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O Homem

que ainda somos André


Ah! De tous les côtés, mortelle est ma douleur,
Et je souffre pour ma flamme
Autant que pour mon honneur

ou

Et c’est moi, dans cette aventure


Qui, tout dieu que je suis, dois être jaloux.
ou

L’erreur simple devient un crime véritable;


Et, sans consentment, l’innocent y périt.
De semblables erreurs, quelque jour qu’on leur donne,
Touchent des endroits délicats;
Et la raison bien souvent les pardonne,
Que l’honneur & l’amour ne les pardonnent pas.

Molière

Wenn Freiheit nicht anders als mit der gänzlichen Zufälligkeit der
Handlungen zu retten ist, so ist sie überhaupt nicht zu retten.
Schelling

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Prólogo

Sempre, como sempre: sexta hora no jardim desassombrado do Éden. Nele,


dentro dele e com ele, o deserto e o vazio do caos sem início. Sem fim. Sem ponta
alguma que não o dia sexto e o selo sétimo da vida de cada um: exceção curta,
conturbada – casual.
Entre as imensas e reversas vagas verdeazuis e os cobertores verdejantes de
cabos calejados, eis a franja infinda do estuário dourado, eis as nuvens de espuma do
areal parado – espumas sem causa nenhuma: fantasmas de lugar algum, pois filhas
estranhas de ondas em jejum.
E sob esse imponente e esverdeado império fértil, império de peroba e
jacarandá, de paus-brasis e jequitibás, o reino insolente dos insetos, estáticos, mudos,
dividido só com os pássaros – e com sua arte colorida – que nem pra cima, nem pra
baixo, para lado nenhum, nem tampouco, parados: asas espraiadas na vertical, tíbia
para trás, tarso para frente, dedos em último resvalo na casca de madeira ocre – um
instante só antes do voo, uma eternidade ainda para o movimento.
Em idêntica ausência quatro rios serpentinos sem montante, sem jusante: só
uma foz nascente e uma nascente como foz. As largas cortinas de luz branca, antes
tresmalhos de copas de alto talhe, agora faixas de cristais em águas sem tremor: ou
melhor, nem antes, nem depois, nem ali frio nem calor; muito menos tédio, gana ou
medo: todas palavras sem sentido no presente do sem tempo.
E por fim, no cume negro do pélago profundo, lá além do concebível, parado
entre o nada e o informe, o horror eterno do primeiro sentido sem metáfora: o giro
tedioso pelo refluxo infindo de prolixas galáxias. Paz calma e aspirada da não vida –
melhor que a morte. Ponto médio entre dois horrores infinitos – melhor que sempre.
De todas essas coisas, todas sem nome – só palavras. Sem nome, sem homem,
sem juízo de bem ou mal. Liberdade tão livre, que vazia. União tão perfeita, que de
um ser só. Com apenas um homem, da linguagem a solução; com mais de um, o
presídio de sua tradição: e mesmo a dois já o bastante voraz e ruinoso para a fome
da vida, para sua vaidosa tentação.
Nesse universo em suspenso, em sua escuridão e luminescência, em meio ao
seu silêncio lastimoso de flores intocáveis, eis que cai e nasce: André. Com ele o

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verbo e com o verbo o choro: o choro, a dor, o amor e o ciúme; a mãe, o pai e o
irmão. Eis que nasce Juno, Felipe, Paula e Cássio: eis que nasce uma consciência.
E agora os rios apressam-se de asinha para o mar e o mar quebra na praia,
majestoso, sua antiga impotência. Os animais agitam-se, pássaros revoam e até os
insetos ousam-se alçar a suas tímidas viagens. Cai a chuva, brota o orvalho –
despenca a fragorosa cachoeira: a vida como a conhecemos.
Na tábua da criação a palavra inscreve mais um nome: é o que basta – ou
quase.

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I
Ser criança é ainda poesia
Onde a vida é maior que a narrativa

Uma só nuvem esgarça-se toda no céu, quando ela tenta, contra a força dos
astros, combater o crepúsculo e segurar o dia. Seus tentáculos delgados esticam-se até
quase arrebentarem e evitam, com esse esforço de dar dó, que os tufos distantes
desprendam-se do corpo principal – mesmo isso lhes custando todo aquele sangue
vermelho alaranjado. O grande exército da nuvem una está todo em seu contorno: a
boca aberta do cão de orelhas pontiagudas, a armadura do cavaleiro valente como dos
desenhos, o jacaré de perfil no qual provavelmente não se devia confiar. O pequenino
André não pensou tudo isso, só o viu. Mas depois do dia, vem a noite, como depois
daquela tarde de tempo diluído só em degraus, descidas e braçadas devia vir, como no
mundo dos adultos, o castigo de banho, janta e cama.

- O tio do escorregador foi chamar nossos pais! Mas gente, calma, eu duvido
que ele tenha visto alguma coisa, deve só desconfiar. É só a gente não
contar nada, nadinha. E acho melhor não ter nenhum pirralho traíra aqui,
hein? – Foi o que disse o líder nato, o menino mais velho.

A frase golpeou-os pesadamente e os fez perceber de imediato, cada um à sua


maneira, que o pior estava por vir. E embora os braços cruzados sobre a barriga ainda
molhada fizessem André parecer o mais sereno entre os pequenos comparsas, para ele
aquilo simplesmente não podia estar acontecendo, era terminantemente o fim. Talvez
se fechasse os olhos com toda sua força, apertasse ao máximo seus dentes, e
suportasse pelo tempo certo a dor de se cerrar os punhos ao limite, talvez então aquilo
tudo desaparecesse ou lhe fosse ao menos concedido, só agora, o poder de se voltar no
tempo. Nada. Pior, aquele seu recém-formado grupo de amigos parecia mais
assustador que nunca, mais assustador agora que no início da tarde, quando todos
foram obrigados a parar o que faziam e encará-lo inertes por alguns segundos para
que ele pudesse ser, de uma só vez, apresentado a todos por aquele tio da recreação,
cujo pescoço lhe servia angustiosamente de único e frágil porto seguro.

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A turma estava agora organizada em uma espécie de meia-lua frouxa, côncava
para o lado da porta do salão de onde começaria a terrível chegada dos pais, e, assim,
André podia ver, estando em uma das pontas, a grande piscina em formato redondo de
queijo na qual eles eram lançados; o queijo menor, seu irmão, que, coitado, talvez
nunca crescesse e estivesse para sempre condenado a ser a piscina de bebês; os dois
toboáguas imensos, um azul e um vermelho, que competiram a tarde toda para ver
quem cuspia mais longe seu catarro em forma de criança – com clara vantagem para o
azul, mais alto; e, claro, o semblante apavorado dos seus amigos na outra ponta do
semicírculo: o grandão de olhos arregalados e com a boca incorrigivelmente aberta, o
magrelo de braços para trás e a cabeça baixa, o do chiclete, que agora sapateava para
combater o frio, e as duas irmãs gêmeas em um enlace de quatro braços, apertado, as
cabeças douradas se tocando e seus biquínis idênticos igualmente desamarrados na
parte de trás.
André fez mais uma tentativa de modificar o horror daquela situação com sua
arte mágica de piscar demoradamente os olhos, mas dessa vez não conseguiu se
concentrar como antes: intrometeu-se nele talvez a mais firme resolução de sua vida,
um sentido completo, uma obrigação acima de todas as outras: jamais seria, sob
nenhuma hipótese, um traíra – por mais que não estivesse muito certo do que isso
significava e ainda que tal coisa envolvesse o erro máximo, como ele corretamente
presumira, de mentir para seus pais.

- Ah, meu Deus! O que esse pivetes fizeram com minha filhinha? – era a
mãe da mais loirinha, a mais divertida das meninas de escorregar junto
porque tinha coragem e vontade de ir fazendo logo tudo – Vem cá, minha
florzinha. Vamos já pra casa.

Fora a primeira mãe a chegar, esbaforida e quase se desequilibrando do alto de


seus tamancos de camurça. A sua florzinha conseguiria ainda vencer todo o seu
abatimento para dar uma última olhada para trás, deixar ver o rosto coberto de
lágrimas, e debelar um choro profundo, com a boca fechada, um choro de como se
despedisse com honra de toda a turma. Um pai mais velho, provavelmente bem mais
velho porque já trazia um lanoso bigode grisalho, chegara a tempo de ouvir e retrucar:

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- Olha, nenhum menino aqui é mais pivete que o outro, minha cara – ele fez
um barulho alto, limpando com força a garganta, o que lembrou André dos
tubos fechados do toboágua, onde eles, resguardados pela escuridão e
contrariando as instruções dadas, paravam suas descidas jogando pernas e
braços sobre as laterais secas do brinquedo para esperar que o próximo a
escorregar os encontrasse – Eles estavam brincando juntos, acho que cada
um pode conversar com seu filho como achar melhor.
- Discordo completamente – começou um terceiro, sobrepondo-se pelo
volume da voz à opinião que uma outra mãe já começara a esboçar –
Nesses casos sempre têm alguns que dão a ideia, que forçam os menores.
Acho que temos que conversar todos juntos para descobrirmos o que
aconteceu e de quem é realmente a culpa – completou esse pai ainda sob o
frescor da juventude, propondo uma pequena inquisição.
- Olha, isso que aconteceu aqui não é a cara do meu filho, não tem nada a
ver com ele. Mas mesmo assim sei que ele pode errar e, por isso, vou eu
conversar com ele. Ele provavelmente nem viu o tamanho do problema
que estava causando, é muito novo – assim concluiu o pai mais velho,
abraçando o grandão, que ainda teve tempo de acenar para os novos e
breves amigos: ele conseguira manter, bravamente, a imensidão de suas
lágrimas amarradas às órbitas dos olhos.

A nuvem de André já começara a perder sua batalha contra a noite e ele deu a
tremer, talvez de frio. Seus pais eram os únicos a não terem ainda se apressado pelo
salão para chegarem à área da piscina: podia ser que não tivessem julgado grave a
infração e, nesse caso, voltariam todos para casa normalmente, e eles ouviriam o
resultado dos jogos no rádio do carro, e pediriam comida, e sua mãe lhe daria banho,
e, como se nada tivesse acontecido, ele poderia até pedir para dormir na cama deles
ainda àquela noite. Mas isso era sonhar demais: até os adultos estavam discutindo de
forma zangada, logo eles, sempre tão unidos contra as brincadeiras das crianças. Era
grave o que fizera, embora também não soubesse direito por quê: mais provável era
que, de tão decepcionados, tivessem lhe abandonado ali como castigo e voltassem só
quando o clube fechasse, e mal falariam com ele, e contariam tudo ao irmão, e nada
seria como antes. Sentiu a saliva engrossar e as lágrimas escorrerem contra a sua
vontade – estava só.

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Sofria agora da mesma vergonha absoluta de quando chegaram, a mesma
exposição, aquela nudez. Seu corpo estava ali, fazia parte da confusão, podiam vê-lo e
cumprimentavam-no – o cumprimentar sem fim de todas as mesas a que sua mãe lhe
obrigava: bocas assustadoramente abertas em risadas imensas, aperto de bochechas,
perguntas sem sentido que ficavam sem resposta, crianças desconhecidas que zuniam,
já em bandos formados, atrás de uma bola, o abraço gordo de quem a mãe mandara
chamar de tia. Mas agora era pior, pois sua vergonha seria para sempre. E agora era
pior, pois sentia mais forte sua vergonha no corpo, sentia-a subir da sunga em uma
espécie de vertigem que lhe tirava o equilíbrio na cabeça, sentia não sentir vergonha
de ninguém, mas puramente de estar ali, de existir.

- Gente, pelo amor de Deus, será que vocês não podem pelo menos esperar
um pouco antes de ir embora? – era a primeira mãe a ganhar voz depois de
formado aquele misto de conselho de pais com humilhação pública – Não
sei se a gente precisa investigar o mentor do crime, eles são só crianças!
Mas a maioria de nós aqui é colega de trabalho e alguns dos meninos
estudam na mesma escola: esse é um problema de comunidade, nós temos
que resolver juntos.
- Eu também não estou propondo uma investigação – respondeu o pai
jovem, afastando a esposa pelo ombro como a indicar que ela teria de novo
que esperar por sua vez – Mas temos que conversar com eles todos para
descobrir o que realmente aconteceu. Vocês não podem ser tão ingênuas
agora: se todos forem para casa, cada um vai contar uma versão mais
favorável do que aconteceu aqui hoje. Que sentido faz punirmos alguém
nos baseando em meias verdades?

Os fracos e poucos postes de luz em volta das piscinas mal conseguiam afastar
a agora vitoriosa escuridão. André estava já tão confuso em sua angústia que só
conseguia pinçar algumas frases daquela recrudescente disputa por quem teria a
melhor criação dos filhos e, afastando-se do torneio, julgou ainda em lágrimas que
talvez fosse melhor ter sido mesmo abandonado, que seria capaz de renunciar ao amor
dos pais se isso significasse nunca mais ter de os confrontar. Coerentemente, ele
tentou dar um passo para trás, quase se desequilibrou, e acabou tendo de usar a ponta

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dos dedos para não ir ao chão: estava pronto para desatar seu mais espalhafatoso
berreiro.

- Vamos embora, filho. Não dê ouvidos a esse povo – era sua mãe, que
chegava ferina para defender seu filhote.

Enquanto as luzinhas dos enfeites de natal iluminavam velozes o


arrependimento de André, ele foi se dando conta de que o clima no carro nem se
aproximava da gravidade que ele esperava e, na verdade, a pouca que existia vinha só
dele mesmo. Seu pai e sua mãe não conversavam apenas entre eles, como sonhara,
nem tampouco o bombardeavam de perguntas, como temera: tinham aquele tom
insensível de quando superavam uma bronca, forçando-o a conversar, como quando
das brigas que julgavam sempre precocemente ultrapassadas, em que, em geral, ele
tentava bater em seu irmão e ele próprio acabava apanhando. Não foi o suficiente para
que ele reunisse coragem para pedir que o pai diminuísse o ar-condicionado, nem o
bastante para que libertasse as mãozinhas trêmulas e enrugadas sobre as quais sentara
com medo de molhar o estofado de couro, o qual, esquecera, o pai já dissera que
podia ser molhado; mas sentiu mesmo assim um alívio e acolhimento com o qual há
poucos minutos nem pudera sonhar.

- Você se lembrou de guardar alguns docinhos da festa, filho? – perguntou a


mãe, virando-se para trás.
- Ai, mãe: esqueci! – disse André, com culpa na voz.
- Se pelo menos alguém dos seus pais tivessem lembrados de pegar pra
você, hein filho? – era seu pai, que, atrapalhando-se, ironizava com aquela
voz engraçada que tinha depois das festas.
- Aquela sua amiguinha da escola pegou dois copos cheios, a mãe dela
aprontou um escândalo com a coitada – continuou a mãe.
- Qual amiga?
- A que não pôde nadar com vocês porque não tinha levado biquíni.

André sentiu um arrepio percorrer o corpo no mesmo instante em que os olhos


escuros do pai encontraram os seus no retrovisor, voltando então a contemplar,
desolado, as luzes pela janela. Seus pais ligaram a música do rádio e pareciam se

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divertir, ambos trocando comentários sobre as banalidades da festa. Depois de um
tempo, a mãe fez um sinal de silêncio para seu marido e abaixou um pouco o volume.

- André, não precisa se preocupar com o que aqueles outros pais falaram na
piscina não, viu?

Era agora. Começara. Podia sentir.

- Eles não são seus pais e o que importa é só o que eu e seu pai falamos. Se
você faz uma coisa e acha que a gente não vai gostar, é só nos contar.
Esses outros pais são muito chatos: não pode refrigerante, não pode
balinha, não pode brincar. A gente só não quer que você não confie na
gente, tá?
- Aham, mãe. Eu sei – foi o melhor que André conseguiu enunciar enquanto
lidava com um batalhão de palavras tentando alcançar sua boca: biquíni,
tubo, abraço, escorregador, sunga, desculpa, segredo, traíra. Traíra. Que
importância tinha o que aquele menino dissera, se era com seus pais que
ele se sentia bem, se era nos seus pais que ele devia confiar? André
continuava energicamente determinado, mas precisava de uma nova
resolução.

Havia na cidade uma larga avenida que a cruzava no sentido do centro para os
bairros. Nessa época do ano, erguia-se sobre ela uma estrutura provisória, com postes
de lado a lado, que serviam para sustentar uma abóbada contínua de luzes natalinas,
distribuídas em grandes faixas, ora brancas, ora vermelhas. Sempre que tinham de a
cruzar, e o tinham com frequência – pois moravam em um mimado condomínio do
subúrbio – André admirava o teto do tubo por que passavam e conseguia, a intervalos
regulares, alternar as cores que bruxuleavam graças à precisão exata de suas
piscadelas. Nesta noite, porém, estava ocupado demais mesmo para ordenar a
decoração de sua avenida predileta: tinha de mudar o que fizera e para isso precisava
agarrar-se a um novo plano, mudar o que era:

- Você já fez as tarefas de casa, filho? – retomou a mãe.

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- Não. Não tinha tarefa. É a última semana de aula, vai ter prova –
respondeu com firmeza, objetivo, como se prestasse contas a seu superior
hierárquico no exército – Mas eu já estudei – arrematou.
- Que bom, filho, é isso que importa. Enquanto você respeitar as pessoas e
não fizer nada contra a vontade delas, basta fazer seus deveres e se
destacar neles. Como você já se destaca, por sinal.

Era justamente isso o que faria: seus pais, que sempre o defendiam, sempre
estavam do seu lado, mereciam um filho do qual pudessem se orgulhar – a toda hora.
André contemplou decidido a última faixa de luz vermelha que pôde ver pela janela e
sentiu seu corpo fervilhar de empolgação com seu futuro, com o trabalho que não
daria ao chegar em casa, com a atenção diligente que teria para não acordar seu pai
enquanto ele descansasse até a chegada do delivery. Mal pôde perceber que seus pais
discutiam, aos cochichos, no banco da frente:

- Ah, que saco, ele é meu filho também: que mal pode fazer? André, escuta,
só para a gente entender direito o que aconteceu. Assim, lá na festa, o que
vocês fizeram na piscina para deixar aqueles outros pais tão nervosos? –
era seu pai, que quebrava os sussurros lá da frente e recebia, em rápida
resposta, um olhar fuzilante da esposa.

Como devia isso aos pais, André resolveu-se confessar. Mas por onde
começaria? É verdade que tinha participado, talvez até começado tudo aquilo, mas
não fora dele a ideia – e estavam só brincando. Não fizera por mal, nem sabia que
estava fazendo algo errado, ou melhor, não, sabia sim, tinha percebido, não podia
mentir. Percebeu-o pela primeira vez quando escorregou, desacelerando a descida
com os braços abertos, e encontrou o menino mais velho, o líder, em um tranco que
lhe foi doendo com um prazer estranho a parte interna da sunga: suas pernas, entre já
magras e ainda infantilmente roliças, enlaçaram, em um encaixe perfeito, as coxas
dele, seu peito abraçou suas costas, nuas e lisas, e a parte de trás da sunga dele cobriu
a sua em um animante conforto – estavam sós. O garoto forçou então ritmadamente
seu corpo para frente e para trás, e depois para frente e para trás, como se tomasse
impulso, e ordenou a André que fizesse o mesmo e o segurasse firme: desceriam à
toda velocidade. E desceram. Juntos.

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André sentia-se acolhido: se brincava sozinho com o mais velho, se era seu
amigo, e íntimo, então logo seria amigo de todo o grupo. Quando voltaram ao topo do
toboágua azul e receberam, sob o sol brilhante, as devidas repreensões do jovem de
bata vermelha, responsável pela piscina do clube, ambos souberam de imediato o que
aquilo significava: podiam repetir o feito, no mesmo tubo, desde que se
desenlaçassem antes de chegarem à piscina, e dessem um tempo para que não
surgissem juntos no fim do toboágua.
Em vez de fazerem coro à gritaria e pressa das outras crianças, cedeu cada um
a sua vez para descerem de novo emparelhados, mas agora foi André a ir primeiro.
Ele foi, e parou no ponto de encontro combinado sem palavras. Esperou um tempo,
enquanto reparava na correnteza de água que batia devagar na base de suas costas. De
repente, ela deu lugar ao calor do corpo de seu novo amigo, que chegara deslizando,
com suas pernas roçando toda a extensão das suas, e lentamente se encaixando. “Eu
duvido você descer com a sunga abaixada”. Só se ele descesse também. Tomaram
impulso e se abandonaram à ideia e à descida, suas sungas quase nos joelhos.
A intuição e a cumplicidade infantis, aliadas ao burburinho alegre que ia se
formando na piscina, garantiram que a brincadeira crescesse e se alastrasse. E quando
André se viu descendo novamente acelerado as curvas divertidas daquele toboágua, e
quando já estava prestes a reparar de novo os três parafusos que uniam o teto do tubo
à parte debaixo do escorregador, não foi o corpo de um dos meninos que o seu
encontrou e descobriu. Foi o corpo frágil e fino da menina de biquíni violeta com
bolinhas brancas. Ele respirou alvoroçado aquela mesma escuridão úmida do ar, e se
divertiu ainda mais com o eco rouco e confessional que geravam suas vozes
reverberadas no plástico circundante. Ficaram então alguns ansiosos segundos arfando
em silêncio, até que ela insistisse que ele desatasse seu biquíni, e a abraçasse.
André, como os outros garotos, não conseguia ainda ver a nudez suave e
angulosa que tentava surgir dentre as escápulas das meninas, nem podia gozar
completamente o prazer humano da ausência de pano que devia estar ali, mas já sentia
com toda a certeza a delícia física do proibido. Ele obedeceu a amiga e puxou devagar
só uma das pontas do laço até que, num estalo mágico, ele se desfez por inteiro e
descortinou de uma vez a ansiedade nua daquelas costas infantis. Notou então com o
dedo a marca sulcada em sua carne que dividia, avermelhada, duas pequenas listras de
gordura, e beijou-as, fazendo cócegas. André apertou-a ainda mais, apoiou seu rosto
em um de seus ombros descobertos, e pôde sentir o hálito quente que voltava de sua

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própria respiração. Ensinaram-se a melhor maneira de tomar impulso, desafiaram-se,
e finalmente escorregaram abraçados: não conseguiram, os dois, parar a tempo de se
separarem.
A brincadeira continuou, e como não era todo fechado o toboágua depois
daquele primeiro tubo onde paravam, e como não havia nenhum entre eles que
soubesse refazer o nó daqueles biquínis, o negligente jovem de bata vermelha pareceu
finalmente cair em si. Desceu atabalhoado e com pressa os degraus da escada circular,
e daí não demorou para que todos tivessem que escutar a temível frase: “O tio do
escorregador foi chamar nossos pais!”:

- Nós brincamos de escorregar juntos, dois a dois ou três a três, no toboágua.


E às vezes tinha o desafio de descer com a sunga ou com o biquíni
abaixados – confessou enfim André, lacônico e sincero.

Seus pais se entreolharam por um tempo e não responderam mais que frases
desconexas que queriam todas dizer, de um jeito ou de outro, que não fora nada
demais. Só quando a cancela abriu e liberou finalmente a entrada no condomínio
fechado, foi que sua mãe conseguiu retomar:

- Filho, você tem que tomar mais cuidado com você mesmo. Quem aqueles
pais vão pensar que é o André? Aquele moço da piscina? Você está muito
acima daqueles garotos, filho, você é brilhante, você sabe disso. Se você
não fez nada contra a vontade de ninguém, você não fez nada de errado,
mas cuidado para não deixar de ser quem você é – era sua forma de
conciliar a educação liberal e agnóstica que queria dar aos filhos com,
bem, com alguma educação.

As casinhas perfeitamente simétricas do condomínio iam sendo engolidas uma


de cada vez pela escuridão, conforme o farol do carro deixava de iluminá-las. Aquelas
frases finais não acrescentaram nada à resolução obediente que André já tomara para
si, mas a vergonha a que estava acostumado, agora sob a luz de palavras definidas de
que ele conhecia o sentido, a opinião dos outros, dava um gosto diferente à maneira
como entendia o ocorrido e seus resultados.

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Mas nunca mais se falou daquele episódio naquela casa, nem de nenhum outro
que lhe fosse parecido. André e seu irmão cresceram livres, em um lar peculiarmente
feliz, pois que também cada família tenta a felicidade à sua maneira. Não lhes morreu
nem pai, nem mãe, nem um avô sequer antes do tempo; não lhes separaram os pais,
não se juraram um ao outro de morte, e, sem nenhuma desgraça que lhes abrisse os
olhos para o tamanho da vida, pareciam para sempre condenados a uma renitente
moderação. Foi assim quando André começou muito cedo e com muito talento a
desenhar todos seus colegas de classe sensualizados em trajes de banho, e foi assim
quando o psicólogo do colégio disse que André parecia não demonstrar nenhum
interesse em ser um bom amigo, dos amigos que não deixava de ter. Foi assim até que
André, em um milagre de vida, conhecesse Juno.
Tomaram banho, chegou a comida, e jantaram satisfeitos naquela e em tantas
outras noites agradáveis.

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II

André entregou-se ao abissal sofrimento de antes, talvez ainda mais profundo.


Entreolharam-se só uma vez, rapidamente: Juno com ingente tristeza, André com
inenarrável desgosto. Não se perguntava mais os porquês, nem investigava na
memória os detalhes: tudo o devassava simultaneamente, concebendo o todo concreto
em uma abstração de sofrimento. Só de tempos em tempos materializava aquilo para
si na sua fatal conclusão de que ela o quisera – quisera o menino e quisera tudo
aquilo – e na consequente pergunta lancinante, para que o quisera?
Entraram ambos em invencível torpor, ele largado no sofá, ela estirada ao
chão, sem que nada de novo lhes pudesse vir que não a sucessão homogênea do
tempo a renovar, em aparente repetição, as mesmas dores e as mesmas trilhas
labirínticas do pensamento. André não chorou, estava seco. Juno, algumas vezes, mas
de um choro incomunicável, de um choro que não conjurava quem já partira, não
invocava uma saudade, não exorcizava uma dor – choro chorado, só choro.
Ficaram ali.
Ora ou outra um deles se levantava e saía a buscar um copo de água. Ora ou
outra surgia a pergunta se queriam dormir ou se davam mesmo a conversa por
encerrada, em frases que reforçavam a distância muito antes de encurtarem-na. Tudo
se passava como se a dimensão oposta à mecânica dos pêndulos, paralisada em uma
noite eterna, contrabandeasse lentamente, por aquelas alfândegas divinas ou
infernais, o esmorecimento lânguido e doído que lhes enchia o corpo perante a noite
confusa das fronteiras de cá.
Quando enfim julgou, resignado, que o rosto de Juno já não lhe diria nada,
André fitou-o firme como se a forçar a gravidade de uma última vez, e foi se
estremecendo todo: era o mesmo rosto a que amava, era o mesmo rosto a que os
outros também viam. Foi como um autômato ao banheiro e em pé, diante do espelho
oxidado nas bordas em deslustres gázeos, cupricamente esverdeados, viu de novo o
colar que Juno abandonara sobre a pia: era uma elegante e discreta bola de cristal
banhada a ródio, presa a uma corrente simples de prata, cuja maior parte próxima
ao fecho enrolara-se em caracol já dentro do ralo – mas não foi isso que viu André.
Viu seu amor estraçalhado e descartado por aquilo que esse seu caro presente
flagrara durante a noite: o níveo pescoço de Juno, o toque de um outro, as

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conversinhas idiotas, o desprezo. Talvez ele tivesse tocado o cristal iridescente para
elogiá-lo ou, pior, para criticá-lo, talvez troçando com malícia daquele pequeno
globo com mil pontos de luz, outrora consumação de um amor, agora transformado
em seu símbolo perfeito: um dia encantador, hoje desmerecido.
André descontou sua imensa inquietação interna na palma de sua mão,
pressionando-lhe a singela bola de cristal de forma a gravá-la na pele. Quando
sentiu atingir o limite da dor, soltou-se da joia e do martírio físico que ela causava,
desviou-se da ideia de destruí-la, e chegou à conclusão de que não podia mais
definhar-se naquele apartamento, não podia voltar àquela passividade ridícula da
sala e, convencendo Juno de que seria melhor tomar um ar, quem sabe, como ela, até
também espairecer, ganhou as ruas sob a promessa de que voltaria se e quando
estivesse pronto para resolver todo aquele embaraço.
Pôs-se a andar na larga e movimentada avenida, agora palco do alvoroço
epilético de afiadas aguilhoadas que lhe surgiam à alma. Tentava esquivar-se
internamente pela ajuda de seu ambiente externo, quis concentrar-se na efusão de
estímulos que lhe vinham de fora: o rútilo reflexo preto, prata, rubro e branco que
surgia do metal dos carros para cegar-lhe os olhos; a estranha procissão rítmica e
irregular de pessoas inúteis que não lhe diziam nada: pretos, pardos, mestiços e
branquelos; japoneses e indianos; jovens e velhos ridículos vivendo sempre só como
mesquinhos prolegômenos dos verdadeiros sentimentos; o astro bruto e quente, preso
nos vitrais de titânicos prédios; escritórios repletos, dedicados a sufocarem pela
distração o sopro vital; o tremor do chão de metrô que carrega rebanhos da morte
pra morte; a tortura do timbre da máquina que golpeia dura a terra rija; a fragorosa
sinfonia que ensurdece a cidade grande, o estampido da buzina, o ronco do motor, a
rotação desajeitada da betoneira. André seguia.
E tudo aquilo era quase que insignificante para a confusão de acontecimentos
anímicos que lhe eram impostos. O barulho excessivo, o excesso de carros, a
abundância opressora de cores e a ardência amarela do sol sobre a pele: nada
daquele ambiente que tiraniza quem por ele vai bastava para tirá-lo de si e colocá-lo
no mundo. A ele só se dava aquela noite, a forma como ele se encheu de um orgulho
carinhoso ao se guardar para ela, o sobejo de detalhes do beijo que flagrara. Doía-
lhe não ter sido ele a elogiar seu vestido preto à altura dos joelhos, ou a forma
engraçada como suas orelhas ondulavam seus cabelos. Doía-lhe a lembrança

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horrenda de ver aquela cena e, percebendo o olhar esquivo das nuvens que fugiam
apressadas, doía-lhe pior a memória de ter sido visto.
André margeou vagarosamente o parapeito do viaduto por que passava e se
admirou de todos os suicídios sublimes da história da humanidade, de todos os atos
de desespero cometidos em nome da honra, da pátria ou da razão. Não teriam
percebido também esses heróis sua própria mesquinhez? Não suavam também eles do
mesmo sol urbano que lhe ardia na pele? Retomou o fôlego para enfrentar o golpe de
subida que dava a avenida. Foi quando, e apesar do quando, do como e do onde, tudo
se dispôs a lhe ocorrer nesse momento em que se vislumbra breve, vago e em bruma o
ponto certeiro de onde se desataria o nó górdio e torturante do mal tecido fio da
inepta Parca costureira.
É então, e só então, que, munido da mais alta sensibilidade e da mais aguda
acuidade autoperceptiva, tem o homem a remota e compassiva chance – dada sabe-se
por lá quem, senão pelo homem mesmo – de ao menos uma vez olhar para si e não
assistir só à soturna amálgama podre de autopiedade, arrependimento e orgulho
falseado, mas de enfim poder ouvir o tear frenético e irresponsável da roca
incessantemente pedalada e de, seguindo o som circular, repetitivo, sufocante e tão
claramente angustiante, chegar ao monte onde conversam despretensiosas e com
graça as três senhoras do destino.
Ao pé do monte não se as vê, mas se as sente sempre e assim se ascende para
onde se é guiado por esse sentido interno, ou então, por aquele som ainda não muito
saliente, se se tem de ouvido superno siso. A vista ali sugeria, provocativa, uma
serenidade que só podia ser desconhecida a quem adentrara tão longe na alma
humana que chegasse à placidez daquele campo de margaridas: o vento fraco e
suave, o fulgor invariavelmente brando dos raios de sol, a alvura pura das
margaridas e seus receptáculos amarelos, pequenos o bastante para não perturbarem
o padrão de verde e branco criado só por grama e sépala; a umidade fresca de um
rocio perene, e a certeza da mais absoluta privacidade convidariam todos a uma
caminhada despreocupada e leve, não fosse aquele monte o monte que era.
Iniciou-se a jornada e cada passo pesado do corpo que carregava aquela
enorme carga de tormento fazia deitar com harmonia os caules das margaridas-
menores, fazendo soltar, dos dentes-de-leão, as esvoaçantes cipselas, que iam a voar
como se com vida própria, como se a escolher aquele movimento belo, livre e sem
padrão, como se não fosse o vento a ditar-lhes o cortejo respeitoso que faziam ao

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andarilho André. Tão logo um novo passo era dado, voltavam as plantas à disposição
original, de modo que senão pelos frutos voejantes não havia rastro algum, entre o
início do campo e seu final.

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III

Não era também assim tão feia, pensou Paula ao espelho: não, não era. Que
não fosse também bonita aceitava, resignada e já de há muito, sem nenhuma
necessidade de recurso às instâncias superiores de sua autoestima: é coisa que se vai
percebendo. Primeiro, era a ausência inconfundível das cartinhas de amor que
circulavam o pátio da escola, a falta crescentemente sentida como falta de se ler as
declarações exageradas dos pequeninos corações, a essa altura já a descobrirem as
primeiras delícias de um sofrimento maior. Depois, o trato indesculpavelmente fácil
dos rapazes, a naturalidade desavergonhada com que lhe olhavam nos olhos e não
retorciam à exaustão as mãos suadas ao convidarem-na, ela também, ao cinema; a
maneira doída de se apoiarem em sua presença e instarem a ela as respostas que só
queriam das outras. Por fim, eram os elogios feitos à frio a sua beleza por seus
familiares e por todos também obrigados a essa convenção, que, depois de uma sua
fase de notada indistinção estética – finda já no berço para os menos afortunados –
passavam a lisonjeá-la já como que só em abstrato, como a cumprirem um dever,
baterem um ponto: “Como você está bonita, Paulinha”, diziam sem interesse. Ela
mesma, porém, nunca tomara ninguém por vilão: a quem condenar, afinal, quando
todos lhe parecem culpados?
Mas ela, também, não era assim tão feia: tinha as pernas finas e era um tanto
esquálida, é verdade, mas pelo menos não sofria da doença personalíssima de ser
gorda, de cujos enfermos mantivera cuidadosamente e durante toda sua vida uma
distância segura, pois que doença de fácil contágio social. Suportava diligentemente
longos cabelos de um negro lustroso, resguardados de quaisquer ondulações que lhe
pudessem ameaçar a lisura, e andava desde a adolescência por detrás de óculos
discretos, hoje a serem oportunamente esquecidos em seu apartamento. Empinou-se
de costas para o espelho ainda embaçado e constatou, mais uma vez, por cima dos
ombros, que não era assim tão feia – e, mais importante, não estava assim tão feia – e
tinha afinal a tal pele morena que, embora de um tom um tanto desbotado, tinha ao
menos hoje de lhe valer alguma coisa.
Porque era hoje. Livrar-se-ia enfim de todas as tardes ociosas na modorra de
seu quarto, aniquilaria para sempre as mesmas paisagens tediosas que lhe apareciam
da janela, transformaria em definitivo seus automáticos cumprimentos aos porteiros
de seu prédio nas esfuziantes saudações que via fazer o garoto do décimo primeiro. Só

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lhe restava não estragar por excesso de cuidado sua própria criação. Tinha de ser ela
mesma? Tinha de ser o ela mesma que lhe garantisse sobre si as grinaldas que queria.
Era hoje. Suas armas? – as acharia no fundo de seu guarda-roupa impecavelmente
organizado. Os golpes? – haveriam de lhe surgir no calor do momento fatal. A
vitória? – a já de tanto tempo merecida romantização de sua vida. Bem que podia
estar sozinha para fazer incólume a travessia de sua determinação pela sala de tevê,
mas:

- Nossa! Esse sábado você decidiu sair, então? – inquiriu a amiga que
morava com ela, em seu contumaz tom invasivo.
- Eu...? Vou sim... – adiantou Paula enquanto buscava uma resposta oca que
não se traísse – Hoje vai ter uma daquelas récitas de poesia que os meus
amigos da pós organizam.
- Hum! – assentiu a colega em um grunhido, virando-se para o laptop que
apoiava nas pernas sobre o sofá, satisfeita por voltar a reconhecer a
normalidade a que ansiava – Vê se hoje você cria coragem para ir lá falar
alguma coisa.

Paula não quis e não pôde reagir, só se querendo livre para continuar rumo à
cozinha com seu estado de espírito anterior quase intacto, tudo antes que fosse
novamente censurada:

- Mas escuta, essa récita não começa só ao pôr do sol? – perguntou


emulando a pose de uma estátua grega, a cabeça obliquamente levantada e
as pontas dos dedos retorcidas para o teto no momento em que acentuava
maldosamente a melosa referência temporal.
- Uhum... É, é sim... – começou enquanto encontrava rapidamente guarida
na tela de seu celular – É que vou passar em um café com um amigo antes.
- Ah, que bacana... Com quem você vai?

Paula estava segura de que não se tratava, em absoluto, de curiosidade, era


bem mais uma forma perversa de controle travestida de uma conversa por educação,
supostamente desinteressada, pela qual sua colega media o valor de seu próprio

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sábado em comparação com o que Paula desenhava para si. Era assim sua colega:
intrometida, egoísta, presunçosa. Mas a ela só restava capitular:

- Na verdade, é um cara que combinou de sair comigo.


- Hmmmm... – trombeteou a amiga, cheia de sarcasmo – Amigo, ou
finalmente aquele cara de que você sempre fala?
- De que eu sempre falo? Quem? – apressou-se Paula em defender os
flancos que já sangravam prenunciando derrota.
- O escritor lá. O que parou de beber na festa só porque te conheceu, mas
que depois foi embora – Paula tentou juntar as sobrancelhas, balançou a
cabeça e fez bico com seu fino lábio inferior, como se procurando pela sala
a pessoa de que falava sua amiga – Cervejada da sua pré-formatura, você
estava sem graça porque encanou que era mais velha que todo mundo,
ficava se perdendo da gente, aí você disse que ele esqueceu de pegar seu
número, que não ficou com ninguém por causa dele, mas ele sumiu e você
só não ficou com ninguém mesmo.
- Que memória, hein? – Paula enxugou a testa com o reverso da mão – Eu
não falo nele toda hora. E ele não é escritor, é artista, mas sim, é ele,
acredita que coincidência? Mas não é um encontro nem nada.
- Claro que não é! Encontro é o que sua vó conta para a comadre dela que
teve quando conheceu seu avô – sua risada alta soou deslocadamente
excessiva naquela sala despovoada – Como é que ele se chama mesmo?

Paula não desconhecia as instruções internas que tinha minuciosamente de


seguir para alcançar o tom indiferente a que aspirava, bastando-lhe para isso repetir o
que tantas vezes contra sua própria vontade insistia em repetir: fingia para um terceiro
imaginado estar acometida de um sono irresistível para que enfim lhe chegasse o sono
verdadeiro e relutante; fingia em si os arroubos que lia terem seus personagens
prediletos para que pudesse ela também, mesmo sozinha, se apaixonar de amores
irrealizáveis; fingia, enfim, ser o que queria ser para que pudesse, ao fim de tudo, ser
aquilo que imediatamente depois lhe parecia apenas ser o que ela fingia querer. Por
essa hidrografia confusa pôde então dizer, triunfante:

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- Acho que é André. É. André qualquer coisa... Enfim, talvez dê tempo de
passar no mercado na volta. A gente tá precisando de alguma coisa?
- Peraí, me conta, amiga – esse vocativo fustigava-a sempre, às vezes mais,
às vezes menos, agora muito – como você conseguiu que ele te chamasse
para sair?
- Sei lá... Passei um e-mail falando que queria conversar com ele sobre arte,
falando que eu conhecia um conhecido de um conhecido de um
conhecido... – a tentativa interrompida de ser engraçada desaguou só em
constrangimento – Porque ele fez artes plásticas, né. Achei que fosse
melhor assim, não queria falar da festa, talvez ele nem se lembrasse. Se
bem que eu acho que ele lembraria, sim... Eu sei que eu lembrava e até
você não esqueceu da história... – enxugou de novo a testa, mas sentiu
agora a roupa grudando em suas costas molhadas, tinha de passar mais
desodorante. Ou perfume? Ou ficaria demais?
- Nossa! Então não é um encontro mesmo – riu sozinha sua inóspita
inquilina – Mas nunca se sabe, né, Paulinha? Conferiu se tá tudo em dia?
Virilha, perna, calcinha decente?

Por que o mundo havia de ser tão hostil com ela escapava-lhe sempre. Por que
ele, o mundo, estava tão resolvido em não enxergar a menina que ela ainda era? Quem
desferira o primeiro golpe que deflagrara aquela guerra perpétua? Pediu desculpas ao
vazio caso fosse ela quem, primeiro, murara sua benevolência quase maternal com o
mundo de sua maneira de amar vista de fora. Queria trégua de todo aquele
desentendimento, mas agora o que importava era que tinha sim de ir ao banheiro e
reforçar o desodorante, o perfume, ou ao menos enxugar-se na toalha: quis a vida
ainda que transpirasse o tempo todo!
Olhou-se firme no espelho enquanto batia os cabelos, e sorriu com ternura.
Não era mesmo assim tão feia e tinha se decidido por uma blusa de cetim branco com
mangas de renda, acompanhada por uma saia meia altura de ciano com verde-limão,
cores que se enfrentavam em reentrâncias mútuas de formas abstratas, das quais
surgiam borboletas em suaves tons róseos, únicas capazes de amenizar o conflito de
cores que se dava ali por forçarem intrusivos fundos de tons pastéis: uma combinação
que desfraldava, ao mesmo tempo, sua pretensão a uma alegria faceira e sua
inclinação a um indiscutível mal gosto. Mas não, não estava assim tão feia.

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Puxou vagarosamente, sensualizando-se para ninguém, sua saia cada vez mais
para baixo e foi aos poucos descobrindo sua calcinha: estava rente, perfeitamente
rente às linhas do quadril e da virilha, e estas apareciam ingenuamente livres de
qualquer pelo. Era uma calcinha em estilo de tanga, branca, com um pequeno detalhe
de flor na linha do umbigo, e, verdade que não fosse exatamente provocante, tinha lá
certa graça adolescente, talvez fosse até infantil demais, mas não, estava bem, era
nova a calcinha – e foi quando de repente: surpreendendo-se a si mesma, o coração
acelerado, encheu a mão daquele pequeno monte à frente da calcinha e num só golpe
se acobertou de novo: o delicado pedaço de roupa íntima fizera-a lembrar, sem aviso,
de uma outra, uma usada há anos, outra de quando, pela primeira vez em sua vida,
despiam-na mãos concupiscentes que não eram mais suas.
Reaparecia-lhe de uma vez a pequena moça tímida e de sorriso discreto, e sua
lembrança depois recorrente de que o uso daquela calcinha desinteressante, essa outra,
era fruto tríplice de uma pressa avergonhada e temerosa de ser surpreendida a dois em
uma loja de lingeries, do acúmulo recente de tentativas frustradas de seu então
namorado, e da ausência inesperada de seus primeiros e únicos sogros naquele
entardecer que já se fazia muito distante, mas que fora quente e sublimemente –
fatídico: seus pais, religiosos o suficiente para nunca irem à missa, tinham a presença
necessária de Deus para instilarem-lhe uma culpa ardente sobre a tarde estival que
tivera naquele pequeno pedaço de quarto trancado e de janelas fechadas. Revinham-
lhe agora, lenta e pudoradamente, as palavras dóceis de Miguel, temperadas com uma
contida indignação por sua hesitação, pois ela que fizesse o que bem entendesse,
nunca lhe obrigara a nada e ele, ele sim, sempre a amara e atendia sempre a seus
desejos: àquela conversa sussurrada, que ela desconhecia universal, Paula procurou
em vão qualquer saída para além do caminho do sexo que, desselando-a, a selaria para
sempre.
Não temia já àquela altura nem o inferno nem a ira divina caso abrisse as
próprias pernas, mas sabia-se eternamente condenada de uma maneira etérea, envolta
em uma atmosfera de pecado que a esganava para além da racionalidade e assegurava
excluir daquela paixão qualquer indício de prazer. Vivia ainda como merecida a dor
física que sentira, e não fora jamais capaz de sufocar por completo a vergonha de seu
ato, perpetuada de começo por sua imaturidade e, em seguida, pela certeza de que
vivera o que jamais poderia dividir com seus irmãos, a quem idolatrava, quanto
menos com seu pai, a quem amava, e que isso os afastaria implacavelmente e para

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sempre, por mais que não chegasse nunca a ser um segredo. Mas não era hora de
pensar nele agora, em Miguel, seu namorado, não lhe fazia bem, ele que só podia ser
seu namorado porta adentro, seu namorado que não podia ser seu namorado em
nenhum lugar que não em casa, e na dele. Não era hora porque era hoje, reviveria
adulta sua adolescência perdida:

- Mas o que você queria que eu tivesse feito... amiga? Você não é a única a
achar ridículo ter de mandar um e-mail desses, mas você sabe que eu não
sou de ficar vendo a vida passar. E escrevi um e-mail tranquilo, meio
blasé, não é só você que sabe fazer as coisas.
- Ai, Paula, lá vem você com essas besteiras. Sei lá, adicionasse ele,
puxasse assunto. Vai mostrando interesse aos poucos que uma hora ele
acabava te convidando pra sair. Se você precisa mesmo da minha opinião,
é o que eu faria – disse a amiga só com um canto de atenção, a cara
enfiada no computador em uma tarefa aparentemente tão crucial quanto
difícil.
- Você acha mesmo que eu não tinha pensado nisso? O cara mal tem
celular!
- Quem não tem celular hoje em dia meu Deus o que é isso o que tá
acontecendo de onde surgiu essa criatura? – disse a amiga em um tom só,
todo emendado, perdendo o fôlego.
- Ter celular ele tem, nem tanto. Mas é que ele só usa para ligação, ele não
usa mensagem pra nada... ele me disse. E na internet é impossível de achar
qualquer coisa dele... eu acho, não procurei muito também.
- Putz, mas... que que você sabe dele?
- De útil, nada.
- Mas vocês conversaram, não conversaram? Faz tempo, mas alguma coisa
você tem que saber.
- A impressão que eu tenho é que a gente nem se falou, ele é estranho. Ele
não conversa sobre nada superficial, então não dá pra saber qual é a dele.
Acabamos falando de política na festa, ele ficou viajando em qualquer
coisa de comunidades autossuficientes, uma reorganização do mundo em
vilas autônomas que teriam identidade e cultura próprias, mas que a
tecnologia não deixaria que se isolassem. Sei lá.

