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MÍDIA, SOCIEDADE DE CONSUMO E SAÚDE: QUANDO COMPRAR TORNA-SE

NOMEUM
DOREMÉDIO
ARTIGO | 67

O PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM SAÚDE


MENTAL: CONSTRUINDO MUDANÇAS
THE RECEPTION PROCESS IN MENTAL HEALTH:
BUILDING CHANGES
Letícia Domingues Zappelini
Aluna do curso de especialização em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
E-mail: leticia.zappelini@ig.com.br
Carmen S. de Oliveira
Doutora em Psicologia Clínica (PUCSP). Professora Titular do Curso de Psicologia na UNISINOS.
E-mail: carmen.silveira@sedh.gov.br

RESUMO ABSTRACT
O presente artigo relata uma experiência de grupo de aco- This article is about a reception group experience
lhimento em saúde mental na rede básica. O enfoque related to mental health in the public health network.
metodológico deste trabalho é o da pesquisa-intervenção, The methodological approach is based on intervention-
utilizando recursos da observação participante e da carto- research, using participant observation and
grafia. O ponto de partida é a problematização de um novo cartography resources. The starting point is a new
paradigma em saúde coletiva, em que o acolhimento é con- paradigm discussion related to collective health. The
siderado um dispositivo de responsabilização clínica e de reception means a clinical responsabilization device
intervenção resolutiva, percebendo os sujeitos com priori- and a resolutive intervention, by identifying people
dade nos atendimentos. Discutem-se os principais emer- who have priority in this service. It contains a
gentes grupais em três encontros semanais, focalizando discussion on the main emerging group subjects in
questões relativas ao compartilhamento das vivências em three meetings a week, focusing on questions related
grupo, a ênfase no diagnóstico e na medicalização. São to sharing the group experiences and the focus on
problematizados os procedimentos burocráticos da equipe, diagnosis and medication. The bureaucratic
bem como os limites do dispositivo de acolhimento em procedures are discussed, including the limits of the
grupo considerando inclusive a perspectiva dos usuários. reception device and the users’ point of view. The
Aponta-se a necessidade de ampliar os sentidos da escuta need to enlarge the meanings of clinical hearing shows
clínica visando à subjetivação das queixas e aos investimen- up, having in view the subjectivation of complaints
tos na autonomização da população usuária. Sugere-se ainda and investments in the autonomy of the user
uma composição multiprofissional e práticas analíticas na population.
equipe de trabalho, a fim de garantir maior continência dos
trabalhadores no uso desta ferramenta de intervenção.
KEY WORDS
PALAVRAS–CHAVE Stress, Psychological. User embracement. Health
Sofrimento psíquico. Acolhimento. Centros de Saúde. Centers.

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INTRODUÇÃO titucional enquanto produção atrelada às prá-


ticas e discursos macro e micro-políticos que
Este trabalho propõe-se a analisar uma invadem, constroem e desconstroem este cam-
experiência de acolhimento com adultos em po. Segundo Barros (1992), a análise instituci-
uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do muni- onal trata de descobrir a ação do instituído em
cípio de Porto Alegre. O acolhimento, como toda e qualquer organização, na medida em
novo paradigma em saúde coletiva, implica a que esta se movimenta pela vontade política
responsabilização clínica, a intervenção reso- de produzir novos problemas. A autora pro-
lutiva e a humanização do atendimento, atra- põe que a análise é a desarticulação das totaliza-
vés da escuta qualificada do problema de saú- ções instituídas e reconhecidas, apontando suas
de do usuário e do estabelecimento de víncu- lacunas e brechas. Daí a importância de que a
los entre o serviço e a população. Deste modo, escuta analítica volte sua atenção ao aparente-
o acolhimento deve começar na recepção do mente sem importância, dissociado, impertinen-
serviço e atravessar todo o processo de tra- te, na busca da lógica do inconsciente.
tamento, incluindo a relação dos trabalhado- O objetivo da intervenção institucional é a
res entre si e destes com os usuários. Todavia, auto-análise e a auto-gestão, que são indissoci-
observa-se que na rede básica de saúde o áveis, pois todo o processo de reflexão e de
modo de recepção das pessoas nem sempre produção de saber sobre problemas, suas ne-
favorece a integralidade destes princípios, sen- cessidades ou demandas (auto-análise) faz com
do várias as dificuldades das equipes no senti- que os grupos tenham força para criar dispo-
do de um trabalho mais coeso e de superação sitivos de transformação das condições exis-
de mecanismos pautados pela cultura de mer- tentes e resolver seus problemas (auto-ges-
cado na área da saúde, tais como o trabalho tão). De acordo com Baremblitt (1998), na
centrado no modelo médico e na fragmenta- medida em que a auto-análise busca implicar
ção dos saberes. os grupos na produção de um saber do co-
Portanto, a partir dos recursos da análise nhecimento acerca de seus problemas, torna-
institucional, propomo-nos a refletir acerca das se necessário levar em conta a transversalida-
práticas clínicas nas políticas públicas de saú- de, que corresponderia ao que Guattari desig-
de. Em primeiro plano, explicitamos o refe- nou por “lugar do sujeito inconsciente do gru-
rencial teórico que sustenta a abordagem do po, o além das leis objetivas que o fundamen-
tema e das ferramentas metodológicas com tam, o suporte do desejo do grupo” (GUAT-
base na pesquisa-intervenção, através da ob- TARI, 1987 apud PAULON, 2002, p. 69).
servação participante e da cartografia. Num Conforme sugere Barros (1994), o traba-
segundo momento, discutimos o mapeamen- lho de grupo se situa na noção de subjetivida-
to do processo de três encontros grupais re- de que não trabalha na esfera do individual, mas
alizados em uma unidade básica de saúde, onde sim, abarca processos de produção social e
se busca analisar em que medida o grupo de material.
acolhimento funciona como um espaço de es-
cuta que contempla a humanização e a resolu- A noção de subjetividade não pode ser, por-
tividade. Ao final, são propostos alguns indica- tanto, confundida com a de indivíduo. Ela não é
tivos para o uso de tal dispositivo pelos traba- um dado e, assim, não é passível de totalização
lhadores de saúde. ou centralização no indivíduo. Uma coisa é a
Para esta análise, tomamos o cotidiano ins- individuação do corpo. Outra é a multiplicida-

