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O CORPO TRANSFORMOU-SE EM

OBJETO DE CULTO, MANIPULAÇÃO,


DEVASSAMENTO E IDEALIZAÇÕES.
AS IMAGENS QUE O TRADUZEM
PROMETEM MISTÉRIOS,
DESCOBERTAS E PRAZERES, MAS
A CLÍNICA PSICANALÍTICA REVELA
TRAÇOS DE DESORGANIZAÇÃO,
EXPERIÊNCIAS DE VAZIO E ESTADOS
MELANCÓLICOS E DEPRESSIVOS.
COMO COMPREENDER ESSES
PARADOXOS?
POR RUBENS MARCELO VOLICH

ENTRE O
© JOHN LUND/ CORBIS – STOCK PHOTOS

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TRAUMA E
VIVER MENTE&CÉREBRO JUNHO 2005
OS IDEAIS
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T
odos os dias, a mídia nos relações sociais. A luta para existir para sons, calor, frio. São estados e movimen-
oferece uma legião de pes- si e existir para o outro. tos do corpo que estabelecem as pri-
soas sorridentes, bonitas e As características físicas, a inteligên- meiras formas de comunicação, muito
bem-humoradas que exibem cia, as habilidades, o poder, o dinheiro antes do pensamento e da linguagem.
beleza, poder, inteligência, dinheiro. são apenas alguns dos meios através dos Nele se constrói uma história marcada
São cidadãos do mundo que viajam, quais o homem busca ser reconhecido por sensações, movimentos, percepções
valorizam seus dotes, cultivam seus por seu semelhante e por si mesmo. Entre e traços do encontro com o desconhe-
corpos, enaltecem seus feitos e divul- esses atributos, o corpo e as experiências cido do mundo. É o corpo, ainda, o
gam fórmulas de sucesso. Convidam à a ele relacionadas ocupam um lugar espe- último reduto ao qual nos recolhemos
admiração, suscitam inveja, capitalizam cial como referência para a apreensão das nos momentos de dificuldade, tristeza,
sua marca, alimentam especulações em relações com o mundo, com os outros, desamparo. Reconhecemos, assim, uma
torno de sua vida, fazendo a fortuna de consigo mesmo. verdadeira dimensão hipocondríaca de
uma verdadeira indústria de produtos e Matriz da subjetividade, o corpo nossa relação com o mundo, para sempre
imagens de celebridades. Parecem felizes guarda as marcas de nossa chegada ao presente no humano.
ao exibir uma satisfação aparentemente mundo, da acolhida e dos cuidados pelo Não surpreende, portanto, encon-
sem fim. Sofreriam também? outro, do reconhecimento, da satisfação trarmos o corpo na linha de frente das
Para alguns, trata-se de vaidade. ou da frustração de nossos desejos. O formas de expressão do modo de existir
Para outros, de auto-estima elevada corpo é nosso principal capital. Nem contemporâneo, e, particularmente,
ou ainda, simplesmente, da sensação todos podem oferecer ao olhar do outro como porta-voz privilegiado, das difi-
de “estar de bem com a vida”. Sem o poder, os sinais de status, o dinheiro. culdades do sujeito em lidar com o outro,
dúvida, é bom sentir-se bem consigo Mas em busca do reconhecimento, ofe- com suas expectativas, com sua própria
mesmo, com o corpo, com a vida social recemos o corpo a esse olhar. Da mesma condição de vida.
e profissional, sonhar e fazer projetos, forma, somos solicitados pelo corpo do Insatisfeitos com a degradação da
ter sucesso em realizações. Mas chama outro a reconhecê-lo com nosso olhar. qualidade de vida, com a violência
a atenção o excesso: a exuberância e O corpo é nosso pri- crescente no mundo, inseguros quan-
a insistência de sorrisos que parecem meiro universo. Ele to à situação econômica, solitários e
nunca se desfazer, de biografias que nos concebe, abri- empobrecidos por relações pessoais e
não registram derrotas, dúvidas nem ga, registra as pri- sociais esgarçadas e vazias, incapazes
decepções. Uma felicidade plastificada, meiras impressões de considerar a importância de valores
impermeável às intempéries da vida. que temos do mun- e símbolos para nos situarmos, uma vez
Mais que a própria satisfação, essas do: cheiros, sabores, mais, buscamos o reconforto em nosso
pessoas solicitam permanentemente o luzes, corpo. Porém, surpreendentemente,
reconhecimento e a admiração do ou- nesses tempos em que, como nunca, se
tro. Porém, mesmo quando a recebem, promove o culto, a exibição e o cuidado
a admiração esperada logo se revela do corpo, também ele nos decepciona. É
insuficiente, provocando uma bus- fato: estamos de mal com nosso corpo.
ca duradoura de superação de Uma pesquisa realizada pelo
seus atributos. Observatoire Cidil des Habitudes
Vislumbramos em ce- Alimentaires (Ocha) na França,
nas como essas as tramas em 2003, num universo de mil
nas quais, desde o nas- mulheres, revelou que 86% delas
cimento, se tecem as re- se dizem insatisfeitas com suas
lações do humano com formas anatômicas. Apenas
seu semelhante. As marcas 14% afirmaram sentir-se bem
de satisfações e prazeres, os com seu corpo sem terem
traços narcísicos, as forças para isso utilizado qualquer
pulsionais no interjogo com seus
objetos de satisfação, os anseios e
A ATRIZ AMERICANA
frustrações que forjam a subjetividade, Angelina Jolie, símbolo de
as dinâmicas identificatórias, a busca por
DIVULGAÇÃO

