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ENTRE O
© JOHN LUND/ CORBIS – STOCK PHOTOS
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TRAUMA E
VIVER MENTE&CÉREBRO JUNHO 2005
OS IDEAIS
WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR VIVER MENTE&CÉREBRO 29
T
odos os dias, a mídia nos relações sociais. A luta para existir para sons, calor, frio. São estados e movimen-
oferece uma legião de pes- si e existir para o outro. tos do corpo que estabelecem as pri-
soas sorridentes, bonitas e As características físicas, a inteligên- meiras formas de comunicação, muito
bem-humoradas que exibem cia, as habilidades, o poder, o dinheiro antes do pensamento e da linguagem.
beleza, poder, inteligência, dinheiro. são apenas alguns dos meios através dos Nele se constrói uma história marcada
São cidadãos do mundo que viajam, quais o homem busca ser reconhecido por sensações, movimentos, percepções
valorizam seus dotes, cultivam seus por seu semelhante e por si mesmo. Entre e traços do encontro com o desconhe-
corpos, enaltecem seus feitos e divul- esses atributos, o corpo e as experiências cido do mundo. É o corpo, ainda, o
gam fórmulas de sucesso. Convidam à a ele relacionadas ocupam um lugar espe- último reduto ao qual nos recolhemos
admiração, suscitam inveja, capitalizam cial como referência para a apreensão das nos momentos de dificuldade, tristeza,
sua marca, alimentam especulações em relações com o mundo, com os outros, desamparo. Reconhecemos, assim, uma
torno de sua vida, fazendo a fortuna de consigo mesmo. verdadeira dimensão hipocondríaca de
uma verdadeira indústria de produtos e Matriz da subjetividade, o corpo nossa relação com o mundo, para sempre
imagens de celebridades. Parecem felizes guarda as marcas de nossa chegada ao presente no humano.
ao exibir uma satisfação aparentemente mundo, da acolhida e dos cuidados pelo Não surpreende, portanto, encon-
sem fim. Sofreriam também? outro, do reconhecimento, da satisfação trarmos o corpo na linha de frente das
Para alguns, trata-se de vaidade. ou da frustração de nossos desejos. O formas de expressão do modo de existir
Para outros, de auto-estima elevada corpo é nosso principal capital. Nem contemporâneo, e, particularmente,
ou ainda, simplesmente, da sensação todos podem oferecer ao olhar do outro como porta-voz privilegiado, das difi-
de “estar de bem com a vida”. Sem o poder, os sinais de status, o dinheiro. culdades do sujeito em lidar com o outro,
dúvida, é bom sentir-se bem consigo Mas em busca do reconhecimento, ofe- com suas expectativas, com sua própria
mesmo, com o corpo, com a vida social recemos o corpo a esse olhar. Da mesma condição de vida.
e profissional, sonhar e fazer projetos, forma, somos solicitados pelo corpo do Insatisfeitos com a degradação da
ter sucesso em realizações. Mas chama outro a reconhecê-lo com nosso olhar. qualidade de vida, com a violência
a atenção o excesso: a exuberância e O corpo é nosso pri- crescente no mundo, inseguros quan-
a insistência de sorrisos que parecem meiro universo. Ele to à situação econômica, solitários e
nunca se desfazer, de biografias que nos concebe, abri- empobrecidos por relações pessoais e
não registram derrotas, dúvidas nem ga, registra as pri- sociais esgarçadas e vazias, incapazes
decepções. Uma felicidade plastificada, meiras impressões de considerar a importância de valores
impermeável às intempéries da vida. que temos do mun- e símbolos para nos situarmos, uma vez
Mais que a própria satisfação, essas do: cheiros, sabores, mais, buscamos o reconforto em nosso
pessoas solicitam permanentemente o luzes, corpo. Porém, surpreendentemente,
reconhecimento e a admiração do ou- nesses tempos em que, como nunca, se
tro. Porém, mesmo quando a recebem, promove o culto, a exibição e o cuidado
a admiração esperada logo se revela do corpo, também ele nos decepciona. É
insuficiente, provocando uma bus- fato: estamos de mal com nosso corpo.
