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Instituto de Geociências
Departamento de Geografia
Belo Horizonte
2009
ii
Belo Horizonte
Instituto de Geociências da UFMG
2009
iii
Inclui apêndices.
Às
CDU: 338.48
iv
Agradecimentos
São tantos aos quais devo agradecer que, se fosse fazê-lo por completo, daria um outro
livro. Para esta simples monografia de conclusão de curso, muitas foram as pessoas
envolvidas direta ou indiretamente. Primeiro, pela participação direta e imprescindível neste
trabalho, devo agradecer a cada um dos habitantes de São Bartolomeu ou dos filhos da terra
que não vivem mais no lugar. A Dona Gilda e seu Célio, que me receberam em sua casa
algumas vezes, com quem conversei muito a respeito da pesquisa e que me apresentaram
muitos moradores. A dona Serma e seu Vicente, que mesmo com a casa cheia sempre me
recebiam bem para uma conversa, ver fazer o doce e até me ensinaram a embalar doce! A
todos os meus entrevistados, que tiraram parte do seu tempo, dedicados a conversar comigo,
me ensinando muitas coisas, contando o que eu não conseguia ver. Obrigada a todos vocês
sem os quais esta pesquisa jamais teria sido apresentada. Espero que eu, de alguma forma,
possa contribuir e retribuir toda a ajuda que me deram.
À banca, devo agradecer os comentários feitos, sem os quais esse trabalho teria
perdido muito. Pelas contribuições de ordem teórica ou formal, devo agradecer muito, vocês
são também co-autores do meu trabalho. À professora Ana Paula pela presença constante ao
longo do curso de turismo e disponibilidade em ler com atenção a monografia.
Ao Bernardo, agradeço pelas conversas sobre temas variados, desde o segundo
período do curso. Pelos trabalhos de campo, onde aprendia a olhar de uma maneira diferente
para os lugares por onde passava. Também agradeço muito pelas conversas nos momentos de
dúvida, tão comuns na minha vida, Bernardo sempre estava na sua sala e sempre muito
disponível. Foi o responsável por muitos empurrões encorajadores.
Ao Carrieri, pessoa “bárbara” (para usar uma palavra muito freqüente em nossas
conversas). Foi um dos professores e amigos com quem mais convivi durante o curso, desde
meu terceiro período, quase todos os dias, nas reuniões de bolsistas, nos grupos de estudo, nas
conversas sobre os temas mais variados, planejamentos de campos de pesquisa e claro, nas
reuniões de descontração. Pelas comidas japonesas e italianas, pelos momentos de diversão e
muito aprendizado. Pelas inúmeras ajudas nos meus artiguinhos para congresso, pelos autores
incríveis que me indicou ao longo desses quase três anos e meio de convivência. Não poderia
deixar de agradecer também a Rosa, por receber a todos os bolsistas em sua casa e pelas
poucas, mas confortantes, conversas. Também a Anita e Tomás devo agradecer pelas risadas e
aprendizados proporcionados.
vi
Aos meus pais que sempre me apoiaram e mesmo com todo meu estresse conseguiam
me ouvir nos momentos de euforia, temor, tristeza e nos de alegria. Às minhas irmãzinhas,
umas mais estressadas que eu, outras menos, mas sempre andando comigo, nas discussões,
desentendimentos e amparos. Aos meus avós, fortes, de espírito muito jovem, que
participaram de toda minha vida e também desta etapa. À vovó, tão conhecida de muitos
como “Tia Teca”, quem mais que ninguém me ajudou a escolher o curso de Turismo, quem
certo dia, descendo a ladeira da Pilar, me surpreendeu perguntando se eu não gostaria de
estudar Turismo, em vez dos clichês Direito, Economia ou Administração.
A Tia Déborah por estar comigo sempre, e mais neste semestre, me recebeu em
Brasília, quando não conseguia me concentrar, na Brasília dos poderes ambíguos, onde me
senti inspirada a discutir a parte teórica do meu trabalho, também cheia das teses e antíteses.
Sempre ancorada pela tia que, cansada, chegava à noite e ainda tinha que agüentar a bagunça
dos meus livros e apostilas espalhadas pela kit.
Ao Vinícius, que tem percorrido comigo esta caminhada, inclusive tendo em campo,
conversado com aqueles que mais participaram da pesquisa, os habitantes de São Bartolomeu.
Além do mais, devo agradecer também sua compreensão nos momentos em que tinha que
trocar uma peça de teatro ou um cinema pela transcrição de uma entrevista ou por uma
viagem a campo.
Em ordem alfabética, porque não há ordem de importância, Gabi, Lu, Mary, Mel e
Milena. Amigas de verdade, que agüentam sempre meus resmungos, meus medos, minhas
ansiedades e que são também parte da minha grande família. A vocês devo muito a conclusão
deste trabalho e mais, do curso de Turismo. A Mary, que durante todo o curso esteve ao meu
lado, compartilhou de críticas, de madrugadas em claro ao ritmo de macarrão à calabresa (o
mais rápido de fazer), coca-cola, café e doce de leite-ninho. Também lhe agradeço pelas suas
leituras, a partir das quais sempre me podava, já que exagero poderia ser meu sobrenome. A
Gabi e Mel que, em meio às piadinhas, sempre acabavam me dando força pra tomar decisões
e como não poderia deixar de lado, pelos momentos “quarto = estação de trabalho” e “lê um
negócio aqui, enquanto eu leio a sua”. Em especial, agradeço à co-autoria de Gabi, com toda
sua inspiração deveras poética, que nos mínimos detalhes me vinha com uma idéia, uma
lembrança e um comentário sempre muito oportunos. A Milena por me acompanhar desde
2002, pelos momentos inúmeros de diversão na Junta Comercial, por ter me apresentado o
Carrieri e demais integrantes do NEOS e por ter participado comigo da pesquisa no Shopping
Popular Oiapoque e no Mercadão de Madureira, épocas de muitos descobrimentos. A Lu,
vii
pelas conversas nos momentos mais desesperadores e nos mais felizes. Pelas conversas das
forasteiras nos corredores da face, desde o prédio do centro ao campus. Pelos cafés com pão
de queijo da FAFICH e pelas semanas de iniciação científica repletas de uma tal “emoção”.
Aos integrantes e ex-integranges do NEOS, que construíram comigo essa trajetória
acadêmica, que compartilharam dos últimos minutos pra enviar um artigo, dos momentos
neosianos, na sala dos bolsistas ou no bar (momentos de muita criação, diga-se de passagem).
Ao Pablo, Gusttavo, Alfredo, Bruno, Leandro, Wallace, Fabrício, Ana Paula e, especialmente,
a Mayumi, que incrivelmente sempre estava presente na internet pra me dar suporte quando
me emocionava nas transcrições das entrevistas e já começava a fazer a análise. A você sou
muito grata por sempre discutir comigo alguns trechos que me deixavam extremamente
inquieta. A Luís Alex quem já leu muitas coisas pra sugerir leituras ou fazer críticas (sempre
muito bem vindas). Pelas comentários, de irônicos a encorajadores. A Carol, pela participação
como co-autora dos primeiros artigos, pelas ajudas no “enquadramento acadêmico”, sem o
qual certamente não teria aprovado nenhum trabalho para congresso ou periódico.
A Raquel Scalco por compartilhar comigo muitas das informações que coletou em sua
pesquisa de Mestrado na APA Cachoeira das Andorinhas, evitando dispêndio desnecessário
de tempo em relação ao material referente às unidades de Conservação que envolvem
diretamente o distrito de São Bartolomeu.
Ao professor Paulo Alvarenga Junqueira, quem em meio a tantos afazeres me recebeu
para contar um pouco sua experiência de pesquisa e mostrar-me os painéis que a equipe fez
com alguns achados das escavações arqueológicas realizadas no distrito, em 1989.
viii
RESUMO
“A gente é dono e não é”: Representações Sociais em torno da Atividade Turística e do
processo de patrimonialização em São Bartolomeu (MG)
Neste trabalho meu objetivo principal foi o de compreender a repercussão da atividade
turística no cotidiano e na organização sócio espacial de São Bartolomeu. Os objetivos
específicos permitem aprofundar nesta discussão, sendo que os principais são os de apreender
as representações sociais dos habitantes em relação ao espaço vivido, sobre os processos de
patrimonialização e de intensificação da atividade turística em São Bartolomeu, um distrito
ouro-pretano. O embasamento teórico foi feito numa perspectiva interdisciplinar. Busquei na
psicologia social as contribuições para a discussão das representações sociais; na geografia
encontrei elementos para discutir a questão dos movimentos de territorialidades, e nas
ciências da linguagem encontrei a Análise do discurso. Essas linhas teóricas sustentam, nesta
pesquisa um plano teórico metodológico que pode servir de amparo a outros pesquisadores
também da área dos estudos da atividade turística. Para empreender esta caminhada, parti de
uma abordagem compreensiva. Na pesquisa qualitativa encontrei a possibilidade de
desenvolver este trabalho, sendo que como forma de coletas de dados, recorri às entrevistas
em primeiro plano e em segundo às observações, de caráter assistemático, sempre atentando
para as contribuições da área da antropologia para esse percurso. Para a interpretação, recorri
à Análise do Discurso de corrente francesa enfocando a questão da construção dialógica dos
sentidos, da polifonia e dos implícitos (pressupostos e subentendidos). As visitas em campo
tiveram imprescindível importância, tendo sido feitas viagens nos anos de 2007, 2008 e 2009.
Neste trabalho foram descortinados três grandes grupos de representações, quais sejam: (1)
representações do espaço onde vivem; (2) representações a respeito do processo de
patrimonialização e (3) representações acerca do sentido da atividade turística em São
Bartolomeu. Essas representações são extremamente importantes para responder à
problemática. Nesse sentido trago com o trabalho algumas contribuições, entre as quais a
possibilidade de instigar à reflexão por parte do morador de São Bartolomeu, em torno dos
processos estudados. E, do ponto de vista acadêmico, para a área de turismo, contribui com o
delineamento de um plano teórico-metodológico baseado na interdisciplinaridade, além de
abordar a questão da não-neutralidade científica e da relação entre pesquisador e sujeito de
pesquisa.
ABSTRACT
“We own it and we don’t”: Social Representations about Touristic Activity and the
Process of Heritage-listing São Bartolomeu (MG).
The present monograph aims at understanding the effect of touristic activity on every-day life
and social-spatial organization of the town of São Bartolomeu. The specific objectives allow
the discussion to be furthered, the main aims of which are to understand social representation
of the local inhabitants regarding the space they live in, about the process of converting the
town into a Heritage-listed one, and of intensification of touristic activity in São Bartolomeu,
town belonging to the municipality of Ouro Preto. The theoretical basis was constructed under
a cross-discipline perspective. From social psychology were sought the contribution to the
discussion of social representations; from Geography, the elements to discuss the issue of
territoriality movements, and language science provided discourse analysis. Such theoretical
lines support the theoretical and methodological plan for the present research project, which
may come to serve other researchers in the area of touristic activity. Such endeavor has its
start in a comprehensive approach. Qualitative research made the present work possible,
interviews having been the foremost instrument chosen for data collection, non-systematic
observation coming second in the light of anthropology contributions. For the interpretation,
Discourse analysis of the French School was applied, in second place, focusing on the issues
of the dialogic construction for the meanings, the polyphony and the implicit elements
(estimated and implied). The field visits were essential, and conducted in 2007, 2008 and
2009. Three major groups of representations were revealed in the present work, namely: (1)
representations of the living space; (2) representations regarding the process of converting the
town into a Heritage-listed site and (3) representations about the meaning of touristic activity
in São Bartolomeu. Such are extremely important representations for a response to the issue.
Some contributions are therefore brought with the present monograph, among which the
possibility of instigating local residents to reflect on the processes studied. Furthermore, from
the academic point of view, to the area of tourism, it contributes to the design of a theoretical-
methodological plan based on cross-discipline approach, besides touching scientific bias and
the relationship between researcher and research subject.
Keywords: Social representations; territoriality movements; touristic activity; heritage-listing process; São
Bartolomeu.
x
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 2: Gráfico do Perfil dos sujeitos de pesquisa quanto à relação com o distrito de São Bartolomeu
............................................................................................................................................................... 59
Figura 3: Gráfico da Relação de sujeitos que permitiram ou não gravação das entrevistas.................. 60
Figura 6: Gráfico do recenseamento geral do distrito de São Bartolomeu, de 1940 a 2000. ................ 81
Figura 7: Região de São Bartolomeu onde as edificações são mais recentes ....................................... 83
Figura 8: Mapa dos Limites da Área de Preservação Ambiental da Cachoeira das Andorinhas .......... 84
Figura 9: Recado na entrada da casa de moradora que oferece alimentação, quando agendado. ....... 114
Figura 10: Recado na ante-sala/hall de casa de moradora que oferece alimentação quando agendado.
............................................................................................................................................................. 114
xi
Sumário
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 13
5.2.1.1 A entrevista....................................................................................................................................56
5.2.1.2 As observações...............................................................................................................................60
7. SEM SILENCIAR “OS OUTROS”, DANDO VOZ AOS QUE VIVEM EM SÃO
BARTOLOMEU ................................................................................................................................. 87
7.2 Representações sociais dos habitantes de São Bartolomeu em relação ao espaço onde vivem ..........91
7.4 “Eles” e “nós” em nosso lar: representações sociais da atividade turística .......................................110
INTRODUÇÃO
Na maioria dos casos, nas ciências sociais e sociais aplicadas, os estudos se voltam
para a dinâmica, mesmo que de maneira indireta. Algumas vezes observamos que são estudos
complexos que analisam a dinâmica e seu contexto. Noutras, nos perdemos em meio a uma
dinâmica que sequer conseguimos compreender. Falar em transformações na
contemporaneidade é lidar com uma gama variada de experiências. São muitos os
movimentos, as noções de espaço e de tempo que se configuram diante da vida moderna.
Falando sobre a produção de Henri Lefebvre, Geiger (1996) mostra brevemente as
contribuições do autor no que tange à modificação das formas de ocupação do solo e
acrescenta:
É um pouco dessa transformação atual que pretendo estudar nesta ocasião. Como dito
por Geiger (1996) a atividade turística atualmente é uma das responsáveis por uma alteração
na formação econômico-social e, provavelmente, sócio-espacial.
O fluxo de pessoas gerado pela atividade turística vem se intensificando cada vez
mais. Empiricamente temos observado nos nossos arredores o surgimento de diversas
categorias e de grande volume de meios de hospedagem e de outros serviços turísticos, como
agências de turismo receptivas, e grande quantidade de novos atores, entre eles os
infomediadores1 do turismo (KOSACA, 2009). Tudo isso aparece por dois motivos,
associados ou não. Um deles é o fato de se precisar atender a um público que cada vez mais
vem crescendo, sempre com novas expectativas e necessidades. O outro é a crença de que na
1
Infomediadores constituem uma nova categoria de intermediador de produtos turísticos, entre fornecedores e
turistas. Esse novo sujeito aparece na medida em que se observa o começo da popularização das viagens e uma
mudança de hábito do viajante, que tende a querer mais flexibilidade no planejamento de suas viagens.
14
2
Essa crença, suponho, vem sendo gerada devido ao discurso que se constrói em torno do “turismo” e aqui é um
turismo reificado mesmo, que se torna emblemático, que passa a ser desejado tanto nas grandes cidades como
nos pequenos povoados. É um “turismo” que pode ser traduzido como meio de comercialização do espaço ou da
cultura (principalmente por meio da patrimonialização) (PAES-LUCHIARI, 2006). Esse último motivo pode
gerar uma série de discussões sobre políticas públicas, sobre geografia cultural, ou a respeito do consumo do
espaço e do patrimônio como espetáculo. Sendo assim, não entrarei mais no mérito que merece muita atenção e
ficará para pesquisas próximas.
15
tanto, realizei um estudo de caso sobre um distrito, no qual os habitantes têm visto aumentar o
número de visitantes, nos finais de semana e nas férias: São Bartolomeu. Há apenas 13km de
Ouro Preto, está o vilarejo setecentista que estudo nesta oportunidade.
Nos últimos anos, os habitantes de São Bartolomeu vivenciaram alguns eventos que
lhes eram estranhos, tais como: aumento do fluxo de visitantes, a criação da Área de Proteção
Ambiental (APA) Cachoeira das Andorinhas, o tombamento municipal do conjunto
arquitetônico residencial e religioso central, a criação da Floresta Uaimii e, mais
recentemente, o registro dos doces artesanais que ali são feitos, como patrimônio imaterial.
A escolha desse locus envolveu alguns aspectos. Primeiramente por estar muito
próximo a um dos pólos turísticos indutores (uma das regiões prioritárias nas políticas
públicas) do estado de Minas Gerais e por ser um dos pontos indicados da Estrada Real. Em
segundo lugar por uma questão pessoal, uma vez que há um ano havia feito uma pesquisa
para conclusão de uma disciplina, mas com o foco no meio ambiente; e, ainda antes disso, no
terceiro mês de 2007, por ter ido como turista ao lugar. Devo colocar que estudando as
relações que constituem a atividade turística, ser turista sem pensar nas relações sócio-
espaciais, é extremamente difícil, para não dizer impossível. Foi por esses contatos com as
pessoas do lugar – no lugar – que despertou em mim o interesse em estudar essa localidade,
nesse sentido, minha inspiração para esta pesquisa teórico-empírica é análoga à inspiração de
Henri Matisse na composição de suas pinturas. Este é então um estudo de caso a partir do qual
espero poder contribuir tanto para o locus como para o desenvolvimento teórico-
metodológico na área dos estudos em torno da atividade turística, já que, como colocarei a
seguir, pretendo trazer contribuições de outras ciências sociais e sociais aplicadas.
Conforme cita Goldenberg (1997, p. 29) para Park (integrante da Escola de Chicago) a
cidade seria um “laboratório de pesquisas sociológicas por excelência”. Justifico aqui meu
estudo pelo fato de ter me proposto a pesquisar um lugar que recentemente começa a ter na
atividade turística uma possibilidade de outro ganho financeiro, ainda que esporádico.
Acredito que esta influencie nas transformações sociais e espaciais, portanto deve ser
investigada observando o resultado dessa atividade. Lanço-me na aventura de tentar trabalhar
com teorias partindo de uma perspectiva interdisciplinar para compreender as transformações
geradas pela atividade turística em São Bartolomeu. Essa proposta teórico-metodológica é
justificada por ter caráter compreensivo e por ser uma possibilidade de discussão que preceda
projetos de planejamento ou que ajudem na avaliação de programas em implementação,
16
buscando entender a relação entre habitante, espaço e demais sujeitos envolvidos nos fazeres
turísticos.
De acordo com Simmel (1973, pp.11-12), faz-se necessária uma “investigação que
penetre no significado íntimo da vida especificamente moderna e seus produtos, que penetre
na alma do corpo cultural”. Apesar de o autor não ter apontado claramente, acredito que essa
problemática tenha a ver com as transformações na organização social da vida cotidiana em
cidades, envolvendo os valores, as ações, as relações interpessoais e, portanto, a construção
dos sentidos. Apesar de Simmel (1973) partir de uma abordagem demasiado psicológica,
recorro a ele em algumas contribuições, mas devo já precaver o leitor de que a abordagem que
proponho é mais psicossocial, como fica claro no referencial teórico. Nesse sentido, trato mais
da relação entre os indivíduos, priorizando histórias de vida, mas que estão ancoradas em
histórias sociais, como aparecerá com freqüência nos próprios recortes de entrevistas.
Concordando com esse autor, a respeito da necessidade de pesquisas contemporâneas
que abarquem as transformações da vida moderna, pretendo saber se há repercussão da
atividade turística em São Bartolomeu-MG. Em função da mobilidade de sujeitos na
atividade turística, altera-se o cotidiano no distrito de São Bartolomeu? Se sim, essa
mudança é apenas sazonal ou influencia um novo modo de vida?
Estou concordando inteiramente com Simmel (1973, p.23), segundo o qual “o
indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que
arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-los de sua
forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva”. O autor fala aqui de um contexto
geral global no qual o sujeito, que é um ser social, perde sua importância pela ação, passando
a constituir-se apenas um elemento da organização, no caso a cidade. Embora Simmel tenha
falado muito sobre as metrópoles e tenha usado sua experiência cultural-histórica européia
para tanto, acredito que o fenômeno dessa objetivação da vida cotidiana esteja se
disseminando nos modos de vida exigidos pela atual sociedade. Acredito que a explosão
urbana (para recorrer a uma expressão bastante lefebvriana) esteja alcançando áreas antes
consideradas rurais por meio da atividade turística, criando, por conseguinte novas
configurações territoriais.
É nesse sentido, além de outros motivos tangenciadores e que serão explicitados no
corpo do trabalho, que mostro a importância de não considerar apenas a percepção ambiental,
mas abarcar as representações sociais. Se considerasse apenas a abordagem da geografia
humanística (percepção ambiental), não encontraria na literatura menções a trabalhos que
17
desenvolver, portanto foi mais difícil apreender as representações sociais. Mas entendo que
este tipo de esforço deve ser empreendido, como forma de compreender a situação e de
simultaneamente induzir os próprios habitantes uma reflexão em torno dela. Como dizem
Certeau e Giard (2003):
Com palavras minhas, fazendo uma transição por meio das práticas cotidianas, faço a relação
entre as representações sociais e os movimentos de territorialidade.
No quinto capítulo apresento o percurso metodológico da pesquisa, que compreendeu
uma breve discussão a respeito da linguagem como possibilidade, recorrendo a teorias da
Análise do Discurso e em seguida o delineamento formal do estudo. Neste capítulo apresento
também as maneiras de coleta de dados (entrevista e observação assistemática) e a escolha da
análise do discurso para a etapa de interpretação.
No sexto capítulo, construo um breve histórico de São Bartolomeu lançando mão das
contribuições historiográficas de vários autores, das bibliografias de alguns viajantes que
deixaram seus relatos e como não poderia ser diferente nesta pesquisa, também esse histórico
está constituído de memórias dos entrevistados.