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de dos agenciamentos da subjetivação: a subjeti- práticas em saúde. Por outro lado, as institui-
vidade é essencialmente fabricada e modelada ções que predominaram nesta análise foram edu-
no registro do social (BARROS, 1994, p. 149). cação, trabalho e saúde pública, todas em certa
medida perpassadas/subordinadas pela institui-
Considerando que as subjetividades múlti- ção médica, resultando em divergências na atu-
plas circulam nos conjuntos sociais, podendo ação/relação dos profissionais de saúde.
ser apropriadas de forma criativa e produzir Por sua vez, o processo de acolhimento
singularizações, Barros (1995) refere que um se insere no marco teórico do Sistema Único
grupo é composto pelo emaranhado de linhas de Saúde (SUS), cujos princípios apontam para
de muitas histórias que nele se cruzam, pelos a descentralização do atendimento médico,
regimes de enunciação e pela visibilidade que implantando práticas interdisciplinares de pro-
o sustentam. Este é um dispositivo conectado moção à saúde. Contudo, observa-se que a
não mais às unidades/totalidades, mas às pro- instituição médica, contrariamente aos princí-
cessualidades. Caberá, pois, trabalhar as linhas pios do SUS consubstanciados na Constitui-
que o compõem e o atravessam, seguindo suas ção Federal, nas leis nº 8.080/90 e 8.142/90,
múltiplas direções. Assim, define-se o grupo tem se sobreposto, não apenas nas relações
como dispositivo e o coordenador como um entre a equipe, mas também entre os usuários
rastreador das forças em jogo, através do e os serviços, uma vez que a população de-
acompanhamento dos fluxos que se deslocam manda, com prioridade, este modelo. Identi-
no tempo, produzindo modificações nos ter- fica-se ainda que as referências liberal-privati-
ritórios constituídos. vistas predominam na medicina e na saúde
Segundo Lapassade (1977), podemos di- pública. Conforme Merhy (1997), ambas as
ferenciar três dimensões na Análise Institucio- situações concorrem para que os usuários não
nal. O primeiro nível é o do grupo, que o au- sejam tratados como sujeitos portadores e
tor define como sendo a vida cotidiana, que é criadores de direito. Assim, enquanto os pro-
onde se situa a prática socioanalítica da análise fissionais repetem a lógica da mercantilização
e da intervenção. Os grupos são conjuntos de da saúde, cada vez mais, as equipes se tornam
pessoas num processo de relação mútua, que dependentes das propostas medicalizantes. As
visam atingir um objetivo comum. O segundo ressonâncias desta lógica na relação com os
nível da análise é o da organização, definida usuários podem levar à imposição de saberes
como “grupo dos grupos”, tais como o nível sobre os pacientes, tentando aliená-los de seu
burocrático e estrutural, ou seja, o espaço próprio processo.
concreto que efetiva as opções, o que as insti- Em cada estabelecimento se reproduz, na
tuições enunciam. O terceiro nível é o da ins- forma de uma certa síntese, os mecanismos
tituição, isto é, redes de relações, modos de mais gerais de funcionamento social que, na
funcionamento, idéias que circulam em dife- contemporaneidade, são pautados pela cultu-
rentes grupos/coletivos e prescrevem jeitos ra de mercado que tenta homogeneizar os in-
de ser, valores e normas. divíduos. Nos serviços de saúde, isso ocorre
No caso desta pesquisa, o grupo diz res- através da produção em série dos procedi-
peito à própria equipe da unidade básica de mentos de consultas, priorizando a técnica e a
saúde. Compreendemos organização como a velocidade em detrimento da valorização das
Secretaria Municipal de Saúde, na medida em relações humanas. Estes mecanismos precisam
que esta define as regras, normas, rotinas e ser constantemente questionados para que não

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se perpetuem procedimentos burocráticos e espontaneamente, ao contrário, exige a neces-


