superior a vocês í a vocês que são bons í é malvado"; e o historiador, que é
seu duplo, o imita:"nenhum passado é maior do que seu presente e tudo o que na história pode se apresentar com arde grandeza, meu saber meticuloso lhes mostrará a pequenez, a crueldade, e a infelicidade". Oparentesco do historiador remonta a Sócrates. Mas esta demagogia deve ser hipócrita. Deve esconder seu singular rancor sob a máscara douniversal. E assim como o demagogo deve invocar a verdade, a lei das essências e a necessidadeeterna, o historiador deve invocar a objetividade, a exatidão dos fatos, o passado inamovível. Odemagogo é levado à negação do corpo para melhor estabelecer a soberania da idéia intemporal;o historiador é levado ao aniquilamento de sua própria individualidade para que os outros entremem cena e possam tomar a palavra. Ele terá portanto que se obstinar contra si mesmo: calar suaspreferências e superar o nojo, embaralhar sua própria perspectiva para lhe substituir umageometria ficticiamente universal, imitar a morte para entrar no reino dos mortos, adquirir umaquase existência sem rosto e sem nome. E neste mundo em que ele terá refreado sua vontadeindividual ele poderá mostrar aos outros a lei inevitável de uma vontade superior. Tendo pretendidoapagar de seu próprio sa ber todos os traços do querer, ele reencontrará do lado do objeto aconhecer a forma de um querer eterno. A objetividade do historiador é a interversão das relaçõesdo querer no saber e é ao mesmo tempo a crença necessária na Providência, nas causas finais, ena teologia. O historiador pertence à família dos ascetas. "Eu não posso mais suportar esteseunucos concupiscentes da história, todos os parasitas do ideal ascético; eu não posso maissuportar estes sepulcros caiados que produzem a vida; eu não posso suportar seres fatigados eenfraquecidos que se cobrem de sabedoria e apresentam um olhar objetivo".45 Passemos àEntestehung da história; seu lugar é a Europa do séc. XIX: pátria das misturas e dasbastardias, época do homemímistura. Com relação aos momentos de alta civilização eiínos comobárbaros: temos diante dos olhos cidades em ruínas e monumentos enigmáticos; detemoínosdiante das muralhas abertas; perguntamoínos que deuses puderam habitar aqueles templosvazios. As grandes épocas não tinham tais curiosidades n em tão grandes respeitos; elas nãoreconheciam predecessores; o classicismo ignorava Shakespeare. A decadência da Europa nosoferece um espetáculo imenso cujos momentos mais fortes são omitidos ou são dispensados. Opróprio da cena em que nos encontramos hoje é representar um teatro; sem monumentos quesejam nossa obra e que nos pertençam, nós vivemos cercados de cenários. Mas há mais: oeuropeu não sabe quem ele é; ele ignora que raças se misturaram nele; ele procura que papelpoderia ter; ele não tem individualidade. Compreendeíse então porque o séc. XIX éespontaneamente historiador: a anemia de suas forças, as misturas que apagaram todas as suascaracterísticas produzem o mesmo efeito que as macerações do ascetismo; a impossibilidade emque ele se encontra de cri ar, sua ausência de obra, a obrigação em que ele se encontra de seapoiar no que foi feito antes e em outros lugares o constrangem à baixa curiosidade do plebeu. Mas se esta é a genealogia da história, como ela pode se tornar análise genealógica? Como nãope rmanecer um conhecimento demagógico e religioso? Como pode, nesta mesma cena, mudar depapel? A não ser que nos apoderemos dela, que a dominemos e a voltemos contra seunascimento. Isto é de fato o próprio de Entestehung: não é o surgimento necessário daquilo quedurante muito tempo tinha sido preparado antecipadamente; é a cena em que as forças searriscam e se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas. O lugar de emergência dametaf sica foi a demagogia ateniense, o rancor plebeu de Sócrates, sua crença na imortalidade.Mas Platão teria podido apoderar se desta filosofia socrática, teria podido voltá la contra elamesma e sem dúvida mais de uma vez ele foi tentado a fazê lo. Sua derrota foi ter conseguidofundá la. O problema do séc. XIX é não fazer pelo ascetismo popular dos historiadores o quePlatão fez pelo de Sócrates. E preciso despedaçá lo a partir daquilo que ele produziu e nãofundá lo em uma filosofia da história; tornar se mestre da história para dela fazer um usogenealógico, isto é, um uso rigorosamente antiplatônico. E então que o sentido históricolibertar se á da história supra histórica. VII O sentido histórico comporta três usos que se opõem, palavra por palavra, às três modalidadesplatônicas da história. Um é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema dahistória reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da identidade quese opõe à história continuidade ou tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdadeque se opõe à história conhecimento. De qualquer modo se trata de fazer da história um uso que aliberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo, metaf sico e antropológico da memória. Trata sede fazer da história uma contramemória e de desdobrar consequentemente toda uma outra formado tempo. Em primeiro lugar o uso paródico e burlesco. A esse homem confuso e anônimo que é o europeu e que não sabe mais quem ele é e que nome deve usar o historiador oferece identidadessobressalentes aparentemente melhor individualizadas e mais reais do que a sua. Mas o homemdo sentido histórico não deve se enganar com este substituto que ele oferece: é apenas umdisfarce. Alternadamente, se ofereceu à Revolução Francesa o modelo romano, ao romantismo aarmadura de cavaleiro, à época wagneriana a espada do herói germânico; mas são ouropéis cujairrealidade reenvia à nossa própria irrealidade. Deixe se a alguns a liberdade de venerar essasreligiões e de celebrar em Bayreuth a memória desse novo além. Deixe se a eles se fazeremalgibebes das identidades dispon ve is. O bom historiador, o genealogista saberá o que énecessário pensar de toda esta mascarada. Não que ele a rechace por esp rito de seriedade; pelocontrário, ele quer levá la ao extremo: quer colocar em cena um grande carnaval do tempo em queas máscaras reaparecem incessantemente. Em vez de identificar nossa pálida individualidade àsidentidades marcadamente reais do passado, trata se de nos irrealizar em várias identidadesreaparecidas: e retomando todas estas máscaras Frederic de Hohenstaufen, César, Jesu s,Dion sio e talvez Zaratustra recomeçando a palhaçada da história, nós retomaremos em nossairrealidade a identidade mais irreal do Deus que a traçou, "talvez nós descobriremos aqui o dom nioem que a originalidade nos é ainda poss vel, talvez como parodistas da história e como polichinelosde Deus"46 Reconhece se aqui o duplicador paródico daquilo que a segundaExtemporâneachamava de "história monumental": história que se dava como tarefa restituir os grandes cumes dodevir, mantê los em presença perpétua, reencontrar as obras, as ações, as criações segundoomonograma de sua essência ntima. Mas, em 1874, Nietzsche criticava essa história inteiramentedevotada à veneração por obstruir as intensidades atuais da vida e suas criações. Trata se, aocontrário, nos últimos textos, de parodiá la para deixar claro que ela é apenas paródia. Agenealogia é a história como um carnaval organizado. Outro uso da história: a dissociação sistemática de nossa identidade. Pois esta identidade,bastante fraca contudo, que nós tentamo s assegurar e reunir sob uma máscara, é apenas umaparódia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam; os sistemas se entrecruzam e sedominam uns aos outros. Quando estudamos a história nos sentimos "felizes, ao contrário dosmetaf sicos, de abrigar em si não uma alma imortal mas muitas almas mortais"47. E, em cada umadestas almas, a história não descobrirá uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, masum sistema complexo de elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de s ntese domin a. "eum signo de cultura superior manter em toda consciência certas fases da evolução que os homensmenores atravessam sem pensar... O primeiro resultado é que nós compreendemos nossossemelhantes como sistemas inteiramente determinados e como representantes de culturasdiversas, quer dizer, como necessários e modificáveis. E em contrapartida: que em nossa própriaevolução nós somos capazes de separar pedaços e considerá los à parte" 48. A história,genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as ra zes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá la; ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria à qual os metaf sicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. Essa função é o contrário daquela que queria exercer, segundo as Considerações Extemporâneas, a "história antiquário". Tratava se, então, de reconhecer continuidades nas quais se enra za nosso presente: continuidades do solo, da l ngua, da cidade; tratava se, "cultivando se com uma mão delicada o que sempre existiu, de conservar, para aqueles que virão, as condições sob as quais se nasceu"49. A segunda dasConsiderações Extemporâneas lhe objetava que ela corre o risco de prevenir toda criação em nome da lei de fidelidade. Um pouco mais tarde já em Humano, Demasiadamente Humano Nietzsche retoma a tarefa antiquária, mas em direção inteirarnente oposta. Se a genealogia coloca, por sua vez, a questão do solo que nos viu nascer, da l ngu a que falamos ou das leis que nos regem, é para clarificar Os sistemas heterogêneos que, sob a máscara de nosso eu, nos pro bem toda identidade. Terceiro uso da história: o sacrif cio do sujeito de