No sétimo capítulo, talvez o mais polifônico, apresento, sem silenciar “os outros”3, as
vozes dos que vivem em São Bartolomeu. Sem silenciar os outros porque em muitas das falas
dos habitantes aparecem menções a discursos construídos por esses “outros” e ainda algumas
vezes aparecem citações, recurso este explicitamente polifônico. Seguramente este é também
o maior capítulo, porque é nele onde atinjo os objetivos específicos em relação à empiria do
trabalho. Nele há discussões referentes à relação dos habitantes com São Bartolomeu, aos
processos de patrimonialização/preservação e no que tange à construção do sentido da
atividade turística e as transformações sócio-espaciais por ela induzidas.
No oitavo capítulo é onde coloco as considerações finais, onde respondo à
problemática desta pesquisa de maneira mais explícita, porque tenho certeza de tê-lo feito aos
poucos a partir das análises. São considerações finais, mas não absolutamente terminadas, já
que tudo isto é um vir a ser constante, heraclitiano por assim dizer. E, por fim, no nono
capítulo coloco um pouco da minha experiência nesta pesquisa, um relato totalmente pessoal
com aspectos interessantes que estão interligados a outras pesquisas das quais participei e
com temas inquietantes.
A posteriori de todas essas discussões, estão dispostas para qualquer consulta as
referências bibliográficas e os apêndices.
3
A esses “outros” chamo os visitantes esporádicos e os turistas. Estou neste grupo certamente!
20
2. POSICIONAMENTO EPISTEMOLÓGICO
Esta parte foi escrita com o objetivo informar ao leitor o que entendo pelo “fazer
científico” e, por conseguinte, meu guia epistemológico que inclusive justifica meu
posicionamento teórico-metodológico. A reflexão em torno de como construir conhecimento
necessariamente determina a questão da objetividade versus subjetividade e da neutralidade
versus não-neutralidade. Isso, pois, entender o caminho é chegar no como alcançar/construir.
Esse “como” ou o caminho constitui a relação entre pesquisadores, método e objeto.
O “fazer científico” definitivamente não quer dizer um fazer objetivo e neutro. A essa
constatação cheguei tanto na leitura de Weber (2001) como na prática que me proporcionou a
iniciação científica. Se fosse objetivo, não teria porque ficarmos discutindo diversas questões
em busca das análises que são sempre muito relacionais. Não busco uma verdade absoluta,
porque acredito que verdades dependem da interação de sujeitos, do espaço e do tempo.
Revejamos a epígrafe deste capítulo, observemos que mesmo quando se busca a maior
objetividade na representação, o olhar, as histórias de vida e a socialização interferirão nas
imagens elaboradas, nas narrativas construídas. Como na arte, na ciência isso também ocorre,
os vários olhares sobre um mesmo locus podem mostrar diferentes aspectos e discussões
importantes. Muitas vezes os diversos olhares são complementares, podendo serem
entrelaçados, analogamente, colocados numa mesma exposição temática.
Inicialmente, nas bases positivistas da ciência, falou-se muito em objetividade e
neutralidade científica nas ciências sociais, por exemplo, quando Durkheim (1895/2004) trata
a sociedade de maneira análoga ao organismo vivo e projeta um método científico para as
ciências sociais. Neste trabalho me debruço sobre o problema de pesquisa com vistas às
21
4
Apesar de definir neste trabalho a preferência pelo termo “atividade turística”, pelos motivos que explicito a
seguir, nas citações e nas menções aos escritos de outrem preferirei manter o termo que empregam eles. Porém,
23
reafirmo a necessidade de questioná-lo e por esse motivo às vezes usarei aspas para lembrar-lhes desse
questionamento.
5
Para Nicolas (1996):
Espaço-tempo circular é “um modelo no qual a permanência e a repetição se constroem a partir da apropriação
imutável (ou de transformação muito lenta) do espaço”. (NICOLAS, 1996, p.86); E
Espaço-tempo linear representa “Essa nova relação tempo-espaço implica que as sociedades ocidentais gastam
uma enorme quantidade de energia para se apropriar dos espaços, diferenciá-los, a fim de construir lógicas
parciais (temporais e espaciais) e inovar, como fuga para adiante, como marcha societária”. (NICOLAS, 1996, p.
88).
24
A atividade econômica do turismo, por sua vez, não somente aprofunda essas
contradições como, também, tira proveito delas, na medida em que promove o
consumo do espaço e a cidade lhe aparece, portanto, também como mercadoria
(CRUZ, 2009, p. 6).
Nesse trabalho, Cruz (2009) mostra uma vez mais a marcação dos limites entre a
cidade turística e a cidade dos excluídos, a separação entre a metrópole cosmopolita pós-
moderna e a “precariópolis”6.
Como dito anteriormente, essa atividade turística, ainda que gere muitas divisas e que
tenda a “preservar” a cultura e o patrimônio ambiental pode repercutir em várias outras
questões, que estão apresentadas no desenvolvimento analítico dos dados desta investigação.
A própria noção da “preservação” aparecerá discutida, no que tange à “renovação de uso”. Ao
colocar entre aspas a palavra preservar, proponho, por conseguinte, uma reflexão em torno do
que ela quer dizer para os habitantes do lugar e para as pessoas diretamente relacionadas à
atividade turística. Deixo aqui uma idéia para trabalhos futuros. A seguir faço apenas uma
breve discussão em torno do processo de patrimonialização, sendo seu aprofundamento
requerido na próxima oportunidade. Não me aterei a ela, mas tal como a atividade turística, é
um dos elementos que supus ser indutor de transformações na organização do espaço de São
Bartolomeu e merece uma breve discussão.
6 Segundo Hidalgo, citado por Cruz (2009) a “precariópolis estatal” corresponde à parte dos territórios
metropolitanos das cidades latino-americanas ocupada por habitações sociais, constituindo espaços
geograficamente periféricos, segregados e fragmentados.
27
histórias corrompidas pelo tempo, ou selvagens, vindas de não sei onde, são
educadas no presente. É claro que os processos pedagógicos de que são objeto
comportam uma contradição interna: elas devem ao mesmo tempo preservar e
civilizar o antigo; tornar novo o que era velho (CERTEAU; GIARD, 2003, p. 194)
Nesse sentido, esse processo pode ser entendido como “passagens sobre múltiplas
fronteiras que separam as épocas, os grupos e as práticas” (p. 194). Dessa maneira é que
podemos localizar as transformações sócio-espaciais, na medida em que esse é um processo
que gera mudanças nas práticas relacionadas às apropriações dos espaços.
Não é por acaso que os autores falam em ser o processo de patrimonialização um
separador de limites das práticas cotidianas. Essa é também uma discussão importante que
farei na análise dos dados em torno dos processos de preservação que criam o cenário das
transformações sócio-espaciais em São Bartolomeu. Os autores adiantam uma importante
discussão, para eles todo processo de patrimonialização implica em certa medida, uma
“restauração” e:
3. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
7
Mary Jane Spink até 1996 apoiava e participava da discussão das Representações Sociais, contribuiu com
textos epistemológicos e com possibilidades metodológicas. No encontro da Associação Brasileira de Pós-
graduação em Psicologia Social (ABRAPSO) ela rompe com a TRS e se volta para os estudos das práticas
discursivas e da produção dos sentidos no cotidiano. Acredito que a posição da autora contribua inclusive para o
amadurecimento da disciplina, uma vez que com os questionamentos, os conceitos são cada vez mais
desenvolvidos. As críticas da autora permitem melhor reflexão neste trabalho, que a despeito da proposta da
autora, tenta juntar as duas abordagens, das práticas discursivas e produção dos sentidos, com as Representações
Sociais.
30
que trabalham com ele. A justificativa para tal é que os estudiosos mais recentes acabaram
desenvolvendo mais sua teoria e apresentando casos de aplicação que facilitam meu trabalho,
no âmbito da interdisciplinaridade. Alguns autores mais recentemente têm questionado a
teoria, fazendo com que ela amadureça mais.
Tento apreender os aspectos discutidos na disciplina, fazendo uma proposta que
relacione diretamente as Representações Sociais com a Análise do discurso francesa, o que
antes era até bastante difícil, como nos lembra Spink (1996), segundo a qual haveria uma
intolerância entre os analistas do discurso (construcionistas) e os pesquisadores das
Representações sociais (construtivistas).8
A teoria das Representações Sociais vai buscar, tanto dentro da Psicologia como
fora dela, as possibilidades de reconstrução teórica, epistemológica e metodológica a
que se propõe. É o caráter dessa busca que lhe faz ser tanto uma teoria específica da
Psicologia Social como um empreendimento interdisciplinar (JOVCHELOVITCH;
GUARESCHI, 1994).
8
Arendt (2003) fez uma interessante discussão a respeito das abordagens construcionista (tende ao
sociologismo) e construtivista (tende ao psicologismo), dentro dos estudos da Psicologia Social. Ele mostra que
o Construtivismo surge a partir da perspectiva piagetiana de conhecimento, um ponto de vista construtivista
radical seria aquele que mostra que um sujeito não modifica sua forma de pensar por meio de convencimento,
apenas o faz se e somente se ele por si só observa na prática que sua forma de pensar não lhe convém. De outro
lado, o Construcionismo estaria numa perspectiva mais interacionista da construção social. Para Arendt (2003) o
grande problema atual é a questão dos radicalismos de uma corrente e de outra, para uma análise mais
compreensiva, seria conveniente a associação das duas perspectivas e o aproveitamento das críticas uma à outra.
Portanto, a discussão que proponho neste trabalho é que a representação social não deve ser encaixada como
uma abordagem construtivista, mas uma mescla de ambas, pois envolve tanto o conhecimento construído com a
práxis, como o conhecimento cotidiano construído a partir da interação e da linguagem, enquanto construções
sociais.
31
posterior, e não como fenômenos que devessem ser eles próprios explicados” (PEREIRA DE
SÁ, 1995, p.23), o que não é compartilhado pelos que tomam o fio condutor das RS.
Para Serge Moscovici, o conceito de representações coletivas não era suficiente para
entender os novos fenômenos detectados. Seu objetivo passou a ser, então, o de desenvolver
“uma modalidade específica de conhecimento que tem por função a elaboração de
comportamentos e a comunicação entre indivíduos” no contexto da vida cotidiana (PEREIRA
DE SÁ, 1995, p.23). Isso ocorre ao redor dos temas que envolvem o cotidiano dos sujeitos.
Ela não é apenas social, porque não é reducionista, nela não aparece a proposição de que os
indivíduos estariam sempre e completamente sob o controle de uma ideologia dominante.
Tampouco é apenas psicológica, porque essa perspectiva se restringe à consideração de que
nossas mentes simplesmente armazenam informação e as transformam em julgamentos e
opiniões. Na abordagem psicossociológica:
9
As condições de produção são imprescindíveis para o entendimento deste trabalho, elas aparecem tanto neste
referencial de representações sociais, como na abordagem metodológica, na conceituação de linguagem e nas
bases da Análise do Discurso de corrente francesa.
32
amadurecimento deste trabalho, tanto a partir de sua tese, como em conversas breves, porém
esclarecedoras.
Vendo os objetivos desta pesquisa, alguém que esteja pouco relacionado à área
poderia perguntar-me se não estou fazendo uma simples pesquisa de opinião. Poderiam deixar
minha pesquisa junto com outras enquetes. Mas já de antemão coloco, apoiando-me em
escritos de Moscovici, que há diferenças muito marcadas entre opinião e representações
sociais. Pois bem, comecemos da possível crítica, resguardando-me dela e dando espaço a
outras que venham efetivamente a contribuir com este trabalho.
Como diz Moscovici (1979) a opinião é uma tomada de posição sobre um determinado
problema. Uma pesquisa quantitativa bastante simples, uma enquete, por exemplo, apontaria
para a opinião de um grupo, mas não para as representações sociais do mesmo. A opinião é
muito instável e em geral é apontada desvinculada de um contexto, freqüentemente se refere a
pontos muito particulares, perguntas bastante reducionistas e respostas, obviamente, muito
simplistas. A opinião está muito associada às imagens, que desempenham o papel de telas,
como diz Moscovici (1979). E não pára por aí, antes mesmo dessa fala de Moscovici, em
1972, Bourdieu numa palestra que foi publicada em 1973, disserta sobre a inexistência da
opinião, tal como ela é colocada nas ditas “pesquisas de opinião”. Bourdieu (1973) critica os
três postulados básicos10 das pesquisas de opinião. Na sua voz:
o que me parece importante é que a pesquisa de opinião trata a opinião pública como
uma simples soma de opiniões individuais, recolhidas numa situação que no fundo é
a da cabine indevassável, onde o indivíduo vai exprimir furtivamente, no
isolamento, uma opinião isolada. Nas situações reais, as opiniões são forças e as
relações entre opiniões são conflitos de força entre os grupos (BOURDIEU, 1973, p.
9).
10
Os três postulados criticados por Pierre Bourdieu em comunicação feita em Noroit (Arras), a respeito
da (in)existência de opinião pública são:
(1) “Qualquer pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou, colocando de outra
maneira, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos”;
(2) Nas pesquisas de opinião “supõe-se que todas as opiniões têm valor”;
(3) O “fato de se colocar a mesma questão a todo mundo, está implícita, a hipótese de que há um consenso
sobre os problemas, ou seja, que há um acordo sobre as questões que merecem ser colocadas”.
33
idéias, imagens, concepções e visões de mundo que os atores sociais possuem sobre
a realidade, as quais estão vinculadas às práticas sociais. (...) Representações essas
que emergem de seus interesses específicos e da própria dinâmica da vida cotidiana
(MOREIRA; OLIVEIRA, 1998, pp. xi-xii).
Nesse sucinto conceito, apenas um item merece ser questionado. Para deixá-lo mais
consistente, opto por trocar o “possuem” pelo “constroem”. Não é apenas um capricho, mas
nesta mínima mudança acredito fortalecer a apreensão do caráter dinâmico das RS e
simultaneamente coadunando com uma proposta mais construcionista, em detrimento de uma
estritamente construtivista. Os próprios autores no final da conceituação remetem
Representações Sociais à dinamicidade do cotidiano, corroborando com minha proposta de
apropriação com adequação deste entendimento em torno do conceito.
Farr (1994) alude a essa crítica de Moscovici à equiparação entre as representações e
as opiniões. Segundo o autor, “Moscovici suspirou pelo dia em que as representações sociais
pudessem substituir as opiniões e imagens, pois esses termos são demasiadamente estáticos e
descritivos” (FARR, 1994, p.49).
Segundo Moscovici (1979), para tratar das representações sociais não se pode fazer
uma separação entre universo exterior e universo do indivíduo, isso porque, de acordo com
sua abordagem, sujeito e objeto não são heterogêneos, eles existem em decorrência dos meios
e dos métodos que permitem conhecê-los. É por esta razão que considero as Representações
Sociais em seu aspecto dinâmico, já que sua principal característica é a produção de
comportamentos e de relações com o meio, é uma ação que modifica de maneira dialética
meio e sujeito, é uma construção social, portanto não é meramente uma reprodução dos
comportamentos, é resultado das relações. É possível considerar que a representação social é
uma “preparação para a ação (...) na medida em que remodela e reconstitui os elementos do
meio no qual o comportamento deve ter lugar” (MOSCOVICI, 1979, tradução minha).
Moscovici (1979) deixa claro que “não consideramos ‘opiniões sobre’ ou ‘imagens de’, mas
‘teorias’ das ‘ciências coletivas’ sui generis, destinadas a interpretar e a construir o real”
(tradução minha, grifo meu).
As representações sociais, segundo menciona Moscovici (1979), estão entre o conceito
e a percepção, neste sentido, elas se localizam entre o fortemente cognoscitivo e seu oposto
sensorial. Para esse autor, as representações são o meio termo, em que a percepção é
processada, ela surge, por conseguinte do misto, que passa pela esfera sensório-motriz à
esfera cognoscitiva (MOSCOVICI, 1979). Pensando nisso, concluo que essa relação entre a
percepção e a representação pode ser identificada a partir da ancoragem, ou seja, de tornar
34
familiar aquilo que é não-familiar. Essa concepção de Moscovici, segundo Farr (1994) advém
da contribuição de Piaget, o que é corroborado também por Jovchelovitch (1994). Nesse
ponto, portanto, podemos observar as contribuições da abordagem construtivista para a
psicologia social. Concordo assim com Moscovici para quem “a representação não é uma
instância intermediária, mas um processo que faz com que o conceito e a percepção de algum
modo sejam intercambiáveis, porque se engendram reciprocamente” (MOSCOVICI, 1979,
s/p).
A representação social seria, pois, a exteriorização da percepção e, especificamente,
como estamos falando de um espaço, seria a exteriorização da percepção ambiental
(AMORIM FILHO, 1987), o meio pelo qual se poderiam identificar imagens construídas nos
diálogos cotidianos.
Depois, a preferências pelas RS, em detrimento da Percepção Ambiental, é justificada
por outras necessidades teóricas que observo serem pouco discutidas pelos autores-base da
Percepção Ambiental. Eles enfocam muito, e com bastante destreza, o conceito de lugar. Mas,
em se tratando de Atividade Turística e com base em outros trabalhos realizados, com
destaque especial para Murta et al (2009a), sinto falta de trabalhos que adentrem a relação
entre espaço, representação e apropriação, física ou simbólica.
Para nortear a proposta, sigo o fio condutor das representações sociais, enquanto
representações que são dialogicamente formadas. Essas representações são socialmente
construídas e em geral precedem uma ação coerente. Uma autora que muito contribuiu na
elaboração do conceito voltado para o interacionismo foi Jovchelovitch (1994), ainda que
tenha se apoiado em alguns conceitos piagetianos. A autora apontou para a importância de se
considerar nas representações sociais a totalidade da formação desde a perspectiva da
intersubjetividade, em detrimento de várias representações individuais. Para a autora,
recuperar a noção de conexão entre os sujeitos e a sociedade é uma das tarefas cruciais para o
pesquisador que se aventura nesses estudos. Para ela, as representações sociais são símbolos
construídos coletivamente. Vale destacar que essa noção do coletivo não quer dizer que um
grupo tenha se unido em torno de um só objetivo comum. O que ela muito bem coloca é que
essas representações são formadas no cotidiano dos sujeitos e entre eles. Mais ainda,
Jovchelovitch (1994) contribui enormemente para o desenvolvimento deste trabalho, quando
menciona que:
35
Não está nem abstraído da realidade social, nem meramente condenado a reproduzi-
la. Sua tarefa é elaborar a permanente tensão entre um mundo que já se encontra
constituído e seus próprios esforços para ser um sujeito (JOVCHELOVITCH, 1994,
p. 78).
É interessante que por meio das representações sociais é possível trabalhar com o
universo dinâmico. No trecho supracitado, Jovchelovitch (1994) também dá suporte à
adequação que sugiro para a conceituação de Moreira e Oliveira (1988). Digo isso porque
uma das bases das representações sociais é o deslocamento do insólito passando a familiar e
do que é comum e rotineiro passando a estranho. Dessa maneira, as transformações, os
espaços (físicos e simbólicos) dinâmicos indicam certamente dificuldade de expressão, de
encontrar as palavras para representar/interpretar algo que não lhe é comum. De outro lado
existe também a dificuldade de colocar para fora o já interiorizado, quer dizer colocar em
reflexão aquilo que já foi incorporado à rotina, que já foi naturalizado, que “é porque é”, que
foi mecanizado e às vezes em torno do qual já se tem um discurso formado. Representá-lo
implica também em refletir sobre ele. Para Moscovici (1979)
11
Nesta nota compartilho uma curiosidade com o leitor: coincidência ou intertextualidade, não posso dizer ao
certo, o termo “arena” foi usado tanto por Jovchelovitch (1994) como por um dos autores base da corrente da
Análise do Discurso a quem recorro neste trabalho. É interessante como convergem as visões em torno dessa
metáfora. Não tenho observado nas referências bibliográficas da autora, menções aos trabalhos de Mikhail
Mikhailovich Bakhtin. Bakhtin (1929/1999) fala sobre o discurso como arena de conflitos e Jovchelovitch
(1994) mostra como o espaço da vida pública, onde os discursos são construídos, formaria essa arena.
36
Ouso dizer que o trabalho sócio-construcionista nada mais é do que mais um objetivo
das representações sociais. E Spink (2004) ainda acrescenta que “o conhecimento não é uma
coisa que as pessoas possuem em suas cabeças, e sim algo que constroem juntas” (SPINK,
2004, p. 27, grifos da autora). Esse conhecimento, tal como a representação é socialmente
construído, é dialogicamente elaborado e interpretado de acordo com os sentidos construídos
pelo grupo. Acredito que se as correntes fossem mais flexíveis, permitindo ao pesquisador
trabalhar com o sentido delas e não com as tipificações, talvez conseguiríamos compreender
melhor nossas próprias pesquisas. O exemplo de Leite-da-Silva (2007), como dito
anteriormente me motiva nesta tarefa de ir contra alguns pressupostos de Spink (1996; 2004),
sem todavia, desperdiçar os importantes trabalhos da autora, que nesses últimos anos traz
mais contribuições à Análise do Discurso.
Tomo aqui a importância dos estudos das Representações Sociais, como uma maneira
de repensar nosso fazer e, neste caso específico, as influências do fazer-turístico sobre o
espaço e mais, sobre a organização social no espaço. Os autores de “Textos em
Representações Sociais” muito bem fizeram isso para a área da psicologia social: eles se
propunham a repensar a disciplina por meio das TRS porque segundo Jovchelovitch e
37
Guareschi (1994) “Repensar a Psicologia Social é repensar a nossa prática, sem perder o rigor
da teoria, do método e a capacidade de inter-agir com a realidade social”. A noção básica
dessa abordagem é considerar o individual na relação com o social, construções que partem da
interação e que precedem ou acompanham a ação.
Portanto, tomo aqui como verdadeira a proposição de Farr (1994) segundo a qual “O
indivíduo é tanto um agente de mudança na sociedade como é um produto dessa sociedade”
(FARR, 1994, p.51). A representação social é uma constituição feita na totalidade de
indivíduos que precede ou acompanha ações. O estudo das representações sociais é
perfeitamente adequado para ambientes que estão em fase de transformações. Estou
concordando com Jovchelovitch (1994) quando diz que:
As representações sociais são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para
enfrentar a diversidade e a mobilidade de um mundo que, embora pertença a todos,
transcende a cada um individualmente. Nesse sentido, elas são um espaço potencial
de fabricação comum, onde cada sujeito vai além de sua própria individualidade
para entrar em domínio diferente, ainda que fundamentalmente relacionado: o
domínio da vida comum, o espaço público. Dessa forma, elas não apenas surgem
através de mediações sociais, mas tornam-se, elas próprias, mediações sociais
(JOVCHELOVITCH, 1994, p. 81).