estereotipados. Desta forma, o trabalho, se- sidade de trabalho árduo, sendo importante
guindo a lógica da mercantilização, é fraciona- haver agenciamentos que incentivem novas
do e ocorre a perda da noção de conjunto do ações.
processo produtivo, a fragmentação do saber No que diz respeito ao atendimento em
e a conseqüente alienação no relacionamento saúde mental, Oliveira (2000) refere que a
entre usuário e profissional, gerando, com isto, qualificação da recepção necessita de uma es-
pouca produção de saúde a todos. cuta atenta, que contribua para romper o ci-
É assim que o acolhimento se constitui em clo de adoecimento psíquico, a partir da pre-
tecnologia para a reorganização dos serviços, ocupação em desmedicalizar a demanda e sub-
com vistas à garantia de acesso universal, reso- jetivar a queixa do paciente. Para além de uma
lutividade e humanização do atendimento, terapêutica da remissão dos sintomas, trata-
(FRANCO et al. 1999). Tal procedimento pode se de promover, na fala do paciente, a emer-
evidenciar as dinâmicas e os critérios de acessi- gência de sua singularidade. Isto vem de en-
bilidade a que os usuários estão submetidos e contro à proposta do Institucionalismo, na
ser utilizado como um dispositivo interrogador medida em que se entende que as queixas fa-
das práticas cotidianas, permitindo captar ruí- lam de um sintoma e se referem ao pedido
dos nas relações que se estabelecem entre usu- que o solicitante fez, enquanto a demanda é o
ários e trabalhadores, com o fim de alterá-las, entendimento que o profissional tem sobre o
para que se estabeleça um processo de traba- pedido. Ou seja, a queixa é o sintoma e a de-
lho centrado no interesse do usuário. manda seria a implicação do sujeito neste sin-
toma construído. Dessa forma, subjetivar a
O acolhimento propõe que o serviço de saú- queixa significa implicar o paciente na sua fala e
de seja organizado de forma usuário centra- nos seus sintomas, convocando-o a pensar
da, partindo dos seguintes princípios: 1) aten- sobre seu mal-estar. Também a sua família ou
der a todas as pessoas que procuram os ser- as pessoas de sua rede social são convidadas a
viços de saúde, garantindo a acessibilidade participar e, portanto, a se responsabilizar pela
universal; 2) reorganizar o processo de tra- construção de um projeto terapêutico.
balho a fim de que este desloque seu eixo cen-
tral do médico para uma equipe multiprofis- METODOLOGIA DE PESQUISA
sional – equipe de acolhimento -, que se en-
carrega da escuta do usuário, comprometen- Desde esta perspectiva, pode-se afirmar
do-se a resolver seu problema de saúde; e 3) que o intuito desta pesquisa-intervenção é o
qualificar a relação trabalhador-usuário que de contribuir com o coletivo na produção/pro-
deve dar-se por parâmetros humanitários, de moção de saúde, tanto nas relações da equipe
solidariedade e cidadania.” (FRANCO, BUE- entre si como nas relações com o usuário,
NO; MERHY,1999, p. 345). desmistificando aspectos das instituições pre-
dominantes que as enrijecem/cristalizam e pro-
Merhy (1997) comenta que a construção duzem sofrimento. Para tanto, é preciso pro-
deste modelo só será possível se houver in- mover no grupo uma ‘crisanálise’. Segundo
vestimento na produção de sujeitos coletivos Coimbra (1995), esse termo cunhado por
autônomos e socialmente responsáveis, que se Lapassade implica na promoção de uma crise
autoproduzem. Não que esta produção se dê no estabelecimento/cliente, favorecendo a

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manifestação ou aparecimento da dimensão menos que não são obtidos por meio de per-
institucional oculta e resultando numa apropri- guntas, uma vez que, observados diretamente
ação da análise e na prática da mesma. na própria realidade, transmitem o que há de
Definimos o enfoque metodológico des- mais imponderável e evasivo na vida real.
te trabalho como pesquisa-intervenção uma Por outro lado, quando se entende o gru-
vez que esta se caracteriza pela afirmação de po como dispositivo e estamos preocupados
uma análise micropolítica do cotidiano, vol- em rastrear as forças aí presentes para pro-
tada para a desnaturalização das práticas, com duzir mais vida nos territórios aprisionados,
o intuito de fazer emergir as dimensões po- estamos realizando um trabalho que se asse-
sitivas do cotidiano institucional e instigar os melha ao cartográfico.
atores sociais, atentos às experiências vivi-
das e a refletir sobre os modelos institucio- O cartógrafo é aquele que quer se envolver
nais estabelecidos. com o traçar, quer navegar no movimento,
De acordo com Barros (1994), a pesqui- quer misturar-se com os acontecimentos, quer
sa-intervenção tem como objetivo indagar os compor territórios que não sejam fixos por
efeitos das práticas dos diferentes fatores so- muito tempo, já que o movimento não cessa.
ciais face à complexidade das diversas rela- A cartografia é um movimento que acompa-
ções sócio-institucionais aí implicadas. Por- nha os movimentos de transformação de uma
tanto, a principal característica de uma pes- paisagem. Nesse sentido, ela é sempre provi-
quisa-intervenção aponta para um movimen- sória e singular. Ela diz das linhas que são pu-
to contínuo de ação e crítica do cotidiano, xadas daqui e dali e que se tecem no próprio
buscando interrogar os sentidos estereoti- acontecer [...]. A cartografia não tem preten-
pados presentes naquele contexto e, ao são de verdade nem de universalidade. Ela
mesmo tempo, dar passagem aos novos sen- acompanha os movimentos e compõe uma
tidos que ali se produzem. Ou seja, na pes- realidade. (BARROS, 1992, p.228).
quisa-intervenção, pesquisador e pesquisan-
do constituem-se ao mesmo tempo e no
mesmo processo de construção de senti- CONTEXTUALIZAÇÃO
dos, rompendo-se as barreiras entre sujei-
to que o conhece e objeto a ser conhecido. A rede de atenção à saúde em Porto Alegre
Não se trata, neste caso, de uma “mudança está distribuída em 16 distritos sanitários, que
de comportamento” no sentido de se che- correspondem às regiões da Prefeitura Munici-
gar a um resultado previamente definido, mas pal e constituem territórios gerenciais, de acordo
de um processo de construção de conheci- com os critérios do Orçamento Participativo.
mento que tem como mote o questionamen- No caso, a experiência a ser analisada se deu
to do sentido da ação. em uma das oito gerências distritais. A consti-
A metodologia da observação participan- tuição desta equipe de saúde mental inicia em
te foi usada neste processo de pesquisa-inter- 1998, com o fechamento de um ambulatório
venção, partindo da idéia de que o observa- estadual de psiquiatria que, durante o processo
dor pode modificar e ser modificado pelo con- de municipalização, passou a ser o alvo de uma
texto. A importância desta técnica, conforme reestruturação mais ampla no modelo de aten-
Minayo (1998), reside no fato de podermos dimento em saúde mental.
captar uma variedade de situações ou fenô- Nesta Unidade, o acesso dos usuários à