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- Você tem certeza que quer mesmo sair com ele? – sua colega impunha
mais uma vez seu riso solitário ao constrangimento ignorado de Paula.
- É, acho que ele é do tipo que não sabe nada de política. Só o suficiente
para esbravejar essas teorias sem pé nem cabeça e poder discordar da
humanidade inteira.

 Paula sentia estar já falando sozinha e, desvirtuada, contra si mesma: tomava-


lhe na verdade uma timidez alegre e ingenuamente íntima ao pensar que poderia
conhecer uma pessoa nova, original a ponto de se fazer inacessível, desprendida a
ponto de não se querer compreendida. Sofria por antecipação o fato de trair o que
realmente sentia, mas gozava do prazer profundo de se tomar por algo diferente do
que revelava. Ainda hesitante entre os dois polos, quis retomar a atenção da amiga:

- Será que é estranho eu chamar esse André para a récita?


- E por que seria?
- Não sei... Eu conheço o pessoal que vai e é um programa diferente, acho
que ele ia gostar. A gente nunca tem certeza, mas acho que ele ficaria com
uma boa impressão de mim, ele pode se interessar. Eu até conheço o
pessoal que vai, mas não sei, não me sinto totalmente segura, é um
ambiente que me deixa um pouco sem saber como me comportar, não sei.
Talvez fique meio estranho, ou talvez ele fique à vontade demais – desatou
a pensar em voz alta.
- Nossa, Paula, que preguiça de você... Convida e vê o que acontece, sai
dessa prisão de ter que controlar tudo o que acontece, vai viver.

Paula dispensava a rudeza da amiga, mas reconhecia sua razão no mérito:


tinha de entregar-se mais. Começara a frequentar aqueles saraus de poesia justamente
no intuito de forçar-se a um mundo diferente do seu, onde pudesse voltar a
experimentar algum grão novo de vida e conhecer algo fora da órbita dos conceitos
formados por que concebia sua existência de todos os dias. Mesmo assim, sua
assiduidade só surgiu quando suas expectativas se impuseram confortavelmente no
controle de suas interações e, assim, quando já não podia se deixar surpreender,
embora fosse a surpresa que acreditasse sempre buscar, supostamente a vagar arredia
por entre cada uma daquelas reuniões: deu-se conta de que partilhava da mesma

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tensão de um pequeno pássaro de asas quebradas que, diante da gaiola aberta e só com
uma vaga reminiscência de todas as suas quedas anteriores, pressentisse
aparentemente sem motivo a impossibilidade de seu voo rumo à liberdade total.
Livrou-se de um fluxo de memória de gafes pretéritas com um espasmo corporal,
chicoteando a cabeça, e, crente que a amiga desconhecia esse seu sestro, conseguiu
arrematar:

- É, acho que você tá certa, sim. Se tudo estiver correndo bem e eu sentir
que ele pode gostar, eu convido.
- Não, Paula, que inferno, parece que eu estou falando com a parede – a
amiga jogou o laptop de lado, descobrindo as pernas um pouco
rechonchudas que saíam de seu shortinho de pijama e liberou-se para uma
expressividade também física, como se a não compreensão imediata e
absoluta da razão de seu conselho fosse alguma espécie de ofensa pessoal
– Você não tem que ficar tentando adivinhar a vontade dele, você tem que
criar a vontade nele. Ninguém gosta de quem tenta agradar o tempo todo,
Paula, a gente gosta é de encontrar outra pessoa, alguém diferente do que a
gente é e que mesmo assim consiga criar o encantamento de ser aquilo que
parece que faltava para a gente ser o que queríamos ser desde o começo.
Olha, amiga, a gente é mulher, é a gente que dita agora o rumo da nossa
civilização! – empolgou-se a preceptora, agora se ajoelhando teatralmente
sobre o sofá – Imagina aqueles meninos que empastavam o cabelo de gel
ou de qualquer outra meleca, vestiam o terno ouvindo os conselhos de
homem do papai orgulhoso, e pegavam o carro emprestado para tentarem
desesperadamente impressionar uma garota no salão de dança. Eles iam de
carro e falavam que estavam de carro porque a gente gostava de quem
tinha carro. Eles aprendiam a dançar porque a gente gostava de quem sabia
dançar. Eles se educavam para saber conversar sobre o que eles pensavam
que a gente ia querer conversar. O gel no cabelo, o carro, o terno ridículo,
era tudo para tentar imitar o galã perfeito com quem a gente supostamente
sonhava em nossos quartinhos de virgem, imaginando sermos a mulher do
herói de cinema pregado na parede. Pode ser que eles que chamem a gente
para dançar, talvez ainda seja assim, mas a escolha é nossa, é a gente que
diz sim ou não, é a gente que decide do que eles vão ter que gostar, do que

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eles vão ter que saber falar, qual vai ser o assunto e o interesse de todo o
mundo. Imagina o efeito disso em milhões e milhões de homens criados e
educados para conseguirem uma mulher! Agora, quem vai se interessar
pela Paula se você continuar se anulando e não for mais que o reflexo dele
em você?

O silêncio que se seguiu ao discurso da amiga ressaltou apenas a falta de


palmas que aquela exposição enérgica, cheia de gestos e feita por fim de pé exigia.
Paula desconfiou da longevidade da autoconfiança que lhe insuflou aquela
apologética, mas, ciosa de não a desconstruir, tentou só agradar a amiga:

- É, você tem razão... É um programa que eu gosto de fazer, se ele quiser ir,
melhor ainda.
- Sim, amiga. Se o pessoal é mesmo bacana, não vejo por que deixar de
convidar o cara.
- Eu gosto das pessoas que vão, sim... Tirando aquela pisquila, né.
- Ah, você é implicada com ela, Paulinha.
- Não, não sou. Ela é que é um horror de futilidade disfarçada.
- Ai, lá vem você...
- Sério, escuta. Você não sabe da última: lá estávamos nós, todos felizes já
no final da récita, cada um comentando sobre algum dos poemas ou
contando o que anda estudando, e eis que chega a donzela,
milimetricamente arrumada para parecer desarrumada, descolada. Ela nem
é da faculdade, nunca recita nada, sabe? Que que ela tá fazendo ali? Enfim,
de qualquer forma, sobre o que todo mundo é imediatamente obrigado a
falar? Vai, adivinha... Sobre exercício físico! E agora eu te pergunto: por
que um grupo de pessoas, interessadas em poesia e na mais alta literatura
estaria falando sobre suas rotinas de malhação em um sarau? Porque a
dita-cuja acha que suas pernas estão ficando mais grossas agora que faz
uma semana que ela começou a correr no parque! Ah, não, uma semana, é
demais pra mim – agora era Paula que ria sozinha de um riso abafado,
voltado para o chão, mas sua amiga já fora para a cozinha responder ao
interfone.
- Pode deixar ele subir!

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- É o cara do seu trabalho? – gritou Paula assustada.
- Não, esse é outro – riu a amiga voltando para o sofá.
- Tá demais, você, hein! – empurrou por reflexo a frase alegre em tom triste.
- Eu não sou igual você, amiga. Eu gosto muito de umas coisas, sabe, sinto
falta. Com um pouco menos de vergonha, você ia ver o tanto que não dá
pra ficar sem.
- Só porque você não vê o que eu faço, não significa que eu... – Paula nem
ao menos conseguiu levar ao fim a sua mentira.

Sua amiga já não ouvia nada, voltada de novo para a tela do computador.
Paula ficou imóvel entre a sala e a porta, indecisa se descia agora ou esperava o
convidado entrar: se já não se sentia notada agora, só podia imaginar como se sentiria
quando entrasse um homem ali. Mas o homem entrou. Entrou com sua barba espessa
bem feita e a camisa xadrez azul com um botão aberto em excesso, justamente para
desvelar seu peito largo e liso, sustentado por ombros definidos, treinados, mas não
era também assim tão bonito, só razoável, vá lá, bonitinho – na opinião de Paula.
Entrou a ser recebido por sua amiga, instantaneamente serelepe, ela, que
deixara para ajustar a altura de seu shortinho preto com detalhes em rosa, com a
liganete colada à costura de sua calcinha, só para quando ele voltasse a olhá-la, já que
ele, fazendo-se de compenetrado, dera primeiro uma grande volta com os olhos pelo
apartamento. Notou a irrelevância de Paula, apoiada com as duas mãos no encosto do
sofá bege, e notou as paredes azuis do apartamento. Reparou a cortina fechada, a
mesa estreita onde comiam, e o sofá cinza onde iria sentar, disposto
perpendicularmente ao outro, e reparou na reprodução sem moldura de um quadro
todo branco no alto da parede do fundo.

- Pô, que apê bacana, meninas – Paula desvendava de imediato o mistério


que se criara em seu pensamento: era fácil conseguir esse tanto de homens
quando se está disposta a suportar qualquer idiota – De quem é aquele
quadro?
- A Paula fala que viu na rua, que não sabe – disse a amiga adiantando-se à
resposta que Paula demorava a conceber.
- É, eu não sei – confirmou baixinho.

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- Não sabia que você ia chegar aqui em ponto, ainda estava terminando
umas coisas para o trabalho, nem deu tempo de me trocar – desculpou-se a
amiga apontando para seu próprio pijama.
- Tá linda, achei até que você ia assim – respondeu encontrando na alça do
pijama a desculpa para tocar em seu ombro – Posso sentar aqui?
- Claro, só vou terminar isso aqui rapidinho – tapou de volta as coxas com o
laptop – Ah, e Paula, acho que talvez ela estivesse só brincando, não
precisa implicar com ela.
- Com ela quem? – quis saber o recém-chegado – Ainda não decidi se gosto
do quadro, é uma mulher ali?
- É sim, mas eu particularmente não gosto – adiantou-se de novo a amiga –
Paula vai finalmente sair com a paixonite dela, mas está com medo de
encontrar a menina que já roubou um cara dela em uma festa.
- Não, não é isso – Paula odiava as simplificações infantis que a amiga
fazia, odiava a maneira dela de devassar seus segredos, e não se perdoava
por insistir em contá-los: sentiu mais uma gota de suor surgir de debaixo
do braço – Acho que eu tenho que ir.

Pressentindo que nada mais ouviria em favor de seu moral, tão sensível em
dias decisivos, despediu-se em direção da porta do apartamento e ganhou o hall dos
elevadores. Como o medo de se abalar fosse aos poucos cedendo à íntima curiosidade
que todos têm por si, viu-se obrigada a cortar cerce a reflexão sobre sua suposta
implicância com sua rival para que assim não se desvelasse qualquer vileza incômoda
naquele princípio de tarde. Mas sentir tal exigência era já suficiente para a razão
usurpar as rédeas de sua vontade de pensamento e seguir autônoma seu próprio curso,
alheia a ela mesma, e então para a imagem humilhante associada àquela garota ir-lhe
bordejando a consciência até que, chegado o elevador, a sitiasse por completo. Ficou
parada de frente à porta.
Viu surgirem-lhe os bicos abaolados do tênis de lona branca do rapaz que
desejava a serem forçosamente entremeados por suas sandálias pretas, pregadas ao
chão. Subindo, suas pernas delgadas só ligeiramente cobertas por uma saia bem curta,
agora reforço de seu flagelo de vergonha, resvalavam sempre que possível nas pernas
quase glabras e negras a ela contrapostas, as quais se recolhiam de tempos em tempos,
sem anunciarem um propósito definido. Na cintura, não lembrava de tê-lo tocado, que

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o álcool já lhe fazia então arisca a consciência, mas ao ombro impunha, lembrava-o
bem, o encontro de sua mão a cada novo comentário. Oferecer-se seria para ela
sempre uma infâmia, mas a maneira como derreara seu tronco contra o dele, sob a
justificativa de descansar seu copo ao balcão que lhe servia de encosto, açulava, agora
como antes, ainda mais seu arrependimento.
Era uma festa depois de um sarau já distante no tempo, que não mereceria
maior atenção, não a desgostasse tanto a lembrança de como seu desafeto faria
daquele par que tão penosamente construíra, um grupo, do qual ela logo seria
obrigada a descolar-se. Não se lembrava tampouco por que motivo os deixara a sós,
mas ecoava ainda acre dentro de si a frase que voltara a tempo de flagrar: “E aí,
garoto?... Não vai me dar um beijo não?”. Doía-lhe. A esse iam-se juntando outros
lances de memória, em amálgama bem menos organizada, na qual se via serpentear
sozinha, copo à mão, trôpega por entre bêbados criativamente rudes, em uma busca ou
fuga ignóbil por sabe-se lá quem ou o quê: por mais que relegasse essas máculas
biográficas a desimportâncias pueris, eram elas que conseguiam agora a atenção
necessária para rebuçar o presente que ela ensaiava salvar.
Lembrava-se da festa. Como se lembrava do menino que acusara, em voz alta
e dedo comicamente ao nariz, o seu hálito de bicho morto em plena sala de aula.
Lembrava-se do desespero misericordioso de sua professora no meio da algazarra de
sua humilhação. Lembrava-se de quando até as adolescentes suas amigas viram graça
à piada sobre sua blusa de lã, cerzida, segundo a acusação, por sua avó. Lembrava-se
de quando se complicou diante de toda a turma para explicar por que abandonara a
faculdade de direito, em seu primeiro dia de aula na nova faculdade, em sua
imaginada nova vida. Balançou a cabeça com força, de um lado para o outro, e não
saiu a tempo de evitar ouvir uma frase desconexa vinda lá de dentro: “...é paranoica...
acho que até o quadro... eu me faço de boba”. Sentiu a pele esquentar até quase a
ebulição e o peito apertar-se com o peso de uma bigorna. Cambaleou com a pressão
repentinamente mais baixa, e foi.
A claridade do dia fazia arder os olhos, embora fosse cinza o céu, e isso
embora não fosse nublado o dia, mas poluído de uma fumaça espessa que deixava
mais lento o transcorrer natural da cidade. Uma vez visto, o lugar escolhido para o
encontro pareceu-lhe uma ideia deplorável: já não reconhecia nele o aspecto gasto
dado a quem por ele passa todo dia, muito menos podia ele, agora, reavivar nela o
gosto romântico que projetara enquanto se mudava para aquele bairro. Imaginara nele

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o sonho mudo de viver uma vida que não a sua, como a de uma europeia que se
sentasse displicente em um café, pronta para devorar a seção de artes de seu jornal em
francês sem deixar-se distrair nem mesmo por seu celular: um mero entreposto casual
entre seu trabalho e o pequeno apartamento que dividiria com seu namorado artista.
Nem Londres, nem Paris, aquele café era simplesmente ridículo. Tão ridículo
quanto sua vontade de transformar em herdeira da Belle Époque aquela arquitetura de
aquário, com seus vidros estéreis e retos manchados pelo imenso logo comercial em
vermelho, capaz de aniquilar até mesmo o pouco charme que restava às mesinhas de
granito do lado de fora, assim como o barulho incessante dos carros à porta conseguia
roubar também a última elegância da possibilidade de fumar. Admirou-se de novo por
ter André aceito seu convite e por ter ele respondido a seu e-mail: sentia de novo seu
fracasso como ser humano correr-lhe as veias, e teve logo de passar o indicador ao
longo do buço para se livrar das gotículas de suor que se tinham formado ali.
Ele se sentara em uma mesa de madeira envernizada para quatro pessoas,
posta ao fundo do café e vizinha à vidraça, onde com a ajuda da cadeira adjacente
deixava escorar sua mochila. Era agora. Paula cumprimentou-o, sentou-se à sua
frente, perguntou-lhe como ia e, aos poucos, gelou por ver o assunto ir se acabando.

- Você vem muito aqui? – recomeçou André também sem jeito – Não que
eu esteja perguntando se você vem sempre aqui, isso seria quase um crime
para um começo de conversa assim – emendou, forçando Paula a rir.

Ela sonhava encontrar, sem que o soubesse, isto é, sem que o soubesse por
nessas palavras, um homem sensível o suficiente para não se poder confiante,
canhestro o bastante para reconhecer nela como charme aquilo que ela mesma
aprendera a ver só como defeito: ainda assim achou aquele comentário
intoleravelmente ridículo. Sem graça, viu-se obrigada a perguntar se encontrara fácil o
lugar, se era longe de onde trabalhava, se ia de novo tudo bem e, claro, reclamar em
duas ou três frases do barulho do trânsito e do clima estranho. Mais uma vez a
conversa chegava a um fim prematuro.

- Eu gosto muito das suas pinturas – recomeçou Paula, depois de ver


frustrado seu plano de evitar as obviedades das introduções e as

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subsequentes repetições esfumaçadas de frases feitas, que entediariam o
espírito artístico que supunha em André.
- Dá para ver que de beleza você entende – respondeu como se apresentasse
o rosto de Paula com as mãos: a frase soara mais boba sobre a mesa do que
ele próprio previra – Estou só brincando com você.
- Brigada... Mas, e você? Digo... e quando você descobriu que queria ser
pintor?... Ou artista? Os dois na verdade, né? – (Boa, Paula! Isso é um
encontro ou a merda de uma entrevista? Mas o que ele queria também,
com uma cantada sem pé nem cabeça dessas? Será que foi mesmo uma
cantada? Pra mim? Piada, que seja, o que ele queria com uma piada sem pé
nem cabeça dessas? Eu não sei fazer isso).
- Acho que eu sempre quis ser pintor – André ajeitou-se na cadeira, tendo
que se encomendar mais um sorriso. Queria dizer que, de certa forma,
sempre fora muito impressionável: a imensidão de imagens, de
informações, de sentimentos, tudo lhe vinha de maneira pouco natural e
fez com que ele fosse descobrindo em si, primeiro, uma necessidade de
realmente fazer parte de tudo aquilo e, depois, de redescobrir e expressar
esse primeiro encanto. Inviável. Impossível falar isso naquele tipo de
situação. Se bem que ainda não sabia por que Paula lhe tinha convidado,
desconhecia em absoluto qual era aquela situação. Podia muito bem ser
isso que ela buscasse: imaginou divertir-se em seu mundo desconhecido.
- O casal já quer pedir alguma coisa? – era o garçom, que vinha salvar Paula
do silêncio que ela já não via como evitar.

Paula bufou, repreendendo, coquete, um sorriso: mas à breve alegria de se ver


reconhecida em um par seguiu a frustração do pedido de André. Embora fosse óbvio
que pedissem café em um café, Paula construíra a expectativa esperançosa de que ele
pedisse, mais artista, um vinho, whisky ou licor – no fundo contava com o álcool para
fazer girar aquele diálogo que só a duras penas engrenava. Cogitou então ela mesma
pedir uma taça, ousada, segura, talvez até despertasse em si uma personagem mais
interessante, talvez ao menos causasse finalmente uma boa impressão em André, ou,
em todo caso, uma impressão qualquer: não podia era, mais uma vez, perder-se no seu
oceano sem terra de hesitações. Seu bom senso, porém, prevaleceu de novo: poderia
acabar por constranger André por beber, ela, mulher, sozinha, qualquer coisa de

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alcóolico, e, pensando bem, não estava mesmo com vontade, podiam beber no sarau,
mais tarde:

- Você tem o costume de beber enquanto trabalha nas suas coisas? Assim, se
é que você bebe em geral, né? Acho que não lembro de te ver bebendo ou
de alguém comentar sobre isso. Se bem que acho que a gente só se viu
uma vez e não é o tipo de coisa que se comenta sobre alguém também, né.
- Não, eu não bebo. Nem pintando nem fora, nunca fui muito de beber –
Paula percebeu o descompasso da conversa naquele tema, mas faltava-lhe
qualquer ideia para mudar de direção.
- Que interessante... É difícil encontrar hoje em dia quem não beba. Mas
deve ser estranho também, ver todo mundo ficando bêbado enquanto você
está lá, todo sóbrio – talvez não fosse mesmo possível vencer em dois
mundos: sua abstinência, apenas tolerada na Escola de Belas Artes, devia
ser só muito estranha para além de seus corredores e pátios – Mas você
nunca bebeu ou decidiu parar?
- Eu já experimentei, só não gosto. A arte tem alguma coisa de muito arredia
e sinto que a bebida me atrapalha a sentir. Se estivesse bebendo talvez não
conseguisse aproveitar isso aqui, agora, com você.

Era desesperadora a forma como até ele se podia ver engolfado pelo mar de
etiquetas e dúvidas sobre o que falar na merda de um café, com uma moça que lhe
tinha convidado, ela tendo convidado, mas ele já sabia de antemão como seus amigos
contariam aquela história se fossem eles a viverem-na: “nessa hora só fiz o
tradicional, joguei o básico, lancei uma conversa qualquer”, e pronto. Nenhuma
confidência sobre essa intimidade quase sexual ainda tão distante da cama. Nenhuma
palavra sobre o que realmente se fala hoje em dia, frase por frase, antes de se
conseguir um primeiro beijo, o mais difícil, o mais longe, o que envolve uma
transformação radical da conversa em sua direção: os melindres corteses de uma
sociedade não resistem à sua própria consciência.

- E você... você conhece muita gente na minha faculdade?


- Não, na verdade não. Um colega também faz pós em letras e pedi para ele
me levar naquela cervejada, eu estava precisando sair desse circuito de

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ateliê, galeria e Escola que acaba sendo meio repetitivo, conhecer gente
nova. Mas, para variar, acabou não dando muito certo.
- Pelo menos agora você me conhece, né? – disse Paula com os olhos fixos
na mesa, no mesmo lugar em que deixara descansarem as mãos depois de
abortar o plano de alcançar as dele.
- Sim, claro. Não quis dizer isso. É que a gente não se falou naquele dia – o
garçom vinha deixar os dois cafés pedidos à mesa e interrompia assim
brevemente aquele teatro ridículo de duas marionetes sem suas
articulações.
- A gente pode ir em outras festas mais legais que o pessoal organiza,
dependendo do tipo de música que você gosta, você ia aproveitar. Tem os
saraus também – Paula falava baixo, com os finais das frases quase
inaudíveis, sufocados pela vergonha de ser já ela a fazer convites.
- E você, que tipo de música você ouve? – tentou dessa vez André.

Aprendera de alguém a lição que bastava manter a conversa por um tempo e


tudo se resolveria por si só, desde que ela tivesse interesse. E ela tinha, não tinha? Ela
que o convidara, ela que encontrara seu e-mail, é claro que tinha. Mas e se tivesse
também namorado? E se ela estivesse atrás apenas de um amigo e ele corresse o risco
de ser o babaca que entendeu tudo errado, o tradicional inconveniente que não sabe
que homens e mulheres podem ser amigos sem interesse? E que coisa nesse mundo se
resolve por si só, afinal? Se queria realmente viver o que se vive na vida em que
nasceu, teria sim de ousar, de romper o limite de suas convenções mais confortáveis e
desinteressantes, ao menos se não quisesse se envergonhar toda vez que cruzasse
aquelas mesinhas amadeiradas do café em seu caminho para a galeria, ao menos se
quisesse evitar o mal maior de estar ali e voltar só, por pura covardia, por ser menos
da metade de um homem – ou mais que o dobro de tudo que o cercava, acrescentou
para si.
Paula pôs-se confiante com os cotovelos sobre a mesa e, sacudindo agora
algumas mechas do lado oposto à franja, em um gesto ensaiado, deu início a uma
exposição diligente e arrojada de seu gosto musical: mostrou apreciar tanto o novo
quanto o mais clássico da música nacional e estrangeira, deu motivos, citou nomes
pouco conhecidos, e terminou com um breve comentário sobre o cenário

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contemporâneo, acrescentando ao final um ar interrogativo que exigia a opinião de
André:

- Gosto de tudo um pouco, não sou um grande entendedor – “acho que todo
tipo de música faz parte da vida e, por isso, pode fazer parte da arte” era o
que tinha em mente – Mas eu não conheço quase nada, ouço um ou outro
compositor que ajudam a me colocar onde quero estar para pintar. Não
tenho o costume de ir muito em festa.
- Entendi. Você deve sair mais com seus amigos das artes também, né?
- É, saio mais com eles – mentiu André, acuado, fingindo olhar em volta à
procura de quem pudesse lhe atender de novo: encontrou só o silêncio que
cumpria em poucos segundos seu papel diligente de apontar a indolência
daquele diálogo – E você, sempre soube que faria letras?
- Não, não. Eu sou uma bagunça – riu Paula: dele? Para ele? – Fiz primeiro
direito, aquela história: gosta de humanas, então não faz nem medicina,
nem engenharia. Mas eu era sensível demais para o curso, larguei no
segundo ano, assim que começaram as matérias jurídicas de verdade.
- Ex-jurista, formada em letras, que quis falar sobre arte com um artista
desconhecido. Você é uma bagunça mesmo, hein? – brincou André, um
tanto decepcionado por aquele presunçoso e vulgar comentário acerca de
sua própria sensibilidade.

Apesar da piada, André sentia a conversa girar atolada em torno de si mesma,


aquela conversa polida, cortês, gentil e arrastada, aquela conversa que ele não deixou
orbitar muito longe dele próprio, logo se convidando para ela na figura do artista
incógnito. Por que tinham de passar por aquilo? Gostavam um do outro, já era óbvio a
essa altura, mas insistiam em ir pelo único caminho que podia demovê-los dessa ideia:
obedeciam a ordem impessoal de terem de conversar sobre trivialidades, de
preencherem o tempo a dois sem se dizerem muita coisa e sem poderem permitir
qualquer silêncio: “Olha, sinceramente, gosto de você, te achei legal, adorei você ter
me mandado um e-mail do nada e queria ir te conhecendo mais depois que a gente se
beijasse”. Um beijo e uma carícia. Era isso. Era essa a realidade verdadeira, a essência
do que faziam, a vida sem véus que ele queria pintar. Deplorou o que se lhe oferecia
sobre a mesa.

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Revoltou-se, confuso, com aquela sua obsessão por se aproximar de pessoas
cotidianas, de algum estrangeiro ao mundo repetitivo e falso dos círculos artísticos,
sempre com as mesmas pedanterias e diálogos convencionados: dizer que uma obra
reconhecida era ruim? Nunca!: ela apenas não me diz muita coisa. Afirmar com todas
as letras que se está com preguiça ou que se duvida tantas vezes do valor de tamanho
sacrifício por um pedaço de tela colorida? Inaceitável!: é a falta de inspiração que me
tem deixado com um bloqueio absolutamente niilista. Elogiar o último lançamento do
cinema que lhe pareceu um bom filme? Ah, pura condenação à periferia social, a essa
favela habitada por gente desinteressante: é preciso comentar a composição dos
enquadramentos e a falta de fluidez da edição.
Mas de que lhe valia negar todo aquele mundo se não podia vencer neste
outro? De que lhe valia se, quando aberta a porta, tinha de novo de adequar-se a novas
convenções de hábito, a outros cacoetes de linguagem, a trunfos que lhe garantissem,
aí também, sempre exatamente o mesmo capital social necessário para prevalecer?
Doeu-lhe um gosto amargo na boca não ter ainda vencido a todos com sua obra-
prima. Mas como a faria se dependia de alguma realidade para produzi-la? Com Paula
é que não seria, a não ser que ela, fazendo-o fracassar, transportasse-o pela
humilhação a seu universo mais desnudo.
Detestou-a em sua intimidade ingênua com o mundo, odiou a naturalidade
fácil com que tratava tudo ali, desprezou seu interesse superficial pela arte e viu, pelo
reflexo da vidraça, a pureza nua e branca de uma nuca coberta só por poucos longos
fios de cabelos castanhos, desgarrados, teimosos em aderir ao coque de sua dona, essa
sim, digna de uma tela. Detestou ainda mais Paula, seu mundo e seu jogo de cartas
marcadas – decidiu que não participaria mais daquilo, não era seu papel, iria levá-la,
quisesse ou não, para além das balizas, para lá dos contornos que os sufocavam:
afinal, ele era artista, ela não, e também não o intimidava tanto, não era lá tão bonita,
não o acobardava à educação:

- Eu não estava olhando seu decote. Não sei se é por isso que você ajeitou a
blusa, mas eu não estava olhando seu decote, pode ficar descansada.
- Eu nem estou de decote! – retraiu-se Paula já arrependida por não ter dito
coisa melhor: o susto recobrara sua atenção e a fez sentir o comentário
como um teste – Não teria problema se estivesse olhando também.
- Sei...

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- Se olhasse meu decote aqui, com discrição, acho que seria normal. Não é
preciso tratar com histeria essas coisas.
- E se olhasse na rua, quando te visse passando? – provocou.
- Mas eu nem estou de decote!... – defendeu-se Paula em um soluço
esganiçado – Na rua não tem contexto, não tem consentimento, nem
mesmo tácito – sentiu vontade de enfiar a mão por debaixo da blusa para
limpar o suor que lhe brotava debaixo dos aros do sutiã: temia que
marcasse a blusa, como temia contrariá-lo demais, embora trouxesse
consigo o ensinamento de que são os falsos opostos, vez ou outra
discordantes, que realmente se atraem.
- Não era sobre isso que a gente devia estar falando? Em vez de fingirmos
falsamente que estamos nos conhecendo por perguntas, não devíamos falar
sobre o que eu ou você estamos pensando, sobre nossas impressões
verdadeiras? Achei que você tinha ajeitado a blusa por minha causa, falei.
Para que criar esse monte de distração, esse monte de lixo de
conveniências? Só para depois reclamarmos que só vemos a vida
verdadeira de relance, nas frestas das convenções? Eu não sei como vocês
suportam isso.
- Você está quase gritando! – disse Paula, odiando-o por colocá-la naquela
situação, embora gostasse do jeito que... não, era só ódio mesmo, ódio pelo
constrangimento desnecessário, ódio por interromper a conversa que ela
tinha se esforçado em construir.
- Desculpa, desculpa, me empolguei – apressou-se André.

Paula não desistiria, era hoje. Não gostara de seu tom, porque já a tratava
como a uma amiga, nada mais que uma irmã, como os antigos garotos que deixavam
para discutir com ela suas fraquezas sinceras: sem elegância, sem interesses, sem o
charme do não dito. Mas nem tudo estava perdido, tentava lembrar do que já se
programara para dizer, conhecia André mais do que ele supunha, era esse seu trunfo:

- Mas não é você mesmo quem pinta que essa realidade verdadeira, esse
fundo das coisas - ela tentava aqui, nervosa, fazer referência ao título de
um de seus quadros, tão ignorado do público quanto os outros – que seria
quase impossível de enxergar? Ele não está atrás de brumas, de um papel

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intransponível? – sentia-se orgulhosa: que prova maior de inteligência
podia haver que apreciar um quadro e ainda criar uma interpretação para
ele?
- Mas a essência das coisas – era esse o título de sua obra que agora
obrigava André a fingir indiferença por alguém conhecê-la – pode ser essa
também. Pode ser esse medo de eu olhar o seu decote.
- Mas...
- Sim, eu sei. É só um exemplo. Pode ser o que você acabou de dizer, sua
voz registrada em um gravador e repetida infinitamente. Mas você ainda
está presa naquele centro da tela, tentando ver a beleza escondida por
detrás do cinza e da veladura: isso é a adolescência, nossa e da arte. Você
pode acabar perdendo a vida toda sem perceber a riqueza do que existe em
volta, toda a beleza gritante que não está escondida, está aí no dia-a-dia:
basta não vermos o trânsito, mas as cores, não preocuparmos com nosso
teatro de poses determinadas, mas com o que sentimos.

Falavam, é claro, de A Essência das Coisas I, tela de médio tamanho, em cujo


centro se via uma alameda arborizada e florida, feita a pinceladas curtas e frouxas,
com as tintas puras aplicadas diretamente à tela de maneira que a vivacidade do azul,
do vermelho e do amarelo, e a beleza da ausência de contorno dos carros, da rua e da
flora só seriam encobertos por uma névoa disforme, que se espraiava por toda a
imagem, não fosse também a veladura translúcida sobre essa representação central a
tapar-lhe a clareza. Ladeando essa figura, várias colagens, ainda mais cheias de cor,
fundiam-se ao quadro em improvável harmonia, complementando aquela paisagem
impressionista como que suja com écrãs de televisão, computador e celulares, além de
uma foto de uma outra via, a preferida de sua infância, atabalhoada de carros e gentes
de todas as cores.
Paula estremeceu por dentro e começou a girar o saleiro de vidro sobre a
mesa, quase o deixando escapar ao chão, por duas vezes: o silêncio abria-lhe mais
uma vez a brecha no destino por que ela se esforçava passar, mas lembrava-lhe, ao
mesmo tempo, de quão arisco podia ser o interesse de um homem – ela podia agora
surpreender, arriscar, ousar, fazer um convite e uma provocação direta, ou então:

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- Nossa, já fomos de decote para sinceridade, de sinceridade para arte,
estamos demais, hein! Acho que preciso de outro café – André desejou-a.
Quis seu beijo porque ainda a julgava fútil, queria conquistá-la por tomá-la
por banal: não deixava de ser uma tontice engraçada comentar aquilo do
que não se fala.
- Deixa que eu peço para você – prontificou-se.
- Hmmm, que cavalheiro – retribuiu sem coragem de olhá-lo nos olhos –
Mas... não sei. E quando sentimos um êxtase, quando quase nos sentimos
ir para além de tudo isso, quando esquecemos dessas conveniências ao
falarmos com alguém que gostamos? – se Paula se insinuava para ele,
fazia-o bem, que André chegou a cogitar a hipótese. Se não era o caso,
pensou, ao menos estava a salvo do espetáculo dito desastroso de não se
aproveitar das insinuações de uma mulher.
- Se a vida, e a arte, fossem feitas só desses momentos seria ótimo, não? –
André inclinou a cabeça para o lado, tentava revigorar de intimidade o
assunto, parecer mais meigo: expunha-se, enfim.
- Não, mas há também os êxtases ruins, o horror, o desconsolo – Paula
desconheceu o gesto de André, animada por ter-se achado um espaço para
impressionar – Não é a sensação de impotência, de subjugo, o pior que se
pode viver, tanto que seu abismo está no próprio corpo, o mais baixo que
pode sentir uma pessoa? – engrolou Paula, apoiando-se em uma tese
trazida já pronta.
- Você fala do estupro?!
- Sim, o estupro, mas não só: imagine ter os braços amarrados e ser
queimado dentro de pneus como acontece nas favelas, ou então ser forçado
a ver, um a um, seus amados serem fuzilados na sua frente. A impotência
violenta imposta à nossa vontade não é o que mais nos pode machucar,
ainda mais quando nos atinge, sem matar, em nossa intimidade mais
resguardada?

Ela falava do estupro?! De tudo quanto podiam falar agora, todos os rótulos de
conversa expostos na prateleira, ela escolhia uma frase feita, um toque retórico, uma
definição de... estupro? De todas as conversas naquele café – ou em qualquer café do
mundo, para ser sincero – de todos os diálogos embolorados ou constrangidos entre

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casais... não havia mesmo limite para nada: sentia-o como o poder de suas criações,
parecia estar nas bizarrices de um sonho.

- Você não está deixando seu feminismo entrar demais nas suas concepções
estéticas? – tentou brincar.
- E você, André? Não está deixando o machismo entrar demais nas suas? –
só pensou Paula, sem vontade de agredir e sem coragem de atrever-se à
intimidade do nome próprio: emudeceu-se.
- Não quis ser grosseiro, desculpa: suas frases foram lindas, bonitas mesmo,
geniais. E você tem razão: é claro que a arte lida com esses extremos. Mas
meu trabalho é só fazer com que eu e meu público não esqueçamos que
isso está na vida, isso é possível e acontece – socorreu André.
- Sim, mas justamente – animou-se de novo Paula – Estou perguntando se
não se deveria representar um sentimento, a paixão de vida que nos
arrebata e nos faz sentirmos vivos para descobrirmos a essência, agora de
um outro, no amor. Como no seu quadro com a Marilyn Monroe: quase
nos apaixonamos por aquela outra mulher, mas você não deixa isso
acontecer e a abandona naquela bruma, naquele sonho de amor que quase
se realiza – Paula percebeu que André deixara de levar a xícara à boca
quando ouviu mais uma referência a um quadro seu – Enfim, estávamos
falando de algo parecido na récita de que participo, na semana passada.
Hoje tem de novo, você devia ir.
- Eu ia gostar muito de ir, de verdade, mas não sei se posso. Talvez tenha
que ir à galeria ainda, vamos vendo – Paula concordou com a cabeça:
coçava de novo o pescoço com uma das mãos enquanto se frustrava em
um sorriso forçado, estranho – Quanto ao amor, ele está em meus quadros,
você só está procurando no lugar errado. Ele não está escondido em
essências, nem em lugar nenhum, está aqui, na realidade da vida –
concluiu André afastando-se do encosto da cadeira, descansando seus
braços sobre a mesa, mais próximo dela.
- Meu amigo está te incomodando com suas teorias da sensualidade da vida?
Porque saiba que é só isso para ele, só teoria: esse homem é puro músculo
intelectual. Basta ver aquela sua branquela na galeria – surpreendeu-os

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com uma risada final este seu colega, que cria poder cobrar com aquele
tipo de implicância o que não deixava de lhe pagar em admiração.

Falavam, os três, da Musa nº 2, exposta na mesma série que o primeiro


quadro. Este agora, em vez de colagens, contava com um tratamento hiper-realista de
celebridades, ora se aproximando da imitação de fotografias consagradas, ora
representando com perfeição as serigrafias de Warhol. Na parte inferior da tela,
também sem invadir a região central, centenas de retratos de desconhecidas serviam
como pixels para compor o rosto colorido e bem definido de apenas uma delas. E tudo
isso posava só como moldura para a musa que era sozinha em outro quadro a Musa nº
1, a musa que emergia etérea no centro da tela: pintada só em branco, como que em
negativo, seus traços perdiam-se nas sombras formadas pela crueza do algodão sem
tinta; parecia segurar por trás das costas, de um jeito mole e natural, o trapo de tecido
desfiado que muito mal lhe cobria o corpo e, nas partes mais iluminadas, deixava-se
entrever ainda, fugaz e como em um sonho, seu sublime semblante de perfil, os
travesseiros muito altos que a recostavam e, bem marcado, seu delicado biquíni
incolor – era bela, mas arisca; viva, mas irreal:

- O problema é que há artistas, supostos artistas, que em pleno século XXI


teimam em negar essa seiva concreta de vida na arte e não veem o sem
número de estímulos que temos. Ou então, entregam-se a esse teatro falso
de vida – disse André limpando os lábios.

Cássio, era esse o nome de seu amigo, limitou-se a gargalhar em seus gestos
exagerados de bêbado, sem parecer ter dado muita atenção. Já Paula apreciou-se no
momento em que se via, rodeada de artistas com suas vidas turbilhonantes, prontos a
todo tempo a inspirarem-se em profundas emoções e a defenderem ao limite suas
confusas concepções estéticas. Mas ela logo se corrigiria em seu deslumbramento,
lembrando-se que tinha ali um objetivo, e que o aparecimento de um amigo poderia
dificultar seu propósito do qual antes se aproximava – ou teria André acordado aquele
plano com o amigo, pedindo-lhe para que lhe salvasse caso o encontro se provasse má
ideia? Recompunha-se, aos poucos, de seu lapso de espontaneidade.

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- Ei, por favor, como é que você se chama, meu irmão? – gritou de longe,
ainda de pé, para o garçom – Grande prazer, eu sou o Cássio. Que cerveja,
não, que vinho você tem aí? Pode ser esse primeiro que você falou, você
me traz três taças dele, por favor. Não, duas. Duas? Você também não?
Tudo bem, traz duas mesmo assim: estou morrendo de sede.

Cássio puxou a cadeira ao lado de André e deixou a mão teatralmente aberta


depois de jogar a mochila que estivera ali no peito do amigo, rindo. André pôs
depressa sua mochila de volta à cadeira e empurrou-a para perto da mesa, impedindo
seu amigo de se sentar.

- Como você sabia que eu estava aqui?


- Eu tenho olhos de águia, meu irmão. Estava passando do outro lado da rua,
um vento horroroso, meu cabelo batendo no rosto, poeira fazendo meus
olhos lacrimejarem quando de repente, não mais que de repente, avistei
vocês dois escondidos aqui no fundo, só no amorzinho, cheios de
cochichos – tentou puxar a cadeira, mas André, forçando-a demais, fez
com que ela batesse contra a mesa em um estalo seco.
- É sério, Cássio. Desde o meu aniversário você está com essa palhaçada,
você sabe que eu detesto essas coisas. Faz cinco dias que você me acha na
rua, em tudo que é lugar.
- Saibam, meus caros, que na tribo dos índios caingangues a festa de
aniversário de qualquer integrante dura no mínimo sete luas.
- Índio não comemora aniversário. É sério, Cássio. Que coisa irritante. A
gente estava no meio de um assunto, você não vai sentar aqui – Cássio só
olhou para a cadeira ao lado de Paula e depois encarou-a, demandando sua
opinião.
- Se for por mim não tem problema, gente – ao ouvir esta anuência André
pulou da cadeira e pôs a mão no peito de Cássio, interrompendo a volta
que o amigo começara a descrever pela mesa.
- Detenhamo-nos de dedicar dessas desinteligências deselegantes diante
desta deslumbrante donzela, meu velho – Cássio afastou-se para se livrar
do braço de André, realçando sua ameaça de agressão por se afastar como

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se de fato a temesse – Mas, se significa tanto para você, tudo bem, eu
estava só passando e acabaram minhas palavras em ‘dê’.
- Sem teatro, Cássio, claro que é para você se sentar com a gente. Eu só
quero saber como você está fazendo isso, você mora do outro lado da
cidade! – Cássio já tinha se dirigido a uma outra mesa, onde a garota de
coque feito aos cabelos castanhos tinha sido brevemente abandonada pela
amiga em prol do toalete.
- Muito boa tarde, como você vai? Desculpa se eu estiver incomodando,
mas como você se chama? Um grande prazer, eu sou o Cássio –
aproximou-se e abaixou o volume da voz – Eu realmente vim aqui porque
você é sem sombra de dúvidas a pessoa mais interessante, mais com um
jeito charmoso e gracinha que eu vejo pelo menos desde o final do ano
passado, sério... É sério, falei desde quando foi para você ver que eu não
estou mentindo, eu tive de vir aqui. Só que não vai dar tempo de a gente
conversar direito, me desculpa mesmo, meu amigo vai começar a me gritar
a qualquer minuto, mas vamos marcar de sair um dia, eu te passo meu
telefone ou volto aqui para anotar o...
- Cássio, Cássio! Para de palhaçada. Você venceu, eu só quero entender
como você descobre aonde eu vou – Cássio despediu-se com seu treinado
sorriso amável e sentou-se ao lado de Paula.
- É seu celular, meu velho. Se você se interessasse pelo presente que eu te
dei, tinha configurado seus dados, colocado pelo menos seu e-mail,
trocado a senha, mexido nele. Deixei seu 3G ligado, toda vez que você está
com o celular eu posso descobrir sua localização – matou a primeira taça
em um único gole – Depois eu te ajudo a desligar isso.
- Sabia que tinha alguma coisa – amenizou André na tentativa de disfarçar o
mal-humor e, mais que isso, mostrar-se realmente amigo de Cássio, que já
parecia causar boa impressão em Paula – Depois eu mudo os dados, foi
falta de tempo. E muito obrigado pelo presente, de verdade, desculpa a
falta de jeito.
- Tudo certo... Então o grande André desceu de sua torre de marfim para ver
o que se passa entre os mortais daqui de baixo? Mas e aí, qual a boa hoje?
– perguntou se inclinando para frente para tentar colocar, como colocava,
as mãos sobre os ombros de um e de outro.