Nesse sentido, em meio e por meio dessas representações, podem-se observar práticas
e táticas, ou seja, o saber-fazer e o reagir de cada dia no distrito, justificando essa abordagem
38
no presente trabalho. Concordo, assim, com Leite-da-Silva (2007), para quem “quando se
aproxima das representações sociais dos sujeitos, o pesquisador está se aproximando dos
conhecimentos que expõem articulações referentes às suas maneiras de fazer cotidianas”
(p.53). E mais do que isso, remeto-me à proposição de Moscovici, observada em Pereira de
Sá (1995), segundo a qual os conjuntos de conceitos, afirmações e explicações, que seriam as
Representações Sociais, “devem ser considerados como verdadeiras ‘teorias’ do senso
comum, ‘ciências coletivas’ sui generis, pelas quais se procede à interpretação e mesmo à
construção das realidades’” (MOSCOVICI, 1976, p.48, citado por PEREIRA DE SÁ, 1995,
p.26).
As representações podem auxiliar no empreendimento de novas táticas ou demonstrar
inviabilidade das mesmas, na medida em que são descrições ou conceituação de uma/várias
percepção(ões) e reflexões. Diante da inserção de um novo agente, o turista, e de serviços e
produtos dos quais ele necessita, é possível que as representações sociais se transformem e
que indiquem o delineamento de novas táticas cotidianas. Acredito que a representação em
torno do espaço, ou a construção simbólica dele, é demasiado importante na elaboração das
táticas. Outra justificativa para estudar as representações sociais em torno dos espaços, dos
habitantes e da atividade turística está no fato de que os primeiros são modificados por esses
sujeitos e pelo desenvolvimento da atividade turística e, desse trio, outras relações se
estabelecem. Nesse sentido, estou de acordo com a proposição primeira de Moscovici, de
acordo com a qual essa teoria ajuda a entender fenômenos em transformação, realidades
dinâmicas como o é a vida moderna e as novas relações no distrito de São Bartolomeu. Para o
atual contexto, retornar a uma abordagem estritamente individual ou estritamente coletiva,
como a durkheimniana, não seria plausível.
Nas representações sociais é, portanto possível observar a práxis, as táticas e por vezes
até estratégias dos habitantes em relação a seu cotidiano e ao espaço onde vivem. Em meio a
esta relação, propus a observação dos movimentos de territorialidades, o que me parece
bastante coerente, em se tratando do plano teórico-metodológico que permite o trabalho com
situações de transformação, de mudança, dando voz a sujeitos pouco ouvidos. Neste caso,
relembro o trabalho de Spink (1994) no qual ela demonstra a importância de se considerar o
contexto, entendendo-o desde a perspectiva espacial, social e temporal. Sobre o tema, a autora
diz:
Deduzimos que o contexto pode ser definido não apenas pelo espaço social em que a
ação se desenrola como também a partir de uma perspectiva temporal. Três tempos
marcam esta perspectiva temporal: o tempo curto da interação que tem por foco a
39
Esses tempos permitem compreender com mais proficiência a relação entre os sujeitos,
o social e o espaço. É por meio de análises que perpassam esses tempos e a relação com o
espaço que se torna possível apreender as representações sociais que aqui são almejadas.
Nesse caso, como também já dito, relembro o leitor que a abordagem aqui está com o foco
nos sujeitos, não no indivíduo isolado, mas em sujeitos que interagem. Por meio deles será
possível observar a diversidade e contradição das representações sociais, que por sua vez
remetem ao estudo das representações sociais como processo, entendido aqui não
como processamento de informação mas como práxis; ou seja, tomando como ponto
de partida a funcionalidade das representações sociais na orientação da ação e da
comunicação (SPINK, 1994, p. 123).
Essa relação entre a representação e a prática não é apenas trabalhada pelos autores da
psicologia social. Dentro dos estudos organizacionais alguns autores contribuem bastante com
essa relação interdisciplinar que permite melhor compreensão da construção social da
realidade. Concordo, por exemplo, com Rouquette (1998, p.43) para quem as representações
seriam “uma condição das práticas, e as práticas como um agente de transformação das
representações” (grifos do autor). Dessa forma, entendo, coadunando a proposta do referido
autor que “as representações sociais como a identidade estão ancoradas nos pertencimentos”
(ibdem). Também corroboram com essa proposta Cavedon e Ferraz (2005), segundo as quais
“no cotidiano dos negócios, os sujeitos sociais produzem o ‘saber’ fazendo com que o
conceito de estratégia seja permeado por significações próprias do contexto”. Seguindo, por
conseguinte, essa perspectiva teórica da associação representações sociais e práticas
estratégicas, torna-se imprescindível o cuidado com a perspectiva da história, isso porque “a
mudança (das práticas e/ou representações) se refere, em última instância, à história e não à
ação de variáveis descontextualizadas e monológicas” (ROUQUETTE, 1998, p.45). Entre as
representações sociais e os movimentos de territorialidades estão, portanto, essas práticas,
táticas ou estratégias dos sujeitos sociais sob os espaços que ocupam. Essas táticas podem
auxiliar na compreensão do problema de pesquisa, podendo responder se houve mudança no
distrito de São Bartolomeu ou não, se houve ou não movimentos de territorialidades e se eles
são sazonais ou se indicam um novo modo de vida.
40
4. CALEIDOSCÓPIO TERRITORIAL
Concordo com Nicolas (1996) quando diz que o espaço é transformado quando se
transforma a sociedade e em cada uma dessas mudanças são atribuídas novas temporalidades,
que são as peculiaridades da sociedade num dado momento. O espaço-tempo na concepção do
autor
41
12
Já o fato de a abordagem de Mamberg ser behaviorista indica a impossibilidade de usá-la nesse estudo, uma
vez que em detrimento de considerar o comportamentalismo, estou optando por trabalhar com a psicologia
social.
42
Hoje já devemos olhar essa abordagem de maneira mais crítica e no caso deste
trabalho proponho não usar este conceito inicial, passando já para abordagens mais
contemporâneas e mais adequadas ao problema desta pesquisa. Essa perspectiva etológica,
portanto, não será trabalhada aqui, dando espaço a abordagens mais associadas à psicologia
social e às relações de poder.
Mesmo dentro das ciências sociais há muitas discussões mostrando que há conceitos
mais variados que são apoiados ou refutados dependendo da corrente do pesquisador. Uma
observação válida para quem começa a se embrenhar nas leituras sobre o conceito de
território é que ele
não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à idéia
de domínio ou de gestão de uma determinada área. Assim, deve-se ligar sempre a
idéia de território à idéia de poder, quer se faça referência ao poder público, estatal,
quer ao poder de grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes
áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas (DE ANDRADE, 1996, p. 213).
13
“O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de
realizar o infinitamente impossível”. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Forense Universitária, Rio de
Janeiro, 5ª Ed.., p. 191).
43
14
“A legitimação é este processo de ‘explicação e justificação’ [...]. A legitimação Justifica a ordem institucional
dando dignidade normativa aos seus imperativos práticos. [...] A legitimação não é apenas uma questão de
‘valores. Implica também ‘conhecimento’” (BERGER ; LUCKMANN, 2008, p. 102).
44
que materializam a identidade e tais elementos são incorporados pelos sujeitos que
nele se relacionam. Dessa forma, cria-se entre aqueles que dividem o mesmo
território uma tomada de consciência política, fundada em um sentimento de
cumplicidade e de identificação (SOUZA et al, 2007, p.6).
Senecal (1992), citado por Cara (1996), aponta para uma das leituras da
territorialidade como a capacidade das sociedades de estabelecer suas representações e
símbolos, como forma de compreender e conferir significado a sua história, expressando uma
identidade espacial e, freqüentemente, comunitária. Desta forma, toma-se a concepção de
Brito (2006) sobre identidade como sendo “apreendida através da percepção e da apropriação
simbólica e material do espaço” (BRITO, 2006, p.99). Nesse sentido, deve-se apontar aqui a
proposição de análise com base nas atividades realizadas no espaço, já que a manutenção das
práticas pode ser entendida como forma de resistência (YÁZIGI, 2001) e busca pelo
delineamento do território.
Como é possível entender a partir dessa explanação, o território é “o espaço revestido
da dimensão política, afetiva ou ambas” (CORRÊA, 1996, p.251). Nesse sentido, a
territorialidade provém da relação que com o espaço se mantém (SANTOS, 1987, p.62). Mas
vale lembrar que não considero aqui apenas essa dimensão mais afetiva, a questão econômica
também aparece, pois configura uma forte relação – a da sobrevivência do/no território. Essa
questão do poder, ou dos movimentos de territorialidades, para retornar à figura do
caleidoscópio, deve ser entrelaçada com a simultaneidade dos movimentos e dos arranjos. É
sobre isso que tratarei no tópico seguinte, explicando o que chamo de “des-territorialização”.
O mito da desterritorialização é o mito dos que imaginam que o homem pode viver
sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se o
movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua
reconstrução em novas bases (HAESBAERT, 2006, p.16).
46
Apesar de Corrêa não falar explicitamente neste trecho fica implícito subentendido
que ele também considera que toda des-territorialização implica agentes desterritorializadores
e sujeitos desterritorializados. Isto porque o uso do lexema perda permite subentender que o
território outrora de um passa a ser de outro. Esse subentendido se confirma, corroborando a
proposição de Haesbaert (2006) e contribuindo com este trabalho, na parte em que Corrêa
15
“‘o espaço é também a esfera de possibilidade da existência da multiplicidade’ [MASSEY, 1999, p.28].
Multiplicidade que inclui, sem dúvida, o movimento indissociável de criação e destruição, de ordem e desordem
que envolve os processos aqui denominados de territorialização e desterritorialização” (HAESBAERT, 2006, p.
365).
47
Corrêa (1996) ao longo de seu texto deixa entrever a relação implícita entre des-
territorialização, reterritorialização ou novas territorialidades e as estratégias. Ao estudar os
movimentos territoriais da Souza Cruz ele finda por mostrar como que algumas
desterritorializações são até mesmo elas estratégias. Esses movimentos são harmônicos com
os interesses dos gestores da organização, de alcançar mercados consumidores ou se precaver
diante de uma nova territorialidade que demonstraria a tentacularização da empresa sob um
novo território, preferencialmente melhor ou maior.
48
Serge Moscovici, alguns dos quais seguiram essa abordagem. Essa hipótese pode ser
fortificada no seguinte excerto:
Souza Filho (1995) relembra que “a tarefa básica de um estudo de R.S. é explicar
elementos de sentido isolados ou combinados em construtos representacionais; produzidos,
mantidos e extintos em função de condições sociais específicas vividas por indivíduos e
grupos” (p.113). Ao dizer isso, mostra que outros métodos usados são coerentes com a teoria,
tais como a análise de conteúdo e a análise do discurso. Spink (1994), também de maneira
rápida, por se tratar igualmente de um capítulo de livro, fala sobre a questão dos métodos e
introduz a discussão epistemológica que envolve o subjetivismo e o objetivismo. Ela traz
informações interessantes sobre formas de coleta de dados. A autora coloca a importância de
se usar a triangulação16 e discorre também a respeito das origens dos usos de algumas técnicas
freqüentes nos estudos de representações sociais. Spink (1994) fala sobre o comum uso das
entrevistas e sobre a análise freqüente em torno do discurso, seja usando ferramentas da
lingüística do discurso ou fazendo análise de conteúdo. Quanto à coleta, a autora fala sobre a
entrevista, que é também um meio básico desta minha pesquisa. Ela foi herdada da Psicologia
Clínica. Não detalharei sobre a origem da entrevista, apenas menciono como uma curiosidade
interdisciplinar, pois haverá uma parte estritamente direcionada para as formas de coleta de
dados desta investigação.
Quanto ao uso do discurso, Moscovici me ajuda muito dizendo que tanto a
comunicação como a linguagem são constitutivas e constituintes do sujeito e de suas
representações (MOREIRA e OLIVEIRA, 1998, p.xi). Acredito ser a construção do social um
processo dialógico, assim como a linguagem, o que destaco mais adiante na abordagem
metodológica. Entre indivíduos que se inter-relacionam está o social, que provém desse
dialogismo, sendo ele o fio condutor da argumentação deste trabalho.
Para Moscovici (1978) e Pereira de Sá (1998, p. 32) primeiramente, na pesquisa, é
preciso atentar para os
16
Triangulação é o uso de duas ou mais técnicas de coleta ou de análise dos dados. Inicialmente a triangulação
era usada com o objetivo dar mais fidedignidade à interpretação, pois a crítica à abordagem qualitativa recaía
sobre o direcionamento subjetivo. Atualmente, usamos a triangulação com o fim de enriquecer nossas pesquisas.
Para Vergara (2005) usamos a triangulação para “obter uma análise mais abrangente do objeto em estudo, e não
com o propósito de perseguir uma verdade objetiva” (p.258).
50
Na situação face a face o outro é apreendido por mim num vivido presente
partilhado por nós dois. [...] Como resultado, há um intercâmbio contínuo entre
minha expressividade e a dele (BERGER; LUCKMANN, 1960/2008, p. 47).
Mas não é somente na situação face a face (verbal ou não verbal). Temos registros de
interação nos mitos, na locução de rádio, na escritura de um texto (científico, literário ou
51
jornalístico). Ouso dizer que a interação ocorre também nos registros espaciais, nas
construções que vemos na cidade, por exemplo. Quantas vezes não observamos nas nossas
cidades mudanças estruturais que se remetem a formas de pensar ou a hábitos de vida? Na
própria organização do espaço, nas táticas cotidianas de apropriação dos espaços temos
registros de linguagens, temos registros de pensamentos e de contextos. É precisamente neste
ponto que considero possível por meio da linguagem apreender as transformações sócio-
espaciais, destacando entre elas a (re)configuração de territórios.
Na Análise do discurso, o tema da interação é também bastante trabalhado. Já nas
discussões do Círculo de Bakhtin17, observamos a preocupação com a linguagem, considerada
como resultado desta perspectiva da construção social:
17
Um círculo de amigos e estudiosos que trabalharam juntos em diversas discussões que desencadearam
importantes contribuições para a Análise do Discurso. Além de Bakhtin, estavam no círculo Matvei Issaévitch
(filósofo), Nikolaévitch Voloshinov e Pável Nikolaévitch Medvedev. O período mais produtivo do círculo vai de
1920 a 1929.
52
esta posição e a justifico, não sem antes criticar esse possível questionamento, já observado
em um texto de Fiorin (2006), no qual o autor afirma que:
É bem nesta última citação que me apoio na justificativa deste eixo teórico-
metodológico. Ao propor um estudo que analisa as mudanças da vida cotidiana em
decorrência de eventos recentes, entre os quais destacamos o processo de turistificação, nada
melhor do que a materialização discursiva e a construção de sentidos para compreender as
representações sociais e a própria ideologia do cotidiano. Nada melhor que apreender as
representações desses sujeitos, que acabam por dar indícios de maneiras de agir no espaço,
configurações territoriais e sentimentos de territorialidade.
Quando Bakhtin diz que a palavra tem duas faces me recordo, de imediato, sua
metáfora da Refração. Bakhtin diz que o signo refrata realidades. Entendemos, portanto, que a
refração se refere à mudança dos contextos, analogamente à refração, aos meios. Assim,
temos que:
Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a
realidade e refrata a realidade à sua própria maneira (BAKHTIN, 1929/1999, p.33).
53
A situação de interação social acaba por ganhar um nome com Pêcheux, que considera
elemento de análise de suma importância a “Condição de produção do Discurso” que está
A questão dos contextos é mais um elemento que permite a completa harmonia como
o plano teórico das representações sociais. A importância de se considerar o contexto para
conseguir compreender os sentidos é equiparada à importância de remeter as representações
às condições sociais que as engendram, o que para Spink (1994; 1995) e os demais
pesquisadores da área já é consenso. Segundo a autora “as representações sociais, enquanto
produtos sociais, têm sempre que ser remetidas às condições sociais que as engendram, ou
seja, o contexto de produção” (SPINK, 1994, p.121).
18
Topoi argumentativos, ou “situação de discurso” é a possibilidade de interação da língua e do discurso, ou
seja, da estrutura com o exterior (o contextual, o lugar da enunciação). Segundo Ducrot (1989b, p. 13) topos é o
“lugar comum argumentativo”.
54
não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações não estão dadas
no signo em si, nem estão garantidas por um sistema semântico abstrato, único e
atemporal, nem pela referência a um mundo dado uniforme e transparentemente,
mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de
experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições e confrontos de
valorações e interesses pessoais (FARACO, 2006, p. 50, grifo do autor).
Nos estudos de caso é comum a presença de mais de uma técnica (GIL, 2002b). A
justificativa para tal varia de acordo com a corrente do pesquisador. Mas neste caso
específico, a escolha de mais de um caminho para a coleta de dados se deveu à necessidade de
complementaridade e de apoio para observações contextuais, que são de suma importância.
Dentro dos estudos das Representações Sociais, encontro já uma contribuição no que
tange ao suporte da forma de coleta de dados. Como nos lembra Spink (1994), a entrevista é
um caminho possível, mas para que seja rica possibilidade de coleta, o pesquisador deve estar
atento a uma série de questões. A autora coloca que o pesquisador deve observar o quanto a
situação fica artificial diante de um roteiro. Outro caminho possível e também muito usado
são as observações. Essas duas técnicas muito utilizadas nas RS estão sendo por mim também
usadas. Porém como o foco é na entrevista e é sobre ela que discorrerei mais e primeiramente.
O procedimento das observações e registro em diário de campo me é necessário como
complementação dos dados e registro contextual.
5.2.1.1 A entrevista
A entrevista é a principal técnica de coleta de dados deste trabalho, porque ela é
totalmente coerente com a proposta teórica e a partir dela consigo apreender sentidos e, por
conseqüência, representações sociais sobre o espaço e sobre as relações de poder que definem
os movimentos de territorialidade. Esses sentidos e representações é que me permitirão
responder ao problema de pesquisa. A entrevista, segundo Godoi e De Mattos (2006) é uma
interessante técnica porque é um evento dialógico por natureza. Há entrevistas que são
extremamente formais e que, neste sentido acabam criando um ambiente extremamente
artificial que finda por desenhar exacerbadamente o discurso dos sujeitos. Mas me proponho
nesta pesquisa a trabalhar com entrevistas desde uma perspectiva mais interacionista. Sigo
aqui a sugestão de Alasuutari (1995) que diz que a entrevista deve ser tomada por completo,
não somente se concentrando no conteúdo da fala como dado, mas na situação de interação
em sua completude, toda ela como objeto de análise (GODOI; DE MATTOS, 2006, p. 315).
A seguinte sugestão em torno da entrevista é aqui tomada como base e é apoiada na
contribuição de outros estudiosos de diferentes áreas:
com o objeto de representação e com outros sujeitos. Para tanto, pode-se usar a
observação participante, ou a entrevista com roteiros abertos, ainda que contendo
temas catalisadores (SOUZA FILHO, 1995, p. 115).
Na antropologia, Oliveira (1988) diz algo semelhante que considerei desde a leitura de
seu texto e nesta pesquisa mais ainda. Ele nos lembra que o trabalho do antropólogo deve ser
cuidadoso, porque ele se insere numa cultura. Os passos devem ser cuidados, primeiro é
necessário ver, depois ouvir e só então escrever. Implicitamente o autor ainda nos diz que na
inserção de um pesquisador em uma comunidade, a importância do exercício do olhar antes
das perguntas é imprescindível. É desta maneira que ele diz que as faculdades do “ver” e do
“ouvir” devem estar intrinsecamente relacionadas, servindo de base para a pesquisa. Essas
preocupações não devem ser somente do antropólogo, o turismólogo e pesquisadores de
outras áreas que usam da imersão no campo devem tê-las em mente.
Para alcançar os dados, estou utilizando o método de entrevistas em profundidade com
alguns tópicos da história de vida. Esse último, segundo Ferrarotti (1983) se afirmaria pela
proposta de que “cada vida pode ser vista como sendo, ao mesmo tempo, singular e universal,
expressão da história pessoal e social, representativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo,
síntese da tensão entre a liberdade individual e o condicionamento dos contextos estruturais”
(citado por GOLDENBERG, 1997, p.36). Lembro ao leitor que nego a dicotomia e
estancamento dos níveis individual e social. Considero que o indivíduo está inserido no social
e, portanto, o constrói em um processo, sendo que os indivíduos se influenciam uns aos
outros, partindo de uma construção dialógica da linguagem e das RS. Estou de acordo,
portanto, com Spink (1995) para quem
Usar a técnica bola de neve tem duas grandes características, uma positiva e uma
negativa. A positiva é que com a indicação intra-grupal, os entrevistados desenvolvem mais
rapidamente um processo de confiança, fazendo com que as entrevistas sejam mais bem
aproveitadas. De outro lado, a indicação pode ficar restrita à posição de um grupo, posto que
pessoas que vivem mais isoladas podem não ser alcançadas. Todavia, para evitar isso escolhi
59
também trabalhar com técnica de observação, que será explicada no item seguinte. Usando
este segundo caminho de investigação, procurei ver também quem são aquelas pessoas que
estão fora da bola de neve, mas que parecem possibilidades de enriquecimento para a pesquisa
e, neste último caso, optei pelo contato independente.
Outra questão que devo apresentar é que não fiz nenhum cálculo amostral para esta
ocasião, pois por se tratar de uma pesquisa de cunho qualitativo e com objetivos de
compreensão, uma amostra não me é necessária e poderia ser até mesmo prejudicial. Sobre
esse aspecto Godoi e Mattos (2006, p. 308) dizem, recorrendo a Valles (1997):
Figura 1: Gráfico do Perfil dos Figura 2: Gráfico do Perfil dos sujeitos de pesquisa quanto à
sujeitos de pesquisa quanto ao gênero. relação com o distrito de São Bartolomeu
Fonte: dados da pesquisa (2009, 2008, Fonte: dados da pesquisa (2009, 2008, 2007)
2007)
60
Figura 3: Gráfico da Relação de sujeitos que permitiram ou não gravação das entrevistas.