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equipe ocorre através do encaminhamento mente, sofrem algum tipo de intercorrência e


formal feito pelos técnicos, bem como dos não comparecem ao grupo de recepção, bus-
postos de saúde que não contemplam este cando muitas vezes outros recursos como as
1
atendimento especializado ou por outras equi- emergências com tratamento medicamento-
pes de saúde mental que identificam a região so. Estas funcionam de modo paliativo às de-
de moradia do usuário e levam em conta a mandas dos pacientes, já que propõem um
proximidade geográfica. imediatismo técnico sem gerar benefícios aos
O número de pessoas que procura o pacientes, que são atendidos por sucessivos
serviço é significativamente maior do que a tratamentos médicos, cada vez com um novo
oferta de atendimento ou o número de vagas profissional, cronificando as queixas sem criar
disponíveis. Desta forma, ocorre um aumen- vínculo e obter resolutividade.
to gradativo de usuários em lista de espera nas No caso desta Unidade Básica de Saúde, o
Unidades Sanitárias onde são cadastrados. A acolhimento foi implantado em grupo, justifi-
marcação de consultas pode demorar entre cado pela grande procura em saúde mental e
três meses a um ano, dependendo do tipo de considerando a forma mais eficaz de acesso
atendimento, o que já demonstra que os ser- ao serviço. Portanto, os pacientes já são rece-
viços, de forma arbitrária e burocrática, inver- bidos nos Grupos de Acolhimento, organiza-
tem a lógica da atenção e forçam os indivíduos dos por faixa etária e acordados previamente
a se adaptarem ao que o serviço se propõe a a partir de um agendamento organizado pela
oferecer sem levar em conta as reais condi- gerência, com definições quanto à data, local e
ções da população. número de vagas por grupo. Alguns critérios
Nota-se que este procedimento, nova- são estipulados pelo serviço durante o anda-
mente, não contempla os princípios do SUS mento dos grupos de acolhimento e consis-
como a universalidade do atendimento e não tem em: trabalho em co-terapia (coordena-
se adequa à proposta de acolhimento. ção de dois profissionais da equipe, que pode-
Quando o serviço interrompe novos aten- rá ocorrer com duplas interdisciplinares), li-
dimentos devido à falta de vagas, cria-se uma mite máximo de doze pacientes em cada gru-
grave distorção no manejo dos encaminhamen- po, duração de até noventa minutos por en-
tos e na construção do próprio tratamento. contro, realização em três etapas, em sema-
Estas listas de espera não constituem locais de nas consecutivas, integração da equipe em reu-
espera passiva, mas um tempo no qual solu- niões semanais.
ções são encaminhadas solitariamente pelos
pacientes, sem qualquer ajuda ou acompanha- A CONSTRUÇÃO DO
mento da equipe, então, freqüentemente, este ACOLHIMENTO
tempo de desassistência representa a perda
de uma oportunidade de se iniciar um trata- O grupo de acolhimento que estaremos
mento adequado e resulta em agravamento da analisando foi desenvolvido em três etapas
condição ou mesmo em internações. consecutivas, no segundo semestre de 2005.
A recepção por agenda resulta em muita Os nomes dos participantes são fictícios para
demora para efetivar as entrevistas. Neste preservar o anonimato dos mesmos. Alguns
período, os pacientes mais graves, freqüente- emergentes grupais foram selecionados a par-
1 Há trinta serviços inseridos na região dessa Gerência Distrital que não possuem equipe de saúde mental e encaminham os
pacientes para essa Unidade

