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“PORNO CASSETADAS” *: RISO, SEXO E DIVERSÃO COMO
ESTRUTURADORES DA PORNOGRAFIA
O sexo, sempre o sexo: desde Sara e Abraão até as graçolas do music-hall, ele
continua sendo um valor seguro do cômico (Minois, 2003: 195).
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produções pornôs, o humor como intenção consciente de provocar riso no
espectador é apenas uma pequena fatia deste vasto universo, mas a risada e o
sorriso por parte de artistas durante as cenas de sexo são uma constante.
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celestial (Macedo, 2000: 66). Influência dos pensadores cristãos que permitiam
o riso moderado como expressão do gozo das delícias celestes, no universo da
alegria, Cristo e seus anjos sorriem enquanto Satã e seus demônios
gargalham. A gargalhada torna-se então um exagero, uma desmedida
grotesca, uma “perversão” do gaudium spirituale, o delicado sorriso da
superioridade espiritual do cristão.
Conforme analisou Norbert Elias, durante o “processo civilizador”, toda
uma cultura de corte formada durante o Renascimento e desenvolvida
gradualmente pelos séculos seguintes também vai condenar a risada e suas
associações indesejadas. Uma versão laica dos incômodos da gargalhada
satânica, o riso é entendido gradualmente como um descontrole sobre o
próprio corpo e, conseqüentemente, sobre a própria educação ou “civilidade”.
Em 1621, o inglês Robert Burton escreve A Anatomia da Melancolia.
Neste tratado, o autor lança as bases da distinção entre o “bom” e o “mau” riso.
O primeiro é entendido como manifestação de alegria legítima, natural e
socialmente correta. O “mau” riso representa uma intenção de desqualificar ou
agredir, manifestando-se preferencialmente através do “rir de” ou “rir contra”.
Esta distinção vai influenciar muito da visão ocidental sobre a risada e o humor,
que vai associar o mau riso ao sexo, aos grupos populares e ao chamado
“humor negro” (Saliba 2000: 19). A gargalhada e o cômico dito “grosseiro”
passam a ser alvos de uma perseguição até então só pregada idealmente pela
Igreja.
Entre o fim do século XIV e início do XVII, vai se delineando a idéia de
humor como o conhecemos hoje em dia. Até então, “humor” era usado no
sentido de fluidos corporais, como concebido por Hipócrates no Corpus
Hippocratium - cerca de 400 A. C. O que vale ressaltar é a íntima associação
entre as funções fisiológicas e os estados de espírito encontrada na palavra
“humor” e que mesmo perdendo seu sentido orgânico no século XVII, depois
de uma batalha de quase três séculos, manteve ainda por muito tempo a
relação entre a alegria, o prazer e as reações orgânicas.
Neste período também, retoma-se a idéia de um humor cruel, agora
voltado para objetivos bem terrenos: a risada como instrumento de agressão e
ataque, visando a desqualificar socialmente aqueles que eram alvo de
sarcasmos, ironias e deboches. Por outro lado, a risada também pode ser
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usada para se defender destes ataques. O jogo de poder envolvido nas
disputas de status no universo cortês utiliza tanto determinados tipos de humor
quanto as reações a estes. Seja com intenção de ataque ou defesa, para
agredir ou proteger, o riso firma-se como arma fundamental para a exclusão ou
aceitação social.
Concomitante a esta mudança de sentido da palavra “humor”, a maneira
legítima de expressar a alegria e os prazeres físicos passa a ser o sorriso. E
como uma arma nas relações “civilizadas”, o sorriso infantil ou feminino
representa a pureza dos corações, enquanto o masculino pode expressar
superioridade e desdém. Mas, para todos, o riso, como explosão interna que
deforma a fisionomia, representa o descontrole e a perda (ainda que
momentânea) de status social, como demonstra esta carta de 1740 do conde
inglês de Chesterfield, ao incentivar o comportamento correto de um cavalheiro
para seu filho: Desejo profundamente que você seja visto sorrindo com
freqüência, mas que nunca seja ouvido rindo durante toda a sua vida (Skinner,
2002: 11).