Fonte: Dados da pesquisa (2009, 2008, 2007)
Apesar de terem sido entrevistadas 25 pessoas, não são as falas de todas elas que
aparecem na análise do trabalho. Isso porque foram escolhidas apenas as falas mais
complexas, mas vale destacar que nenhuma representação foi excluída, todas as
representações, ainda que conflitantes aparecem no decorrer da análise. Não foram usadas
mais falas apenas porque elas seriam repetitivas e não é interessa apresentar freqüência de
respostas semelhantes, o que caberia melhor a uma pesquisa de cunho quantitativo.
5.2.1.2 As observações
Complementando as entrevistas em profundidade, as histórias de vida e os temas
abordados no roteiro, foram feitas observações, registradas em diários de campo. Elegi usar as
observações, porque segundo Durham (1986) uma das características mais visíveis e positivas
da produção recente em antropologia nas cidades ou antropologia urbana é justamente o uso
da observação e a “preocupação com a natureza da relação do pesquisador coma população
61
estudada” (p.25). Desde o início da pesquisa me preocupo com essa relação, sempre negando
o mito da neutralidade científica, que mencionei no posicionamento epistemológico. Durham
(1986) mostra como mudou a noção da observação participante dentro da antropologia.
Segundo explica ela:
Atentemos para o grifo da autora em “observação”, não é por acaso. A observação tal
como era feita na antropologia antigamente, seguia os parâmetros da posição epistemológica
primeira. Se a antropologia era considerada uma ciência menor (DURHAM, 1986), ela lutava
por se fazer reconhecer. Para tanto, certamente foi no caminho da busca pela objetividade na
pesquisa que ela tentou se aproximar das ciências ditas maiores, a observação participante era
associada, nesse sentido, à observação de laboratório, ou às pesquisas experimentais (GIL,
2002b).
A Comissão do Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha e da Irlanda,
doravante RIAGI (1973), preparou um guia prático para a pesquisa antropológica. A
perspectiva que aparece no guia, sendo européia, ainda que tente não se mostrar como tal, é
bastante preconceituosa. Apesar disso, não deixo de apreender algumas dicas sobre a pesquisa
de campo antropológica no referido guia. Uma das importantes colocações do RIAGI (1973) é
que para a pesquisa antropológica é necessário considerar os conhecimentos do meio natural
no qual a comunidade estudada vive. A observação da vegetação, do relevo e da fauna
consiste em um importante passo, pois pode auxiliar no entendimento dos meios de
sobrevivência. Tento seguir esse princípio e, portanto, proponho um capítulo depois de
concluído o campo, em que farei a descrição do ambiente físico, podendo ela auxiliar em
algumas análises.
O percurso das observações foi feito seguindo com bastante cuidado as sugestões de
Foote-Whyte (1975) e de Oliveira (1988), a fim de buscar uma melhor comunicação entre
pesquisador e sujeito de pesquisa. Foote-Whyte (1975) se questionou numa pesquisa que
realizava em Cornerville se:
Fazer ponto nas esquinas era processo suficientemente ativo para ser identificado
pelo termo “pesquisa”. Talvez devesse fazer perguntas aos rapazes. No entanto, é
62
preciso aprender o momento apropriado para perguntar, assim como o que perguntar
(FOOTE-WHYTE, 1975, p. 81).
Tanto o ouvir como o olhar não podem ser tomados como faculdades totalmente
independentes no exercício da investigação. Ambas complementam-se e servem
para o pesquisador como duas muletas – que não nos percamos com essa metáfora
tão negativa – que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do
conhecimento. A metáfora, propositalmente utilizada permite lembrar que a
caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpeto de
conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participa das mesmas precondições
desse último, na medida em que está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe
pareçam insignificantes, isto é, que não façam nenhum sentido no corpus teórico
(OLIVEIRA, 1988, pp.21-22).
portanto, transformações no espaço, ainda que por se tratar de um distrito, nos percamos em
sua classificação entre o rural e o urbano.
Uso a perspectiva teórica européia, que segundo Brandão (2004), tende a refletir
sempre na relação entre texto e história. Neste aspecto básico caracterizador, uma vez mais a
interdisciplinaridade aparece em meu trabalho. A AD se sustenta na confluência de discussões
provenientes de distintas disciplinas. Segundo Brandão (2004) ela era preocupação de
lingüistas, historiadores e até alguns psicólogos.
Estou enfocando tanto a análise do enunciado como das frases. Entende-se aqui
enunciado como “um segmento de discurso. Ele tem, pois, como o discurso, um lugar e uma
data, um produtor e (geralmente) um ou vários ouvintes” (Ducrot, 1989, p.13). Esse produtor
do enunciado pode apresentar também outras vozes, resultadas de processos dialógicos de
construção de sentidos. Já a frase é “uma estrutura abstrata, ou seja, algo absolutamente
diferente de uma seqüência de palavras escritas. (...) A frase nos diz o que é necessário fazer
quando se tem que interpretar seus enunciados, especifica especialmente o tipo de indícios
que é necessário procurar no contexto”. Proponho aqui, então, que a frase é dita pelo locutor,
neste caso único, contudo ela pode (e geralmente) está composta por diferentes enunciados,
que podem representar a heterogeneidade no discurso e a polifonia. Assim, almejo entender
“o que diz” e não apenas “como” e “de que falava fulano”, corroborando com a proposta de
Bakhtin (1929/1999).
Para conseguir uma análise que permita apreender as representações sociais, sigo nesta
oportunidade a dica de Spink (1994), de mapear o discurso por temas. Previamente estabeleci
65
5.2.2.1.3 Polifonia
Como dito anteriormente, na concepção bakhtiniana o dialogismo é constitutivo da
linguagem. Já a polifonia é freqüente, mas nem sempre ocorre. Depois de já ter falado
bastante sobre a perspectiva dialógica, falar da polifonia é tarefa um pouco menos complexa.
Para explicar, tenho que a frase é dita pelo locutor, neste caso único, contudo ela pode estar
composta por diferentes enunciados (representados pelas diferentes vozes) que podem
mostrar, neste caso, a heterogeneidade no discurso, constituindo a polifonia. Os principais
autores que contribuíram para as discussões em torno da polifonia foram Bakhtin (1929/1999)
e Ducrot (1987). A polifonia pode aparecer, por exemplo, na citação direta de um discurso,
como fiz, por exemplo, no meu referencial teórico. Na produção científica é comum fazê-lo,
como que conferindo “veracidade” ao fato. Essas citações ou as vozes de outrem aparecem
também na linguagem cotidiana, com bastante freqüência e podem dar indício de várias
construções de sentido e representações compartilhadas. A polifonia discursiva muitas vezes
aparece como estratégia de persuasão e é nesse sentido também muito importante para as
análises deste trabalho.
Neste pequeno histórico recorro àquilo que a historiografia nos deixou como legado,
aos relatos de viajantes dos séculos XIX, aos achados de um trabalho arqueológico realizado
no distrito e, sem diferenciação de valor, também às falas dos habitantes entrevistados, que
buscaram na memória dos contos herdados contribuições para este trabalho. Objetivo com
este histórico dar suporte ao encadeamento dos fatos, na constituição de um contexto que
verdadeiramente possa auxiliar na análise aqui proposta. Assim, foram feitas tanto coletas de
dados primários, como análises bibliográficas e documentais.
O locus da pesquisa é um vilarejo antigo, cujos primeiros registros remetem ao final
do século XVII/início do XVIII. Uma das entrevistadas, tendo uma antiga carta guardada no
cartório do distrito, lê:
A região do distrito foi caminho dos bandeirantes que seguiam o Rio das Velhas,
tendo sido formado antes mesmo da descoberta do ouro em Vila Rica (IEF/UFV, 2006). Esse
rio foi muito importante para a história mineira, pois as vias eram sempre referenciadas por
19
Do ponto de vista historiográfico, os dados desta carta são um pouco questionáveis, pela linguagem, que não
parece comum à época e até mesmo pela menção ao termo Freguesia, sendo que São Bartolomeu só havia sido
elevada a esta categoria no século XVIII.
68
ele, segundo a Prefeitura Municipal de Ouro Preto (2007). Na época das bandeiras, o curso do
hoje afamado Rio das Velhas era guia de caminho dos “desbravadores”, que o seguiam para
chegar à atual Ouro Preto. Por estar no meio do caminho e se ter encontrado ouro (ainda que
pouco), São Bartolomeu foi uma localidade ocupada pelos exploradores de ouro antes mesmo
de chegarem às minas de Vila Rica, justificando assim algo que os moradores sempre
colocam: “aqui é mais antigo que Ouro Preto”20.
Segundo registra um importante historiador de Cachoeira do Campo:
A região do entorno [de Vila Rica] foi ocupada em um curto espaço de tempo. As
sesmarias concedidas já na primeira década do século XVIII foi resultado de um ato
legal representado pela resolução real de 22 de outubro de 1698. Nesta resolução
nota-se a preocupação da Coroa com a ocupação do espaço e que este fosse
produtivo. [...] Caso o sesmeiro não conseguisse, a terra se tornaria devoluta
(OLIVEIRA, 1999, p. 14).
Os viajantes naturalistas que percorreram a região das Minas Gerais e que descreviam as
paisagens, a fim de enviar informações para controle português, somente se fizeram presentes no
século XIX. É a partir desse século que encontrei mais documentos e bibliografia aos quais
consultar. O austríaco Johann Emanuel Pohl veio ao Brasil apenas em 1817 permanecendo até
1821. Sua designação era cuidar inicialmente dos assuntos mineralógicos, mas depois
também de questões botânicas. Descrevendo sua viagem pelo eixo norte-sul de Minas Gerais,
ao chegar nos arredores de Vila Rica, menciona algo que é importante para entender o
20
Frase recorrente dita pelos moradores (dados de observações feitas desde a primeira visita como turista ao
distrito, em 2006).
21
Sesmarias: institutos jurídicos portugueses de distribuição de terras coloniais.
69
contexto da exploração do ouro em São Bartolomeu: “Em geral, em quase todos os riachos
dos arredores, acha-se maior ou menor quantidade de ouro e, em toda parte, foram
estabelecidas lavras de ouro” (POHL, 1837/1976).
São Bartolomeu, segundo relatam alguns moradores e mesmo com base no dossiê de
tombamento e na análise pré-homologação da APA, foi zona de mineração. Uma das provas
disso são as margens do rio, que como relata Scalco (2009) apresentam indícios de
exploração. E bem antes do austríaco caminhar pela região, já havia registro de mineração em
São Bartolomeu, conforme menciona Oliveira (1999):
Pela maior proximidade de Vila Rica, e por situar-se às margens do Rio das Velhas,
São Bartolomeu tem uma ligação muito forte com a lavra do ouro. O livro de
Devassa do ano de 1738 aponta a existência de cinco mineradores e um faisqueiro,
enquanto entre as outras freguesias esta presença não é observada (OLIVEIRA,
1999, p. 17).
Ofícios Quantidade
de pessoas
Mascate 1
Vendeiro 1
Mineiro 5
Vive de sua agência ou 3
negócio
Vive de faisqueira 1
Ferreiro 1
Ferrador 1
Comboyeiro 1
Roceiro 16
Fonte: Adaptado do Arquivo Eclesiástico
Arquidiocese de Mariana. Livro Z01, pp.94-
106, apud Oliveira (1999, p. 19).
Oliveira (1999) se detém num trabalho inteiro a mostrar como se deu o surgimento
justamente do entorno de Vila Rica, sendo São Bartolomeu freguesia de destaque para o caso
estudado. Devido ao fato de não se ter encontrado abundância de ouro na região do atual
distrito, ele se configurou, desde o início, como de economia complementar à de Vila Rica,
apesar de alguns exploradores manterem o exercício minerador. Segundo menciona Oliveira
(1999) em análise de inventários do período de 1700-1750, a região de São Bartolomeu era
marcada pela presença de plantações de milho e de feijão. Essa informação é corroborada por
Antonil (1711), que relatou:
Desta serra [a de Itatiaia] seguem-se dous caminhos: hum, que vay a dar nas Minas
Geraes do Ribeiraõ de Nossa Senhora do Carmo, & do Ouro Preto; & outro, que vay a
dar nas Minas do Rio das Velhas: cada hum delles de seis dias de viagem. E desta
Serra também começaõ as roçarîas de Milho e Feijaõ, a perder de vista, donde se
provèm os que assistem, & lavraõ nas Minas [sic] (ANTONIL, 1711, p. 180).
história da “estrada real” e no contexto aparece a substituição da busca pelo ouro pela busca
pelo alimento:
O que eu tenho escrito desse povo aí, é do Bartolomeu Bueno, que ele morou aqui e
tinha uma casa que chamava Casa Grande. Inclusive tem o terreno lá, tem as ruínas
e ele ficou aqui dentro depois que foi acabando os minérios aí, o ouro que eles foram
mudando pra Ouro Preto, que era muito mais que aqui. Ele ficou aqui até ensinar o
pessoal a plantar legumes e frutas. Verduras, legumes e frutas. Ficou aqui mais um
ano e meio depois que a turma dele já tinha ido, pra ensinar o pessoal a plantar
legumes e frutas pra levar pra lá. E isso aqui ficou muitos anos assim, São
Bartolomeu que abastecia Ouro Preto. Legumes, frutas e verduras... e doces, né? E
esse Bartolomeu ele ficou aqui pra incentivar eles a cultivar. Esse terreno que é ali
depois da ponte. Chama Casa Grande. Tem até num... numa folha aqui no cartório
que fala, que conta a história dele aqui. (Guaraperê)
“Não há, disseram-me, uma família em São Bartolomeu que não tenha um quintal plantado de
marmeleiros e macieiras (...) os habitantes fazem um doce muito afamado” (HILAIRE, 1974,
p.83). Mas não eram somente os doces de frutas que figuravam no lugar na época da viagem
de Saint Hilaire ao distrito; há também em seu relato menção ao doce de leite, elemento
culinário este bastante forte em Minas Gerais: “as vacas são geralmente de boa raça e achei o
leite produzido pelas de meu hospedeiro tão gordo quanto os melhores das vacas da França”
(HILAIRE, 1974, p.84). Já naquela época, como dito anteriormente, mas especificando a
questão dos doces, os produtos eram comercializados principalmente em Ouro Preto. Mas
Saint Hilaire nos mostra que não era somente na região. A produção doceira já ganhava
espaço para além dos limites de Vila Rica: “(...) e não somente vendem essas caixas [de
doces] em Vila Rica e seus arredores, mas ainda fazem remessas ao Rio de Janeiro”
(HILAIRE, 1974, p.83). O professor Paulo Junqueira, nas bases de sua pesquisa arqueológica
no distrito, disse ter encontrado em documentos e bibliografias menções inclusive à
exportação dos doces a outros países. Esta pode ser uma informação complementar à anterior,
uma vez que possivelmente era do Rio de Janeiro que essas remessas ganhavam novos
territórios.
E não foi somente Saint-Hilaire quem escreveu sobre os doces na região. De acordo
com pesquisas da diretoria de Promoção Cultural da Prefeitura de Ouro Preto, a produção
artesanal de doces do distrito tem registro de pelo menos dois séculos, começando com a
marmelada. Também do início do século XIX, há outros relatos de viajantes sobre os
costumes alimentares na ex-Vila Rica e arredores. Ao passar por Cachoeira do Campo, o
austríaco Johann Emanuel Pohl escreveu que recebera de um “bom velho, uma caixa de
doces... do arraial vizinho de São Bartolomeu” (WERNECK, 2008).
Durante o século XVIII as mercadorias eram transportadas em lombos de cavalos,
segundo constata Oliveira (1999), em sua pesquisa. A explicação para o uso desses animais a
priori é bastante coerente. Segundo o autor, por serem os cavalos mais dóceis e os caminhos
que ligavam a sede da comarca (Vila Rica) às freguesias produtoras de alimentos (São
Bartolomeu, Casa Branca e Cachoeira), caminhos demasiado difíceis, os cavalos seguiam
seus donos, por mais perigosas que fossem as investidas. Se em detrimento dos cavalos,
fossem usados burros, apesar de serem animais mais fortes, eles teriam criado uma série de
dificuldades aos que conduziam a tropa:
preço, pago em ouro, muitas vezes compensando o risco. Contavam para isto com
um meio de transporte seguro. Nas Minas, na primeira metade do século XVIII, o
cavalo era o principal meio de transporte. Animal dócil, de fácil manejo, bem ao
contrário do burro, arisco, que em situação difícil empacava, criando dificuldades,
muitas vezes pondo tudo a perder. [...] Nos inventários analisados, quase todos os
inventariados possuíam cavalos com suas selas cangalhas, sacos e bruacas,
confirmando o papel que este animal representava como meio de transporte
(OLIVEIRA, 1999, pp. 9-10).
Dando seqüência a esse histórico do transporte com animais, nos anos posteriores na
região de Vila Rica os tropeiros passaram a usar, segundo relatos de moradores, tropas de
muares, bem aos moldes mineiros que perduraram até meados do século XX (LIMA, 2009)22.
Ainda da década de 30, do século XX, encontrei relatos em São Bartolomeu, no que diz
respeito ao tropeirismo, o senhor Cedro fala sobre essa época, enfatizando a dificuldade:
A vida daqui da roça era difícil demais. Eu calcei a primeira botina, primeira, com
quinze anos. Né? Era descalço e mexendo com burro, no pasto descalço. O pé da
gente era tão calejado, tão que passava no meio dos tocos assim e não... sentia nada.
Saía daqui com dez burros, saía pra Tripuí, 18 quilômetros, hein? À pé. À pé. Pra
chegar lá, descarregar os burros e voltar à pé, com aquela poeira e tal. Mas, era 36
quilômetros que a gente andava por dia. Ia e voltava, ia e voltava, né? (Cedro)
Cedro: Plantava o alho, que era mês de março e abril, agosto colhia, setembro o
povo ia pro Jubileu de Congonhas do Campo, levava doce, alho, pra vender lá, né?
Em 5 de setembro, até lá pro dia 15 o jubileu em Congonhas do Campo, né?
Ivana: Ia muita gente daqui pra Congonhas?
Cedro: Daqui? Ora, era a vida. Sabia que, né? Que lá ganhava muito dinheiro,
levava muito doce, muito alho, todos, né? Hoje nem isso ninguém mais vai. [...] Foi
parando, parando, parando...
Na entrevista, Cedro ainda complementa que o povo de São Bartolomeu tinha fama de
bom pagador, faziam os compromissos para pagar depois da feira do Jubileu23.
22
Lima (2009) faz um interessante estudo da memória da gestão tropeira, enfocando o estado de Minas Gerais,
ele diz que os tropeiros “Foram importantes em diversos momentos da história do Brasil, pois a ajudaram a
formar cidades, abasteceram regiões, e desenvolveram tais atividades ao longo de seus percursos, auxiliaram na
manutenção de atividades mineradoras e agrícolas, e exerceram poder político entre outras atividades
econômicas e sociais”.
23
Interessante pontuar que essa situação também ocorria com os habitantes de Congonhas (os que alugavam as
frentes das casas e os que colocavam barracas de comércio), como me foi possível observar nas entrevistas que
realizei, em ocasião da festa, na localidade em 2008.
74
Não foi somente Cedro quem falou sobre a representatividade da festa de Congonhas.
Em entrevista com a centenária Pindaíva, seus filhos falaram sobre a época em que iam
trabalhar como empregados em bancas são bartolomenses. Também dona Carqueja conta um
pouco da época em que produziam muito alho em São Bartolomeu e que havia na festa de
Congonhas a grande expectativa de comercializar a produção:
Eu, desde 11 anos meu pai punha eu era na enxada. Trabalhando, fazendo horta, que
a gente tinha que preparar a terra, né? Pra poder plantar o alho. [...] E ele mandava
nós de manhã cedo pra aguar o alho. Aí nós despedia a roupa, ficava nas calcinha e
ficava lá aguando as hortas: repolho, cebola... Aí tinha a festa aqui de agosto, aí nós
vendia a cebola, tinha um moço que levava lenha, burro de lenha em Ouro Preto e
nós arrumava as cebola e amarrava tudo, você sabe né? Amarrava aquela cebolinha
tudo. Pra comprar brilhantina pra nós poder vir na festa. [...] Antigamente era muito
difícil, nós comprava roupa era de ano a ano. [...] Aí plantava o alho meio de
fevereiro, março, plantava o alho, aí quando era setembro arrancava o alho, né? Era
muito alho mesmo. Era alho, mas alho mesmo. [...] Aí chamava nós pra fazer as
restas, você sabe que que é as restas? [...] Fazia aquelas trança e ia pondo as cabeças.
Aí eu fazia noventa restas de alho por dia. Noventa restas era nove milheiro de alho.
[...] Quando era Congonhas, né? [...] Ia muita gente pra Congonhas,né? Uma
multidão ia pra Congonhas. Trabalhava era muitos dias, era nove, dez dias lá.
(Carqueja)
As portas geminadas do Casario da Rua do Carmo, principal via do Arraial, são, sem
dúvida, evidências de que teria havido um comércio bastante intenso no século
75
XVIII. São Bartolomeu foi, durante algum tempo, um centro abastecedor importante
(JUNQUEIRA; BAETA; MAZZONI FILHO et al, s/d).
Outro fator interessante consiste nos materiais que compõem a arquitetura local, os
registros de adobe e de construção em pedra remetem ao período colonial. Mas devo ir além
disso, recorrendo às escavações feitas na denominada Casa da Festa em 1989 pela equipe que
coordenava o professor Paulo Junqueira:
Está assentada na rua do Carmo, antiga rua Direita, em um terreno de 1120 m²,
defronte ao adro da Igreja de São Bartolomeu. Possue [sic] duas janelas e cinco
portas na fachada; três destas dão acesso ao cômodo comercial e ao respectivo
depósito. Possue [sic] uma ampla sala, quatro quartos, dois corredores internos, um
pequeno aposento, uma cozinha espaçosa e uma varanda nos fundos. Na parte
inferior, sob a varanda e a cozinha existem dois porões que teriam sido usados como
senzala doméstica e local de despejo (JUNQUEIRA; BAETA; MAZZONI FILHO et
al, s/d).