43
- Temos que passar na galeria e depois nós dois vamos encontrar alguns
amigos dela. Por sinal, Cássio, Paula, Paula, esse é meu amigo, Cássio –
apressou-se André antes que Paula pudesse reagir.
- Ahhhh, discorda de mim mas come no prato que cospe, não é, meu velho?
Você quis dizer passar no meu galerista. No que eu te apresentei.

Sem ficar claro se fora André que fizera ou recebera a chamada, pois seu
celular já lhe vinha à mão, ele respondeu à mesa ao aparelho, ignorando os gestos de
Paula que lhe escusavam para falar em particular, do lado de fora. Abusou de mímicas
incontidas e de frases obstinadamente resolutas, fez sentirem sua indignação de artista
e sua fidelidade irrenunciável à sua obra, disse que não iria, porque não podia, pois
não queria fazê-la mais radical e transgressora para o comprador que fosse, embora
assentisse em a explicar, sem problemas, já que não havia obra sem teoria que a
informasse – e era sempre tempo de mostrar a razão que seus quadros impunham ao
mundo – para quem assim o quisesse. Despediu-se de seu galerista com a promessa de
que passariam por lá – avisara, orgulhoso, que estava acompanhado, tomava-lhe a
vontade de, primeiro, mostrar a si mesmo que a podia possuir, e, depois, de expor
desatento a um ou outro conhecido a conquista que lograra como mais um fato
ordinário de seu quotidiano, embora fosse justamente o contrário o que ocorria,
embora fosse na verdade raro, quase inédito, que aparecesse com uma mulher ao seu
lado – e preveniu Paula que talvez fosse melhor se apressarem, pois não sabia se a
visita prometida iria demorar.
À medida que abandonavam a inconfundível cabeleira encaracolada de Cássio
para trás e começavam a andar, lado a lado, rumo àquele sobrado com suas obras,
André sentia aproximar-se o vazio desesperador que o acometeria caso seus planos
não resultassem nada: vivendo tudo como um dever e o ócio como uma transgressão,
ver-se-ia baixo por ter se promovido em vão e, dir-se-ia, por nada ter tirado de
aproveitável daquela experiência; insultaria por toda a manhã o gosto fracassado de
fumaça na boca e a sensação de queimado nos lábios – proles não reconhecidas de sua
insegurança até mesmo de onde meter as próprias mãos: e teria fumado mais ainda só.
Passaria dias temendo a hora do sono, temeria mostrar-se a si no que quer que fosse,
recearia se reconhecer, mais cedo ou mais tarde, no falso artista, no péssimo filho e na
impotência de homem que ele mesmo sabia encarnar.

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Projetava, assim, já quase o vivendo, seu sacolejar de pernas ao comer, não
suportando a quietude nem sentado nem de pé por querer fugir por qualquer agitação
do corpo dessa sua consciência outra, cindida, que tentaria fazê-lo percorrer o
caminho circular da memória do fracasso daquele encontro, passando pela dor de
ainda não ser um artista pleno e, finalmente, chegando ao despropósito de toda uma
vida sonhada original. Perceberia depois de tudo isso que, ancorado na extrema falta
de beleza daqueles jogos de vaidades, jamais poderia valer-se do trampolim de seu
ofício para escapar às baixezas de seu mundo – sentiria isso como um decreto divino
que lhe proibisse um lugar à mesa dos profetas da arte: André vivia longe da vida.

- Decidi que vou com vocês, sim. Não tenho ninguém para beber comigo
hoje, só mais tarde.
- Então... Na verdade, acho melhor vocês dois irem sozinhos, afinal, artistas
são vocês, né? – Paula andava com os olhos vidrados no celular, embora
parecesse apenas deslizar o dedo compulsivamente de baixo para cima
sobre a tela – É que eu preciso fazer umas ligações. A galeria é aqui por
perto? Posso esperar na esquina do café.
- Não, não. Combinamos de ir no seu sarau, agora vamos juntos para a
galeria – chantageou André sem o mínimo pudor.
- Você acharia muito ruim se eu esperasse aqui? Eu precisava mesmo ligar
pra umas pessoas – implorou Paula, coçando sua insegurança em seu
joelho.
- Eu e o Cássio podemos te esperar na próxima esquina, não estamos com
tanta pressa assim. Mas é você quem sabe também, não quero te forçar a
nada.
- Ia ficar estranho eu esperar aqui, né? Eu vou sim, não é nada demais, vai
dar tudo certo... Vamos lá – disse, forçando-se uma felicidade
despreocupada, que soou com a mesma naturalidade da animação de uma
recreadora de piscinas – E você, onde você estava? Demorou para decidir
que vinha com a gente, né? – riu Paula, oferecendo-se a Cássio em uma
amostra de ciúmes.
- Fui buscar o telefone daquela minha amiga, coisa rápida.
- Sei... Amiga, né. Parecia que vocês não se conheciam antes – ela olhava
Cássio mais uma vez, de cima em baixo: imaginava-se na cama com ele e

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imaginava como devia ser natural para ele deitar-se com alguém, assim
como devia ser natural também para a colega que morava consigo tudo
aquilo que envolvia levar um homem à cama, despir-se, e fazer nua o que
todo o resto do mundo fazia também nu: como seria a imagem dela própria
e de Cássio sem aquelas roupas, no caso da superveniência de um milagre
dessa espécie?
- Só achei legal o coque dela, o cabelo, só quis conversar mesmo. Não
precisa ficar com ciúmes: você é mais bonita que ela, mas já está
acompanhada... – fazia suas brincadeiras à revelia do protocolo das
brincadeiras, olhava a vítima sempre no fundo dos olhos.
- Não se deixe enganar não, você estava certa. Cássio é o maior destruidor
de corações que eu conheço: Deus pode até perdoar, Cássio, nunca –
falseou André em um elogio a posição que não podia marcar às claras.
- Se já destruí algum coração, garanto que não foi de propósito. Mas
confesso que André é um homem, não, homem não, um cavalheiro que
algumas mulheres talvez não tenham visto em mim – arrematou Cássio em
uma gargalhada.

Cássio, apesar de tudo, era sim um grande amigo. Tirava-se manifestamente


de lado para deixar Paula para ele: não que isso fosse preciso, claro. Mas Cássio sabia
viver, sim, isso ele sabia. Sabia mesmo? Ele apenas fingia. Mas não era isso saber
viver? Ao fim e ao cabo, era ele quem parecia amar aquela noite. Mas não. Cássio
podia até ser mais ajustado para o mundo convencionado que existia, podia até
mesmo representar melhor o verdadeiro homem de seu tempo, mas só ele criaria uma
vida original – e uma obra. É o preço que se paga. E, além do mais, o que faria hoje
de uma pessoa brilhante um grande homem senão a arte? Sem guerras, sem salvações
nacionais, sem o romantismo da pátria ou da honra, sendo o sangue que corre só o do
acidente culinário e com a luta pela humanidade pulverizada em tolos movimentos de
uma esquerda juvenil, onde ir encontrar a justificativa expiatória de uma vida? Não
podia se ater ao desespero profundo por ter se arriscado a falar de um decote
inexistente: intuía com a imaginação um mundo maior, embora sofresse só da
pequeneza do seu. Pobre de sua geração, preocupada unicamente com os flertes, com
as imagens, com quem estava com quem: estava livre de tudo isso – e só tinha sua arte
a agradecer.

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André tomou um isqueiro e acendeu o seu cigarro: era um artista e não podia
temer, nem por um instante, aqueles pequenos riscos de vida – além do mais, Paula já
dera mostras de que, essa noite, não era aquele o seu destino. Um outro temor, porém,
outro menor, se concretizou: o cigarro incomodou Paula, que reclamou do gosto de
tabaco que persiste na boca, orgulhosa de enfim ter um posicionamento convicto e
intransigente – apagou o cigarro pouco fumado, já haviam chegado à galeria.
Era um espaço amplo e estéril, com as paredes lisas, muito brancas, e um
sopro gélido de ar condicionado. Entre as paredes cobertas de quadros, cada um
sempre e somente ao lado um do outro, subiam esculturas do chão e desciam móbiles
pendentes do teto. À esquerda de quem entrava via-se uma escada metálica em
caracol, dessas que levam o vendedor ao sempre secreto estoque da loja, desenhada
ali para gerar intimidade em quem seguia a conferir as obras expostas no segundo
andar. As de André, porém, estavam todas no térreo, e foi ao lado delas que seu
galerista esperou para cumprimentá-los. Após as devidas apresentações, feitas por
André com a virilidade revigorada, o galerista surpreendeu Paula, que disfarçava com
um toque ao cabelo a limpeza desajeitada que fazia do suor das têmporas:

- Mais uma vez de volta aqui, Maia, e agora acompanhada do artista em


pessoa, hein? Diga agora, você que já é habituée, o que você pensa
realmente da obra desse moço?
- É Paula o nome dela, meu velho, ele acabou de falar – Cássio deixava
André de boca aberta, já pronto para dizer o mesmo.
- Eu poderia jurar que era...
- É... Eu tenho mesmo o costume de ir em galerias, gosto de ver o que está
acontecendo na cena artística da cidade, né... – Paula olhava fixamente
para o chão e sabia disso – Gosto bastante d’A Musa, mas acho em geral...
- E deram certo as reproduções que você queria fazer, ficaram boas as fotos?
– André e Cássio olharam confusos para Paula, que se postara, só agora
visivelmente, à meia distância entre a palidez do desmaio e a careta da
náusea: coçava, em movimentos elétricos, o colo e o pescoço.
- Acho em geral muito interessantes, os quadros...
- Isso eu já imaginava. Talvez isso te surpreenda, mas: não é todo dia que
vêm aqui com todo o aparato de Leica, ColorChecker, luz contínua... por
mais que minha coleção mereça esse tratamento, óbvio.

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- André pinta muito bem... – Paula engorvinhava sem notar sua blusa na
altura do mediastino, com a mão esquerda, e se encorcundava toda,
deixando suas costas molhadas pregarem ainda mais em sua roupa:
esquecia-se, pela primeira vez, de repuxar os ombros para cima,
assumindo assim a estranha aparência de uma pessoa que quisesse
desaparecer para dentro de si mesma – André pinta muito bem e tem um
toque de muito bom moderno, digo, um toque moderno de muito bom
gosto – o galerista pulou, sacudindo as mãos em concha, como se Paula
tivesse acionado um botão.
- Mas é isso, é isso, esse é o problema: André é moderno, mas não quer se
ultrapassar, não é contemporâneo. Pelo amor, o cubismo já fazia colagens
há mais de cem anos!

Paula respirou aliviada, mas ainda se perdia em suas reflexões interiores.


Mudariam mesmo de assunto? Tinham de mudar. Nunca deveria ter ido àquela
galeria, não podia misturar sua existência imaginária à realidade do mundo
compartilhado, à vida. Estavam também tão bem visíveis, devassadas, suas fantasias
mais recônditas? As que vivia em seu quarto, à noite, a luz apagada e as mãos a
incorporarem pequenos ídolos que nem sonhavam sua existência? Bastava olhá-la
para vê-las também? Viam a reprodução d’A Musa no fundo de seu apartamento, o
preço exorbitante que pagara por sua revelação, suas visitas inúmeras àquela galeria e
as semanas que já formavam meses de perseguição a André? Não, óbvio que não,
cometia o erro comum de transplantar os olhos próprios nos rostos alheios, ninguém
se preocupava tanto assim com ela, nem com qualquer outro: é o efeito de se imaginar
sob holofotes, já lera sobre o assunto. Não podia era deixar desmoronar sua fachada,
tinha de se sustentar: não que fosse louca, era apenas uma brincadeira que fazia
consigo mesma, mas, ainda assim, jamais entenderiam. Preferia mil vezes seus sonhos
vividos a sós, preferia seus êxtases perfeitos e indivisíveis às inúmeras pequenas
satisfações sujas que imaginava saciar sua colega de quarto: vivia melhor. Só tinha
hoje exagerado na dose de realidade, ousado demais, e sentia descer justa a mão do
carrasco que abria o vão em seu patíbulo. Mas passara. Mudariam de assunto. E
talvez, só talvez, quando André lhe perguntasse sobre aquilo em alguma manhã
distante, na cama, com seu hálito quente e dormido, ririam de como ela, só ela,
enxergara seu potencial. Mudariam de assunto.

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Enquanto André ria em uma mistura de desdém e admiração por aquela
insistência, como fazem sempre os bons amigos para se reforçarem de sua
condescendência superior, a imaginação de Paula já convalescera, alçara voo livre, e
foi acompanhar, invisível, aquele galerista por suas viagens pelo mundo: viu-o chegar
em seu grande quarto de hotel e, cansado, despir-se só da camisa enquanto se abria o
whisky do frigobar, ainda com forças para negociar pelo telefone com colegas de
outros fusos horários; seguiu também, curiosa, seus outros ataques de nervos, mais
violentos, em locais públicos, pouco se importando com a opinião alheia quando se
tratava de defender a boa arte; invejou, por fim, o controle que ele devia impor à toda
situação, afirmando-se como era, nos cafés de qualquer país, nos bares em qualquer
idioma, enfim, onde quer que ele fosse acompanhado daquela aura nata de
espontaneidade e daquela aparência de segurança: provavelmente já passava dos
quarenta, mas tinha ares de moleque, de moleque rico com a camisa para dentro da
calça sem esconder a boa forma física, e o cabelo grisalho muito bem posto,
seguramente pintado.
A verdade era que aquele galerista nunca saíra do país e que, se Paula não
dissesse nada, concordasse, discordasse ou repetisse o que escutara, estaria pronto seu
atestado de ignorância e sua confissão de estúpida tietagem:

- Isso de certa forma é verdade, não é André? O cubismo já não fazia


colagens, o futurismo já não reconheceu à exaustão o valor do moderno e
da tecnologia, a pop art e o novo realismo já não inundaram os museus
com tudo que fosse da cultura atual? – disse orgulhosa de perceber o
quanto suas aventuras imaginadas ainda tinham o bônus de lhe fazer
aprender.
- Eu não vou esvaziar ainda mais o seio de uma sociedade que desaprendeu
a ver e sentir. Muito menos por um frenesi injustificado por se fazer o
novo. Se as pessoas não conseguem mais enxergar o valor estético da vida,
o papel do artista, pelo menos o meu papel, só pode ser o de ajudá-los a
pensarem nisso.
- Eu concordo cem por cento – Paula sentia-se percorrida de uma emoção
ensoberbecida e, como quando bêbada, não teve tempo de filtrar sua
reação ingênua de entrega – Eu mesma acho que sou diferente das pessoas
por ter percebido isso, ter conhecido esse não visto pela maioria das

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pessoas. Talvez esteja aí nossa originalidade – disse agarrando a mão de
André, num gesto estranho que logo teve de ser abandonado.

Ambos se regozijavam: André, mais, por enxergar finalmente um sentido


naquele encontro e, por trás disso e mais próximo da verdade, pelo motivo simples e
real do surgimento da certeza do interesse de Paula por ele; ela, um pouco menos,
pois sentia já a vergonha de ter-se insinuado mais uma vez imiscuir-se naquele seu
prazer de estar ali:

- Isso é ótimo, mas é preciso repensar a originalidade da arte. Se hoje é


regra, é norma estética ser mais transgressor, como deseja nosso querido
vendedor à minha direita, então a grande, a última transgressão, não seria
deixar de se preocupar com isso? O paradoxo da velha insistência na
tradição do novo só pode ser resolvido pelo acolhimento das antíteses: o
novo é não se preocupar em fazer algo novo. E você sabe disso – disse
André apontando para o galerista – Se você não estivesse tão influenciado
pela vontade do mercado você se lembraria do que eu já te disse: a arte
está aí, no dia-a-dia, eis minha mensagem. Se já foi dita, que importa? Se
pode ser dita de maneira mais chocante ou melhor, outro o fará: isso é ser
contemporâneo – concluiu André em um falseio de humildade que não
possuía.
- Que belíssimo apanágio da mediocridade – aplaudiu com exagerado
entusiasmo o galerista, curvando-se em deferência e estendendo os braços
em sua direção, como se o apresentasse para um público imaginário – Se
você não testa seus limites, os limites da vida ou da sociedade, para que
fazer arte então? Por que não comprar logo terno e gravata e ir viver como
todo o resto, buscando a arte no dia-a-dia?

Paula convenceu-se de que em seus meios, em seus grupos sociais repetitivos,


ela caminharia para ser como aquele galerista: não nos seus arroubos, que eram
demasiados, mas naquela certeza de se ser – seria assim nas récitas quinzenais em que
se resguardava sempre muda, e seria assim, sobretudo, hoje: o único cuidado teria de
ser dosar a irritação de quem a circundasse, é uma arte sempre perigosa contrariar as
pessoas de quem se gosta. André, porém, não se deixava irritar: riu e balançou a

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cabeça, como quem condescende sem propriamente compreender que há muito por
trás do que é dito:

- Mas está aí o limite que eu testo: testo a necessidade do novo e dou em


troca a voz de um cotidiano superior. É a absoluta democracia da arte: em
um mundo em que é preciso sorte e marketing, qualquer um pode ser, na
direção contrária, um verdadeiro artista: basta conseguir desvelar sua
própria realidade.
- Tá bom, tá bom. Não vamos entrar nisso de novo – assentiu o galerista,
buscando a aprovação de Cássio por dar fim àquela discussão.

Os dois baixaram, enfim, depois de mais algumas trocas dos mesmos


argumentos, a guarda. O galerista repetiu o fato de que o colecionador, superado seu
descontentamento com a falta de transgressão, valorizaria muito sua obra, atrairia a
atenção de críticas mais relevantes e significaria seu ingresso definitivo em uma outra
escala do mercado especulativo da arte. André garantiu entender a necessidade de se
atentar para as preocupações mais pragmáticas e mundanas do meio artístico e
prometeu pensar em algo. Depois de mais um tempo, estavam já livres para se
despedirem, como fizeram, e Paula e André puderam partir, seguros da vontade
recíproca de estarem juntos naquela noite: além da ansiedade, só Cássio os seguia –
de longe.
O dia que fora cinzento, de nublado poluído, preludiou um princípio de noite
de céu roxo escuro, se iluminado pela luz difusa da cidade, e quase rosa, se visto por
alguma iluminação mais direta. Vislumbrado por entre galhos agitados pelo vento, ele
obrigaria quem para ele olha a inundar-se de uma vontade branca de não se sabe o
quê, tomado por uma paz do que não existe. Mas Cássio, Paula e André iam de metrô
e iam consternados, os últimos dois, por não saberem bem qual, como e quando tomar
a iniciativa que sabiam dever tomar:

- Gostei muito do que você disse sobre arte, lá trás – tentou Paula enquanto
aproximava seu corpo do dele.
- Ah, obrigado. Não sabia que você também conhecia tanto sobre arte –
agradeceu André, mais concentrado no assunto que devia evitar: o
galerista tinha mesmo a tomado por uma tal Maia?

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- Não conheço muito, sei mais das minhas leituras, é como um hobby.
Assim como entendo alguma coisa de fotografia, mas fotografia eu pratico
um pouco... Já você, devia criar um grupo, encontrar quem pensa como
você e lançar um movimento, um manifesto, você não acha?
- Não sei – começou André olhando quase para o chão, para os pés de
Cássio, seu amigo, homem que sabia viver, homem que já conversava com
a moça ao seu lado, homem de ação, que se sentara em um banco
propositalmente mais distante: também devia esperar a iniciativa que eles
sabiam dever tomar – Acho que a época de movimentos já acabou, cada
um merece ter sua voz ouvida, individualmente: isso é o contemporâneo.

Foi tudo o que se disseram: depositavam um no outro a esperança da


oportunidade que esperavam e confiaram ao barulho do metrô o preenchimento do
silêncio entre os dois – logo chegariam.
O destino era um pequeno parque incrustrado na mesma área nobre da cidade.
De onde estava marcada a reunião, ouvia-se ainda o barulho dos carros a acelerarem
nas duas avenidas que davam entrada àquele improvável oásis urbano. O local de
encontro ficava mais próximo da entrada sul, em uma pequena clareira gramada com
regiões calvas de terra marrom escura, cercada por árvores de diferentes tamanhos. Da
planície do meio, em todas as direções, erguiam-se dois degraus largos de terra
gramada, onde as pessoas acomodavam-se, de pé ou sentadas, quase todas com copos
plásticos de vinho à mão. Lá embaixo, revezavam-se poucas pessoas: quem se atrevia
a recitar já os primeiros poemas, os que os seguiriam, e aqueles que, não recitando,
desejavam comentar qualquer coisa com os primeiros. O público, embora não fosse
um espetáculo e embora qualquer um pudesse descer e se aventurar na poesia, o
público, concentrava-se no degrau mais alto do lado norte, com alguns poucos no lado
leste: e era naturalmente para essa direção que se recitava, à exceção de um ou outro
intérprete que dizia não fazer sentido não recitar seu poema de costas.
Paula cumprimentou discretamente algumas, pouquíssimas pessoas e, sem
saber mais o que fazer, indicou o degrau a leste, onde ficariam mais sozinhos. André,
igualmente desconcertado, teve por bem contrair as sobrancelhas e forçar um respeito
atencioso às palavras do jovem que anunciava o título de seu poema. Tanto Paula
quanto André concluíram sem se falar que o momento que buscavam descansava nos
breves interlúdios entre dois poemas recitados. Foi-se o primeiro e o elogiaram.

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Recitou-se o segundo e concordaram não terem escutado todos os versos. Ao terceiro
André quis saber se Paula conhecia o autor, que a poesia lhe havia tocado. E foi então
que entrou um jovem bastante parecido com André – muito branco como ele, embora
levasse o cabelo mais longo e tivesse-os castanhos, e não pretos – que deixou a
enorme franja cair sobre um olho só e anunciou teatralmente que recitaria uma criação
própria. Arranhou por fim a garganta, tapando a boca com o punho cerrado, e
começou:

Nosso lençol lasso sabe a seu corpo


de quando saíste fria de nossa paz quente
... Por nada!
... Por quê?

Mas ele sabe como eu sei.


E as rugas retorcidas do tecido
São ainda os montinhos níveos de suas espáduas,
Como são agora os sangues seus do amor nosso
Os botões dos seios meus que levas pros mendigos de lá fora:

Precipitas o infinito cá de dentro


em gotas sujas de tempo impuro.

Se ao menos fosses real!... Teu corpo, tuas nádegas


seriam...

Foi então: uma moça prorrompeu em fúria de sons e gestos enquanto


desescalava estabanada os degraus largos da cheia arquibancada norte. Atropelava
grosseiramente os coadjuvantes que tinham se virado estonteados para vê-la melhor, e
os empurrava como se fossem coisas, mas era linda. Praguejava no mais chulo dos
vernáculos e deixava escaparem punhados de saliva, mas era branca, e era linda.
Talvez fosse por isso que aquela caricatura de aedo calara-se em deferência, embora
não escondesse a irritação por ter sido interrompido. Talvez fosse também por isso
que os homens empurrados não reclamaram de nada, e prenderam o peito, e
sufocaram as piadas óbvias, e contribuíram sem o saber para a criação de uma

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atmosfera ritualística e superior, de uma expectativa mágica, como se aguardassem
ansiosos os próximos passos de um espetáculo sublime. E foi porque era branca, e
porque era linda, e porque usava, descolada, um curto vestido preto com botinhas
azuis, que André quis ver naquela cena insólita mais um quadro romântico que a farsa
desprezível a que Paula assistia. Ele cerrou novamente as sobrancelhas, cruzou um
braço por sobre a barriga para que servisse de apoio ao outro, suporte do queixo, e
tentou distinguir dos gritos confusos e abafados o sentido da crítica daquela moça
branca, e linda, e viva:

- ... esse mundinho de vocês!... não aceito, não aceito!... não pode ser... à
merda, vão à merda todos vocês! Até quando vão cantar essas múmias
pálidas que vocês querem na cama? O palor, a alvura, a leveza... não há
mulher nesses saraus?

O garoto – só agora ficava claro que era de fato muito garoto – sacudiu no ar a
folha trazida à mão, e retorquiu também aos gritos:

- Eu não faço política, minha querida, o que eu faço é poesia.

Paula tentou ainda em vão sussurrar qualquer coisa ao pé do ouvido de André,


qualquer coisa de outros carnavais, qualquer coisa de já conhecia e odiava as
gabolices daquela personagem falsa – qualquer coisa. Qualquer coisa porque para
André, ao menos assim lhe maquiaria sua memória futura, Paula já se esvaía em um
fundo indeterminado de cenário, que tomava aquela outra moça, a que avançava
felinamente sobre a planície central, por tema dominante:

- Ah, meu querido... Como te fazem falta uns bons poemas sobre costas
largas, peitos lanosos, uma barba por fazer. É uma pena eu não estar lá
para te ver derramar suas lagrimazinhas de pequeno burguês, as de quando
você descobrir que sua mãe, suas irmãs, sua namorada e sua esposinha
frígida sentem tesão. Sim, é essa a palavra: T-E-S-Ã-O. Tesão por outros,
tesão por muitos.
- Eu sei muito bem... – o garoto estufara o peito, interrompendo somente
para ser interrompido.

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- Você sabe, mas não sente. Quem sabe quando você sentir, você sofra um
pouco e comece a escrever boa poesia... porque isso, meu querido, é um
lixo!

Ela não se virou para o público, esbaforida e revoltada, como era de se


esperar. Baixou a cabeça e suspirou pensativa, como se só agora sentisse em si aquele
barroquismo quase incompreensível que ela ofertava a todos ali: atropelara rudemente
corpos e ideias, mas era delicada, tinha braços finos, e dava finalmente mostras de que
ela também, como toda a gente, lutava contra o peso imenso de sua aparência. Mas
durou pouco aquela sua ressaca: logo se agitou novamente, agora para andar com
pressa, trotando, a subir a pequena ladeira que levava à saída sul do parque. André
imaginou de longe, quase sonhando, que lhe acompanhava o passo: atravessava aos
olhos de todos a clareira central para ir atrás daquela suave figura de liberdade, se
despia, como talvez ela o fizera num instante, das óbvias expectativas emprazadas que
fazia sempre de si mesmo, alcançava quase sem fôlego seu alvo e, com deleite,
conhecia enfim alguém que já não fosse ele próprio.
Mas não o podia fazer, não tinha como. Não sabia quem a conhecia ali, quão
bem, ignorava de onde surgira, não tinha nem vislumbre do que significaria sua ação
aos olhos de todos. Mas tinha de ir para ser coerente consigo, com o que queria de si.
Mas e se falhasse, o que diria? Se ela o enjeitasse, julgando-o indigno de seu mundo,
como se justificaria? Enquanto estivesse ali, encastelado na fortaleza de seus planos,
podia brincar de razões: podia não conseguir o que queria essa noite de Paula, podia
fracassar em suas expectativas, podia até se envergonhar, mas seria tudo por se ter
metido em um mundo que não era seu, um mundo em que era preciso saber falar bem
da falta de qualidade de festas e de suas músicas absurdas. Ou então, se mesmo
conseguindo levá-la para casa e conquistando-a até o ponto da paixão, ainda lhe
coçasse a sarna da vaidade o fato de não ter causado uma boa impressão nos amigos
de Paula, poderia se convencer facilmente, sem agressões, de que não teriam
entendido o todo do que ele era, de que seu público não era mesmo o de aspirantes
fracassados a literatos. E falaria sobre isso na manhã seguinte com Paula, na cama
ainda sonolenta, em seu desejo apressado de controlar a narrativa que ouviria sobre
aquela noite. Mas lançando-se assim, de uma vez, de forma impensada, a uma
desconhecida que já começava a parecer-lhe de sonho e à qual entregaria a vara capaz
de medir em um só golpe o máximo do que ele realmente conseguia ser, como se

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justificaria? E o que diria, para Cássio, para quem quer que fosse, ou até para ele
mesmo, enfim, o que diria do que foi de seu encontro com Paula? Só um louco ou um
deus, se não são o mesmo, podem ter a coragem do fracasso absoluto.
Enquanto assistia àquela moça já quase a alcançar a avenida, riu da forma
concreta em que sofria seus devaneios mais distantes. Sentiu aos poucos surgir em si
uma moralidade supersticiosa: não podia se dar ao luxo de querer muito mais do que
já tinha sem ser punido, era claro, com muito menos do que merecia. E como deixaria
Paula para trás, só? Em que tipo de homem isso o transformaria? Viu seu ser açular-se
naquelas renitentes sendas sinuosas: tinha que falar com ela, quantas vezes o
maquinário do cotidiano travava com tanta força?, sentiu que a vida podia ser assim,
podia não se esconder na obviedade dos dias corridos, mas sim estar nos extremos não
alcançados, como não ir, não ia, não podia, como se explicar se não fosse, não ia –
foi: parecia-lhe ter cortado um laço de seu destino e, assim, não pôde nem se despedir
de Paula.
Ela tentaria ainda contê-lo em um gesto ridículo dos braços, mas acabaria
obrigada a apenas encarar a cena quase boquiaberta, gelada, sozinha: para não se
sentar em uma queda ao chão, acabaria falando com um grupo de conhecidos, que só
para os outros tinha por amigos. Cássio, que não estava muito longe, que ainda estava
só, o homem que sabia viver, não foi confortá-la ou fazer-lhe companhia: já tinha
cravado os olhos e uma conversa sobre um alvo melhor. Já André corria contra o
vento e contra uma ânsia desconhecida no estômago. Reparou o céu arroxeado, os
postes de luz, as árvores desequilibradas e os faróis rápidos dos carros, e sentiu-se
senhor de si, dono de sua vida que podia agora dar em todo rumo. Aproximou-se com
confiança, temia ainda com certo prazer o resultado de seu desvario, alcançou-a.
Era agora questão só de se cumprir seu fado: se até mesmo os maiores
disparates do amor eram vistos sob o pesado martelo da necessidade, o que se diria
deste que brotava verdadeiramente de um sonho feito realidade? Se já vira beijos
bêbados entre colegas medíocres transformarem-se em amores de vida e morte, por
que duvidaria do encontro de um pintor maldito com aquela obra de arte em carne
viva? Ela, que ultrapassava as convenções pelo respeito à poesia, que trazia à mão não
um copo de vinho, mas uma enorme garrafa de água, que também não precisava,
diferente de quase todos, de ser outra para enfim conseguir sentir. Embriagado de uma
confiança que não usava ser sua, ousou também ele, como ela:

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- Olha, eu podia te dizer mil coisas, mas vou falar só a verdade: eu queria
que você soubesse de mim. Eu queria você de algum jeito na minha vida,
eu queria te conhecer, do jeito que for, podemos sair um dia para
conversar?

Ela, com o olhar arregalado e visivelmente fora de foco, coxeou todo o peso
de seu corpo para a perna que antes não carregava nenhum – parecia não compreender
que os dois membros podiam dividir aquela função – e separou lentamente os lábios
cheios. Ficou assim por alguns segundos, demasiados para uma boca aberta, e voltou
a fechá-la. Aquela estranha hesitação foi suficiente para consumir a adrenalina e, com
ela, a confiança de André:

- Não, quero dizer... Vamos começar de novo: boa noite, meu nome é
André, estudei artes plásticas, sou pintor, ou melhor, só estudei artes
plásticas e não conhecia quase ninguém naquele sarau... Enfim, você
toparia sair para tomar um café comigo? Digo, como você se chama?
- Olha, meu nome é Juno, sou escritora, trabalho como jornalista, e se esse
café não for hoje eu estou mais que dentro – respondeu em paródia, no
mesmo tom maquinal de programa de auditório em que soara André e
fazendo esforço para dizer cada palavra.
- Juno, só Juno mesmo? Como a deusa? – emburreceu-se André na ânsia de
manter o diálogo.
- Sim, a deusa. Em pessoa – desatou Juno em uma crise de riso.

André não conseguiu romper o silêncio por uma segunda vez, estava a anos-
luz de sua zona de conforto e se constrangeria ainda mais ao reparar que Juno parecia
entretida com as curtas bufadinhas de ar em que se transformava seu riso, o qual só
mantinha agora para perceber o sopro do hálito em sua mão. Deixando a cabeça
pender infantilmente até quase o encontro com o ombro, foi ela quem retomou:

- Sua pálpebra é da mesma cor que o buraco do olho, buraco não, como
chama mesmo... Pupila! Sua pálpebra é da mesma cor que sua pupila. É
por isso que dá a impressão de que é fundo, essa pseudo-olheira com cara

57
de felino – André forçava um sorriso admirado, tentava uma feição de
homem encantado para além das bobagens que escuta.
- E nosso café, vamos ou não?

Juno fez que não com a cabeça, não, hoje não, mostrou com o dedo. André
abaixou a cabeça, deu com os ombros – julgou, sem refletir, ser hora de exagerar a
negativa para alcançar compaixão, fingir ser compreensivo para forçar justificativas,
em uma sombra distante do homem que pensava ser:

- Ah, desculpa, eu entendo. Cheguei sem mais nem menos, não fiz lá a
melhor apresentação. Se eu fosse você, também não ia querer sair comigo,
mas acho que a gente se daria bem. Muito bem. Mas de verdade, eu
entendo.

Ela parecia nem escutar e só pôs os braços para trás, torcendo o tronco de um
lado para o outro, o rosto em um ricto pensativo, e chegou enfim a uma conclusão:
saltitou para perto de André, desequilibrou-se um pouco, deu-lhe, fagueira, um
selinho, e repetiu que não com a cabeça, hoje não, mostrou com o dedo. Mas o
pequeno beijo já havia lhe incendiado de uma esperança inquieta:

- Mas se a gente já está aqui... Por que não sair hoje? – sua insistência não
surtia efeito: Juno era só repetir seus gestos de dedo, cabeça e tronco,
como em uma dança a uma música que só ela podia escutar.
- Um motivo, me dá então um motivo para não sairmos hoje – finalmente
conseguia uma reação: ela se aborreceu. Piscou os olhos com força, como
se tentasse acordar, endireitou o corpo, e foi se desfazendo da delicadeza
faceira de antes.
- Meu querido, como diz o outro, você não está vendo que eu estou sem
condições de não ir direto para casa agora? – André não via quase nada,
pouquíssimo, preocupado com seu porte e deslumbrado com o dela.
- Saímos um outro dia então, pode ser?

Podia. Trocaram os números de celular e riram juntos, pela primeira vez, da


chuva que ajudava a apressar o fim daquele encontro. Era também a primeira vez que

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tomavam rumos opostos um do outro. Cada um olhou para trás em um acréscimo de
despedida, e foram.

59
IV

Lançado em seu corpo de volta à avenida sentiu ressurgir-lhe, sem que o


houvesse conjurado, o demônio do destino individual e inefável, que vinha assim,
antes das palavras, possuí-lo em sua ausência de forma e tomar forma no caldo
amorfo e sempre solitário de sua própria história. Como podiam os outros julgá-lo
sem conhecerem o menino sozinho que fora, sem tomarem nota de sua família
perfeita e incomunicável, sem fazerem conta de seu estro torturante e inafastável de
artista? Como podia o mundo arquitetar aquela noite humilhante, com direito a palco
e público, pronta a raptar o único ser que já se aproximara do seu, sem deplorar nem
hesitar por um instante sequer a própria injustiça de o fazer com quem tão raro
conhecia a alegria?
Pouco importava: o final do campo era abrupto com uma fronteira bem
traçada entre flores e soturna e escura floresta, ensombrada por árvores de tronco
espesso e compactamente ordenadas. Só se prosseguia por um caminho estreito, de
onde não se via o sol, de onde sufocantemente só se via galho, raiz e tronco, e o
caminho mesmo, forrado por folhas de bordo. O cheiro acre era orgânico e morno. À
esquerda, ouvia-se, corria um rio. À direita, moroso, um outro. Este, imêmore,
parecia fluir morro acima, ferindo lei da natureza e razão humana, desrespeitando
toda ideia que se tenha de mundo. A partir da selva escura a senda era íngreme, mas
era o reforço do peso da carga anímica do viajante que tornava a subida
crescentemente intolerável.
Surgia a cada vez como uma indisposição generalizada, uma angústia que
sorrateiramente se espraiava por cada canto do corpo e assim alterava da alma todos
os sentidos. O odor parecia mais acre. O barulho do rio ia de acalmante a
inoportuno. A caminhada era só desgaste. O viajante então percebia que de sua
angústia se faria aflição, e tentava, cantarolando, afastar a causa de seu futuro
desolador. Ele sabe bem do que se trata. Conhece-se o suficiente para não querer
abrir a porta da consciência, para saber querer distância dos pensamentos que o
assombram desde lá no início. É como se tentasse segurar do pescoço para baixo
essa força de tristeza que já o tomava abstratamente e queria agora, contra sua
vontade, voltar a elevar-se à dignidade de ideias concretas.

60
E ao pensar sobre isso mesmo percebia já estar sua alma prestes a capitular;
ao pensar reflexivamente sobre o mistério de ser constrangido a lembrar, pressentia
já sua derrota para si. André agarrava-se a esse seu último lastro de defesa mental.
Só ia em frente por conseguir encavalar ininterruptamente ideia atrás de ideia, por
tentar fazer de seu fluxo de consciência um conjunto de vividos perpetuamente
voluntários, por impor-se incessantemente a pergunta de como um ato tão espontâneo
como parece ser o de pensar poderia levá-lo para além de sua autêntica vontade,
ainda que isso significasse somente repetir tantas e tantas vezes cada palavra da
pergunta, pois é sabido que entre o perguntar-se e o sequer se ousar a uma resposta
há um abismo imenso de – Sentiu de novo o frio e o escuro do céu sem estrelas.
Cerrou um pouco os olhos para fitá-la com um olhar de doçura proposital, abrindo
simultaneamente um calculado sorriso sem dentes, a sugerir um encantamento
dissimulado por aquilo que só fingia ouvir. Enchia-se de um apreço por si pelo apreço
que sentia por Juno – Não! À merda com essas imagens de merda. Ele só precisava de
uma ideia, era simples, era fácil, era só pensar em uma ideia e manter essa ideia na
cabeça sem pensar em outra ideia que não fosse essa ideia que queria ter.
Melhor ainda que fosse uma ideia sem forma, uma dessas ideias quase sem
imagem, que uma imagem se transforma muito rápido numa imagem outra, sem o
condão do querer, o que poderia acabar – Sentiu de novo o frio e o escuro do céu
sem estrelas – Merda! Era; absolutamente; impressionante; a maneira como; o ato de
pensar; pode ser; e é; constrangido; a despeito do querer. Gritava cada uma dessas
palavras em sua razão, a tentar circunscrever na representação dessas repetições o
limite de sua atividade mental. Mas era tão pouco para ele, justo ele naquele
momento de todo conturbado, que logo teve que se representar de novo o sentido
daquela frase e realizar como era absolutamente impressionante a maneira como o
pensar podia ser e era constrangido a despeito do querer.
E se não pensasse? Ora, se cada raciocínio que começava conhecia seu final
em um lugar que não queria, na cena festiva e lasciva que tanto temia, poderia tentar
não pensar. Poderia tentar abstrair sua mente de todo o conteúdo possível,
resguardando consigo só as mais vagas sensações de pensamento e aquelas ideias
inevitáveis, mas provavelmente fugazes, ascendidas dos sentidos, ocupando sua
inteligência – porque essa exige sempre uma ocupação – somente da atividade de
esquivar-se de ideias concretas: que devia ser, no mais, o que se chamava de não
pensar em nada.

61
Movido pelo sucesso desses novos empreendimentos, mas ainda sem percebê-
lo, continuava André a perscrutar as opções que lhe eram dadas no campo de seu
próprio juízo, e chegava agora surpreso a uma nova conclusão: ele não estava só
constrangido a pensar no que não queria, mas estava constrangido também a querer
– o que quer que fosse – em relação ao ato de pensar. Duvidou um pouco de si
mesmo, mas era isso: poderia querer rememorar a espúria noite que lhe afligia ou
querer invariavelmente não pensar nela, mas uma ou outra forma era ainda sem
dúvida uma forma do querer. Igualmente, se querer trazer ou não tal memória à
consciência lhe fosse inteiramente indiferente, essa seria também uma escolha de
uma vontade sua, uma outra, anterior, uma que decidisse entre querer preferir ou não
preferir o querer ou não do ato de pensar. E era de se supor que a cada regresso
desse que fizesse, uma outra vontade superior estaria já pressuposta, o que era,
porém, embora não se desse conta, uma abstração que já não tinha que ver com a
vida.
Enlevou-se com tais ideias e com a distância que construíra entre elas e
aquelas de que fugia, por mais que ainda as sentisse veladamente, por mais que
ouvisse os gritos abafados por si e clamantes por atenção. Chegara a uma conclusão
bela, superior, quase artística! Sentiu carregar em si toda a força do indefinido
envolta pelo infinito das inúmeras vontades reflexivas que podia alcançar com seu
pensamento. Não se podia condenar o passado se era ele que lhe permitia, não
importava com quanta dor, chegar àquelas ideias que lhe distinguiria de seus pares.
Não podia maldizer o que acontecera, não podia – e era isso que não podia mesmo –
arrepender-se de tê-la conhecido.
Orgulhava-se de não mais pensar naquela noite, em sua humilhação, na cena
horrível que flagrara. Orgulhava-se de só sentir com uma consciência difusa a dor de
cada detalhe do dia em que Juno – Ela recuou e seu recuo causou o dele: convenceu-
se de que pensar em Juno era já dispensar suas teorias. Pensava em Juno, e pensava na
paixão pura que tinham, nas manchas que nela ele tinha pintado, nos desgastes que ela
também já causara.
Perdera mais uma outra vez. Ressentiu de uma dor como se o vazio fosse-lhe
dolorosamente rasgando as entranhas, em um formigamento visceral para o qual
ainda não se tem nome; aquela lembrança derramava-lhe uma bile negra à altura do
pequeno vão que se tem no topo do peito entre as clavículas, e ia escorrendo
ardentemente por todos os tecidos internos, conquistando cada pequeno território de

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sua constituição e impedindo o funcionamento natural e indiferente de seus órgãos,
cada um em guerra contra todos e contra si, em uma batalha fratricida, como só
aquela dor podia causar: sentia o estômago como na pior das azias e o intestino na
mais grave das indigestões até que aquele movimento chegasse-lhe às suas partes, e
ele as sentisse como às vésperas do toque alheio ou em um breve ápice de ansiedade
sexual. Era um completo desregulamento de seu corpo por um sofrimento que lhe
monopolizava a alma e só lhe permitia o que fosse da dor, ou então de sua mãe, a
lembrança. Mas não! Ainda havia pelo que se lutar. Era do espontâneo ato de pensar
que se tratava. A dor e todos os seus componentes físicos eram impressionantes, sim,
sem dúvidas. Mas ainda mais impressionante era o fato de ser constrangido a
percorrer o caminho até ela. Sim, isso sim era digno de sua atenção – E André, ainda
alvoroçado, já conseguira sua cerveja e voltava agora em direção ao fumódromo,
passando pelas mesas ali postas – Não! Notável mesmo era como por vezes pensava
só no que queria, embora com as ideias indesejadas sempre à espreita, e como por
vezes elas subiam com toda força e plenitude à sua consciência e roubavam-lhe toda
a liberdade de seu espírito, deixando-lhe à mercê de sabe-se lá quais forças. Havia,
ora, tinha que haver uma diferença essencial entre essas duas configurações mentais
e não era hora de tratar com modéstia o que sentia ser as mais profundas
elucubrações de sua imaginação: um desses pensares era livre, sim, era essa a
palavra, livre!, e o outro não. Resolvia assim a antiga e, agora percebia, ingênua
contenda acerca da existência da tão sonhada liberdade humana.
Ela não era onipresente, absolutamente não era, como estava sendo obrigado
a descobrir por repetidas vezes, mas existia. Existia ali onde ele definia o seu pensar
por nada mais que sua vontade. Ali onde ele se sentia, com título legítimo, senhor de
si. Enaltecia duplamente seu ego: primeiro por chegar por si só à sublime asserção
da mais bela das faculdades humanas; depois, por se libertar por suas próprias
forças e por aquelas reflexões tão nobres, do tormento das imagens sombrias que lhe
acossavam em toda sua existência e provavelmente iriam acabar por lhe travar a
caminhada, que – Viu primeiro o branco desbotado do banco de plástico em que ela
se sentava contrastando com o negro vivo e reluzente do tal vestidinho preto que ele
já tanto nela elogiara e que, por sua vez, contrastava com a brancura do alto de suas
coxas, à mostra devido ao jeito displicente com que sentara. Tinha as pernas um tanto
abertas e...

