do pensamento do movimento socialista
dominante naquele momento: primeiro que este percebe a importância
da subjetividade para que a revolução ocorra de fato; e depois que já
havia condições objetivas, pelo menos na Itália, de se organizar a
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revolução. A partir destas duas constatações, possíveis principalmente


por causa do exemplo histórico dos bolcheviques, Gramsci se dedicará
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a pensar formas de instrumentalizar politicamente e cientificamente o


proletariado para tomarem e assumirem o poder na direção do Estado.
Como fazer esta formação é a grande preocupação de Gramsci, que o
levará a buscar nas condições objetivas que se apresentavam naquele
momento, observando principalmente a região mais desenvolvida da
Itália, em especial a cidade de Turim.
Como deveria agir o partido diante desta realidade? Qual deveria
ser sua função num momento de perspectiva revolucionária? Diante
de tais questões, Gramsci passará a valorizar as iniciativas dos
trabalhadores e a, ao mesmo tempo, defender que o partido será o
catalisador destas iniciativas. Não de forma passiva, mas de forma
dialética, influenciando e deixando-se influenciar pelas organizações
proletárias de massa: “Gramsci inventa os Sovietes italianos
procurando-os no movimento real, naquilo que já existe, isto é, nas
Comissões Internas, que devem ser desenvolvidas e transformadas
em organizações com um poder e com uma capacidade representativa
muito maior” (GRUPPI, 1980; p.74).
As greves ocorridas em 1919, na cidade de Turim, apontaram
os Conselhos de Fábrica como o órgão de representatividade legítima
do proletariado. Em muitos casos, estes conselhos ocuparam as fábricas
e passaram a dirigi-las, demonstrando uma alta capacidade organizativa
dos operários. Estes acontecimentos levam Gramsci a entender os
Conselhos de Fábrica da mesma forma que Lênin compreendeu os
Sovietes na Rússia pré-revolução socialista. Quando Lênin, em 1917,
afirma que os Sovietes são organizações com as quais o partido deve
ter relações diretas, certamente tem a clareza de que o partido não

Política, Educação e Cultura


177

conseguiria atingir a massa que os sovietes conseguiam, por isso seu


lema “Todo poder aos sovietes”. Gramsci terá a mesma compreensão
com relação aos conselhos de fábricas, afirmando que estes demonstram
capacidade de dirigir a massa, desse modo, o partido deve então estar
junto a estes conselhos, visto que os militantes alcançados pelas
organizações dos Conselhos de Fábrica são um número muito maior
do que os militantes do Partido Socialista.
A partir deste entendimento, a questão que se coloca ao partido
socialista é: como estreitar as relações políticas com os Conselhos de
Fábrica? Na visão de Gramsci e do grupo da Ordine Nuovo seria
necessário levar estes Conselhos a tomar as fábricas e passar a dirigi-
las. O papel do partido então seria o de radicalizar este processo
através de uma formação teórica e do convencimento político dos
conselhos, levando sempre em conta esta experiência concreta surgida
dos próprios operários e não transformando os conselhos em apêndice

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do partido. O que Gramsci desenvolve neste caso é uma concepção
de partido muito próxima da concepção que Lênin desenvolveu, em
sua obra “Que Fazer?” para a Rússia, em 1902, principalmente no que
diz respeito às críticas da linha social democrata assumida na II
Internacional. O PSI não passava de “um pobre tabelião que registra
as operações realizadas espontaneamente pelas massas” (GRAMSCI.
IN: GRUPPI, 1978, p.56). A principal crítica de Gramsci ao PSI era
sua impossibilidade de influenciar na formação da consciência
revolucionária do proletariado; esta impossibilidade não estava ligada
às questões objetivas do desenvolvimento histórico do capitalismo,
como afirmavam os dirigentes do partido, mas à concepção de partido
assumida pelo PSI. O PSI:
move-se, e não pode deixar de fazê-lo, preguiçosa e tardiamente: expõe-
se continuamente ao perigo de transformar-se em objeto de conquistas
de aventureiros, de carreiristas, de ambiciosos. Por causa de sua
heterogeneidade, nos inumeráveis atritos de suas engrenagens, não está
nunca em condições de assumir o peso e a responsabilidade das iniciativas
e das ações revolucionárias, que os eventos incessantemente colocam
diante dele (Idem, p. 56).
Gramsci entendia o partido como a vanguarda do proletariado
e não como a massa de proletários. Contudo afirmava a importância
do trabalho do partido junto às massas sem se deixar levar pelos
interesses imediatos desta, mas também não negando a importância
de sua organização espontânea, como dos Conselhos de Fábrica.

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Outra questão que fica clara a partir da citação de Gramsci


vista acima é sua não aceitação de um modelo de partido aberto, em
que muitas tendências possam se abrigar para militar. Este modelo de
partido também foi duramente atacado por Lênin no período do governo
provisório russo, após a revolução democrático-burguesa de março
de 1917. Em “As Teses de Abril” podemos ver a seguinte declaração de
Lênin ao expor sua primeira tese, tratando sobre a questão da guerra:
“Não somos embromadores. Devemos apoiar-nos tão somente na
consciência das massas. Se é necessário permanecer em minoria, pois
bem, fiquemos em minoria. É conveniente, às vezes, recusarmos a
ocupar uma posição majoritária, não podemos ter medo de ficar em
minoria” (LÊNIN, 1967, p. 21).
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O partido, tanto para Gramsci quanto para Lênin, deveria dar


conta de criar um núcleo centralizado com sólida formação política e
disposição para a luta revolucionária e ao mesmo tempo, manter a
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ligação com as massas para elevar sua consciência sem, contudo,


tirar sua capacidade criadora.
Um novo elemento trabalhado por Gramsci de forma bastante
aprofundada é o conceito de hegemonia. Este conceito, que parte de
uma questão prática, coloca um grande desafio para o partido
revolucionário, que é a conquista da hegemonia. Mas afinal o que vem
a ser a hegemonia para Gramsci? Este termo não foi utilizado somente
por Gramsci, mas este dá uma centralidade a esta questão, devido à
realidade histórica colocada para ele: “Gramsci recupera explicitamente
o conceito teórico-prático de hegemonia, tomado de Lênin. O contexto
que preside a essa recuperação revela-se tão esclarecedor quanto uma
simples análise interna de seus componentes” (BUCI-GLUCKSMANN,
1980, p.229).
Embora Lênin tenha trabalhado com este conceito, acaba por
não se prender em uma análise mais sistemática sobre isto. Dado o
momento histórico russo, as vésperas da tomada do poder pelo
proletariado, coloca-se a necessidade de canalizar a energia para
aprofundar na questão da ditadura do proletariado. Por isso Lênin
concentrou seus esforços na busca de embasar teoricamente uma
forma de governo que conseguisse se manter no poder em um Estado
socialista. Além disso, havia neste período a social democracia da II
Internacional, que dava linha aos partidos e movimentos revolucionários;
sua tese era a de que seria possível a destruição do capitalismo pela
via pacífica e não haveria mais a necessidade da revolução violenta do
proletariado, portanto o papel dos comunistas seria o das alianças

Política, Educação e Cultura


179

políticas para a conquista de cargos no parlamento como forma de


garantir a transformação do estado burguês em estado socialista.
Segundo Lênin os principais teóricos que davam linha à II
Internacional, em especial Karl Kautsky, estavam deformando
completamente o marxismo e transformando-o em um pensamento
liberal, abandonando a sua essência, ou seja, a da necessidade da
revolução violenta e da instituição da ditadura do proletariado: “Com
o auxílio de sofismas patentes, extirpa-se do marxismo o que constitui
sua vida, a essência revolucionária; admite-se tudo no marxismo, exceto
os métodos de luta revolucionaria, a propaganda, o preparo desta luta
e a educação das massas nesse sentido” (LENIN, p.92).
Esta realidade colocada para Lênin o obriga a enfatizar
exaustivamente a defesa da ditadura do proletariado como a essência
de todo o pensamento marxista. Muitas vezes, por falta de
contextualização histórica, isto vem sendo interpretado como a negação

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da importância da questão da hegemonia, a interpretar a hegemonia
como sinônimo de ditadura do proletariado e até mesmo em colocar
em contraposição um conceito a outro. Desenvolveremos, a seguir, a
concepção de hegemonia em Gramsci e a relação da hegemonia com
o partido.

O PARTIDO E A CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA

Conforme já salientamos anteriormente o conceito de hegemonia


é desenvolvido por Gramsci, a partir de Lênin. Segundo Gruppi, o
termo hegemonia foi utilizado por Lênin pela primeira vez em 1905.
Não é por acaso a data de 1905, pois cabe lembrar que este foi o
período em que estourou, na Rússia, o “ensaio geral” da revolução
que desembocou na tomada do poder pelo proletariado em novembro
de 1917. O contexto histórico em que Gramsci desenvolve o conceito
de hegemonia é diferente deste, embora com elementos comuns.
Sem negar o pensamento de Lênin, o que Gramsci faz é alargar
o conceito de hegemonia: “(...) Gramsci – quando fala de hegemonia
– refere-se por vezes à capacidade dirigente, enquanto outras vezes
pretende referir-se simultaneamente à direção e à dominação. Lênin
ao contrário, entende por hegemonia, sobretudo, a função dirigente”
(GRUPPI, 1978, p. 11).
O conceito de hegemonia em Gramsci, conforme frisamos na
citação acima, diz respeito não apenas à ditadura do proletariado

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


180

enquanto força de coerção, mas também enquanto um mecanismo de


convencimento de classes sociais divergentes a trilharem juntas um
mesmo caminho.
Além desta capacidade de convencimento, a hegemonia em
Gramsci também diz respeito às alianças que o proletariado pode e
deve fazer para conquistar o poder. Neste caso, o conceito de hegemonia
é utilizado como direção ideológica de um movimento ou partido de
massas. Quando Gramsci desenvolve este aspecto da hegemonia, está
partindo de uma realidade concreta de seu país e suas diferenças
regionais e o que ele tenta unificar é a luta do proletariado de Turim
com a dos camponeses de regiões ainda não industrializadas da Itália.
Segundo ele, “a revolução apresenta-se praticamente como hegemonia
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do proletariado que guia seu aliado: a classe camponesa”. (Ordine


Nuovo, 1 de novembro de 1924. In: BUCI-GLUCKSMANN, 1980, P.
231). Gramsci não descarta as alianças com outras classes, como a
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pequena ou a média burguesia, por exemplo. Neste caso a hegemonia


aparece não só como direção, mas também como domínio dos demais
grupos com os quais o proletariado se aliou.
Um terceiro elemento que podemos destacar no conceito de
hegemonia formulado por Gramsci diz respeito diretamente à questão
ideológica. Por questão ideológica entende-se a capacidade de
convencimento teórico de uma classe sobre os indivíduos desta mesma
classe através do conhecimento científico e do aprimoramento cultural.
Quanto a esta questão, Gramsci salienta três graus de avanço de
consciência do proletariado para se constituir em pensamento
hegemônico: 1) econômico-corporativo, quando o pensamento deste
grupo se alinha por questões de lutas imediatas ligadas a uma categoria
de pessoas (comerciante, professor, metalúrgico, etc); 2) quando se
atinge a capacidade de se solidarizar com o grupo social mais amplo,
exigindo do estado mudanças legislativas que lhes garantam igualdade
jurídica. Contudo, este grau de consciência permanece ainda no campo
econômico e nos limites do Estado em vigor; 3) quando se adquire a
consciência de classe, isto é, quando percebe-se e convence-se da
necessidade de tomar o poder da classe dominante que dirige o Estado,
colocando em seu lugar outra classe que lhe dê nova direção (Cf
GRAMSCI, 2000, vol. 3, p. 41).
O conceito de hegemonia em Gramsci, conforme relato
acima, possui uma dimensão bastante ampla. As três características
apontadas são centrais para a compreensão da relação entre a
construção da hegemonia e o partido. As greves dos operários de
Turim em 1919 e 1920 marcam a reflexão de Gramsci sobre o papel