São Bartolomeu era muito movimentado, né? De doce, alho e carvão. Era a vida de
São Bartolomeu. Tinha muita gente. E, que eu lembre, aqui tinha umas seis casas
comerciais, hoje só tem uma. E... muito antes, algumas não modificaram, ainda dá
pra você observar, em cada cinco casas daqui, três eram ponto comercial. Porque
existia aqui uma mina de ouro, que chama Mina da Tapera. Hoje está incluída na
floresta do Uaimii. Meu pai falava que no tempo em que só os homens que votavam
[até 1928] aqui tinha 1800 votos. Agora hoje vota menino e mulher, não tem 700
[incluindo área urbana e rural]. Então caiu demais, né? (Guaraperê)
Até meados do século XX, segundo me disseram alguns moradores doceiros, eles
ainda produziam a marmelada e a goiabada com as frutas do próprio local. Daquela época em
diante, não mais se encontravam marmelos; alguns produtores já reconhecidos, para suprir a
demanda, compravam a pasta de marmelo em lata, mas não era a mesma coisa, relatou um
desses ex-doceiros. Aconteceu, então, que quando os marmeleiros cessaram de frutificar, a
produção desse doce foi se reduzindo até se extinguir completamente.
Até pouco mais que a metade do século XX as famílias de São Bartolomeu
sobreviviam basicamente da lavoura. Não muito diferente de um século anterior, ainda se
cultivava ali o alho, o feijão, o milho, a mandioca, as hortaliças e alguns legumes. No trecho a
seguir, um senhor mostra como era a sobrevivência de sua família há aproximadamente 60
anos:
Meu pai sobrevivia era de lavoura, né? Nunca foi empregado, sustentou a família
trabalhando, plantando, era o alho, fazendo carvão, doce... [...] A gente plantava
muito alho. [...] Praticamente acho que todas as famílias eram na lavoura. Plantando
milho, plantando feijão, plantando alho, plantando mandioca, batata... [E também]
vendia. Quando eu era novinho, meu pai sustentava a gente era na lavoura e fazendo
mascate pra Ouro Preto. [...] Toda semana ele ia lá mascatear. Entendeu? Levar
frango, batata, alho, cenoura, tudo o que ele produzia, ele levava pra lá. [...] Ele
levava nos burros. No lombo de burro. Aí levava banana, inhame e trazia de lá as
coisas, açúcar... [...] A gente tava novinho, ficava doido pra chegar à tarde, aquelas
bolachas, antigamente fazia aquelas bolachas. (Angico)
É muito comum nas falas dos habitantes a alusão aos tempos em que se plantava alho,
porque esse era o principal produto comercializado por eles. A iguaria era vendida para as
regiões próximas, nas feiras e nas festas, além dos famosos marmelos que também tinham
lugar de destaque. A entrevistada centenária, dona Pindaíva, conta um pouquinho sobre em
77
Tinha mais gente [no distrito]. Não era muita gente, mas de primeiro tinha mais
gente. [...] Plantava cenoura. [...] Tinha era muita. [...] Cenoura, alho, era muita
coisa que plantava aqui. [...] Agora quase ninguém faz doce aqui. De primeira, era
muita gente que fazia doce aqui, marmelada... Marmelada, goiabada... (Pindaíva).
O alho eu lembro quando parou de produzir, né? Porque deu doença no alho e na
cenoura também. Isso não tem muito tempo não, foi... deixa eu ver... na década de...
nos anos 80 que parou aí e acabou tudo. No início de 80. Dava uma doença na
cabeça do alho, né? Ele saía bonito assim, mas quando era a hora dele dar a cabeça,
dava uma podridão nele ali, cheio de bichinho. Ia até acabar tudo, aí parou de
plantar. Cenoura também foi da mesma foram. [...] Dava aquela cenoura grossona
assim, depois ela apodrecia tudo assim, quando você puxava, só saía a rama, o resto
ficava tudo na terra. Aí o pessoal desistiu. (Jacarandazinho)
O processo específico infantil em São Bartolomeu ainda não é tão intenso, devido à
existência de poucos aparelhos de vídeo-game, mas a televisão já se tornou um objeto
presente no cotidiano do lugar e já faz parte dos hábitos de vida. Já desde a perspectiva dos
hoje adultos e idosos muito foi alterado em relação ao cotidiano no lugar, quando da inserção
da televisão, como podemos discutir a partir do seguinte conjunto de falas que compõe parte
da entrevista:
Pau Ferro: Chegava uma hora dessas [eram aproximadamente 18h00], mais tarde
um pouquinho... Acendia o fogo aqui no chão, tinha umas esteiras pra gente sentar.
78
Rezava o terço, alguns vizinhos [vinham] igual tinha um tal de [nome do vizinho],
eles visitavam muito a gente. Aí começavam a contar caso de assombração pra
gente, essas coisas. Então são umas coisas que a gente sente saudades, né? Porque
hoje não vê mais, ninguém visita ninguém. Né?
Gabirobeira: Todo mundo preso na televisão...
Ivana: É, porque antes não tinha luz, né?
Pau Ferro: Ah, pois é. Não tinha luz, não tinha televisão, então tinha onde a gente
visitar os outros. Por exemplo, hoje tá vindo uma pessoa na minha casa, agora a
gente ia na casa de outro. Hoje ninguém, hoje os vizinhos aqui, tem hora que você
passa o quê, quase o ano inteiro sem ir na casa dele, vai na casa de um ou de outro.
Ah, eu também gostava dessa época, pessoal família, batia papo... também, depois
foi acabando também, acabando carvão, dando doença no alho, pessoal também, a
maior parte dos são bartolomenses foi embora. Diminuiu muito a população aí
também já né? Já não tem graça ficar na rua, né? Naquele tempo era bom.
(Embaúba)
24
Para maiores informações sobre o Instituto Estrada Real e sobre o roteiro homônimo, é possível consultar as
informações institucionais no endereço: www.estradareal.org.br
79
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Fonte: Base Cartográfica CEMIG. Superintendência de Distribuição Centro. Ouro Preto: São Bartolomeu: Planta
Detalhe de rede primária e secundária. Ouro Preto, 1985. (Planta de Instalação Elétrica). Autor Liliane de Castro
Vieira. In: Prefeitura Municipal de Ouro Preto (2007, p. 110).
No núcleo urbano principal de São Bartolomeu são cerca de 400 votantes, segundo
informou alguns moradores, parte dos quais sequer vive lá, mas tem residência no local.
Segundo consta nos dados do censo do IBGE 2000, existiam na época desse censo 64 casas,
sendo que o núcleo urbano abrigava uma população de 233 pessoas (IBGE, 2000, apud
IEF/UFV, 2006). Se tomamos a Fig.6, de populações específico de São Bartolomeu, podemos
fazer outras discussões:
E aqui também uma coisa que eu fico com pena é a escola,né? Não ter o devido... a
devida atenção. Pra essa escola aqui. Porque acaba que chega um certo ponto, faz o
jovem ir embora. Vai ficar aqui uma cidade só de velhos. Um lugarejo só de velhos.
Porque é muito sacrificado. Ele sai, quinze para as seis. Ele tem que estar aqui
embaixo cinco e vinte, cinco e pouco pra pegar o ônibus pra ir ou pra Cachoeira ou
pra Casa Branca. Volta uma e tanta da tarde, mais de uma hora, tem hora que eles
voltam. A gente tem que dar os parabéns pra eles enfrentarem isso pra estudar,
porque eles querem melhorar e tudo, estudar. Depois, chega um certo ponto, não
tem nada pra fazer. Aí eles vão embora né? (Gabirobeira)
Um temor dela é algo que já vem ocorrendo. Na localidade há muitos jovens com
idade inferior a 14 anos e superior a 60, quando, segundo IBGE não estão em idade produtiva.
A população está majoritariamente composta de pessoas aposentadas e mais velhas,
terminando seu ciclo produtivo. Esse dado foi discutido também por Machado (2001),
recorrendo a outro gráfico do IBGE, que não achei tão importante trazê-lo, já que as vozes
dos habitantes muito bem conseguem demonstrar os mesmos dados e são bem mais recentes.
Em relação ao número de edificações, de 2000 para 2007, quando a Prefeitura de
Ouro Preto elabora o dossiê de tombamento, houve aumento do número de construções, de 64
para pelo menos 82, que foram estas últimas todas inventariadas no processo. Vale dizer que
neste ano registrei, além das edificações constantes no mapa, outras na Rua Córrego Acima,
região esta que pode ser considerada de expansão urbana, conforme é possível observar na
Fig. 6.
As ruas que aparecem na imagem são bem mais novas, como o leitor pode observar
nos estilos das construções, nos materiais utilizados (nesta porção do distrito observei o uso
freqüente de alvenaria). Em poucos anos, segundo relatam os moradores entrevistados, essa
zona foi ocupada por novas casas, sendo que algumas delas são usadas apenas nos finais de
semana e/ou férias.
83
São Bartolomeu está dentro de uma Área de Proteção Ambiental – APA25, intitulada
“Área de Proteção Ambiental Estadual Cachoeira das Andorinhas”, sendo que o distrito
25
As Áreas de Proteção Ambiental constituem categoria de unidade de conservação criada juntamente com as
Estações Ecológicas em 1981, pela lei Nº 6.902. (Lei 6.902, art. 8º, 1981). “A Área de Proteção Ambiental é
84
ocupa quase a totalidade da área, que é complementada por apenas um bairro de Ouro Preto
(Morro de São Sebastião), como é possível observar na Fig. 8.
Figura 8: Mapa dos Limites da Área de Preservação Ambiental da Cachoeira das Andorinhas
uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos,
estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas,
e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a
sustentabilidade do uso dos recursos naturais”. (Lei 9.985, art.15º, 2000)
85
A criação da APA se deu com um decreto27 e eu acho que estas coisas não se fazem
com um decreto. Tem que ter uma articulação com a comunidade, uma preparação,
um trabalho de informação até para poder justificar o que está sendo feito. Se não
vira uma reação em cadeia contra o que está sendo feito com a melhor das intenções.
(Representante da Câmara Municipal de Ouro Preto, entrevista realizada em
17/07/08, citada por SCALCO, 2009, p. 83).
Mais uma vez, dentre várias nestes 5 anos, neste abaixo assinado, nos manifestamos
sobre a implantação da APA – área de preservação ambiental, e a lei sobre a mata
Atlântica. Somos uma comunidade pequena, vivendo dos recursos da terra, nossa
ferramenta, vocês estão nos tirando o direito ao trabalho, trabalho que faz o sustento
dos nossos filhos e é nele que o educamos. O preço do progresso para nós está muito
caro. [...] Dói muito ouvir de um vizinho: “São Bartolomeu vai acabar, eu vou
embora, não posso mais trabalhar”. Vocês podem nos reprimir, pois a lei sempre
anda do seu lado, mas não somos nós que destruímos, simplesmente sobrevivemos,
26
Apesar de preferir outros métodos de convergência de interesses e discussão de prós e contras a respeito da
implementação de áreas de conservação, utilizei a palavra “conscientização”, pois foi ela utilizada no trabalho de
Scalco (2009).
27
Decreto Nº 30.264, de 16 de outubro de 1989.
86
amando nossas terras, nossas casas, nosso distrito (Trecho de Documento, cedido
por Raquel Scalco).
E não pára nas discussões da APA. Em 2003 foi criada a Floresta Estadual. E nesse
ínterim, da criação da floresta até os dias atuais, muitas transformações têm sido mencionadas
pelos habitantes. Na verdade pouca diferenciação fazem a respeito das transformações
decorrentes da criação da APA e da criação da floresta. Todavia, como um subentendido é
possível identificar maior interferência da Floresta, uma vez que ela é mais restritiva.
87
Angico: Espécie que ocorre na Mata Atlântica, na Caatinga e no Cerrado, entretanto, na Mata
Atlântica é onde melhor se desenvolve, chegando a 30 metros. É de madeira nobre, pesada e
resistente. O Angico entrevistado é de um povoado de São Bartolomeu, mas morou no próprio
distrito desde os 5 anos de idade. Um senhor responsável e sério, forte quando o assunto é
estrutura familiar.
88
Assa-peixe: É uma planta do gênero Vernonia, nativa do Brasil, nasce em beira de estradas e
terrenos baldios. É encontrado em São Bartolomeu pontilhando áreas de candeias. Mas como
diz Vanessa Lopes Rivera, na sua pesquisa de mestrado sobre a espécie, ela pode ocorrer em
diversos hábitats. Assim também é o Assa-peixe entrevistado. Não é de São Bartolomeu,
chegou lá por acaso, gostou do lugar, “foi amor à primeira vista” e ficou. Mas ele mesmo diz,
se começar a ficar um distrito muito cheio, vai procurar outro lugar para morar, está lá é pela
tranqüilidade.
Carqueja: A carqueja é encontrada nas estradas, caminhos e próximos aos cursos d’água de
São Bartolomeu. Uma planta muito comum e que se adapta muito bem ao local. Assim
também é a resistente Carqueja que entrevistei em duas ocasiões, uma em 2007 junto com
colegas da disciplina de Patrimônio e uma em 2008 com colegas da disciplina de Turismo e
Meio Ambiente.
Cedro: ocorre em todo o país, principalmente de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul. Seu
habitat é a floresta estacional semidecidual, mata atlântica e eventualmente também em
cerradões. Sua madeira é leve a moderadamente pesada, macia ao corte, notavelmente durável
em ambiente seco. O Cedro entrevistado é já bem mais velho e como vários outros, foram
89
ganhar a vida em Belo Horizonte e hoje ficam boa parte do tempo em São Bartolomeu. No
lugar, o cedro é uma espécie preservada.
Copo-de-Leite: O Copo-deLeite é uma flor que vem de fora. É originária da África do Sul e
se dá bem onde tenha água. Ele é usado como figura ornamental, devido às suas grandes
flores, facilidade de cultivo e robustez. O Copo-de-Leite desta pesquisa é também muito
robusto e se adequa às situações, desde que exista água nelas envolvidas. Apesar do copo-de-
leite não ser uma espécie nativa, ela é encontrada nas casas de vários moradores, nos quintais
e nas mesas como enfeite. Nesse sentido, outra analogia é feita. A voz do Copo-de-Leite
entrevistado, apesar de não ser uma voz “autóctona” é muitas vezes incorporada pelos antigos
habitantes, como forma de resguardar-se num discurso construído mais recentemente em
torno da preservação ambiental.
Embaúba: Pertence ao estrato das plantas pioneiras da Mata Atlântica. São plantas
características de solos úmidos, beira de rios, córregos, brejos e lagoas. Ocorreram também
em bordas e clareiras de matas em processo de regeneração, e têm preferência pelos locais
ensolarados. Raras no interior de matas fechadas. A Embaúba que entrevistei é nativa de São
Bartolomeu e se adapta bem ao processo de transformação do espaço, assim como exemplares
da espécie, pode aparecer em clareiras na mata, a Embaúba se adaptou bem ao
desenvolvimento da atividade turística, estando relacionada a ela.
Eucalipto: É uma planta Exótica, hoje bastante comum no Brasil. É uma planta cultivada
com interesses econômicos. Não é a espécie ideal para reflorestamentos, porque não é nativa,
além de usar muita água do solo. Mas a questão do cultivo de eucalipto é controversa, há os
que defendem e os que criticam enfaticamente, devido à questão da preservação ambiental. O
Eucalipto entrevistado é uma pessoa que gera discussões variadas no distrito, em torno de sua
proposta para o “desenvolvimento” do lugar.
bartolomense e há pouco tempo vive no distrito, apesar de conhecê-lo há muitos anos. É uma
senhora calma e demonstra muita tranquilidade e paciência em tratar de assuntos difíceis,
inclusive alguns que mencionei nas entrevistas.
Guaraperê: Espécie nativa, típica de mata de galeria, sua madeira é muito usada na indústria
moveleira, além dissso, é usada com fins medicinais e ornamentais. O exemplar Guaraperê
desta pesquisa é forte, bom para construções, é também “multi-uso”, o homem faz doce, joga
“caixeta”, toma uma pinguinha, mas só de vez em quando.
Pau Ferro: Espécie semi-decídua com 20 a 30 metros de altura. Seu tronco se assemelha ao
de goiabeira por apresentar descamações e ser liso. A espécie habita formações do complexo
atlântico. Sua madeira é muito pesada, dura e durável. O Pau Ferro entrevistado é duro na
queda também, é daqueles homens fortes e que lutam com bravura pelo que querem. É de São
Bartolomeu mesmo, mas viveu muito tempo em cidade grande, tendo retornado mais
recentemente ao lugarejo, para viver de novo a vida interiorana.
exercer atividades econômicas e sobreviver. Mas como todo bom filho, sempre retorna à casa,
ela vai quase todos os finais de semana a São Bartolomeu, por gostar muito do distrito e pelo
fato de sua família ter permanecido ali.
Taquareira: Essa espécie é uma das que estão ameaçadas, integrante da Mata Atlântica. Seu
uso foi muito intenso ao longo da história de São Bartolomeu, usava-se para iluminação das
ruas, no feitio de sestas para iluminação, na confecção de balaios (para acomodar a carga nos
animais usados no transporte de alimentos) e na confecção de forros das casas (quase todas as
casas eram forradas com as fibras trançadas – em diversos modelos – de taquara). A
Taquareira que entrevistei é também multi-uso, participa na comunidade das atividades em
relação à saúde, é mãe e esposa e comercializa doces. É mulher de fibra também, forte e
resistente. Na verdade, a Taquareira que entrevistei não é de São Bartolomeu, todavia, se
adaptou muito bem ao lugar e participa intensamente da organização social local.
Se o leitor não se lembra, vale a pena retornar ao Fig.6 e observar a curva populacional
decrescente em São Bartolomeu. As análises aqui feitas são coerentes com ele. Muita gente
saiu do distrito na busca por outras perspectivas de trabalho que não aquela rural. Era uma
época de turbulência nas cidades brasileiras, os interesses de consumo eram satisfeitos apenas
nos lugares propícios: as grandes cidades. Um exemplo de fuga é a história de Pau Ferro:
Eu saí daqui com o pensamento seguinte, porque minha família aqui foi... família
assim de gente humilde, pobre, então eu não tive tempo de estudar direito né? Eu
falei: “eu vou sair daqui da roça”, falava com meus amigos, nós estávamos num
mato ali cortando uma lenha ali, num mato ali em cima. Eu falei assim, “eu vou sair,
vou embora agora”. Eles ainda riram de mim, sabe? Ainda me gozaram. Eu falei “eu
vou sair agora, quando eu voltar aqui, eu vou voltar dirigindo um carro aqui”.
[...] Eu fui e eu fiz, saí daqui com esse propósito, né? Falei, eu não estudei, naquele
tempo que eu tirei carteira, motorista tinha valor, tá entendendo? Nessa época,
motorista era valorizado. Hoje é que todo mundo é motorista né? [...] E graças a
Deus eu tirei minha carteira, estou com 55 anos de carteira, nunca bati, nunca tive...
saí dirigindo caminhão [...]. (Pau Ferro)
encontrar pessoas com a faixa etária de 18 até 25 ou 30 anos. Ela é uma das poucas pessoas na
faixa que permanecem morando no distrito. Perguntei-lhe se havia pessoas mais ou menos de
sua idade que ainda moravam em São Bartolomeu, ao que me contesta:
Tem só uma. Ela estava estudando em Itabirito, só que ela ficou grávida, ela voltou
pra cá. É a [nome de pessoa] Ela mora lá embaixo, perto da ponte. Mesmo assim
estudei com ela até o terceiro ano, depois ela foi pra Itabirito, morou, aí voltou ano
passado, depois que ela ganhou neném. Assim, o resto, todo mundo foi embora
igual eu estava te falando, vai embora procurar serviço, né? E também pra meio de
estudo também, porque aqui não tem meio de estudo. Assim, pra gente estudar.
Porque que nem, se a gente for fazer um cursinho, geralmente é assim, é à noite, ou
então à tarde. (Candeia)
Neste trecho ela menciona algo que enfatizou no início de sua entrevista, o distrito é
um lugar sem muitas oportunidades, confirmando a representação que vem de mais de 55
anos atrás. Esse fato faz com que muitas pessoas fujam, em busca de novas perspectivas. Essa
é uma representação bastante forte do distrito e que induz a uma prática para a sobrevivência.
Um distrito onde não lhe permitem sustentar a família, não seria um lugar para se viver numa
idade em que devemos ser “produtivos”. A falta de possibilidade de estudos deve ser
explicada aqui. O fato de a maioria dos cursos, como ela menciona, serem à tarde ou à noite
dificulta ainda mais a possibilidade de locomoção dos jovens, em sistema de migração
pendular. Isto porque o ônibus regular (empresa Transcota) sai de São Bartolomeu às 7h30,
retornando às 15h00. Já os ônibus escolares, saem de São Bartolomeu por volta das 5h30 ou
6h00, dependendo da época, retornando por volta das 15h00 de Cachoeira do Campo.
Enfatizando essa representação do não-lugar da sobrevivência, atual lugar do não-
cotidiano, ou do lazer (leia um implícito subentendido: um lugar do outro – turista/forasteiro),
abaixo apresento outro excerto, em que Candeia coloca uma representação comum a respeito
do distrito. A fala a seguir é inclusive muito interessante por ser muito polifônica
(explicitamente), já que Candeia recorre à voz de outros habitantes, corroborando sua
perspectiva a respeito dos próximos anos em São Bartolomeu:
O pessoal daqui mesmo, que mora em São Bartolomeu, que nem aqui, está aqui
morando hoje mesmo, quem é aposentado, ou então quem tem um servicinho assim
que é fixo, né? Praticamente. Porque, assim, a maioria foi tudo embora. Então,
assim, é bom e é ruim. Porque fica aqui aqueles pessoal, assim, velho, que não tem
mais né? Que a gente tem que ficar olhando, tomando conta, os novos estão todo
mundo indo embora. E mais assim, quem vem de fora. Né? Nós até falamos um dia,
nós estávamos conversando, nós falamos assim: “São Bartolomeu no futuro vai ser
só assim, vai virar uma cidade fantasma, que só vai encher no final de semana”.
Todo mundo que mora aqui vai embora. Só os de fora é que vão vir pra cá e mesmo
assim, só no final de semana. Eu falei: “é verdade, São Bartolomeu em mais um
tempo vai ser assim, uma cidade fantasma”. Só no final de semana, sabe? Porque,
assim, quem está velho, não tem condições... vai chegando uma idade e vai... morre
94
e tudo. Os novos porque querem sair pra fora, arrumar um emprego, né? Não quer
ficar aqui. Porque hoje em dia, assim, ninguém quer pegar uma enxada, pegar uma
foice pra cortar pasto, né? Quer conseguir dinheiro, como se diz... Trabalhando...