sedução e dos padrões atuais


um lugar satisfatório no mundo e nas de beleza

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DIVULGAÇÃO

SEQÜÊNCIA DE FOTOS QUE ACOMPANHA as transformações de Stephanie, participante do programa de televisão Extreme
Makeover, da rede americana ABC, em que voluntários passam por uma bateria de procedimentos médicos, como cirurgia plástica
e tratamentos de beleza, para “melhorar” a aparência

procedimento de modificação. No Brasil, socorro que não conseguem se fazer ouvir despesas e, menos ainda, riscos físicos e
o quadro não é diferente. Pesquisas divul- de outra forma. Diante da dificuldade de psíquicos implicados em tais transforma-
gadas pela revista Veja em 2004 revelam encontrar em si mesmo uma imagem que ções. Cada vez mais, homens e mulheres
que somos o segundo país do mundo em satisfaça, busca-se no olhar do outro, no procuram os tratamentos estéticos e a
número de cirurgias plásticas: 400 mil em social a imagem que possa agradar. cirurgia plástica. Também adolescentes
2003, metade delas puramente estéticas É freqüente a experiência de cirur- e até crianças vêm se preocupando com
(40% lipoaspiração, 30% mamas, 20% giões plásticos que vêem pacientes as formas e as condições de seu corpo
face), na maioria realizadas entre os 20 e chegar ao consultório com um retrato querendo adequá-lo a padrões estéticos
34 anos. Dos 12.477 entrevistados pelo de uma atriz pedindo para ficar igual a e culturais, apesar de ainda estarem em
Instituto InterScience, 90% das mulhe- ela. Diante deles, desfilam mulheres que transformação: o número de jovens que
res e 65% dos homens afirmam sonhar
com mudanças no próprio corpo; 5%
já tinham feito alguma plástica, e 90%
pretendiam fazer outra. Entre os que HOMENS E MULHERES PERSEGUEM
nunca fizeram uma cirurgia plástica, 30% OS IDEAIS ESTÉTICOS, IGNORANDO
declararam que esperavam criar coragem
para realizá-la. RISCOS FÍSICOS E PSÍQUICOS
Dos simples tratamentos cosméticos
às cirurgias mais radicais, é ampla a gama
de recursos utilizados para tentar ficar anseiam poder encontrar no espelho colocaram próteses para “turbinar” seus
de bem com o próprio corpo. Adereços, reflexos de corpos que não são o seu: os peitos aumentou em 300% nos últimos
roupas, maquiagens, tatuagens, piercings, seios turbinados de Daniele Winnitss o dez anos, segundo reportagem publicada
atividades esportivas, musculação, cirur- delicado nariz de Vera Fischer, toda a pela Folha de S. Paulo.
gias plásticas buscam dar conta de um exuberância de Angelina Jolie. Muitos Nesse ponto, é importante lembrar
mal-estar que, mesmo que referido ao cirurgiões plásticos consideram com a distinção entre os procedimentos
corpo, geralmente tem pouco a ver com naturalidade esses pedidos, lembrando estéticos e reparadores. É inegável que
ele. Tentativas muitas vezes vãs de apla- que a beleza, hoje, é um componente os progressos da traumatologia, da
car inquietações, angústias e experiências essencial no competitivo mercado de medicina estética, da reabilitação e da
mais profundas de vazio que apenas no trabalho, nos negócios e na sociedade. cirurgia plástica propiciam para milhões
corpo encontram um porta-voz de men- Para responder a expectativas e a de pessoas recuperações significativas de
sagens incompreensíveis, de pedidos de ideais de beleza, não se medem esforços, seqüelas de catástrofes, guerras, malfor-