Política, Educação e Cultura


181

do partido diante das organizações dos trabalhadores. Até este


momento Gramsci enxergava os Conselhos de Fábrica como o agente
central da revolução na Itália. O “fracasso” destas greves e a
impossibilidade dos Conselhos tomarem o poder é que levam Gramsci
a teorizar sobre a função de um partido revolucionário: “(...) só a
derrota dos conselhos de Turim impôs a Gramsci a necessidade teórica
de aprofundar o conceito de hegemonia e a necessidade de uma ação
cultural que já se esboçava na experiência do semanário L’Ordine
Nuovo” (SECCO, 2006, p. 33).
A partir de então podemos compreender que quando Gramsci
e seu grupo de Ordine Nuovo rompem de vez com o PSI e criam o
Partido Comunista da Itália, a situação não era mais a mesma dos
anos de 1919 e 1920, quando parecia que o proletariado estava a um
passo da tomada do poder.
Ao observar a derrota dos Conselhos de Fábrica de Turim no

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que tange à ação revolucionária, Gramsci passa a teorizar a importância
da ação do partido, não apenas como dirigente político do movimento
proletário, mas também enquanto agente construtor da hegemonia.
Isto significa que a tarefa do partido era muito mais ampla do que se
imaginava, ou seja, não era mais possível acreditar que a revolução
estava por acontecer e que, portanto, bastava ao partido preparar-se
para a tomada do poder e dar direção ao movimento operário. Tampouco
se podia concordar com as alianças que o PSI realizava afirmando o
caminho reformista para a tomada do poder. Uma tarefa muito mais
complexa estava colocada para o partido que se propusesse a dirigir
as massas, este deveria ser um agente de formação e construtor da
revolução.
Diante desta realidade é que o PCI, criado pelo grupo do Ordine
Nuovo vai ganhando um novo caráter, o de pensar as táticas para a
construção da revolução na Itália. Isto não será tranqüilo dentro do
partido, pois se por um lado o rompimento com o PSI se dá
principalmente pelo caráter reformista deste, por outro deve evitar o
sectarismo. “De fato, durante o congresso de separação a questão
principal era distinguir os revolucionários dos não revolucionários
(reformistas). (...) Mas havia também naquele Congresso muitíssimos
comunistas que achavam que a revolução era imediata” (NOSELLA,
2004, p. 85-86). É este o ponto principal em que o conceito de
hegemonia, aprofundado por Gramsci, ganha importância no interior
do Partido. Gramsci rompe com o PSI por este ser um partido
reformista, mas também discorda daqueles que acham ser possível a
revolução sem a construção de alianças.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


182

Neste período o fascismo bate às portas do Estado italiano,


colocando para o PCI e outros partidos e movimentos populares a
necessidade de uma ação política para combater este fenômeno. Duas
posições se criam no PCI: uma, representada por Bordiga, era a de
radicalizar a luta pela tomada do poder unicamente por este partido; e
outra, representada por Gramsci, defendia a formação de uma Frente
Única construindo alianças com outros grupos ou partidos de cunho
popular. Nesta discussão, entre estas posições divergentes dentro do
PCI, Gramsci vai desenvolvendo e aprofundando teórica e praticamente
o seu conceito de hegemonia. Neste caso, podemos observar que o
partido, na visão de Gramsci, tinha duas tarefas importantes: a de
convencer os grupos de seu próprio partido a lançarem mão de uma
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ação hegemônica contra o fascismo e a de conseguir fazer alianças


com outros grupos sociais, podendo trilhar um mesmo caminho, mas
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sem perder a perspectiva da revolução.


Como vemos, a função do partido revolucionário para Gramsci
tem uma tarefa muito mais complexa do que apenas pensar formas de
ação política para governar. Além da capacidade de convencimento de
seus militantes e da agilidade para fazer alianças sem perder sua
identidade, a ação deste partido deve ser a de construir, mesmo antes
da existência de uma situação revolucionária, um pensamento
hegemônico entre as classes potencialmente revolucionárias:
É necessário então todo um processo afim de que as classes subordinadas
fiquem autônomas, se dêem um partido, uma linha política, uma
concepção cultural. Então conquistada esta autonomia, lutam para ficar
hegemônicas, dirigentes. Elas podem ficar hegemônicas ainda antes da
conquista do poder, isto é, podem difundir em toda a sociedade sua
própria concepção não só política, mas cultural. A hegemonia se conquista
antes da conquista do poder, e é uma condição essencial da conquista do
poder (GRUPPI, 1980, p. 82).
Talvez esta seja a maior contribuição do conceito de hegemonia
desenvolvido por Gramsci. Ao observar a realidade concreta italiana
após 1919, Gramsci avalia que a revolução naquele caso não aconteceria
sem uma sólida formação de consciência proletária. Esta formação
não se daria apenas no partido e com os militantes do partido, mas
deveria se estender a todas as classes oprimidas, ou seja, caberia ao
partido também a função de trabalhar na construção de uma formação
cultural que se contrapusesse ao pensamento burguês dos opressores
em todos os espaços que estivessem presentes os oprimidos.

Política, Educação e Cultura


183

Aqui, passamos então a perceber a importância da atuação do


partido na formação cultural da classe oprimida, entendendo esta
formação como instrumento necessário na construção do pensamento
hegemônico das classes oprimidas. È nesta perspectiva que Gramsci
vai desenvolvendo sua concepção de educação.

O PARTIDO E A EDUCAÇÃO

Segundo Nosella (2004, p. 106), antes de ser preso Gramsci já


havia desenvolvido escritos sobre a questão da formação cultural das
massas. Em um texto, inacabado, chamado “Alguns Temas sobre a
Questão Meridional”, Gramsci discute o papel dos intelectuais na
sociedade. Quando pensa sobre este assunto tem em vista a dificuldade
de unificação ideológica entre os operários do norte da Itália e os

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camponeses do sul desta. Por isso podemos afirmar que os escritos
de Gramsci do cárcere, no tocante à questão da educação e formação
dos intelectuais orgânicos do proletariado, não são meras reflexões
teóricas, mas uma necessidade concreta colocada pela realidade social
italiana ao partido, percebida por Gramsci na sua militância antes da
prisão.
Por isso, apesar de Gramsci ter sistematizado seu pensamento
sobre o partido e sua relação com a educação nos seus escritos na
prisão (cadernos do cárcere), parece-nos não ser possível uma
interpretação fiel deste pensamento se não levarmos em consideração
a preocupação central deste pensador, que era a construção da
revolução através da conquista hegemônica das classes trabalhadoras
(operários e camponeses). Esta construção da hegemonia seria a tarefa
primordial do partido. Em outras palavras, a concepção de educação
gramsciana está ligada à totalidade de seu pensamento social e, em
especial, à preocupação de como o partido deveria pensar um projeto
de educação que formasse os intelectuais orgânicos do proletariado:
O moderno príncipe deve e não pode deixar de ser o anunciador e o
organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de
resto, criar um terreno para um novo desenvolvimento da vontade
coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior
e total de civilização moderna (GRAMSCI, 2000, p.18).
O partido, denominado por Gramsci de “o moderno príncipe”,
portanto é o que deve definir e organizar a educação das massas, ou
seja, só faz sentido falar de educação em Gramsci e ser fiel ao seu

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


184

pensamento se a discussão levar em conta o projeto político


revolucionário vivenciado por este pensador.
Nesta perspectiva, Gramsci desenvolve seu conceito-proposta
de educação dos trabalhadores. Esta proposta será sistematizada por
Gramsci, apenas nos anos de 1931 e 1932, em especial no caderno
12 dos cadernos do cárcere. Cabe lembrar que, durante todo este
tempo que Gramsci estava na prisão, sempre procurou ser informado
o máximo possível, através de cartas de familiares, amigos e
companheiros do partido, sobre os acontecimentos políticos da Itália
e da União Soviética, onde estavam sua mulher e filhos. É importante
frisarmos esta questão para afastarmos a interpretação de que o
pensamento de Gramsci estava apenas no campo teórico. Pelo contrário,
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a leitura deste texto nos deixa claro seu diálogo com a realidade histórica
daquele momento, tanto na Itália fascista, quanto na Rússia socialista.
A questão sobre a qual nos cabe refletir então é: qual seria a
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

relação da educação proposta por Gramsci nos cadernos do cárcere


com a sociedade e o partido? No caderno 12, intitulado “Apontamentos
e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos
intelectuais”, esta questão é trabalhada por Gramsci a partir de um
duplo entendimento de educação. A princípio fala da educação em seu
sentido amplo, entendendo-a como toda formação humana, portanto
ressalta a importância de várias organizações que possuem um papel
educativo. Num segundo momento detém-se no conceito de educação
escolar institucional, neste caso pensa sobre a influencia da escola
tradicional na formação do ser humano. No caderno 13, “Breves notas
sobre a política de Maquiavel”, Gramsci ressalta o papel do partido na
construção de uma educação voltada para a formação completa do ser
humano. Prenderemos-nos, especialmente, na análise destes dois
textos para buscarmos uma melhor compreensão sobre como Gramsci
relaciona a educação, a escola e o partido.
A educação, tomada por Gramsci em sentido amplo, não ocorre
apenas na escola, mas em todos os grupos sociais. Com base nesta
afirmação é que ele define o conceito de intelectual orgânico e o
diferencia do intelectual tradicional: “O ponto central da questão
continua a ser a distinção entre intelectuais como categoria orgânica
de cada grupo social fundamental e intelectual como categoria
tradicional, distinção da qual decorre toda uma série de problemas e
de possíveis pesquisas históricas” (GRAMSCI, 2001, p. 23).
De acordo com Gramsci todo grupo social forma seus
intelectuais orgânicos, estes são responsáveis pela continuidade da

Política, Educação e Cultura


185

reprodução do modelo de sociedade defendido pelo grupo ao qual faz


parte ou pelo qual é formado. Na sociedade capitalista, por exemplo,
a burguesia, classe detentora do poder econômico, forma seus
intelectuais nas diversas instâncias da sociedade para que possam
reproduzir este sistema. Neste caso, a educação para a formação do
intelectual orgânico da burguesia começa desde o espaço da casa,
passando pelo trabalho e atingindo a sistematização dos currículos
escolares.
Quanto a este tipo de intelectual, ressalta Gramsci, não é formado
apenas pela classe dominante. O proletariado, enquanto classe
dominada no sistema capitalista, também forma seus intelectuais
orgânicos. Neste aspecto não é difícil afirmarmos a importância
fundamental do partido revolucionário na formação do intelectual
orgânico do proletariado. Além do partido, também faz este papel de
formador os sindicatos e outros grupos que reúnam trabalhadores

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em defesa de algum direito. No entanto, a necessidade imprescindível
do partido se faz no sentido de ligar as diversas lutas econômicas dos
trabalhadores à luta política-ideológica: “No partido político, os
elementos de um grupo econômico superam este momento de seu
desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais,
de caráter nacional e internacional” (Idem, p.25).
O partido revolucionário deve ter como preocupação central a
formação de quadros para a militância em todos os espaços onde se
encontre aglomeração de trabalhadores. Esta tarefa é muito mais
importante para a classe proletária do que para a burguesia, pois se a
ideologia burguesa está presente em todos os espaços da sociedade,
visto que esta vive sob a égide do capitalismo, o proletariado não
dispõe da mesma vantagem. Neste sentido, a formação de intelectuais
orgânicos e seu papel na sociedade já são algo bem definido, pois
estes se formam com clareza nos objetivos de sua formação e com
visão de classe bem definida. Por isso Gramsci se preocupará mais
profundamente com os intelectuais tradicionais, desenvolvendo então
uma teoria educacional paralela a um modelo de escola que garantisse
a formação completa do ser humano.
Se a formação dos intelectuais orgânicos se dá nos espaços
fora da escola institucionalizada, o mesmo não ocorre com os
intelectuais tradicionais. Estes, por não estarem militando em nenhum
partido ou grupo social, consideram-se e são considerados livres de
qualquer influência dos antagonismos de classes presentes na
sociedade. Contudo, dada a impossibilidade de neutralidade numa
sociedade de classes:

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


186

uma das características mais marcantes de todo o grupo que se desenvolve


no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista
‘ideológica’ dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que
são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz
de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (Idem,
p. 19).
Aqui, Gramsci deixa clara a importância da influência do
intelectual orgânico na educação do intelectual tradicional, além disso,
coloca um desafio ao partido, representante e organizador dos
interesses da classe dominada: pensar um modelo de educação que
garanta a formação completa do ser humano, possibilitando-o as
capacidades para dirigir a sociedade.
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Cabe-nos então a seguinte questão: como o partido


revolucionário deve pensar a construção de um modelo de escola e
educação? È possível a construção deste modelo antes da revolução?
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Estas indagações são sistematizadas por Gramsci no contexto da crise


da educação tradicional e emergência da educação profissionalizante
na Itália. É neste contexto que Gramsci desenvolve a sua concepção
de educação e escola, chamando de Escola Única.

