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como escrever esse texto apesar das minhas dúvidas. dilema ...
O convite para contribuir com esse livro, sobre a saúde pública como um dos meus amores,
me foi atraente e ao mesmo tempo problemático. Primeiro, porque seria muito difícil me ver longe
de alguma implicação com a construção da saúde pública brasileira nessas últimas décadas;
segundo, porque esse imbricamento é tão intenso que não sabia como contar essa história da qual
não me via separado, tendo que assumir que toda minha narrativa seria profundamente contaminada
por meus relatos “pessoais”, ao traz também um certo modo de narrar minha história de vida, desde
o final dos anos 60.
Tive que fazer escolhas. Deixar-me levar por essa memória e narrar livremente como uma
testemunha fidedigna de mim e de uma certa forma de acontecer a saúde pública nesses anos todos,
através das minhas relações com acontecimentos que significo como relevantes; e, aí, misturar tudo,
lembranças, julgamentos, amigos, fatos e reflexões. Ou, tentar criar uma distancia para falar desses
anos todos como se fosse um narrador e analista “neutro”.
Não consegui esse segundo caminho, ou melhor, não o quis mesmo que pudesse persegui-lo.
Aliás, esses anos todos escrevendo e escrevendo, não tenho dificuldade em produzir um texto desse
tipo, mas não seria fiel a mim mesmo. Não me traria intensamente, com minha carne e minha vida.
Abri em mim os sentidos dos encontros de diferentes ordens, tempos e lugares. Aquilo que foi
e me é intercessor ( como esse próprio conceito de Deleuze, fundamental para mim).
Fiz essa escolha, por isso o que se segue vai embolar várias coisas: fatos, acontecimentos,
testemunhos, relações, afetamentos, dúvidas, desejos, entre outras várias. E, isso, faz dele um relato
bem meu que talvez interesse a outros e aí sinto que ele se validará para além de um simples relato
pessoal.
Vejamos se isso acontece. O leitor será a única testemunha efetiva.
Tal impacto produz efeitos no próprio campo da saúde pública e na sua irmã de leite, a
medicina e equivalentes. Desde o final dos anos 70, com a crescente produção de trabalhos de
tradição marxista alimentando novos objetos e novos campos de estudo e conhecimento,
interrogantes de outras ordens vão tomando conta de uma parte de nós, trabalhadores da saúde
pública, militantes dos movimentos pela democratização do país e construção de novas políticas de
saúde.
Para muitos de nós, sob forte influência da produção de Maria Cecília Ferro Donnangelo e
seu grupo de pesquisadores, interrogar a natureza da saúde pública como prática social tornava-se
central. De posse de um olhar marxista, prisioneiro da ótica determinista, encaro esse campo social
como efeito dos processos de construção social do capitalismo, no Brasil.
Como eu, muitos iam por esse caminho. Produtivo de um lado, pois rompia com a tradicional
visão da saúde pública como campo científico que cuidava dos fenômenos sociais e coletivos do
campo da saúde, oposta da medicina que se debruçava sobre a doença como fenômeno individual e
pessoal. Alimentando-nos da noção de que saúde pública e medicina vinham do mesmo lugar:
biopolíticas, constitutivas das sociedades capitalistas.
Por outro lado, entretanto, criando uma armadilha na qual enclausurava o campo da saúde
como um todo e da saúde pública em particular, em uma visão que as viam como meros efeitos dos
processos infraestruturais produtores e reprodutores do modo de produção capitalista. E, como tal,
prisioneiros disso.
Um furo no muro nessa concepção mostrou-se rico. A noção, que Cecília Donnangelo trouxe
em seu livro Saúde e Sociedade, da saúde como constitutiva daquelas relações, somada àquela que
o trabalho de Madel Luz trouxe na ótica institucionalista sobre a relação entre medicina e
hegemonia capitalista no Brasil, abria novas possibilidades para os estudos e produção de um saber
militante, por pavimentar a concepção de que fazia diferença agir ou não a partir do campo na
perspectiva de fazer diferente, o oposto do que o capitalismo pretendia, enriquecendo com isso as
nossas possibilidades de gerar lutas solidárias com um agir anti-capitalístico.
Entendiamos, então, que apostar na construção de uma vida “decente e prudente” individual e
coletiva, em si, travaria batalhas no fronte que buscava superar as relações de exploração do capital.