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© PETER BARRETT / MASTERFILE – OTHER IMAGES
ANABOLIZANTES E MALHAÇÃO em excesso apontam para o desejo de habitar um corpo radicalmente diferente, possível sinal de fragilidade psíquica

mações congênitas e de características americana ABC exibe semanalmente o os participantes declararem: “Essa não
anatômicas nocivas. Porém, em muitos programa Extreme Makeover, que mostra sou eu”. Do ponto de vista psicanalítico,
casos, a dificuldade em compreender a a transformação radical de pessoas que podemos reconhecer nesse comentário
natureza do “sofrimento emocional” que se submetem a cirurgias, tratamentos, um insight.
acompanha o desejo de uma plástica dietas, ginástica, aulas de moda e cabe- Descobrir-se, de súbito, num corpo
nubla essa distinção. leireiros para apagar todo e qualquer de- radicalmente diferente daquele com
feito que viam em seu corpo. Além das o qual sempre se conviveu; coabitar,
MAL-ESTAR NO CORPO clássicas imagens de “antes” e “depois”, de repente, com um estranho em si:
Cientes dessas questões, alguns pro- são minuciosamente exibidas também naquele programa, aparentemente, não
fissionais mais sensíveis convidam seus as etapas da “transformação”: a ação ocorre estranhamento, medo, horror,
pacientes à reflexão sobre o exagero de do bisturi sobre os tecidos, detalhes de apenas prazer, alegria, espetáculo. Na
muitas solicitações que lhes são dirigi- manipulações cirúrgicas, inchaços, ex- legitimação coletiva das fantasias mais
das, ponderando sobre a necessidade pressões de dor, lágrimas de sofrimento onipotentes, na banalização de com-
de levar em conta a singularidade e a e de encantamento diante dos “milagres” plexos desejos e da prática médica, no
estrutura anatômica de cada paciente. operados, a reação de surpresa e fascínio insidioso convite à despersonalização,
Eles reconhecem que cirurgia plástica de familiares e amigos. todos parecem encontrar satisfação: os
não faz milagres, não salva casamentos, Outro programa, The Swan, promove participantes, o público, muitas clínicas
nem sempre acaba com a angústia, tam- um concurso em que as participantes de estética e, naturalmente, as redes
pouco com a depressão. Porém, diante passam por todos os recursos estéticos de televisão que ainda se comprazem
da insistência dos pedidos que lhes são existentes, sem poder jamais se olhar no com a imagem de fada madrinha que
feitos, muitas vezes cedem às solicitações, espelho durante o processo. Ao final, a propicia a realização de desejos para
inclusive por saber que não será difícil ganhadora pode contemplar sua nova quem não tinha condições de realizá-
para o paciente encontrar um colega que imagem. Nesse momento, é freqüente los. Nada de novo. A mídia continua
se disponha a realizar a operação, mesmo
que descabida. O AUTOR
Os ímpetos de transformação cor-
RUBENS MARCELO VOLICH é psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VII
poral alcançam ainda manifestações e professor do curso de psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae, é autor de
extremas. Sintonizada com o espírito Psicossomática - De Hipócrates à Psicanálise, Hipocondria – Impasses da alma, desafios
dos tempos, a mídia transforma em do corpo e co-organizador e autor dos livros da série Psicossoma, todos editados pela
espetáculo os dramas humanos. A rede Casa do Psicólogo.