O PARTIDO E A ESCOLA

O avanço da indústria e a necessidade de mão de obra para seu


funcionamento determinam o tipo de escola e educação oferecidas
pelo Estado aos trabalhadores. No caso da Itália nas primeiras duas
décadas do século XX, realidade da qual Gramsci vai partir para sua
proposta de escola, a tendência era a: “(...) de abolir qualquer tipo de
escola ‘desinteressada’ (não imediatamente interessada) e ‘formativa’,
ou de conservar um reduzido exemplar, (...) bem como a de difundir
cada vez mais as escolas profissionais especializadas” (Ibidem, p. 33).
O que Gramsci chama de escola “desinteressada” é a escola
humanista que se preocupa com a formação intelectual do ser humano,
e as escolas profissionais, que eram meros treinamentos de mão de
obra para o mercado de trabalho.
Diante deste contexto, resgata os valores da escola tradicional,
que não estava preocupada com a formação de mão de obra, mas
com a formação humana. Ao resgatar estes valores o faz, não no
sentido de defesa ao retorno da escola tradicional, mas no sentido
dialético de superação e transformação, contudo, sem negar as
contribuições deste modelo. É neste sentido que Gramsci desenvolve
um conceito de escola capaz de superar a dicotomia entre a formação

Política, Educação e Cultura


187

profissional e a formação humanista, e a denomina de Escola Única


ou Unitária.
Na perspectiva de Gramsci, a Escola Unitária deve ser a educação
sistematizada para as crianças e adolescentes até os quinze ou dezesseis
anos. Neste período, a educação escolar deve-se preocupar com a
formação geral e desinteressada, ou seja, não se pode dar um caráter
pragmático aos conteúdos escolares. Por outro lado, deve-se garantir
um equilíbrio entre o trabalho intelectual e o trabalho físico, deixando
a especialização profissional para a fase posterior à Escola Unitária.
Esta escola deve ser em período integral e mantida pelo Estado,
garantindo todos os espaços necessários para o bom desenvolvimento
da aprendizagem, inclusive os espaços físicos, tais como, bibliotecas,
dormitórios, refeitórios, salas de estudos, etc. Juntamente com os
aspectos físicos também se faz necessário uma reestruturação do

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currículo e a ampliação do corpo docente, visto que quanto maior a
possibilidade do professor relacionar-se individualmente com o aluno,
maior a garantia de aprendizagem.
Gramsci divide a educação escolar em dois níveis: o primeiro
nível, correspondendo a três ou quatro anos, em que a criança
aprenderia a ler, escrever, fazer contas e ter uma noção inicial de história
e geografia. Paralelo a esta aprendizagem deve-se introduzir lições de
direitos e deveres já criando o hábito de responsabilidade social. No
segundo nível da Escola Unitária deve-se se preocupar com a formação
da autonomia do estudante: “(...) criar os valores fundamentais do
‘humanismo, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessária
a uma posterior especialização, seja ela de caráter científico (estudos
universitários), seja de caráter imediatamente prático-produtivo
(indústria, burocracia, comércio, etc.)” (Ibidem, p. 39).
Embora a especialização profissional não seja a preocupação
da Escola Unitária, esta não deixa de tomar o trabalho como princípio
educativo. Contudo o conceito de trabalho desenvolvido nesta escola
não será o mero trabalho braçal, mas o conceito amplo de trabalho
enquanto atividade teórico-prática. Para Gramsci, não há possibilidade
de divisão total entre pensar e fazer, visto que toda atividade teórica
carece de esforço físico e toda atividade prática carece de teoria. “Isto
significa que, se pode falar de intelectuais, é impossível falar de não-
intelectuais, porque não existem não-intelectuais” (Idem, p. 52).
A Escola Unitária, portanto, deverá formar um novo tipo de
intelectual, diferente do intelectual tradicional e diferente do intelectual
orgânico e, ao mesmo tempo, comprometido com o conhecimento
científico e político da nova sociedade.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


188

O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto,


consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que cada um
possui em determinado grau de desenvolvimento, modificando sua
relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo
equilíbrio e fazendo com que o próprio esforço muscular-nervoso,
enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova
perpetuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma
nova e integral concepção do mundo” (Ibidem, p. 53).
Exposta sinteticamente a proposta de escola de Gramsci, não
podemos deixar de nos remeter à reflexão sobre a totalidade de seu
pensamento. Conforme demonstramos acima o intelectual Gramsci
foi antes de tudo um militante revolucionário, com formação política
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dentro do partido político, por isso afirmamos que não se poderia ter
uma boa compreensão de sua proposta de escola sem levar em
consideração os outros elementos que Gramsci julgava imprescindíveis
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

para a realização deste tipo de escola. “O advento da escola unitária


significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho
industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social” (Ibidem,
p. 40). Por isso devemos buscar o entendimento da escola unitária a
partir da relação desta com o tipo de sociedade que ela está inserida
ou deve se inserir. Tomando o partido revolucionário como agente
educativo e organizador da hegemonia do grupo ao qual ele representa
(o proletariado), é este que estaria encarregado de assumir esta proposta
de escola.
O partido revolucionário, ao se fazer presente nas organizações
populares, deverá buscar sempre convencer os trabalhadores a unirem
seus interesses imediatos com os interesses históricos. No sindicato,
organizar a luta econômica, mas sempre apontando e puxando a massa
para a necessidade da revolução. Na escola defender a educação estatal,
mas lutando constantemente para a destruição do Estado burguês e a
construção do Estado proletário. No caderno do cárcere número 13,
Breves notas sobre a política de Maquiavel, Gramsci aponta, em algumas
passagens, a importância do partido para uma reforma intelectual e
moral. Uma questão central colocada neste texto por ele é a se há
possibilidade de uma mudança cultural na escola sem uma mudança
na sociedade. Ao que parece sua resposta é não, pois: “(...) uma
reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um
programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de
reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se
apresenta toda reforma intelectual e moral” (GRAMSCI, 2000, p. 19).

Política, Educação e Cultura


189

E quem seria o responsável por esta reforma na sociedade?


Segundo Gramsci o partido político revolucionário, chamado por ele
de príncipe, aquele que: “(...) toma o lugar, nas consciências, da
divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo
moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as
relações de costumes” (Idem, p.19).
Diante de tais afirmações, parece ser possível constatar a
profunda ligação do partido com a transformação da escola, contudo,
também podemos perceber que a defesa que Gramsci faz da escola
unitária não é no sentido de um projeto utópico incapaz se realizar ou
que se deve esperar de uma mudança na sociedade para buscar sua
realização, mas de uma disputa constante no campo da ideologia
presente na escola. É exatamente nisto que consiste o papel do partido,
trabalhar incansavelmente na formação de intelectuais que possam

Coleção Sociedade, Estado e Educação


atuar nas escolas do capitalismo, sem se iludir com ela, e que ao
mesmo tempo consigam conquistar a massa para a defesa de um
outro modelo de escola e de sociedade.
Dadas estas constatações, entendemos que a proposta de
escola formulada por Gramsci é bem mais complexa do que transplantá-
la mecanicamente de uma realidade histórica, datada e localizada, para
qualquer outra realidade. Também não se pode pinçar de uma totalidade
complexa, como é o pensamento político de Gramsci, apenas a questão
educativa em seu sentido restrito. Por isso consideramos importante
e buscamos ressaltar neste texto alguns dos conceitos centrais do
pensamento gramsciano, como a questão da hegemonia, dos
intelectuais, da educação e da escola. Notamos que todos estes
conceitos desenvolvidos por Gramsci estão ligados a uma concepção
de sociedade e de partido.
Isto nos possibilita afirmar que a luta pela escola unitária, a
partir de uma concepção gramsciana, só se justifica se conjugada com
a luta pela sociedade igualitária, que rompa com a divisão do trabalho
intelectual e físico garantindo a todos a possibilidade de agirem como
intelectuais. Se “(...) todos os homens são intelectuais, mas nem todos
os homens têm na sociedade a função de intelectuais (...)” (GRAMSCI,
2000, p.18), é porque a sociedade capitalista não garante igualdade de
fato para que todos possam desenvolver suas capacidades. Logo é
preciso um outro modelo de sociedade para que a intelectualidade seja
comum a todos os seres humanos e para que a escola desempenhe
esta função.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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REFERÊNCIAS

BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o estado estado. Trad.


Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
GRAMSCI, Cadernos do cárcere cárcere. Vol. 2. edição e trad. Carlos
Nelson Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio
Nogueira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
---. Cadernos do cárcere
cárcere. Vol. 3. edição e trad. Carlos Nelson
Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira.
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.


GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci Gramsci. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda,
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

1978.
---. Tudo começou com Maquiavel – as concepções de Estado em
Marx, engels, Lênin e Gramsci. Trad. Dario Canali. 3ª ed. Porto Alegre-
RS: L&PM Editores Ltda, 1980.
Lênin, Vladimir Ilitch. As teses de abril
abril. Texto traduzido da versão
francesa. In: As palavras que abalaram o mundo: antologia bolchevique,
1917-1924. Ediições du Seuil: Paaris, 1967.
---. A revolução proletária e o renegado Kautsky Kautsky. In: Coleção
História e Política. Vol. 2. Livraria Editora Ciências Humanas Ltda.
NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci Gramsci. 3ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Cortez, 2004.
SECCO, Lincoln. Gramsci e a revolução revolução. São Paulo: Alameda,
2006.

Política, Educação e Cultura


A EDUCAÇÃO PELA CENSURA: O CONTROLE MUSICAL
COMO AGENTE DE EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL NA
DITADURA PORTUGUESA
Alexandre Felipe Fiuza

Qual relação pode ser estabelecida entre a música e a educação?