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Não tinha mais força. Exaurira-se seu espírito. Arrastava seus pés morro
acima, mas já quase não lhe interessava se subia, se descia, ou se não saía do lugar.
Sentiu de novo, excruciante, seu corpo a desaprender sua harmonia, mas agora
aquela pontada asfixiante de melancolia aguda não se dissolveria tão depressa em
uma angústia perene e ainda dolorida, ficando ali por longos minutos a confundir-lhe
e torturar-lhe os sentidos. Se chegara àqueles pensamentos por sua vontade própria,
ela, esta vontade, devia sua existência somente aos pensamentos outros, indesejados,
que lhe chegavam pelo correio de uma memória involuntária: e lá se ia sua suposta
liberdade. Impressionou-se consigo como alguém que não se decidisse por volver,
margear o asfalto, afundar-se no banco do táxi até poder afundar-se em posição fetal
na própria cama, em um espetáculo de autopiedade, também o impressionaria. Era
sobretudo o fenômeno humano, irrisório se agora nele, que o extasiava. Orgulhava-se
da pertinácia anímica com que seguia, mas não dele mesmo: como poderia, afinal,
assoberbar-se de algo estranho a si?

64
V

Foi quando: ela era Juno, ele André, ela também André, ele Juno, ela e ele, os
dois. O encontro mais improvável, o milagre de todo acontecimento, um bater de asas
e não haveria mais convite para a festa da Faculdade de Letras, nem Paula, nem e-
mail; e um outro bater de asas e havia e-mail, mas não haveria café, nem galeria, nem
sarau, nem a mesma Lua arregalada que agora o fitando, tinha de a fitar também.
Tudo fora como um profundo sonho que os pequenos dedos das reais vergonhas não
podiam alcançar: a insegurança do flerte antes do beijo, as frases estupidamente feitas,
a falta de jeito na hora de dar lugar – a nau de detalhes que perfazem a vida
soçobrava na tormenta feliz de suas novas sensações.
Ele agora à janela era todo ser a luz envermelhada dos balõezinhos do bar, o
cheiro oriental de incenso, a pieguice de beber suave o vinho amargo com uma moça
à sua frente – porque ela era Juno e ele, ele de todas as pessoas, aprendera a beber
para fingir que bebia. E com o frio da janela aberta já não sentia vontade de fumar,
porque ele agora bebia e não mais fumava, e se lembrava daquele primeiro encontro
sem cigarro ou nostalgia: importava-lhe só o presente, nem para além nem para antes,
pois sua vida era o instante.
E de repente, o som estridente e excitante de mais uma notificação, uma
mensagem de Juno: estava já ali seu novo instante, estampado na tela estrelada de seu
celular – sairiam uma outra vez. O interesse estava plantado, o mínimo ofertado, só os
detalhes ou a vontade decidiriam se lhe cabia qualquer coisa além de mais um
fracasso humano de suas possibilidades. Mas muito antes que qualquer preocupação
se fizesse relevante, os cabelos do muro esverdeado de trepadeiras eram já os laços
macios de hera sobre a cabeça de Juno, e cada um de seus fios passava a ser também o
cheiro forte de pipoca e jasmim, subidos do carrinho e do canteiro – beijavam-se. Não
há quem pudesse sentir, talvez nem mesmo ver, mas as pupilas, indiferentes,
dilatavam-se em sincronia, os corações migravam já para a garganta, e um discreto
suor frio brotava-lhes nas palmas das mãos para ser dali espalhado para o enlace da
cintura, pelos quadris, e daí então, em uma dança consciente, ainda mais para baixo
ou lá pra cima.
Se a inteligência cética de André pudesse lhe flagrar aquele momento, dava a
tudo o nome de aparato, o aparato biológico da paixão, mas o nome não vinha ao

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caso, pois agora não, agora era só poderem subir ao seu apartamento, era ele ser ali do
lado, era ser só para conversar, mesmo que nada fosse acontecer, para beber qualquer
coisa, por que não, não queria ser chato, era todo não insistir. Não entendeu por que
recontar os tais erros do passado, os convites que não rejeitados deram em pecados,
para que dar azo, agora, ora, às primeiras dentadas do ciúme? Bastava dizer não e era
isso, mas não era nada: importava-lhe só o presente, nem para além nem para antes,
pois sua vida era o instante.
E outro dia em seu apartamento sozinho, vazio como nunca antes, agitado
diante da tela em branco porque pintaria tudo aquilo, tinha de pintar, não era o babaca
monstruoso e pretérito que quase forçara o sexo sem camisinha quem dominava seus
pensamentos, mas as veredas deliciosas de suas novas descobertas: lembrou-se de
como iam se dizendo em carícias, discretas, e tocando-se em pequenas exposições
de alma, quase sinceras, pinçadas como em artesanato as mais íntimas que
podiam ainda ser belas, nesse intrincado jogo de sedução em que a estratégia não
carecia da conquista, e a verdadeira conquista era a própria estratégia. Do
passado de Juno ainda obscuro, mas já confesso, riu: riu da ingenuidade travessa com
que lhe contava qualquer coisa. E era só.
Então chegaram as semanas, que davam em dias antes odiosos, que
desaguavam em feriado afastados. Juntos, viviam plenos cada momento; distantes, o
mundo de André ia colorindo-se de Juno: a lingerie rendada da vitrine casaria com seu
corpo, sua colega fazia as unhas no mesmo salão que ela, ele tinha mesmo de almoçar
com menos pressa. Amava-a, era claro, amava-a, que fosse bem-vinda de volta essa
dor do supremo prazer! Mas o amaria ela também? Ainda nunca se o tinham dito, tão
ocupados em viver. Será que ainda amava alguma figura do passado de quem nunca
lhe falara? Teria tido algo com seu chefe, cujas histórias admiráveis nunca deixava de
contar? Encontrava já pelas primeiras vezes o entrave da dor e do receio de se amar
alguém mais e melhor do que se é amado: “Estou gostando muito de você, minha
pequena”. Ela também, garantia, mas nenhuma palavra mais.
Mas mesmo antes de se jurarem de amor lançavam-se já à cumplicidade de
clichês e indiscrições, sem deixarem de, a cada novo evento, no restaurante ou ao
teatro, contarem cada pequeno desvio calculado à mitologia imaginada de todo casal:
assim, a mão sob a saia imprudentemente sem calcinha de uma das primeiras idas ao
cinema virava logo um deus próprio, como a colher de sopa dada à boca da enferma
se fazia também imagem de uma nova divindade inventada. Mais ainda, tudo ia se

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operando só pelas frestas e caves da consciência, abençoadas, pois que as horas se
enchiam inteiras sem que se as sentisse, e os dias eram tão fechados em si quanto era
impossível não sentir o gosto natural de uma nova eternidade.
Bastavam-se os dois, juntos e a cada um: a foto de casal no topo dos
monumentos, os jantares à vela e vinho na Europa, o sono abraçado sobre a relva
enluarada – faziam-no tudo sem saírem do apartamento de André, de pijamas, um a
ceder ao estranho sabor de pizza do outro: “Preciso te dizer uma coisa, pequena, não
consigo não ser sincero com você”, o ar enchia-se de uma gravidade fria e Juno
deixava de comer, prato ao colo: “Eu te amo. Te amo muito, te amo mesmo, te amo
mais que à vida”. O tempo parecia parar naquele sorriso encantado, na mecha de
cabelo desviada do rosto: “Lindo, eu te amo também”. Ventou alegria na sala abafada
de André, mas o homem não se sabe contente: “Eu já não consigo imaginar minha
vida sem a sua, eu já não preciso de mais ninguém, só de você. Eu e você”. Juno
fitava-o reto nos olhos, encarava sempre mais a vida que as coisas: “Ô, lindo. Eu já
nem quero imaginar minha vida sem a sua”. Alegria retida de passado e atormentada
de futuro, não falara palavra sobre os outros: talvez ele lhe fosse já necessário, mas
não era ainda suficiente – amava-a tanto naquele instante, ela com sua camisa social e
sem sutiã, ela só de calcinha, que venceu o orgulho de ser necessário à humilhação de
sua insuficiência. Ouvir aquelas palavras era por si só um milagre, venceria os outros
pelo tempo.
Era ao menos assim que se lembrava ele daquela noite, e não tendo
ninguém mais visto o que só ele viu, sofria agora sozinho os prazeres de sua
memória: eis a origem dos mistérios e martírios da existência. Mas mistério de
outro tipo era a pena de ter de deixar a lisura e maciez daquelas costas bem brancas à
companhia solitária de seus cabelos castanhos, ondulados no topo, já quase em cacho
nas pontas. Beijava em silêncio toda sua nudez, embriagava-se do cheiro quente de
sua pele sob a coberta roubada e ia ganhar as ruas: preferia ser o eterno assistente de
seu professor na Belas-Artes que arranjar-se qualquer emprego mais bem pago no
Museu de Arte Moderna, como lhe propusera Cássio, amigo com raízes mais na
diferença que no acordo.
O vento era de um frio antigo e o céu existia só como firmamento de fumaça
estática, sem vida: era um dia que obrigava à marcha lenta e, com ela, ao gosto de
infância rediviva. E André ia por ele como se voltasse, depois de muito, ao seu
subúrbio natal, e redescobrisse ali em cada irrelevante detalhe a importância

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encantadora das miudezas que compunham sua antiga rotina: o aroma infantil de pão
fresco que sua mãe mandava buscar; a colorida padaria, interna ao condomínio; a
ansiedade inquietante do primeiro dia de aula de cada ano, único aliado no combate
ao sono escuro do horário de verão; a alegria de gastar o tempo que não lhe faltava a
ver a rua agitada em horário de aula cabulada. Sentia em tudo uma completa harmonia
e em toda harmonia, o nostálgico defeito de não poder compartir também aquele
sentimento e, ao lado dele, todos os meandros decisivos de sua vida, com Juno, a
menina a que já tanto amava.
No caminho de seu passo leve surgiu então uma negra bastante enrugada,
retorcida em sua corcunda e sentada na calçada. Mais que os panos de prato vendidos
a um preço irrisório, denunciava sua pele de sulcos sujos e sofridos a sua infância
conturbada, refletida como sombra sobre a criança pé descalço ao seu lado, com idade
de sua neta. Deu-lhe o valor pedido, Deus abençoe, e recusou o produto da venda.
Não é que lhe dava esmola, queria apenas mostrar que a compreendia de maneira
profunda: “Meu filho, que coisa linda, que Deus lhe guarde todos os dias por ajudar
uma pessoa assim”. Foi o que lhe disse outra senhora, esta branca e muito arrumada,
orgulhando-se daquilo que, parece, ela mesma não podia fazer. André olhou para o
chão, mas tinha a alma altiva – trazia de novo a certeza de um destino seu justificado
e magnífico: se Juno gostasse também de outro, que lhe importava? Era um artista,
tinha um propósito, era um homem bom: afinal, bastava-lhe só o presente, nem para
além nem para antes, porque sua vida era, embora cada vez menos, o instante.
Depois de gasta a manhã, inteira dedicada à busca dessas sutis belezas que
oferecem a cidade grande, certo de que flanava em justo culto ao ócio e à espera de
uma genial inspiração – de resto, à melhor maneira de se tornar um genial
vagabundo – André foi ter com o seu professor. Trataram apenas das burocracias do
novo semestre, não passaram por nada que pudesse fazer par ao enlevo superior que
sentia, e, embora André se mostrasse enfaticamente solícito, foram breves, não
podiam ficar muito tempo, tinham que ir – o que era, em verdade, só frase feita, já que
de tempo, dispunham ambos às sobras.
Como tivesse a tarde toda livre, que quarta-feira era seu dia guardado só para
criar, André resolveu repetir para si a bondade de crer no próprio sacrifício altruísta:
atenderia aos pedidos de visita de sua mãe. Fazia bem uns meses que não a visitava
sem pressa e já era tempo de ir lhe garantir que estava feliz – o que fazia sempre
fingindo, claro, mas não dessa vez, pensou:

68
- Mas que alegria, meu filho! Como anda meu artista predileto?
- Bem, mãe. Estou bem mesmo, de verdade – respondeu André, sem
impedir que a ânsia de se mostrar honesto acabasse por lhe fazer soar
falso.
- Que bom, Dedé. Olha, você não morre mais, viu? Acabamos de falar em
você, agora mesmo.
- Meu pai está aí? Ele não estava viajando?
- Não, André. Acabei de desligar a ligação com seu irmão e adivinha...! –
tentou atiçar-lhe a mãe para dissimular a tristeza por não fazerem mais os
irmãos questão nem de se darem as notícias mais importantes.
- Que foi agora? Ele vai ser pai de novo? – adiantou-se André para
menoscabar aquela e qualquer outra hipótese, que lhe seria naturalmente
inferior em surpresa.
- Isso! Não é o máximo, Dedé? – confirmava sua mãe antes de se lembrar de
finalmente lhe soltar as mãos e despir-se do avental vermelho que lhe dera
o marido de aniversário: André apiedou-se da maneira que se infantilizara
a mãe desde a já remota saída dos dois filhos de casa.
- É sim, mãe. Legal demais.
- Então fica mais animado, menino! Garanto que quando seu irmão for tio
ele vai fazer questão de te visitar... Mesmo se isso demorar e você já
estiver morando fora, artista de sucesso internacional.
- Eu fico feliz por ele sim, mãe – interrompeu André, ríspido – É o máximo
mesmo para quem sonha em ter essa vida mais tradicional do meu irmão,
mais assentada, com aquela coitada cuidando dele e dos filhos. Depois ele
fala que eu é que nasci com o atraso de um século.
- Contanto que todo mundo esteja feliz! – levantou-se a mãe com a voz
emocionada, em direção à cozinha.

André não sofrera ainda bem o bastante para perder a empáfia de se julgar
portador de uma visionária inteligência emocional simplesmente por refletir sempre e
morosamente a ação dele e dos outros, o que era, no fim, fazer da consequência
verdadeira causa de uma conclusão presunçosa e falsa: refletia muito justamente por
lhe faltar uma empatia mais direta. Mesmo do alto de seu orgulho ilegítimo, contudo,

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sentia ele ter de confessar uma lacuna: escapava-lhe quase de todo a vida emocional
de sua mãe. Seu universo parecia resumir-se, em essência, à felicidade antes
impossível dele e de seu irmão, salpicada com o tempero fácil porque rotineiro da paz
conjugal, e era tudo. Reconhecia faltar-lhe maturidade para saber se era esse seu
teatro, a que representava com fé, ou se era isso mesmo que fazia o amor de mãe.
Porque fora ali para amar e, na falta do principal, ao menos para demonstrar que em
geral a amava, foi socorrê-la cheio de culpa com o acessório:

- E você, mãe? Falando sério, e você? Tá bem, mãe?


- Claro, Dé. Ora, essa. Estou bem sim – respondeu a mãe enquanto analisava
a disposição do filho – Precisava falar uma coisa com você... mas pode ser
depois também, você parece que está com uma aura boa, deve ter muita
coisa para me contar – atalhou julgando que se precipitava.

Puseram-se a arrumar a mesa de centro da sala de visitas, rodeada pelos dois


sofás de linho bege e pelas poltronas de encosto baixo e pés trocados por lâminas de
madeira, sinuosas e articuladas, resultados da paixão da mãe pela arquitetura
moderna. André engajou-se naquela tarefa simples, buscou toalha, arguiu onde
ficavam agora as xícaras, fez café:

- Mãe, antes de você falar, só porque a gente nunca deixou as coisas mal
conversadas entre nós dois, não sou meu irmão não: vou parabenizar o
casal, sim, depois ligo para eles. Às vezes parece que você fica
decepcionada por eu não querer as mesmas coisas que ele, é um pouco
irritante. Mas eu estou bem, mãe, você mesma percebeu.
- Eu sei, Dé. Não estou falando nada.
- Mas estava, mãe. Você sabe que estava – a persistência da tristeza de sua
mãe, acuada, exasperava-o sem motivo.
- Tudo bem, André. Eu só não entendo exatamente o que você quer para
você mesmo. Eu me preocupo, mas...
- Nem eu sei, mãe. E é isso o que eu quero: eu quero não saber, eu quero
descobrir as coisas sozinho para poder criar algo novo. Não era você que
sempre dizia que eu era capaz de muito mais, que eu era brilhante, que eu
podia ser diferente?

70
- Não precisa ficar nervoso, Dedé. Estamos só conversando – admirava-se,
como fazem as mães, isto é, dando a pouca importância que lhes permite o
costume, da rapidez com que André ia da calma carinhosa à defensiva
áspera e agressiva; ignorava, como ignoram as mães, que o homem tudo
faz para evitar ser medido em sua intimidade, e que eles, os filhos, intuem
sem confessar que elas, como mães, nunca perdem o acesso transparente
às suas verdades – Eu só não quero que nessa sua guerra declarada e
ingênua a tudo o que a sociedade já construiu você deixe de aproveitar as
coisas boas, as convenções que deram certo, as...
- Ingênua? O que você tá querendo insinuar?
- Não sei, Dé. Ninguém vive fora do mundo, nem quem deseja criar. Um
emprego normal, que você tanto abomina, pode ensinar...
- Eu já disse que se você não quiser me ajudar em mais nada eu não preciso,
mãe.
- Posso terminar de falar? Sua geração não se conforma só com um
emprego, eu entendo, e você não precisa se conformar mesmo, André. Mas
ter uma namorada direito, casar, ter filhos...
- E agora de repente o casamento é a maior maravilha? – atacou André uma
mãe que já levava a mão à boca pela segunda vez, em uma careta, como se
engasgasse com seu café.
- Tem seus defeitos, André, como tudo na vida. Mas foi o que a humanidade
melhor encontrou ao longo dos séculos, não foi? A que mais perdurou, se
não funcionasse...
- Como se todo erro em que nossa sociedade insistisse fosse bom. Que
absurdo, mãe. Não dá para discutir com vocês – sua mãe calou-se,
tentando em vão acalmar seu filho – Crime passional é tão comum que era
causa de absolvição até o século passado, as pessoas deixam de viver, de
viajar, de se realizar e de se apaixonar de novo porque têm um marido em
algum lugar: o casamento cria um casal, mas diminui as pessoas, mãe.
Uma colega minha teve de deixar de ir à academia, porque o marido
cismou com um instrutor dela. Onde é que funciona a instituição do
casamento monogâmico nisso, mãe? O conservadorismo dessa casa é
sufocante – esbravejou André, com mais raiva de si que da discussão.

71
- Mas aí o problema está mais nessa amiga que no casamento, não é, filho?
– tentou fazer rir – É questão de rever essas amizades, você anda mesmo
com gente assim?
- Não – soprou desarmado – Mas é tão verossímil que tem de ser verdade. A
maior parte dos casais só aceita um pacto de manter a conveniência do
inferno de seus casamentos para evitar as complicações de quebrar o pacto
inicial. Casamento só funciona o seu, mãe, e olhe lá, aos trancos e
barrancos – tentou brincar também.
- Só não quero que você confunda sacrifício com mérito, André – decretou a
mãe lutando por um tom professoral, com seus ares de psicóloga, como se
fosse ele mais um de seus pacientes: André, dessa vez, quis perdoar esse
seu cacoete – Nem no seu trabalho, nem em sua vida pessoal. Não me vá
sair um cristão, hein? Faz sempre o que for melhor para você, filho.

Mal pudera discernir as últimas palavras daquele conselho, tão embargada a


voz de sua mãe. Não conseguia entender o que dissera demais, mas pedia desculpas,
era só uma brincadeira, não era para tanto, que viesse ali, em seu abraço: já
naturalizara as pequenas e recorrentes agressões que o amado faz a quem ama, porque
pode e porque quer, pela gratuidade de se elevar assim. Mas fora tão grande e
repentino o susto do princípio de choro que se fizeram variadas as desculpas e vários
os abraços, e, pelo condão de ser mãe, valeu mais a sinceridade do arrependimento
que a falsidade da promessa de não se repetir aquela rispidez: logo voltavam à
normalidade dos assuntos banais e familiares, à enumeração desatenta do que fazia
cada parente, à opinião crítica sobre um e outro, a alguma atualidade política.
André trazia, clandestinos nas algibeiras dos pensamentos, dois tópicos
escondidos, um por prazer e outro, por vergonha: deliciava-se por ser tão mais que o
que a mãe podia ver, por poderem os outros enxergar só a casca de um fruto que se
resumia agora à paixão, à beleza, e à perfeição única de Juno; mas se arrependia ainda
mais da altercação que causara por agora precisar, de fato, de mais dinheiro. Sem
poder tirar em palavras nem um nem outro, achou-se um terceiro: mudara muito sua
concepção estética, previa um período bem produtivo para sua obra, encontrara
finalmente o que tanto procurava na arte. A mãe alegrou-se com aqueles farelos de
intimidade, chegou a fingir entusiasmo, e aproveitou para contar dos novos cursos que

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faria, da redescoberta de seu interesse pela profissão, da possibilidade de voltar a dar
aula: estava animada como há muito não se sentia.
Mas André já não ouvia nada. Seu corpo voltara a ditar o sentimento, a mente
librava-se como em um breve torpor de baixa pressão e sua presença, inexistente,
esmoreceu para longe dali: “faz sempre o que for melhor para você”. Sua atenção
esgotara para as coisas que não eram do amor, para as coisas que não eram de Juno, e
era isso o que faria, era o que queria – lembrou-se do miúdo bilhete em papel amarelo
que ela deixara entre suas tintas: que seja eternamente belo como você me ama, um
pequeno ajuste de um verso alemão: que seja eternamente belo como você me ama.
E que maneira mais bonita de amar agora que só um ao outro, que podiam
fazer de melhor que consagrarem ao ápice da paixão uma promessa de fidelidade com
o prazo só do sentimento? Talvez se limitasse a lustrar de dourado a vergonha de seus
medos, mas não lhe importava: faria um discurso solene, teatral, forçadamente
antiquado; adaptaria à natureza surpreendente de Juno o seu pedido formal de amor.
Melhor, faria também um jantar para ela – e hoje. Percebeu então que tinha de sair
logo dali, pesquisar uma receita, passear cantarolando pelas gôndolas do
supermercado, ir buscá-la de surpresa na porta do Jornal:

- Mas, enfim, isso eu te explico melhor depois. Agora eu preciso mesmo


discutir uma coisa com você, Dé.
- Oi, mãe?
- Eu preciso falar com você, lembra que eu comentei?
- Nossa, mãe, desculpa, mas eu não posso. Não posso mesmo, já fiquei mais
do que eu devia, tenho um compromisso agora – disse André, já se
levantando.
- Mas eu fiz bolo para você. Come mais um pedaço, Dé, por favor. Eu estou
tentando falar com você já faz quase um mês.
- Mãe! Você nem sabia que eu vinha quando você fez o bolo. Eu volto
amanhã, juro, sem falta. Eu tenho coisa pra resolver, é urgente.
- Filho, eu tenho que falar com você hoje. Eu ia te ligar quando você
chegou. Por favor, eu tento ser rápida.
- Não faz drama, mãe. Passo aqui de manhã, juro. Dá para esperar até
amanhã de manhã, não dá? – despediu-se, com um beijo rápido no rosto.
- Dá sim, filho. Até amanhã, então - recompôs-se sua mãe.

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E tudo correria magicamente como planejado: a simpatia da mulher do caixa,
a beleza das pessoas na rua, as mãos seguramente dadas com Juno. Só foi demasiada
sua insistência em passar em casa primeiro, coisa rápida, uma ducha e uma muda de
roupa, bem que ela podia ceder um pouco também, sempre tinha de seguir seu próprio
roteiro, mas não era nada: bastava-lhe só o presente, nem para além nem para antes,
porque sua vida era o instante – e uma excitação prazerosa com o futuro próximo.
Logo sua vista se resumiria à bancada de ardósia de sua cozinha, embotada por
trás da calça de pano verde, recoberta de pequenas estrelas que subiam concêntricas
em sua perna, e que ia terminar na cintura curva e despida de Juno, onde só um pouco
além vinha cair sua blusinha branca de pijama: era a própria felicidade visitando-o em
casa.

- Não sabia que você era especialista na cozinha também. Eu é que devia
cozinhar nosso jantar.
- Não sou especialista, besta. É que tem que ficar mexendo pelo menos a
cada regada, senão queima.
- Típica conversa de especialista... Você está linda, sabia, chef? – disse
André, enlaçando-a por trás e puxando-a para si.
- Brigada... – respondeu Juno quase cantando, angelical.
- Não precisa agradecer, lindinha... Não estou te fazendo nenhum favor.
- Mas me elogiou, seu besta – André já não se podia em repouso, tirou-a
para dançar ao ritmo suave que vinha de seu laptop: rodopiaram sua
apertada cozinha americana, tentaram contornar o balcão e emaranharam-
se nos fios do carregador; o tropeço fez-se em beijo, o momento fez-se de
íntima cumplicidade, e o ridículo, em crise de risos – Por que é que eu
estou linda?
- Porque você é linda, Ju.
- Eu passei o dia correndo naquela redação, você nem me deixou lavar o
cabelo e mesmo assim você disse que eu estou linda...
- Se você é linda, e você é um fenômeno de lindeza, então você sempre vai
estar linda, como você está agora.
- Ah!... Entendi – respondeu, soltando-o.
- Que foi, Ju?

74
- Nada. Só fiquei um pouco sem ar. Tem como você abrir a porta da sacada?
– aluiu ao sofá, com as mãos a massagearem a cabeça.
- Quer tomar alguma coisa?
- Então sempre que você disser que eu estou linda significa só que eu estou
no meu normal, como sempre, que por acaso você acha que é bonito –
levantou-se Juno.
- Para, Ju. Você adora me deixar sem graça com essa sua brincadeira de
levar tudo no sentido literal.
- Mas não é uma brincadeira, André, isso é muito sério. Queria que pudesse
ser diferente.
- Ser o que diferente? Como não é uma brincadeira, Ju? É muita besteira, é
muita vontade de ter o que achar ruim.
- Não estou falando isso de ser linda ou não, isso pode até ser besteira
mesmo. Mas você não acha assustador conviver com uma pessoa, com
várias pessoas, que ficam com os olhos arregalados em você, te vendo, te
encostando, sem que você faça a mínima ideia do que elas estão pensando?
As pessoas conversam com você, invadem seu ouvido e sua vida, e não
tem como você saber o que elas estão querendo dizer. Não gosto nem de
falar, mas... É horrível não saber quem elas são. Queria que com você
fosse diferente.
- Você só não sabe o que elas estão dizendo quando você faz esses seus
jogos de palavras, quando você faz questão de não entender o que já está
suposto no que as pessoas falam.
- Mas como? Como? Imagina que eu suponha errado o que está pensando
uma pessoa quando ela me diz uma coisa que ela diz sempre. Imagina que
eu tenha toda vez uma reação que ela julgue coerente em relação ao que
ela está realmente pensando. Nós dois vamos achar que estamos
conversando, vamos nos conhecer, nos divertir, mas ela é uma estranha!
Completa e total estranha! Como eu vou saber se quando você fala que eu
estou linda é porque você reparou e se surpreendeu com alguma coisa em
mim ou é porque você achou que a gente estava distante ou porque eu
precisava de um elogio? Não é um jogo, André, é assustador... – Juno
concluía quase num grito de choro, abraçando-o por cima de seus dois
braços e deixando seu rosto encastelar-se em seu ombro.

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- Calma, Ju. Vê como os quadros são melhores que os livros? – brincou –
Um quadro, uma música, expressam um sentimento quase sem
intermediário. É como se você extraísse de dentro do seu corpo o órgão
que está sentindo e o deixasse falar, é o acesso absoluto aos significados
absolutos. E você que me mostrou isso de novo, Ju – tentou distraí-la.
- Foi mesmo?
- Claro. Você me mostrou de volta o que eu tinha deixado de ver. Podiam
queimar meus quadros antigos, sou outra pessoa.
- Você devia escrever um manifesto, um artigo, sei lá. Parece tão cheio de
ideia.
- Eu vou. Você mesma já me deu essa ideia, outro dia. Preciso só achar as
pessoas certas, tentar entender melhor o que eu estou pensando. Desde que
te conheci não consigo colocar muita distância entre o que sinto, sou e
penso, não sei. Mas vou...
- Você me promete uma coisa? – perguntou Juno em novo desabraço,
segurando-o agora pelas duas mãos – Nunca se acostuma a falar que eu
estou bonita, Dé? Fala o que você estiver pensando mesmo, sempre, ou
então não fale nada.
- A promessa já estava suposta, doidinha. E você está linda porque com esse
rosto corado do calor do fogão, e esse bracinho delicadamente para trás
toda vez que você vai mexer o risoto, você fica parecendo uma, uma... uma
princesinha austríaca!
- Deus me livre, estou muito nova – riu Juno, transformando-se de repente,
como um cão que, tendo se exaurido em latir desesperadamente a uma
ameaça apenas ilusória, voltasse a correr despreocupado pelo gramado –
Que os outros façam a Guerra, tu, Áustria querida, casa-te. Eu, hein. Sou
mais da guerra – disse levantando a guarda de luta, com os punhos no ar.

André abriu um largo sorriso, mais uma vez sob o encanto do jeito amaneirado
com que Juno recitava suas frases históricas ou literárias que trazia sempre à mão.
“Casar não faz mesmo sentido. Mas namorar quando se está apaixonado...”: Não. Ela
merecia, e provavelmente exigia, uma introdução mais poética:

- Casar, nunca?

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- I never make plans that far ahead, my dear.
- Mas, então, me diz, não significou nada o que você me disse ontem à
noite? – persistiu André, orgulhoso por lembrar-se da referência: fora o
primeiro filme a que assistiram juntos.
- That’s so long ago I don’t remember – nisso não custava acreditar – Esse
vento é de chuva.
- Melhor fechar a sacada, senão agora mesmo esse lugar está infestado de
mariposa – disse ao dar-lhe um beijo.
- Não. É vento de chuva de pingo grosso. Elas vêm quando é garoa fina –
disse Juno de costas para o apartamento, num grande suspiro boquiaberto
que parecia tentar tragar a noite.

Não importava como, tinha de tê-la para si. Envaidecia-se de ter ao seu lado
uma eterna menina sobre a qual nunca podia decidir se acreditava nas coisas que
dizia, e então cria prever o tempo e o comportamento dos insetos em uma cidade tão
urbana que a nada obedecia, ou se falava as coisas só por as julgar belas: estava já
enredado no movimento tão comum de perder o sentido do amor por deixá-lo crescer
para todo lado:

- Você acha mesmo que tatuagem de mariposa já é muito batida? Por que
você acha que não ficaria bem em mim?
- Nunca disse isso, Ju. Quer fazer um teste para acabar de vez com essa
dúvida? – Juno torceu o tronco de um lado para o outro, instando com a
animação de uma criança como aquilo seria possível – Pega o nanquim
que eu desenho em você. Tá na segunda gaveta da cômoda.
- Já pensou? Eu andando por aí com o símbolo do amor orgíaco e
inconsequente, desenhado por você, na base das costas? – André virou-a
sob o pretexto de analisar sua nova tela.
- A mariposa não significava transformação, metamorfose, a sua mudança
de lagarta imatura em bruxa alada e gauche do amor?
- Não! – negou tão solenemente que André já cruzara os braços e esguelhara
o olhar, ansioso por sua representação – Isso foi o que eu pude enxergar
durante a Grande Guerra das Mariposas: era a minha verdade, sim,
confesso que era, mas era uma meia verdade. Alcancei a sabedoria plena

77
só depois, durante aquela que viria a ser chamada de Segunda Guerra das
Mariposas, ocorrida essa semana mesmo.
- Você precisa fechar aquela sua janela.
- Silêncio! No meio da batalha com o Primeiro Pelotão é que me veio a
essência dessas criaturas. Elas me ignoravam, elas ignoram sempre, e tudo.
Ignoram todo o resto que não seu objeto de desejo, voam obstinadas para a
luz e não se importam com os repelentes, raquetes ou chinelos da vida;
batem as asas convulsivamente, compulsivas, em volta do fogo que é a
lâmpada e o mistério, até serem consumidas pelas labaredas que tanto
amam... Como fui?
- A coisa mais linda que eu já vi. Linda, porque você...
- Pssss – repreendeu juntando-lhe os lábios com o indicador – Não precisa
explicar, besta.

Um beijo estalado e um trote pelo corredor, a busca do nanquim. Como


convencer a mariposa quase mágica de que fogo, agora, só devia ter um? Melhor que
deixasse para outro dia, ao menos para mais tarde, era hora só de se provar à altura
por sua ideia da tatuagem, fingida espontânea. Mas não foi com nanquim que saiu
Juno do corredor: trazia na ponta dos dedos um retrato feito a lápis, um estudo de
rosto e sombra, com um fundo falso de persiana estampada de rosas, cada uma
intrincada na ponta de outra, em caleidoscópio:

- Não era nessa gaveta não, Ju.


- Quem é ela?
- Bem feinha, se te tomar de base, né?
- Era colega sua?
- Foi um exercício que a gente teve de fazer bem no começo do curso.
Como a gente ainda não tinha modelo, cada um combinou de posar para
outro colega.
- Ah... – suspirou, sentando-se no sofá – Achei que fosse alguém que você
tivesse amado, um retrato apaixonado, uma namorada sua – André
estremeceu com aquela palavra.
- Se tivesse sido, eu teria que contar? – consultou André, mais interessado
no problema que na resposta.

78
- Você não tem que fazer nada – desinteressou-se, olhando de novo a
escuridão pela porta de vidro da sacada.
- Tenho sim, prometi ser sincero com você. Nessa época estávamos
começando a sair, mas não durou muito, pouco menos de um ano.
- Jura?! – levantou-se em um pulo – Não consigo te imaginar namorando,
como era? Não, como ela se chamava? Só me conta se eu acertar – olhou
bem para a folha, dedo ao queixo – Patrícia? (- Não), Marcela? (- Não),
Bárbara? (-Não). Hmmm, Januária? (- Januária?! Não, claro que não). Ah,
desisto. Ainda vou conhecer esse André namorado também – um salto no
coração – jovem André, namorado da amiga da Escola de Belas-Artes.
Posso ficar com o retrato?

André disse que sim e amuou-se em uma cadeira à mesa. Entrou a morder
a cutícula, e depois todo o canto de seu polegar: era o que lhe restava da falta
da companhia do cigarro. Resignado do insucesso de seu plano, já pouco lhe
importavam os rumos do jantar:

- Você fica chateado de eu falar dela, Dé? É falta de respeito com sua
memória dela?
- Não, claro que não.
- Então, por que você está assim? – sentava-se no seu colo, insinuando-lhe o
corpo.
- Não estou de jeito nenhum. Não é nada.
- Está sim, me fala o que foi, lindo – trouxe de volta o rosto, que afundara
para lá de seu ombro – Você queria que eu achasse ruim ter encontrado o
retrato!
- Não é isso. Mas é estranho você não se incomodar, não é?
- Não acho estranho, Dé – usando só o enlace de seus dedos por detrás de
seu pescoço como contrapeso, deixava seus rostos a menos de palmo de
distância – Eu te amo, Dé. Estranho seria eu querer que você não tivesse
vivido o que fez de você esse amor para mim. Não é estranho.
- Isso é diferente – fez menção de levantar-se para que Juno tivesse de lhe
abandonar o colo – Uma coisa é querer que eu nunca tivesse namorado,

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isso é uma infantilidade, uma adolescência. Outra é não querer ficar
apreciando as marcas de outros amores. É estranho sim.
- Não, não é! – cutucou-lhe o rosto, tentando um rápido revide, à moda de
crianças: percebeu tarde demais que ainda era cedo para infantilizarem-se.
- Pergunta para qualquer pessoa no mundo, garanto que a esmagadora
maioria das pessoas que realmente amam alguém não fica animada em
falar de romances passados.
- E o que é que a gente tem com o mundo dos outros? Eu, Juno, amo você,
André. Amo quem você é agora, amo você namoradinho apaixonado só
sonhando em ser pintor, amo ser a única pessoa para quem você contou do
Andrézinho lindo se aventurando no toboágua.
- Ela sabia também – disse André, apontando com um golpe de pescoço.
- Ela quem?
- A do retrato – Juno reergueu com cuidado a folha da mesa – Você entende
agora? Não era melhor não saber desse detalhe?
- Não sei, André – Juno perdeu de novo o olhar na sacada do apartamento,
parecia nunca ter visto as coisas da maneira que André as colocava – Não
gosto do jeito que você está pondo isso, como se tudo já tivesse um
sentido. O mundo é meu, agora nosso, e eu acho lindo você ter feito um
retrato tão cheio de carinho. Posso te amar em paz? – André sentiu-se
finalmente catando as peças conforme lhe iam caindo, teve a impressão de
sentir, só com um resvalar na ponta dos dedos, aquela vaidade às avessas:
decidiu que ela também teria o seu retrato.
- It’s Juno’s world. We just live in it – disse André, puxando-a de volta ao
colo, de olho na fresta de pele que se abria entre o quadril e a blusa que se
subia enrolada.
- Dean Martin?
- Dean Martin – André teve de segurar sua camisa, que já lhe queria sair
pelo pescoço, Juno como partícipe da fuga – Pode ficar com o desenho,
mas com uma condição: pede para trabalhar de casa amanhã à tarde?
Quero te dar um presente, no nosso parque, para essa moça que já
conquistou o mundo com a sua doidice.
- Devia ser sempre assim, não acha? – estava de novo de pé no meio da sala,
com os mesmos olhos faiscados que podiam acender a conversa em

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qualquer direção – Cada um agarrar seu mundo com tanta força a
ponto de conquistá-lo por inteiro e poder finalmente o tomar por seu.
Queria que todo mundo se sentisse assim.
- Você parece de outro planeta mesmo, Ju. Se alguém desconfiar que o
mundo é de um outro, que o outro se sente assim, nunca vai achar que é
seu, vai se sentir sempre arrendatário de mundos alheios.
- Mas cada um teria o seu mundo...
- A humanidade não funciona assim, lindinha.
- Pior para a humanidade, então.
- Pior para o resto da humanidade – André lhe tirou o chão de uma vez,
carregando-a para o quarto.
- Espera, espera. Tem que fechar a janela, começou a chover.
- Merda. Bem que você disse.
- Eu sou uma ninfa da natureza, cujo símbolo é uma mariposa: a linguagem
natural não deixa espaços para desentendimentos.
- E como se diz que eu te quero na língua da natureza?
- É assim, ó – mostrou Juno, emendando a vogal em sopro contínuo no seu
ouvido, em seu pescoço, nos ombros, e no resto do homem feito menino
que se ia deixando empurrado para o quarto.

André despertou-se tarde e deixou-se na cama até que vencesse o cansaço e a


saudade precoce. Levantou para se descobrir já só, abandonado com o risoto
apaixonadamente queimado e as sobras do café da manhã de Juno: era um resto da
presença dela, flagrou-se pensando, ele próprio admirado de suas conclusões
adolescentes. Cogitou almoçar logo para que pudesse fazer alguns estudos até a hora
marcada no parque, já não sentia o sono como um entrave ao trabalho, era apenas o
estado em que se sentia particularmente vivo pela manhã. Era curiosa a maneira –
prometera visitar a mãe!
Tinha que ir o quanto antes, prometera a manhã e já entrava na tarde, a mãe,
puta merda, sua mãe nunca insistira tão vulnerável por uma visita, a chave do carro,
faria de tudo para agradá-la – olha como essa maluca aperta a pasta de dente – de tudo
mesmo. Faria até o que sempre evitava, dividiria de fato sua vida, daria os sempre
perigosos detalhes concretos: entregasse uma codorna ainda em ovo, a mãe incubava
rápida uma fênix grandiosa para quem tivesse ouvidos; contasse de uma conferência

81
sobre o orfismo no exterior, tinha em breve que se explicar para a avó, repassar a
diferença entre ser ouvinte e palestrante, via logo a casa abarrotada de grossos
volumes de Kupca, Delaunay e Léger – era sua mãe a encurtar a solidão da distância
pelas referências esmigalhadas que recebia de sua vida.
Ao ver comovido a paz calorosa de sua infância, aquela arquitetura repisada
da mesma grama, fachada e garagem, a que Juno ainda seria apresentada, decidiu
contar sobre seu relacionamento, confidenciaria que tinha uma namorada: mentiria
algumas horas de uma verdade de longos anos. Quando entrou, porém, não se deu
com a paz costumeira, mas com o irmão:

- Finalmente!... Decidiu ir também? – devia ser seu novo jeito de


cumprimentá-lo: uma frase que não lhe fazia sentido algum.
- Oi? Cadê a...
- André! – a mãe vinha toda arrumada do corredor dos quartos – Você falou
que estaria aqui pela manhã, até comprei aquele café de que você gosta.
Filho, pegou os documentos? – o irmão, que se esforçava por misturar
arrogância a seu ar solícito, confirmou batendo em sua pasta.
- Mãe... aonde vocês estão indo?
- Dé, eu falei que precisava conversar com você. Agora sou eu que não
posso. Vamos marcar outro dia, aí a gente conversa com mais calma
porque... Brinco!, sabia que estava faltando, faz tanto tempo que não saio
de casa que... – disse sumindo pelo corredor, acompanhada do compasso
de seu salto.
- Ah, então você nem sabe! Não, claro que não. Você está se dedicando à
sua arte, não tem tempo para a família, quem sabe nem para os amigos,
essas besteiras da vida comum.
- Não comecem, gente, por favor, hoje não – gritou a mãe dos fundos da
casa.
- Você ainda está assim porque eu não pude ir ao seu casamento? Você já
tinha um filho quando casou, não era pra tanto também! – não teria saído
com tanta pressa se soubesse do irmão ali, mais valia o desencontro – Mãe,
pra onde vocês estão indo? – gritou em vão corredor adentro.
- Não pôde, não, não quis - não parecia ser esse o problema, seu irmão
destilava um ódio de cor nova, mais quente, mais recente – Mas o André é

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maior que tudo isso, ele pode tudo: não precisa de dinheiro porque a
mamãe ajuda até ocorrer o milagre de ele ganhar o próprio, não precisa de
esposa, não, claro que não, nasceu depois de todas as revoluções sexuais, o
casamento de qualquer um é uma bobagem: abaixo as regras, abaixo todas
as convenções.
- Essa risada não é sua melhor risada sarcástica – buscava um tom amistoso,
ao menos calmo – Você está com raiva de mim, mas eu nem sei por quê,
nem desde quando. E você tem medo de me falar, e inventa essa desculpa
do seu casamento. É um pouco patético, sem classe até. Você e minha mãe
estão fissurados com essa ideia de que eu não gosto de casamento, mas eu
disse isso uma vez, em uma discussão que já faz meses, e eu estava
nervoso, não estava bem comigo mesmo, e não estava pensando em você e
no seu casamento. Acho que ele é uma instituição tristíssima, sim, um
absurdo para uma vida tão curta, mas respeito o seu e respeito o dos meus
pais. Vocês têm raiva porque vocês confundem o meu pensar diferente
com um pensar superior.
- Ah, André, me poupe. Sabe qual é seu problema?
- Não.
- Eu sei que não, eu é que vou te falar. Você tem medo de qualquer
compromisso, não é questão da vida ser curta ou não. Garanto que eu
aproveitei mais a vida antes de casar do que você aproveitou até agora,
enfiado nos seus livros, nos seus quadros. O problema não é a vida ser
curta, André, é ela ser uma só. É isso que te amedronta.
- Eu não quero brigar, mas eu juro que eu não sei o que você está querendo
insinuar.
- E eu terminei, por acaso? Casar é um absurdo? Claro que é. Mas não
experimentar construir um casamento, não viver uma família também é um
absurdo, você também deixa de viver um caminhão de experiências. Toda
escolha é a merda de um absurdo, mas você, André, tenta fugir do absurdo
fugindo da sua vida. Aí seu irmão pode casar, pode divorciar, pode ter
filho, seus pais podem fazer o que for que você não vai estar nem aí – era a
primeira vez que via seu irmão falando o que pensava, parecia que sua
paciência, ou seu sarcasmo, ou a paciência com seu próprio sarcasmo tinha

83
se esgotado: nada como a sinceridade familiar para criar a atmosfera
adequada de crise.
- Eu entendo o que você está falando, mas não é por aí que você vai me
entender – disse André, indulgente – Eu ia até apresentar alguém para
vocês, como pode ser isso uma fuga do absurdo?
- Deve estar apaixonado...
- E como isso muda alguma...
- Vamos, filho. Pagar advogado pelo tempo de ele te escutar é ruim, mas
pelo atraso... – a mãe reapareceu com o mesmo passo resoluto.
- Advogado? – perguntou André, negando-se a ver o óbvio.
- Nossa, o menino é uma tábua mesmo – disse o irmão revigorado, voltando
para suas condições normais de agressividade – Seu irmão pode casar,
divorciar...
- Mãe... – procurou André por um apoio, implorando por uma pausa
carinhosa em meio à confusão – Você está se separando?!
- Muito obrigado – falou sem paciência, encarando o filho mais velho.
- Eu não disse nada. E para de tratar o André como se ele fosse um incapaz,
mãe. É constrangedor ver um adulto sendo tratado como um adolescente
problemático.
- Filho, eu tentei te falar o mês inteiro, essas decisões não se contam por
telefone: pedi para o seu pai e para o seu irmão não falarem nada, porque
você estava sempre tão ocupado.