(Candeia)
A noção de trabalho, construída no enunciado acima diz respeito aos empregos fixos
tradicionais, principalmente aqueles durante a semana. A essa constatação cheguei, quando a
questionei sobre se tinha vontade de trabalhar em uma das pousadas, por exemplo. Ao que me
respondeu negativamente, uma vez que isso implicaria em alterar seus tempos de lazer. Ela
trabalharia, quando todos teriam lazer. A sazonalidade relativa ao trabalho rural da atualidade
(bastante restrito) e até mesmo da atividade turística, implicam em instabilidade, que induz a
saída dos jovens. Mas como ela mesma coloca, muitos jovens nesta situação acabam se
submetendo a trabalhos demasiadamente desgastantes, o que especulo estar relacionado à
baixa qualificação deles, já que poucos tiveram oportunidades de realizar um curso técnico ou
um curso superior, que hoje são exigências mínimas para muitos empregos.
Pois é... 1954, quer dizer que, pra 2009, tem 55 anos, né? Pois é... agora que eu
voltei, porque eu tive um problema de saúde lá em Belo Horizonte. E me aposentei e
preferi voltar pra cá de novo. É, porque o... foi sábado agora foi dia 22 de agosto, eu
fiz 78 anos. Então foi aniversário dos 78 anos. Há três anos atrás, no mesmo dia 22
eu tive uma notícia... Eu estava internado no hospital, no Ipsemg, eu tive uma
notícia de que eu estava com Câncer de... de... nos ossos. [...] Mas estava ruim. Só
pedia pra morrer. Então eu queria vir pra cá, os médicos não deixavam eu vir de
jeito nenhum. Falava “o senhor não pode ir pra lá, vamos deixar pra 2007 mais ou
menos pro senhor ir pra lá”. Quando foi 2007, eu melhorei um pouquinho, aí eu vim
pra cá, aqui eu acho que eu renasci outra vez, aqui é que eu melhorei. Melhorei
minha saúde. (Pau Ferro)
ou distritos interioranos, se convertem em foco de interesse. É isso o que tem ocorrido em São
Bartolomeu, ainda mais por ser muito próximo da capital, o lugar é tido também como um
refúgio. Nesse sentido, temos os que antes fugiram, se desvincularam e agora querem retornar
ao lar, mas sem ter onde morar. Esse grupo compõe junto com os forasteiros a demanda que
no contexto de patrimonialização e preservação ambiental, induzem ao aumento dos preços
dos lotes e edificações. Sobre o tema o senhor Angico discorre com cuidado, pois a prática e a
vivência no local o fazem objetivar o fenômeno:
Muitos [habitantes] foram embora e vendeu o patrimônio que eles tinham aqui. E
hoje já fizeram a vida lá fora, aposentaram e uns estão doidos pra voltar e não tem
como também mais. E talvez não têm nem como comprar mais aqui. [...] O imóvel
aqui está ficando muito caro. [...] Tá ficando mais caro porque qualquer pessoa que
estão tendo o imóvel aqui, eles já não estão querendo desfazer mais e é muita
procura. E não tem... [...] Eu estive uns dois meses com o [nome de pessoa], doido
pra comprar uma propriedade aqui, procuramos tudo, encontramos várias, mas o
preço muito elevado, né? Tem um terreno da dona [nome de pessoa] ali na frente
vendendo, [...] já levei várias pessoas pra olhar ali, uns acham caro, outros acham
meio... tem que comprar, tem que reformar, né? (Angico)
Aqui você não vê roubo, você não vê... Tem uns drogadinhos aí, mas é pouca coisa,
mas não tem isso. Você dorme com a porta aberta. Pode deixar sua bolsa aqui que
ninguém vai mexer. [...] Não é confiável agora, né? Tem o pessoal de fora, mas se
tiver só o pessoal daqui... [...] Entendeu? Então ainda é bom, pra educar filho, você
não vê droga, você não vê briga, você não vê morte. (Assa-peixe)
Como Assa-peixe, existem vários no lugar, outro exemplo é de uma senhora que não
foi para criar os filhos, mas para descansar, escolheu o lugar, para viver o tempo mais maduro
de sua vida. Há oito anos conheceu o lugar e na primeira visita decidiu ficar:
Eu vim, gostei e resolvi ficar. Está fazendo oito anos que eu estou aqui. [...] Vim,
fiquei na casa deles [amigos] porque não tinha pra alugar e agora eu aluguei aqui
tem três anos que eu moro nesta casa. Morei noutra lá em cima. E agora eu estou
vendendo meu apartamento lá em Belo Horizonte pra vir pra cá. (Camará)
Olha, a gente tem que ter cuidado, porque onde chega o progresso, chegam também
as confusões. Né? Mas o pessoal aqui é bem tranqüilo. Tem bastante cuidado. Na
época de festa, pede à polícia pra vir, então tem um respeito, né? Porque a pessoa
bebe, descontrola mesmo, né? Mas sabendo que tem alguém que está vigiando eles
controlam mais. [...] Eu achei muita paz, muita tranqüilidade, hoje já tem mais casas,
mas naquele tempo tinha bem menos casas. (Camará)
E a gente tem que entender também, né? A gente quer conforto, mas também tem
que entender que num lugarejo, porque eu acho também que se ficar facilitando
muito, daqui a pouco não é mais um lugarzinho assim de paz e tranqüilidade, né?
Pra gente. (Gabirobeira)
adornado das fibras de taquara trançadas no forro, por exemplo. As transformações dos usos
dos recursos naquele ambiente, por conseqüência, se mostram como aspectos que interferem
no modo de vida dos habitantes. Dessa forma, proponho a seguir uma análise, no que tange ao
processo de preservação/conservação ambiental, a partir da voz do habitante, seja ele
autóctone ou forasteiro.
No trecho a seguir, no registro de memórias da sua infância/juventude em São
Bartolomeu, o senhor Pau Ferro relata sua primeira atividade no distrito, ainda muito jovem:
A gente só tem, praticamente, lembranças boas. Porque eu não esqueço de nada que
eu fiz aqui, assim, do trabalho que eu fazia aqui, até hoje, tudo o que eu pego pra
fazer eu acho que eu pego, assim, com amor pra fazer. Todo serviço. Antigamente
eu mexia com os animais puxando lenha, puxando goiaba, pros povo fazer doce.
Mexi com gado, mas tudo eu fazia com... assim, satisfeito. [...]É, [puxava goiaba]
com burro. Às vezes nós saíamos daqui com seis, sete besta. Aqui nós falávamos
besta com balaio e tudo, ia lá em Casa Branca buscar goiaba pra fazer doce aqui.
Cachoeira do Campo, tudo isso a gente fazia. (Pau Ferro)
Não tendo tempo para os estudos, cumpria seu dever como filho, de trabalhar. E suas
principais atividades estiveram ligadas ao contexto social da época no distrito. Na época da
colheita da goiaba, era praxe que muitos jovens trabalhassem tanto na coleta da fruta, como
no transporte da mesma. Ademais disso, devo destacar no trecho a busca da lenha, material
este de suma importância no feitio de doces. Nesse sentido, numa memória, algo emotiva,
aparece uma atividade que hoje é proibida e que fazia parte do cotidiano do distrito, como
veremos na voz de outros sujeitos desta pesquisa. E não pára por aí a menção ao cotidiano
associada ao uso dos recursos naturais. Observe que para transportar a carga nos animais,
eram usados “balaios”, tais vasilhames grandes em geral eram feitos de taquara, que é uma
espécie da Mata Atlântica que inclusive hoje está protegida, pelo histórico uso ameaçante.
Como já brevemente mencionado, algo que incomoda muito aos moradores do distrito
é a presença do IEF, entendendo-se por IEF a metonímia que representaria os funcionários do
instituto. Quando a questão são as transformações mais recentes na organização social do
espaço, logo vem essa importante figura na fala dos sujeitos. Um exemplo é quando Pau Ferro
responde ao questionamento a respeito de quais mudanças aconteceram no distrito que ele não
gostou:
Olha, a única coisa que eu acho que está amolando, afligindo um pouquinho o povo
daqui é justamente esse problema do IEF. Que aqui todo mundo tem seu fogãozinho
de lenha, tem os doceiros, tem as que fazem as quitandas e tudo depende de lenha. E
atualmente ninguém tá podendo fazer isso. Certo? Então... Porque nós tínhamos essa
liberdade. Se ela não tem um animal, um carro pra ir buscar lenha, ela ia ali no mato
pegava um feixe de lenha e trazia nas costas. Todo mundo tinha lenha, né? Então
você tinha aquela liberdade e nós hoje aqui estamos privados disso, dessas coisas. É
99
quase todo mundo. Pra você buscar uma lenha, tem que ter licença deles, desse
povo. (Pau Ferro)
Devemos destacar o contexto, neste caso, porque ele nos dá elementos importantes de
interpretação, a pergunta que origina essa resposta é: “desde que o senhor conhece São
Bartolomeu, quais foram as mudanças que aconteceram que o senhor menos gostou?”. A
pergunta é dirigida a apenas Pau Ferro, mas na sua resposta, ele introduz dizendo que o que
incomoda ao “povo” é o problema do IEF. Vejamos, pois, nesse “povo daqui” ele se insere
na resposta, mas parece ter usado a figura metonímica apenas para resguardar-se numa
representação social comum, do grupo de habitantes de São Bartolomeu. Neste trecho, por
conseguinte, temos um importante elemento de construção de sentido a respeito das
transformações sócio-espaciais. Se a figura IEF é responsável por preservação ambiental, ela
na verdade é responsável também por uma transformação do uso de espaços. Esses usos são
obviamente usos sociais e estão intimamente, como já disse antes, relacionados ao modo de
vida. Neste caso também podemos discutir a questão dos movimentos de territorialidade.
Aparece explicitamente o conflito de apropriações, propriedades e gestão territorial pública.
Criar a representação do processo de preservação ambiental para Angico foi bastante
fácil, ele acha que a forma como se criou as unidades de conservação e a forma como as estão
gerindo incomoda aos moradores, incluindo a ele próprio. Isto está relacionado ao assunto dos
usos dos recursos naturais e da transformação sócio-espacial, entendendo neste caso,
especificamente esse tipo de transformação por mudanças nos usos dos espaços, no que tange
à economia, ao lazer e à configuração dos territórios.
Pra nós aqui foi bem ruim [criação das unidades de conservação]. Né? Pro dia a dia
foi ruim, mas ao mesmo tempo foi bom né? Porque a gente precisa do verde
também. Mas do jeito também que eles chegaram e preservou de uma maneira
muito brusca. Chegou e pá, parou tudo, duma maneira que você também não pode
fazer mais nada, foi ruim. Tinha que deixar... não é também assim, né? O pessoal
está sabendo que tem que preservar, você não vai chegar e colocar a mata toda no
chão e vai fazer aquele negócio todo. Mas da maneira como eles chegaram, eu acho
que eles chegaram de uma maneira tão rigorosa assim, que o povo ficou todo
revoltado com aquilo, aquele negócio todo. Trouxeram um transtorno muito ruim.
(Angico)
Quando questionado sobre o que significava para ele a criação das unidades de
conservação, ele apresenta dois discursos que são conflitantes. Uma polifonia já muito
comum no enunciado dos moradores. Isto porque é uma representação decorrente de
processos tanto construtivistas como construcionistas. Essa representação decorre tanto de
processos extremamente individuais de experimentação, como, na maior parte, dos processos
de construção do sentido de sobrevivência e das práticas de sobrevivência, ou seja, das formas
100
28
Por recursos naturais, estou entendendo a apropriação dos elementos da natureza para fins
econômicos/de sobrevivência.
101
criação de uma floresta, com todas as regras que lhe convêm. Neste processo o que ocorre é
uma parcial desterritorialização dos espaços, uma vez que são deslocados usos e comandos,
que passam a ser fiscalizados pelo poder público. De outro lado, essa desterritorialização
implica necessariamente uma reterritorializão, mais associada aos meios de sobrevivência em
escala global. Considerando os biomas mata atlântica e cerrado e a proximidade com a
nascente do Rio das Velhas, aquele é considerando um lugar de interesse público, porque diz
respeito a um grupo bem maior do que os que circundam diretamente as propriedades
particulares que compõem a área.
Em outras partes da entrevista, Assa-peixe fala da necessidade da comunidade em uso
dos recursos, com destaque para a vegetação, mas aponta para uma possível solução: a
comercialização por parte do IEF de madeiras de eucalipto a um custo mais baixo, porém
justo. Ele justifica que apesar de ser um fator que tem gerado muitos conflitos, é necessário
preservar, incorporando o discurso do IEF, mas não somente, fala dos problemas ambientais
em escala global, nos quais todos nós estamos imersos e temos participação. A fala desse
entrevistado é, portanto polifônica e mostra um caráter ambíguo, que se resolve na sua
participação política.
Na fala de Guaraperê, há uma forte crítica em relação ao processo de preservação
ambiental, voltada principalmente para a diferenciação dos direitos de explorar a terra na área
da Floresta. Segundo ele:
... a mata atlântica, por exemplo, se o cara... o terreno dele é todo roçado, ele
continua, não precisa de deixar madeira. Se o outro é todo de mato, ele não pode
cortar. Nós não tínhamos, que cada brasileiro, fazer a sua parte? Então tinha que ter
uma precisão de 70% da mata, todo mundo tinha que deixar 70% e usar 30. Acho
que aí não teria problema com ninguém. Agora, quem tem muito não pode tirar e
quem não tem nada, continua a não ter. [...] Uai, por que que o fulano não pode
cortar e o outro não tem nada lá?Até pra uso pessoal, é necessário que eu tenha uma
mata no meu terreno. É preciso fazer um curral, eu preciso de fazer um chiqueiro pra
cuidar do porco, um pátio pra prender galinha, eu preciso de uma varinha e eu não
tendo, o jeito é roubar do outro né? E eles não vêem isso e ... Se o policial pega a
gente com a lenha, ele multa. (Guaraperê)
Guaraperê critica muito o fato de ser um hábito das pessoas do lugar o uso da lenha e
de em meio à proteção ambiental, não terem acesso a algo que faz parte de sua sobrevivência
e de sua cultura. É interessante que em vários momentos da entrevista Guaraperê contrapõe a
preservação ambiental à preservação do patrimônio material, como antagônicas por uma inibir
a outra. Mas ele não somente critica, aponta para soluções possíveis (solução semelhante à
indicada por Assa-peixe), ainda que tidas como medidas paliativas, uma delas é fornecer, ou
vender a um custo mais baixo, os eucaliptos existentes na área da Floresta do Uaimii:
102
Agora nós estamos num beco sem saída. Eles têm na Floresta do Uaimii, que é uma
área muito grande de eucalipto. Mas a burocracia não deixa cortar, eles não podem
doar pra associação, não podem doar pro doceiro, não podem vender a lenha. [...]
[Eles falam sempre]: “ah, nós vamos tentar”, chega lá, eles voltam com a resposta:
“não”. Existe um conselho daqui da Floresta do Uaimii, tem gente de São
Bartolomeu que faz parte, mas não tem solução nenhuma. “Depois que a gente
formar o conselho, nós vamos poder cortar”. Já formou o conselho, já venceu, já vai
ter outra eleição pro novo conselho e não... e a mata está lá. E nós... Esse ano eu
quase não fiz goiabada, esperando uma lenha que eles prometeram. Uma lenha lá da
Gerdau, que a Gerdau doou pros doceiros. Vai fazer um ano, cada dia eles têm uma
desculpa deles. O dia que a lenha apodrecer, eles vão mandar ela. (Guaraperê)
Não foi somente assa-peixe e Guaraperê que deram alternativas para a diminuição dos
conflitos atualmente existentes entre os habitantes e o IEF. Falando sobre o que acha a
respeito do processo de preservação ambiental no distrito, Candeia propõe uma intervenção
criativa:
Tá certo, né? Eu concordo, se você vai no mato cortar um pau verde, pra deixar
secar, não. Aí eu acho errado. Mas a gente vai ali, às vezes tem um pau seco. Ah,
vamos cortar o pau seco. Vamos cortar o pau seco e tal, está seco, vai cair, se não
cortar vai apodrecer, sabe? Eu acho que tipo assim, eles deveriam dar um incentivo
tipo assim: Vamos gente, vamos fazer o seguinte? A gente vai deixar vocês cortarem
a lenha e a gente vai trazer umas mudas aqui pra vocês e vocês plantam de novo e
tal. Vamos entrar em um acordo? Vamos fazer aquilo. Que nem, eu vou buscar
lenha com minha mãe no pasto ali, eu fico imaginando mesmo, a área só tem grama.
Uma vez eu falei “nó mãe, imagina se isso aqui tudo fosse árvore, olha o tanto de
lenha que a gente ia ter”. Aí minha mãe falou assim: “é verdade, né?”. Aí eu falei
“nó, mãe, será que antigamente aqui assim era tudo árvore mãe? O povo foi
cortando e foi acabando?” Às vezes a gente fica conversando assim. Mas tipo assim,
às vezes a gente está fazendo caminhada, a gente acha um pau no meio do caminho,
a gente vem puxando, vem carregando, não uai, tá no chão, aí a gente brinca: “oh o
IEF, olha o IEF”. (Candeia)
Eu acho que o Patrimônio deveria dar também algum incentivo. Porque eu acho
que... nós só de ganharmos, na minha opinião, é uma boa coisa. “Ah, São
Bartolomeu é tombada pelo Patrimônio”. Pra muita gente, ele vai ter muito valor.
O Patrimônio tinha que dar algum incentivo igual tem em Ouro Preto os
empréstimos pra reforma das casas. Praticamente sem juros. E nós não conseguimos
empréstimos. Então já que São Bartolomeu é o primeiro distrito de Ouro Preto,
é tombado pelo Patrimônio, ele exigir, mas passar alguma coisa em troca,
porque muitas vezes... Então essa questão de madeira, hoje está caríssimo. A
gente não pode cortar aqui. Pra você cortar, tem que pedir autorização no IEF,
tem que ir no IBAMA, vai pra não sei onde, demora, então acaba preferível
comprar, comprar às vezes sai caríssimo e ele vai deixando e vai
descaracterizando. Depois caiu, tem que fazer de qualquer jeito, né? Então o
Patrimônio deveria dar melhor um incentivo. E... Alguém já foi lá, eles falaram que
não tem empréstimo para os distritos, é só pra cidade. Quer dizer, eu acho que o
contrário... Eu acho que deveria ser o contrário. Começar pelos distritos. Mas, de
qualquer maneira, eu apoio, eu acho que o patrimônio, nós precisamos das histórias,
para os meus netos, bisnetos ficarem sabendo o que eu fiz, onde eu morei. E se não
tiver isso, desaparece, né? Desaparece... desapareceu a história, desaparece a família,
desaparece o distrito. Então, eu acho muito bom. (Guaraperê)
O primeiro aspecto que deve ser destacado no enunciado acima é a questão do uso do
lexema “Patrimônio” a letra maiúscula identifica uma institucionalização do termo. Para
referir-se à Secretaria Municipal de Patrimônio e Desenvolvimento Urbano. Quanto à
polifonia ela se apresenta nos seguintes percursos temáticos: (1) patrimônio, como valorizado
para o visitante; (2) uso público versus privado, associado a ônus; (3) patrimônio cultural
material arquitetônico versus patrimônio ambiental; e (4) patrimônio desde uma perspectiva
identitária. Abaixo farei uma breve análise dos quatro percursos temáticos, por serem temas
relevantes, quando relacionados à perspectiva dos processos de patrimonialização.
O primeiro discurso foi incorporado das falas institucionais. Com isso quero dizer que
esse seria um aspecto compensatório economicamente. Nas falas dos funcionários da
secretaria de patrimônio é comum, como já ouvi em 2008, em Ouro Preto, num discurso sobre
o processo de registro da Goiabada Cascão de São Bartolomeu, a menção ao aproveitamento
da situação patrimonial relevante de um lugar, como forma de atrair visitantes e,
conseqüentemente ampliar a injeção de capital. Ao colocar que “pra muita gente vai ter
valor”, ele deixa implícito duas situações: (a) para muitos visitantes isso será de interesse; e
105
(b) muitas pessoas poderão ganhar (financeiramente) com isso. Esse primeiro discurso está
claramente associado à perspectiva da mercantilização do patrimônio e do lugar, quando
tomamos a perspectiva da atividade turística.
O segundo discurso se refere à situação primeira de construção do sentido do
patrimônio em São Bartolomeu: perda de propriedade. Esse discurso é inerente à práxis dos
habitantes, à vivência e às táticas desenvolvidas para lidar com as situações referentes ao
processo de patrimonialização. Esse discurso então é o cerne das representações sociais dos
habitantes em relação ao processo em si, porque ele é o indício de ação dos sujeitos. Para
Guaraperê, ao ser tombada sua casa, ele perde o direito de propriedade e, nesse sentido, se
perde o direito de eleger quais as mudanças fará, o ônus da obrigação de manter o patrimônio
deve ser de quem tem a propriedade daquele bem, ou seja, de todos, na forma de incentivos
governamentais (empréstimos ou auxílios). Nesse sentido, é como se, ao tombar ele passasse
uma parte da propriedade para a ordem pública e, portanto, os gastos em sua manutenção
devem ser de alguma forma compartilhados.
A terceira voz presente no enunciado acima é outra construção discursiva decorrente
da experimentação da nova prática: a questão da contraposição entre patrimônio arquitetônico
e patrimônio natural. Esse discurso decorre da vivência de uma suposta contradição. Como
preservar as características arquitetônicas, sendo que as estruturas são em geral de madeiras
atualmente protegidas por lei? Se atualmente não é possível extrair de sua região, o que sairia
menos oneroso, como arcar com os custos de sua habitação? Nesse sentido, essa voz se
relaciona com a anterior. Ainda outro aspecto deve aqui ser mencionado. Apesar de
Guaraperê não colocar essa situação, em meio à segunda e à terceira vozes identificadas,
relacionadas ao processo dispendioso de manutenção do patrimônio, é que possivelmente
ocorrerá o chamado processo de gentrificação. Assim, num futuro não tão distante, caso não
haja incentivos à manutenção das moradias e se continuar a intensa fiscalização no local,
seguramente as casas tombadas serão vendidas a pessoas que tenham condições de mantê-las,
induzindo novas transformações sócio-espaciais, uma vez que haverá transformações dos
habitantes e da relação entre eles e o espaço.