Mesmo assim, muitas foram as produções que seguiram o caminho do entendimento da saúde
como puro efeito e, como tal, sempre reprodutora das relações sociais dominantes. Entretanto,
vários outros seguiram a noção da constitutividade entre as práticas de saúde e as relações
capitalistas, trazendo em si a marca do contraditório dessas relações. Isso permitiu uma certa marca
associada ao conjunto das militâncias contra a ditadura, no qual estávamos engajados, procurar
transitar do campo “tradicional” da saúde pública para uma novidade: a emergência e consolidação
do que chamamos de saúde coletiva, na qual a crítica da medicina e da saúde pública como
biopolíticas, seria feita no amplo campo do agir político da sociedade civil. Abrindo, então, uma
disputa que visava a construção de uma hegemonia social em torno do valor da vida: para ser
explorada ou para ser a principal riqueza social.
Vale registrar, e minha memória é bem fiel em relação a isso, outra figura brasileira nesse
relato: Sérgio Arouca; que no meu olhar simbolizou fortemente o reforço da ação militante de
alguém que era tido como intelectual de novo tipo. Mas, diria pelo menos para mim, que Sérgio não
era uma grande referência por sua produção teórica, aliás, muito pouca quantitativamente. No
entanto, faço jus a uma reflexão sua, que foi publicizada através do texto publicado no primeiro
número da revista Saúde em Debate, na qual fazia uma crítica da concepção da História Natural da
Doença de Leavell e Clark, e que produziu fortes efeitos no movimento sanitário e na conformação
da saúde coletiva. Nessa crítica, construída a partir de sua tese de doutorado, trouxe para muitos de
nós fundamentos chaves para conceber as relações entre saúde, doença e cuidado.
De fato, porém, registro que a marca em mim mais forte do Sérgio Arouca foi a luta travada
por muitos, nos anos 70, pelo seu direito de defender sua tese de doutorado e trago para a cena o dia
da sua defesa na Unicamp, com uma sala repleta de militantes contra a ditadura e a intolerância. Foi
um dos grandes atos políticos inauguradores dessa novidade que vivíamos e que iríamos ainda
viver, nesse fabricar o furo no muro das instituições vinculadas à violência ditatorial.
Nesses anos todos, dos 70 aos 80, senti o trânsito forte desse percurso da saúde pública para a
saúde coletiva, como expressão de um movimento que não tinha dono, nem autor, mas artífices e
que dava como marca a desterritorialização de qualquer campo instituído como predominante, fosse
a universidade, os serviços, as entidades associativas, os coletivos em formação, os movimentos
sociais e por aí vai.
Todos eram seus construtores, mesmo que muitos hoje ainda tenham a mania de querer contar
a história de eventos sociais, através de heróis. Aqui, isso seria impossível, porque o possível é isso
que estou fazendo: falando de um certo lugar, recorte e situação; mas reconhecendo a existência de
muitas outras histórias e narrativas, a partir de outros artífices e situações.
Diria, antes de fechar esse momento, que não era pouca a pretensão de superar a dicotomia
entre medicina e saúde pública pela construção de um novo campo teórico e prático. A saúde
coletiva, de então, não era um departamento ou um instituto, era um movimento de transprofissões
de saúde, transmovimentos, transdisciplinares. Lugar de militância por um novo campo de práticas
sociais, na busca da superação das instituições organicamente comprometidas com a exploração da
vida humana por um outro humano, no interior das quais as de saúde são nucleares.
Procurando desencadear a partir do movimento sanitário construção de uma sociedade mais
democrática, mas também de um novo tipo.
Nesse percurso, vejo-me indo atrás da produção de um novo território, resultado dessa
desconstrução, mas reconhecendo que nem todos do movimento sanitário tinham essa aposta, até
hoje. Ainda há muitos que aceitam, sem uma crítica mais radical, a superioridade da saúde pública
sobre a medicina, ou se prendem à saúde coletiva como um campo disciplinar a mais na área da
saúde.
Essa disputa está na flor da pele das lutas, hoje, pela construção do Sistema Único de Saúde.
não mais saúde coletiva. movimento em defesa da vida, para muitos de nós
Nesse momento, uma marca em meu corpo - movimento em defesa da vida - puxa fluxos de
memórias, nada comprometidos com qualquer cronologia. Mais que isso. Nada comprometidos com
lugares muito nítidos, pois é um turbilhão de ideias, lembranças e afetos misturados. Vou, com
muito esforço, procurando um fio, criando com ele linhas de significações que me levem a outras.