Parte-se da recorrente premissa de que a educação não se dá unicamente
através de processos formais, mas igualmente mediante outras

Coleção Sociedade, Estado e Educação


instâncias, entre estas destacamos os objetos artísticos, em particular
neste trabalho, a canção. Esta última, por sua vez, mescla duas
potencialidades presentes na palavra e no som. Sua conjunção produz
uma rica e influente manifestação artística.
Por conseguinte, a opção por se abordar a canção neste texto
também se justifica por sua inserção social através dos meios de
comunicação e da indústria fonográfica e editorial. Esta manifestação
cultural certamente contribuiu na formação cultural dos ouvintes,
inclusive em sua faceta de agente educativa. Há que se apontar ainda
o papel desempenhado pela canção na popularização da poesia
portuguesa a partir da década de 1960. Uma outra particularidade da
canção é a de que ela se trata de uma produção cultural de largo,
rápido e freqüente alcance. Sua utilização abarcou quase todo o
conteúdo televisivo e radiofônico das décadas de 1960 e 1970, e não
somente naqueles anos.
Logo, cabia aos artefatos culturais um papel significativo de
agente educativo não-formal, por isso a emergência de seu controle
pelo regime ditatorial português (1926-1974). Há que se enfatizar que
a censura não foi unicamente um jogo de opostos que contrapôs
ideologias políticas, dogmas, códigos de ética e de moral distintos.
Havia também em sua essência uma perspectiva de preservação do
status quo, uma política deliberada de calar uma outra proposta de
sociedade que viesse a alterar as estruturas de poder.
Tudo que fosse visto como indicativo de negatividade para o
regime era passível de veto: crimes, suicídios, greves e atuação de
sindicatos, benesses às multinacionais, denúncias de corrupção, mortes
por enchentes e por fome, guerra colonial, queda de avião, mendicância,

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


192

a doença do ditador português António Salazar, o nome e as ações de


opositores políticos, entre outros temas. Neste index também estavam
relacionados os nomes dos cantores de oposição que, na maioria das
vezes, não podiam sequer ser citados. No arquivo da Censura
portuguesa são dezenas de matérias de jornais em que os nomes dos
músicos José Mário Branco, Sérgio Godinho, Adriano Correia de
Oliveira, Zeca Afonso, Francisco Fanhais1 , estão riscados pela caneta
implacável dos censores. Estes e outros vetos nos textos, por sua
vez, retiravam a inteligibilidade dos textos e, como diria o jornalista
português Mário Castrim: “Os cortes eram tais que alguns amigos
chegaram, pelo que liam, a julgarem-me lelé da cuca” (CASTRIM, 1996,
p. 08).
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Se a canção contestatória foi controlada quando de sua


veiculação radiofônica, a ditadura não restringiu suas atividades ao
controle destas emissões. O rádio foi amplamente utilizado em
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diferentes fases pelo regime salazarista. Uma das searas raramente


observada pela historiografia portuguesa refere-se à política educacional
do regime, consubstanciada na programação da Rádio Escolar. Por
exemplo, este programa educativo, no período de outubro de 1960 a
junho de 1970, contou com uma série de disciplinas, tais como:
História, Música, Educação Moral, Canto Coral, Conto Infantil, Língua
Materna, Moral e Religião, Segurança no Trânsito, Recitação, Educação
Cívica, Educação Física, Educação Musical, Higiene, Geografia, Língua
Portuguesa, Audição Musical, Trabalhos Manuais e “Coisas e Casos”.
Uma constante previsível nestes estudos refere-se à vulgarização
de uma moral e de uma política capitaneada pelo regime e por suas
organizações, como a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa
Feminina, a Legião Portuguesa, a Fundação Nacional para a Alegria no
Trabalho, entre outras. Estas instituições tiveram seu auge nas décadas
de 1930 e 1940, mas ainda reverberaram nas duas décadas seguintes.
Notadamente, boa parte da programação cultural destas instituições
ignorava a produção intelectual e musical dos opositores a Salazar, o
que se traduziu numa freqüente exposição de uma imagem folclorizada
e ideologizada da “aldeia feliz” que era o país dos portugueses

1 Por exemplo, como aparece nas ordens transmitidas por telefone: “24/11/70 – Disco Década
de 60, de Luís Filipe Costa – SUSPENDER anúncio ou qualquer referência – coronel Garcia da
Silva”, ou ainda a proibição em relação ao entrevistado desta pesquisa, o ex-padre Francisco
Fanhais: “26/4/70 – Queima das Fitas do Porto. Espectáculo no teatro Sá Bandeira com baladas
– CORTAR o nome do abade Fanhais. Mas, para não se notar o CORTE, é melhor CORTAR
os nomes de todos intervenientes. Coronel Saraiva” (PRÍNCIPE, 1979, p. 59-51).

Política, Educação e Cultura


193

“orgulhosamente sós” de que falava Salazar, e que representavam


também as marcas de grandiosidade de uma “estética” defendida pelo
salazarismo.
A programação da Rádio Escolar é passível de comparação com
dois projetos implementados durante a ditadura brasileira: o MOBRAL
- Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado através da Lei número
5.379, de 15 de dezembro de 1967, que durou até o início da década
de 1980, e o Projeto Minerva, criado em 1970, que oferecia uma
emissão radiofônica “educativa” e “cultural”.
Desde os primeiros anos da ditadura salazarista, o processo
educacional implementado privilegiou uma verticalização cada vez maior,
mediante o controle das escolas de formação de professores, da
diminuição da escola obrigatória de cinco para três anos2, do controle
e da inculcação ideológica por meio dos manuais escolares, das
associações de cunho fascista, da repressão e da censura. Em meio a

Coleção Sociedade, Estado e Educação


tal política, a ausência de um projeto de erradicação do analfabetismo
manteve Portugal entre os países europeus de menor índice de
alfabetização. Em 1925, por exemplo, a França possuía uma taxa de
5% de analfabetismo, enquanto Portugal registrava uma taxa de 64%
de analfabetos3. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas
de Portugal, o analfabetismo atingia 49 % em 1940, trinta anos depois
ainda mantinha 33,7 % da população na mesma situação.
Numa sociedade com tão baixo nível de escolarização a canção
poderia ser um meio de formação cultural importante. Obviamente
não advogamos a mera inter-relação entre analfabetismo e consumo
musical. A canção é um fenômeno cultural de forte inserção social nos
mais diferentes países, independente da diferenciação entre as
economias nacionais. Apesar da dificuldade em se mensurar a recepção
destes textos musicais pela população, as canções podem ter
contribuído para fomentar o debate de uma série de temas abordados
pelos compositores portugueses. O que se sabe com segurança é a
sua forte inserção nos setores mais escolarizados da população, em
particular entre setores oposicionistas. Isto não quer dizer que tais
discursos não encontraram ressonância entre as classes populares,
mesmo nas mais próximas de uma cultura política de sujeição ao regime
autoritário.

2Base III da Reforma do Ensino Primário. Dec. – Lei n º 1969, de 20-5-1938.


3Disponível em: <http://www.setubalnarede.pt/content/index.php?action=articlesDetail
Fo&rec=1265>. Acesso em: 13 jun. 2007.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


194

Há que se levar em consideração que a censura que atingiu as


notícias e as canções não se restringiu aos textos mais politizados. A
exemplo do que aponta o pesquisador brasileiro Paulo César Araújo,
em seu livro Eu não sou cachorro não (2002), em relação ao veto aos
“cafonas” no Brasil, também em Portugal a Censura não teve apenas
como alvo os músicos e os textos mais engajados politicamente. Os
vetos baseados no âmbito moral, embora também indicativos da
desigualdade social, também foram recorrentes em relação ao que
pejorativamente se enquadra como “música pimba” portuguesa.
Estes temas proibidos aparecem, por exemplo, na resposta da
Censura ao pedido de aprovação das canções enviado pela Casa
Rapsódia4 . Neste parecer são examinadas sete canções, em três delas,
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

ao invés do “nada a opor”, é imposta a sentença “não é de divulgar”.


Por exemplo, o censor Manuel Nunes Barata vetou a letra de O Patrão
e a Criada, cujo trecho do texto dá a tônica do tema: “A mulher do
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Aguiar/ Ouviu barulho de noite/ e acordou sobressaltada/ levantou-se


sem ruído/ e foi dar com o marido/ agarrado à criada [...]”. Com o
mesmo espírito da letra anterior, Rosa do Fole também é vetada: “Lá
na minha rua/ vai subir pra lua/ mais um foguetão/ a rosa engordou/ e
o povo já diz/ que foi o João [...]”. Neste processo, aparece unicamente
o parecer do censor, datado de 30 de maio de 1974, e as letras das
canções em anexo. O nome dos compositores e dos discos que seriam
gravados não foram citados.
Na mesma pasta aparece um outro compositor atingido pelo
veto, desta feita em razão de uma crítica social um pouco mais ingênua.
Logo, compositores não enquadrados no que se convencionou chamar
de “músicos de contestação” (depois do 25 de abril, de “intervenção”)
também podiam ver suas canções proibidas quando expunham as
mazelas sociais presentes no país. Citamos trechos do parecer:

À Gerencia Discos Rapsódia


Em referência às seguintes letras que submetem a exame prévio cumpre-
me informar que superiormente se entendeu o seguinte:
A SAFIRA É QUEM SE AMOLA – não é de divulgar
S. PEDRO RAPIOQUEIRO – nada a opor
O POBREZINHO – não é de divulgar
[...]

4 IAN/ TT (Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo), SNI (Secretariado Nacional de
Informação)/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos
Musicais – Casa Rapsódia (Discos).

Política, Educação e Cultura


195

Lisboa, 31 de outubro.
O Chefe da Rep. Da Inf. Áudio-Visual – Manuel Nunes Barata. 5

Os dois vetos acima atingem os dois campos mais visados: o


moral e o político. Em A Safira é quem se amola, a dubiedade do texto
é percebida pelo censor, talvez em sua altamente “subversiva”
mensagem de cunho erótico: “Se o disco rola, consola/ também alegra,
a mocidade/ e a safira é quem se amola/ a rossar na cavidade [...]”. O
outro veto, de O Pobrezinho, perpassa o campo político, em particular
a mendicância tão escondida e combatida durante a ditadura, inclusive
em falas do próprio Salazar, aqui abordadas pelo compositor: “[...] É
tão triste, mendigar/ E tanto custa a sofrer/ Sai de casa, pra pedir/
Buscando o pão pra comer [...]”. Novamente os nomes dos
compositores não aparecem no processo.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Num outro parecer emitido novamente pelo mesmo censor
anterior, desta feita em 20 de abril de 19746, a apenas cinco dias do
fim da ditadura e da Censura, são aprovadas as letras de Ai Alice, Sete
e meia e Eu não sei o que fazer. Quanto à letra de A culpa é do mexelhão,
ao invés de colocar o freqüente “não é de se divulgar”, aparece a
seguinte justificativa para o veto: “Falta o mínimo de construção poética
e demasiado prosaico”. Logo, desta vez, a censura é, digamos, de
ordem lingüística/ literária. Aqui o censor assume sua vertente de crítico
literário, como nos pareceres encontrados no Brasil. Num outro
processo da Censura portuguesa, encontra-se registrado um desabafo
do censor em torno desta questão:
Todos estes poemas (poemas isto?!) são de uma mediocridade que, muito
embora, não subvertam no ponto de vista político, subvertem a cultura
e a língua Portuguesa, o que é ainda pior. Na realidade, a quem servirá
qualquer música que tenha por letras tais poemas?! Talvez que no espírito
com que se redigiram as instruções que oportunamente se dirigiram às
editoras de discos, se encontrem razões para não se aprovarem as letras
em causa.7
Para descontentamento do mesmo censor, seus “pedidos” não
são cumpridos e no mês seguinte ele redige um novo parecer em
resposta a Discos Rapsódia, desta vez em relação a sete canções (cujas
letras não estão anexas ao processo consultado). Destas, três foram

5 IAN/ TT, SNI/ Censura, cx. 461, RIAV, pacote 440, Pasta 1: Censura de Letras de Trechos
Musicais – Casa Rapsódia (Discos).
6 Idem.
7 Idem, nº. 1/ RIAV/ DGI, 03 jan. 1974.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


196

vetadas, enquanto duas receberam o julgamento: “pelas mesmas razões


referidas julgo não divulgar”, a terceira letra foi objeto de uma reflexão
um pouco mais atenciosa: “Em relação à letra denominada A Seringa
do Zé da Pinga, esta é de tal modo abastarda, revelando uma subcultura
que julgamos prejudicial divulgá-la de qualquer modo, mesmo através
da música popular”.8
Portanto, não bastasse a ausência do Estado no que se refere à
democratização da Educação, a produção musical advinda ou
representativa dos setores populares também foi perseguida e
enquadrada como subcultura. Por outro lado, estas canções também
foram objeto de crítica pelos músicos mais engajados, por sua
simplicidade discursiva e musical. O que não se atentou na altura é o
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

fato que ambos setores foram vítimas do mesmo controle censório.