Por fim, a quarta voz é incorporada, assim como a primeira, da abordagem
institucional da preservação do patrimônio. Ao dizer que haverá um legado para seus
descendentes, Guaraperê incorpora a idéia da significação do patrimônio, ele sai do nível
público, reaproximando-se da idéia familiar, como uma forma legitimar a voz que carrega a
questão da identidade cultural.
106
Nesse sentido, devo agradecer muito a Guaraperê, por se preocupar com a pesquisa,
sem seu cuidado, teria perdido essa importante informação a respeito da construção do sentido
do patrimônio material.
Numa crítica bastante forte, em que chegou a questionar se poderia continuar fazendo
a “queixa”, Jaracarandazinho coloca sua insatisfação com o processo de patrimonialização:
Agora tem uma coisa só que atrapalhou um pouco foi o Patrimônio. Eu acho que
isso aí estragou um pouco. [...] Eu não sei se eu posso queixar aqui, mas eu sou
contra o patrimônio num ponto. Porque, se eles ajudassem, um exemplo, nossa casa
aqui é tombada pelo patrimônio, vamos supor, se eles ajudassem a manter: “tem que
fazer deste jeito”, ou então “nós vamos fazer pra vocês” aí tudo bem, nós vamos
fazer desse jeito. Mas só que eles exigem o negócio, mas eles mesmos não fazem
nada. Mas só que a gente tem que se virar. Igual aqui em casa, tinha que reformar,
mês passado, então o que que acontece? A gente tem que fazer do jeito que eles
querem, não pode mudar nada, mas só que eles não ajudam a gente. Eles não
ajudam. Então, se eles deixassem fazer do jeito que a gente até melhorava mais.
Tudo bem, que eu acho muito bonitas as coisas antigas, muito bonito, né? Mas bem
que podia mudar... não é modificar tudo, alguma coisa seria modificada, até
melhorar né? E num caso desses já não pode. Então a gente é dono e não é, por
que? A gente não pode fazer o que quer. Só isso que eu acho que atrapalhou um
pouco. (Jacarandazinho)
Olha, eu, no meu pensamento, eu acho que numa hora não é bom, na mesma hora
eu acho que é bom. A gente está aceitando [...]. Porque, por exemplo, eles vêm e
tombam. Aí o pessoal não pode mais mexer com ele. De repente, o pessoal não tem
condições de acompanhar o limite que eles têm. Que o Patrimônio tem, né? Por
exemplo, eu vou citar o meu caso. Eu tenho um problema na casa, que eu tenho
que consertar ela, mas eu tenho que tomar obediência lá e tudo, mas demora,
aquele processo... Aquele negócio todo. [...] Aí você vai mexer, eles vêm te
embarga tudo, você fica parado. Então é ruim e agora ao mesmo tempo é bom,
porque também quem que preservar o patrimônio da gente. Mas eles fizeram duma
maneira que eles não têm como ajudar ninguém. O Patrimônio não tem como ajudar
ninguém. Eles não têm recurso, eles não têm né? Eles não têm aquela verba pra
investir naquelas pessoas que necessitam. A casa dele tá caindo, ele precisa de
uma reforma e não tem como fazer, da maneira que ele faz é incorreta, então...
Da maneira como era pra ser feita ele não agüenta. (Angico)
107
Igual eu falei com uma arquiteta, há pouco tempo que ela teve aqui, coitada, eu falei
com ela, ela chegou “ah, tombar...” aí eu falei “mais tombagem aqui?” Só se você
quiser derrubar o resto, porque nós estamos com a igreja nossa ali que está
precisando de uma restauração tem quantos anos que nós estamos precisando de
uma restauração ali? E o Patrimônio não tem dinheiro e tal e tudo. Vai tombar agora,
então vai é acabar de derrubar o resto. (Angico)
Dona Embaúba, enfatizando a crítica feita pelo senhor Angico, de que há um descaso
em relação aos pedidos de licença pra conserto de edificações, acrescenta um problema que
considera grave: “Se você vai mexer sem pegar licença com eles, você toma multa. Aí eles
vêm. Aí vêm até a semana inteira” (Embaúba). Essa crítica se refere a uma crítica política e
econômica. No momento em que os proprietários das casas tombadas precisam do aval da
Secretaria responsável, não há profissionais disponíveis ou entram numa fila de espera, já
quando essas mesmas pessoas dão início numa reforma sem a licença, os técnicos
responsáveis imediatamente aparecem para aplicar a multa.
29
A discussão a respeito do processo de gentrificação e marginalização sócio-espacial no patrimonial bairro
Puerto de Valparaíso foi discutida no trabalho de Delaveau et al (2009).
108
como, por exemplo, no caso de São Bartolomeu, ora complementos, como ocorrem em
diversos lugares do estado.
Ao contrário de antigamente, não se produzem as marmeladas, pois os marmelos não
mais se desenvolvem no lugar que já teve suas características naturais bastante transformadas.
No lugar da marmelada, a goiabada passou a ser produzida à mesma maneira do doce de
outrora e hoje tem lugar marcado nas mesas mineiras e de São Bartolomeu. Nos quintais e nas
beiras de rio podem-se ver muitas goiabeiras, que acabam por sustentar muitas famílias. No
pequeno distrito ouro-pretano, a maioria das produções de doces é feita em organizações
familiares, desde a produção à comercialização.
Os doces são parte da história e não só dela, como também do cotidiano dos
moradores do distrito ouropretano e da região. Em Maio de 2008, durante a semana dos
museus, em Ouro Preto, os doceiros de São Bartolomeu foram homenageados e fizeram uma
solenidade para explicar à comunidade como se deu o trabalho inventariação dos processos de
produção dos doces, sendo o primeiro registro de patrimônio imaterial do Município de Ouro
Preto. Cabe saber se houve mudança na produção, nas formas de trabalho ou comercialização
dos doces elaborados em organizações de caráter familiar. Atualmente o mais conhecido doce
originado de lá é a goiabada (lisa ou cascão). Mas os outros doces, como a pessegada, o doce
de leite, o doce de cidra, o doce de figo e a casquinha de laranja entre outros também não
perdem em fama nem sabor.
O evento do registro do doce, o mais recente processo de patrimonialização no distrito,
parece ter influências ainda muito iniciais, mas que já são observadas ou pelo menos
cogitadas pelos habitantes, doceiros ou não. É interessante que, ao contrário do processo de
preservação ambiental e de proteção do bem material, no caso do patrimônio imaterial, tudo
parece estar sendo mais bem aceito. Em relação à pacificidade deste caso, tenho duas
hipóteses explicativas: a primeira é que de maneira geral, já alcançamos no Brasil muitas
experiências do processo de preservação, e no caso do doce de São Bartolomeu, foi um
evento mais dialógico e participativo. Quando ainda estavam inventariando o doce, em 2007
cheguei a conversar com pesquisadoras na casa de moradores. Essas pesquisadoras ouviam os
habitantes e eles próprios chegaram a me relatar a atenção que tinha para com alguns deles. A
outra hipótese, é que a preservação do modo de fazer e a criação de uma identidade em torno
do Doce, como patrimônio imaterial acaba por valorizar o produto, além de ser um dos
elementos que ajudam a argumentar a favor do uso da mata do local, como lenha, por haver
neste caso explícito o conflito entre patrimônio ambiental e patrimônio imaterial cultural.
109
A jovem Candeia, fala sobre o registro do doce como patrimônio imaterial. Ela o faz
com base em suas observações, sem participar de nenhuma organização familiar produtora de
doces. No início, quando questionada sobre se acredita que o processo de registro tenha
induzido a alguma transformação, ela diz que não, mas no decorrer de sua fala sobre o tema,
acaba chegando à conclusão de que o registro possibilitou maior reconhecimento do doce fora
do lugar:
Desde quando eu entendo, que eu vejo falando assim, sempre falava São Bartolomeu
é terra do doce. Terra do doce, da goiabada, doce de leite e tal. Eu acho assim, né? É
importante, né? Que nem agora já registraram, assim, como é que eu posso dizer,
tem um valor maior, né? Antigamente, assim, não era um trem muito assim... o
pessoal... Hoje em dia é mais divulgado, vamos dizer assim. Porque antigamente só
quem vinha mesmo aqui é que sabia que tinha doce pra comprar. Porque geralmente
mandava pra vender fora e tudo e tal. Mas hoje em dia as pessoas já vêm com aquele
sentido assim, procurando já o doce. Porque geralmente chegava aqui e perguntava
assim: “o que que tem aqui pra gente levar?”. A gente falava, “Olha tem o doce, que
é o principal foco daqui é o doce da goiaba”. Hoje em dia não, o pessoal já vem,
com coisa assim de o pessoal já sabe que aqui já é o doce. Acho que é importante
por esse lado, as pessoas já vêm sabendo o que é que tem na região e tudo.
(Candeia)
Quando questionada sobre se ela acha que o fato de ter sido registrado o doce melhora
ou piora as vendas, Embaúba responde:
Ah, deve ter melhorado, né? Porque todos que chegam aí, os turismo [sic], o pessoal
que vem na pousada, gosta muito de procurar o doce pra poder ir lá comprar.
(Embaúba)
É baseando-se na sua experiência com o contato com os turistas é que Embaúba cogita
a melhora do comércio do produto registrado como patrimônio imaterial, Angico corrobora a
idéia, dizendo que o processo de patrimonialização “valoriza” tal produto. Esse valorizar pode
ser considerado partindo de dois aspectos inter-relacionados: aumento da demanda e aumento
do preço.
Camará também acredita que o processo de registro do doce como patrimônio tenha
ocasionado em transformações, destacando sua especulação em torno da melhora nas vendas:
“Mudou bastante, valeu muito. [...] Vem gente já pra comprar mesmo o doce. E o doce está
sendo vendido fora, né? Estão ajudando bastante, quer dizer, melhorou muito” (Camará).
Agora, tomando a opinião de quem está mais diretamente relacionado com o processo,
trago aqui a fala de um doceiro, avaliando se houve ou não transformações decorrentes do
registro do doce, o mais recente processo de preservação ao qual se depararam os habitantes:
Eu acho que é bom, não tem nada de ruim. [...] Eu, no meu caso, eu acho que sim
[melhorou as vendas]. Inclusive, quando a gente faz exposição, quando o cara lê e
110
fala “uai, patrimônio?”, então eu acho que já notou alguma diferença. Né? Aqui o
povo fala muito. Eu acho que, se não melhorou para os outros, é porque eles ainda
não mostraram ainda. Eu já tenho minha... minha etiqueta eu já pus, né? “O doce foi
tombado pelo patrimônio”. Acho que isso dá muito incentivo. Tem uns outros aí que
estão fazendo. Mas não é só isso, nós temos que ter um rótulo, com a associação e aí
eu acho que vai valer muito mais, porque você vai ter chance de vender pra fora, né?
As grandes empresas não compram se você não tiver código de barras. Pra mim é
difícil, mas pra associação não é. Então eu acho que vai ajudar muito pra nós, na
venda dos doces aí. (Guaraperê)
Guaraperê diz estar aproveitando o registro do doce como patrimônio para mostrar
mais seu produto. Com isso, fica subentendida uma valorização, que está relacionada com o
contexto atual em que a sociedade de maneira geral preza pela salvaguarda de seus elementos
culturais. Nesse sentido, um aspecto subliminar aparece, o consumo da cultura, de certa
forma, o processo de preservação induz também novas relações econômicas e induz ao
desenvolvimento de novas táticas e estratégias de sobrevivência, como estamos observando
nas análises neste trabalho realizadas.
Olha, no meu modo de pensar, tem muito a ver com desenvolvimento. Traz renda
pra um lugar. Mas o que nós precisamos dominar do turismo, é a gente saber tratar o
turista conforme ele merece. Porque o... o... no nosso caso, igual São Bartolomeu,
que nós não temos poder de mexer com muita coisa e muita... roçar, plantar, então o
turista aqui, ele veio, nós temos que ter alguma coisa pra agradar ao turista. Não só
mata, mas o povo, né? Mas muitas coisas eu acho que nós tínhamos que [...] o povo
deve saber como recebe o turista. E saber distinguir o turista né? Aquele que vale a
pena e aquele que... (risos) você tem que deixar de lado né? E isso eu acho que é
muito importante, porque ele mesmo vai desconfiar que ele não está sendo bem
recebido. Então ele vai... E saber tratar bem aquele que vem pra passear, que quer
comprar as coisas, que comprar... porque... o turista aqui acho que vai ajudar muito.
[...] Acho que é bom [o turismo]. Aqui pelo menos, que nós não temos outras coisas
pra fazer, acho que pra receber o turista... No meu caso, eu tenho uma grande
vantagem porque são poucos aqui que vendem doce. Não têm uma lojinha igual eu
tenho uma lojinha aqui. Então eles me procuram demais pra comprar. (Guaraperê)
111
Essa fala tem condições de produção discursivas que devem ser analisadas. O
entrevistado já me conhecia antes da entrevista, inclusive somente concedeu a entrevista
depois que passou a confiar um pouco mais no trabalho que vinha realizando. Até então, me
parecia que ele acreditava que esse fosse mais um trabalhozinho para o qual ele contribuiria e
que jamais veria a pessoa novamente. Só depois de algumas visitas, Guaraperê se abriu
demonstrando que a atividade turística muito tem a ver com seu atual meio de sobrevivência:
a produção de doces. Para ele realmente a atividade turística influencia outra forma de
comercialização e a chegada de turistas tem feito com que seus doces tivessem menores
custos de circulação. Isso porque antes eles eram comercializados fora do distrito. Para que a
atividade turística melhor se desenvolva, ele relata ser preciso que a população tome
consciência das possibilidades que essa atividade pode trazer. Contrapondo explicitamente
com as atividades rurais de produção, que atualmente são controladas, em decorrência do
processo de preservação do patrimônio ambiental. Neste aspecto temos outro tópico que
emerge, possibilitando discussões futuras. Refiro-me ao processo de rururbanização,
catalisada pela atividade turística30. De outro lado, devo colocar uma hipótese que tem a ver
com uma interpretação para além da entrevista em si, alcançando as observações registradas
em diário de campo e, para tanto, destaco um trecho do diário:
Não estou muito satisfeita com a imagem que as pessoas têm do curso que faço.
Parece que estão esperando uma resposta minha de receita pra atrair mais turistas
pra cá. Tenho medo por isso, não são todos que pensam assim, mas muitos parecem
pensar que quero mesmo é “vender” o distrito para o mercado turístico. (Trecho de
diário de campo feito em Agosto, na época da Festa de São Bartolomeu)
30
A respeito desse processo de “rururbanização” deixarei para discutir num tópico reservado, por ser uma
discussão ainda muito inicial e repleta de metafóricas, que neste tópico poderia fazer o leitor se confundir um
pouco.
112
O turismo aqui foi bom em partes, porque o pessoal vem pela televisão, né? Foi
filmado aqui em casa, né? Terra de Minas, então divulgou, então o turista quer ver,
quer vir comprar o doce, quer ver o tacho onde faz o doce, então foi bom, né?
Turismo aqui pra nós. Porque entra... vende mais e entra capital, melhora, né? Em
vez de você sair pra vender, ele vem na porta, né? Vende até mais. (Taquareira)
Não... nós estamos até tranqüilos, porque eles vêm e voltam, né? Então eles não
ficam. Então é bom. (Taquareira)
O que eu mais gostava não, né? O que eu mais gosto ainda. É da liberdade que a
gente tem. Né? Você vai na rua, não tem aquele negócio,né? Hoje em dia não é
tanto mais não, sabe? Acho que antigamente todo mundo saía a casa ficava aberta,
hoje em dia a gente tem mais um pouco de medo ainda, receio ainda, e coisa, porque
está vindo muita gente de fora. [...] Ah, de uns cinco anos pra cá está acabando com
isso [tranqüilidade], sabe? Minha mãe, teve até uma vez, que teve um homem na
pousada ali, falou com minha mãe que ele foi em Lavras Novas e chegou em Lavras
Novas que ele falou que dormiu numa pousada assim, tinha um cara praticamente
ligou um som debaixo da janela dele. Ele foi lá e pediu pra abaixar o som, o cara na
maior ignorância, né? Não abaixou. Na mesma hora ele pegou, juntou as coisas dele
pagou e foi embora. Aí ele veio durante a semana. Aí ele falou com a minha mãe:
“nossa, isso daqui é uma paz pra vocês”. Minha mãe falou, “não, tem final de
semana aí que vem carro...”, ele virou e falou assim “não deixa, vocês não podem
deixar isso acontecer, porque é muito... prejudica o lugar”. É ruim, mas a gente vai
fazer o que? A gente, que nem tem reunião com a Associação e tal, faz ofício pra
mandar pra polícia militar e tal, pra poder vir aqui, pra poder estar dando uma
passadinha, mas, assim, é difícil né? (Candeia)
Em toda a entrevista demonstrou com bastante ênfase sua rechaça em relação a lugares
muito grandes, onde as pessoas devem andar preocupadas com os outros que a circundam. E
neste trecho uma vez mais, aparece a representação do visitante/turista como um outro ao qual
devemos estar atentos, por não haver laços de confiança. Como já vimos em outras falas,
nesta também, o surgimento de novos atores, indica movimentos de territorialidade. E, neste
114
caso, é uma representação não somente do habitante, mas de um tipo de turista peculiar, que
respeita o habitante e o espaço dele.
Depois dessas falas dos autóctones, lanço aqui um questionamento, seria o estereótipo
do mineiro adequado para representar São Bartolomeu? Sinceramente acredito que sejam
perigosas as divulgações turísticas que convidam o turista a adentrar a casa de moradores, que
falam de uma extrema hospitalidade31 mineira. Não que o são bartolomense não seja
hospitaleiro, mas é que entendo que ele como vários outros mineiros de outras localidades
precisam de estabelecer confiança. Da mesma maneira, numa fala não gravada com uma
senhora, aparece essa questão do turista como um destruidor da privacidade do são
bartolomense. Isso porque ele, sem ser convidado e, sequer, sem pedir licença com certa
freqüência adentra cozinha e até mesmo quintais alheios, como se fosse velho conhecido. Eu
já presenciei duas cenas desta na mesma casa, na de uma senhora que oferece comida. Nos
dois casos os pequenos grupos de visitantes adentraram a casa da senhora, pedindo licença,
mas sem esperar que lhes fosse concedida. Em um dos casos a senhora não quis fornecer
comida, pelo simples fato daquela “invasão” que considerou ser falta de educação. Depois que
a dupla de homens gaúchos saiu da casa, ela comentou comigo sobre o evento e disse odiar
esse pessoal que vai entrando, como se fosse amigo. Essa mesma senhora, em 2008 colocou
dois cartazes pedindo gentileza de não adentrar a casa, como é possível observar nas Figuras 9
e 10 a seguir:
Figura 9: Recado na entrada da casa de moradora Figura 10: Recado na ante-sala/hall de casa de
que oferece alimentação, quando agendado. moradora que oferece alimentação quando
Fonte: Arquivo pessoal de Gabriela Souza. agendado.
Fonte: Arquivo pessoal de Gabriela Souza.
31
Não cabe aqui adentrar em discussões sobre o conceito de hospitalidade, uma limitação que serve de ponte
para estudos futuros verticalizados nesse sentido. Mas a ironia semântica merece ser registrada: a despeito da
raiz latina hospitalis, que é hospedar sem ônus, a priori, a estadia do turista é encarada como ponto crítico na
relação que este estabelece com o lugar, ainda de acordo com Taquareira, já que seu sucesso é baseado na
descontinuidade deste processo, no vem e vão.
115
O turismo, em qualquer lugar que ele chega, ele traz vida nova. A mentalidade das
pessoas vai mudando devagarzinho. Primeiro é um choque, as pessoas falam
diferente, agem diferente, principalmente num lugar em que 90% são pessoas que já
passaram 65 anos, igual aqui, não aceitam muito modernismo, modernismo nem dos
próprios filhos e netos. Então já foram se acostumando: ver as moças novas irem pro
rio e volta tudo de biquíni, com uma toalha enrolada, entra no bar, toma uma
cerveja, toma um refrigerante. Isso é a coisa mais normal que tem. No princípio foi
um choque, agora já ninguém está ligando mais nada. Né? (Camará)
Ela reconhece que a inserção da atividade turística muda os hábitos de vida dos
habitantes, mas não somente, muda seus valores. Remetendo essa representação à abordagem
teórica, teríamos a questão da socialização (BERGER; LUCKMANN, 1960/2008). Mas é
interessante que nesse caso a socialização tende ao reverso, é o jovem fazendo o mais velho
adequar-se, legitimando práticas.
Agora, analisando essas novas práticas, de um lado observei certo desrespeito que
realmente incomoda à maioria dos habitantes: sair de biquíni pela rua, apesar de Camará
(forasteira) acreditar não ser mais um incômodo, não foi isso o que apreendi das falas dos
demais entrevistados. De outro lado, há sim transformações que decorrem dessa atividade que
são muito interessantes, principalmente considerando o contexto de um distrito ouropretano.
Um exemplo não citado por Camará, mas que vale a pena dizer é a estimulação a um
comportamento mais independente das mulheres, uma forma de empoderamento delas. Essa
transformação não está consolidada, tenho observado mais pela relação dos empreendimentos
familiares e das formas de gestão. A participação das mulheres tem sido cada vez maior e de
forma mais controladora, são elas quem trazem inovações. Outro aspecto interessante é que,
no feitio dos doces, os homens permanecem na confecção e as mulheres cuidam da
comercialização, quase na maioria das vezes.
Camará faz questão de mostrar-se com representações bastante diferenciadas, em
relação aos demais habitantes. Ela marca as diferenças que decorrem das distinções de
socialização, enquanto ela fora socializada na capital mineira, os habitantes mais
tradicionalistas são os que viveram sempre ou quase sempre no distrito. Assim, a idéia que na
entrevista ela chama de “progresso” seria a valoração maior das concepções desenvolvidas em
torno do pensamento mais liberal, do estereótipo da modernidade.