ca duradoura de superação de Uma pesquisa realizada pelo
seus atributos. Observatoire Cidil des Habitudes
Vislumbramos em ce- Alimentaires (Ocha) na França,
nas como essas as tramas em 2003, num universo de mil
nas quais, desde o nas- mulheres, revelou que 86% delas
cimento, se tecem as re- se dizem insatisfeitas com suas
lações do humano com formas anatômicas. Apenas
seu semelhante. As marcas 14% afirmaram sentir-se bem
de satisfações e prazeres, os com seu corpo sem terem
traços narcísicos, as forças para isso utilizado qualquer
pulsionais no interjogo com seus
objetos de satisfação, os anseios e
A ATRIZ AMERICANA
frustrações que forjam a subjetividade, Angelina Jolie, símbolo de
as dinâmicas identificatórias, a busca por
DIVULGAÇÃO
SEQÜÊNCIA DE FOTOS QUE ACOMPANHA as transformações de Stephanie, participante do programa de televisão Extreme
Makeover, da rede americana ABC, em que voluntários passam por uma bateria de procedimentos médicos, como cirurgia plástica
e tratamentos de beleza, para “melhorar” a aparência
procedimento de modificação. No Brasil, socorro que não conseguem se fazer ouvir despesas e, menos ainda, riscos físicos e
o quadro não é diferente. Pesquisas divul- de outra forma. Diante da dificuldade de psíquicos implicados em tais transforma-
gadas pela revista Veja em 2004 revelam encontrar em si mesmo uma imagem que ções. Cada vez mais, homens e mulheres
que somos o segundo país do mundo em satisfaça, busca-se no olhar do outro, no procuram os tratamentos estéticos e a
número de cirurgias plásticas: 400 mil em social a imagem que possa agradar. cirurgia plástica. Também adolescentes
2003, metade delas puramente estéticas É freqüente a experiência de cirur- e até crianças vêm se preocupando com
(40% lipoaspiração, 30% mamas, 20% giões plásticos que vêem pacientes as formas e as condições de seu corpo
face), na maioria realizadas entre os 20 e chegar ao consultório com um retrato querendo adequá-lo a padrões estéticos
34 anos. Dos 12.477 entrevistados pelo de uma atriz pedindo para ficar igual a e culturais, apesar de ainda estarem em
Instituto InterScience, 90% das mulhe- ela. Diante deles, desfilam mulheres que transformação: o número de jovens que
res e 65% dos homens afirmam sonhar
com mudanças no próprio corpo; 5%
já tinham feito alguma plástica, e 90%
pretendiam fazer outra. Entre os que HOMENS E MULHERES PERSEGUEM
nunca fizeram uma cirurgia plástica, 30% OS IDEAIS ESTÉTICOS, IGNORANDO
declararam que esperavam criar coragem
para realizá-la. RISCOS FÍSICOS E PSÍQUICOS
Dos simples tratamentos cosméticos
às cirurgias mais radicais, é ampla a gama
de recursos utilizados para tentar ficar anseiam poder encontrar no espelho colocaram próteses para “turbinar” seus
de bem com o próprio corpo. Adereços, reflexos de corpos que não são o seu: os peitos aumentou em 300% nos últimos
roupas, maquiagens, tatuagens, piercings, seios turbinados de Daniele Winnitss o dez anos, segundo reportagem publicada
atividades esportivas, musculação, cirur- delicado nariz de Vera Fischer, toda a pela Folha de S. Paulo.
gias plásticas buscam dar conta de um exuberância de Angelina Jolie. Muitos Nesse ponto, é importante lembrar
mal-estar que, mesmo que referido ao cirurgiões plásticos consideram com a distinção entre os procedimentos
corpo, geralmente tem pouco a ver com naturalidade esses pedidos, lembrando estéticos e reparadores. É inegável que
ele. Tentativas muitas vezes vãs de apla- que a beleza, hoje, é um componente os progressos da traumatologia, da
car inquietações, angústias e experiências essencial no competitivo mercado de medicina estética, da reabilitação e da
mais profundas de vazio que apenas no trabalho, nos negócios e na sociedade. cirurgia plástica propiciam para milhões
corpo encontram um porta-voz de men- Para responder a expectativas e a de pessoas recuperações significativas de
sagens incompreensíveis, de pedidos de ideais de beleza, não se medem esforços, seqüelas de catástrofes, guerras, malfor-
mações congênitas e de características americana ABC exibe semanalmente o os participantes declararem: “Essa não
anatômicas nocivas. Porém, em muitos programa Extreme Makeover, que mostra sou eu”. Do ponto de vista psicanalítico,
casos, a dificuldade em compreender a a transformação radical de pessoas que podemos reconhecer nesse comentário
natureza do “sofrimento emocional” que se submetem a cirurgias, tratamentos, um insight.