Nossas últimas pesquisas realizadas numa outra documentação
da Censura, liberada no final do ano de 2006, revelam um grande
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

número de canções e poesias proibidas. No acervo do Serviço Nacional


de Informações, em particular na documentação da Direcção dos
Serviços de Espectáculos, lotado na Torre do Tombo, encontramos
uma série de canções e poesias vetadas pelo setor. A título de ilustração,
no dia 25 de abril de 1974, data da queda da ditadura portuguesa,
estava previsto um evento na Escola Secundária Gago Coutinho de
Alverca. A diretora da escola enviou um pedido de autorização à
Direcção Geral de Espectáculos para a realização de um evento de
teatro e de variedades9. Do programa foram proibidas três letras de
canções, entre elas, Venham mais cinco, de José Afonso: “[...] A bucha
é dura/ mais dura é a razão/ que a sustém/ só nesta rusga/ não há
lugar/ para os filhos da mãe”10.
Se a canção foi uma arma para a oposição, ela também foi
utilizada até fins da ditadura como agente formadora de opinião pelo
governo e por simpatizantes deste ideário. A instituição fascista

8 Idem, 10 fev. 1973.


9 IAN/ TT, SNI/ Censura, IGAC, proc. 27, 15 abr. 1974.
10 Esta canção foi gravada em 1973, mas parece tratar de Salazar que havia morrido três anos
antes. Afinal, depois de cair da cadeira, em agosto de 1968, foi exonerado pelo Presidente da
República de seu cargo de Presidente do Conselho. Acredita-se que ele tenha vivido um período
senil e que no início sequer sabia que não era mais o Presidente do Conselho (como ficou claro
numa entrevista a um jornal francês, cerca de um ano depois de seu afastamento). É a esta fase
que parece se referir a irônica letra da canção: “[...] Se o velho estica/ eu fico por cá/ se tem
má pinta/ dá-lhe um apito/ e põe-no a andar/ de espada à cinta/ já crê que é rei/ d’aquém, e
d’além-Mar [...]”. In: AFONSO. José. Venham mais cinco. Orfeu, 1973, nº. STAT-017.

Política, Educação e Cultura


197

Mocidade Portuguesa possuía inúmeros corais, e para disseminar seu


“canto colectivo”, publicava cadernos com letras e partituras dos hinos
e canções a serem executadas por todo o país. Por exemplo, em 1969,
publicou Cancioneiro para a Mocidade: canto colectivo, com músicas
já conhecidas desta “mocidade”, em que temas caros à ditadura eram
trabalhados: a guerra colonial, a nação unida, o passado heróico e o
folclore.
Na marcha Aqui é Portugal, letra de Mário Ribeiro e Manuel
Tino, temos a confluência de um dos dois temas mais recorrentes, ou
seja, do heroísmo e da unidade nacional: “A nossa história bela/ Está
cheia de tais feitos [...] Que Portugal, uno e valente/ Viverá
eternamente!” (CANCIONEIRO, 1969, p.19). Em Angola é Portugal,
também de Mário Ribeiro, a guerra colonial é justificada: “Com as
carnes retalhadas/ Pela acção do banditismo/ Angola dá grandes
mostras/ Do mais são portuguesismo!”. Portanto, os militares

Coleção Sociedade, Estado e Educação


portugueses eram heróis, ao passo que os rebeldes independentistas
eram “bandidos”. Tal imagem é reiterada e de forma mais explícita
ainda: “O inimigo é perverso/ Persistente e desleal/ E acima de tudo
quer/ Dar cabo de Portugal”.
Além destas máximas, o autor enfatiza na partitura o ritmo
exigido: “Marcial, sempre deciso [sic!] e bem ritmado”
(CANCIONEIRO, 1969, p. 23). Como diria o escritor português José
Cardoso Pires em seu livro Dinossauro Excelentíssimo: “A Rádio e a
Televisão transmitiam-na entre marchas invencíveis e compassos de
procissão, um-dois, esquerda-direita, Laus Deo; o altifalante do gabinete
despejava-a continuamente” (PIRES, 1974, p. 65).
Em relação à documentação da Censura portuguesa, deve-se atentar à
natureza das fontes na medida em que são expressão da visão oficial
produzida pelo Estado e, como tais, devem ser balizadas a partir dos
debates políticos e culturais atinentes ao período. Logo, a observância de
grupos sociais concretos, como os músicos e as expressões políticas que
estes carregam, é fundamental para o entendimento do embate entre
músico e Estado.
A Censura, em seu oficio quase inquisitorial, interditava textos
de cunho político, erótico ou qualquer outro tema que questionasse a
ideologia do Estado Novo português. Contudo, nem sempre era o
texto o objeto do veto, por vezes, bastava o nome do autor (a) para
que viesse a interdição da obra, chegavam a proibir até mesmo o
nome de tradutores de obras estrangeiras quando estes não fossem
ligados ao governo. O fato é que após a queda da ditadura, os

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


198

pesquisadores entraram em contato com inúmeros documentos que


apontaram a incidência e o alcance da atividade censória em Portugal.
Por exemplo, somente em janeiro de 1974, segundo relatório da
Comissão de Censura à Imprensa, foram suspensos de circulação
138 títulos e, destes, 71 foram reprovados e proibidos de circular
(RODRIGUES, s/d, p. 78). Na literatura não era muito diferente, o que
levou a uma progressiva autocensura e uso freqüente de metáforas, a
exemplo das letras das canções:
A censura oficial ou oficiosa impunha ao escritor uma permanente e
insidiosa auto-censura, apenas ultrapassada pelo engenho próprio de
escrever entrelinhas ou de encontrar metáforas apropriadas. Assim,
palavras como aurora ou amanhecer passaram a significar socialismo,
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

primavera/ revolução, camarada/ prisioneiro, vampiro/ polícia, papoila/


vitória popular. (RODRIGUES, s/d, p. 80)
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Um dos mais censurados no campo da música e da poesia foi


o compositor José Afonso11. Mesmo com o acidente sofrido por Salazar
(ao cair, literalmente, da cadeira - fato que o afastou definitivamente
do poder em 1968 e que o levou à morte em 1970), seu sucessor,
Marcelo Caetano, a exemplo do primeiro, professor universitário da
cadeira de Direito, manteve a similar política repressiva e econômica
de seu antecessor. Assim, continuaram a todo vapor as atividades da
Censura, como se vê num parecer censório de março de 1971, sobre
uma coletânea de poesias (algumas delas transformadas, antes ou
mesmo depois, em canções) de José Afonso, intitulada Cantar de Novo:
Trata-se de uma colectânea de poesias do Dr. José Afonso, algumas das
quais musicadas e não raro transmitidas por Rádio Argel, no seu
programa contra o nosso País. Exemplos: A morte saiu à rua; Olhai o
nardo e a cicuta; Cantar alentejano – poema dedicado a Catarina Eufémia,
a mulher que um soldado da GNR matou e é considerada heroína pelo
Partido Comunista Português; Coro dos caídos; Vampiros – este poema
está musicado e é constantemente transmitido por Rádio Argel [...]
Conclusão: Se estes poemas fossem retirados do livro não haveria mal
pois todo o resto é inofensivo e artisticamente válido. Julgo ser um livro
para proibir (AZEVEDO, 1999, p. 573-4).

11 Aliás, há de se referir que este músico foi um dos maiores símbolos da resistência à ditadura.
Foi o autor de Grândola, Vila Morena (a primeira foi E depois do adeus, de José Calvário e José
Niza, interpretada por Paulo de Carvalho), para a saída dos capitães dos quartéis para a
chamada “Revolução dos Cravos”, que pôs fim à ditadura. Em 2007, completaram-se vinte anos
da morte de Zeca Afonso, como também era chamado.

Política, Educação e Cultura


199

Com este parecer o livro foi proibido e só poderia ser relançado


após a retirada dos poemas citados pelo censor. Apesar da Censura
portuguesa ter atuado ao longo dos 48 anos de ditadura, não foi um
controle homogêneo, afinal as circunstâncias também determinaram
adaptações e a criação de leis que fizessem frente à Imprensa e às
manifestações artísticas. Na chamada “primavera marcelista”, ou seja,
durante o exercício do governo do primeiro Ministro Marcelo Caetano,
entre 1969 e 1974, houve uma confusão também entre os censores
para saber o que havia de fato mudado. Para a sociedade também não
ficavam claros os limites desta “censura” agora chamada de “exame
prévio”. Por exemplo, no ofício circular nº 12427 emitido pela Direcção-
Geral de Segurança12 , há uma lista de onze livros proibidos de circular
no país, entre eles Pedagogia do Oprimido, do educador brasileiro
Paulo Freire. No mesmo documento constavam ainda revistas dos
EUA, Alemanha, Inglaterra e Itália também proibidas de circularem

Coleção Sociedade, Estado e Educação


em Portugal.
No mesmo dia, uma outra circular, de nº 1242613, também
emitida pela DGS, elencava 17 livros “autorizados a circular no país”.
Entre eles, A Internacional, de Marx e Engels; o irônico e clássico livro
Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires, e uma coletânea de
poesias de José Afonso, organizada por Viale Moutinho.
Apesar deste controle, até o início de 1972, não havia a censura
prévia dos discos em Portugal, o que fazia com que os discos
considerados subversivos fossem freqüentemente apreendidos pela
polícia, bem como os editores das gravadoras pressionados a não
investir em trabalhos que atentassem à moral e à política divulgadas
pela ditadura portuguesa. Tal pressão levou a uma autocensura dos
compositores e também das gravadoras, estas últimas movidas ainda
pelo risco financeiro de terem seus discos apreendidos e seu
investimento perdido. O governo português, frente à forte inserção
social dos “cantautores” portugueses, potencializou seus serviços de
censura junto à produção discográfica. Convém ressaltar que, se para
a sociedade civil o governo utilizava o eufemismo de “exame prévio”,
nos documentos internos e/ou confidenciais deixava muito claro sua
atividade, como se vê na Circular 26 - DGI, de 19 de fevereiro de
1972, enviada à Rádio Triunfo e Discos Alvorada:

12 Documento datado de 30 de maio de 1973, nº. de entrada 139. Cópia existente no Arquivo
do Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra.
13 Idem.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


200

Em 28 de Janeiro de 1971, enviei a V. Exa. o ofício confidencial n. 36-


DGI/G, em que dava conta de que “resulta expressamente das leis em
que deve ser vedada a edição ou radiodifusão de canções ou outras
formas musicais que, pelo seu conteúdo e objectivos, ou em face das
circunstâncias em que foram compostas, possam pôr em causa interesses
legalmente protegidos” [...].14
Por fim, neste mesmo documento, o Director-Geral da
Informação reproduz as proibições em relação às canções:
a) as que contenham, ainda que veladamente, ultrajes às instituições ou
injúria, difamação ou ameaça contra as autoridades ou os seus agentes
ou contra os poderes constituídos, e bem assim as que se proponham
ridicularizá-los;
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

b) as que aconselhem, instiguem ou provoquem os ouvintes a faltar ao


cumprimento dos deveres militares ou ao cometimento de actos
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

atentatórios da integridade e independência da Pátria;

c) as que contenham palavras ou idéias ofensivas da dignidade e do


decoro nacional;

d) as que contenham expressões obscenas ou ofensivas das leis, da moral


e dos bons costumes;

e) as que incitem à depravação e ao vício ou exaltem formas de conduta


ou comportamento imorais ou anti-sociais;

f) as que, por qualquer modo, incitem ao crime ou exaltem actividades


criminosas e concitem os cidadãos a impedirem a acção da justiça na
investigação de crimes ou na perseguição de criminosos;

g) as que, contendo alusões a factos da vida nacional, os deturpem no


seu significado, por forma a estabelecer confusão ou desorientar os
espíritos;

h) as que se propuserem divulgar factos ou acontecimentos


manifestamente falsos, com ou sem comentários;

i) as que em geral, não pudessem ser apresentadas em espetáculos públicos


sem risco do decoro, da moral, do respeito devido às instituições
autoridades e ao bom nome e prestígio do País. 15