Vou trazendo para cena muitas afecções.
Caio no começo de 1990, nos governos municipais de Campinas, São Paulo, Santos, Ipatinga
e Belo Horizonte. Trago meu engajamento intenso com essas experiências, que parte do Partido dos
Trabalhadores ia realizando, com foco muito claro na busca da construção de práticas
governamentais no campo das políticas de saúde, solidárias aos referenciais de construção de uma
nova ordem democrática, entre máquina governamental e grupos organizados da sociedade como
um todo e de um conjunto de ações públicas que deslocassem o eixo fragmentário e focal das ações
de saúde, para um agir pleno em defesa da vida individual e coletiva, puxado pela imagem de que
uma vida, que fosse, sempre valeria a pena.
Meu lugar de médico sanitarista e militante da reforma sanitária, sem dúvida, levou-me a tudo
isso. E nesse percurso volto a 1978, quando mudo de São Paulo para a cidade de Campinas. No
momento em que a luta contra a ditadura estava se des-dobrando. Os governos militares davam
sinais de estar chegando ao fim. Novos coletivos, novas agremiações políticas. Militância
multiplicada na construção de novos partidos políticos, que se propusessem a não repetir os
formatos clássicos da esquerda. Militância mais que intensa na construção do PT.
Em Campinas, chego como médico sanitarista da Secretaria Estadual. Por direito de
classificação em concurso público, escolho dirigir uma região sanitária ampla, cuja sede era a
cidade de Americana. Fico pouco tempo e me desloco para coordenar o Centro de Saúde da cidade
de Valinhos, quando me vinculo claramente aos movimentos sociais pela saúde da região de
Campinas. Em pouco tempo estou coordenando o Distrito Sanitário de Campinas, que abrangia uma
área de 2 milhões de habitantes.
Abro vínculos de muitas ordens. No movimento popular pela saúde, no movimento de
médicos sanitaristas, nas universidades da região, nos militantes partidários de esquerda. No interior
dessa narrativa, destaco como importante minha articulação entre inserção na rede de serviços de
saúde pública da região com um lugar na universidade, procurando atravessar ambos territórios.
Trabalho com um grupo de profissionais da rede municipal que tinha ido construir o departamento
de medicina preventiva na Puccamp e, depois de um tempo, já com a entrada em cena de novas
relações, possibilitadas pelo núcleo do CEBES na cidade e com o encontro, na ação militante, com
Gastão Wagner de Sousa Campos, aproximo-me do grupo da Unicamp. Novos desvios operam em
mim e novos parceiros são constituídos.
Desses processos todos que se sobrepõem, consigo ter claro que minha chegada na região teve
muitos desvios intercessores, impossíveis de serem tratados minuciosamente, aqui. Mas, mesmo
que repetindo, destaco, de novo alguns deles:
Gostaria de destacar, entre tudo isso, os anos 82/84, quando assumi a direção do Distrito
Sanitário de Campinas, também por concurso. Naquele momento, passei a vivenciar com o coletivo
de sanitarista uma experiência de formação de um colegiado de gestão da rede de saúde pública de
cerca de 80 municípios, sob a coordenação do diretor geral dessa estrutura: o Luiz Cecílio. Aliás,
processo já relatado por ele no seu livro Inventando a Mudança na Saúde, que não descreverei
minuciosamente aqui, mas que se tornou um experimento muito relevante para as próximas ações
que parte de nós tivemos nas nossas inserções em estruturas governamentais, lá pelos anos 90,
quando a aparição de governos petistas em vários municípios entra em um crescente, em todo o
país.
Destaco nesse período a forte vinculação que vai ser construída com o pessoal da medicina
preventiva da Unicamp, onde atuavam dois sanitaristas importantes: Nelson Rodrigues dos Santos e
Gastão Wagner de Sousa Campos. Lá vem mais intercessores em mim, que me faz dar voltas
enormes, inclusive operando superações de forma definitiva de uma visão muito determinística da
análise do campo das práticas sociais e a incorporação teórica e militante da disputa de verdades
como eixo das apostas de ações no campo societário.
Sem dúvida, essa mistura vai se enriquecendo de experiências em novas formas de organizar
governos e de incorporação de novos referenciais teóricos metodológicos, dentre os quais destaco a
presença dos pensamentos de Carlos Matus, apresentado para mim pelo Luiz Cecílio. Gastão,
naquele momento, será alguém mais forte na permanente interlocução produtora de ideias novas no
que toca as relações entre academia, serviços e coletivos em ação, construção de análises sobre o
campo da política e a forte militância em busca de um novo modo de ser esquerda, para além das
amarras das tradicionais máquinas partidárias.