Já com os olhos de São Bartolomense ausente, Samambaiaçu fala um pouco da sua
impressão negativa acerca do desenvolvimento da atividade no distrito:
falando do lixo [...] mas tem muita coisa. Não respeitam mesmo o pessoal mais
velho, igual aqui, se você vier no dia de semana, 6 horas não tem ninguém na rua,
todo mundo dormindo, porque no outro dia, levanta 4, 5 horas da manhã... É som
alto, moto, aqui está servindo é de trilha de moto. [...] Um absurdo. [...] Acho que
assim, se for olhar agora, acho que o turismo aqui não compensaria não. Porque a
maioria do pessoal que mora aqui é mais velho e o pessoal que vem não está
respeitando. (Samambaiaçu)
Aqui vai ser um lugar que vai crescer muito ainda. A gente não quer não, mas vai
crescer. Quando crescer, eu to fora. Assim está bom. [...] Acho que vai acabando o
brilho, que vai virando casa moderna, daqui a pouco tem hotel, aí vai e acaba o
lugar. Você já ouviu falar em Mangue Seco da Bahia? [...] Da novela tal de Tieta na
época, né? [...]. Lá era igual aqui, fechadinho, bonitinho, tranqüilo, era só o povo
118
mesmo, mais nada depois que abriu a porta pro turismo [bate na mesa], está lá,
acabado, sujeira, não tem mais nada. O pessoal não vai mais lá, só tem um povo lá
morrendo de fome. (Assa-peixe).
Quando vem pras caminhadas, pra fazer caminhada aí a pé. Um certo pedaço e tal. A
gente ainda... uma coisa dessa ainda poderia acompanhar. Mas quando vem também,
já vem tudo organizado lá entre eles. O pessoal daqui só observa. Né? Então... [...]
Tem umas caminhadas que eles vêm, a gente até vê, com uns bastõezinhos e tal.
Mas eles só organizam. (Gabirobeira)
O leitor pode imaginar a emoção que é, numa pesquisa, quando você somente
pergunta “e vem muito visitante aqui? Pra quê que eles vêm?” e vem uma resposta tão
completa e espontânea, como esta. A senhora demonstra muito claramente dois universos que
seriam a representação do universo do fazer turístico em São Bartolomeu. Um só cenário,
para o espetáculo em que eles e nós compõem a obra sem necessariamente nos relacionarmos.
Esse trecho nos traz uma reflexão. A do território. O território do habitante, um território
compartilhado pelo grupo, é apropriado por grupos de turistas/visitantes, de acordo com a
modalidade. Estes últimos somente interagem com os moradores, na maioria das vezes, em
relações comerciais. E, ao se apropriarem do lugar, criam uma nova relação territorial: eles e
nós em um só espaço, não necessariamente o mesmo lugar, para um o lar, para o outro uma
aquisição, ainda que “cultural”. Mas no trecho acima fica explícito, no dito por Gabirobeira
que haveria uma possibilidade de a atividade do visitante ser uma atividade compartilhada.
Mas o que ela menciona é que é difícil, porque eles já “vêm com tudo organizado”, o lugar
passa a ser um espaço apropriado por eles, ninguém nem comunica nada ao habitante.
Quando questionada sobre o que é turismo para Gabirobeira, ela responde sem muito
pensar, mas ponderando que essa era uma resposta dela, que ela não sabe se está certo, mas
acredita que é:
119
Gente que vem de fora pra nos visitar, agora, pra nós, se nós vamos fazer uma
passeio turístico, aí a gente vai pra conhecer, igual quando os meninos da escola
foram para o Uaimii, esse aqui mesmo vai muito com eles do IEF. Eu não fui por
causa de horário pra fazer almoço e tal. Pra receber o neto, quando chegam da
escola. Mas tem muita coisa assim, que se a gente fosse chegar mesmo o turismo,
aqui pra nós seria muita coisa pra gente ver e conhecer. E a gente fica quietinho, né?
Só aqui, nesse pedacinho aqui. Tem os visitantes, o turismo de gente que vem pra
visitar e conhecer e tem o que a gente pode fazer. (Gabirobeira)
O que chamo de não-cotidiano são os momentos de festa. Entretanto, coisa que não
havia reparado nas minhas primeiras visitas, mais foi neste ano mesmo, tem ocorrido uma
transformação brusca nas organizações das festas, desde as mais tradicionais, até as mais
recentes. Antes as organizações das festas eram feitas pelas pessoas do próprio lugar.
Todavia, mais recentemente, gente que sequer mora no distrito participa da organização e
interfere nas programações. Inicialmente essas pessoas se ofereciam para ajudar, atualmente
algumas delas cobram como comissão organizadora. É importante destacar que as festas mais
recentes têm tido muitas influências de uma pessoa específica, do Eucalipto, ele tem
promovido festas que antes não existiam no distrito, em geral em caráter comercial.
120
O pessoal de São Bartolomeu fica um falando pro outro “ah, eu estou enjoado disso,
enjoado daquilo”. Eu falei “chama o [Eucalipto] e fala que a gente não quer mais, a
gente já enjoou. Pronto, acabou” Eu falei: “agora, se a gente ficar falando um falar
com o outro e ninguém faz nada, ele vai continuar continuando”, porque que nem o
[presidente da associação] dá o apoio total pra ele, que nem na reunião que a gente
teve com ele, a gente falou, eu falei assim: “eu estou cansada deles, eu já estou
enjoada”. Sabe? [...] Na festa... eu esqueci qual foi a festa, ele [Eucalipto] veio com
uma banda aqui e cantou umas músicas sertanejas, sabe? Música de Vítor e Leo,
Bruno e Marroni, tipo assim, música que a gente entende. Aí vem fazer essas [...],
essas boates e põe essas músicas. [...] Essa que vai ter semana que vem aí, não sei o
que que vai dar não, porque até ônibus de Belo Horizonte está falando pra vir.
[...] Vai sair ônibus de Belo Horizonte, que nem a gente falou, ninguém de Belo
Horizonte que gosta mesmo [de São Bartolomeu] vai vir. Vai descer é favela. Aí
vem pra esses lugares aqui, aí a gente não tem liberdade, a gente tem que ir com
medo, porque se você vai, tem que ir com alguém pra você voltar, porque se você
voltar, vai que encontra com um... campo, o campo é totalmente escuro, não tem
iluminação nenhuma. Aí vai, te agarra no meio do caminho, Deus que me livre. Não
tenho vontade nem de ir. (Candeia)
intervenções musicais, mas pela tomada do controle da organização. Esse fato que
inicialmente teria sido visto como uma ajuda, atualmente assume caráter comercial e é
rechaçado por vários dos habitantes.
Conversando com Eucalipto de maneira breve, questionei-lhe o que mudaria em São
Bartolomeu:
Ivana: Se você tivesse o poder de transformar coisas lá, o que você mudaria?
Eucalipto: Vou ter e vou mudar. O conhecimento, vou fazer de tudo para agregar
valor nas pessoas que estão chegando porque os velhos não têm jeito os jovens que
vão mudar.
Ivana: Como assim? Não entendi...
Eucalipto: Quero levar cultura. O povo lá é pobre de espírito e cultura. Não adianta
ir à igreja e rezar, mas continuar fazendo coisas erradas. Quero levar
desenvolvimento pra lá, palestras sobre tudo que lá tem, mas o eles não sabem usar,
usufruir da condição q Deus deu: arte, música, artesanato, feiras, projetos sociais. Os
velhos lá têm medo, acham que com isso drogas.
Como o leitor pode observar, essa é uma fala que incorpora um estereótipo que no
meu entender já caiu por terra. Estou falando aqui da relação entre cidades grandes e
pequenas, em relação à existência de uma cultura. É interessante que apesar de ele recorrer a
uma fala que anteriormente era hegemônica, tampouco a “cultura” que relata trazer seria a
canônica, mas também uma cultura popular. Não posso dizer que seja uma má cultura, mas
sim que seja muito estranha ao habitante de São Bartolomeu, como pudemos observar nas
falas deles próprios. Vale dizer que tampouco prego com este trabalho o congelamento de
uma cultura, no caso a de São Bartolomeu, mas sim o fortalecimento dos habitantes que em
conjunto devem refletir sobre as transformações e, a partir de então, geri-las segundo seus
interesses, já que considero que devem, sendo parte desses lugares, (re)territorializá-los.
O “Novo Rural” surge a partir da urbanização das áreas rurais brasileiras, sendo,
portanto, a extensão do urbano. O espraiamento do fenômeno urbano faz surgir
novos limites entre as áreas urbanas e rurais, difíceis de serem percebidos e cada vez
mais indefinidos. (REIS, 2006, p. 8)
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atendendo ao primeiro objetivo específico, pudemos observar que as representações
sobre o lugar São Bartolomeu são basicamente o lugar da impossibilidade de sobrevivência; e
o lugar da preservação ambiental, do lazer, descanso e tranqüilidade. Em relação aos
processos de patrimonialização, para os casos ambiental e material, as representações foram
parecidas e se concentram nos movimentos de desapropriação e desterritorialização. Arrisco-
me a dizer que os espaços desapropriado e desterritorializado compõe uma representação. O
IEF é representado nitidamente pela figura daquele que tolhe, que proíbe, que multa e que
retira o direito à propriedade, tal como a Secretaria de Patrimônio, ambas figuras metonímicas
dos funcionários que têm as funções de controle e fiscalização. Nessa mesma linha dos
movimentos de territorialidade, observei a representação da atividade turística, que implicou,
segundo a construção de sentido por parte dos habitantes, em novas territorialiadades, ainda
que sazonais.
Já a representação do registro do doce como patrimônio imaterial é bastante tranqüila
e quase nada conflituosa. Em geral ela está associada a maior reconhecimento e valorização
do bem/produto local. Esse aspecto economicamente positivo do registro não o é somente
para o doceiro. Isso porque o doce se torna um elemento âncora para a atividade turística no
lugar. Vale ressaltar que, não é pelo caráter positivo que o processo isenta o distrito de
transformações nas práticas. Como analisamos nas entrevistas, outras práticas e até estratégias
passam a ser delineadas pelos doceiros, por exemplo, no que tange à comercialização dos
doces. Eles que antes trabalhavam com muitos atravessadores, passam, agora, usar os
cômodos de casas para vender a produção ao visitante. Nesse sentido, induz, indiretamente a
novas transformações sócio-espaciais, por exemplo, à reutilização daquela arquitetura para o
comércio32. Em três das casas da Rua do Carmo, os cômodos estruturalmente feitos para o
comércio, da época do oitocentos, passam a ser reutilizados com tal função. A venda na porta
da casa se converte em um novo-velho-hábito.
No que tange às transformações sócio-espaciais em decorrência da atividade turística,
algumas foram identificadas. A primeira está relacionada com um processo de médio
horizonte temporal, que é o aumento da área construída e variação do tipo de edificações.
Depois, temos uma mudança no que se refere à presença do outro controlador/persuasivo (o
32
Se o leitor disso não se lembra, vale a pena retornar ao histórico de São Bartolomeu e rever as evidências
registradas sobre as muitas casas de comércio.
124
também esse processo de reterritorialização, por parte daqueles que usavam, indiretamente, os
recursos naturais dali provenientes.
Como vimos, o eixo representativo em torno do patrimônio material, não o é somente
para o patrimônio material, mas para os dois objetos de análise deste trabalho, tanto é que foi
nesse eixo que encontrei o título para o trabalho: “a gente é dono e não é”. Essa asserção
indica os constantes processos de desterritorialização e de reterritorialização pelos quais os
habitantes passam, em ocasião da patrimonialização (ambiental e material) e do
desenvolvimento da atividade turística. Eles não somente não se sentem desapropriados de
suas casas pelo tombamento, mas também se sentem desapropriados do seu lar “São
Bartolomeu”, quando ocorre o tolhimento dos usos da mata e também devido à apropriação
por parte do turista e/ou forasteiro. Isso justifica em certa medida a resistência dissimulada em
relação ao “outro”.
Com tudo isso, devo colocar uma especulação à qual me referi na análise a respeito do
patrimônio material. O dito processo de “gentrificação” não foi identificado de maneira
relevante no distrito, mas se as relações aqui analisadas continuarem da forma como estão
ocorrendo, muito em breve, tristemente, haverá um trabalho de marginalizações e
precarizações em torno do processo de patrimonialização e “turistificação” no local. Devemos
cuidar de refletir essas questões, apontando para essas possibilidades perversas. Não significa
que não devamos preservar nossos bens culturais e ambientais. Bem ao contrário; devemos
fazê-lo, mas sempre atentando para as relações sociais implicadas por esse processo. Não que
devamos congelar um grupo no tempo, mas que o grupo possa e tenha espaço para refletir
sobre as transformações, legitimando-as ou não, segundo lhes convenha. Como tenho
observado em minhas entrevistas há representações sociais que podem e devem ser
comungadas. Elas infelizmente estão freqüentemente silenciadas. Isso devido a processos de
controle, seja por parte de instituições, seja por parte de grupos isolados de forasteiros que,
junto com o estereótipo da “cultura hegemônica da cidade grande”, acaba por inibir essas
representações. Devemos permitir que as artes de fazer cotidianas continuem a existir, que
não sejam eliminadas, e esta é uma das proposições desta pesquisa em seu âmbito prático,
extrapolar as fronteiras da academia e galgar a “língua habitual”, remeter ao saber posterior
que só a prática partilhada induz.
Em um pequeno texto de Passagens, em que Walter Benjamin fala sobre as ruas de
Paris, há muitas de suas críticas que induzem o leitor a refletir sobre a relação entre o homem
e o espaço, além de outras várias. Uma delas, trago aqui a título de reflexão metafórica.
126
33
Nesta última asserção proponho uma crítica sutil e que ainda merece ser bastante discutida. Se tornar
patrimônio é manter características, como em muitas situações acabamos vendo o aumento de processos de
segregação, logo que algum lugar/bem é “protegido”? No processo de tombamento estaremos retirando aqueles
que são autores do cotidiano e, portanto, das organizações do espaço? E se é assim, essa preservação não seria de
outro lado voraz indutora de uma transformação das práticas nos espaços? Essas são apenas inquietações que não
são possíveis de serem respondidas com esta pesquisa, mas são aberturas para as próximas.
127
sociais, portanto também nas práticas cotidianas que desencadearam em observância de novas
configurações territoriais.
A partir de todas essas discussões e revisitas aos temas analisados, chegamos a uma
resposta para problemática desta pesquisa. A atividade turística, e não somente ela, como
vimos, desencadeia transformações no modo de vida dos habitantes. Depois das discussões
teórico-empíricas aqui feitas, devo destacar e reconhecer que seria mesmo impossível
observar alterações sazonais. No processo dialógico da atividade turística, na relação entre
essas pessoas que participam dessa atividade, há a constante transformação de cada uma. Os
discursos e as representações são a todo momento transformados, principalmente, quando há
elementos como esses (atividade turística e patrimonialização) que poderiam ser entendidos
como catalisadores dessas mudanças. Não é possível uma transformação sazonal
simplesmente porque inexiste a possibilidade de controle e congelamento das experiências
vividas. Imagine o leitor, uma obra de teatro que tenha São Bartolomeu como seu cenário, os
visitantes, os habitantes e os empresários como atores. Todos eles apesar de fazerem parte de
uma peça, não isolam seus aprendizados. Todo ator carrega em si um pouco das suas criaturas
anteriores, presentes e a especulação das futuras. Isso não somente na sua vida “profissional”,
ou seja, como ator, porque ela não é um elemento completamente isolado de sua vida
“pessoal”.
Com este trabalho espero ter conseguido aquilo que na introdução propus, que até
mesmo ao perguntar o habitante por essas situações-problema, tenha induzido à reflexão. Ao
materializar as representações que constroem, sob a forma de linguagem verbal, nas idas e
vindas das conceituações ou das objetivações, desejo, ter ajudado a suscitar pensamentos que
embora habitassem o inconsciente dos sujeitos, permaneciam quase sempre silenciados. Se
tiver conseguido fortalecer ainda que um pouco a partir das conversas, já terá sido um grande
ganho, pois é a partir dessas reflexões que poderá acontecer o empoderamento por parte
desses moradores. No diálogo e na participação para o planejamento do lugar é que será
possível voltarem a ser autores34 de São Bartolomeu, os são bartolomenses presentes.
Espero ter alcançado uma discussão básica que pode ser aprofundada, a respeito da
atividade turística como um novo fazer, portanto dependente de pessoas. Como possibilidade
de aprofundamento, há o caminho da fenomenologia, fazendo um estudo do conceito dessa
atividade turística ou “fenômeno turístico”. Aprofundando também, nesse sentido, como se
34
Certeau e Giard (2003) usam a metáfora da autoria, porque consideram que a cidade seria uma forma de
linguagem (estou de acordo com os autores e por isso remeto-me a tal metáfora) e seus autores são os habitantes
que têm naquele lugar, o espaço de suas práticas e artes de fazer cotidianas.
128
dão as relações entre os sujeitos, fazendo uma análise das várias perspectivas, trabalhando,
por exemplo, com o turista, que nesta pesquisa não foi entrevistado. E uma pesquisa de cunho
qualitativo com esse público poderia induzir à reflexão em torno da prática desses sujeitos,
podendo ser um caminho para a diminuição dos processos bruscos e violentos de
desterritorialização.
Acredito que o plano teórico-metodológico aqui apresentado, juntamente com as
análises nele apoiadas, possa servir de base para outras pesquisas na área dos estudos da
atividade turística. Digo isso tomando como base principalmente as pesquisas de cunho
acadêmico, mas não somente. Esse trabalho pode servir de inspiração para projetos de
planejamento, pois nele encontramos os sentidos traçados pelos sujeitos da pesquisa. Se numa
reunião é difícil observar as diferentes perspectivas, até mesmo pelas possíveis relações de
poder que nela se estabelecem, a partir de uma pesquisa com essas características é possível
observar onde há falhas na gestão das unidades de conservação, na gestão do patrimônio
municipal (material) e organização da atividade turística. Por meio desse tipo de trabalho até
mesmo é possível observar as demandas dos comerciantes que têm como produto um bem
imaterial (a arte de fazer doce), possibilitando com maior sintonia a criação ou melhoramento
de associações, cooperativas ou arranjos produtivos, por exemplo.
129
9. EPÍLOGO
Apesar de todo este texto ser em primeira pessoa, de colocar várias das minhas
observações entremeadas com as análises das entrevistas e até mesmo no referencial teórico,
rompendo com algumas estruturas do trabalho acadêmico tradicional que visa o objetivismo,
ainda não estou satisfeita. O que sinto falta é de contar ao leitor um pouquinho dessa
experiência, sem ter que me ater a referências teóricas, ou me preocupar com os dados da
pesquisa. É uma experiência incrível chegar com um roteiro de entrevistas e ver que ele
sempre é mudado, que na verdade as conversas fluem. É interessante como cada entrevistado
enfoca determinados aspectos, fala com diferentes emoções e isso tudo ajuda na interpretação.
Certamente, se eu tivesse chamado alguém para coletar estes dados não teria sido a mesma
coisa.
Infelizmente, algumas informações muito importantes foram omitidas nesta pesquisa,
porque me foram confidenciadas. Respondendo à ética em pesquisa, toda fala confidenciada
foi suprimida. E mesmo algumas que não foram, mas que senti poderem de alguma forma
identificar o sujeito e prejudicá-lo de alguma maneira foram igualmente retiradas de análise.
Também algo que é até bastante comum voltei a observar nos trabalhos de campo em
São Bartolomeu. O fato de ser estudante e de estudar em Belo Horizonte muitas vezes se
convertia em uma diferença de status. Para algumas pessoas, esse fato poderia querer dizer
que eu saberia mais coisas que essas pessoas. Às vezes observava até que determinadas
pessoas não acreditavam nessa tentativa de elevação da posição do morador da capital /
estudante de ensino superior, mas algumas delas acabavam usando esse discurso porque seria
o legitimado. As duas frases seguintes me marcaram bastante:
“Agora você, como uma pessoa instruída, que sabe tudo, graças a Deus. Eu queria
que você falasse... a sua opinião, o que que você acha que a gente faz pra receber os
turistas aqui em São Bartolomeu?” (Pau Ferro)
Foram frases até mesmo constrangedoras, porque na verdade fui a campo para
aprender com meus sujeitos de pesquisa. Fui também ensinar o que sabia, mas é muito pouco
perto do tanto que ouvi e das descobertas que fizemos juntos.
Esse foi um trabalho peculiar, nele tive oportunidade de observar, de outro ângulo,
algumas das pesquisas das quais participei no Núcleo de Estudos Organizacionais e
Sociedade, entre 2006 e 2009. Em São Bartolomeu, encontrei fornecedores das antigas do
130
Mercado Central, encontrei pessoas que foram tentar a vida na capital e que foram
empregados de lojas no Mercado. Também encontrei algumas pessoas que antigamente
cultivavam alho e faziam doces para comercializar na festa do Jubileu de Congonhas. Se junto
com outros bolsistas sentia falta na festa de congonhas dos traços mineiros do antigo
comércio a ela associado, foi nas entrevistas em São Bartolomeu que consegui esses traços.
Surpreendentemente, não foi somente neste aspecto que encontrei complementações à
pesquisa feita em Congonhas. Durante a festa de São Bartolomeu, que ocorre em agosto,
informalmente conversei com os “barraqueiros” que foram comercializar suas mercadorias,
principalmente no sábado e no domingo. Constatei nessas conversas que uma hipótese que
levantamos em Congonhas se verificava ali, muitos daqueles comerciantes informais
aproveitavam justamente as festas religiosas para sustentarem suas famílias. Com muita
surpresa, as relações com as pesquisas das quais participei não pararam por aí, alguns desses
comerciantes que encontrei em São Bartolomeu, foram camelôs da capital e passaram a viajar
em decorrência das dificuldades encontradas, em razão da fiscalização que aumentava.
Nesta deliciosa experiência de pesquisa, em que vários temas curiosos estão
imbricados, é interessante observar como que a atualidade, na sua reconstrução histórica
aparece entrelaçada com um contexto regional. Apesar de o transporte ser mais difícil, das
comunicações tardarem a ser feitas entre as localidades, se comparados à atualidade, as
cidades estão muito entrelaçadas. Não esgotamos nunca uma pesquisa, se futricamos, com
cautela, vamos encontrando explicações e relações impensadas. Ainda há muito mais coisas a
estudar, a relacionar e a entender em São Bartolomeu.
131
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APÊNDICES
7. Como foi o contato em campo? Que pessoas ajudaram na pesquisa? Como foi a
relação com essas pessoas?
9. Na época que o senhor ia lá, como era o distrito? Em torno de que girava a economia?