14 IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.


15 IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610.

Política, Educação e Cultura


201

Tais prerrogativas legais guardam profundas semelhanças com


seus similares brasileiros, abarcando um universo tão amplo que
possibilitavam um leque ainda maior de casos passíveis de interdição.
Contudo, nos processos portugueses, os censores não citavam a
legislação que embasava o veto, como o que foi feito no Brasil para
dar uma imagem de cumprimento da lei. Ao censor cabia uma tarefa
subjetiva, apesar dos preceitos legais a que estava submetido, afinal
bastava elaborar a sua interpretação da mensagem, seja ela, na visão
do censor, explícita ou subliminar. Vale ressaltar que, caso aprovasse
uma letra muito ofensiva ao poder e que esta viesse a se configurar
num “sucesso”, o censor corria o risco de até mesmo ser alvo de um
processo interno ou mesmo de demissão. Logo, temos uma legislação
censória a ser observada e, concomitantemente, uma certa
independência interpretativa, por mais que pudessem ser questionadas
em grau de recurso pelos interessados.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Apesar do controle da cultura, no campo musical as vozes
opostas ao poder ditatorial foram ouvidas explícita e implicitamente
nos discursos sonoros e nos movimentos musicais. Em meio à violenta
Guerra Colonial iniciada em 1961, muitos dos militares portugueses
encontravam nas canções de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira
e Luís Cília, entre outros músicos, um exercício de lembrança de seu
país e familiares, bem como um meio de politização e de elaboração
de uma crescente crítica à guerra e à exploração dos africanos.
Todavia, nem todas as críticas à ditadura foram vetadas, mesmo
as que possuíam um discurso mais direto. Concomitante, as
possibilidades do discurso presente nas letras, as entonações, os
arranjos, a tessitura musical da canção também podiam remeter a
uma leitura sombria da realidade. Mesmo as letras mais cifradas podiam
produzir efeitos em diferentes públicos. As canções de cunho engajado
não fizeram as revoluções, mas contribuíram para este intento. Além
disso, não foi o discurso sonoro que engessou as lutas políticas ao
sublimar ou ao poetizar as ações práticas. Enfim, apesar dos limites
da mensuração de seus efeitos, a canção, engajada ou não, teve um
papel importante na formação das pessoas que viveram aqueles
conturbados anos.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


202

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música


popular cafona e ditadura militar. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
AZEVEDO, Cândido de. A censura de Salazar e Marcelo Caeta-
no - imprensa, teatro, cinema, televisão, radiodifusão, livro. Lisboa:
Caminho, 1999.
CANCIONEIRO para mocidade: canto colectivo. Lisboa: Ser-
viço de Publicações da Mocidade Portuguesa, 1969.
CASTRIM, Mário. Televisão e censura. Porto: Campo das Letras,
1996. (Campo das Media; 1).
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

FIUZA, Alexandre Felipe. Entre um samba e um fado: a censura e


a repressão aos músicos no Brasil e em Portugal nas décadas de 1960
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

e 1970. Assis, SP: UNESP, 2006. (Tese de Doutorado).


PIRES, José Cardoso. Dinossauro excelentíssimo. 6 ed. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1974.
PRÍNCIPE, César. Os segredos da Censura. Lisboa: Editorial Ca-
minho, 1979.
RODRIGUES, Graça Almeida. Breve história da censura literá-
ria em Portugal
Portugal. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
s./d.

Política, Educação e Cultura


203

MULTICULTURALISMO E DIRETRIZES CURRICULARES


NACIONAIS: UMA QUESTÃO EM DEBATE

Vanice Schossler Sbardelotto

Neste artigo, que se constitui como apresentação de discussões


suscitadas na pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre o
multiculturalismo e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental – DCNs – no programa de mestrado em Educação da
Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, pretende-se
discutir a questão acerca da cultura e do multiculturalismo. Estes

Coleção Sociedade, Estado e Educação


conceitos fazem parte do norte para a educação apresentados nas
DCNs. A defesa da cultura e do respeito à diversidade cultural são
incisivas no documento, desta forma, pretendo analisar estes conceitos
à luz do método materialista histórico dialético, buscando compreender
e apontar as divergências que existem na defesa da cultura nas
Diretrizes e a compreensão de cultura na perspectiva materialista.
Na pesquisa, vem se buscando compreender a presença do
multiculturalismo nas Diretrizes e a sua difusão nas propostas
curriculares elaboradas no contexto deste documento, que propõe a
cultura como eixo central dos currículos, uma vez que reiteram a
abertura da produção curricular de forma a atender as peculiaridades
culturais e regionais do país. Para tanto, discutir e compreender a
cultura nesta sociedade torna-se central, pois a partir desta definição
do que se entende, nesta pesquisa, por cultura, se assentará o debate.
Outra questão igualmente importante e pertinente é o papel do
Governo, como expressão do Estado, na elaboração, aprovação e
execução das políticas sociais, entre elas as políticas educacionais,
porém, devido a espaço e tempo, não se tratará de aprofundar esta
questão neste trabalho. Porém, aponta-se que se entende que o Estado,
na sociedade capitalista, atende prioritariamente aos interesses da classe
economicamente dominante, isso se expressa, entre outras práticas,
na proposição de leis. Este fato denota que as Diretrizes Curriculares
Nacionais não são produzidas desinteressadamente, mas se articulam
a uma organização do Estado liberal.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


204

Ao analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais fica explícito –


como não poderia deixar de ser um documento propositivo, norteador
– a concepção de homem, projeto social, entendimento sobre cultura,
valores sociais e éticos que se pretendem difundir nos currículos
escolares. Existindo um apelo à educação como sendo a grande
integradora da sociedade, promotora de paz, felicidade e equidade
social. É sobre estes aspectos que se propõem as discussões neste
trabalho.
A discussão a respeito das funções que vêm sendo atribuídas à
escola foi temática de um artigo de Newton Duarte, apresentado em
uma mesa redonda do X Encontro Nacional de Didática e Prática de
Ensino, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

1999. O autor faz uma análise sobre o papel que vem sendo atribuído
à escola nos últimos anos, como sendo, esta e a educação, o meio de
enfrentar e superar a “crise dos valores” morais e ético. Neste artigo
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

se apresenta que tal crise está vinculada a forma de organização da


sociedade e, desta forma, somente pela reorganização desta se poderiam
resolver tais problemas. O apelo à educação faz parte do jogo ideológico
presente nesta sociedade, que busca camuflar, ocultar sua natureza
avessa à harmonia e à igualdade material.
O autor problematiza da seguinte maneira:
Ressalto já de início que estou partindo de um pressuposto: o de que o
capitalismo passa pela mais profunda e grave de todas as suas crises. [...]
Esse pressuposto leva-me a concordar com o que escreveu Saviani (1991,
p. 103 e 1996, p. 181) acerca da escolha que essa crise exige de todos nós:
a escolha entre o socialismo ou a barbárie, isto é, a escolha entre lutar de
forma coletiva e organizada pelo socialismo ou ficar, a cada ano que
passa, em estado de cada vez maior perplexidade perante o crescimento
da barbárie. Não seria justamente esse crescimento que estaria produzindo
o crescente apelo por um pretenso “resgate” de determinados valores
morais? Não seria esse crescimento da barbárie que estaria tornando
temas como educação e ética tão recorrentes na retórica dos governantes,
dos empresários e dos meios de comunicação? (DUARTE, 2000a, p.
177).
Pretende-se articular esta discussão de Duarte à defesa do
multiculturalismo presente nas DCNs, que será abordado
posteriormente. Nas DCNs, o resgate e respeito à diferença entre as
culturas está posto de forma desarticulada do contexto social em que
é gerada, como se a desigualdade entre as pessoas tivesse outra causa
que não a desigualdade material oriunda da sociedade capitalista
(WOOD, 2003). A defesa de que as diferenças culturais, étnicas e

Política, Educação e Cultura


205

religiosas segregam grupos, coloca em segundo plano a diferença


material produzida nesta sociedade e colabora para a associação
momentânea dos indivíduos em torno de questões que parecem ser
“politicamente corretas” (DUARTE, 2004), mas que articulam
magistralmente a desagregação da classe trabalhadora.
Exemplos destas defesas encontram-se facilmente nos debates
sobre a função da escola e da educação. Tanto que para o mesmo
evento em que foi publicado o referido artigo de Newton Duarte,
encontra-se outro, de Frei David Raimundo Santos, integrante do
EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afrodescendentes Carentes,
São Paulo. Segundo Santos,
Aí está o grande erro das esquerdas: acham que a discriminação racial é
secundária o que a determinante é a discriminação social. Na verdade,
as duas são extremamente arrasadoras. Todo branco pobre sofre
discriminação social. No entanto, o negro pobre, além de sofrer discriminação

Coleção Sociedade, Estado e Educação


social, sofre também a DISCRIMINAÇÃO RACIAL. Se você der mais
ênfase à discriminação social, corre o perigo de reproduzir o sistema,
negando à maioria do povo seu espaço, pois, segundo a UNESCO, 70%
do povo brasileiro é afrodescendente (SANTOS, 2000, p. 70, grifos no
original).
Tais argumentações acerca da discriminação e das diferenças
partem da suas existências na sociedade, não buscando, assim, as
causas desta problemática, que tanto para Duarte (2004) como Wood
(2003) estão na sociedade capitalista. Como cita a última autora, “o
capital luta por relações diretas e não mediadas por indivíduos, homens
ou mulheres, que do ponto de vista do capital assumem a identidade
abstrata do trabalho” [grifo do autor] (p. 239). Ou seja, a exploração
do trabalho para a obtenção da mais-valia e para a acumulação do
capital (MARX, ENGELS, 1999) não vê cor, raça, etnia; interessa
somente “sugar as energias” dos indivíduos no processo de produção
e é na base material que se configuram as diferenças entre as classes,
entre as pessoas.
Desta forma, retornando ao primeiro fragmento exposto, é essa
sociedade capitalista que é oposta ao desenvolvimento moral dos
indivíduos, pois em uma sociedade onde todos competem com todos,
sejam brancos, negros, mulheres, minorias étnicas, etc, o que está no
centro desta sociedade é a exploração do trabalho do outro. Logo, a
discussão sobre a cultura ou a multiplicidade de culturas não pode ser
empreendida fora da compreensão de luta de classe. Nesta perspectiva,
pretende-se analisar a cultura buscando categorizá-la la nos clássicos

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


206

do materialismo histórico dialético Karl Marx, Friedrich Engels, Alexis


Leontiev e no contemporâneo Newton Duarte.
Como assinalado anteriormente, depreende-se das Diretrizes
Curriculares Nacionais, um projeto multicultural de Educação. Esta
afirmação pode ser construída analisando o texto das diretrizes.
No texto introdutório às diretrizes, é exposto que um marco
fundamental destas é o seu caráter flexível, pois permitem o ajuste
dos currículos às necessidades, realidades e culturas regionais. O que
em si não caracteriza nenhum problema, porém esta flexibilidade, da
forma como é exposta, apresenta a cisão do conhecimento científico
da realidade em que ele é produzido, tratando conhecimento científico
e realidade cultural como coisas distintas. Isso difere do que é exposto
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

por Leontiev (1978) que afirma que a cultura é o produto da ação dos
homens sobre a natureza na produção da sua vida e que desta ação
resulta o conhecimento sobre a própria natureza. Este conceito de
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

conhecimento também é abordado por Mao Tsé Tung (2001), quando


defende que todo conhecimento é uma elaboração teórica sobre a
prática. Desta forma, conhecimento científico e realidade estão no
mesmo terreno, não sendo opostos nem cindidos.
O caráter multicultural das diretrizes é evidenciado em todo o
seu texto. Na introdução, é assinalada a defesa do pluralismo de idéias
como sendo uma das maneiras a se atingir o objetivo da educação
que, conforme as Diretrizes, é formar o cidadão pleno, “tendo como
meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos,
baseado nos princípios democráticos” (BRASIL, 1998, p. 03).
O texto vai explicitando, com argumentos de difícil refutação, o
seu objetivo para a educação:
O exercício do direito à Educação Fundamental supõe, também todo
exposto no artigo 3° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
na qual os princípios de igualdade, da liberdade, do reconhecimento do
pluralismo de idéias e concepção pedagógicas, da convivência entre
instituições públicas e privadas estão consagradas (BRASIL, 1998, p.
01).
Prever a consagração e, portanto, o direito ao pluralismo de
concepções pedagógicas evidencia que toda e qualquer corrente será
aceita, o respeito a estas diferenças, sob o tom da democracia, deixa o
caminho livre para práticas pedagógicas de qualquer natureza. Duarte
(2004), apoiado em Marx, comprova que tal defesa é a negação de
que existam conhecimentos mais desenvolvidos que outros,
“conhecimentos universais a serem transmitidos na escola” (p. 229).