André sentiu a vertigem do excesso, da enxurrada de imagens que ganhavam


seu sentido definitivo com um único toque final; lembrou-se do dia anterior, dos
princípios de choro da mãe, de sua insensibilidade acidental, mas monstruosa. Como
o silêncio vencesse por não saber ninguém mais o que acrescentar, falou seu celular:
tocou alto de dentro do bolso.

- Pode atender, deve ser importante. A gente já vai indo, né mãe?


- Eu não vou atender! – era Cássio: colocou no silencioso e de volta ao
bolso – Por que vocês vão se separar agora?

84
- Dé, eu entendo que é um processo complicado para vocês, os filhos
sempre têm a impressão de culpa ou uma necessidade de cuidado,
independentemente da idade, mas...
- Mãe, sem esse papo de Freud, Adler, Jung, ou seja lá quem você resolveu
estudar agora. Aconteceu alguma coisa?
- Você quis perguntar por que eles não se separaram antes, né? Talvez ela
tenha cansado de ser mulher de malandro, ou esteja cansada de limpar
garrafa e sujeira de vinho toda manhã.
- Para de ser escroto, meu Deus. Meu pai nunca foi fácil, nunca ajudou
muito em nada, mas mulher de malandro minha mãe não é – Cássio
inundava seu celular de mensagens, que vibrava irritantemente contra a
perna.
- Não era, Dé, nunca fui, mas agora sou.
- Ele fez alguma coisa, mãe?
- Eu não amo mais seu pai, André. Nunca fui, mas agora estou sendo.
Mulher de malandro – concluiu pensativa.
- Mas, mãe... mas... Eu sempre achei que era um absurdo você continuar
casada, não fazia sentido você ficar com alguém que só fazia as coisas
dele, que vivia sozinho, só que com você ao seu lado. Mas você sempre
me disse que eu tinha que entender quem meu pai tinha sido, de onde ele
tinha saído para conseguir tudo isso para nós quatro. Tudo perdoar
quando... como você falava, a frase que você repete? Tudo compreender é
tudo perdoar?
- Dé, desculpa, mas não posso ter essa conversa agora, assim. Tudo
compreender é tudo desculpar. É isso que eu entendi, isso que mudou.
Tudo compreender não é tudo perdoar. Mas a gente conversa depois, tá?
Eu tenho que ir.
- Eu vou também, vou com vocês.
- Não precisa, Dé. Já basta seu irmão, vai ficar parecendo que eu que sou
uma incapaz agora. Depois eu te ligo, tá? – a mãe despediu-se com um
beijo rápido em seu rosto.

Por alguns minutos André ficaria ainda dentro do carro, a chave sem girar, o
sentimento sem virar em solução. Lembrou-se de se distrair no celular e Cássio queria

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vê-lo, era urgente – para ele era tudo sempre urgente – estaria em um boteco no centro
da cidade até o fim da tarde. Por não achar melhor solução para tirar-se daquela
confusa inércia, respondeu que ia. Quis seu corpo sofrer de uma sensação estranha,
que ele logo julgou ser culpa de filho ou raiva de irmão, mas julgou mal: ressentia-se
por não conseguir viver o divórcio dos pais, que lhe parecia tocar só como coisa que
acontece aos outros, como coisa de uma imensa chacina de um país distante. Era isso
que lhe fazia o amor impetuoso que o dominava, dissolvia a importância do mundo
em um halo remoto de atenção e lhe sugava toda a vida para um centro único de
gravidade.
Passava já muito de meio dia e meia e no caminho, claro, as turbas
orquestradas de adolescentes se organizavam à porta dos colégios: casais distantes,
fumantes prematuros, rodas só de meninas. Quis ser o negro de agasalho azul
enlaçado à cintura pela mocinha de tênis rosa, toda ela branca, toda ela loira. Sofreria
na pele como único problema do mundo os martírios daquele preconceito precoce,
lutaria por aquela outra Juno sua, visitaria seus pais, enfrentaria as humilhações
necessárias. Sentiu-se próximo de uma Juno que só conhecera por uma foto colada em
seu quarto: que vida teria tido se seus colégios foram os mesmos? A que grupo de
amigos teria pertencido, de que tipo de linguagem teria se valido, quais jogos de poder
teriam definido sua adolescência, se tivesse vivido ele aquela paixão do rapaz negro,
tão cedo? E mais, como diabos encontraria Cássio naquela calçada imensa, abarrotada
de mesas? O problema, como era de se esperar, logo se dissolveu: Cássio levava uma
boina óbvia à cabeça e já fazia o lugar girar em torno dele, cumprimentando com
estardalhaço cada garçom que passava por ele:

- Ainda bem que você veio, meu velho, esse lugar é incrível. É uma pena as
pessoas pensarem que almoço não é hora de conhecer gente nova – André
riu sua habitual condescendência.
- O que você tinha para falar comigo? Estou com um pouco de pressa, vou
pro parque tentar desenhar.
- Ahn? Ah, não era nada. Nada não, o cara lá da galeria quer que você viaje
com ele para uma exposição, coisa de uma semana, eu vou também – antes
era nada, não mais: uma semana longe de Juno, quantos Cássios não
cruzariam por ela, ela que não tinha nem um namorado ainda?

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- Você tá bem, Dé? Tá com uma cara estranha, mais branco que o normal –
riu.
- Estou bem, sim.
- Não parece não, viu, meu velho.
- É só que... acho que meus pais vão se separar. É estranho, porque não
consigo sentir nada, estou em um momento da vida – perdera já a atenção
de Cássio, que acenava de volta, em uma despedida à distância, a uma
garota que agora improvisava um celular do polegar com o mínimo –
Deixa pra lá. Você vai ligar pra ela?
- André, aí é que tá. Existem três partes básicas de se sair com uma mulher e
eu só gosto da do meio – Cássio ria com seu próprio gesto obsceno – O
quebra-gelo é insuportável, a repetição das mesmas expressões, as
apresentações ensaiadas, enfim, o óbvio do óbvio. Depois, quando você já
conversou por tempo suficiente, mostrou que não é um idiota e, no nosso
caso, não tem a lata muito estragada, vem aquele pré-beijo ou pré-sexo, a
delícia de se saber que vai dar tudo certo. Mas, no fim inexorável, você
tem que ir pro banho-maria, ficar cozinhando interesse, colocando uma
mensagem de final do dia na panela, escutando o quanto e por que ela está
totalmente exausta e nervosa, uma merda. É difícil, jovem – difícil para
André era agora conter seu desgosto por saber que as pessoas chamavam
também isso de se relacionar, e por imaginar que Juno, simplesmente por
não se importar, podia tomar parte em tudo aquilo.
- Então você vai ligar para ela, é isso?
- Claro – Cássio atravessou os dois braços pela mesa, alçando os ombros de
André com uma gargalhada – É claro, meu velho.
- Ô Cassinho, deixa eu te perguntar: do que é feita sua vida?
- Lá vem você...
- É sério, por trás disso tudo...
- Posso ser não me preocupar em responder sua pergunta? – ele pedia outro
chopp, sempre implacável em impressionar André com a frequência e
quantidade de suas bebidas.
- Mas estar aí só por estar... e se nunca chegarmos verdadeiramente a ser
artistas, se nunca criarmos nada, vivendo como todo o resto?
- Então nossa arte não era desse tempo.

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- E se não for de tempo nenhum? Se nosso tempo é de tudo valer como
arte...
- Então é melhor ter vivido, de qualquer jeito. Se for esse o diagnóstico,
antes Cássio que André: vivi com o que tinha para viver, e confesso que
sou feliz.
- E isso basta? Tentar a todo custo ser feliz com o que já está aí, sem fazer
nada de novo, sem descobrir o que mais a vida tinha a oferecer? – André
forçava um diálogo de respostas conhecidas, conversava antes consigo
mesmo.
- Eu faço o novo, André. Eu faço o que eu quero, aproveito a vida do meu
jeito. Se isso não for criação, então criar não vale a pena.
- Ah, Cássio. Você não pode acreditar nisso. Você vive pelos critérios de
felicidade que os outros te impuseram.
- E você, hein, André – Cássio era espalhafatoso na alegria e na tristeza, na
saúde e na doença de seu humor: falava agora com copo em punho – Que
grande mérito é esse seu? Autenticidade como negação do que existe só
serve para quem fracassa na vida que está aí. Sem ofensa, André, mas
já te falei que você foge da vida, nada nunca está bom, mas você acha isso
o máximo porque você respeita sua arte. Mas de fugitivos a vida está
cheia, meu caro: tem quem se esconde na arte, mas tem quem se
entrincheira na família, no trabalho, na merda de uma fé qualquer, não se
engane não.
- Hoje deu todo mundo para achar que arte e vida não se misturam? A gente
só tem que criar algo novo, Cássio, não é questão de negar a vida, é de
inventá-la. Não é fugir dela, é fugir do tédio. É preciso fugir do tédio.
Ainda vou te apresentar com quem vou ao parque hoje, o que eu e ela
vamos criar... – Cássio já se refazia distante.
- Antes de você falar que está apaixonado, e sim, eu sei, você vai falar que
está apaixonado, olha aquela menina de azul, com a franja esticada na testa
ali.
- Nossa, Cássio, quantos anos você tem? – repreendeu André, virando-se
sobre a cadeira – E que franja ridícula é aquela?
- Eu sei, eu sei, fuça totalmente estragada, mas você precisa ver de pé, corpo
inteiro.

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Cássio era o amigo que sempre lhe trazia de volta a antiga lição de que as
mulheres eram um desafio e o papel deles, dos homens, o de dominá-las, tê-las,
possuí-las o máximo possível, em critérios de número e grau. O caldo era usual, mas
perigoso. Adicionava-se à mistura a falha de caráter de cada suposto homem,
acrescida do sono da moral levemente estonteada pelo álcool; com oportunidade a
gosto, ficava pronta essa massa que cresce a fogo alto, sob o astro noturno que nunca
sola a fina iguaria do estupro – servida também com tantos outros nomes:

- Mas, me fala, você estava me contando da sua namorada, sua mais nova
criação.
- Não é minha namorada... – disse André pensativo, transbordando de ideias
que não conheciam ponto final.
- Ah bom, você não, meu velho. Só me faltava você aparecer de mãozinha
dada no shopping, gola polo abotoada no corpo e vista vigilante em quem
olha na direção da sua mulher – Cássio puxou sua bata branca até o
pescoço e bamboleou os ombros em pequenos pulos na cadeira, como se
fosse ele a passear pelos largos corredores de lojas depois da sessão de
cinema: terminou a performance em outro pedido de chopp.
- Não, não... – riu André, fincando as unhas na perna enquanto a cruzava –
Ela é jornalista, quer ser escritora.
- Ahhhh, finalmente encontrou uma dessas moderninhas liberais para
chamar de sua.

Juno não era uma dessas moderninhas liberais, tão mais que isso. Mas André
soltara já a trava das hipóteses e imaginou que, trocados os personagens, era
exatamente aquilo o que pensaria de um novo romance de Cássio: estavam ambos
enredados no inferno de se diminuir as pessoas para acariciar a própria vaidade, para
só então se amaçarem perdidamente com a mesmice entediante de todos. Rédea solta,
fez-se imaginar o significado de tudo aquilo para fugir da imagem criada de Cássio e
Juno juntos, e, dando voltas atrás da própria cauda, julgou-se dar de cara com a cara
do amor. Era isto amar.
Era ver o amado como exceção a todos os rótulos, era botar fora todos os
estereótipos: amar era ver outra pessoa como a si mesmo, um floco de neve único e

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irrepetível, cujos trejeitos são tão especiais, cuja constituição é tão complexa e os
motivos tão variados, que se chega por fim a um ser em absoluto categorizável. Era
isso. Era por isso que mulher de malando não é a mulher de um malandro. Ela é
mulher de João, de Pedro, de Paulo, que podem até fazer aquilo que fazem os maridos
de uma mulher de malandro, mas não são, eles próprios, malandros de sua mulher.
André chegara enfim a um ponto final: pintaria não uma, mas sete figuras de
Juno, cada uma a ocupar a ponta estrelada de um braço de floco de neve, e o retrato
do parque, o miolo prodigioso de seu grão central:

- Cássio, sempre bom te ver, mas tenho que ir.


- Calma, meu velho – assustou-se – eu estava só te enrolando. Você não
quer falar dos seus pais? Sei bem o quanto isso pode ser pesado.
- Não, depois a gente se fala. Tenho que ir mesmo – talvez não pintasse
nada daquilo, metáfora gasta demais, assunto tão distante do absoluto –
Está aí o dinheiro do meu chopp.

Demorara-se tanto em seu monólogo a dois com Cássio que a noite já


começava a prenunciar seu atraso. O vento batia no asfalto e levantava o pó da
cidade, que era logo feito um só com a fumaça e com a teia de garoa que se
deixava derramar em câmera lenta. A mistura, etérea, era iluminada pela luz
amarela e cansada dos postes da rua, dando ao ar, tido por invisível, uma
coloração quase campestre, quase absurda. Em névoa semelhante ia André, que,
unindo as duas pontas do que sentia, a confusão pelo divórcio e a pujança do
amor, mal sabia agora o que queria daquele encontro . Buscou seu canson no
fundo do carro, juntou alguns de seus lápis, e foi ter com uma Juno que estava deitada
só, de olhos fechados, estirada em um dos degraus de onde se conheceram, com sua
jaqueta jeans a cobrir a cesura da saia:

- André, André, André, André... – sussurrava baixinho, testando diferentes


entonações para o mesmo nome.
- Está aqui – anunciou-se seu dono para receber já no chão os cumprimentos
de beijos.
- André. André, o que você acha que vem primeiro: o nosso nome e o nosso
rosto ou nossa personalidade?

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- O nome e o rosto, Ju, a gente já nasce com eles. Só o nome que você pode
mudar ou, não sei, fazer uma cirurgia – conversavam os dois com os
braços a taparem os olhos, um colado ao outro.
- Sim, eu sei... Estou dizendo, assim, você acha que uma pessoa que se
chama André pode ser de qualquer jeito que ela quiser?
- Claro, doidinha.
- Mas cada pessoa que te conhece já deve ter uma ideia de como deve ser
um André. No mundo dela, por mais que você seja diferente, você nunca
vai poder passar certos limites. Você só pode ser quem você quer na sua
cabeça, pra você – André gargalhava, reaprendendo-se leve.
- Acho que se essa pessoa começar a ser íntima, ela vai passar a associar
André a mim, e então eu que vou estabelecer esses limites, não?
- É, pode ser... – não parecia ter-se convencido – E uma pessoa de cara
quadrada, com a mandíbula para frente? Você acha que ela pode virar uma
pessoa carinhosa, cheia de meiguice?
- Acho que pode, Ju. Por que não poderia?
- “Por que não poderia?” – Juno balançava a cabeça e engrossava a voz,
representando mal um qualquer déficit severo de fala – Porque ela vai ter
cara de séria, de quem não está para brincadeira nem denguice. Aí elas vão
ser tratadas mais assim e vão acabar sérias e sisudonas.
- Não sei... Ju, já está tarde e agorinha a gente vai ficar quase no escuro,
acho que não vou conseguir desenhar nada. Mas eu queria conversar uma
coisa com você – seguindo André, Juno pôs-se sentada e logo arqueou as
sobrancelhas, esticou as pálpebras ainda cerradas e levou a mão à cabeça:
estivera deitada por tempo demais, acabara entontecendo.
- O que foi, Dé? Pode falar... Não, antes, espera. Tenho que te contar uma
coisa. Passei o dia tentando achar o contato de um amigo antigo meu, não
escutava dele há um século, mas sempre tive uma admiração enorme por
ele, éramos até bem próximos uma época – em algum outro nó do tempo
aquela introdução seria capaz de desolar André, e de ensimesmar-lhe ao
limite, mas seu encanto por Juno se espraiava agora tão largamente
naquele instante, que a insegurança, embora insistisse, não encontrava
cadeira no salão de seus sentimentos – Ele foi estudar artes plástica na
Royal College, mas vi que ele já tinha voltado. Enfim, conversei com ele,

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falei de você, e percebi que vocês têm que conversar, ele tem umas ideias
bem parecidas com as suas, suas ideias de agora, pós-eu, lindas e
maravilhosas. Pode ser o começo do seu grupo, vocês podem pensar um
manifesto juntos.
- Ah, brigado, Ju. Legal demais, pode ser uma boa mesmo...
- Pode ser? Essa é sua vida, Dé. Falei para ele vir aqui mais tarde.
- Poxa, Ju – reclamou André, golpeando a grama – Eu te chamo pro nosso
parque, para fazer um desenho para você, e você vai e convida um amigo
que você conhece sei lá de onde? Era para ser um momento nosso, será
que nem isso ficou claro para você? – pronto, vagara um assento.
- Desculpa, Dé. Ele vai viajar por um tempo, só podia ser hoje. Eu falei para
ele vir mais tarde – Juno baixou a cabeça, olhava para os dedos que
cutucava sobre o colo.
- Não tem problema, lindinha, mais um motivo para conversarmos logo –
André calou-se, sem certeza de como continuar – O que eu queria
conversar é que, não sei se você já pensou nesse assunto, tem tanta coisa
mudando na minha vida... Eu gosto tanto de você, e... Você já pensou de a
gente namorar? – saíra tudo exatamente como o contrário do que
imaginara: sem espontaneidade ou surpresa, sem poesia, quase sem amor.
- E o que você acha que a gente está fazendo, besta? – disse, abraçando-o
em risadas.
- Não sei, Ju – afastou-se – A gente fala tanto em fazer sempre o que
quisermos, em buscar o que a gente ama sem ligar para o que os outros vão
pensar. Não sei bem onde isso deixa a gente.
- E eu agora só quero você, Dé. Quero te conhecer mais, saber seus
segredos, descobrir suas máscaras com os amigos, com a família, com seus
planos. É só nisso que eu penso. É como você fala: é a chance de viver
uma vida nova na sua.
- Eu sei, doidinha. Mas, por exemplo, semana que vem eu vou viajar, não
vou estar aí. Como...
- Não, André, isso não – gritou Juno, saracoteando os pés contra a grama
para se afastar de rojo e de costas, como uma aranha, assustada com André
– Não vamos fazer isso, você não, a gente não vai se estragar, eu não vou

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deixar – aproximara-se de volta para botar as mãos firmes em torno do
rosto de André – Não faz isso com nós dois.
- Isso o quê? Eu nem terminei de falar – protestou, livrando-se de suas
mãos.
- Você quer fazer um contrato com o destino, amarrar o que pode acontecer
com o nosso tempo. Eu já te contei dos meus relacionamentos, até mais do
que você queria saber, eu sei. Mas sempre começa assim: você fica tão
satisfeito com o presente que quer garantir que ele seja também o futuro,
tenta controlar as circunstâncias que você pode, vive a ilusão de poder
mais que ele, e logo, a gente acaba tentando se controlar. Depois,
conformados pela rotina desses sentimentos, vem o passado: eu vou querer
que tudo no seu passado te conduza a esse presente nosso, que o resto
desvaneça em valor e, se não puder, que fique perdido por lá, que não
venha se esgueirar com a gente aqui. Não, Dé, que beleza pode surgir de
um contrato de exclusividade? – ficava linda com lábios e sobrancelhas
contraídos, em fracassada tentativa de demonstrar a aspereza de sua
revolta.
- Mas se você mesma disse que quer estar só comigo agora... Por que a
gente não se compromete por enquanto e, se mudar o que sentimos,
mudamos o nosso trato?
- Isso é um caminho sem volta, Dé. O tempo não tem olhos nas costas.
- Eu andei pensando muito nisso, Ju. Não vá achar que eu já não concordei e
discordei mil vezes com o que você acabou de dizer. Mas é contraditório
também. Eu não sei, por exemplo, se quero escrever um manifesto, tentar
começar um movimento para criar e mostrar ao mundo o que sinto e penso
com alguém que pode estar com você também, ou já ter estado – discordou
André, aliviado e orgulhoso por acreditar ter contrabandeado a pergunta
que já não lhe dava paz, mas que não podia ser acolhida às claras – E isso
é o que eu sinto, aqui e agora.
- Você vai sentir ciúmes de qualquer jeito, André. E eu também. Não tem
jeito, ele está aí, está dado. A pergunta é o que de melhor a gente pode
fazer com ele. Você acha que eu te roubei esse desenho por não sentir
ciúmes? – Juno tirou, protegendo-o da garoa com seu casaco, o retrato de
fundo florido – Não. Eu quis ficar com ele, porque não queria deixar nada

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me afastar de quem você já foi. Porque eu queria que meu desconforto me
ensinasse que você não é, nunca foi, e não será só nós dois. Peguei porque
eu quero me apaixonar por quem você era também – André afastou o
retrato da frente de Juno e beijou-a, jogando-a de volta à grama.
- Você é linda, Ju. Lindinha demais. E você está certa, eu sei e sinto que
está. É que às vezes eu só quero ficar com você, para sempre, sem nada
para atrapalhar, sem nada que se meta no meio. Mas a gente é bem maior
que qualquer regra mesmo. Estamos pintando uma vida muito mais bonita.
- Não, Dé, nem eu nem você queremos isso não. Que diabos de paixão pode
durar com todas as condições calculadas e asseguradas para ela se realizar?
Que casamento você conhece que, no fim, não esteja ligado mais ao
costume de amar que a esse amor nosso um pelo outro? Não, Dé. Essa
liberdade forçada, as nossas possibilidades sem ressalvas são o nosso
modo de viver, mas são também o que vai manter nossa paixão viva: se só
podemos estar sempre apaixonados como amantes, é isso que nós vamos
ser – André beijou-a na testa.
- Eu nos declaro, oficialmente, não namorados – decretou solene, sem
conseguir reação – Eu estou com você, Ju, não precisa ficar amuada. Só
queria ver o que você pensava também, está tudo um pouco confuso para
mim... Ainda sou eu aqui com você – Juno ia do céu aos olhos de André,
dos olhos ao gramado do parque.
- Que susto você me passou, André – estremeceu Juno, apertando-se no seu
peito.
- Como assim, Ju?
- Não sei... Achei que você tivesse ficado com medo de andar tão perto
de nós dois, da vida, desse fogo, sei lá... da morte, do abismo, de mim.
- Eu não entendo quando você dispara a falar em metáforas, doidinha.
- Eu não falo em metáforas, Dé. Eu falo o que eu estou sentindo: Este toro
es solo un toro y el caballo es un caballo.
- Dica?
- Essa é da sua área, você devia saber...
- Picasso?!
- Picasso... A gente se ainda se ama, não é, Dé?
- Claro, lindinha. Sempre.

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Amavam-se e amavam o casal que se iam formando. De dia, como tinha de
ser, não lhes escapava a safira embranquecida do céu, os lépidos corredores de
malmequeres, nem o cheiro doce da distância. Ao chegarem à escuridão, podiam-se
fazer sinistros, querer sem nunca ir aos cemitérios, sentir saudades e buscar o dobre
dos sinos, ou então, flanar pela noite da cidade: tinham medo de assalto, logo
tomavam gosto pelo medo. Eram como todos os mesmos casais repetidos de sempre,
mas eram também tudo, menos o óbvio: incorporavam personagens às mesas de bar,
confessavam romances particulares, inventavam aventuras escandalosas para
chocarem os cândidos casais que viam ao lado – os casais gola polo, como haviam se
ensinado a chamar. Não o faziam por vaidade, como criticavam os incomodados, mas
por uma convicção revolucionária no amor, como gostavam de se dizer: a verdade era
que a vaidade do casal não embotava a causa do amor.
Seguiam juntos e sabiam realizarem-se em separado: Juno escreveria um
romance, dizia que sobre os dois, André sugeriu que escrevesse sobre todos os dois
que nunca foram. Ele formara seu grupo, fariam um manifesto, e Juno dispôs-se a
escrevê-lo, passou a comparecer a todas as reuniões. E não é que não houvesse brigas,
tinham-nas como as tem todo casal. Mas delas nunca saíam com uma rusga de dúvida
do que fariam, pois nunca o permitia André, nem sem uma ponta de mistério do que
seriam, garantia-o Juno. Nas piores que tiveram, renderam-se a concessões: a ela
ficavam vedados os integrantes das reuniões, sobretudo o amigo que levara ao parque;
a André, todas as mulheres com o nome de sua protagonista. Davam assim mais
segurança para sua relação, é o que dizia André, assim colocavam menos
barreiras ao desamor, é como pensava Juno.
As reuniões davam-se sempre na mesma sala, da mesma casa do mestre pela
Royal College. Era um ambiente amplo, com limite nos dois largos sofás colados às
paredes, com o centro forrado por tapetes e almofadas – onde vez e outra se deitavam
– e quadros até o teto, onde sempre se perdiam os olhares. Eram em duas mulheres,
além de Juno, e quatro homens, incluindo André, o que gerara uma infindável
discussão sobre que gênero adotar no manifesto. Decidiram por votar – a ilusão da
democracia – e optaram pelo masculino: qualquer outra alternativa sequestrava a
atenção do conteúdo, foi como argumentaram os vencedores. Cássio, apesar da
mistura sempre presente de pretensão e boemia, desligara-se após os primeiros
encontros: acusou-os de fazerem arte deduzida de uma teoria.

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Juno e André chegavam e sentavam-se sempre distantes, embora a aura de
cumplicidade entre os dois trespassasse toda a sala e os denunciasse como par: tinham
trocado, e era isto o que se sentia, os segredos que há em todo casal, por segredos bem
guardados entre o casal e os outros. Nesta reunião, que era de fechamento do
manifesto, Juno, como em muitas outras, se atrasara. Leram a última versão a que
chegaram e a moça apeada ao sofá do fundo com a ajuda de uma almofada começou:

- Não sei vocês, mas para mim continua agressivo demais. Para um
manifesto que propõe a comunhão artística da humanidade está excessivo.
- Acho que é a ironia – concordou o rapaz alto, de barba e cabelos
inteiramente desgrenhados, que se mantivera de pé em um canto da sala –
Tudo bem, é para ser irônico, temos que ser críticos. Mas não precisa de
ter uma tiradinha marota em cada linha. E não sei se nos livramos
definitivamente daquele tom professoral.
- Está na medida certa – propôs André, temendo ver acusada sua
parcialidade – É um manifesto contra onde foi dar a arte hoje e, no caso da
comunhão, revoluciona quase tudo o que já foi feito, e digo quase por
modéstia. Não é passando a mão na cabeça dessa gente que se dá esse
recado.

Concordara já a maioria pela agressividade em excesso e pela necessidade de


alguns outros retoques estilísticos, quando a porta se abriu e Juno entrou esbaforida.
Cumprimentou a todos, um a um, e voltou para perto da porta, procurando em si e na
sala algo que lhe parecia faltar.

- Juju, concordamos aqui que o texto precisa de algumas revisões – era o tal
seu amigo antigo, que lhe tinha esse apelido detestável – Mas é coisa
pequena, se você preferir acho que nós mesmos conseguimos fazer as
alterações – Juno olhou confusa, segurando copos imaginários nas duas
mãos, mas enfim se resolveu pronunciar gravemente.
- Preferia que os senhores me atacassem e meu sacrifício ficaria como um
protesto contra esta violência. Já que é um golpe branco: não serei
elemento de perturbação – concluiu batendo a porta com força atrás de si.

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- Será que ela achou ruim termos começado a discutir sem ela? – perguntou
confuso o integrante mais recente, presente de corpo só nesta última
reunião, assustado com a falta de reação dos demais.
- Não, claro que não – riu André, regozijando-se com aquela surpresa – Ela
esqueceu seu café.

Voltaram a debater os mesmos pontos, alguns discutiam ardorosamente já


outros temas, podia-se ouvir, cá e lá, com a mesma certeza, que o governo caía e que
não caía, e quando a sala já se esfumaçava toda, Juno voltou e se sentou ao sofá:

- Juju, o que a gente tá achando é que o texto está irônico demais, ficando
muito agressivo. Deixa eu te mostrar aqui algumas partes, vem cá – Juno
trazia já o texto ao colo, caneta e café à mão, mas jogou tudo para longe de
si, antes de se aproximar.
- Encomendaram-me um projeto de revolução, não um plano de governo! –
disse invertendo a frase do famoso economista – Desculpa, gente. Estou
impossível hoje – agora era o novato que gargalhava, impressionado.
- De onde você tira esse tanto de frases, Juno?
- Ah, isso é uma besteira. Um ex-namorado meu era professor de história e a
gente ficava brincando de tentar manter diálogos inteiros só com citações
famosas – respondeu Juno, voltando a concentrar em sua folha, tomando
notas, riscando frases.

André tentou fingir que não e, escondido por trás dos egos inflados que
flutuavam pela sala, venceu em seu teatro, dissimulando-se. Mas sentira
inegavelmente o peso daquela explicação despreocupada: por que nunca lhe
perguntara aquilo? Por que tinha aquele garoto de fazer essa pergunta, o que ele tinha,
afinal, com isso? Por que ele tinha de estar ali, este irrelevante, este idiota, este a que
Juno mesmo apelidara, sem dar explicações a ninguém, só a André, de Barão de
Novais, e que realmente tão pouco acrescentava ao grupo! Que ódio sentia da
presença de todos ali, que desprezo sentia por aquele Barão de Novais e também pelo
antigo amigo de Juno, se é que fora sempre só isto, um amigo.
Julgava que fosse uma brincadeira dela e, mais ingênuo, dela só com ele, uma
marca que carregavam desde os primórdios de seu amor, e, então, foi-se deixando

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lentamente encher-se do horror de ver Juno fora da relação que tinham. Permaneceu
calado durante quase toda a reunião, não admirou dessa vez a forma compenetrada
com que Juno se perdia no texto, alheia à mixórdia de frases soltas das conversas, e só
voltou de fato àquela sala quando Juno se levantou e caminhou para seu centro:

- Eis o aqui o vosso manifesto, senhoras e senhores:

Nós, os tontos, reconhecemos a derrota. E caberá a nós, tontos que somos, a


imposição e a submissão a este novo e vergonhoso D i k t a t da humanidade. Ela
perdeu para si mesma. Mais uma vez.
Também nos arrepiamos e trememos todo nosso corpo com o marchar ruidoso
das tropas vanguardistas sobre a arte autotélica, nascida de mãos dadas com a
hegemonia do capital e com a emancipação da burguesia – o mal também é
autotélico. Com a destruição do aparelho produtor e distribuidor da arte, com a
quebra de seus contornos formais, com a aniquilação do brutal ascetismo causado
pela homogeneização do sublime transformado em processo indeterminado na falsa
liberdade anônima do mercado. Sublime racionalmente controlado. Sublime valor de
troca. Vendável. Vaidoso. Intragável.
Mas nosso astuto Inimigo preferiu a esmagar-nos transformar todas as nossas
fileiras em columbinas quintas-colunas. Não importa. Terão, vivos ou mortos, os
olhos perfurados pela mesma lança da responsabilidade edipiana. Restou-nos apenas
os desertos de nossas próprias terras arrasadas e vimos até aqui nos chafurdando na
lama delas com a arrogância ignorante dos porcos. Dos porcos! Todos nós,
embostelados na lama da iconolatria, do novo pelo novo, da arte sobre a arte, da
pulverização reticular pós-moderna, do intelectualismo insuportável e insensível.
Pode bem ser que a intoxicação pela terebintina da tina nos deixasse burros,
talvez até mesmo tontos, mas não nos obrigava à cegueira do corpo, nunca nos
condenou por si só ao paroxismo do absurdo dos absurdos: não nos levava a pensar
a arte. Pensá-la! Pensá-la antes de senti-la. Pensar em seus referentes, em seus
parodiados, em seu significado meta-artístico dentro dos museus, em seu significado
meta-artístico fora dos museus, em seu importantíssimo e relevantíssimo processo de
produção e organização. Ç a m e f a i t p e n s e r a u... C e l a m e f a i t p e n s e
r à... À M e r d e! T o u t t e f a i t s e n t i r, i m b é c i l e!

98
É contra isso que os tontos se insurgem com um mundo a reconquistar.
Retroagiremos ao ideal de uma obra que ouse ao delineamento sensível do abismo e
do paraíso, que restabeleça a unidade primordial grega entre sentido e espírito, que
nos enleve ao fundo do infinito pela conjugação de uma sensibilidade espicaçada e
uma razão feita tonta e amorfa pelo trovão olímpico. Urge revolucionar a razão
como a conhecemos. É dela que nascem a penetração invasiva do econômico no
simbólico, a prisão do corpo libidinal nas grades do lucro, o ir à exposição para já
ter ido à exposição, o domínio quisto indispensável dos experts, o neoacademicismo,
as selfies injustificáveis diante da noite estrelada, o ciúme comezinho da aristocracia
e a inveja especular da burguesia.
A humanidade tem que avançar. Rompemos com o aparato instintual humano
e demos luz ao sujeito racional. Tomamos então a razão como nossa nova prisão e
assistimos até agora incrédulos ao beco instrumental em que fomos dar. Retroagimos
ao limite o núcleo familiar, buscamos uma célula diminuta onde nos permitíssemos a
humanidade, e, burgueses, tratamos por indiscrição a tentativa de romper essas
barreiras com sinceridade. Com sentimento. Quem seria o tonto de discordar da
opinião absurda da avó? Quem o tonto a demonstrar, pela discórdia alucinada ou
pela ausência justificada, as torpezas em que recai o amigo querido? É preciso
retornar ao pré-verbal, ao corpo materno, à subjetividade objetivada na obra e
dissoluta em sua experiência. O infinito da autoapercepção contra a finitude da
autoconsciência. Reeduquemos o corpo de nossos estudantes primários e
secundaristas com nossas obras que jamais respirarão os ares fetidamente esnobes
dos museus. Conhecerão escolas. Casas. As ruas. Os n o s s o s templos.
Os sábios nos sussurrarão de cima de suas torres de marfim e através de seus
grossos volumes que a arte tomou consciência de si mesma e conheceu assim o seu
fim. Que lançarmo-nos no oceano primordial do instinto, do não feito, do infecto, é o
mesmo que afogarmo-nos nos detritos da cultura e nos restos desagregados de nossos
mitos. Que ou se abole a arte ou se traz sua impossibilidade para seu interior, que ela
ou se dissolve na práxis vital ou ganha uma autonomia absoluta e ahistórica. Só os
tontos sentem na pele a falsidade dos binarismos. Os sábios, para tanto, não bebem o
suficiente em suas pomposas vernissages. E n i v r e z – v o u s: e n i v r e z – v o u s,
e n i v r e z – v o u s!
Nada mais distante do que querem os tontos. Não somos a retaguarda das
vanguardas, mas a vanguarda da retaguarda. Faremos a revolução ptolomaica do

99
tempo exigindo a volta da elipse do passado e do futuro em torno do presente.
Apreciar a arte grega por seu relato aurático de outrora é tomar a ruína de um
aqueduto pela beleza estonteante de Vitória de Samotrácia.
Ou de sua irretocável falsificação.
De sua cópia perfeita.
A reprodutibilidade técnica não fechou senão as portas erradas. Se a técnica
fotográfica tornou obsoleto o pincel é porque já desaprendêramos a sentir a tinta. Se
quisermos fazer vibrar vossos ossos em ressonância com aqueles da tradição não vos
obrigaremos ao pensamento, mas vos chacoalharemos até a alma com o
acompanhamento da música e da poesia que vos levará até eles.
Nunca seremos ahistóricos como nunca celebraremos no passado senão a
beleza. Elevamos a beleza a critério narrativo único da história e reinventamos assim
uma nova arte. Gozar a velha arte, com os critérios da velha arte, era como ter um
orgasmo olhando-se ao espelho. Não nos submeteremos à lógica da mídia e da
mercadoria, e atacaremos o flanco burguês e racional da produção: jamais
assinaremos nossa obra. Pouco nos importa que mão esquerda de qual irmão
soergueu um pouco mais o vértice de nossa vida espiritual. Hofmann fez mais pela
arte que todos os seus velhacos curadores quando de sua vigésima quinta tentativa
naquela sexta-feira de mil novecentos e quarenta e três. Sim, somos tontos.
Tontos pela descolonização racional dos sentidos. Pelo anonimato
colaborativo com a comunhão e evolução da humanidade. Pela impetuosidade
autocrática do verdadeiro sublime. Pela derrocada da democracia que não seja
universalmente particular. Pelo fim da arte esperta e preguiçosa que rebaixa a arte
para encontrar a vida. Pelo contrário disso. Pela extinção de nossa prisão
performativa: se qualquer coisa pode significar tudo, pela doce servidão do
necessário.
Pela performance.
Pela dança.
Pelo corpo.
Pelo bem autotélico.
Pela revolução.
Em uma palavra:
Por uma nova paixão da beleza.

100
Fez-se um majestoso silêncio até que sentissem, um por um, que a última
molécula de ar deixava realmente de vibrar, e se distendia na mesma paz orgulhosa
que sentiam. Todos então aplaudiram, abraçaram-se, gritaram emocionados e saíram
em busca de mais vinhos. Só André parecia dividir aquele entusiasmo com outro
sentimento. Engoliu os dois para ficar com um terceiro: quebrando um protocolo
imaginado, levantou-se e foi dar-lhe um longo beijo no meio da sala, onde só ela
permanecera de pé:

- Está perfeito, Ju.

101
VI

A agudeza de seu padecimento enfim diluiu-se. Diluiu-se na mais intensa dor


que pode ser uma dor dissoluta, mas diluiu-se; na mais absoluta desolação, em que
sentia como se aqueles golpes em sua alma tivessem-lhe deitado por terra e deixado-
lhe ali, absolutamente só, mas diluiu-se. E podia então recomeçar a pensar. Não
como antes, com certa distância de seu sofrer, mas ao menos tinha de volta algo para
não mais se ver preso à cadeia de viciosamente ter de sofrer e só pensar no sofrer em
que se via encerrado. Quis não mais lembrar.
Pensou na paz de esquecer o que vira, a figura de Juno, a completa
mortificação que sofrera. A paz branca, celeste e flutuante de deslembrar-se de sua
dor, desvencilhando-se da estreiteza compressiva em seu peito e senhoria de seu
pensar. Imaginava-se, ainda sem se distrair de todo, sempre com o timbre lancinante
daquela angústia, a leveza de se levar a vida só com as mais banais preocupações
prosaicas, com as mais fugazes frustações diárias, com as mais simples aspirações. A
leveza de se levar uma vida sem aquela lembrança e a dor que era dela. E a dor era
muita. E esquecer era pouco.
Não queria, ora, era natural que não quisesse, seguir carregando aquela
mágoa, ainda que não lhe sentisse o peso; não queria levar consigo a mácula que era
aquela noite, ainda que a rasura de sua causa apagasse também dela sua
consciência: queria, isto sim, que extirpassem por qualquer operação divina aqueles
fatos do curso da história da humanidade. Senão, em que tipo de bárbaro ignóbil se
transformaria? Que espécie de ser seria esse, cujas experiências negativas, mas
significativas, ele simplesmente se resolvesse por não arrostar? Que diabos de vida
covarde seria essa formada por vividos que não se somavam e preenchida por não
viveres? Não, isso nunca: era homem digno. Preferia mesmo era que Juno não o
tivesse feito, que nada daquilo tivesse sido, que então ninguém pudesse flagrar o que,
assim, nunca teria existido.
Mas ele a amava demais para que pudesse ao menos enganar-se de querer
uma assim tal paz. Cada estado de coisas no mundo era então consequência do
imediatamente anterior estado de coisas no mundo, que resultava, inevitável, do
estado de coisas que lhe antecedia: construía-se assim uma imensa cadeia
inescapável, cujos pesados grilhões se prendiam a todos e prendiam todos uns aos

102
outros. Sentiu que tremeria ante a qualquer possibilidade de consumação de seu novo
desejo: o que mais haveria de mudar para que aquela noite não fosse a noite de seu
tormento? Para que ninguém nunca acariciasse por sobre a blusa aquele seio que já
tinha por seu, quem deveria ser então dele a dona? Não seria mais a Juno por quem
ele ali errava, mas uma outra, uma que não se entregasse a um outro. Para que os
lábios secos com os quais sonhava não se molhassem na saliva doce de outro beijo,
quem então teria sobre eles o mais alto arbítrio?: seria ainda aquela menina vibrante
capaz de praguejar contra todo um sarau? Teria ela ainda a mesma constituição
física, psíquica e inconformável, só ela apta a lhe tocar com o condão do amor?
E se ela fosse mesmo a mesma apaixonante Juno, em sua completa divindade
humana, ainda com seus trejeitos encantadores e sorrisos arrebatados, aquela que
em um milagre caiu de amores e o fez apaixonar; se tudo isso fosse ainda o mesmo
tudo isso, quais de suas carícias teriam que sumir do mapa temporal da humanidade
para que pudesse levar consigo a noite que lhe desalentava? Quantas de suas
inesquecíveis noites de amor teriam que se vestir com o manto do esquecimento do
não ocorrido para compartilhar com aquela noite essas mesmas vestes? Quais de
suas confidências na madrugada sobre o mesmo colchão teriam que ser afugentadas
para o estranho campo do não ser? Teria de perder a visão deslumbrante de seu
vestido preto com botinhas azuis da primeira noite, seu jeito de falar com gestos, ou
era a noite mágica no restaurante chinês de balõezinhos vermelhos que se esgueirava
pela borda do precipício do que não foi?
Abrasava-se sufocado entre as paredes flamejantes do completo desespero
sem saída. Comprimia-lhe, de todos os lados, a vida. Nem a existência desbragada e
dionisíaca das festas de todos os dias, nem as plácidas montanhas de um sábio
eremita. Nem os prazeres das vitualhas nutricionais, do aroma de vó ou de infância,
das epidermes expostas na praia, das novas vidas desequilibradas sobre as bicicletas
no parque, da atração das genitálias, da dor masoquista, nada: era a morte a única
saída. O pavor da finitude não lhe era agora tão asfixiante quanto o de seu contrário.
Se podia viver para sempre, viveria sempre com os mesmos prazeres, as
mesmas dores e o mesmo labéu indelével daquela noite. Se podia beber do Lethe, do
rio que subia à sua direita, quem seria então? Se só entramos depois de límpidos e
imaculados no Paraíso, quem é que entra afinal? Os júbilos supremos entre os anjos,
quem é que os sente, quem os goza? Quanto se pode mudar o homem e sua
humanidade sem já se estar falando de uma morte? E quantos bilhões de trilhões de

103
anos até que o homem se depare, inconformado, com a angústia divina da falta de um
depois? De um além? Com o enfado com todos os seres, com todas as constelações de
estrelas, com as galáxias e mais galáxias de criações e milagres que já terão perdido
seu encanto de novidade?
E seja a reencarnação a resposta do eterno, quantos bichos? Quantas novas
sensações de cores ultravioletas, de sentimentos microscópicos, de convivências com
neandertais e dinossauros, de encontros com reis romanos e feudais até que demos
com a cara limpa contra a quina do que é que seja isso? Contra a fatalidade de que
tudo é isso, e de que não há nada para lá do tudo.
Já lhe faltava o ar quando finalmente viu que a subida conhecia seu fim.
Escutava nítido como nunca antes o soar distante dos teares e teve que dividir a dor
na alma com certa ansiedade curiosa. Fechou os olhos para se concentrar no esforço
desumano dos últimos passos e desejou, já sem ponderar sobre nenhuma implicação
ou consequência que, ao menos, o que ocorrera aquela noite não o afligisse com
tanta força. Do tormento de alma fez-se um lapso de calmaria e ele, nele, viu com
límpida consciência que nem por todo seu suplício, arriscaria uma parcela sequer de
seu amor.