conhecimento. Aparentemente, ou melhor,segundo a máscara q ue ela usa, a consciência histórica é neutra, despojada de toda paixão,apenas obstinada com a verdade. Mas se ela se interroga e se de uma maneira mais geralinterroga toda consciência cient fica em sua história, ela descobre, então, as formas etransformações da vontade de saber que é instinto, paixão, obstinação inquisidora, refinamentocruel, maldade; ela descobre a violência das opiniões preconcebidas: contra a felicidade ignorante,contra as ilusões vigorosas através das quais a humanidade se protege, opin iões preconcebidascom relação a tudo aquilo que há de perigoso na pesquisa e de inquietante na descoberta50. Aanálise histórica deste grande querer saber que percorre a humanidade faz portanto aparecertanto que todo o conhecimento repousa sobre a injustiça (que não há, pois, no conhecimentomesmo um direito à verdade ou um fundamento do verdadeiro), quanto que o instinto deconhecimento é mau (que há nele alguma coisa de assassino e que ele não pode, que ele nãoquer fazer nada para a felicidade dos homens). T omando, como ele o faz hoje, suas maioresdimensões, o querer saber não se aproxima de uma verdade universal; ela não dá ao homem umexato e sereno controle da natureza; ao contrário, ele não cessa de multiplicar os riscos; elesempre faz nascer os perigos; abate as proteções ilusórias; desfaz a unidade do sujeito; libera neletudo o que se obstina a dissociá lo e a destru lo. Em vez de o saber se separar, pouco a pouco,de suas ra zes emp ricas, ou das primeiras necessidades que o fizeram nascer, para se torna r puraespeculação submetida às exigências da razão; em vez de estar ligado, em seu desenvolvimento,à constituição e à afirmação de um sujeito livre, ele traz consigo uma obstinação sempre maior; aviolência instintiva se acelera nele e cresce; as religiões outrora exigiam o sacrif cio do corpohumano; o saber conclama hoje a experiências sobre nós mesmos, ao sacrif cio d6 sujeito deconhecimento. "O conhecimento se transformou em nós em uma paixão que não se aterroriza comnenhum sacrif cio, e tem no fundo apen as um único temor, de se extinguir a si próprio... A paixãodo conhecimento talvez até mate a humanidade... Se a paixão do conhecimento não matar ahumanidade ela morrerá de fraqueza. Que é prefer vel? Eis a questão principal. Queremos que ahumanidade se aca be no fogo e na luz, ou na areia?" 52. É tempo de substituir os dois grandesproblemas que dividiram o pensamento filosófico do sêc. XIX (fundamento rec proco da verdade eda liberdade, possibilidade de um saber absoluto), os dois temas principais legados por Fichte eHegel, pelo tema segundo o qual "morrer pelo conhecimento absoluto poderia fazer parte dofundamento do ser 53. 0 que não quer dizer, no sentido da critica, que a vontade de verdade sejalimitada pela finitude do conhecimento! Mas que ela perde todo o limite e toda intenção de verdadeno sacrif cio que deve fazer do sujeito de conhecimento. "E talvez haja uma única idéia prodigiosaque ainda poderia aniquilar qualquer outra aspiração, de modo que ela ganharia das maisvitoriosas eu quero dizer a idéia da humanidade se sacrificando a si própria. Pode se jurar quese a constelação dessa idéia aparecesse no horizonte, o conhecimento da verdade permaneceria aúnica grande meta a que semelhante sacrif cio seria proporcionado porque para o conhecimentonenhum sa crif cio é grande demais. Esperando, o problema nunca foi colocado..."54 As Considerações Extemporâneas falavam do uso cr tico da história: tratava se de colocar o passado na justiça, de cortar suas com faca, destruir as venerações tradicionais a fim de li bertar o homem e não lhe deixar outra origem senão aquela em que ele quer se reconhecer. Nietzsche criticava esta história cr tica por nos desligar de todas as nossas fontes reais e sacrificar o próprio movimento da vida apenas à preocupação com a verdade. Vê se que, um pouco mais tarde, Nietzsche retoma por sua conta própria o que ele então recusava. Ele o retoma, mas com uma finalidade inteiramente diferente: não se trata mais de julgar nosso passado em nome de uma verdade que o nosso presente seria o único a deter. Trata se de arriscar a destruição do sujeito de conhecimento na vontade, indefinidamente desdobrada, de saber. Em certo sentido a genealogia retorna às três modalidades da história que Nietzsche reconheciaem 1874 . Retorna a elas, superando objeções que ele lhes fazia então em nome da vida, de seupoder de afirmar e criar. Mas retorna a elas, metamorfoseando as: a veneração dos monumentos torna se paródia; o respeito às antigas continuidades torna se dissociação sistemática; a cr ticadas injustiças do passado pela verdade que o homem detém hoje torna se destruição do sujeito deconhecimento pela injustiça própria da vontade de saber. c