Da mesma forma, a burguesia enxerga na gargalhada popular uma
“brutalidade” da qual ela deseja se distanciar e vê na risada cortês um escudo
contra suas aspirações de status e poder. Retoma-se então com grande força
neste grupo social os antigos clamores de Aristóteles para uma constante
vigilância sócio-moral sobre o que se pode ou não rir, e a idéia de que com
certas coisas “não se brinca” (como a autoridade, o trabalho, a dor, a
espiritualidade, a doença e, claro, a própria ideologia burguesa).
Estas associações entre a diversão e o riso como elementos populares e
transgressivos, a concepção de mundo elaborada através dos prazeres
corporais e sua representação exagerada e, principalmente, a gradual distinção
entre um sorriso nobre e espiritualizado em oposição a uma gargalhada plebéia
e material como elementos de distinção social, serão fundamentais para os
futuros debates envolvendo a pornografia.
A partir da segunda metade do século XIX, com o surgimento dos
primeiros estudos modernos e científicos sobre sexo, os gozos sexuais foram
fragmentados e classificados - assim como o riso em séculos anteriores - em
“bons” e “maus” (embora a terminologia dita científica fosse um pouco menos
explícita) delimitando o campo do prazer útil e organizando os então
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considerados desvios e transgressões nas chamadas “perversões” ou
“perversidades”. É neste mesmo período que nasce o produto conhecido hoje
como “pornografia”, o discurso sexual da também recente cultura de massas,
transformando sexo em espetáculo. Diferente das representações sobre a
sexualidade humana que a precederam e eram indissociáveis de uma crítica
político-social, este novo material caracteriza-se pela intenção de provocar o
desejo e a excitação sexual em seu público consumidor como um fim em si
mesmo, além da produção em série alheia às questões filosóficas.
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piadas sem meias-palavras (Revista no Brasil, 2000: 184). O termo “moderna”
também poderia ser uma alusão a atitudes ousadas ou amorais, muito mais do
que “atuais” (Preti, 1983: 101).
Nas revistas atuais, o humor quando existe, parece demarcar a
separação entre produtos voltados para grupos sociais distintos. Quanto mais
barata a publicação, mais direcionada para consumidores de baixo poder
aquisitivo e mais piadas, brincadeiras e intenção clara e direta de fazer o leitor
rir. Neste tipo de material, o sexual e o cômico são indissociáveis. Da mesma
forma, publicações mais elaboradas e refinadas, tanto no formato quanto no
conteúdo, por mais explícitas que sejam as imagens contidas em seu interior
não possuem uma forte tendência humorística como as populares. Percebe-se
desta maneira que o humor associado ao obsceno mantêm-se como um traço
marcante da cultura popular, enquanto esta relação tende a desfazer-se com o
avanço na hierarquia econômica e social.
Como disse o escritor francês Alain Robbe-Grillet: a pornografia é o
erotismo dos outros (Abreu, 1996: 16). Ora, a luta por classificar e separar o
erótico do pornográfico é a batalha por legitimar um poder estabelecido através
da distinção social. Assim, pornografia não é apenas o sexo dos outros, mas
também o sexo das chamadas classes populares, das massas e de todos
aqueles que não possuem “capital cultural”, não pertencendo às esferas que
mantêm o monopólio do chamado gosto legítimo (Bourdieu, 1988). As mesmas
representações sexuais que se encontram nas produções de massa também
são vistas naquelas voltadas para as elites sócio-econômicas. A diferença é
que enquanto um produto destes voltado para o consumo popular é
considerado “perversão”, o outro é entendido como sofisticação do prazer e,
desta maneira, rotulado como “arte erótica”. Assim, pornografia é também o
nome dado ao erotismo dos “pobres”: pobres “de espírito”, de cultura ou de
dinheiro. Talvez por isso que mesmo sendo uma indústria milionária, tanto em
sua face legal – como nos países ocidentais – ou ilegal, o mercado pornô é
ainda constantemente associado à idéia de penúria material e miséria moral,
caracterizando nestes termos tanto quem produz como quem consome tal
material.