104
VII

- Bêbado? Haha! Não; bêbado eu tô agora, eu tava idiota. Deixa disso,


aproveitei um monte também. Perdi de vocês e andei o lugar inteiro umas
três vezes, encontrava sempre as mesmas pessoas nos mesmos lugares: um
casal quase transando do lado da porta do banheiro, aquela menina de meia
calça rasgada que a gente viu na fila, um grupo de uns seis moleques com
idade para estar no colegial. Minha memória fica fotográfica pra tudo
quando eu tento lembrar de uma coisa só. Haha... Eu sou muito estranho.
Só não lembrava que roupa vocês estavam usando ou onde a gente tava
antes. Mas, enfim, comecei a conversar sei lá o quê com essas duas
meninas, acabei ficando amigo do grupo delas, um pessoal que fez
intercâmbio ou viajou junto, sei lá. Fomos todos pra casa de um deles, uma
cobertura imensa com vista pra cidade inteira, tinha uma geladeira lotada
de bebida ainda. Colocaram uma música, música boa, podia ser uma
playlist nossa, e caiu todo mundo na piscina, de roupa ainda. Zoado? Que
nada, a ideia foi minha, na hora fazia sentido. Mas, então, na piscina vi que
uma das meninas tava cantando a música do fundo da alma, fazendo o
punho fechado de microfone. Nossa, ela tava maluca também, mas era
linda, vivíssima. Ah, sei lá, me deixa usar meus adjetivos em paz. Aí meu
instinto falou mais alto. Haha. Não tem como, né. Quando a gente
começou a ficar aconteceu a merda: o cara que tinha colocado a música
ficou possesso, começou a gritar comigo, falou que nem era pra eu estar ali
e pulou na piscina já com o dedo na minha cara. Parece que ele já tinha
tido alguma coisa com ela, ou gostava dela, não sei. Só sei que ela ficou
meio escondida atrás de mim e eu abri os braços um pouco pra trás, como
que protegendo: tava me sentindo uma espécie de Don Juan cavalheiro,
protegendo minha dama. Cada ilusão, a vida é divertida... Não, não. Deu
tudo certo. Pessoal veio e acalmou tudo, depois ele até me pediu desculpa.
Esse povo vai pra praia esse final de semana, falaram que eu posso ir. Não
sei, tô um pouco cansado, mas tô querendo ir sim. Vamos vendo.

105
Felipe, um jovem magro, de postura bem ereta, era alto e tinha um sorriso
cativante. O cabelo claro e curto aliado a traços finos, quase femininos, em especial
por sua mandíbula guardada para trás, dava-lhe uma aparência de todo não detestável:
era uma dessas figuras pelas quais se tem imediata simpatia. E seu mundo, agora,
girava à sua volta. Talvez a história que acabara de contar em voz alta, sozinho em
seu quarto, só para si e para um interlocutor de fantasia não fosse ela toda sincera,
mas que ele bebera demais na noite anterior provava-lhe – ainda que só para ele
mesmo, o que no seu caso não era dizer em vão – a forma massacrante como sua
cabeça doía-lhe, comprimindo-se.
Distraía-se da dor, e da língua colada ao céu da boca seca, contando
aquela aventura como se a um amigo justamente para que não a precisasse
narrar a ninguém: espremida entre a propensão do caráter e a clareza da
consciência, refestelara-se nele desde cedo a frouxa resolução de desfrutar na
vida apenas de uma vaidade velada, e de um silêncio supostamente humilde
sobre suas razões, cujo desvario e magnitude não precisavam nunca, assim, na
penumbra do não dito, serem colocados a prova, permitindo-lhe uma imagem de
si tanto irrepreensivelmente heroica quanto absolutamente modesta, ao próprio
gosto. Podia ainda, mas isso já em pleno propósito, esquivar-se da mais populosa
espécie de conversa que conhecia, em que cada um apenas espera impacientemente
sua vez de narrar suas estórias e vantagens para uma plateia ensurdecida pela
ansiedade de se esperar impacientemente por sua vez de narrar estórias e vantagens:
excluindo-se desse circo, Felipe julgava-se capaz de se mostrar de fato bom ouvinte e
de ceder, a cada nova rodada, a sua vez de gabar-se: era sua forma de impor-se como
a mais agradável das companhias, garantindo-se o almejado bafejo social.

- Fala aí – respondeu ao celular, depois de vencidas as forças da gravidade e


da ressaca – Ah, não sei não. Ainda estou meio morto de ontem, não tenho
mais idade pra essas macaquices... Não, não. Não voltei sozinho pra casa.
Ou melhor, voltei, mas não vim pra casa depois da festa, fui pra casa de
um pessoal com uma menina que conheci lá. Olha, eu sei. Vou te falar a
verdade. Eu sei que tô no vermelho com vocês, mas é que ando meio
atolado na agência mesmo. E eu saí com vocês ontem, poxa, não é minha
culpa que vocês não me acompanharam. Haha. E eu quero sair hoje sim,
claro, você me conhece, pô. Eu vou tentar fazer as coisas do trabalho

106
antes, se eu conseguir eu dou um toque. Fica combinado assim, então,
beleza? Eu sei, eu sei, quero ir, já disse. Acho que eu consigo. Um abraço.

A chamada foi dar em uma sensação estranha que agora Felipe não sabia a que
exatamente atribuir. Fora, talvez, esnobe demais ao dizer que não voltara diretamente
para casa? Ou dera seu amigo indícios de que estariam chateados por ele se ter feito
desencontrar do grupo? Talvez ainda, e o que era pior, seu amigo estivesse de
antemão duvidando da estória que ele premeditava nem mesmo contar. Fosse o que
fosse, arrependia-se de ter atendido àquele telefonema: tinha, de fato, muito que fazer
e talvez sem aquela conversa, mesmo que viesse a saber do tal coquetel de formatura
daquela turma de medicina, não sentiria vontade alguma de ir; vontade que parecia
agora começar a atiçá-lo.

- Felipe? – era sua mãe que lhe gritava da cozinha.


- Bom dia, mãe.
- Boa tarde, né, filho de Deus. Descansou? – perguntava com o tom mais
amistoso que conseguia imprimir.
- Dormi bem, não estava aguentando. Semana inteira trazendo trabalho aqui
pra casa, hoje ainda consigo adiantar alguma coisa. Já está fazendo a janta,
mãe?
- Já? São seis da tarde, Felipe. Mas eu vi mesmo que você chegou cedo
ontem – a benevolência tomava, sem que quisesse, ares de repreensão –
Divertiu bastante ontem?

Empregava maximamente seus esforços para recalcar com sucesso o instinto


materno que lhe empurrava a comentar aquele descuidado consigo mesmo, cuja prova
ela deduzira dos passos cambaleantes e altos com que ele se trouxera ao quarto pela
manhã. Sensível, evitava qualquer expressão que, pelo conteúdo ou pela forma,
acuasse Felipe em algum canto da relação hierárquica de mãe para filho: sabia,
melhor que ele próprio, como lhe feria o orgulho começar os primeiros anos da vida
adulta ainda debaixo de seu teto, e reconhecia para si que, se ele estava ali, era porque
ela, à maneira de uma mãe, tantas vezes lhe instara esse favor sem nunca ter de fato
que o pedir:

107
- Mãe, acho que vou tomar banho e já começar a fazer minhas coisas.
Talvez eu vá a uma formatura mais tarde – disse tomando o caminho de
volta ao quarto.
- Felipe! – gritou em reprimenda, erguendo as duas mãos: uma livre, outra
ocupada da faca com que cortava os legumes – E sua irmã? Você disse que
ia com ela hoje – falava sobre sua irmã mais nova, que tinha quase por sua
filha, adotada quando ele já se cria rapaz.
- Calma, mãe. É hoje? Não pode ser hoje, em pleno feriado.
- Era o único dia que a mãe de uma das meninas podia, e a diretora achou
melhor abrir uma exceção do que adiar o problema mais uma vez –
respirou fundo, como a medir as palavras em voz alta – Eu não estou te
chamando a atenção, filho, mas nesses últimos tempos você não para mais
em casa.
- Você não pode estar realmente reclamando disso, mãe, não é possível.
- Calma, Felipe, eu entendo. Acho ótimo que você tenha sucesso
profissional, que você tenha conseguido fazer amigos bacanas que têm
dinheiro para sair todo santo final de semana, e fico feliz que você se dê
bem com eles. Só acho que sua família tem que ser relevante para você,
filho, tem que ser uma área da sua vida em que você se empenhe também,
em que você busque seu sucesso.

E era. Se há de fato pessoas às quais não se possa imputar um atributo cardeal


pelo qual guiam todas suas ações, reforçado e consolidado a cada vez que é repetido
pelos outros, em irresponsável decreto, Felipe não era uma delas. Pragmático desde
muito novo, e nunca lhe faltando quem lhe lembrasse disso, Felipe dividia sua vida
em diferentes frentes de batalha, e construía minuciosamente seu triunfo em cada uma
delas: trabalhava à exaustão em cega busca pela sonhada promoção, já praticamente
geria com mão de ferro as finanças da casa, sabia sempre citar um ou outro livro que
embasasse qualquer de suas repetidas opiniões políticas e, para a frente espiritual,
acostumara-se a pensar em algum tipo de deus até adormecer, o que se convertera em
seu nome para oração. E sua família era justamente a frente síntese de sua vida: reunia
a todas, e lhe desolava a possibilidade de sua mãe e irmã não enxergarem nele o
admirável e complacente porto seguro que ele representava.

108
- Pode falar – era seu celular, mais uma vez – Poxa, é igual eu falei pra ele,
não sei se vai dar. Claro que não, vocês que foram embora cedo. Para você
ter uma ideia da minha noite, acho que estou gripado por ter ficado a
madrugada toda em uma piscina... Pra que eu ia mentir, porra?... Tá,
depois a gente se fala – atalhou Felipe – Olha, mãe. Eu não busco sucesso
nas áreas da minha vida, ela não é dividida assim e, se fosse, vocês não
seriam só uma área da minha vida. Eu só tento alcançar excelência em
tudo o que eu faço, tento me orgulhar da minha vida. Se você acha que eu
não tenho motivos para isso, é uma pena, mas paciência.

Felipe não mentia, mas tampouco dizia a verdade fosse para sua mãe, fosse, o
que é sempre possível, para ele mesmo – não aceitava para si, embora a vivesse com
plena clareza intuitiva, a constituição especular de todo homem: tão logo nos vemos à
luz, escancaramos os olhos para poder só encarar sem saída outros já velhos espelhos
vivos; não o que são por trás do reflexo, a verdadeira lâmina de prata que todos são,
nem mesmo a imagem sem par que fazem de nós, mas só as projeções nossas que
lançamos neles, deles, de nós mesmos e das imagens que todos têm de nós.

- Tudo bem, filho. Só achei que você ficaria hoje com a gente, estou fazendo
sopa para você. Não estou pedindo muito. Achei que você entenderia isso:
ainda mais agora, com tudo o que a gente está vivendo.
- Puta merda, mãe! Você me jogar isso na cara por causa de um
probleminha de pré-adolescente mostra o tanto que você é despreparada
pra lidar comigo e com minha irmã, sabia? Eu não consigo nem acreditar...

A qualquer estranho que agora ali entrasse seria dado até mesmo tatear o peso
do clima que, em uma guinada, assolara a apertada cozinha: ele poderia, sem escutar
sequer uma palavra, pressentir que se havia ali conjurado um assunto banido;
conhecido de todos e igualmente temido, convocara-se sem dúvida uma criatura
relegada ao submundo do tabu.
Após a morte do pai e passado o luto inicial, foi-se aos poucos e sem querer se
evitando qualquer alusão à sua ausência; supunham assim, e com certa razão, evitar
enfrentar uma dor para a qual não estavam preparados. Mas o que no início era uma
decisão foi se transformando em mero costume e, com o tempo, passou-se naquela

109
casa uma curiosa metonímia de espírito, pela qual tomavam aquilo em que não se fala,
por aquilo em que era proibido falar. Foi assim que a morte do pai de Felipe passou a
obedecer ao estatuto do sexo nas famílias com profissão de fé no ateísmo, mas
insistentemente vitorianas: pensamento sempre presente, ausente só na fala e força
motriz de grande parte das decisões, carregava consigo ainda todo o poder do
repetidamente silenciado. Tais assuntos, sabe-se, só são trazidos à superfície em
momentos de profunda instabilidade, de cujos resultados nunca se pode ter qualquer
previsão:

- Deixa eu te perguntar uma coisa, então. Esse grupinho que está


infernizando a vida da minha querida e intocável irmãzinha é por acaso
algum clubinho, um grêmio do colégio ou é só um grupo de amigas
mesmo? – valia-se de um tom tão ácido, e já tão encolerizado, que tinha de
forçar a saída de cada palavra para que não as misturasse todas em um
mesmo caldo incompreensível.
- São aquelas mesmas meninas, que no começo eram amigas dela e agora
quando ela finalmente estava se sentindo enturmada nessa escola,
começaram a... – respondeu a mãe com calma, ao perceber que o que
dissera comovera seu filho mais e pior do que projetara.
- Então eu vou te falar uma coisa ou outra que eu aprendi sobre grupos, mãe
– interrompeu-lhe, retesando os dois indicadores no ar – Como se forma
um grupo de amigos?... Isso, mas eu não diria ainda gostam, é cedo.
Algumas pessoas sentem mais simpatia por certas pessoas, e outras, por
outras. E por que é assim? Fala, pode falar! Não, não. Você está pulando
etapas. Não é que elas tenham os mesmos gostos, os mesmos interesses, as
mesmas preferências. De novo, é cedo demais.
- Felipe, não precisa falar desse jeito. Calma, eu não quis te cobrar nada. Eu
reconheço tudo o que você...
- Talvez para isso seja sempre cedo demais – continuou, deixando o tremor
crescer da ponta de seus dedos para tomar toda sua mão – Como isso seria
possível, como elas se gostariam ou deixariam de se gostar se elas nem ao
menos chegaram a se conhecer? Não. O que acontece é que algumas
pessoas idealizam em outras a imagem mais ou menos fiel do amigo que
elas gostariam de ter. E essa imagem é, normalmente, também a imagem

110
que elas tentam fazer e vender de si mesmas. Porque as pessoas em
sociedade são isso, mãe: prostitutas a cruzarem, descruzarem e abrirem as
pernas, tentando agradar seus clientes.
- Felipe!
- Não, agora eu vou terminar. E quanto menos ela tem as características que
seu público deseja, quanto menos ela é o estereótipo cobiçado, quanto
menos ela sabe se vender, enfim, quanto menos luxuosa a puta...
- Felipe, não importa o quanto você esteja chateado, não me importa se você
está de mau humor por estar de ressaca, ou se você ainda está bêbado, mas
você não vai falar desse jeito aqui em casa! – quis impor-se a mãe,
valendo-se do mesmo expediente, agora com intenção diversa, de se falar
do nunca dito para conjurar a gravidade que se quer demonstrar.
- Quanto menos luxuosa a puta, menos ela pode escolher seus clientes. Mas
agora, pronto, certo? Temos um grupo de amigos. Temos um conjunto de
pessoas que se escolheram e conseguiram ser escolhidas pelo que
projetaram em suas imagens, chamaram isso de se gostar e vão poder
agora passar tempo juntos, compartilhar interesses e se divertir, não é?
Errado, mãe. Claro que não. Falta o ingrediente essencial, o ingrediente
sem o qual nenhum grupo de amigos pode surgir, o ingrediente que você
está insistindo em não ver: sabe qual é, mãe?
- Não, Felipe, não sei – resignou-se ao perceber que o raciocínio reduzia a
desmesura da agitação de seu filho.
- Falta a exclusão, mãe. Um grupo de amigos precisa de um grupo de
excluídos. Ele pressupõe isso, ele pressupõe uma coitada como minha irmã
que vá conversar com eles, que tente ser um deles, mas não consiga.
Alguém que não conheça as regras subentendidas, os padrões de conduta
implicitamente impostos, as proibições pressupostas. Elas precisam da
minha irmã, mãe. O quê? Pode falar alto, pode me interromper, eu estou
calmo. Não precisa ser sempre assim? É claro que precisa. Imagina um
grupo sem escolha, sem um processo seletivo: todo mundo que se
aproxima, sem distinção de assunto, valor e comportamento que ele
carrega em sua imagem é aceito sem hesitações. Acontece que as pessoas
querem ser diferentes, mãe. Logo umas simpatizariam mais com outras,
conversariam mais com umas que com outras para poderem rir com umas

111
dos tropeços das outras, para poderem se calar com a aproximação de um
desafeto. Agora, o que acontece? – Felipe inclinou o tronco para frente
com o indicador em riste, e começou a falar pausadamente, mostrando que
entrava enfim no assunto tenebroso que o porte de seu discurso prefigurara
desde o início – Eu amo minha irmã, mãe. Mas ela é gorda, ela...
- Felipe, chega. Chega! A sua irmã... – a mãe, com a faca ainda em punho,
avançou em sua direção tentando empurrar seu rosto, só para ser
empurrada e ver Felipe dar de vez as costas para a porta da cozinha,
encurralando-a.
- Ela é gorda; ela é feia; ela não é interessante pras colegas dela; e ela não
tem um mínimo de tato social. Que chance ela tem nessa ciranda? O que
eu não entendo é por que você quer que ela se esforce para descobrir que
imagem ela tem que ter, como ela tem de se comportar, que opinião é bom
ou não ter.
- Cala a boca, Felipe. Cala! Olha...
- Por que você faz isso, mãe? Por que você quer que eu te ajude a fazer isso?
Porque algumas gordinhas que são menos gordas que ela começaram a
achar ela esquisita? Minha irmã gorda foi expulsa de um grupo de
gordinhas, mãe. Em vez de você falar pra ela ser quem ela é, pra ela
procurar fazer as coisas que ela goste de fazer, pra ela ser bonita do jeito
dela, enfim, em vez de ajudar minha irmã a sair dessa ciranda maluca
como eu saí, o que você faz? Marca essa reunião patética com os pais das
outras meninas para forçá-la goela abaixo em um grupo que já deixou
claro que não gosta dela. Você é a cafetina social dela, mãe, e ainda está
fazendo um péssimo trabalho.

Felipe distendeu o corpo rígido e encostou a nuca nas costas, alongando o


pescoço ao descrever um semicírculo no ar que normalmente terminava em um olhar
fixo no mesmo ponto em que o deixara – um cacoete que carregava desde a infância.
Dessa vez, porém, mal terminara sua volta e flagrou um movimento perturbador na
entrada da cozinha. Sua vista acompanhou os armários brancos em madeira sobre o
fogão até o vértice que a pia formava com o vão da porta, onde ficavam sempre três
compridos jarros de vidro com tampas enroscadas, cada uma com sua cor. No jarro de
tampa azul havia sempre, sempre só até a metade, variadas balas de sabor enjoativo; o

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de tampa laranja nunca trazia nada, um costume tão inexplicável, quanto invariável; e
o jarro vermelho, pois era assim que acabavam lhe chamando, estava sempre mais
vazio do que cheio: era o que guardava o doce de ameixinhas, favorito de sua irmã.
Fora justamente ele que se mexera.
A cena se fazia desconcertantemente pitoresca: a mãe, de avental branco
coloridamente manchado e faca em punho, abandonara espalhados pelo balcão a
rapsódia de legumes amarelos, bem vermelhos, roxos e alaranjados em contraste com
a severidade cromática da cozinha, e olhava, rígida, apenas para Felipe. Este, por sua
vez, era todo cinza e branco, branco da camiseta, cinza da cueca boxer com que se
levantara. Com as costas curvadas para frente e com os ombros recaídos, olhava para
o chão e, só de soslaio, para sua irmã. Ela, imóvel, estava de dar pena: abraçava com
força o jarro vermelho contra a barriga e apoiava o queixo sobre sua tampa. Estava
com uma camisola que lhe cobria até quase as canelas, estampada com desenhos
rupestres de animais imaginados que deixavam, inúteis, adivinhar a calcinha rosa por
debaixo dela. Tinha ainda uma mancha branca do lado direito da boca, da baba seca
de seu cochilo recém-abandonado, e olhava para Felipe sem parecer mexer um
músculo, sem parecer sequer o enxergar: estava em uma espécie de transe que não a
deixava reagir e que não deixava descobrir desde quando estava ali:

- Você fala isso porque não é feio, não é gordo. Você fala isso porque não
faz ideia de como é ser assim – rompeu o silêncio após torturantes
segundos, deu meia volta e correu de volta ao quarto, jarro vermelho sob o
braço.
- Eu falo isso, porque eu consigo entender... Eu sei como funciona a cabeça
dela e a das... – dirigia-se à mãe, como se tivesse partido dela a objeção.
- Vai pra sua festa, Felipe – interrompeu, dando-lhe as costas para voltar aos
legumes.

Felipe teve a loquaz sabedoria de calar-se. Talvez sem aquela constelação ele
acabasse enfim por desistir da festa de formatura, mas, para o principal valor ali em
jogo, sua boa relação com a família, ficar em casa tornara-se de uma tacada só tão
danoso quanto a deixar. Além do mais, se o único remédio para solidão é de fato se
estar só, e se só consigo se pode mesmo estar com alguém, Felipe já não mais
suportava sua própria companhia. Envelhecera sua irmã com as mais brutas das

113
palavras, logo ele que sempre a entendera, desde criança, tão bem. Logo ele que se
orgulhava de nunca lhe ter causado o choro pelo excesso de atenção depois de uma
queda, que nunca lhe instara a repetir uma frase à mesa como se uma criança entre
adultos fosse uma qualquer atração de circo, que jamais falara dela em sua frente na
desdenhosa impessoalidade da terceira pessoa: logo ele.
Passaram-se dez, passaram-se vinte e passaram-se trinta minutos sem que seu
amigo aparecesse para lhe buscar na portaria. Aparecera somente uma garota que,
recendendo a azaleia, lembrara-lhe que não passara ele próprio seu perfume. Por uma
briga ganha-se uma carona, por uma carona ganha-se um atraso, por um atraso ganha-
se um perfume, e por um perfume pode-se ganhar o inferno dos outros: Felipe tinha,
por fim, empurrado-se à festa.
Os cinco amigos entraram juntos no imenso salão. Felipe, que ia um pouco à
frente, observava atenta e interessadamente o palco que se lhe oferecia: as rodas de
pessoas, as luzes multicoloridas da pista de dança, as mesmas risadas e piadas – nada
ali era exceção a uma regra que não conhece exceção.
Via um rapaz belo, alto, mas esquálido demais, aproximar-se solitário de um
grupo de três moças; cumprimentava a todas, só com uma ele conversava. As outras
duas, duas morenas bem pintadas, recuavam-se a ciciar em mal contidas risadinhas.
Uma delas, a mais miúda e mais baixinha, via de longe aproximar um meio amigo
seu, confiante e destoante, rindo debaixo de seu Borsalino, surpreendido agora pela
estranha e desastrada corrida daquela ema de pernas curtas, mas salto alto.
Adiantando-lhe o abraço ela o trazia para onde estava, apresentava-lhe a amiga, e
engrenava qualquer conversa. A amiga, constrangida pelo assunto que teimava agora
em não sair de um passado que não teve, procura um pretexto e pede, hesitante,
licença, vou ao banheiro.
A desculpa foi bem dada, o banheiro era preciso, mas o caminho até ele era
longo e conturbado, sobretudo por já se estar naquela dança curiosa, em que não
querer dançar era só mais uma forma de dançá-la: assim, interrompia-lhe logo o
trajeto outro moço muito elegante, mas bem baixinho. Ele estava bem vestido, de
blazer sobre uma bonita camisa azul marinho, mas era baixinho. Mesmo com sua
postura bem eriçada e o salto dela mais rasteiro, mal podia lhe alcançar o queixo –
definitivamente: muito baixinho. Ele devia estar agora a tentar adivinhar-lhe o nome
ou profissão, em boba brincadeira inventada, pois ela era só curtos e espaçados nãos
com a cabeça.

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Passara de respostas monossílabas para deixar de todo de lhe responder, até
que a conversa, a voz e, como não, a estatura reduzida, comprimissem-lhe ainda mais
a bexiga a ponto de sentir-se livre para ordenar: falo sério, dê licença, quero ir ao
banheiro. Ele dá-se por vencido, abre passagem e põe-se ele mesmo a andar. Sem
demora, encontra um provável amigo, que, vindo ele próprio de semelhante derrota,
cumprimenta-o com falsa efusão, como se a festa em redor já não tivesse interesse.
Conversavam em um volume exagerado, riam exageradamente, regiam o corpo em
movimentos exagerados: eram como dois pássaros, a cantarem em uníssono o cortejo
de uma fêmea que nunca vinha.

- Pessoal, vocês já sabem: atacar em leque, defender em funil – decretou seu


amigo que lhe puxava pelo ombro, indicando o caminho até um dos
balcões em que se serviam as bebidas – Mas, antes, vamos molhar a
palavra.

Felipe obedecera à instrução, comprometido a não se perder da nuca de seu


amigo que ia à frente, mas não deixava de observar a movimentação ritmada e
previsível que o cercava. Via o grupo de jovens já convencidas pelo álcool a
dobrarem-se sobre si mesmas até quase alcançarem com todo o corpo o chão, de
forma um tanto estabanada e pretensamente dançarina. Via a moça que se esticava
toda e colava o rosto para conversar, e via o moço que, hesitante, só ainda conversava.
Via tudo isso – até que a viu. E era linda. E viu suas sobrancelhas bem compactas,
sem que fossem espessas, levemente arqueadas, embora fossem curtas e apartadas
uma da outra. Altas, tinham a cor dos de si distantes olhos castanhos e amendoados, o
que lhe dava um semblante mais que sério, pungente. Elas definiam seu rosto
alongado e contrastavam com a brancura lisa de sua pele, mas harmonizavam com
seus longos cabelos também castanhos, ondulados no topo, já quase em cachos na
ponta. Usava um vestido curto e preto a evidenciar sua cintura e busto: talvez o que
houvera atraído aquele homem com quem ela conversava com a cara de mais absoluto
tédio.

- Galera, vamos ficar por aqui um pouco? – pediu Felipe, que cogitava ir até
ela, mas ainda temia perder-se de novo de seus amigos. De que valeria ter
ido até ali se acabasse longe deles mais uma vez? De que lhe valeria agora

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uma brilhante história verdadeira se, aos olhos dos mesmos amigos, ela
pudesse soar tão falsa quanto a outra? – Vamos por aqui.
- Já veio com o demônio no corpo, hein Fê? – comentou um dos amigos,
que se afastavam do novo par em maliciosa deferência.

Se podia estar mesmo endemoninhado era por não ter nenhum anjo caído só,
pois de uma mortandade bem diferente sofria agora André, acossado às claras pelo
demônio de pleno meio-dia. Viajara acuado por horas e ainda tinha horas a gastar em
sua escala:

- Anota meu número, caso você passe algum dia por aqui. Isso, agora me
manda uma mensagem para eu poder ter o seu, né – era ela quem o acuara,
no avião e na noite anterior – Pronto, anotado também. Eu vou indo então
– despediu-se com um beijo só quase nos lábios.

Tinha de ser uma legião para conseguir a criação de tão imenso vazio: por que
só Juno era capaz de lhe oferecer uma alma para além de frases feitas, preocupações
prosaicas e no fundo rasas miragens de crises existenciais? A paga dessas pequenas e
banais liberdades não lhe valia o sacrifício de ter de dá-las também a Juno: parecia
perceber agora, malgrado o atraso, que a fidelidade da união nada tinha de ver com os
outros – era a aliança e intimidade com uma outra vida que podia encher de sentido a
sua; eram os compromissos levados a sério e a fundo que podiam lançar âncora contra
as águas rasas da calmaria cotidiana, tão pior que a borrasca.

- tava com medo que você perdesse sua conexão, nem consegui despedir
direito – chegava por mensagem o que lhe faltara em coragem para
mergulhar além da superfície – foi mto bom conhecer uma pessoa incrível
e tão fofa. passamos momentos demais com uma galera top, aquele hotel
nunca mais será o mesmo dps da nossa festinha... aproveite o final de sua
viagem e vamos tentar manter contato... um Bjao pra todos.

André não sabia identificar a causa, mas o fato era que com a chegada ao seu
destino estava arrebatado por um desses rompantes de alegria tão súbitos, quanto em
geral fugazes. Estava satisfeito, fora de si e sem a mínima necessidade de procurar por

116
motivos: era como se um hormônio tivesse escapado à causalidade natural de sua
fisiologia e lhe presenteasse assim, sem contexto, sem mais nem porquê, com esse
breve estado de paz.

- ah... não lembro muita coisa de ontem à noite, mas desculpa se fiquei
demais no seu pé, estava meio alta... bjss – valia-se do anglicismo
disfarçado como se ele minorasse a ignomínia de se estar
incontrolavelmente bêbada e de não ser capaz de aceitar a rejeição de toda
uma noite.

Aproveitou o celular à mão e não se incomodou com a resposta da caixa


postal, era provável que fosse até melhor assim: já tinham se falado mais cedo e uma
segunda ligação podia denunciar seu retorno adiantado. Pegou um táxi, rumou para
casa e destrancou ruidosamente a fechadura na esperança de que Juno, espantada com
o barulho da chave e da bagagem, viesse lhe surpreender à porta. Enquanto aos plenos
de coração e palavras costuma carecer a pessoa, a outros, tendo encontrado alguém,
não raro escasseiam as ideias:

- E então, você é convidada ou formanda? – aproximou-se Felipe.


- O que você acha?
- Não sei, pô... Por isso que eu perguntei. Qual o seu nome?
- Como eu ia ser formanda em um vestido curto assim? Seria como eu
perguntar se você é formando sem estar de smoking, não acha?
- Ah, é mesmo. Eu sou Felipe – disse, vendo-se frustrado por não ter ela se
apresentado também – Acho que nem convidado sou, na verdade. Pertenço
a um terceiro grupo, clandestino, o dos com convite, mas não convidados.
Por isso não conheço muita gente por aqui – respondeu com a frase que
ensaiara desde o início, embora não tivesse sido feita a pergunta.
- E por que você veio então?
- Porque eu quis, ora – só cogitou falar – Como assim? Ah, não sei. Meus
amigos vinham, acabei vindo com eles.
- Você acabou de dizer que não conhece muita gente aqui... Seus amigos
também não foram convidados? – embora soubesse parecer o contrário,

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Felipe não via às perguntas uma agressão, eram antes de uma sinceridade
ingênua que o desconcertava todo.
- Formatura é sempre uma boa. Na pior das hipóteses, a gente pelo menos
come e bebe na faixa, né. Tipo, quando...
- Não entendi... Você escolheu vir para a formatura porque estava com
fome? – o certo seria desculpar-se, dizer algumas palavras sobre um
mínimo de educação e se afastar dali, mas havia certa atração subversiva
naquela forma de conversar.
- Claro que não, é jeito de falar – tentou rir com ela e justificar-se em um
fôlego só – E você, por que veio?
- Vim porque detesto esse tipo de evento.
- Para que vir então? – foi a frase que sufocou dessa vez: sentiu que,
diferente de quase todas as outras, não bastava fazê-la conversar a dois,
não seria suficiente sustentar os pilares da instituição em que estavam
esforçando-se só em não os deixar à mostra, seria preciso fugir das típicas
argamassas do emprego, dos interesses, das piadas rápidas – Sabe por que
eu acho que as pessoas estão aqui até essa hora e vão ficar até o
amanhecer?
- Não era porque estavam com fome? – desatou em nova gargalhada – Acho
que cada um vem para prestigiar algum formando, não? – era a primeira
vez que parecia sinceramente perguntar com suas afirmações pela metade.
- Não, estou falando das pessoas que vieram pela festa. Vêm e ficam pelo
mesmo motivo que se faz tudo na vida – ela aproximou-se: Felipe tinha
enfim usurpado o timão daquela conversa, reconheceu-se no controle pelo
interesse que finalmente conseguira fabricar – É interessante observar: é
como ver um encantador de montanhas, em pleno serviço, movendo-as de
um lado para o outro.
- Encantador de montanhas? Desenvolva.
- Sim. Aquilo que realmente mexe com as pessoas, pelo que se faz esforços
sobre-humanos, pelo que se abre exceções, pelo que se dispensa a cautela,
pelo que se demite a razão: o sexo – disse, torcendo para que sua metáfora
não soasse esforçada demais.

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- Ah, que interessante: o sexo como o motivo por trás de todos os motivos –
acrescentou a um bocejo forçado – Muito original... Acho que eu preciso
sentar.

Felipe achou de longe algumas mesas já abandonadas e lhe ofereceu sua mão
para conduzi-los para fora daquela algazarra ruidosa de onde estavam, mas foi antes
ela que o puxou em segura direção ao balcão de bebidas. Tendo se prontificado a
imiscuir-se na fila informe e providenciar o que ela desejasse, viu-se mais uma vez de
frente com sua inanidade, pois era já ela quem voltava com dois copos de whisky à
mão: era intrigante em todos os curtos incômodos que lhe causava. Sem se importar
se era acompanhada ou não, encontrou escanteada, próxima ao fumódromo, uma mesa
que não parecia pertencer à festa, com suas cadeiras de plástico desprovidas dos panos
verdes e cinzas que davam o tom do salão. Sentou-se e esticou as pernas em uma
cadeira à sua frente, obrigando Felipe a achar lugar longe dela, constrangido e sem
reação.

- Não estava falando que o sexo é o motivo último de todas as ações,


embora seja – retomou Felipe sem saber mais o que fazer – Mas você me
perguntou por que as pessoas estão aqui. Olha aquela morena de vestido
vinho, ali na pista, com sandália branca.
- Aquilo ali é carmesim, não é vinho nunca!
- Então, que seja, ali, de vestido carmesim – continuou sem conter uma
risada pedante, tentando fazer de sua ignorância mero desdém – Logo
quando eu cheguei, vi a amiga dela pegando a chave do carro e indo
embora. Ela está agora sozinha, dançando, e não parece estar se divertindo
muito. Mas faz questão de continuar ali, sozinha. E faz questão de fingir
que está se divertindo, mas não o suficiente para afastar algum possível
pretendente. Não, não... Não estou dizendo que ela está procurando
alguém para levar para casa hoje, agora. Mas se ir pra casa com alguém
que ela conhecer aqui, até em um outro dia, se encontrar alguém, trocar
uma carícia, um telefone que seja, fosse absolutamente impossível, será
que ela ainda estaria aí? E daqui a algumas horas, quando só os
suficientemente bêbados ainda estiverem na festa, vou perguntar se eles

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ainda estariam aí, dançando no limite das forças e da falta de pudor, se não
houvesse uma mínima densidade sexual no ar.
- Sua teoria era pior do que eu pensava – asseverou, recolhendo as pernas
para dar lugar – Ela não pode estar ali só para se divertir?
- Claro que pode. E pode até achar que está se divertindo. Mas a pergunta
era por que ela escolheu se divertir aqui, e não em qualquer outro lugar.
- Mas se o sexo é a causa última de todas as ações, daria no mesmo em
qualquer lugar, não?
- Claro, é só você mudar o exemplo – ela não parecia interessada em mudar
o exemplo, nem em anunciar sua falta de interesse – No caso da nossa
formatura, aqui, garanto que todo mundo fez tudo na vida pelo mesmo
motivo, é o que todo mundo anseia. Mas foram criadas mil barreiras, mil
significações sociais, mil questões de status e de moral. Ninguém quer ir
pra cama com o fracassado, nem com o mendigo; e ninguém quer ser
conhecida como a vadia. Com isso, foram todos obrigados a se adaptar, a
ter dinheiro, amigos, a saber se vestir para uma festa, conseguir um
emprego e saber falar dele: mas para quê? Para mostrarmos que somos um
bom par, para valorizarmos nossas ações na bolsa de valores sexuais. A
vida é isso e...
- Bolsa de valores sexuais?! Mesmo? – riu e, pela primeira vez, riu de uma
forma que soava um pouco forçada – Abstraindo tanto assim dos motivos,
você não consegue nem ao menos estar errado: você simplesmente não diz
nada, chama tudo de sexo. E o que você diria dos avôs orgulhosos de seus
netos finalmente médicos? Dos pais e mães orgulhosos de seus filhos?
- Mas justamente: o casamento monogâmico...
- É a morte – completou, engasgando-se com whisky que lhe transbordava
da boca, dobrando-se sobre a barriga para exagerar a risada – Nossa, você
é muito previsível.
- Ao menos uma renúncia à vida, tão fatal quanto a morte – disse com
confiança, pois percebera que suas ironias se vestiam agora de outra cor,
traziam em si, com a ajuda de um sorriso, uma provocação já mais
interessada em seduzir.
- Entendi... mas me diz, o que você faz?
- Eu trabalho em uma agência, fiz marketing.

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- Não, homem! – esbravejou uma coquete impaciência – O que é que você
faz, do que é feita sua vida? Você chega ao trabalho e senta na frente do
computador, senta em uma sala de reunião, o que você faz? – pronto:
passara por vielas imprevisíveis, era verdade, mas julgou que chegavam
onde antevira e quisera, naquele ponto onde duas pessoas já sabiam nas
carícias que iam dar, destino final, mas ainda alimentavam curiosos a
conversa para descobrirem o caminho a ser traçado: fazia-lhe, enfim, uma
pergunta de fato interessada.

Caminhos bem diferentes percorria agora André: entrou por todo o pequeno
apartamento, checou os banheiros e voltou à sala, enquanto ainda gritava por ela.
Deu-se conta de que entendia, mas detestava a resolução de Juno de raramente usar
seu celular fora de seu trabalho. A cada quarto de hipótese que adentrava sentia
em sua barriga o mesmo súbito pavor de não dar com o chão da piscina
imaginado mais raso, e seu coração parava sincopado. Avigorou-se com um longo
suspiro, mas a sensibilidade aviltada graças àquela ansiedade doída lhe fazia perceber
tudo com certa gravidade: o caminhar do vizinho de cima lhe parecia compassado, as
vozes da parede ao lado soavam a vociferações ritualísticas, a noite já não era comum.
Riu de seu exagero, mas cedeu à humilhante tentação de ligar para Cecília, fiel amiga
de Juno, que, como fiel amiga, sempre adivinhava porque conhecia suas baixezas:

- Não consigo te escutar, André... Não entendi. Ela está comigo, me chamou
para vir na formatura da prima, mas já sumiu... Oi? Alô? Ainda tem gente
vendendo na porta. Ah, tá, ela disse que você estava viajando mesmo...
Vou tentar encontrar... Um beijo! – não traíra de todo a surpresa que
programara fazer, e ainda garantia que Juno ouvisse dele: fizera bem em
ligar.

André entregou o convite ao segurança, entrou naquele salão de festas da


formatura da turma de medicina e se sentiu imediatamente vulnerável: não podia ser
fácil entrar no que lhe parecia um antro de baixa iluminação, dominado por uma
impessoalidade de terceiros prontos a julgar, sem a confortável muleta de poder-se
dissolver nessa mesma impessoalidade por meio de alguma companhia que lhe
servisse de solvente. Foi até o balcão à sua esquerda e pediu um copo de cerveja:

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armado de uma bebida, começava ainda discretamente a sua metamorfose em soluto.
Mas não se tratava tanto de misturar-se, quanto de surpreender Juno, que
provavelmente estaria lá, onde sempre garantia que pessoas menos desinteressantes
podiam ser garimpadas: ela permitia-se fumar em festas detestáveis.
Chegou ao fumódromo, pôs-se na ponta dos pés a reparar bem em todos ali e
continuou seu voyeurismo circular, em seu desespero consternado e improdutivo: era
como se por instantes quisesse adivinhar em cada um o passado recente e o futuro
próximo, torturando-se com a ideia de que um deles teria despertado o interesse de
Juno, segurado-lhe inconvenientemente o braço, elogiado-a com malícia ou, iludindo-
a por breves instantes com as besteiras que lhe agradaria ouvir, até mesmo lhe
convencido a aproveitar melhor aquela noite:

- Tá procurando alguém? – esbarrou-lhe uma menina vestida de branco,


trôpega em zigue-zague, com o tronco agachado como se viesse de uma
incontrolável crise de risos.
- Estou sim, como sempre – respondeu sem paciência, tentando contorná-la,
observando ao longe um casal que conversava sob aquele mesmo céu frio
e sem estrelas.
- Que bonito isso... – endireitou-se a moça, enquanto sua amiga aproximava-
se apressada, como para recolher um bicho à jaula – Eu não devia te dizer,
mas quando bebo esse tanto de cerveja... fico que não me aguento, se é que
você me entende.
- Mas é só com cerveja ou é com todas as bebidas? Talvez compensasse
tomar algo mais forte e menos afrodisíaco – quis brincar André, que
reparava só agora no ruivo intenso de seus cabelos marcantes, cheios, que
lhe desciam em cachos apertados até a altura dos ombros.
- Só cerveja. Destilado me dá vontade de dançar. Mas você não parece ser
muito de dançar, ou é? – perguntou encostando-lhe o indicador no peito.

Tinha um nariz fino e pontiagudo, e era quase pálida, o que lhe daria o ar de
uma reencarnada fidalguia, de uma beleza casta, não fossem seus carnudos lábios
vermelhos e seu corpo volumoso apertado em sua roupa. O volume de seu corpo bem
afeiçoado, porém, não casava com seu rosto: este era comprido, magro e terminava
em um queixo acuminado, mas André reparara mais em suas linhas, que, profundas,

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delineavam suas maçãs com um aspecto de experiência, com um aspecto cansado e
sofrido, com um aspecto de cansado de viver.

- Quem se encontra deixa de procurar. Não estamos inexoravelmente atrás


de alguém – o interesse que lograra em aparência, falhara em palavras:
André cria que a pessoa que empregava esse advérbio estrondoso estava
sempre, inexoravelmente, a dissimular com uma suposta profundidade
formal a rudeza de um pensamento raso – Já bebi um pouco de vodca,
vamos ver essa dança sua!
- Acho que eu preciso de mais do que só alguns destilados para me
convencer de que sei dançar – riu André um pouco acuado, reparando no
ar da amiga que interrompera sua perseguição.

Ela tomou-lhe pelo braço e cintura, tentou arrastá-lo em um ritmo inventado e


largou dele e da dança como quem desiste de fazer funcionar uma bugiganga
qualquer. Quis crer ter sentido pena por ela ter tentado e fracassado em despertar seu
interesse. E do anelo arrogante de dar conforto surgiu aos poucos o de trocar carícias e
quis dar, naquele ser que admirava o seu, um beijo transigido. Pensou em um
brevíssimo lapso que Juno estava certa: só alguém já bastante contaminado por uma
moral inorgânica, desnatural e falsa, uma moral quiçá cristã ou vinda de qualquer
outro veneno ocidental, poderia achar normal ter-se que sacrificar assim pela
existência de outra pessoa.

- Vamos deixar para dançar lá dentro – disse com um sorriso morto para seu
par, que já olhava em volta atrás da amiga.