Nessa altura, a salada de situações vividas, experiências acumuladas, militâncias efetivadas já
tinham como efeito uma produção em mim de algo que tinha se desterritorializado dos lugares
iniciais dos anos 60 e das acumulações constituídas no campo da esquerda. Sentia que todos saberes
forjados nesse processo tinham seu lugar e podiam negociar entre si. Percebia em mim uma forte
composição de uma caixa de ferramentas, para a ação do viver, que já não admitia certas separações
institucionais, era como se me percebia sendo tudo ao mesmo tempo e os lugares organizacionais
onde atuava como suporte para essas expressões. Já não via mais a política sendo feita só em
partidos ou em movimentos, mas em todo processo que estava em jogo modos de existir.
Radicalmente defender a vida era um ato em si revolucionário, dentro da noção central de que
a igualdade só seria construída na diferença do outro em cada um de nós.
Essa radicalidade trouxe em mim um processo desterritorializante forte e de novos
entendimentos sobre a própria possibilidade de compreender o que eram os campos de práticas
sociais. A vivência da primeira experiência petista de governo em Campinas e Belo Horizonte -
além de acompanhar de perto Santos, com Davi Capistrano e seu grupo, e São Paulo, com Eduardo
Jorge, no começo dos anos 90 -, vão reafirmar isso.
Óbvio que há outras convivências vitais andando por aí nesse período, como a do grupo que
compunha as experiências de governo no Vale do Aço, em Ipatinga (Minas Gerais), como Leda
Lúcia, Fausto Santos, Deborah Carvalho, Alzira Jorge, Antonio Martins e tantos outros. Mas, isso
seria demasiado registrar, mesmo porque parte disso já está descrito tanto no livro Inventando a
Mudança na Saúde, como no O SUS em Belo Horizonte. Experienciando o Público.
Voltando ao começo desse momento do texto, a marca está aí. Já não falo mais de saúde
pública e nem de movimento sanitário, muito menos de reforma sanitária; estou já imerso, mesmo
que seja no campo da construção do SUS, de uma aposta importante em produzir ali no cotidiano da
fabricação das máquinas públicas estatais, novas formas de governar e de produzir política pública.
Estamos todos imersos em uma disputa forte pela produção de uma nova relação estado e
sociedade, no Brasil, em um novo projeto de construção da vida como eixo.
Estar como docente na Unicamp e militante desses processos, só aprofundou aquilo que
registrei antes da intensa desterritorialização do que era agora o fazer a política e o lugar da
construção de novas possibilidades de existências coletivas na sociedade brasileira.
Minha nova caixa de ferramenta tinha mudado os sentidos, tinha se tornada mais polissêmica
- remeto aqui o leitor para o meu texto “Engravidando as Palavras” # -, não mais a via como lugar de
guardar doutrinas que usaria conforme necessidades, mas como lugar para conversar com vários
saberes, que me interessavam pelos tipos de problemas que procuravam enfrentar e por poder me
sugerir modos de pensá-los e de agir (forte influência do Deleuze, hoje, o autor intercessor em mim
mais intenso; junto com a produção de Erminia Silva, realizada no campo da pesquisa histórica
sobre “o circo e sua teatralidade”, no Brasil).
Passei a mirar a singularidade de cada encontro, sob a ótica da micropolítica. Essa me
possibilitava tanto pensar a produção dos atos de saúde, quanto de qualquer outro tipo de processo
social e coletivo, por serem constitutivamente encontro realizáveis. Isso tudo provocava em mim
novas problematizações, novas dobras subjetivantes.
Creio que uma forma de fechar esse conjunto de desvios produzidos nessas conexões todas,
que provocaram em mim muitos nascimentos, como se fosse portador de vidas passadas em uma
única vida, é a de procurar sistematizar alguns dos efeitos que tomo como hoje relevantes para um
momento que não considero tão promissor como os que relatei, pelo menos no campo da construção
fechando, abrindo
Não consigo, hoje, 2010, deixar de colocar que muito do que havíamos desejado ou mesmo
construído durante muitos anos, está indo por água abaixo. Isto é, a intensa luta de milhares de
militantes ou de centenas de coletivos pela construção de um novo campo de práticas de saúde, anti-
capitalístico, se vê diante de muitos dilemas. E ouso dizer mais por dificuldades do próprio campo
da esquerda do que por mérito dos senhores do mercado.