acompanha o desejo de uma plástica dietas, ginástica, aulas de moda e cabe- Descobrir-se, de súbito, num corpo
nubla essa distinção. leireiros para apagar todo e qualquer de- radicalmente diferente daquele com
feito que viam em seu corpo. Além das o qual sempre se conviveu; coabitar,
MAL-ESTAR NO CORPO clássicas imagens de “antes” e “depois”, de repente, com um estranho em si:
Cientes dessas questões, alguns pro- são minuciosamente exibidas também naquele programa, aparentemente, não
fissionais mais sensíveis convidam seus as etapas da “transformação”: a ação ocorre estranhamento, medo, horror,
pacientes à reflexão sobre o exagero de do bisturi sobre os tecidos, detalhes de apenas prazer, alegria, espetáculo. Na
muitas solicitações que lhes são dirigi- manipulações cirúrgicas, inchaços, ex- legitimação coletiva das fantasias mais
das, ponderando sobre a necessidade pressões de dor, lágrimas de sofrimento onipotentes, na banalização de com-
de levar em conta a singularidade e a e de encantamento diante dos “milagres” plexos desejos e da prática médica, no
estrutura anatômica de cada paciente. operados, a reação de surpresa e fascínio insidioso convite à despersonalização,
Eles reconhecem que cirurgia plástica de familiares e amigos. todos parecem encontrar satisfação: os
não faz milagres, não salva casamentos, Outro programa, The Swan, promove participantes, o público, muitas clínicas
nem sempre acaba com a angústia, tam- um concurso em que as participantes de estética e, naturalmente, as redes
pouco com a depressão. Porém, diante passam por todos os recursos estéticos de televisão que ainda se comprazem
da insistência dos pedidos que lhes são existentes, sem poder jamais se olhar no com a imagem de fada madrinha que
feitos, muitas vezes cedem às solicitações, espelho durante o processo. Ao final, a propicia a realização de desejos para
inclusive por saber que não será difícil ganhadora pode contemplar sua nova quem não tinha condições de realizá-
para o paciente encontrar um colega que imagem. Nesse momento, é freqüente los. Nada de novo. A mídia continua
se disponha a realizar a operação, mesmo
que descabida. O AUTOR
Os ímpetos de transformação cor-
RUBENS MARCELO VOLICH é psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VII
poral alcançam ainda manifestações e professor do curso de psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae, é autor de
extremas. Sintonizada com o espírito Psicossomática - De Hipócrates à Psicanálise, Hipocondria – Impasses da alma, desafios
dos tempos, a mídia transforma em do corpo e co-organizador e autor dos livros da série Psicossoma, todos editados pela
espetáculo os dramas humanos. A rede Casa do Psicólogo.
adolescente que, depois de muita insistên- e pitboys, e facções criminosas, sempre em revelam-se paisagens desérticas.
cia junto aos pais, realizou uma plástica busca de objetos para a descarga da poção Marcada pelo excesso, essa ânsia
no nariz e passou a se sentir “uma intrusa” explosiva que combinaram em si. pela busca do corpo ideal e as formas de
na família, na qual muitos parentes, de Porém, ao lado de corpos olímpicos, alcançá-lo constitui apenas uma das pon-
geração em geração, possuíam o formato com habilidades e conquistas invejáveis, tas de um imenso iceberg que pode ser
característico do nariz que operara; ou observamos também lesões, ligamen- caracterizado como uma “psicopatologia
ainda as lágrimas que acompanhavam as tos que se rompem, articulações que do corpo na vida cotidiana”, como sugere
intensas crises de angústia e alguns epi- se desgastam, repetidas cirurgias para Maria Helena Fernandes no livro Corpo.
sódios delirantes que mantinham reclusa corrigi-las, desrespeito pelo tempo de Ou seja, manifestações que evidenciam
em sua casa uma bela mulher submetida recuperação, noites mal dormidas antes a precariedade de organizações subje-
a uma cirurgia de redução de estômago. e depois das competições. Os corpos-má- tivas com dificuldade para manifestar
Apesar de desaconselhada por duas equi- quina acabam por revelar sua verdadeira o sofrimento em termos psíquicos, que
pes de gastroenterologia, ela encontrou natureza: limitada e frágil, nem sempre desafiam não apenas a clínica psicanalíti-
uma terceira que aceitou operá-la. Perdeu confiável. Constatação insuportável ca ou psicoterapêutica, mas, sobretudo, a
os 20 quilos que desejava, mas passou a para muitos que, no anseio por mais uma clínica médica à escuta e à compreensão
sensório-motoras e psíquicas obede- exercem essa função) busca propiciar fonte de prazer para si e para o outro. Para
cem a esses princípios, marcados pelas não apenas a satisfação das necessidades além de critérios estéticos e de atributos
dinâmicas organizadoras e desorgani- vitais do bebê, mas também estimular anatômicos, a representação da beleza
zadoras das pulsões de vida e de morte. seu desenvolvimento. Ela também fun- do corpo é também construída pelas
A partir do nascimento, por exemplo, ciona como uma espécie de “película” de experiências de satisfação e frustração,
observamos no bebê a integração pro- proteção contra os estímulos internos prazer e desprazer, de acolhimento e de
gressiva de movimentos e funções antes e externos que a criança ainda não é rejeição que, no encontro com o seme-
lhante e com o ambiente, o corpo pôde
experimentar. A partir dessas experiên-
cias, configura-se um corpo imaginário,
caixa de ressonância privilegiada das
relações com o outro e com o mundo.
Desde a experiência do desamparo,
prototípica do nascimento, somos per-
manentemente solicitados por estímulos
e excitações internos (fisiológicas, instin-
tivas e pulsionais) e externos (realidade,
outras pessoas), fonte de desprazer, de
traumas e conflitos. As manifestações
orgânicas, da motricidade e psíquicas
(normais ou patológicas) são recursos