Ela recuou e seu recuo causou o dele: convenceu-se de que pensar em Juno era
já dispensar suas teorias. Pensava em Juno, e pensava na paixão pura que tinham, nas
manchas que nela ele tinha pintado, nos desgastes que ela também já causara.
Percebeu que o beijo naquela ruiva pouco graciosa não valia o risco de tocar, como
quer que fosse, naquele seu amor tão belo, cioso que estava de Juno e de seu plano de
surpreendê-la. Sentiu de novo o frio e o escuro do céu sem estrelas. Cerrou um pouco
os olhos para fitá-la com um olhar de doçura proposital, abrindo simultaneamente um
calculado sorriso sem dentes, a sugerir um encantamento dissimulado por aquilo que

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só fingia ouvir. Enchia-se de um apreço por si pelo apreço que sentia por Juno,
acrescentou sem mentir que ia buscar mais uma cerveja, e voltou a procurá-la.
Juno parecia finalmente entretida: descruzou suas pernas, deixando-as
entremearem-se pelas dele em um toque quente, deslizou para trás no banco até sentir
a base das costas no encosto e voltou a provocar com sua ironia agora agradável.

- Para alguém que dedica a vida a revisar relatórios e calcular expectativas,


você até repara bastante nas pessoas.
- É aí que você se engana. O que me interessa no trabalho é exatamente a
parte humana, a psicologia do consumidor, a forma como somos
suscetíveis às menores pequenezas. E tenho outros horizontes, não me
entenda mal. Gosto muito do meu trabalho, mas não sou ele – voltava a
temer seu desinteresse – O que eu quero dizer é que não me deixo definir
pelo que é um assistente de atendimento. Eu não sou um assistente de
atendimento, por exemplo, que cuida de sua família, que sai com os
amigos, que vai a um museu no domingo. Eu quero ter êxito nessas áreas,
e ter êxito é se empenhar, é cumprir suas obrigações o melhor possível
nessas frentes, é criar novas frentes.

Onde ele falara em êxito, ela escutara só entrega, onde pensava em frentes, ela
entendera sensibilidades, e foi assim que, em um discurso perpassado por deveres e
autossacríficio, ela reconheceu uma forma de vida vibrante e, claro, autêntica. Com
equívocos recíprocos e fundamentais mal-entendidos, poder-se-ia enfim dizer que
estavam se entendendo; assim, dessa maneira peculiar e incongruente: iam se
entendendo humanamente.

- E você cria alguma coisa? Nunca pensou em escrever? – quis saber,


apoiando o cotovelo na perna e o queixo na mão, inclinando-se em sua
direção.
- Não... Fazer literatura, romances, contos? Nunca. A vida é curta demais
para que eu dedique parte dela a criar outras que não sejam minhas. Como
eu disse, levo a vida com o maior número de possibilidades possíveis, mas
dedicá-la a fabular personagens e situações que emocionem, elevem ou
preencham a vida dos outros? Para ser louvado pelos outros, pela

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humanidade, pela posteridade? Isso nunca, minha vida basta – explicou-se
com desenvoltura: nem o tema, nem tampouco os argumentos lhe eram
novos, de forma que logrou dar clareza e realce às ideias que soavam de
fato como as levava em seu íntimo; a respeito de agradá-la, contudo,
fracassou magistralmente.
- Que pena – lamentou – você chamar isso de vida...
- Por quê? Você acha que seria melhor eu sair dela para criar uma obra?
- Não tem como se inserir nessa sua vida, sabendo-se vê-la de fora. Você
acha que está inserido nela? Indo em festas e conhecendo pessoas com
essas suas teorias sobre festas e pessoas! Ou você apaga sua teoria e
veste a máscara de humano ou vai viver à margem, como um bicho
menos humano porque menos bicho. Pra usar suas palavras, você não
pode ser alguém que achou sua imagem e se aninhou ali. É tudo muito
triste...

Felipe levantou-se de súbito e abortou em seguida dois novos atos, um por


falta de ideias, o outro, de vontade. O primeiro era contestar de forma ácida o que
acabara de ouvir, defender-se e não aceitar aquela piedade imerecida, mas faltava-lhe
até mesmo um bosquejo de réplica, um remedo de contestação que fosse, tendo-o de
trocar só por um constrangido abrir e fechar de boca. Já o outro, de tão distante do que
de fato queria, causou-lhe apenas uma torção quase imperceptível de seu torso, pois
era bater-se imediatamente dali, em gestos severos.

- Eu crio a minha vida – decidiu-se então pelo truísmo.


- Não... – Juno lastimava com um olhar perdido – Você é como um cavalo
atado às rédeas das prescrições sociais. Você é um ótimo cavalo, você
reconhece as expressões, sabe aonde ir, sabe até de onde vêm suas ordens.
Você infere do mais discreto menear de cabeça de seus donos, do mais
discreto gesto, a resposta correta para eles e, por isso, para você. Mas com
as cordas atadas a seu pescoço, você nunca vai sair da caverna de ser um
cavalo. Você devia criar. Criar, criar outras vidas, criar a sua vida, mas
criar!

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Felipe aproximou-se ainda mudo, confuso, vergou seu corpo até que pudesse
beijar a trave de seus lábios, e deixou os seus próprios, bem próximos, em oferta.
Sentiu prazerosamente seu coração tentar deixar-se do peito, quer fosse galgando
garganta acima uma saída, quer fosse estourando-lhe esterno e tórax para fora de seu
corpo, fato era que fora tomado de uma euforia indomável: não propriamente por
beijá-la, embora também, mas, antes, por ter finalmente conquistado aquele beijo, por
ganhá-lo, por lembrar-se de seus amigos e por ter feito valer a pena o desgaste que lhe
custara sair de casa – gozava assim, como se goza tantas vezes, menos o maná que é
fato ou ato, que seu significado. E ela, naquele momento, desejou-o. Mas com o
desejo subiu logo um gosto amargo e, em pouco tempo, já não gozava nem beijo, nem
sentido: só suportava desentendida o mal-estar daquela culpa que lhe crescia, mas que
não era sua de direito. Persistindo por sua entrega, sentiu o beijo crescer molhado,
revigorado em sabor.
E André, ainda alvoroçado, já conseguira sua cerveja e voltava agora em
direção ao fumódromo, passando pelas mesas ali postas, até que os viu. Viu primeiro
o branco desbotado do banco de plástico em que ela se sentava contrastando com o
negro vivo e reluzente do tal vestidinho preto que ele já tanto nela elogiara, e que por
sua vez contrastava com a brancura do alto de suas coxas, à mostra devido ao jeito
displicente com que se sentara. Tinha as pernas um tanto abertas e, com o vestido
repuxado para cima, sua calcinha estaria visível a todos, não estivesse um par de
calças pretas entre as dela. O rapaz de fisionomia de forma alguma detestável apoiava
seus joelhos no espaço livre do assento entre as pernas dela e dobrava seu tronco para
baixo de maneira desconfortável, produzindo uma cena inquietante, um tanto
repulsiva. Equilibrava-se com a mão direita no encosto da cadeira e a mão esquerda
repousava imóvel, aberta, contornando o seio direito dela. Demorou até que
apreendesse o significado integral dessa tela, mas ele enfim o golpearia: era Juno,
linda, meiga, delicada e amada, dando-se a um outro.
Essa cena que transcorria com absoluta leviandade diante de si, ele já
descortinara inúmeras vezes e nas mais diversas variações em sua imaginação
enciumada, mas abstrata: via então o que via agora, mas o via sem rosto e sem
música, sem mão e sem seio, sem banco e nem contexto; via-o com receio, mas sem a
certeza do real. E de acostumado a repassar esse temor no mundo degradado que sua
mente materializava, julgou que exagerava seu suplício por lá, sendo ele menor aqui.

126
Julgou mal: o abstrato, via-o agora, também desampara e entristece, mas o
concreto, estava a descobrir, machucava e endurecia.
Estonteado por um instante pelo turbilhão de sentimentos que o arrebatava,
como um pobre cão imobilizado à estrada por um excesso de luz que o sobrepuja e
que não consegue processar, atarantou-se física e animicamente, sem poder sentir
nada, até que o contrário se impusesse. Foi então logo tomado por uma sensibilidade
hiperalgésica, em que nada lhe escapava de seu sensualismo exacerbado, nem nada
deixava de ferozmente o espezinhar: farejou a mistura de fumaça vinda de fora com o
cheiro da comida ainda posta no buffet, revirou felinamente a atenção auditiva para
captar a música eletrônica que ainda tocava, uma conversa sobre carros, uma sobre a
qualidade da bebida e, por fim, o barulho dos saltos e sapatos se esforçando pelo
salão; e caçou com os olhos todos os outros dolorosos detalhes que compunham o
plano central daquela perversa pintura – o banco, o branco, o preto do vestido, as
calças, a mão e o seio, os braços de Juno enlaçando o pescoço daquele outro.
Bastava... Bastava! Tinha de escorraçar aquele repulsivo rapaz nojento que
não sabia seu lugar. Um arrogante, um rude idiota: quem era ele para pensar que
podia possuir e conhecer Juno daquela forma? Aquele bruto que não sabia nada do
que era Juno, do que era o amor, que nada sabia de como seus cabelos castanhos
encaracolavam-se nas pontas e de como ela anelava seus cachos com os dedos ao
admirar, sem compromisso, uma imagem trivial que lhe parecesse bonita. Não sabia.
Simplesmente não sabia como seus olhos também castanhos e amendoados podiam
ser profundos, e também doces a ponto de enlevar uma alma acima de qualquer
comezinha existência. Não sabia da paz de encher-se de ternura ao mimá-la
devotamente pela manhã, nem da plenitude com que seguia em seus caminhos, ainda
quando sozinho, por se julgar sempre acompanhado desse ser superior – esse mesmo
ser que agora o torturava com aquele humilhante espetáculo.
Deu com o óbvio: ela que era reles, vil, sorrateira! Quis injuriá-la com as
horrendas palavras que seu afeto trancafiava nos mais recônditos calabouços de seu
léxico pessoal, impedindo-as assim de concretizarem-se em pensamento mesmo em
suas profundas fúrias; como de novo não se vencesse, diluiu-se esse ardor sacrílego
em uma mistura mais fria, etérea e amorfa de puta!, vagabunda!, desgraçada! e
cachorra! Nessa afeição às avessas percebeu que a ela, e não ao homem – que, no
mais, deveria fazer agora só o que um homem deve fazer – é que sentia as vísceras
compelirem senão a agredir, ao menos a promover a mais degradante das humilhações

127
públicas, pela qual ela, reconhecendo a insensatez e chorando em vão por um perdão
que nunca viria, arrastar-se-ia de joelhos pelo salão aos pés deste agora outro homem,
reconhecido acima de toda aquela baixeza.
Já pensava em palavras, tecia-as em sentenças, imaginava pausa e entonação,
quando, precipitando finalmente um passo à frente, ocorreu-lhe que esse homem
sonhado já não podia existir. Por mais certeira a retórica, por mais precisamente
esnobes os seus gestos, caberia a ele sempre, irresistivelmente, aos olhos de todos ali,
apenas as vestes já consagradas de um corno coitado. Ele estava condenado a ser, e
ninguém podia ver diferente, o pobre tolo recém-casado que apenas traz flores
consigo para destroçá-las no corpo nu da esposa e do rival; ele se transfiguraria
invariavelmente no jovem ingênuo que deita a sonhar com a amada – que deita a
realizar o sonho de outros: coitados, não desconfiavam de nada! Coitado, ele flagrava
aquela linda moça de vestido preto ali, na frente de todos. Mísero corno traído pelas
costas: não há discursos que solapem certas instituições.
Reuniu forças para não cair ao lado de seu orgulho que jazia aflito ao chão.
Decidiu-se que não iria causar nenhuma cena, não geraria espetáculo algum, e se
mostraria superior àquela corja reunida – mas há sempre algo de dominador no
conhecimento, e qualquer coisa de gratificante na dominação: tinha de mostrar que o
sabia. Por soberba ou por alguma curiosidade suicida, caminhou em linha reta até os
dois e antecipou-se a Juno, que já afastava Felipe de si. Este, sentindo uma terceira
mão em seu peito, assustou-se em tom agressivo:

- Que porra é essa? Tá maluco, jogador? – gritou ao empurrar André,


esquecendo-se de Juno.
- Maluco? Ela é minha... – relutou definir o que era Juno para ele: mais que
namorados, desejava-os eternos amantes no fulgor de uma paixão incapaz
de respeitar convenções; mais que amantes, imaginava-os incansáveis
sedutores, que a cada novo e mais ousado toque redescobrissem o êxtase
da volúpia iminente. Mas assim, na presença de um terceiro e verdadeiro
amante e sedutor, sua estranha vaidade já não mais o enaltecia, nem
merecia Juno esse cuidado – Ela é minha namorada, imbecil.
- Calma, André. Fica calmo, por favor – implorou Juno, comovida.

128
Foi então que tudo, definitivamente, fugiu ao seu controle. Cria piamente
poder conversar com os dois, dispensar quase civilizadamente aquele elemento
estranho e evitar que o encontro se tornasse de alguma maneira notável. Mas que Juno
lhe pedisse calma era demais – exasperou-se: como se ela a pudesse ter, fossem
inversos os papéis, como se o que ela fazia desse-lhe o direito de pedir qualquer coisa,
como se exigir calma não fosse o mesmo que agredi-lo. Perturbado por tamanha
hipocrisia, por aquele cinismo indesculpável, evitou em um movimento violento o
toque de Juno, como se impuro, e foi-se recuando contrariado até tropeçar em um
copo largado ao chão, estilhaçando-o por baixo do sapato, e cair. Inferiorizado, viu
dali o mundo às avessas: Juno um pouco à frente, mas ainda ao lado de Felipe; Felipe
com a mão assustada a tapar a boca para dissimular certo tipo de prazer sádico; alguns
pés brancos e descobertos dos bancos espalhados no salão; os cacos que produzira; as
pernas cobertas e descobertas, de vestidos e ternos; e viu Cecília, testemunha daquele
supremo ridículo.
Sentiu-se absolutamente só, sem a possibilidade de quaisquer palavras que lhe
salvassem, na mais absoluta impotência, sem ninguém nem nada que lhe pudesse
ajudar. Pôs-se a correr como solução final, e corria tanto só por correr-se dali que ao
cair de novo, não se preocupou em bater a sujeira da roupa, ato mecânico mais de
vaidade que de asseio, não reparou na pena ensaiada que todos expressaram à sua
queda e mal se levantara, já corria de novo para o táxi:

- Se você chegar em menos de dez minutos, juro que te pago o dobro da


corrida – avisou e afundou-se no banco do carro.

Tomou o celular à mão, voltou-o ao bolso, retomou-o à mão, ensaiou um


batuque sobre as pernas: tinha, e parecia-lhe que em definitivo, desaprendido a viver.
A viver e a conversar, e a ver sentido na vida, e a reconhecer as ruas por que passava
todos os dias, e a distrair-se da dor. Aproveitou a monotonia do trânsito para arriscar-
se a encenar qualquer fastio do cotidiano, tentou admirar-se da dor por cruciá-lo até o
insustentável, desejou uma anestesia geral, uma droga. Tinha tanta pena de si que não
achou necessário responder às perguntas do taxista, conseguindo-se para aquela hora
apenas entrar na mais perigosa discussão que se pode ter, é dizer, consigo mesmo, em
que as respostas alheias e imaginadas servem sempre e só, sem que se perceba, ao
propósito originário e raramente benévolo de seu criador.

129
Imaginou-os assim em um quarto escuro, nem dele, nem dela, nem nenhum
em que tivessem estado juntos: sem móveis, com paredes escuras e sem nenhuma
janela, estavam só sob o martírio do piso de madeira rangente e da algidez de
esporádicas correntes de ar, vindas de não se sabe onde. Era uma pequena arena de
luta, distante de quaisquer vizinhos, na qual André tomava a iniciativa e avançava
sobre Juno: Como ela tivera coragem de fazer isso com ele; com eles? Com quem não
conseguia viver mais nada sem ver a alegria daquele amor. E agora? Por que resolvera
tirar isso deles mesmos? Estava sendo ridículo, infantil? Podia bem ser que sim. Mas
seu amor é que era infantil, era puro, tinha essa magia da infância . Fizera isso
com ele, que fizera sempre tudo o que podia por Juno. Quantas vezes parara tudo,
largara suas coisas pela metade para ir vê-la no jornal? Simplesmente porque ela não
estava se sentindo bem? Porque tivera outra ideia para mais um romance e tinha que
lhe contar urgentemente? Porque pensou que fosse desmaiar? Faria tudo isso de novo,
jurava que faria, mas de onde lhe viera essa coragem? Essa maldade?
“Ai, Dé”, diria sem paciência, insinuando seu exagero, “eu sei que é ruim,
sabe? Mas você também já fez isso. Por que o que eu fiz é pior do que você já fez?
Você já esteve com outras, eu com outros. Por que de repente, além, claro, do nosso
azar de hoje, o que eu fiz é horrível, muda tudo”? Porque era. “Mas por quê”? Se
sentia que era pior, ora, tinha de ser pior. Seu corpo não inventaria esse sofrimento,
não inventaria essa humilhação de propósito. Lembrou-se das sobrancelhas
repuxadas, os vincos artificialmente criados na testa, os lábios em bico de uma careta
condoída: Cecília olhou-o com pena. E Cecília nunca o vira com outra. Não havia
nem mesmo alguém que Juno conhecesse nas viagens que era obrigado a fazer: “Sim,
já estive com outras, mas nunca na presença de nossos amigos, na nossa cidade, na
cidade que era do nosso amor, onde a gente andava juntos, onde a gente se
encontrou”. Tinha quem conhecesse os dois como casal ali. A família dela! “Pode ser
que seja um pouco pior, Dé, mas não é o principal. Não éramos para ser maior que
essas mesquinharias? Isso ia acontecer, como já aconteceu: como poderia ser
diferente”?
Como poderia ser diferente, ora, ia lhe dizer como poderia ser diferente. Podia
ser diferente com ela não beijando aquele idiota, com ela não escolhendo causar essa
dor, esse monstro de sentimento: “Ou será que ele era tão irresistível assim, hein”,
provocaria, “o que ele tinha que te fez esquecer de mim, que te fez parar de pensar em
como eu me sentiria, que te fez preferir essa aventurazinha de merda a preservar o que

130
éramos! Era sua beleza?” – ele era mesmo bonito, com seu cabelo claro e curto,
dentes perfeitamente alinhados. Tinha sido isso? Fora ao menos isso também, é claro,
se o tivesse achado feio, aquele inferno não teria nem mesmo começado. Abriu com
pressa a janela, pensou que vomitaria o nada que trazia no estômago misturado à dor
ácida que não sabia conter. “Eu nem olho tanto para beleza assim”, ela se explicaria:
era o intestino que agora lhe atacava, tinha de chegar logo em casa, ajeitou-se no
banco. Era óbvio também, ela desejava outros homens, analisava-os com malícia,
catalogava-os em bonitos ou feios; sedutores, charmosos, interessantes ou engraçados;
ela tinha seus critérios e devia se divertir com suas possibilidades. Todos têm. Todas
as mulheres têm também. E ele tinha. Tinha mesmo? Não. Desde que conhecera Juno,
não, não tinha: ela estava em todos os lugares, infinitamente superior a todas as
mulheres.
Precisava pensar em outra coisa: o taxista, os carros, a longa fila de sinaleiros
que fagulhavam orquestrados... será que as pessoas já se sentiam assim muito antes de
existirem carros? Em Roma ou na Grécia antiga? – ah, nos mitos! Os ciúmes divinos e
devastadores... como será que se seduzia alguém na antiguidade clássica? O que será
que ele falara para ela? Fizera-a rir, elogiou-a, deve se ter feito irrecusável: “E o que
foi que vocês conversaram, hein? O que foi que te deixou tão impressionada, lassa,
estuporada, sem nenhuma capacidade de dizer um não decente”? Diria que não sabia:
sobre um filme, uma série, sobre o sentido daquela exposição no centro a que ela
dissera que iria – ia lá lembrar? O sentido dessa exposição em relação às suas vidas, o
sentido da arte, de tudo. Pediu para o taxista abrir as janelas da frente, apesar da
chuva: um outro também a podia preencher, dizer-lhe coisas bonitas, impressioná-la
como ele próprio o fazia. Em um mundo imenso, pronto a ser todo descoberto, ele não
podia ser o único nem o melhor para o amor de Juno: tivera a sorte de conhecê-la
primeiro, claro, mas era isso, sorte, era estatístico, devia haver pelo menos outro
milhão de homens pelo qual ela se assentaria.
Mas, pensando bem, quem conversava sobre essas coisas no meio de uma
festa? Nem Juno, julgou, embora ela se fizesse sempre tão sincera, tão
espontaneamente interessante. Era isso, conversaram sobre quaisquer banalidades,
nada demais, sobre a formatura, sobre o trabalho, sobre a música da festa ou sobre o
que os havia levado ali: lembrou-se de suas piores e únicas incursões nesse mundo de
banalidades ensaiadas. Que vergonha ainda sentia pelo que Paula pensava daquele
encontro, pelo que comentava com suas amigas, por lembrar de sua ridícula referência

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a um decote que, concordava agora, nem mesmo existia!: pediu para parar o táxi,
começara a tossir – era seu próprio corpo induzindo-o ao vômito.
Ele mergulhado em vergonha e dor, e aquele moleque – quantos anos teria? –
com um prazer arrogante por tê-la beijado. Devia estar lá, explicando-se para todos
com um delicioso orgulho, recompondo-se e, se já passado o falso susto, comentando
sobre ele com os amigos de peito estufado: e um dia, se reunida a turma, falaria
também dela para atender aos que instassem mais uma vez aquela estória da
formatura de medicina. E falaria de sua beleza, mostraria sua foto, exageraria os fatos,
acrescentaria que ela era gata, gostosa, qualquer merda de termo que lhe viesse à boca
imunda: “É muito pior pra mim, Ju, porque fui criado como homem em uma
sociedade como a nossa. Sei que isso não é desculpa e não estou nem falando em
certo e errado, mas o que eu tenho de passar é muito pior do que o que você passa
quando é o contrário. São séculos de criação para que você reprima seus desejos de
conquista, seu prazer de volúpia, sua dominação sobre mim. Agora eu, eu sou uma
máquina gestada para fazer o papel de sedutor, para me orgulhar de te possuir, para te
exibir com orgulho” – como aquele rapaz, de fisionomia de forma alguma detestável,
devia agora se exibir.
Rapaz que não era irresistível por ser belo, nem por ser brilhantemente
agradável: entregara-se a ele como se entregaria a qualquer outro. Não se dera valor
algum e, desrespeitando-se, não teve respeito algum por ele, pois foi ter-se com um
qualquer. Ou será que já o conhecia? – viu com horror o céu negro e a dor
excruciante; chovia e relampejava, dentro e fora dele. Conheciam-se, encontravam-se
com certa frequência, eram amigos no jornal: é como se um pequeno romance nunca
dito, mas sempre intuído, enfim se concretizasse, e fosse interrompido apenas pelo
tonto namorado que chegara em má hora. Por que diabos fora se apresentar como
namorado? Por que tinha de ter se mostrado ali, por que tinha de saber? Por que ela
não fora logo embora, se a festa já estava acabando, por que tinha de ter ido à festa:
“Não queria ficar em casa, tinha de espairecer um pouco” – ela e seu eterno
espairecer! Mas por quê?

- Tá tudo bem, senhor? Se quiser, pode pedir de novo, posso parar, tá bem?
Hora que você se sentir mal, me fala ou bate aí no seu vidro, tá? Você
entendeu? Você está entendendo? Pode deixar sua janela aberta, viu?

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- Estou bem sim, pode deixar – disse André, tentando-se livrar da saliva
grossa que lhe caíra sobre a ponta do sapato, durante seu vômito que não
viera – Não estou assim por causa de bebida não. Só estou passando um
pouco mal. Pode ficar tranquilo.

Espairecer por quê? Pela briga que haviam tido, claro, era em grande parte o
que motivara também suas ações naquele dia. Uma besteira, uma futilidade, um
desconforto que saíra do controle: Juno não queria que ele fosse à sua conferência,
sentia-se mal sozinha, insegura: “Uma enorme insegurança mesmo! Poxa, Ju. Depois
de uma briga enorme, você vai lá e faz isso? No dia em que eu só conseguia pensar
em como te agradar para poder apagar aquela briga, para te fazer feliz comigo de
novo. Você foi lá e se maquiou, se aprontou, se vestiu para um outro!”. Para beijar um
outro. Para fazer sabe-se lá mais o quê. Era isso: estando no meio de conhecidos,
depois de sua grande briga, vestida e maquiada, ela tivera coragem de querer outra
pessoa, mesmo sabendo que isso o humilharia, de querer sexo com outro, pois isso era
inegável: ela o quisera – “Você o quis, você o quis! Talvez não para toda a vida,
talvez nem mesmo para a noite inteira, mas ninguém quer nada contra a própria
vontade. Você o quis e quis fazer isso comigo. Mas por quê? Para quê? Só por
querer”?
Mas, ora, o querer é sempre instrumental. Ao menos fora essa a última lição
que seu pai lhe gravara na personalidade, esculpindo-a com o cinzel da crítica não
aceita, o qual, tendo o primeiro toque sido bem dado, deixa a criatura fazer-se já sem
necessidade do criador. Lembrava-se daquela manhã de dia decisivo, em que não
escutara o despertador e se levantara só com o telefone e com os passos pesados do
café-da-manhã do pai:

- Bom dia, pai. Alguém ligou aqui?


- Bom dia, Dedé. Dormiu bem? – retorquiu demoradamente o pai, como a
censurar o pragmatismo do filho.
- Dormi bem, sim, pai. Alguém ligou aqui em casa agora há pouco? Ouvi o
telefone tocando...
- Não, acho que não, André – disse seu pai, dobrando o jornal.
- Só você que está acordado?

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- É, acho que sim. Acho que sua vó ligou, por quê? – limpava as migalhas
de pão que caíam sobre a barriga sem camisa e sobre a bermuda.
- Como acha, pai? Você não lembra se você falou com minha vó há cinco
minutos atrás? – insistiu André, levando as garrafas de vinho da noite
anterior da pia para o lixo, todas em uma viagem só, o vidro de uma
tilintando alto no das outras.
- Que desespero, Dé. Falei sem pensar. Sua avó ligou aqui, queria falar com
sua mãe. Que enjoo.
- Só queria saber, pai. Desculpa. Vou escovar os dentes e já venho.

Lembrava-se agora com as tintas da comoção e do alívio como aquele jovem


André se apressara há tanto anos corredor adentro para ir ao quarto dos pais, onde a
mãe ainda dormia e, mais importante, deixavam a outra base do telefone:

- Bom, dia vó, tudo bem? Tudo joia também. Vó, deixa eu te perguntar, a
senhora ligou aqui mais cedo?

Mas de nada valia seu pragmatismo com a avó: só depois de ouvir o relatório
completo de como ia todo o resto da família, tomar a confissão de um ou outro
desleixo cometido, ela admitia, já não era mais a mesma, tinha muita preguiça, e ser
obrigado a descrever, o que fez em poucas frases, como iam o pai, a mãe e o irmão –
só depois pôde enfim descobrir que não, ela não havia ligado mais cedo:

- Pai, você tem certeza que...


- André, senta aí – afastou uma cadeira para o filho depois de empurrar sua
xícara e prato para o centro da mesa – Eu sei que ligação você está
esperando, sei por que você está enchendo o saco com esse negócio de
telefone. A gente precisa conversar.
- Conversar sobre...?
- André! – gritou o pai apontando para o lugar que separara à mesa – Filho,
me escuta: você sabe que eu estou perguntando porque quero o melhor
para você, não vou ficar fazendo introdução, você é a pessoa mais
inteligente que eu conheço. Mas que curso você vai fazer, filho? Já
estamos pra lá do meio do ano e você ainda não disse nada...

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- Ah, não, isso de novo não – lamentou-se André, recolhendo prato e xícara
para colocar sobre a pia – Você sabe a resposta, pai. Eu vou ser pintor e
pra isso eu já fiz tudo o que eu tinha que fazer, corri atrás, me esforcei, me
candidatei, cumpri um monte de obrigação como todo mundo faz.
- Calma, André. Só estou tentando falar que você não precisa...
- Não, pai. É isso que você não entende. Eu tenho que pintar – disse
solenemente como se martelando uma sentença – E pra isso eu tenho que
olhar o mundo o mais perto possível, quase de fora dele, para pintar o que
fará as pessoas sentirem-se sair dele, por meio dele. E não, não dá para
fazer isso fazendo o que você fez; não dá para herdar seu suposto ócio
fazendo engenharia ou administração; e não dá, não importa o quanto de
tempo livre você me mostre que tenha, pai, não dá para pintar quando eu
não estiver na empresa. Eu vou estudar o que eu quero, porque essa é
minha vida – o pai ria, mordendo os lábios.
- Filho, eu já tive sua idade, já achei que tudo daria certo na minha vida, não
importava o que eu fizesse. Mas você tem que tentar ser pelo menos um
pouco objetivo, menos romântico. O que é nisso tudo que vai te fazer
feliz? É a venda do quadro? O reconhecimento da sua arte? É o sentir-se
artista, para os outros e para você mesmo, podendo falar do mais profundo
de seu âmago que você só obedece à sua pulsão de artista? – a ironia,
reforçada pelos pomposos gestos de mão e rosto, era crescentemente
insuportável.
- Não, pai. Eu quero pintar porque eu quero pintar. Tenho o que
expressar e encontrei o meio com que quero fazer isso, e só: isso é tudo.
- Isso não existe, filho. Presta atenção: quando você... quando você acorda
bem cedo, ainda de madrugada e acende a luz: sim, eu vejo sua luz acesa
quando chego; por que você faz isso? Você não é nenhum fã da luz
artificial, você não morre de amores pelo brilho que sai daquela lâmpada,
apertar o interruptor não faz você se sentir realizado, faz? Mas então por
que você liga a luz? Para que você possa enxergar melhor. E pra que você
quer enxergar melhor às cinco da manhã no seu quarto? Para poder
estudar, aumentar seu conhecimento. Para quê? Só por aumentar? Não,
porque o conhecimento te traz certo status, te abre novas possibilidades
para você viver outras experiências. Para buscar outros instrumentos que te

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fazem poder buscar outras coisas que serão novos instrumentos, filho. E
assim por diante. É assim que a vida funciona.
- Tudo bem, pai, pode ser assim que a vida funcione. Mas essa cadeia tem
que ter um elo final, um ponto realmente desejado, um fim último ao qual
dedicamos nossa vida, pelo qual eu vou poder justificar minha existência.
Eu encontrei esse fim último na minha vida, pai.
- Existe esse fim último, André. Nós vivemos para ser felizes, ninguém faz
nada contra sua própria vontade. Uma cadeia é sempre fechada, circular.
Não é essa a metáfora que você usou? Seu fim último ou início primeiro é
ela toda, cada um desses elos; é o que liga suas partes e a faz girar. É esse
instinto de fazer o que nos parece conduzir ao que é agradável. Por isso
que fico com pena de você, André. Você quer a mesma coisa que eu,
apesar de me desprezar um pouco. Desprezar sim, não me vem ser
dramático. Você quer a mesma coisa de seu irmão, mas em vez do
caminho mais fácil, você embirrou que qualquer caminho já traçado é
menor, não sei se por vergonha, se por orgulho. Vai sair com seu irmão,
conhecer os amigos dele; se quiser, sai comigo, o pessoal vai gostar de
você. Você não pode viver sozinho, André.

Ria com maturidade, agora no táxi, da ingenuidade impaciente com que disse
que não dava mesmo para conversar com seu pai, e lembrou-se de como começou a
recolher o coquetel de antiácidos e analgésicos com que ele combatia suas ressacas de
toda manhã e cujas embalagens estavam ainda espalhadas sobre a mesa. Terminada a
coleta, feita com um contínuo balanço de sua cabeça, em repreensão ao que limpava e
ao que ouvira, tomou o telefone de perto do pai, mas antes que discasse:

- Eles te ligaram, André. Você foi chamado, foi aceito. Pode ir fazer seu
curso lá, faz o que você quiser, já que comigo você não consegue
conversar mesmo.
- E é assim que eu fico sabendo? Sabe há quanto tempo eu estou esperando
esse resultado? Você é de um egoísmo que não cabe nessa casa, pai. E
sabe por que não dá para conversar com você? Porque a felicidade não
serve para justificar uma vida, mas você nunca vai entender isso. Com esse
instinto do agradável você e meu irmão se reduzem a animais, como se

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fôssemos meros joguetes dos nossos instintos mais rudimentares,
rastejando atrás de alimento e de felicidade, recuando ao menor sinal de
fogo ou desprazer. Eu não aceito viver assim que nem vocês. Pra mim, é
isso que vocês são: uns bichos se divertindo no mundo.
- Não, André – recomeçou o pai, retirando toda a ironia da voz, como se
pedindo calma – O princípio é simples, mas o ser-humano é complexo.
Não é uma diversão animal, há um monte de critérios pelos quais
buscamos esse bem-estar. Só estou falando que os seus critérios não são
melhores que...
- Ah, e ainda tem isso. Os critérios! O que você chama de diversão, pai, são
só as vulgaridades que te ensinaram a respeitar, são só, não sei por que
covardia, a aceitação submissa dos instintos e convenções que te foram
impostos. Vocês vivem só para que sejam vistos vivendo ou para que
vocês mesmos, se vendo de fora e analisando em retrospectiva, se vejam
com orgulho, satisfeitos com o que aparentam ser, com o que vão pensar
de vocês mesmos no futuro. Vulgaridades que a própria vulgaridade teve
por bem aplaudir. Você quer que eu saia com vocês para isso? Meu irmão
ir a um salão apertado, ficar pulando constrangedoramente a uma música
sufocantemente alta, perseguindo meninas até que consiga esfregar sua
língua na língua de uma delas não pode ser levado a sério como expressão
humana, pai. Não pode ser isso que você queira pra mim – vociferou
André, pensando que pudesse ter ido longe demais: esperara que o pai
também o acompanhasse em agressões, mas seu silêncio calmo e recatado
denunciava seu excesso.
- E o amor que se sente por um filho, hein André? É também só uma
vulgaridade aceita sem reflexão, só um instinto que não te serve como
expressão humana? – perguntou o pai em um volume mínimo,
recolocando-se os óculos, aparentemente confuso e combalido.
- Não, pai, nunca disse isso – recuou André – Mas se você não fizer nada a
mais desse amor, ele não vai passar disso mesmo. Se a gente não se acertar
aqui, agora, vamos acabar seguindo a mesma lógica. Vamos ficar
chateados porque não vamos corresponder à ideia que nós dois queríamos
para nós, de pai e filho. Se esse amor é quase infinito, você vai ficar quase
infinitamente magoado por não ter sido bem visto, respeitado e amado por

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quem você mais deseja ser amado, pai. É por isso que não gosto dessas
convenções.
- Que merda, André, que merda de concepção de vida – o pai levantara-se
abruptamente da mesa, sem se importar com o barulho áspero que o metal
fazia contra o azulejo: seu retraimento não parecia ter passado de retórica
sentimental – E essa sua dedicação às artes? Como ela te faz assim, tão
melhor que todos nós? Você tem coragem de entrar no quarto daqui a
pouco e tentar se dizer que você não se importa com o reconhecimento?
Você vive para ele tanto quanto seu irmão, vocês só não querem o
reconhecimento das mesmas pessoas. O que você faria, André, se as obras
do... do... de qualquer desses artistas que você admira tivessem se perdido?
Qual seria sua grande justificativa se você vivesse em um mundo em que
nunca tivesse ocorrido o seu amado Impressionismo, um mundo em que
não houvesse nem representação pictur... pintóri...?
- Pictórica... Não sei, pai – disse ao erguer as palmas das mãos – Acho que
seria um mundo menos humano. Só não quero ser o instrumento de mim
mesmo, pai. Não quero ser mero instrumento de uma vontade que me foi
prescrita de fora. Quero querer as coisas e a vida por elas mesmas.
- Mas, ora, o querer é sempre instrumental. Você não está me ouvindo...

Ao menos isso é o que lhe dissera o pai naquela manhã de dia decisivo, que já
não lhe importava em nada. Juno fizera aquilo. Tivera necessidade de demonstrar
carinho por outros, afagar a carência em outros corpos, envaidecer-se na frente de
suas amigas? Ou tinha sido sua decisão simples a ponto da lascívia ter-lhe levado à
baixeza de um instinto qualquer?
André não repararia que chovia forte, não tivessem as rajadas de água e vento
reforçado a tragédia em que ele próprio se via, sendo por isso a chuva só isso, esse
reforço, não molhava. André não tirou o sapato, não trocou de camisa. Andou por
meia hora em seu pequeno apartamento, repisando os mesmos argumentos, a mesma
linha de raciocínio retomada a cada hora de um ponto diferente de seu progresso
circular: a mesma pena de si. Embrenhou-se incessantemente em suas voltas até que a
tortura a que seus pensamentos o condenava se somatizassem em uma fraqueza
insustentável das pernas, e então, desobedecendo a seu íntimo impulso que lhe

138
ordenava aos berros que, fizesse o que fizesse, não se permitisse qualquer repouso,
prostrou-se no sofá.
Sentiu o suor que lhe brotava ao pé da nuca e que também lhe umedecia os
braços. Enxugou depois as sobrancelhas, de envolta com as gotas que brotavam,
numerosas, a partir de suas têmporas. Percebeu os músculos retesados em suas coxas,
bem como o latejar em sincronia periódica da planta dos pés. Inspirava. Expirava. Ah,
que coisa horrorosa fizera! Não Juno, mas ele próprio: percebia e sofria só agora a
obrigação de seu arrependimento. Precisava do perdão de Juno por ter os rebaixado,
quase que por um instinto, à vileza tosca de um mero casal. Fez-se corno; fizera-a
infiel. Sentiu a vergonha fina, pontiaguda e originária subir desde a base do quadril
até o engulhar o meio da garganta: mas nem tudo estava perdido – ainda não falara
nada para ela.
E se fora ele a ousar esse toque impuro no pecado do amor, era dele o
quinhão de sal a se torcer dos olhos para a limpeza; era ele, só ele, a ter de suportar o
suplício desmedido da lembrança, daquela noite, de todo o horror. Só trataria do
assunto dali a dias, semanas que fossem, em um riso que já não precisaria dissimular:
“Nossa, Ju, você não sabe nem metade do tanto que eu exagerei e pressenti o pior,
naquela noite em que voltei mais cedo para te surpreender”. E nesse novo mergulho
interior lançou-se no labirinto que a própria mente se constrói ao ter ela mesma que
descerrar caminhos e sufocar atalhos, enquanto desbrava, sem deixar de aqui e ali
voltar a se enganar, as sendas que se quer fiar. Viu-os unidos de novo, como nos
primeiros dias, e não pôde evitar...
O telefone o interrompeu. Era Juno. Deixou que a caixa postal recebesse: “Dé,
sou eu, me atende. Tenha calma, por favor. Eu sei que você deve estar se sentindo
péssimo, e eu peço desculpas por isso, mas não tinha como adivinhar que você estaria
ali. Te amo muito, e não quero te fazer mal. Vou passar aí para conversarmos, tá?
Estou ligando para saber se você prefere ficar sozinho. Enfim, acho que é isso. Já
estou indo. Beijo”. André esperou bastante tempo, mas ligou de volta, queria dizer
que também a amava, que superariam aquele desencontro, que só precisava de tempo
para por a cabeça no lugar. Mas mais rápida que a sua ligação foi a campainha:
perguntou quem era, e sim, era Juno.
A visão de sua beleza dentro daquele vestido, e de sua maquiagem se não
borrada, estampada em torno dos olhos de uma forma úmida e desarmônica, como em
uma manhã ressaqueada, mareou André em uma espécie de saudade eivada de ojeriza

139
àquele amor. Como Juno, insegura, permanecesse imóvel ao lado da porta que ela
mesma abrira, André resolveu começar:

- Você veio até aqui sem ter nada para falar?


- Como você está, lindo? – Juno erguera ambos os braços, mas colocara só
um deles sobre o ombro de André, em um abraço abortado.
- Triste, Ju. Triste e decepcionado – Juno, de pura pena, descreveu meio
sorriso – Como você teve coragem de fazer isso comigo?
- Como assim, Dé?
- Como assim, Juno? Eu vou te explicar como assim: como você teve
coragem de me fazer passar por essa humilhação, por essa tristeza, por
essa vergonha de realmente ter alguma coisa com você? Por me fazer
agora te amar, mas ter nojo de encostar em você...
- Para, André. Pode parar. Se você precisar de mais tempo para pensar sobre
hoje, tudo bem, eu vou embora. Mas não aceito você falar assim comigo.
Não vim aqui para você vomitar seu ódio em cima de mim, não estou
disposta a nenhuma sessão de descarrego para ter de te desculpar depois só
porque você supostamente estava fora de si.
- Você é sempre mais importante, não é? Acabar comigo e com a gente,
tudo bem, sem problemas. Mas ter de me ajudar a passar por uma situação
que você criou, não, você não gosta, não está disposta – Juno era quem
desenhava em si uma expressão de desprezo – Pra você não significa nada
eu largar tudo no meio do dia para ir te socorrer no jornal por uma frescura
qualquer, porque aí é o normal, é você precisando de mim. Agora, depois
de uma das primeiras vezes que a gente brigou feio e ficou quase sem se
falar, a primeira vez que nos tratamos mal mesmo, o que acontece? Eu não
me sinto bem e volto para te fazer uma surpresa e você, você... você faz a
merda que fez.
- André, você não é assim e a gente não é isso. Ou você se acalma ou a
gente conversa outra hora – ele pressionava com força os dois indicadores
contra o canto dos olhos, respirando profundamente.
- Tudo bem. Você tem razão, vou ficar mais calmo. Mas tirando o jeito, ou o
tom do que eu falei, que, vou falar de novo, você tem razão, eu não estava

140
certo em usar, você acha que eu estou errado? Você não se arrepende do
que você fez?
- Olha, Dé, eu sei que a situação foi péssima, mas eu não fiz nada que você
também não tenha feito.
- Não fiz nessas circunstâncias, mas quer saber, eu devia ter feito. E podia
ter feito, passei a noite inteira ontem fugindo de uma menina por te
respeitar, por ter cuidado com você, o que claramente não é recíproco.
- Para que você está me contando isso, Dé? Como isso ajuda a gente a
resolver nosso problema sem nos machucar? Você pode não ter feito nesse
feriado, mas já fez em outros, não?
- Eu entendo isso, já falei que eu entendo. Mas você não vê que é pior para
mim? Dadas as circunstâncias, não vê que eu, eu, eu aqui, olha, sou eu que
agora estou sofrendo? Que eu estou com vergonha daquela sua amiga, com
vergonha da sua família, com vergonha de quem quer que tenha visto você
com aquele merda na formatura? – disse André, fazendo e desfazendo
cruzes com os braços sobre a cabeça, a reforçar com ironia que era a ele
que fazia referência.
- É sério, Dé? É sério que você quer conversar assim? E é sério que você
acha que não era ruim para mim também? Você acha que também não é
difícil quando você me liga dessas viagens sem eu saber quem está ou não
está do seu lado? Você acha que eu também não sinto vergonha quando
um de seus amigos fala dessas viagens em tom de brincadeira?
- É diferente, poxa. É tão óbvio que é diferente, que eu realmente às vezes
acho que você é de outro planeta. Vou tentar explicar – ele deixou de
gesticular para massagear a cabeça, tentando desacelerar a velocidade com
que lhe saíam as palavras – Olha como eu sempre sofri mais em relação a
isso que você, tanto agora como das outras vezes. Você acha que isso é por
acaso? Ou é porque fui criado, a vida inteira, por todos os filmes, livros,
parentes e amigos para ser o macho dominante, o cavalheiro perfeito
diante dos outros. É horrível, eu sei, mas é verdade e isso afeta como eu
me sinto, devia afetar como você age, não? Se você tivesse um mínimo de
consideração...
- André, você consegue se escutar? As conclusões que você está tirando de
tudo o que você sempre odiou... você consegue ouvir isso?