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tir dos acontecimentos registrados em um diá- tas dificuldades dos usuários sejam aprofunda-
rio de campo logo após cada sessão. Destaca- das nesse espaço, pelo risco de não serem
mos nesta pesquisa três analisadores: o com- amparadas na sua devida necessidade, uma vez
partilhamento das vivências em grupo, a ênfa- que não possibilita a duração necessária para
se no diagnóstico e a medicalização. que a confiança e o vínculo sejam mais fortale-
Em primeiro lugar, durante a realização cidos. Isto é o que se observou, por exemplo,
desses encontros, chamou-nos a atenção o fato no caso de Leila, que começou a chorar muito
de que, mesmo a partir das informações for- e até saiu da sala quando um outro usuário,
necidas aos usuários previamente à formação Fábio, comenta sobre a morte de um irmão.
do grupo, no momento de sua recepção à Acompanhada por uma estagiária da equipe,
UBS, ainda prevaleciam dúvidas sobre a dinâ- Leila comenta que não pode ouvir falar de
mica desse tipo de atendimento. No caso do morte e que os problemas dos outros “me-
grupo analisado, Jurema foi a primeira a fazer xem” com ela, pois a sua filha e a sua mãe
uso da palavra e manifestar seu desassossego morreram há dois anos atrás. Convidada a re-
com o formato desse dispositivo: “Não sabia tornar ao grupo, aceita desde que não fale nada.
que a triagem era em grupo e nunca tinha vis- No segundo encontro, outra usuária, Luzia,
to desta forma”. A psicóloga pergunta se não começa a chorar e sai da sala logo depois de
haviam dado esta informação e Jurema respon- ouvir um relato sobre abuso sexual. Com a
de de maneira enfática: “Não!” Enquanto a téc- cabeça baixa, comenta com a estagiária que
nica explica sobre este tipo de atendimento, a também sofreu abuso.
usuária a interrompe para afirmar: “Em primei- Ou seja, nem sempre se pode prever as
ro lugar, nunca tinha visto triagem em grupo... ressonâncias que se produzem no espaço gru-
estas coisas modernas... não entendo mesmo!”. pal em cada um dos participantes. No caso de
Aponta com a cabeça para a moça que está a Jurema, ela acabou dormindo no decorrer do
seu lado e prossegue: “Estamos aqui por causa encontro e ao final diz que não retornaria ao
do meu marido que está infernizando a vida de grupo: “Não venho. Não posso. Estou me ar-
todos, pois tem problema mental”. rastando, não posso caminhar. Só se for de
Percebe-se, paradoxalmente, a surpresa de táxi, mas tô sem dinheiro”. Contudo, talvez o
Jurema em se deparar com o grupo mas tam- motivo mais forte seja mesmo aquele referido
bém a perspectiva de acontecer a des-indivi- desde o início do encontro, pois logo em se-
duação do problema ao trazer outra pessoa guida ela volta a dizer que não gostou deste
para vir junto à consulta, no caso, a filha. O modo de triagem: “Já tenho os meus proble-
mesmo se repete com Joana, acompanhada da mas e não quero levar mais os dos outros nas
sua sogra, Marlene. Todavia, parece que o des- costas”. Esse comentário, parece não levar em
conforto dos usuários diante do procedimen- conta a colocação feita por Renata, momentos
to grupal se refere menos ao possível cons- antes, de que o importante é que cada um
trangimento de uma exposição grupal e mais à possa se identificar com as questões dos ou-
decepção antecipada de não contemplar as tros e se apoiar. Leila também comenta que
demandas de um acolhimento diferenciado em não gosta de ouvir conselhos: “Ninguém sabe
que possam ser melhor escutados. como me sinto e não adianta dizer [...] a dor é
Assim, a experiência em curso nos levou a minha.”
identificar que, por ter um tempo delimitado, Diante disto, parece fazer sentido que um
o processo de acolhimento faz com que cer- dos critérios para os pacientes atendidos no

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acolhimento seria de que não estivessem em crise. O problema de um pode interessar, comover
e mesmo provocar efeitos terapêuticos no
Sua preocupação maior em defender a convi- outro. Pode também causar horror, mas nes-
vência de pacientes graves, ou com compor- se ponto o manejo cabe à equipe. De qual-
tamentos aparentemente inadequados, junto quer modo, esse tipo de atendimento pode
aos demais, pretende desfazer o estigma da permitir discriminar as demandas até onde é
doença mental e socializar as experiências do possível, para localizar a questão do sujeito
sofrimento psíquico [...] todos estão ali bus- em meio ao emaranhado de queixas, que tan-
cando soluções para seu sofrimento. De cer- to podem vir dele quanto dos que o acompa-
ta forma, esse é um fator homogeneizador. nham (FIGUEIREDO, 2004, p. 47).
(FIGUEIREDO, 2004, p. 47).
É por isto que Merhy (2003) comenta que
Entretanto, os critérios que a unidade bá- nos ambulatórios deveriam existir distintos
sica de saúde utilizou até agora para o ingres- dispositivos para ajudar cada cliente a melhor
so nos grupos de acolhimento se circunscre- utilizar os recursos próprios. Assim, qualquer
vem à faixa etária e ao número de usuários. Se processo terapêutico, e não apenas o acolhi-
considerarmos que “todos estão ali buscando mento, visaria aumentar a capacidade de auto-
soluções para seu sofrimento”, também são nomia do usuário para melhorar o entendimen-
comuns em tais encontros referências a histó- to sobre o próprio corpo, o sofrimento, suas
rias de vida repletas de acontecimentos trau- relações com o meio social e a capacidade de
máticos: mortes de familiares por HIV e as- instituir normas e ampliar as possibilidades para
sassinatos, envolvimento com a criminalidade, uma vida saudável.
abusos sexuais, violência doméstica recorren- Desse modo, não se pode atribuir a usuá-
te, orfandade, hospitalizações prolongadas, etc. rios como Jurema uma escassa abertura para
Por isto, são freqüentes comentários como os o exercício de estar junto, tampouco afirmar
de Fátima, em um dos encontros, de que se- sua incapacidade de lidar com os momentos
ria preciso que todos da família fizessem tra- difíceis e de não fugir desses. Trata-se, antes
tamento, ao mesmo tempo em que refere ter de tudo, de constituir um repertório variável
sido “eleita para ser a filha responsável por de formas de atendimento para que cada um
todos”. São sinalizações não apenas de vivên- possa criar espaços possíveis de fala e de in-
cias de desamparo, mas das dificuldades de serção da diferença, e isto passa por uma va-
sustentação de pesados encargos existenciais, lorização da história dos usuários, mesmo pa-
o que pode tornar insuportável, em determi- recendo esquisita a olhares domesticados,
nados momentos, o compartilhamento em como sugere Ganguilhem:
grupo, como o que se propõe no processo
de acolhimento em saúde. A fronteira entre o normal e o patológico é im-
De qualquer maneira, observa-se que um precisa para diversos indivíduos considerados
dos maiores desafios desse tipo de atendimen- simultaneamente, mas é perfeitamente precisa
to se relaciona ao fato de que cada um se sen- para um único e mesmo indivíduo considerado
te convocado, de alguma maneira, a enfrentar sucessivamente. Aquilo que é normal, apesar de
o desafio de conversar em grupo, de falar e ser normativo em determinadas condições,
de ouvir, de escutar e ser escutado e, desta pode se tornar patológico em outra situação, se
forma, a interagir com o outro. permanecer inalterado. O indivíduo é que avalia