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preenchendo os vazios, formatando até não conseguir mais se olhar no espelho partida, vitória ou recorde cedem à ten-
mesmo a carne das vacilantes formas de para ver o corpo que tanto imaginara. tação de produtos dopantes para tentar
subjetivação contemporâneas. superar tais fragilidades, com mais riscos
A experiência clínica nos convida a CORPOS SÃOS? e sacrifícios do próprio corpo.
suspeitar de mundos encantados como Na busca pela perfeição do corpo, Diferentemente da anatomia imagi-
esses. À radicalidade de todas essas ma- também a atividade esportiva se vê nária revelada pela histeria, que mostra
nifestações e à tentativa de banalizar a marcada por dinâmicas semelhantes. um corpo marcado por fantasias, prazeres
violência de tais procedimentos, devem Para alcançar formas socialmente va- e dores, muitas vezes aqueles belos cor-
corresponder, no interior de cada per- lorizadas, freqüentemente o esporte é pos esculpidos por fármacos e exercícios
songem dos dramas da transformação esvaziado de sua dimensão lúdica, de extenuantes carecem de sonhos, de
corporal, fenômenos de brutalidade prazer e de vivência coletiva tornando-se fantasias, encontrando-se anestesiados
e violência comparáveis aos que são um imperativo social e estético: malhar para tais afetos: pura massa, puro volume,
negados e que, mesmo que contidos e horas a fio na academia, praticar esportes força bruta, sem essência, sem alma. Para
silenciados, fermentam seu potencial radicais, submeter-se a regimes draco- além das miragens de corpos esculturais
nocivo, desorganizador, e algumas vezes nianos, tudo isso complementado com
letal. Com efeito, longe dos palcos, das a utilização de anabolizantes, esteróides
PACIENTE NA MESA DE OPERAÇÃO.
câmeras, dos holofotes, na intimidade e outras substâncias para a modelagem Intervenções cirúrgicas não solucionam
dos consultórios, entre sofrimento e da massa muscular e para o aumento das insatisfação de ordem psicológica
vergonha, muitas vezes não são felizes performances esportivas. Uma legião de
as lágrimas que brotam ao contato com “sarados” e “bombados” vem cada vez
os estranhos que alguns pacientes desco- mais povoando as cenas do cotidiano.
brem em seu próprio corpo. Impulsionadas por doses crescentes da
Como as lágrimas de repulsa de uma testosterona natural da juventude e pela
mulher que, após uma plástica mamária adrenalina – não tão natural mas intensa-
considerada perfeita pelo médico, impe- mente secretada pela vida urbana – essa
dia qualquer aproximação do marido; as legião muitas vezes se aglutina em torci-
de solidão e de arrependimento daquela das organizadas, gangues como skinheads

O BRASIL É O SEGUNDO PAÍS DO


MUNDO EM NÚMERO DE PLÁSTICAS,
QUASE SEMPRE COM FINS ESTÉTICOS
STOCK.XCHNG

adolescente que, depois de muita insistên- e pitboys, e facções criminosas, sempre em revelam-se paisagens desérticas.
cia junto aos pais, realizou uma plástica busca de objetos para a descarga da poção Marcada pelo excesso, essa ânsia
no nariz e passou a se sentir “uma intrusa” explosiva que combinaram em si. pela busca do corpo ideal e as formas de
na família, na qual muitos parentes, de Porém, ao lado de corpos olímpicos, alcançá-lo constitui apenas uma das pon-
geração em geração, possuíam o formato com habilidades e conquistas invejáveis, tas de um imenso iceberg que pode ser
característico do nariz que operara; ou observamos também lesões, ligamen- caracterizado como uma “psicopatologia
ainda as lágrimas que acompanhavam as tos que se rompem, articulações que do corpo na vida cotidiana”, como sugere
intensas crises de angústia e alguns epi- se desgastam, repetidas cirurgias para Maria Helena Fernandes no livro Corpo.
sódios delirantes que mantinham reclusa corrigi-las, desrespeito pelo tempo de Ou seja, manifestações que evidenciam
em sua casa uma bela mulher submetida recuperação, noites mal dormidas antes a precariedade de organizações subje-
a uma cirurgia de redução de estômago. e depois das competições. Os corpos-má- tivas com dificuldade para manifestar
Apesar de desaconselhada por duas equi- quina acabam por revelar sua verdadeira o sofrimento em termos psíquicos, que
pes de gastroenterologia, ela encontrou natureza: limitada e frágil, nem sempre desafiam não apenas a clínica psicanalíti-
uma terceira que aceitou operá-la. Perdeu confiável. Constatação insuportável ca ou psicoterapêutica, mas, sobretudo, a
os 20 quilos que desejava, mas passou a para muitos que, no anseio por mais uma clínica médica à escuta e à compreensão