Política, Educação e Cultura


207

Desta forma, destaca o autor que “a escola seria então nada


mais do que um espaço, entre muitos outros, de troca e de
compartilhamento de crenças culturalmente estabelecidos” (p.227).
A ausência de um projeto social único, ou a explicitação da
fragmentação da educação proposta pelas DCNs, dá-se na medida
que cada escola tem a “liberdade” de realizar seu próprio plano
curricular, levando em conta a necessidade da sua comunidade local.
Teríamos ou teremos, desta forma, no país, inúmeros projetos que
podem ser até transformadores das suas micro-realidades, porém, o
“fato de uma situação ter suas particularidades não a isola do todo
social” (DUARTE, 2000a) e o “todo” é proposto nas DCNs através
dos conteúdos mínimos, que, como exposto anteriormente, cindiu o
conhecimento científico da vida cidadã, impossibilitando assim a
compreensão da totalidade social, ao menos no plano legal. De acordo
com Duarte (2000b), existe um movimento empreendido pelos pós-

Coleção Sociedade, Estado e Educação


modernos de desconsideração da totalidade, como se ela não fosse
apreensível, ressaltando que “ a unidade, ainda que conserve as
características essenciais da totalidade, (...) ela é objetivamente parte
de um todo e o processo de conhecimento deve caminhar da análise
abstrata dessa unidade para a síntese concreta do todo no pensamento”
(DUARTE, 2000b, p. 89).
Os princípios a serem desenvolvidos pela educação escolar, de
acordo com as DCNs, privilegiam comportamentos éticos, de respeito
aos direitos e deveres, ao bem comum e à ordem democrática, além
do respeito à diversidade de manifestações artísticas e culturais. Estes
princípios, expostos na primeira das sete diretrizes, se seguem de
mais três outras questões, que são tratadas com maior relevância pelo
texto, antes de chegar à questão do conhecimento científico, este que
para Duarte (2000b, 2004) deve ser o centro da escola, de forma que
esta não se guie pelo cotidiano, pelo espontaneísmo, mas deve
aproximar os alunos dos conhecimentos científicos universais,
diminuindo a distância entre os indivíduos e a riqueza intelectual do
gênero humano. Desta forma, segundo Duarte (2000b), seria possível
a escola contribuir na luta contra a alienação.
Esta quarta diretriz traz textualmente a cisão entre os
conhecimentos científicos e os conhecimentos da vida cidadã; esta
demarcação de conhecimentos como sendo diferentes, de campos
diferentes, explicita uma concepção de educação:

IV – Em todas as escolas, deverá ser garantida a igualdade de acesso dos


alunos a uma Base Nacional Comum, de maneira a legitimar a unidade

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


208

e a qualidade da ação pedagógica na diversidade nacional; a Base Nacional


Comum e sua Parte Diversificada deverão integrar-se em torno do
paradigma curricular, que visa estabelecer a relação entre a Educação
Fundamental com:

a) a Vida Cidadã, através da articulação entre vários dos seus aspectos


como:
1. a Saúde;
2. a Sexualidade;
3. a Vida Familiar e Social;
4. o Meio Ambiente;
5. o Trabalho;
6. a Ciência e a Tecnologia;
7. a Cultura;
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

8. as Linguagens; com,

b) as Áreas do Conhecimento de:


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1. Língua Portuguesa;
2. Língua Materna (para populações indígenas e migrantes)
3. Matemática;
4. Ciência;
5. Geografia;
6. História;
7. Língua Estrangeira;
8. Educação Artística;
9. Educação Física;
10. Educação Religiosa (na forma do art. 33 da LDB) (BRASIL, 1998,
p. 7)

Pode-se perceber que os conhecimentos a serem trabalhados


na escola estão de acordo com os princípios estabelecidos na primeira
diretriz. Os conteúdos privilegiam primeiramente conteúdos atitudinais,
que exprimem que a escola deve ocupar-se de “moldar” o cidadão
responsável, cooperativo, preocupado com as questões culturais,
ambientais, etc, para, depois, ensinar o que é conhecimento científico.
Para Vigostski (2005), os conceitos cotidianos elevam-se à categoria
de conceitos científicos, após passarem pelo processo de reelaboração
em pensamento; desta forma, não existiriam dois “tipos” diferentes
de conteúdos a serem ensinados, o foco de ensino deveria estar nos
conceitos científicos. Duarte (2000b), articulando os conceitos de
Vigostki, afirma que “os conceitos científicos, ao serem ensinados à
criança através da educação escolar, superam por incorporação os
conceitos cotidianos, ao mesmo tempo que a aprendizagem daqueles
ocorre sobre a formação destes” (2000b, p. 86).

Política, Educação e Cultura


209

Nesta diretriz é possível depreender que conhecimentos


científicos e conhecimentos cotidianos têm, respectivamente, o mesmo
grau de importância, desta forma, um não é superior ao outro e a
escola, portanto, não pode privilegiar um em detrimento do outro.
Este relativismo em relação ao conhecimento, Duarte (2004) associa a
compreensão pós-moderna de conhecimento, em que todos seriam
válidos e não existiriam conhecimentos mais desenvolvidos que outros.
Para Marx e Engels (1978) os conhecimentos resultam do
processo de interação do homem com a natureza. É neste processo
de produção da vida material que o homem vai formulando teorias, vai
criando representações sobre este mundo. Os autores afirmam que
“a produção de idéias, de representações, da consciência, está de início,
diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio
material dos homens, como a linguagem da vida real “ (p. 36). Desta
forma, os conhecimentos da “vida cidadã”, contidos nas Diretrizes

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Curriculares Nacionais, sobre a saúde, sexualidade, vida familiar e
social, etc, foram produzidos ao passo que o homem foi interagindo
com a natureza e com os outros homens, como resposta às suas
necessidades.
Esta separação que ocorre com os conhecimentos tem influência
direta do relatório da UNESCO, formulado por uma comissão presidida
por Jacques Delors. Neste relatório aparece que a educação deve resolver
um problema causado pelo desenvolvimento da ciência. Pois para esta
comissão, o distanciamento entre as nações e as diferenças entre as
pessoas é resultado do desenvolvimento tecnológico do século XX.
Neste quadro, a educação deve resolver este problema fornecendo
pessoas qualificadas para o mercado e ainda produzir indivíduos
harmoniosos, responsáveis, que respeitem a natureza, a diversidade
de tradições e culturas. (DUARTE, 2000a)
Para Duarte (2000a), existe uma inversão ideológica no relatório
desta comissão:
Para a comissão não são as relações capitalistas de produção que limitam
os objetivos da ciência e da educação, mas sim estas que limitam o
desenvolvimento social ao progresso econômico. Basta, portanto, que
os educadores, cientistas e demais membros da sociedade abandonem
suas antigas concepções e abracem uma concepção mais ampla de
desenvolvimento e dos objetivos da Educação (p. 186).
A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais seguiu esta
concepção. Tanto que o ensino de diferentes culturas, o destaque e
resgate das diferenças culturais, para este documento, pode resolver

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


210

o problema das minorias e acabar com a discriminação, pois estaria


criando uma “consciência cidadã” de respeito ao outro, invertendo a
lógica da produção da consciência. Para Marx e Engels (1999) “não é
a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência” (p. 37).
Desta forma se explicita o caráter conservador e a lógica
multicultural desta política educacional materializada nas Diretrizes
Curriculares Nacionais.
Conforme explicitado no início do texto, após esta breve análise
das DCNs, parte-se para abordar a cultura e o multiculturalismo. O
primeiro na concepção de Leontiev (1978) e o segundo a partir do
texto “A rendição pós-moderna à individualidade alienada e a perspectiva
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

marxista da individualidade livre e universal” (DUARTE, 2004), por


entender que ambos os autores trazem elementos para compreensão
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

dos referidos conceitos, indicando, desta forma, uma possibilidade de


compreensão das políticas neoliberais.
Para Leonitev (1978), o homem é um ser da natureza e tudo o
que tem de humano é decorrente da sua vida em sociedade, a partir da
apropriação de todos os objetos da cultura humana. Desta forma, seu
processo de hominização1 segue o desenvolvimento social e não
biológico, a partir da organização social do trabalho para a satisfação
das suas necessidade e do desenvolvimento da linguagem pela
necessidade de comunicação.
As mudanças físicas pelas quais passou o homem, segundo o
autor, são decorrentes da necessidade de produção: o desenvolvimento
dos sentidos, a utilização das mãos, etc. No momento em que as
condições físicas estavam dadas, estavam dadas também as condições
para o desenvolvimento cultural ilimitado do homem, “a passagem do
homem a uma vida em que a sua cultura é cada vez mais elevada não
exige mudanças biológicas hereditárias” (LEONTIEV, 1978, p. 263 -
264).
No processo de produção material, o homem cria objetos que
passam a conter o significado da sua criação e utilização. Leontiev
(1978) chama esse processo de objetivação do trabalho, de forma que
os objetos carregam a cultura humana. As novas gerações se apropriam
da cultura universal a partir do contato com estes objetos mediados
por sujeitos mais desenvolvidos, que já os compreendam, sejam estes
objetos, ferramentas de trabalho ou a linguagem, por exemplo.

1 Para Leontiev (1978) o processo de hominização é o processo pelo qual passou a espécie “homo
sapiens” para se distinguir dos animais.

Política, Educação e Cultura


211

Ao nascer, o indivíduo está inserido em um meio cultural e


absorve as características deste meio, com condições de apropriar-se
dos objetos culturais desenvolvidos e, a partir desta apropriação, dar
continuidade ao desenvolvimento humano. Este meio cultural do qual
fala Leonitev (1978) não se restringe à cultura imediatamente local,
mas à universal, que inclui o modo de produção, divisão das classes
sociais, etc. A apropriação dos objetos da cultura universal sofre
inevitavelmente a influência deste meio social. Desta forma, as diferentes
culturas são provenientes da apropriação desigual da cultura universal,
devido à desigualdade econômica do modo de produção em que se
encontram os indivíduos.
Para Leontiev (1978), a cultura é a objetivação da ação dos
homens, é o saldo da sua transformação histórica, constituindo-se de
fenômenos e objetos criados pela humanidade. Os objetos carregam
o resultado da ação humana, carregam a cultura humana. As novas

Coleção Sociedade, Estado e Educação


gerações precisam entrar em contato com estes objetos através de
uma ação mediada.
Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões,
<<os órgãos da sua individualidade>>, a criança, o ser humano, deve
entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através
doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles
(LEONTIEV, 1978, p. 272 – grifos no original).
A educação é o processo pelo qual se transmite às novas gerações
a cultura do gênero humano. Este processo deve ser desenvolvido por
quem tenha se apropriado desta cultura. O processo educacional reflete
o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, logo, quanto mais
estas se complexificam, maior deve ser a complexificação também do
processo educacional, para que não ocorra um distanciamento entre
os indivíduos e o produto do trabalho, o que Marx e Engels (1999)
chamam de alienação.
A apropriação deste desenvolvimento cultural está ligada ao
desenvolvimento da sociedade, à divisão do trabalho e à exploração de
uma classe pela outra, desta forma,
A concentração das riquezas materiais nas mãos de uma classe dominante
é acompanhada da uma concentração da cultura intelectual nas mesmas
mãos. Se bem que as suas criações pareçam existir para todos, só uma
ínfima minoria tem o vagar e as possibilidades materiais de receber a
formação requerida, de enriquecer sistematicamente os seus
conhecimentos (...) (LEONTIEV, 1978, p. 175).