A intolerância à diferença no nosso próprio terreno, a obsessividade de cada grupo querer ser
o hegemônico e aí procurar dominar a cena e se tornar imperativo e dono do verdadeiro projeto,
trazem fragilizações que abriram fissuras em um território antes instituinte, criado de muitas
novidades e em franco processo de consolidação, que era a construção do SUS, no Brasil. Fissura
que permite a entrada de forças de ocupação.
Constato dois elementos analisadores que me permite ver e enunciar certas dificuldades para a
conformação do campo da saúde, como lugar em que a diferença do outro é o mote que dá sentido a
todo esse território institucional: de um lado, a ampla extensão de cobertura que essa política
permitiu no país como um todo, porém capitaneada por um modelo de práticas de atenção devedora
do domínio centrado nos procedimentos profissionais, sem tomar como eixo o outro/usuário, suas
formas de existências e modos de produzir necessidades. Ao colocar sob o tacão da medicalização
as questões sociais, acaba por reduzi-las ao campo de significação do terreno dos adoecimentos e,
portanto, território de domínio do saber agir dos profissionais de saúde, com exclusividade.
De outro lado, o crescimento enorme de um “tanto faz”, no antigo campo sanitário, em
relação aos processos de privatização das coisas públicas, levando o SUS hoje a ter mais a cara de
um “grande plano de saúde pobre, para pobre” do que uma política de estado imbuída da construção
de um novo patamar de cidadanização na saúde, como um todo. A ideia que alguns de nós teve de
“susificar” o campo da saúde suplementar, quando da aparição da Agência Nacional de Saúde
(ANS), se inverteu. O SUS está se “aenessificando”. O mercado e sua lógica penetrou as nossas
fissuras e age de modo forte como poder constituinte.
Vejo que se não encararmos esse tipo de diagnóstico da situação como dramático, não
produziremos boas “resistências” e muitas de toda essas lutas ficarão só como cicatrizes em corpos
individuais e coletivos.
Imagino a necessidade de encarar o fazer cotidiano como o lugar para agir nesse território
fissurado, mas para isso muitos de nós temos que nos colocar em diálogo sobre as seguintes ideias:
• a saúde pública, fragmentada em relação a medicina, ainda foi não superada, em nós; sendo
cada vez mais biopolítica capitalística, do que campo de construção de novas práticas sociais
de saúde;
• a ciência oficial, inclusive no que a própria saúde coletiva se transformou, tem sido um
obstáculo mais do que uma aliada desse processo, e aí torná-la ferramenta mais do que
“saber sobre” é um movimento necessário, para podermos produzir uma resistência
instituinte;
• não há certo e errado, mas disputas de verdades, carregadas de projetos políticos e sociais,
que podem na sua multiplicidade, demarcada pela oposição ao modo capitalístico de
entender a vida, conduzir uma construção coletiva na diferença, que aprofunde promessas do
movimento sanitário, nunca cumpridas;
• temos mais força no fazer comprometido com a produção da vida individual e coletiva, ali
no cotidiano dos coletivos de trabalhadores e usuários, que se encontram aos milhões nas
nossas redes de cuidado, tomando o acontecimento do encontro como lugar de relações de
força para sair do agir sobre a vida para um agir com a vida;
• apostar na construção de coletivos que se vêm enriquecidos com os outros, que estão no
mesmo campo em comum, talvez seja a única forma de revertermos esse processo de
deterioração, que do meu ponto de vista ameaça a produção de uma sociedade mais
comprometida com a vida de todos.
Olho todo esse texto e vejo que não daria mesmo para não produzir no final um desafio, uma
certa convocatória, mesmo reconhecendo sua parcialidade e correndo o risco de estar só trazendo
algo muito centrado, conforme digo no começo, pelo risco de ter optado pela minha lógica
testemunhal. Entretanto, corro esse risco ciente de que aqui há coisas que pode interessar a muitos e
isso o justifica. Continuo apostando que nas nossas diferenças, que ao não se tolerarem se fizeram
fissuras, é onde poderemos encontrar um comum que nos impulsiona para uma ação diferente e que
não permita que o passado fique só para narrativas testemunhais, mas se presentifique aí no mundo
da vida, aqui e agora, em qualquer lugar onde ela pulula e se faz existência.