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Os senhores do ermo
A saga da família Pereira de Lima, que se dedica há três gerações ao inusitado
trabalho de faroleiros, guiando navios na escuridão do litoral gaúcho
Vinícius Spindler
Os seguidores de Joca na família foram tantos que uma frase permanece viva até hoje
na região, lembra Babi: "Sempre haverá um faroleiro do Rio Grande do Sul parente de
Joca Documento".
João Pedro Pereira era filho de um imigrante português, que chegou ao Brasil por Laguna
(SC), em 1845, e arriscou-se mais ao sul atrás de melhores oportunidades. Casou-se
com a filha de uma escrava alforriada e estabeleceu-se como comerciante em Rio
Grande, onde nasceu e cresceu João Pedro, o Joca. Foi no comércio do pai, por volta de
1875, ouvindo a conversa de viajantes, que soube que no extremo sul do estado
existiam terras inabitadas e sem dono. "Ele ouviu aquilo e tocou para o Chuí com a
mulher, Petrona Clavijo, que estava grávida", conta Babi.
"Meu avô era da alta sociedade de Santa Vitória do Palmar. Um homem elegante,
respeitado e ben-quisto. Depois da morte de Petrona, conheceu sua segunda esposa,
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"Para ser faroleiro, ainda mais naqueles anos e naquela região, era preciso que a pessoa Revista Brasileiros
fosse do local. Como meu avô era dono daquelas terras e doou a área, a Marinha achou
por bem que ele deveria ser o primeiro faroleiro. E ele aceitou", lembra. Começava ali a
saga dos Pereiras nos faróis no Rio Grande do Sul, onde o próprio Joca reinou até 1931,
ano de sua morte.
Além de gerar faroleiros, a família também foi atraindo outros e uma nova fase teve
início a partir do casamento de Inês, filha de Joca, com o também faroleiro Luis Marques
de Lima. O casal teve dois filhos: Nelci (o Babi) e Nelson Pereira de Lima. E o clã sofreu
uma ligeiraadaptação no sobrenome, passando a se chamar Pereira de Lima. 434 pessoas curtiram Revista
Como todos da família de Joca Documento, Babi e Nelson foram criados ao redor de um
farol. O rumo deles não é difícil adivinhar: "Veja só. Minha mãe era filha de faroleiro e
meu pai era faroleiro. Não tinha como eu ser outra coisa. Não fosse eu pertencer a uma
família de faroleiros, conhecida pela Marinha, não teria o que dar de comer para minha
família", destaca Babi.
Atualmente ele reside com a segunda esposa, Vilma Acosta de Lima, 68 anos, numa casa
simples, num bairro residencial do município de Chuí. Babi teve dois filhos do primeiro
casamento - a menina já faleceu e o filho não seguiu a carreira do pai.
A vida num farol era bastante difícil, precária e solitária. Sua primeira lembrança da
infância são as noites. Escuridão total. Não havia rede elétrica e o farol era o único guia.
"Para ir até a venda à noite era um sacrifício. Eu esperava a luz do farol passar e via se
tinha alguma coisa na frente. Aí dava 20 passos, mais ou menos 20 metros. Depois
esperava a luz passar de novo para andar mais 20 metros. Não tinha outro jeito", conta.
Trabalhando como faroleiro, Babi tinha que subir a torre da Barra do Chuí carregando
dez litros de querosene para colocá-lo em funcionamento. "Grande parte do trabalho era
manual. As noites com tempestades eram as mais difíceis e assustadoras, pois os
ventos, de tão fortes, faziam a torre balançar. Tínhamos que ficar lá no topo da torre
para evitar que a luz apagasse", explica, citando uma máxima transmitida de geração
em geração na família Pereira Lima: "O faroleiro não pode deixar a luz do farol apagar;
ela tem de estar acesa", decreta o herdeiro de Joca Documento.
O primeiro farol onde Babi trabalhou foi o da Solidão. O nome já diz tudo: uma longa
faixa de areia entre a Lagoa dos Patos e o mar, vazia de gente e a quilômetros de
qualquer núcleo urbano. Ele conta que outros passaram por lá, mas não suportaram.
"Tem que ter sangue de faroleiro; se não, não agüenta", sentencia Babi. Esse foi um dos
pré-requisitos para a Marinha tê-lo escolhido para assumir aquela primeira missão. A
ausência de amigos e vizinhos, além da vida precária, só não o levou a deixar o trabalho
por causa dos filhos. "Olhava para eles, pequenos, e me perguntava que futuro iria dar
para eles sem o salário de faroleiro", diz Babi, que cita as recomendações do
comandante da Marinha ao entregar-lhe o posto: "Cuide-se, não se machuque. Lá, a
gente não tem como te salvar".
Mas o tempo nos faróis também reservou boas histórias. Uma delas, que desperta a
cobiça de muita gente até hoje, é a de um tesouro escondido a 30 quilômetros após a
Barra do Chuí. Segundo Babi, durante a Segunda Guerra Mundial, um navio alemão
carregado de jóias e ouro teria enfrentado as águas revoltas de Punta del Diablo, quando
rumava para Montevidéu. "Tinha que saber navegar por ali. Muitos que se arriscaram
sem conhecer aquele mar se deram mal", explica. O navio acabou naufragando com o
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tesouro. "Está lá até hoje, submerso, enterrado na areia, mas ninguém conseguiu
encontrar as jóias e o ouro."
Depois de passar pelos faróis da Solidão, Mostardas, Albardão e Chuí, seu último
trabalho foi no farol de Cidreira. Aos poucos a profissão foi se tornando menos
trabalhosa. A chegada da energia elétrica e da fotocélula reduziu ainda mais o trabalho.
Babi também escapou da militarização da profissão de faroleiro e, quando se aposentou,
em 2001, era tido como o último faroleiro civil em atividade no Rio Grande do Sul.
Babi lembra dos tempos de solidão, da antiga condição de senhor do ermo, cercado pelo
mar e pela areia, ouvindo somente o ruído das ondas e do vento. No entanto, agora ele
quer usufruir do sentimento de liberdade que nutriu a vida toda. "Quero aproveitar o que
resta de minha vida na cidade. Quero viajar e dançar", anuncia.
O irmão de Babi, Nelson, queria ser faroleiro até os 70 anos, mas não chegou lá. Morreu
em 1996, aos 62 anos, em seu posto no farol de Mostardas. Sua esposa seguiu-o um
ano depois, ironicamente, devido à solidão.
Nova geração
Sanger Nelson de Lima é um faroleiro de estirpe - filho, sobrinho, neto e bisneto de
faroleiro. O mais velho dos oito filhos de Nelson e a esposa, Terezinha, foi apresentado
ao farol da Barra de Rio Grande com apenas um ano de vida. Depois morou nos de
Albardão, Capão da Canoa, Chuí e Mostardas. "Meus amigos de infância eram meus
irmãos. Não havia vizinhos", comenta.
A paixão de Sanger pelos faróis vem de berço, é claro. Seu pai dedicou 30 anos à
atividade. "O amor de meu pai pelo trabalho e a história da minha família me fizeram
também adorar a profissão", confessa.
Sanger é o único da família na função. Já atuou nos faróis da Ilha da Paz, em São
Francisco do Sul (SC), e no Farol de Mostardas (RS), onde seu pai foi faroleiro por 18
anos. Casado, duas filhas, Sanger mora em Rio Grande. Atualmente, é segundo-sargento
faroleiro, o primeiro do clã a subir num farol como militar. "Mas continuo na profissão
que passou de geração em geração na minha família. Fico feliz por isso", comenta.
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