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


212

O que ocorre, portanto, é a apropriação privada, por parte da


classe dominante, da cultura universal humana; não se trata de ter
uma cultura da burguesia e outra do proletariado. Esta apropriação
privada da cultura produz uma estratificação desta mesma cultura,
pois a minoria que detém os meios de produção detém também os
meios de difusão da cultura intelectual (LEONTIEV, 1978).
Em relação à determinação econômica da difusão da cultura,
Leontiev (1978) continua:
O processo de alienação econômica, produto do desenvolvimento da
divisão social do trabalho e das relações de propriedade privada, não tem,
portanto por única conseqüência afastar as massas da cultura intelectual,
mas também dividir estas em elementos de duas categorias, umas
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

progressistas, democráticas, servindo o desenvolvimento da humanidade,


as outras que levantam obstáculos a este progresso, se penetram nas
massas, e que formam o conteúdo da cultura declinante das classes
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

reacionárias da sociedade (LEONTIEV, 1978, 276)


Segundo o autor, estas diferenças na apropriação da cultura
geradas pela desigualdade econômica são utilizadas, muitas vezes,
pela classe dominante, para querer classificar raças como inferiores e
superiores, da mesma maneira como se divulga atualmente haver a
necessidade de resgatar as diferentes culturas, não se postulando que
estas decorrem das desigualdades econômicas. Afirmar que existe uma
única cultura universal do gênero humano, resultante da interação dos
homens com a natureza e com os outros homens na produção de
meios para a satisfação das necessidades, parece opor-se à classe
trabalhadora e discriminar as variações culturais, isso porque tão forte
tem sido o jogo ideológico desta sociedade.
Este jogo ideológico, Duarte (2004) credita à concepção pós-
moderna que se tem veiculado atualmente. Para este autor, os pós-
modernos têm atitude cética em relação ao desenvolvimento da
sociedade, pois compreendem-na num profundo processo de
fragmentação e dissolução dos objetivos totalizantes, universais. Negam
a possibilidade de conhecer a realidade cientificamente e por isso
postulam não haver conhecimentos mais desenvolvidos em relação a
outros, e negam a possibilidade de transmitir conhecimentos. Com
estas explicitações do autor, torna-se possível compreender que base
teórica tem fundamentado as Diretrizes Curriculares Nacionais,
Atacar a concepção moderna de sujeito é, portanto, atacar a concepção
moderna de ser humano (...). A idéia de um desenvolvimento universal
da humanidade é acusada de ser eurocêntrica, colonialista, centrada na

Política, Educação e Cultura


213

cultura e na tecnologia ocidentais. Tal noção de desenvolvimento ou de


progresso humano seria, segundo os pós-modernos, uma das maiores,
senão a maior responsável pela destruição de outras culturas, pelo
desequilíbrio ecológico e pelo racismo. Isso tem repercussões fortes no
campo da educação, bastando citar como exemplo a idéia de educação
“pós-colonialista” e “multicultural” que se oporia ao princípio de que
existam conhecimentos universais a serem transmitidos na escola
(DUARTE, 2004, p. 226 – 227)
Esta passagem tem valor didático imenso, pois tem condições
de auxiliar o esclarecimento da ligação entre esta concepção de educação
multicultural e o processo de alienação dos homens da cultural universal
humana, pois “nesta perspectiva, o conhecimento é apenas e tão
somente aquilo que é ‘tido como verdadeiro’ num específico contexto
cultural” (DUARTE, 2004, p. 227).
Estas considerações acerca da cultura e da concepção de
multiculturalismo são fundamentais para a continuidade da pesquisa

Coleção Sociedade, Estado e Educação


da qual trata o presente texto, pois servem de base, ou formulam a
base para posteriores análises acerca da política educacional
implementada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Identificar o
multiculturalismo à perspectiva pós-moderna explicita toda lógica liberal
que tem fundamentado as políticas do Estado na sociedade capitalista.
A temática do presente texto, bem como outras questões referentes à
política social e Estado, serão retomadas e aprofundadas em estudos
futuros.

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ção, 29 de janeiro 1998, Brasília.
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Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


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TUNG, M. T. Sobre a prática e sobre a contradição. São Paulo, Ed.
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WOOD, E. M. Capitalismo e emancipação humana: raça, gênero e
democracia. In. Democracia contra Capitalismo: a renovação do mate-
rialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.

Política, Educação e Cultura


SOBRE OS AUTORES

Alexandre Felipe Fiuza


Licenciado em História pela UFPB, Mestre em Educação pela
UNICAMP, Doutor em História pela UNESP (com estágio de
doutorando junto à Universidade de Lisboa) e Pós-Doutor em História
Contemporânea pela UAM (Espanha). Professor do Colegiado de
Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação
da UNIOESTE.

Alfredo Roberto de Carvalho


Graduado em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação e
Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em Educação da UNIOESTE. Professor Pedagogo da rede pública
do Governo do Estado do Paraná.

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Cezar Ricardo de Freitas
Graduado em Pedagogia pela UNIOESTE, Especialista em Ensino de
Geografia e História pela União das Escolas Superiores do Vale do
Ivaí, Especialista em História da Educação Brasileira pela UNIOESTE e
Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em Educação da UNIOESTE. Professor da rede pública do
Governo do Estado do Paraná.

Edaguimar Orquizas Viriato


Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras
de São Bernardo do Campo e em Letras pela Faculdade de Filosofia
Ciências e Letras Nossa Senhora Medianeira, Mestre em Educação
pela UNICAMP, Doutora em Educação pela PUC/SP, Pós-Doutora em
Educação pela USP e pela Universidade do Minho. Professora do
Colegiado de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação stricto sensu
em Educação da UNIOESTE.

Eneida Oto Shiroma


Graduada em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São
Carlos, Doutora em Educação pela UNICAMP e em Industrial Relations
- London School of Economics And Political Sciences. Pós-Doutora
pela Universidade de Nottingham. Professora Associada da UFSC. Foi
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC
(2006-2008) e Coordenadora do Fórum Sul de Coordenação de
Programas de Pós-graduação em Educação (2007-2008). Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


SOBRE OS AUTORES

Enio Rodrigues da Rosa


Graduado em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação e
Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em Educação da UNIOESTE. Atua como professor pedagogo
da Rede Estadual de Ensino do Paraná. Militante da Associação
Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual (ACADEVI), do Fórum
Municipal em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Vice-
presidente do Conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos das
Pessoas com Deficiência (COEDE).
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

Georgia Sobreira dos Santos Cêa


Graduada em Pedagogia pela UERJ, Mestre em Educação pela UFF e
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

Doutora em Educação pela PUC/SP. Atualmente é professora adjunta


da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Atua como colaboradora
externa do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da
UNIOESTE. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Trabalho, Estado, Sociedade e Educação - GP-TESE (UNIOESTE/CNPq)
e membro participante do Coletivo de Estudos de Política Educacional
(FIOCRUZ/CNPq). Participa do GT Trabalho e Educação da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd);
atualmente integra o Comitê Científico ad hoc do referido GT.

Gilmar Henrique da Conceição


Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Lorena e em Ciências Contábeis pelo Centro de Ensino Superior
de São Carlos, Mestre em Fundamentos da Educação pela UFSCAR
e Doutor em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP.
Atualmente é Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE e Professor
adjunto do Colegiado de Pedagogia e do Programa de Pós-
Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE. É editor da
Educere et Educare - Revista de Educação.

Lizia Helena Nagel


Graduada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Bagé, Especialista em Metodologia da Pesquisa em Educação pela
Cenafor, Mestre em Educação pela UFRGS, Doutora em Educação
pela PUC/SP. Atualmente é professora titular do Centro Universitário
de Maringá e consultora do Centro Universitário de Maringá.

Política, Educação e Cultura


SOBRE OS AUTORES

Luis Fernando Cerri


Graduado em História, Mestre em Educação, Doutor em Educação
pela UNICAMP e Pós-Doutorando em Educação pela Universidad
Nacional de La Plata (Argentina). Atualmente é professor associado da
UEPG. É líder do Grupo de Pesquisa em Didática da História, da
UEPG. É um dos coordenadores nacionais do GT de Ensino de História
e Educação da Associação Nacional de História (ANPUH). É bolsista
de produtividade em pesquisa da Fundação Araucária desde Agosto de
2008, e coordenador brasileiro do Programa Centros Associados para
o Fortalecimento da Pós-Graduação Brasil-Argentina (convênio UEPG-
UNLP).

Luiz Carlos de Freitas

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Graduado em Filosofia, Especialista em Fundamentos da Educação e
Mestrando em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em Educação da UNIOESTE. Atua como professor na Rede
Estadual de Ensino do Paraná.

Maria Inalva Galter


Graduada em Pedagogia pela UNIOESTE, Mestre em Educação e
Especialista em Educação Pública no Brasil pela UEM, Doutoranda em
Educação pela UNICAMP. Professora do Colegiado de Pedagogia da
UNIOESTE.

Olinda Evangelista
Graduada em Filosofia pela UFPR, Mestre em Educação e Doutora em
Educação pela PUC/SP, e Pós-doutora pela Universidade do Minho.
Atualmente é professora Associada I da Universidade Federal de Santa
Catarina atuando no cargo de Coordenadora do Curso de Pedagogia.
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.

Paolo Nosella
Licenciado em Filosofia na Itália com titulação reconhecida pela
UNISINOS, Bacharel em Teologia pela mesma Instituição, Mestre e
Doutor em Filosofia da Educação pela PUC/SP. Professor Titular em
Filosofia da Educação na Universidade Federal de São Carlos/SP e do
Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade
Nove de Julho de São Paulo (UNINOVE). Bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPq - Nível 1A

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)


SOBRE OS AUTORES

enata Cristina da Costa Gotardo


Graduada em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação
e Mestranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em Educação da UNIOESTE. Pesquisadora do projeto de
pesquisa interinstitucional Demandas e Potencialidades do PROEJA
no Estado do Paraná.

Rosane T oebe Zen


Toebe
Graduada em Pedagogia, Especialista em Fundamentos da Educação
e Mestranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação stricto
Unioeste - Programa de Pós-Graduação em Educação

sensu em Educação da UNIOESTE. É membro do Grupo Estudos e


Pesquisa sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (TESE) da
http://www.unioeste.br/pos/educacao/

UNIOESTE.

Vanice Schossler Sbardelotto


Graduada em Pedagogia (2000), Especialista em Fundamentos da
Educação (2003) e Mestre em Educação (2009) pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. Professora do curso de Pedagogia -
UNIOESTE/Francisco Beltrão e Pedagoga da UTFPR - Campus Dois
Vizinhos.

Política, Educação e Cultura


EDITORA E GRÁFICA UNIVERSITÁRIA

Assessoria Especial
do Gabinete da Reitoria Paulo Konzen
Laurenice Veloso
Hélio A. Zenati

Assistente Administrativa Geyze Colli Alcântara Lima

Criação e Diagramação Antonio da Silva Junior

Coleção Sociedade, Estado e Educação


Vinícius Thomas Back
Rachel Cotrim

Impressão Gilmar Rodrigues de Oliveira


Izidoro Barabasz

Acabamento Gentil David Teixeira


Leandro Miranda
Paulo Henrique Soares
Vera Müller

Alexandre Felipe Fiuza e Gilmar Henrique da Conceição (Orgs.)

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