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essa transformação porque é ele que sofre suas tua o terapeuta na transferência. Dessa forma,
conseqüências, no próprio momento em que se é possível demarcar a estrutura de defesa do
sente incapaz de realizar as tarefas que a nova paciente, pois as estratégias de intervenção
situação lhe impõe. (1990, p.145) utilizadas pelo terapeuta diferem também, pelo
tipo de estrutura que o sujeito apresenta.
Um outro emergente grupal se refere à Por outro lado, é importante ‘saber’ so-
preocupação com o diagnóstico e com os pro- bre a implicação e a responsabilidade do sujei-
cedimentos médicos. Fátima comenta sobre to com a sua singularidade nos seus sintomas.
o irmão “distímico, que parece esquizofrêni- Identificar as queixas para transformá-las em
co”, ao mesmo tempo em que fala que seu pai demanda contribui para disponibilizar coorde-
“não é normal”. Luzia faz uso de antidepressi- nadas que orientam na experiência analítica,
vo e comenta que provém de “família depres- além de ajudar na comunicação mais precisa
siva”. Joana diz ser “bipolar”. Fábio quer sa- entre os profissionais e pesquisadores, na bus-
ber sobre o seu diagnóstico, diz que vê vultos ca por obter percepções variadas e mais am-
(o irmão assassinado), mas não sabe se é “ape- plas. Contudo, nem sempre o diagnóstico é
nas impressão”. Jurema refere que seu mari- produzido na rede básica de saúde sob esta
do é “sociopata”. concepção. As impressões iniciais muitas ve-
A emergência de tais expressões no gru- zes podem estar equivocadas, pois a clareza
po nos leva a refletir sobre o que se entende necessita de uma profundidade no conheci-
por diagnóstico e como ele é constituído. Se- mento, que pode ser possível com um traba-
gundo Hermann (1997), a palavra diagnostikos lho mútuo entre terapeuta e paciente, o que
significa separação/através (dia) e conhecimen- nem sempre é favorecido quando os atendi-
to (gnose), isto é, uma ação de saber discrimi- mentos são serializados e conduzidos de for-
nando, separando o que é próprio do pacien- ma apressada. De acordo com Hermann
te do que é universal, descobrindo o típico de (1997), a entrevista é um objeto utilitário e o
seu desejo e as configurações que o compõem. número destas deve ser ditado pela necessi-
Todavia, as hipóteses sobre o diagnóstico dade. Além disto, como as causas do sofri-
não poderiam ser arbitrárias, pois só é possí- mento são multifatoriais e o diagnóstico psi-
vel ‘saber’ sobre alguém de acordo com a his- copatológico trabalha com hipóteses, este não
tória de suas relações. Como refere Gangui- deveria ser precipitadamente ‘fechado’, pois
lhem (1990), não há distúrbio patológico em tem que ser reavaliado constantemente.
si, uma vez que o anormal só pode ser apreci- No conto chamado ‘O Alienista’, Macha-
ado relacionalmente. Cabe lembrar que a trans- do de Assis (1995) faz uma sátira da crença
ferência implica sempre uma idéia de desloca- generalizada, que havia no século XIX, no po-
mento, de transporte, de substituição de um der da ciência de tudo explicar, até os mean-
lugar por outro, sem que essa operação afete dros da mente humana. Nesse texto é mos-
a integridade do objeto. Na terapia, a transfe- trado, com sabedoria e ironia, a constante
rência é o principal instrumento e, quanto mais busca da “certeza” científica que deveria ter a
se consegue sustentá-la, mais o processo te- ‘verdade última’, através do personagem fictí-
rapêutico produz. Assim sendo, um diagnós- cio chamado doutor Bacamarte que dizia ba-
tico em psicanálise, diferente de um rótulo, é sear-se na rigidez científica para fazer, de for-
um dos meios de orientação num tratamento, ma fria, o diagnóstico.
que nos diz sobre o lugar onde o paciente si- Tal pretensão ainda se faz muito presente