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capaz de assimilar. Denominado por
O CULTO AO CORPO INDICA Freud de “para-excitações”, esse recurso
tem um papel essencial nos processos
DIFICULDADES NA PASSAGEM DA de organização e desenvolvimento da
criança. A qualidade dessa presença
ORDEM BIOLÓGICA PARA A PSÍQUICA materna determina a possibilidade de
aquisição e a qualidade de competên-
de fenômenos primitivos, aquém da pa- desorganizados: a convergência ocular, cias específicas, da autonomia e dos
lavra, impelindo terapeutas e pacientes a a coordenação motora, a discriminação recursos mais evoluídos e harmônicos
atuações sem fim. auditiva, o reconhecimento e a distin- de funcionamento.
O desenvolvimento humano visa a ção entre seres familiares e estranhos, É também a qualidade dessas re-
superação de dimensões automáticas e o desenvolvimento da linguagem e do lações que determina a passagem da
programadas da ordem biológica para pensamento, entre outros mecanismos. vivência biológica para a experiência
alcançar funcionamentos mais abstratos Experiências traumáticas podem pro- do corpo erógeno: do instinto para a
e complexos da ordem psíquica. Esse vocar a perda da especificidade e da pulsão, da necessidade para o desejo, da
processo ocorre segundo movimentos complexidade dessas mesmas funções excitação para a angústia, do sono fisio-
de organização progressiva de estruturas, (desorganização psíquica, regressões lógico para o sonho. As relações objetais
funções e comportamentos, das mais sim- psíquicas e motoras, perturbação do primitivas marcam também a qualidade
ples às mais complexas, simultaneamente sistema imunológico etc.). do desenvolvimento do narcisismo e de
a movimentos de desorganização, de todas as instâncias e funções do aparelho
sentido oposto. Todas as etapas e todos os PROTEÇÃO MATERNA psíquico, bem como do equilíbrio entre
níveis de funcionamento – anatômicos, Nos primeiros tempos de vida, a as pulsões de vida (organizadoras) e de
fisiológicos, sensoriais, motores, afetivos sobrevivência e o desenvolvimento da morte (desorganizadoras).
e psíquicos – são marcados por essas criança dependem da presença de outro Nesse contexto, forjam-se também
dinâmicas. ser humano, bem como da qualidade as representações do próprio corpo e as
A anatomia, a fisiologia, as funções dessa presença. A mãe (ou aqueles que possibilidades de experimentá-lo como
© CONDÉ NAST ARCHIVE/ CORBIS – STOCK PHOTOS

sensório-motoras e psíquicas obede- exercem essa função) busca propiciar fonte de prazer para si e para o outro. Para
cem a esses princípios, marcados pelas não apenas a satisfação das necessidades além de critérios estéticos e de atributos
dinâmicas organizadoras e desorgani- vitais do bebê, mas também estimular anatômicos, a representação da beleza
zadoras das pulsões de vida e de morte. seu desenvolvimento. Ela também fun- do corpo é também construída pelas
A partir do nascimento, por exemplo, ciona como uma espécie de “película” de experiências de satisfação e frustração,
observamos no bebê a integração pro- proteção contra os estímulos internos prazer e desprazer, de acolhimento e de
gressiva de movimentos e funções antes e externos que a criança ainda não é rejeição que, no encontro com o seme-
lhante e com o ambiente, o corpo pôde
experimentar. A partir dessas experiên-
cias, configura-se um corpo imaginário,
caixa de ressonância privilegiada das
relações com o outro e com o mundo.
Desde a experiência do desamparo,
prototípica do nascimento, somos per-
manentemente solicitados por estímulos
e excitações internos (fisiológicas, instin-
tivas e pulsionais) e externos (realidade,
outras pessoas), fonte de desprazer, de
traumas e conflitos. As manifestações
orgânicas, da motricidade e psíquicas
(normais ou patológicas) são recursos