Ora, quando se fala de “arte erótica”, enaltecendo neste discurso a
sutileza das emoções e uma pressuposta capacidade de reflexão que ela
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provoca, ao mesmo tempo condenando a “grosseira” objetividade da
pornografia ou a sua simplória intenção de vender prazer explícito e imediato,
se esquece que ambas representações são também – e talvez antes de tudo –
mercadorias com finalidade de lucro com mercados próprios. A tragédia da
pornografia é pertencer ao ramo popular, barato nos preços e por isso
associado simbolicamente a camadas sociais de menor poder e com baixo
capital (econômico e cultural).
Com o nascimento da pornografia como negócio, o humor crítico que se
encontrava nas obras libertinas até o século XVIII foi perdendo sua razão de
ser. O embate das produções libidinosas passa a objetivar não mais o ataque
ao sistema sócio-econômico vigente, mas uma melhor e mais completa
aceitação por parte deste e o riso deixa de evocar a transgressão, tornando-se
muito mais um sinal de “simpatia” burguesa. Simpatia entendida como a
aprovação secreta do sexo visando ao universo do entretenimento e a
capitalização desta nova forma de “espetáculo”. Quando visto como “arma dos
fracos”, a risada e o humor passam a ser fatores de desqualificação cultural de
tais produtos.
Da mesma forma na produção pornográfica atual, seja em revistas,
filmes ou internet, a risada cumpre também um outro papel além de representar
as alegrias do sexo como diversão e a simpatia do prazer como produto.
Quando o riso apresenta-se de maneira contestatória e “transgressiva”, ele
ridiculariza e tenta destruir justamente a moral que o vê como algo perigoso,
ruim ou marginal, pregando sua exclusão. A representação obscena tenta
então criticar os que a criticam para poder ser melhor aceita e legitimada como
negócio.
Desta forma, apenas os valores ditos “tradicionais” que em aparência lhe
são adversários tais como a estima para com a virgindade, a monogamia, o
sexo apenas dentro da instituição namoro-casamento, o ato sexual como
expressão máxima do amor-paixão romântico burguês são os elementos
criticados. Nunca é posta em questão ou ridicularizada a ideologia de uma
“verdade” a ser buscada sobre o sexo, a crença no incremento da exposição
privada ou pública da vida íntima como solução para a “repressão” dos
impulsos sexuais, as desigualdades sócio-econômicas ou a estrutura de
privilégios e poderes do sistema liberal - capitalista.
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Mas o riso pornográfico também pode ser entendido como uma defesa,
uma recusa ante a oportunidade de desfrutar dos deleites corporais com o
máximo de intensidade e extensão. Como mostra Bataille em seu Prefácio à
Madame Edwarda, a extrema licenciosidade ligada ao gracejo é fruto de uma
recusa em considerar seriamente – quer dizer, tragicamente – a verdade do
erotismo (Bataille, 1981: 10). A verdade de que fala o autor é a relação entre o
sexo e a morte, o prazer e a dor que podem ser encontrados quando a
experiência erótica transcende o limite da sexualidade como experiência
ordinária evocando um questionamento para além da esfera cotidiana ou da
vivência sexual utilizada como técnica de auto-ajuda. A mercantilização do
sexo sob a ditadura da produção econômica torna-se assim uma forma de
anular sua capacidade transgressiva, na qual o riso apresenta-se como o
escudo que impede este enfrentamento. O que a representação obscena
poderia trazer de novo e desestabilizador, este riso trata de limitar ao campo do
conhecido, domesticando uma possível desordem.
A risada pornográfica, seja como expressão de prazer, alegria,
brincadeira, entretenimento ou defesa contra uma vivência sexual não
padronizada, usada como instrumento que via ridículo aumenta o estigma e a
exclusão ou ridiculariza o próprio preconceito e exclusão, desarmando-o,
constrange tanto a “arte erótica” quanto a ciência sexual. Talvez a pergunta
importante não seja apenas “de que se ri no universo pornô”, mas também “o
que evoca a risada pornográfica?”
Quais antigas e ainda atuantes associações ela guarda em suas
explícitas apresentações fazendo com que estas gargalhadas no sexo, com o
sexo e sobre o sexo ainda soem agressivas e perigosas às modernas culturas
elitizadas e científicas? Pois como afirmou Molière: é um estranho
empreendimento fazer rir as pessoas de bem (Minois, 2003: 410).
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