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na clínica psíquica contemporânea, que busca não são pra resolver as coisas... é só pra ajudá
definir a doença mental com delimitações con- a dormir”. Por sua vez, Jurema revela que fez
troláveis, através de novos procedimentos di- vinte anos de terapia e que já havia passado
agnósticos e medicamentosos. Para além da por vários psiquiatras e medicações e não vai
busca de tal precisão, o diagnóstico continua mais fazer terapia.
sendo o que há de mais controverso na área
da saúde mental, pois o olhar é subjetivado Receitados tanto por clínicos gerais quanto
por aquele que olha, e as vivências pessoais e pelos especialistas em psicopatologia, os psi-
os princípios filosóficos da formação do tera- cotrópicos têm o efeito de normalizar com-
peuta causam influência direta em seu parecer. portamentos e eliminar os sintomas mais dolo-
Portanto, deve-se buscar a produção maquíni- rosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar
ca dos sintomas por parte da cultura e sobre a significação. (ROUDINESCO, 2000, p. 21)
como as instituições tomam para si esta incum-
bência, como no caso da instituição saúde. Assim, a relativização do suposto saber
Por isso, propomos que o processo de médico vai aparecendo em vários momentos
acolhimento não deve se limitar a elencar os do grupo, como quando Fábio diz que, apesar
sinais com base na fenomenologia dos sinto- de usar antidepressivo há algum tempo e vir
mas para classificar a doença de algo vivo e aos encontros de acolhimento, está “na mes-
que não é independente do sujeito que sofre ma”: “O que eu quero é fazer uma atividade”.
ou daquele que o escuta. Torna-se necessário, A imagem da medicação como anestesiamen-
então, compreender dinamicamente os con- to e paralisia surge de forma ainda mais radi-
flitos do sujeito, tomando seus sintomas não calizada em um comentário de Joana, em meio
como empecilhos ao tratamento, mas como a um relato denso que está fazendo ao grupo.
produções existenciais que lhe dão continên- Com a voz embargada, interrompe sua narra-
cia. Isto é o que parece enunciar Renata em tiva e diz: “... estou aqui... o que tem atrás de
um dos encontros quando diz para Fábio que mim”? Ao visualizar uma caixa de remédios que
não deveria ser uma alucinação o que ele esta- estava na sala desde o primeiro encontro, co-
va enunciando, mas um ‘sofrimento grande’. menta a seguir, em tom desesperado: “Tenho
Um terceiro emergente no grupo diz res- vontade de tomar e apagar”.
peito à medicalização. Uma paciente comen- De acordo com Roudinesco (2000, p. 22-
ta, no segundo encontro: “Quero um médico 23), a eficácia da psicofarmacologia mostrou-
pra controlar a minha vida.” Renata diz: “O se limitada, pois “encerrou o sujeito numa
médico não controla, mas ajuda para que pos- nova alienação ao pretender curá-lo da pró-
sa controlar melhor.” Chamou a atenção que pria essência da condição humana”. E ainda
todos do grupo já faziam uso de medicação ressalta que: “sem os psicotrópicos, talvez ti-
psiquiátrica e este fato tem sido praxe em to- vesse havido uma revolução na consciência
dos os grupos de acolhimento. A paciente Jo- humana, dizendo: Não podemos mais supor-
ana fala no segundo encontro: “Tenho muita tar isso!”.
coisa pra colocar pra fora e não consigo, e só Em todas essas afirmações dos usuários é
a medicação não adianta”. Renata menciona que possível notar questionamentos sobre o limi-
é importante para ela ter um espaço onde te do efeito da medicação ao tratar o sofri-
possa colocar as suas questões, enquanto Fá- mento. Observa-se uma certa crítica acerca
bio diz no terceiro encontro: “Os remédios de uma psiquiatria apressada na remissão dos

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O PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM SAÚDE MENTAL: CONSTRUINDO MUDANÇAS | 77

sintomas e que, todavia, lentifica o processo e eficaz, como se não houvesse outro ‘remé-
de mudança das pessoas, talvez pelo não en- dio’ para o sofrimento. A conduta do psicolo-
tendimento de que quem adoece e sofre é, gismo, responde ao pedido de solução para o
antes de tudo, um indivíduo e não um corpo. ‘trauma’, entendido como ameaça ou castigo
Assim, o que tais expressões sugerem é de psicológico por uma conduta errada, com a
que a fala deveria ser privilegiada, não como tarefa moral de corrigir o erro através de uma
manifestação patológica que exige correção ou pedagogia supostamente esclarecida, isto é
resposta imediata, mas como possibilidade de diferente de se utilizar taticamente o recurso
fazer aparecer uma outra dimensão da queixa a uma certa pedagogia para desfazer os ex-
que singulariza o pedido de ajuda e subjetiva a cessos de psicologismo.
queixa.
Mas também um outro modelo, que não o CONSIDERAÇÕES FINAIS
medicalizador, é problematizado nos grupos
de acolhimento. No segundo encontro, Leila Vimos que a proposta de grupos de aco-
diz: “Nunca sei como vou ficar[...] Às vezes lhimento em saúde mental não garante, em si,
estou muito bem e noutras muito mal e não a resolução dos problemas trazidos pelos usu-
gosto de ouvir conselhos. Ninguém sabe como ários, uma vez que estamos diante de situa-
me sinto e não adianta dizer. A dor é minha. ções bastante densas e complexas, que nos
Tenho vontade de bater em quem quer dar desafiam a atender com qualidade e eficiência.
idéia. Se pudesse, tirava o sentimento de den- Assim sendo, se pensarmos esse procedimen-
tro”. Nesta situação, identifica-se a indignação to apenas como uma via mais rápida de aten-
da paciente frente ao contato com quem quer ção, como forma de diminuir listas de espera
ajudar através de conselhos. Ou seja, se há in- e agilizar encaminhamentos aos especialistas,
dicativos de uma certa crítica sobre a concep- é provável que tais grupos de recepção se
ção que permeia o campo da saúde (de que transformem em um procedimento burocrá-
existe um “Ser” ou uma “Entidade”, fortemente tico e estereotipado, ao invés de se constituir
associados à figura do médico e dos psicotró- em um dispositivo de responsabilização clíni-
picos que resolverão, automaticamente, o so- ca e de intervenção resolutiva que perceba os
frimento diante dos impasses da vida humana) sujeitos com prioridade.
também existem. As críticas dos usuários acerca da medica-
Como refere Figueiredo (2004), há riscos lização e do psicologismo nos levam a proble-
de o psicologismo obstaculizar as práticas ana- matizar o atendimento em saúde mental na
líticas. Mesmo os psicólogos com formação rede básica de saúde e em que medida os ser-
em psicanálise tendem a reproduzir algo pró- viços estão implicados na humanização do
ximo do modelo médico, dando diagnósticos atendimento, na escuta qualificada do proble-
precipitados sem rigor científico. Fazem uma ma de saúde do usuário e no estabelecimento
abordagem meio comportamental, até educa- de vínculos entre o serviço e a população.
tiva, confundindo os lugares do psicólogo com Todavia, a recepção parece compor-se
o do assistente social e, mesmo, com o do como um dispositivo importante para refletir
médico. As armadilhas entravam o diálogo clí- a forma com que os profissionais se organi-
nico precipitando duas condutas: do medica- zam, constituindo-se em ‘um bom termôme-
lismo, esta responde ao pedido de ‘remédio’ tro da instituição’, ao tornar mais públicos e
com a solução química, tida como mais rápida transparentes os seus procedimentos clínicos,