AULA DE MASSAGEM FACIAL promovida


pela marca de cosméticos Helena
Rubinstein na década de 50

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para alcançar um equilíbrio entre tais so- que têm tudo de operatória. Apresentam
licitações. Segundo P. Marty, os recursos modos de funcionamento que carecem
psíquicos, mais evoluídos e complexos, de sentido e de prazer, freqüentemente
são aqueles que, economicamente, buscando utilizá-los como anteparos a
melhor se prestam para lidar com solicita- situações de perigo e de desamparo.
ções às quais o ser humano é submetido. A atividade esportiva, a música
Porém, diante da impossibilidade de estridente e ritmada, os esportes de
utilização das funções mais organizadas risco, os filmes de “adrenalina” e mesmo
e hierarquizadas, muitas vezes esse comportamentos cotidianos como bater
equilíbrio só é alcançado por meio de portas, dirigir bruscamente no trânsito
funcionamentos anacrônicos, primitivos ou o tabagismo podem exercer a função
e insatisfatórios. de descargas automáticas do nível de
Falhas do desenvolvimento, deter- tensão, mesmo que, paradoxalmente,
minadas por elementos congênitos, pela promovam também aumento da tensão.
precariedade das relações parentais pri- Essas atividades geralmente se realizam
mitivas e do ambiente, por experiências em um clima imperativo de urgência,
traumáticas e desorganizadoras compro- exigindo constante repetição.
metem a estrutura e o funcionamento Esses procedimentos, denominados
psicossomático, de forma duradoura “autocalmantes”, são fruto da precarie-
ou temporária. Diante de deficiências dade da organização subjetiva, carente
estruturais ou funcionais dos recursos psí- de recursos psíquicos para lidar com as
quicos podem ser mobilizadas tentativas exigências da vida. Eles “curto-circuitam”
© WILLIAM WHITEHURST/ CORBIS – STOCK PHOTOS
de reorganização através de descargas a via representativa e de fantasia, utilizan-
motoras e comportamentais, ou ainda, do a realidade de forma específica, bruta,
no extremo, de manifestações e desor- factual, operatória, sem carga simbólica.
ganizações orgânicas, como as doenças. Eles se caracterizam por comportamen-
É no contexto de tais deficiências que tos motores ou perceptivos que, passando
as manifestações corporais marcadas por pela dor, podem inclusive chegar a
excesso, repetição, fragilidades narcísicas automutilações. Manifestam-se também
e identificatórias e pelo vazio representa- em pessoas que procuram e se excitam COMO GALÉS VOLUNTÁRIAS, hoje as
pessoas parecem apreciar a padronização
tivo fazem sua aparição. com situações de perigo que colocam
em risco sua integridade física e mesmo
OS GALÉS VOLUNTÁRIOS suas vidas. da mãe, como forma de evitar as expe-
Houve um tempo em que as “galeras” Os procedimentos autocalmantes riências depressivas do vazio, vividas a
eram outras. Na Antigüidade, as galeras são tentativas de trazer a calma ao partir do próprio desamparo da criança,
eram embarcações de guerra impulsiona- aparelho psíquico empreendidas por mas também, muitas vezes, no contato
das por cerca de 15 a 30 grandes remos um ego fragilizado e carente de um com a depressão e o vazio maternos.
por bordo, cada um manejado por três a recurso de “para-excitações” autônomo. A aproximação ou o contato com os
cinco homens. Os remadores eram em Ocorrem quando o ego é ameaçado núcleos primitivos de desamparo ou com
geral escravos ou pessoas sentenciadas a pelo potencial traumático do excesso experiências de vida desorganizadoras
trabalhos forçados. Acorrentados a seus de excitações. Eles se assemelham a podem desencadear tentativas de reduzir
postos, os galés remavam de 12 a 16 horas tentativas da mãe que procura acalmar a tensão resultante pela exacerbação da
por dia, às vezes mais. seu bebê a qualquer custo, sem no en- excitação materna internalizada. Essas
Em nossos dias, uma multidão de tanto propiciar-lhe experiências de sa- tentativas são, entretanto, frustradas pela
homens e mulheres, apesar de livres e tisfação que poderiam verdadeiramente incapacidade de prescindir da presença
sem grilhões, parece condenada a uma tranqüilizá-lo, abrindo caminho para a real do corpo materno, ou de seus suce-
permanente repetição para além do autonomia psíquica e subjetiva. dâneos, como objeto calmante. Tanto
princípio do prazer. Como aponta G. Carências nas relações primitivas nas experiências da mãe com o bebê,
Szwec, essas pessoas, galés voluntários, podem promover na criança a interna- como nos procedimentos autocalmantes,
parecem fascinadas por uma espécie de lização da excitação de apaziguamento os comportamentos são esvaziados de
robotização de seus corpos e de suas vidas do embalo “calmante-não gratificante” fantasia e de prazer.