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como refere Figueiredo (2004). Ao mesmo REFERÊNCIAS


tempo, favorece uma visibilidade em outro
sentido, aumentando o campo de visão dos ASSIS, Machado. O alienista e outros contos. São
trabalhadores de saúde acerca das problemá- Paulo: Moderna, 1995. 104 p.
ticas dos usuários, em uma perspectiva de in- BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise institu-
tegralidade e singularidade. cional e outras correntes: teoria e prática. 4. ed.
Sugerimos que isto poderia ser mais faci- Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998. 214 p.
litado com o estímulo ao trabalho interdisci- BARROS, R. D. B. de A formação dos Psis: uma ques-
plinar, como prevêem as novas diretrizes do tão sobre ética. Revista do Departamento de Psi-
SUS. Entendemos a interdisciplinaridade no cologia, UFF Niterói, v. 7, n.12/9 1995.
acolhimento, enquanto uma estrutura onde _______. Grupo e produção. Saúde loucura, gru
há reciprocidade, com uma tendência à hori- pos e coletivos, São Paulo: Hucitec, 1994.
zontalização das relações de poder entre os CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 4.ed.
campos implicados. Exige a identificação de Rio de Janeiro: Forense, 1990. 327 p.
uma problemática comum, com um trabalho COIMBRA, C. Os caminhos de Lapassade e da análi-
conjunto, esforçando-se para a decodificação se institucional: uma empresa possível? Revista do
das referências do outro com vistas a uma Departamento de Psicologia, UFF Niterói, v. 7,
aprendizagem mútua, tal como se espera acon- n.1, 1995.
tecer nos grupos de acolhimento. Por isto, FRANCO, T. B.; BUENO, W. S.; MERHY, E. E. O aco-
propomos a interdisciplinaridade como sen- lhimento e os processos de trabalho em saúde: Be-
do uma condição não apenas facilitadora deste tim, Minas Gerais, Brasil. Caderno Saúde Pública,
dispositivo, mas um de seus pressupostos in- v. 2, n. 15, 1999.
dispensáveis, uma vez que favorece a ruptura FIGUEIREDO, A. C. Vastas confusões e atendimen-
dos especialismos e das dicotomias dos sabe- tos imperfeitos. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Duma-
res, ao mesmo tempo em que prepara me- rá, 2004. 184 p.
lhor as equipes para a desestabilização diante HERMANN, F. O diálogo na psicofarmacologia. 2.
da diferença. ed. São Paulo: Cortez, 1997.
Por fim, este trabalho nos permite afir- LAPASSADE, G. Grupos, organizações e institui-
mar que se faz necessário interrogar a pró- ções. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. 118 p.
pria clínica para melhorá–la. Assim, avaliar e MERHY, E. E. Inventando a mudança na saúde. 2.
reavaliar as demandas são exercícios que de- ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 352 p.
veriam estar sempre na pauta dos trabalha- ______.O trabalho em saúde: olhando e experien-
dores de saúde. No caso, sugerimos que as ciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2003.
práticas de análise institucional se constitu- 123 p.
am em ferramentas valiosas para problema- MINAYO, M. C. S. (Org.) Pesquisa social: teoria,
tizar as trajetórias das equipes, bem como método e criatividade. 7. ed. Petrópolis: Editora Vo-
favorecer a constituição de espaços de es- zes; 1997. 37 p.
cuta em seu interior. Dito de outra maneira, OLIVEIRA, A. A clínica da recepção nos dispositivos
propõe-se dispositivos de acolhimento nas de saúde mental. Cadernos IPUB, UFRJ, v. 6, 2000.
próprias equipes, onde as queixas possam PAULON, S. M. A terapêutica do Niilismo: aponta-
ser subjetivadas e transformadas em deman- mentos para uma clínica institucional genealógica. São
das, tal como se espera agenciar junto aos Paulo: 2002.Tese (Doutorado em Psicologia Clínica)-
usuários. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

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O PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM SAÚDE MENTAL: CONSTRUINDO MUDANÇAS | 79

Paulo, 2002.
RODRIGUES, H. de B. C.; LEITÃO, M. B. S.; BARROS,
R. D. B. de Grupos e instituições em análise. Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. 251 p.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise?
Rio de Janeiro: Zahar 2000. 163 p.

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