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A precariedade do mundo interno suas dolorosas feridas narcísicas.
e das representações resulta na hiper- A criação, a aquisição e a ostenta-
valorização da realidade e a grande ção de sinais socialmente valorizados
dependência do sujeito dos objetos que favoreçam o reconhecimento e a
externos de satisfação. Agradar os ou- aceitação do sujeito pelo outro torna-se
tros, satisfazê-los, corresponder a suas imperativa. A manutenção a todo custo
expectativas e a seus ideais é vivido de uma aparência que corresponda aos
muitas vezes como uma questão de ideais do grupo, excluindo qualquer coi-
sobrevivência. sa que possa sugerir o vazio existencial
É perturbadora, impensável, a possi- ou a castração, vira uma questão de so-
bilidade de desafiá-los ou contradizê-los. brevivência. A possibilidade de que uma
O sujeito torna-se refém de pessoas, ou falha se revele nessa complexa mas frágil
mesmo de instituições, investidas de um montagem torna-se insuportável.
poder que beira a onipotência. Com Vive assim o sujeito uma luta ingló-
facilidade, ele se torna refém dos ideais ria, sem fim, na qual – por melhor que
de tais pessoas e instituições, refém seja a aparência – é sempre insatisfatória
dos ideais sociais de beleza, de modas, e qualquer nova conquista, insuficiente.
comportamentos, valores culturais do- Uma escalada na qual, a cada vez, algo
minantes, consumo etc. mais deve ser acrescentado, apresentado,
consumido, sacrificado: um novo carro,
LUTA INGLÓRIA um novo milhão, uma nova mulher, um
A fragilidade narcísica, a precarie- novo corpo, um novo recorde.
dade de recursos internos e a extrema Em meio à excitação e à angústia
© STOCKPHOTOS

dependência formam uma combinação inesgotáveis, acelera-se cada vez mais


explosiva que torna o sujeito presa fácil esse circuito infernal, impossível de
O IMPERATIVO da urgência comanda a de qualquer pessoa, imagem ou produ- ser interrompido pelo próprio sujeito.
obsessão com a forma física to que lhe prometa a possibilidade de Como o jogador que, para bancar suas
afastar-se da proximidade perigosa de apostas, nada mais tem a oferecer a seus
Percebemos a intimidade dessa seus terrores, de suas dores, de seu sofri- parceiros, esses escravos da excitação
constelação com as que encontramos mento. Presa fácil de qualquer um que oferecem a seus tiranos, que não podem
em alguns estados-limite, em condutas lhe ofereça uma identidade, um corpo, afrontar, sua liberdade, sua alma, sua
aditivas (toxicomanias, transtornos ali- uma vida que mascare seu desamparo e carne, sua vida. VMC

mentares, etc.) e nas “neonecessidades”,


descritas por D. Braunschweig e M. PARA CONHECER MAIS
Fain. Estas se caracterizam como uma
tentativa persistente da mãe de propiciar La nuit, le jour - Essai psychanalytique sur le fonctionnement mental. D. Brauns-
satisfações ao bebê independentemente da chweig e M. Fain. PUF, 1975.
existência de uma necessidade a ser satisfeita, evi- L’anatomie dans la psychanalyse. P. Fédida, em Nouvelle Revue de Psychanalyse, 3:109,
denciando muito mais o desejo da mãe 1971.
de acalmar seu filho a qualquer preço do Corpo. M. H. Fernandes. Casa do Psicólogo, 2003.
que de realmente satisfazê-lo. Cria-se Memória corporal e transferência. Fundamentos para uma psicanálise do sensível.
I. Fontes. Via Lettera, 2002.
assim na criança uma falsa necessidade,
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Edição Standard Brasileira das
imperativa como as que caracterizam os
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.) VII, Imago, 1981. Sobre o narci-
instintos de autoconservação, marcada sismo: uma introdução (1914), E.S.B. XIV,. Além do princípio do prazer (1920),
por uma dependência acentuada do E.S.B. XVII.
sujeito ao objeto real de satisfação, em Narcisismo de vida, narcisismo de morte. A. Green. Escuta, 1988.
detrimento da experiência alucinatória. A nova criança da desordem psicossomática (1992). L. Kreisler. Casa do Psicólogo,
Ficam perturbados a formação de um 1999.
objeto interno satisfatório, o desenvol- A psicossomática do adulto. P. Marty. Artes Médicas, 1994.
vimento do auto-erotismo e dos recursos Les procédés autocalmants par la recherche de l’excitation: les galériens volon-
representativos. taires. G. Szwec, em Revue Française de Psychosomatique, 4:27-52, 1983.

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