141
Ele tremeu os braços até a ponta dos dedos pelo excesso de força que tentava
tirar de si e, não resistindo, descontou-a sobre sua própria cabeça, em socos repetidos,
envergonhando-se em seguida:

- Só estou dizendo, se você fizesse o favor de ouvir, que por certas


convenções de que nem eu, nem você estamos livres, acaba sendo pior
para mim que você se torne objeto sexual de um outro cara, uma conquista
dele. Isso é pior do que eu prestar ao papel de uma pessoa que pareceu
interessante o suficiente para que uma menina se entregasse a mim,
entende? É uma herança horrível, Ju, eu sei, mas é uma herança de sangue.
É algo inscrito no meu corpo, ele quer que seja repulsivo o toque de um
outro em você, é ancestral: enquanto as Evas têm certeza de seus filhos,
mas se enciúmam pela atenção dos supostos pais, nós não nascemos para
suportar estoicamente essa perda.
- Você. André. Um artista. Meu namorado – era a primeira vez que lhe
chamava assim, e doía-lhe muito o contexto – Enfim, essa pessoa que eu
aprendi a amar, realmente pensa assim?
- Não, Ju. Só estou falando que você talvez tivesse ciúmes de uma amiga
minha, alguém com quem eu dividisse sua atenção, enquanto eu não me
importaria com um amigo seu, sabe?
- Não, André. Não sei. Não sei quem você é agora, sinceramente. Se esse é
seu instinto, luta! Se você acha que é sua natureza que te faz sentir assim,
se recrie! Que conformismo é esse que te surgiu? E eu nem vou começar a
falar do seu machismo torto, misógino, ingênuo e mal resolvido de achar
que seríamos tão diferentes assim. Eu me recuso. Sério.
- A gente não vive no ar, nem na merda desse seu mundo inventado, Ju.
Não é só o que importa pra mim e você que conta. Essa é uma fantasia sua
que não faz sentido.
- Mas, André, é isso que você quer? Se a gente fosse se orientar pela
sociedade nós seríamos um casalzinho, andando de mãos dadas, vigiando o
toque e o olhar alheio desde o primeiro dia! A gente ficaria agora sem se
falar, sem conseguir encarar um ao outro até que você, dos píncaros da
compaixão e indulgência, conseguisse me perdoar por ter cometido

142
tamanho pecado! Você dormiria por semanas no sofá, ou eu nos meus
pais, e, depois, nós brigaríamos feio uma ou duas vezes por mês por causa
de uma amiga sua que não sabe seu lugar. A gente se casaria na igreja,
onde o padre decretaria na frente do máximo possível de conhecidos que a
partir dali meu corpo é seu e o seu, meu. Propriedade do corpo, já pensou?
E então passaríamos os domingos no sofá, orgulhosos da calma do nosso
lar e da paz dos nossos corações. É isso? É essa a obra de arte de que você
se dizia apaixonado em poder criar comigo? Se for, André, se for isso, eu é
que estou decepcionada.

Ele entrou para o pequeno quarto ao lado da área de serviço, seu estúdio
improvisado, e voltou com a tela que pintava há meses para ela. Enquanto Juno ainda
não sabia que fazer de seus passos duros e endoidecidos contra o chão e nem mesmo
se resolvera se era melhor deixá-lo só, André entrou na cozinha com a tela e, outra
pessoa, com os olhos agora de vidro, distantes e marejados, abriu rasgos de lado a
lado no algodão de seu quadro, e jogou-o no meio da sala:

- Acho que nada mais importa, não é? – disse sem conseguir reprimir um
início de choro – Não importa o que eu estou sentindo, minha dor, o que
eu já fiz para você, nada, nada. Está aí, é assim que eu estou me sentindo.
Você quer falar sobre decepção? Decepção é fazer das tripas coração para
voltar um dia mais cedo, para te surpreender, e encontrar você amarrada
em um cara em uma festa, com o peito na sua mão. Isso é decepção.
Decepção é não saber o que teria acontecido se eu não chegasse, vai saber
o que você faria ali no meio da festa com ele.
- Não, André, não teve nada disso, mas eu vou embora. Eu não me lembro
disso e se eu tivesse percebido eu teria tirado – ajoelhou-se Juno, tentando
recompor as tiras do desenho original – Mas nem é essa a questão. Óbvio
que beijar alguém envolve contato, envolve toque. E por que a gente está
discutindo isso? Você está tão mesquinho.

André deixou-se cair no sofá, contorcendo-se em torno de si, o que levou Juno
a sentar-se no chão, à sua frente, com as costas contra a porta e os braços apoiados nas
pernas dobradas. Ainda com seu vestido preto, não reparou que deixava André

143
entrever sua calcinha branca, outrora linda, e torturar-se com sua visão. Ele quis
chorar. Perguntou-se por quanto tempo seria capaz de ficar em sua pose
desconfortável, pois ao menos assim a dor física podia abrandar a que sentia. Por que
não podia parar de doer-se? Queria ser maior, mas não conseguia. Ajeitou-se em
lágrimas, que se espelharam também no rosto de Juno, com o rosto agachado entre as
pernas. Não sabia quanto tempo ficara ali, prostrado no sofá, em seu torpor indigno.
Dormira? Se sim, acordou com nova resolução: esqueceria essa noite, sufocaria suas
lembranças, jamais voltaria a pensar nisso. Se ainda tivesse que falar alguma coisa,
que perguntasse agora, nessa madrugada sem fim, naquele princípio de manhã. Que
havia ainda de mal resolvido?

- Juno, me escuta...
- Oi, que foi? – Juno erguia a cabeça assustada, vinda de um sono leve.
- Queria te perguntar...É... Sobre o que vocês dois conversaram? Falaram de
mim? Você conhecia aquele menino?
- Ah, não acredito, André – lamentou Juno, triste, exausta das voltas que
davam.
- Não vou te encher de pergunta, só quero dar um fim nisso e acho melhor
eu perguntar logo.
- Que diferença faz, André? Você acha maduro isso? Pra quê? Você quer se
assegurar de que ele é menor que você em algum sentido?
- Você não quer me falar. Por que eu fui perguntar, por quê, por quê? –
esbravejou dando socos no sofá – O que você não quer me contar? Pode
falar, o que vocês falaram que você acha que eu não consigo escutar?
- Não sei, André. O que se fala nessas horas? Não conversamos tanta coisa
assim, ele trabalha com publicidade, em uma agência, nem sei quem ele é
direito.

Veio-lhe, ao lado de uma dor aguda, uma manada de perguntas: quantos anos
tinha, do que mais falaram, como se chamava, como se apresentou, alguém os
apresentara, quem, onde estavam antes de ele chegar. Concluiu que não sobreviveria a
tantas respostas, não queria lhe perguntar mais nada.

144
- Por que ele era então tão irresistível? A ponto de você achar que valia a
pena me fazer passar por isso? A ponto de você achar que compensava me
sacanear, apesar de tudo o que a gente tinha passado antes de eu viajar.
- Ai, André, sinceramente. Eu nem gostei dele, só não pensei direito, sei lá,
gostei do perfume dele. Não estava escolhendo um marido não. Nem ia
falar com ele.
- Ah, por quê? Por quê? Por que você não foi embora, por quê, por quê? –
repetiu em um choro infantil.

Ela podia mesmo ter deixado a festa. Assim, simples. Talvez chegassem juntos
em casa e ririam da mútua surpresa. Talvez ela narrasse, risonha e desatenta, como se
divertiu em rejeitar um garoto que sonhara poder tê-la e André, só ligeiramente
enciumado, se absteria de interrompê-la para que o próprio amor engolfasse impávido
e de um só golpe as saudades e o ciúme. Mas ficara na festa: Juno reuniu os dedos de
ambas as mãos e os ergueu, perguntando por gestos, a si e a ele, o que é que falara de
errado agora. Sem resposta, levantou-se e avisou que ia se dar um banho quente, já
não podia ficar ali.
Não deixou claro se queria apenas descansar-se do clima lúgubre que André
impunha à sala ou se ia realmente embora, mas ele concluiu que, sinceramente, não se
importava. Estava interessado só em abandonar aquela dor, por mais que esse
pensamento fosse já evocar o monstro de que fugia, por mais que seus mais utópicos
devaneios de sua carreira e de seu futuro com Juno já não lhe ajudassem a distrair-se,
por mais que lhe parecessem todos, agora, absolutamente vãos: eram distantes demais,
envolviam por demais a velha luta cotidiana para que servissem para evitar que ele,
dia após outro, tivesse de lidar com esse seu novo mal.
Já era todo desespero adolescente quando Juno retornou à sala em um misto de
severidade impessoal e intimidade familiar, ambos trazidos nos cabelos encharcados e
na maquiagem ainda visível. Veio decidida e parou diante de André, erguendo os
antebraços para se apresentar e entrar em discurso:

- Esta sou eu, André. Esta sou eu, Juno, e ninguém mais. Sou eu, presa ao
longo desses braços até os dedos e dentro dessas pernas até a ponta de cada
unha. Sou eu quem te fala, sou eu. Sou eu quem te ama agora e quer saber
o que somos. Esse corpo mascarado de vestido lá fora não é nada, André, é

145
só substrato de recreação nesse mundo de fantasias combinadas, é
figurante no nosso imenso teatro de grupo. Eu estou me entregando para
você, de novo, esta sou eu, aqui recomeça o milagre da criação. Aqui que a
gente se recria. O que aconteceu hoje, ou ontem, e das outras vezes, tudo
isso foi só uma diversão boba, André, foi só não darmos à vida o excesso
de atenção que ela quer. Se o rumo agora for ficar por não sei mais quantas
horas repisando essa lama, então o rumo é só seu, Dé. Que que você me
diz? Está conseguindo me enxergar aqui?

Ele percorreu-a firmemente, várias vezes, da cabeça aos pés. Sentiu o calor
voltar ao peito, a face devia ter enrubescido. Pôde rever o futuro se abrindo com a
alegre e, de tão alegre, também receosa esperança descompromissada de viver
feliz aquela união. A imaginação mais uma vez transpunha a felicidade de um
futuro sem rosto no presente pleno daquele instante, levando-o, de novo, a
procurar as palavras que, compartilhadas, pudessem perpetuar aquela sensação
entre eles. Enlevado, percebeu que era preciso se situar e, situado, percebeu que
era preciso falar: falando, traiu-os:

- Eu te vejo, Ju. E vejo nosso rumo... Mas eu vejo também seu vestido preto
de quando a gente se conheceu. Nós somos também o que nós fomos, Ju, e
você, hoje, foi tentar destruir boa parte disso. Você colocou esse vestido,
se maquiou, se aprontou e se dedicou a outro, enquanto eu só conseguia
pensar em você. Isso foi nosso rumo também. Foi você quem quis assim –
insistiu.

Juno deixou-se recair ao chão, voltando a recostar-se contra a porta. Com os


joelhos a abafar a boca, surdinou baixinho com a voz dorida:

- Esse não é o mesmo vestido, André, acho que você se confundiu. E é


óbvio que eu me apronto para sair de casa, sempre me aprontei. Você está
atrás de desculpas para poder sentir sua raiva, chafurdar na sua dor. Que
seja. Se você quer saber, não foi nem no vestido, nem na maquiagem que
eu pensei quando comecei a me sentir mal sem estar fazendo nada de
errado. Me senti mal, mesmo não devendo nada a você, mesmo sabendo

146
que a beleza do nosso amor foi sempre eu não dever nada a você, nem
você a mim. O que a gente se deu, foi sempre por graça, não obrigação.
Mesmo assim, me senti mal por estar com o colar que você me deu quando
completamos um ano juntos. E isso você nem tinha reparado: pode
adicionar às suas desculpas. Está lá no banheiro, o horror de estar com
outra pessoa usando um presente seu: que grande besteira!

André entregou-se ao abissal sofrimento de antes, talvez ainda mais profundo.


Entreolharam-se só uma vez, rapidamente: Juno com ingente tristeza, André com
inenarrável desgosto. Não se perguntava mais os porquês, nem investigava na
memória os detalhes: tudo o devassava simultaneamente, concebendo o todo abstrato
em uma concretude de sofrimento...

147
VIII

Quando é tamanha a dor, e tão forte o absurdo da falha, que à própria falha
falta profundamente a justificativa da falta, dá-se à escuridão da vida o verdadeiro
pecado. Se ele não é nosso, tampouco nosso poderá ser o perdão. Se o é, haverá
sempre nosso passado, nosso cansaço, nossa embriaguez, nossas tão íntimas
neuroses que indescritíveis – até para nós: seja falta de vigor ou de coragem. No
limite, haverá sempre nossa vital unidade narrativa das mudanças, das fases, da
imaturidade – palavras amenas. Só aos sinceros, o sincero sofrimento.
Mas se é de André que se fala, fará o céu o que seu céu fez. Dobrou-se a
abóbada quase inteira sobre si, escurecendo. O horizonte foi mais ao longe, sobre o
ar se achegaram as estrelas. Ao pé de um freixo e sob sua folhagem de azeviche se
estendia um largo lago negro, enrijecido. Nele, os dois astros resplandeciam em
idêntico fulgor, como também nos céus, um de cada lado. Sobre ele, a sombria
caverna cinzenta, flutuante, impalpável em sua neblina.
Era ali que fiavam em silêncio as enormes filhas da noite escura, girando com
a trança da necessidade o fuso implacável sobre a roda de madeira. O estrepitar
convulso de sua também gigante roca, uma só para as três colossais fiandeiras,
açoitava o vento e com ele, gélido zéfiro, produzia uma harmonia que fazia dormir as
sirenas ao fundo do lago, cuja secreta presença em sono não se deixava adivinhar na
superfície. Um visco negro de sangue escorria até o pedal sem sujar suas vestes
lívidas, que as cobriam desde as grinaldas encapuzadas até a ponta de suas sinuosas
unhas enegrecidas.
A primeira à esquerda, sentada em muda feição, é quem engastava os
compridos fios, ora com cores, ora com espinhos, sempre em aparente displicência,
sem parecer nem mesmo notar o corvo ao seu ombro, ave que não volta. Ao centro e
em pé, com extrema destreza, a segunda mulher tecia rápida os corpos: fio após fio
dava nó nas entranhas, enlaçava os órgãos viscosos, e preenchia as vísceras que
vazavam, arrematando com o toque do anelar, sestro incontido, mais um cárcere de
alma. A terceira deusa-mulher, a mais senhora, menor, e a mais aureolada, segurava
trêmula uma tesoura dentada. Roto o fio, jogava para trás corpo e roca, que iam cair
no desconhecido cemitério dos vivos. Ali, incontáveis corpos imóveis, quedos,
remexendo só alguns em breves espasmos de lucidez: um bêbado que dava com a lua

148
cheia, um ali defunto casal que dava as mãos, um poeta que dava ao seu verso o
ritmo do universo. Só os pequenos infantes, tropeçando nos cadáveres em vida,
passeavam por aquele sinistro deserto, mas, em crescendo, logo se deitavam solenes
a imitar a reinante convenção da falta de vida.
André não pôde senão se deslumbrar diante da cena que via: chegara enfim
ao maquinário do destino, e sentiu-se digno. Mas, fosse por medo de ter de voltar à
avenida, fosse por transferir àquelas senhoras a culpa que era só dele, de Juno e do
mundo, reuniu forças para se apresentar e apresentar ali sua revolta. Falou então
sem que mexessem os lábios:

– Eu sou o gosto amargo da ressaca. Eu sou os copos de plástico


espalhados pelo pátio e os cacos quebrados a só servir doses de dor a
quem se ousa aproximar. Eu sou meticulosamente recolhido, embrulhado
e dispensado ao lixo da humanidade. Eu sou o arrependimento que
sucede o gozo indevido e mal me lembro do gozo tão súbito o
arrependimento. Eu sou a pequenez e o remorso, o recalque e a inveja, o
arrependimento e a ressaca; nunca a bebedeira, jamais o gozo. Admiro
obras geniais que nunca poderei pintar, invejo vidas de homens que
jamais poderei ser. Sou lido, sim, sei quem sois: Cloto, Láquesis e Átropo;
Nona, Décima e Morta, vós teceis daí a dor que sofro aqui. Conheço as
estórias e sua força, sei bem, confundis até o subjugado rei dos deuses.
Mas não fui eu quem vos criou, foram homens-deuses que eu queria ter
sido. Por quê? Sejamos enfim concretos para chegarmos a sinceros. As
mulheres? As mulheres me passavam ao largo. Melhor: eu queria que as
mulheres me passassem ao largo, porque talvez assim eu me entregasse
devotamente a uma castidade convicta e poderia, quem sabe, criar-vos em
vez de ser criado por vós. Mas não. Meu fracasso sempre foi além. Eu as
queria e elas me queriam em uma dessincronia perfeita: desejavam-me
antes com um furor mal reprimido e ansiavam-me depois por minha
omissão contrita, mas nunca ali onde eu as sabia desejar. Nunca do jeito
como eu as sabia querer. Arrependiam-se por não terem se entregado a
mim, pois são mestras do imaginário. Arrependiam-se por terem se
deitado comigo, pois a realidade impõe limites à fantasia. São
pouquíssimas as exceções: das exceções eu só posso ter pena. Eu sou o

149
arrependimento e eu semeio o arrependimento. Não me venham falar que
eu não sei existir porque – eu sou. Tolo autoflagelo, o arrependimento:
mas nada entendeis disso. Concretos. Por que quisestes ainda me fazer
sofrer quando tudo enfim mudara? Quando eu amava e era feliz? Por que
me fizestes assim? Do que é que me fizestes?

LÁQUESIS
Sendo o termo da vida limitado,
Não tem limite a vossa vaidade.
Vai, corre, foge e esconde a tua verdade:
Moleque, só te humilha o por ti dado.

Vendo André a senhora ao centro de volta ao fibrilar mais derme e epiderme,


mais um órgão e um tecido, como se nunca tivera há pouco estacado, soerguido os
olhos e esbugalhado-os para gritar contra ele, temeu André que ela, como as outras,
começasse também a se desvanecer toda. Olhou para si e concordou que só pode ser
homem quem se dispõe a pensar não consigo, mas contra si mesmo, e preteriu então
a falsa e reconfortante humilhação total em favor daquela que esta tentava em vão
escamotear:

– Sei que jogo o jogo da culpa, que manipulo razões, que invento os pesos
que vão sangrar a sua consciência: sei que exijo dela mais que um pedido
de desculpas, forço uma expiação para glória de mim. Mas quem nesse
mundo não foge do absurdo e, se o há, que ganha com isso esse alguém?
Quem diante da morte sempre absurda, com data certa e certo o local de
nascimento, não parte também a buscar abrigo na doença, nas suas
causas, na genética ou no comportamento? Quem é que acata a
humilhação objetivamente dada sem colocar ali as razões subjetivas que a
tornem suportável? Reconheço que ver hoje o que eu vi, e sofrer agora o
que já não consigo mais suportar, pode ter sido mero azar, é fio tecido.
Mas isso não muda minha dor como muito menos muda a raiva por ter ela
tirado de mim a ingenuidade do amor que tínhamos. Por ter ela feito com
que eu já não a veja sem ele ao seu lado. Dói e dói-me muito ela não ceder
nunca, pedir desculpas sempre com certo freio nos olhos ou nos lábios, se

150
recusar a sofrer, como eu, o que é devido. Como pode ela não perceber o
horror que é a verdade de que eu jamais teria coragem de machucá-la
assim? Ainda que eu fosse também mulher e não tivesse de romper mil
barreiras morais para me dispor a conseguir um sim, jamais consentiria
um beijo, uma carícia sequer que sublevasse meus sentimentos de agora
nessa Juno imaginária que eu, com um simples não, pudesse nunca deixar
nascer. E como posso confiar em quem coloca sempre o presente, sempre
cada nova oportunidade acima de...

As três parcas adelgaçaram-se lentamente em três tênues faixas brancas sobre


a caverna, que se aplainava em piche de asfalto. Cada um dos astros flutuaram para
o centro e, um sob o outro, foram tomando as cores vermelha e amarela do sinaleiro
sobre a avenida. O lago e o freixo já quase não se os via e André, em desespero,
acorreu-se a engrolar arroubos de tentada sinceridade:

– Tenho medo de amá-la mais que ela a mim. É isso, acho. Qual o sentido
de sufocar tanto o que penso e sinto para ter alguém que de tantos outros
já foi e pode ainda ser também? Alguém que não faz o mesmo por mim! Se
aceitei suas condições, e são dela as condições, foi por me sentir acima
dos outros e tão alto quanto ela – vendo que nada no monte reaparecia em
sua nitidez anterior, pôs-se a falar ainda mais depressa, como quem quer
esconder na prosódia acelerada de outras frases a confissão que não se
pode deixar de fazer – Eu estava feliz, confesso, estava feliz por quase ter
estado com outra pessoa em minha viagem: a possibilidade da conquista
aqueceu meu orgulho e senti seu calor acelerar meu coração e descer do
peito até as pernas inquietas. Mas de que vale misturar esse prazer tão
baixo à grandeza do nosso amor? De que vale ter essa breve sensação de
poder se ele também a terá ao conquistar minha Juno? De que vale,
socorro, de que me vale, se as situações não são as mesmas, se ela pode
sempre sentir algo mais que eu, se eu posso não acompanhar ou não
querer acompanhar o ritmo alucinante de seus novos prazeres que eu não
terei? Tudo isso por bobagens tão vis: boca, saliva, tesão, o corpo ridículo
que nos dais, infinitamente mais desprezível que o amor! Que posso fazer

151
para amar como antes e só amar? De que é que me fizestes, de que tenho
de me livrar?

LÁQUESIS
(voltando à inteira corporeidade)

Cura que és o que fostes e serás


E não sendo ainda o que és, tudo te é vão.
Como homem nada tens sem sua razão,
Que como pó só em outros tem sua paz.

Nem tormento nem só um sentimento,


Teu ciúme é muito mais, tu mesmo é:
Pó voante em corpo humano, eis teu vento.

Pro instinto fende do amor toda a fé,


Das instituições, tu seja o tento:
Servos por servos, livre é só a galé.

“Um instinto vaidoso institucionalizado”, encantou-se André ao refletir


graficamente cada uma das palavras daquela frase, instilada na voz de sua
consciência pela sábia deusa fiandeira. Viu surgirem-lhe depois ao chão lindas
índias, todas nuas, sulcando a terra com suas costas, com suas nádegas, arrastadas
pelos cabelos por bravos guerreiros, também nus. No encalço dessa cena surgiram
várias outras, de homens engravatados a gritarem enfurecidos contra acuadas
camisolas, quase sem rosto. Saíam dessas salas de pratos quebrados e paredes
esmurradas e estavam já em um bar, maldizendo para sempre ao seu copo de whisky
ou seu amor, ou seu objeto amado, rebaixando um ou outro para sentirem-se a eles
de novo superiores. Temer pela razão ou desconhecimento um instinto desarrazoado,
não era esse o caminho por que queria André: dispensava a primeira face do
conselho que julgava ter desbravado.
Tinha era de mudar os critérios sociais com que seu corpo e sua razão, em
conluio criminoso, envergavam as costas de todas suas sensações. E à medida que
chegava já a essa conclusão, tornavam-se cada vez mais perceptíveis as ciciantes
vozes em volumosa algaravia, nessa celeuma anônima que prende e forja a nossa

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própria voz. Assim ia escutando, aqui e ali, no alto do monte a que subira, que é
preciso se respeitar e respeitar seu amor-próprio, que em um casal tudo tem de ser
recíproco, que há coisa que simplesmente não se aceita. Ao fundo e quase em eco
vinham vozes dissonantes, que diziam em maior número que mulher não se divide,
que ser corno é humilhante, que o maior homem é Dom Juan.
Ao apagar das vozes André sentiu-se finalmente aliviado. Sentiu a tensão de
seus músculos retesados abandonar seu corpo, e sentiu seu estômago e intestino
enfim declararem paz: tinha de novo o mundo à sua frente. Bastaria fechar os
ouvidos às vozes que não queria para que pudesse assim criar sua própria: se todos
eram mesmo escravos da vaidade, livre era o escravo só de si.
Somente um nó não tinha André ainda desdado. É que não se lembrava em
seus momentos de mais puro amor, se é que pode haver um sentimento que não seja
um feixe de tantos outros, de se envaidecer ao se embriagar perdidamente de Juno.
Tampouco se lembrava de vaidade ao acordar mais cedo que todos na casa para
“treinar sua mão”, ou quando se deixava estar por horas em sua sala predileta do
museu, a que sempre só expunha quatro quadros. Assegurando-se de que nada tinha
nessa ideia que rivalizasse com sua recém-reconquistada esperança, ia André
acompanhá-la, não tivesse a terceira parca erguido o cenho, repousado sua tesoura
em seu colo, e quebrado majestosamente seu silêncio:

ÁTROPO
De passada a passada ecoado
Teu desdouro, o silêncio maligno,
Pois tivesse teu Deus te louvado,
Foras homem divino e mais digno.

Muda o passo, guerreiro, à luta,


Come o fruto, a fazer do pecado
A virtude e teu Deus te disputa:
Se é de amor vai de amante ao odiado

Te consome na chama e floresce


E repete teu canto na morte
Que o divino jamais se embrutece
E morrer sempre é sempre sua sorte.

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A um único estampido que para André bem soava a um trovão como a uma
buzina, cerrou a deusa última as lâminas de sua tesoura, e definiu pelo seu ângulo
contra o fio mais um rosto de morte humana. Como em sonho as três parcas e sua
morada feneceram em nuvens, indicando a André que não bastasse a laboriosa
subida, o esforço sobre-humano para se apreender uma experiência opressiva e
recôndita, era ainda necessária extrema atenção para trazer de volta ao mundo o
todo do mundo que em um instante se entregou. A mais breve distração, a mais sutil
perturbação externa que à mente ascendesse, fosse a beleza das sombras dos olmos e
lodoeiros que povoavam aquele lúgubre outeiro, fosse a invulgaridade da ruiva
vestida de vermelho na movimentada avenida, qualquer nova percepção e pronto:
esboroava-se em frangalhos inúteis aquela única e extraordinária experiência, e tudo
o que vira era logo confundido por um mísero e ilusório suspiro aliviado.
Mas não André. André retivera tudo e com um pé ainda no gramado do monte
agora mal iluminado, e com outro já no quente asfalto, estava decidido a vencer-se,
amando-os: e amou Paula e a menina que deixara no aeroporto, amou seus pais e seu
irmão, amou Cássio e toda a arte; e amou Juno, e amou Cecília, e amou seu odiado
inimigo. Sentiu pena de todos, escravos como ele, menos livres que sobreviventes, e
teve saudades adiantadas de tudo aquilo que preenchia aquele seu bloco de tempo,
seu passado no futuro.
Chegou em casa e com o mesmo espírito, enterneceu-se com o sono
intranquilo de Juno. Com uma só perna sobre a coberta enrolada, e um só braço por
debaixo do travesseiro úmido, dormia sua linda menina, com uma mão ainda sobre
seu diário destrancado. Abriu-o sem nem mesmo refletir, pois ela era ele, e ele a
amava, mas ele foi-se enchendo de culpa: dois pobres versos em uma página em
branco, marcada por sua caneta sem tampa – “Como pode a dor me ser sem fim?/
Como posso adormecer assim?.
Mas adormecera. Mas pela primeira vez desde o início daquela noite infinda
que se estendia sob o sol, André não era todo interpretar tudo contra ela: não foi
como ela pôde dormir depois do que fizera, não foi como ela não tomara banho logo
ao chegar, como não se limpara, como queria ainda que ele a tocasse. Foi acordá-la,
foi conversarem, foi fazerem novas juras e promessas, foi limparem lágrimas de
desculpas em ambos os rostos, e foram dormirem juntos o leito da reconciliação.

154
IX

André foi de novo inquietamente desperto, pois que já não se acordava sereno
com o sono a desfazer-se lento do corpo, mas há tempos era a angústia que se
imiscuía sorrateira na anestesia do repouso, e seu espírito, dela saturado, despertava
André, pondo-o se não a se afogar nas vagas indomáveis de sua tormenta, ao menos
lutando por ar em meio à bruma úmida em que o náufrago ainda sufoca, quando então
arrimado sobre a tábua redentora.
Mal se tornara vigilante sentiu, antes mesmo de pensar, o informe e abstrato
formigamento de alma que agora sempre o assombrava, uma espécie bastarda de
angústia, filha de um pressentimento quase de si inconsciente, que mais que
acompanhar quaisquer de seus pensamentos os precedia e os conformava.
Foi assim que, ao se virar de lado na cama, notando a ausência de Juno, ele
passou a revolver seu íntimo na busca de uma justificativa dupla que unisse, ao
mesmo tempo, o vazio da cama com aquele de seu peito: por que nem acordara e já se
sentia assim?; se bem que se sentir assim não era mais surpresa em que se demorasse;
mas o que era então?; bebera de novo só para agradar Juno e acabara em um vexame?;
dissera algo?; tinha qualquer coisa hoje por fazer?; tinham brigado?; Felipe.
Claro, sempre isso. Mas não tinham discutido, nem ao menos o invocado, não
falaram naquela noite, não repisaram as mesmas dores – que era então? Antigos
namorados, outros casos, uma confissão indevida, o que fosse nesse sentido pois
aquele gosto amargo, dormido e requentado já se impunha sobranceiro sobre a cama.
Paixões pretéritas, outras mãos cegas e sedentas a percorrerem suas costas, outros
beijos longos e bem encaixados. A apreensão da perda da virgindade, o frio na
barriga, a cumplicidade, aquela intimidade com seu primeiro namorado, ele a invadi-
la pela primeira vez, outros a preencherem-na: quantos?, como seriam?, em que
camas? A descoberta e a maturidade sexual; suas concupiscências criativas com os
antecessores; suas fantasias com outros; será que já se tocara pensando, mesmo que só
de relance, em Felipe?
André pôs-se subitamente sentado sobre os lençóis para dissipar aquela névoa
crescentemente espessa de impressões indiscriminadas e para, agora de todo
acordado, ditar limites conscientes àquelas elucubrações doridas. Mais uma vez
André acordava assim de seu sono. Mais uma vez não se levantava para um dia novo.

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Mais uma vez não era a curiosidade de possíveis futuros presentes que se lhe
entravam com os primeiros raios de luz ao abrir de seus olhos. Não. André apenas
repassou, pesadamente, os afazeres que teria – despertava já com essa pesarosa
condenação: tinha o dia todo ainda a singrar, e sabia que só o faria sobre aquela fina
tábua composta pelo fio de vida de apenas não se estar morto.
Calibrou morosamente a temperatura do chuveiro e, em habitual reverência,
ofereceu a nuca curvada à queda d’água quente que o anestesiava. Tinha um pé sobre
o piso e outro sobre o ralo, e sentia subir sem ver o nível de água nos pés e a
quantidade de fumaça incolor por todo lado. Não reagiu ao vidro embaçado do box,
nem à inesperada guinada de calor nas suas costas, chuveiro antigo, e deixou-se sem
ar ou reação até que o insustentável fosse mais físico que de sentimento. Apoiou-se
com as duas mãos contra a pequena janela de alumínio que abria, e puxou como se
lutasse pela vida a pequena alavanca que fazia torcer o vidro. O trânsito, o sol, os
pedestres e o dia transcorriam na mesma serenidade indiferente de sempre, à qual
André só queria poder se juntar.
Lá embaixo, bem pequena, uma moça trançava uma bolsa vermelha de um
ombro para o outro, e então de volta, como Juno poderia também agora fazer em
algum lugar da cidade, com sua bolsa também vermelha, a com que saíra na noite
anterior, e fora isso: enquanto ainda procurava sua carteira nela, terminou de lhe
contar desapercebida, de sua maneira espontânea e displicente, esperando a
sobremesa, que o novo membro da redação também se dava a literato, parecia
divertido e se chamava Felipe. Era ridículo, ele o sabia: mas era o quanto bastava. Se
Juno lhe descobrira os efeitos de seu pequeno comentário sobre o trabalho, não podia
adivinhar, não tinha como saber, porque as indagações de Juno, (talvez por se admitir
culpada!), já não tocavam as concretudes desses assuntos, não tomavam corpo para
confrontá-lo em uma ousadia que já não era deles. Pensou melhor, e não é que não se
ousasse a tal pergunta, é que ela jamais a compreenderia: Juno simplesmente não
habitava esse território de loucura no qual André se perdia.
Ele não se exaltara durante o jantar, como não se exaltava agora, mas se
arruinava lá e cá no mesmo labirinto circular de rotas repetidas, perguntando-se e
desmentindo-se tantas vezes em um jogo que nada devia à verdade: podia esse Felipe
ser o mesmo que aquele outro?, não, era claro que não; mas, e se fosse?, o que faria?,
como reagiria?, seria impossível aceitar. Mas pediria a Juno que se demitisse? Não,
isso nunca. Mas, então, teria que conviver com esse novo estado de coisas, com

156
ambos dividindo todos os dias o mesmo ambiente, conversando sobre o trabalho,
sobre literatura, enlevando-se com poemas que ele mesmo desconhecia, fingindo e
sabendo que deviam fingir que nada acontecera entre eles, um segredo e uma
cumplicidade próprias, uma ligação entre os dois que se renovava e se perpetuava por
um perene pacto de silêncio. Sobre o que haviam de fato conversado naquela noite?
Frase por frase? Só essa pergunta e enterraria o assunto para sempre; se nada mais
houvesse para saber conseguiria se livrar de si mesmo, era a curiosidade e a
ignorância que atravancavam sua vida e seu amor: estava certo disso. Os caminhos
eram infindos, e não chegasse o banho ao fim, André os percorreria na busca ilusória
de um final interno àquela tortura.
Encarou o espelho. Espocavam aqui e ali, desajeitados e fora do lugar, como
manchas sujas e embaçadas, os riscos indecisos de seu rosto. De longe, borrões
negros, quase imperceptíveis; de perto, mão a enxugar o vapor, delineava-se sua
proeminente face orbital do osso frontal, o anel de amarelo por volta da pupila, as
unhas negras penduradas ao rosto. Sempre fora quase imberbe. Sempre tivera força
para se afirmar como quisesse. A que lado do rosto pertencia a vitória sobre essa sua
neurastenia? Era sair de casa, afastar-se e morar de favor por meses, ou estava do lado
da barba que nunca viera, a vitória sobre sua própria insegurança? Barba rala ou
espessa? Que tipo de homem Juno preferiria? Que nomes ela dava a uma e outra
barba? Seriam perguntas honestas, vivas, dessas que já há muito não se permitiam,
vencida que estava a curiosidade absoluta do amor pela cautela cuidadosa do afeto.
Queria saber. Queria saber o que ela dizia solteira, conversando com as amigas,
descrevendo o rapaz com que saíra. Queria saber o que ela dissera dele próprio. E será
que comentara algo sobre Felipe? Sobre os outros? Sobre os que foram antes dele?
Óbvio que sim. De todos quanto vira, só ele e Felipe traziam o rosto liso. Talvez
guardasse um carinho maior pelas faces imberbes: divertia-se com o pelo dos outros,
amava a lisura dos seus.
André já era suficientemente crescido em sua dor para saber que qualquer
resposta o massacraria. Era ela ter uma resposta, ter seus critérios de comparação para
julgá-los, querer homens que de um jeito ou de outro não eram ele mesmo, como se
ele próprio não perfizesse essa maldita categoria que o arrasava e o arrasaria ainda
mais, não tivesse ele por melhor tomar partido ativo contra chafurdar-se naquelas
ignomínias: era preciso fazê-lo antes que até a barba se ascendesse a um desses
símbolos que continuamente engatilhavam tais horrores. Limitou-se a escovar os

157
dentes e a aprontar-se enquanto repassava o rascunho de seu dia: sairia agora para
sentir o calor da tarde e enfim despertar de fato; aproveitaria a excursão para pagar as
contas no banco, tarefa que era agora sempre dele, tinham resolvido; voltaria o quanto
antes para trabalhar no pequeno quarto ao lado que convencionaram chamar de seu
estúdio; e, no fim do dia, tinha ainda de ir ao evento no museu, que agora contava,
excepcionalmente, com visitas guiadas na parte da noite: fora por causa da
inauguração que acordara tão tarde. No meio disso tudo, faltava-lhe resolver quando e
onde comeria, além de fazer uma ou outra ligação convencional para Juno.
Para qualquer outro não pareceria muito, reconhecia, mas era-lhe uma carga
pesada para suportar durante todas aquelas horas, sabendo das liças internas que teria
de travar, os embates escatológicos entre sua vontade de amar e as imagens que lhe
surgiriam a contragosto; a luta em que a cada instante, a cada mínimo acontecimento
sempre evocativo de algo, seria obrigado a se gastar para continuar vivendo aos olhos
dos outros: era assim, mais uma vez, que se lhe apresentava o dia.
As filas para os quatro caixas eletrônicos em funcionamento dispunham-se,
duas a duas, paralelas no centro do saguão, com o final de cada uma quase a encontrar
o integrante último de sua correspondente do outro lado da agência: o inferno na
Terra. Escolheu a fila à sua esquerda, mais próxima à porta, e espremeu-se atrás de
um policial fardado – homem ainda jovem, também sem barba, um tipo
aparentemente bonito: sem dúvidas alguém por quem Juno poderia se interessar,
afinal, que espécie curiosa de vida levava um membro da polícia? Tivesse sido uma
escolha real, André logo se arrependeria dela, pois na fila ao lado, três posições à sua
frente, aguardava também um falante conhecido, um guia do museu com vocação
também pretensamente artística. Quis que ele não o visse, era excessivamente
extrovertido, conversava demais, falava sobre arte como se fosse algo de prosaico,
qualquer coisa que se pudesse resolver entre duas garfadas e, a esta altura, ele já não
tinha forças para nenhum fingimento social, tanto menos para se lembrar de seu nome
– quis, porém, em vão:

- André! Como você anda, rapaz? Como está o cemitério de artistas à luz
das estrelas? – parecia sentir-se sempre bem com essa insuportável
perífrase.
- Vai indo, vai indo. E você?

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Tinha, claro, descoberto o segredo da vida. Não era mais o homem cheio de
amigos e sem mulheres, desculpas por se abrir assim, mas transformara-se em um
galanteador confiante, conversava com toda alma feminina por que se interessasse,
poderia parecer bobo, mas, de que era feito nosso mundo no fim das contas? Antes
possuía, poderia não parecer, mas possuía sim, garantia, problemas em se arranjar
alguém, seu antigo personagem se abria a quase tudo e só se fechava diante do que
mais queria, poucos não eram assim, mas agora tinha confiança até para o confessar
com sinceridade. Três livros, dois seminários, e aprendera truques infalíveis da arte da
sedução. Sabia que não soava bem, mas não, não eram encontros vergonhosos de
onanistas profissionais, havia quem fizesse disso um estilo de vida.

- A fila está andando, amigo – salvou-lhe o senhor que chegara.


- Ah, pode seguir. Eu entro aqui no final – quem diabos cede quatro lugares
na fila de um banco? – Você está duvidando, André? Olha aquilo ali –
apontou com a cabeça uma moça com calças de ginástica: bunda, peito,
coxas, e um rosto coberto de pó. Uma beleza imerecida, podia quase
escutar Cássio se revoltando contra o que não fora o primeiro a ver.
- Não faz meu estilo, para ser sincero. E não faz muito meu estilo não ser
sincero também, mulher não é troféu, sedução não é uma guerra... – reagiu
ao vocabulário que ouvira sobre baixar as defesas, forçar semelhanças,
estudar os sinais corporais.
- Olá, licença, tudo bem? Posso te fazer uma pergunta? Eu e meu amigo
estávamos discutindo e precisamos de uma terceira opinião: você acha que
existe diferença entre amor e paixão? – seu novo confidente mimetizava o
punho fechado da moça sobre sua crista ilíaca.
- Não sei – sorriu em uma gentileza desarmada – Acho que o amor é a
paixão da qual a gente não se livra, é a paixão que dura mais tempo e
amadurece...
- Entendi. Deixa eu te explicar a situação – revidou ansioso, sem se importar
se, para ela, continuava-se apaixonado quando se amando, ou se não se
livrar da paixão era escolha ou imposição do amor – Uma amiga em
comum diz amar o namorado, mas está sofrendo por se dizer apaixonada
por uma outra pessoa. Você acha que isso é possível?

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- Ah, acho que não. Quando você ama, você se entrega a uma pessoa. Se
você ainda quer saber de outros, acho que você não está realmente
amando.
- Não disse? Quero ver, todo mundo cria personagens na hora de se
apresentar. Faz melhor, olha aquela magrinha de óculos: seu estilo, não é?

Era seu colega que voltava brandindo o celular, tentando deixar claro que
conseguira o telefone da falsa atleta de polainas até quase o joelho. Enquanto ouvia o
relato do diálogo ao qual, não adiantou intervir, já tinha escutado, não era preciso
recontar, escutou também o toque do próprio celular e pressentiu nele a saída daquela
penitência – bastava manter a conversa até a sua vez ao caixa, mas:

- Calma, como é que é? Quem vai nesse almoço? Ah, sabia, é perfeito: só
vocês dois, claro... Você não escolhe o chefe que vai ter, mas escolhe
como vai ser sua relação com ele, não é, Ju? Não importa o que você
pensa, não quero saber se para você ele é velho ou asqueroso: as gracinhas
que ele tem liberdade para fazer com você me diminuem, me deixam mal,
esse é o problema. Não, não disse isso. Não importa o que você pensa
dele, claro que você é importante. Você está se esforçando para não
entender de novo? Ah, pelo menos isso, só faltava ser na casa dele mesmo.
Não, você está certa. Vai lá. Não estou sendo passivo-agressivo, pode ir
mesmo, é seu trabalho. Não, não estou dando permissão, só estou falando
que por mim não tem problema. Um beijo. Aham, também te amo.

Seu colega parecia ter permanecido atento, observando impudentemente os


deslindes da conversa e reagindo às agruras que adivinhava nela, pois ainda olhava
fixo para André, só acrescendo agora certa piedade nos olhos. Era justamente o tipo
de exposição que o consternava: sentia-se no limite de suas forças. Pensou em
capitular, em abandonar as máscaras: dividiria tudo ali, no meio da agência, para
alguém que pouco o conhecia, em um espetáculo que ele tomaria por uma assustadora
crise histérica. Explicaria como ele padecia de um sofrimento mudo e como seus dias
transcorriam embotados, sem nada que lhes reacendesse o vigor. Choraria seu peito
carcomido por uma lembrança podre e velha, mas todo o dia ressurreta nos mais
banais detalhes de seu cotidiano. Exporia sua minuciosa teoria da memória, de como

160
cada pequeno novo estímulo ativava regiões de emoções específicas, e de como o
homem, como bicho qualquer que é, lembra-se melhor daquilo que lhe foi impingido
a ferro, fogo e dor do que das blandícias deliciosas de uma qualquer paixão. Gritaria
os horrores de se estar sob o jugo desse mecanismo devido às sucessivas traições da
mulher que amava, as quais, confessaria, jamais pudera realmente perdoar. Segredaria
envergonhado encontrar em Felipe seu maior algoz e o verdadeiro demônio que
arquitetara todo aquele inferno, por ter sido nele que sofrera a tanta dor necessária, e
por ter sido ele sua humilhação vívida, presente e carnal de uma noite que nunca
conseguira esquecer. Imploraria depois por perdão por ter tentado dar a Juno de seu
sofrimento uma culpa, que era só sua, mas que ela merecia agora se não por aquele
almoço, ao menos por todas as suas intermináveis culpas pretéritas.
Seu acesso de sinceridade talvez arrebatasse todas as testemunhas ali
presentes, todas desusadas a olharem para si mesmas com tamanha transparência.
Mais provavelmente, porém, ouviria apenas as marteladas finais de indiscretos cicios,
decidindo-o por qualquer coisa entre louco e ridículo, juízos salpicados com pequenas
doses de piedade. Não bastaria. Mesmo se mais calmo expusesse tudo com sobriedade
para seu colega que parecia ter por ele boa inclinação, jamais conseguiria fazê-lo
entender aquilo por que passava. Tinha que o ciúme era, no fundo, incomunicável:
aquele que reconhece no outro os males de que já sofreu não se compadece nem
tampouco o entende verdadeiramente – apenas ri amarelo, com a condolência
arrogante de quem revê no próximo uma falha que já foi própria, como que vinda de
um vício secreto que é comum, mas de todo abjeto:

- Mulheres! – André suspirou, sem jeito.


- Não, na verdade eu achei mágico, sublime. Estou concebendo uma obra
que fala também sobre isso: um círculo policromo que é a modernidade, a
velocidade, o futuro e a evolução, o mundo todo conectado por inúmeros
pontos; mas o círculo está sofrendo e vomita de tudo, até para fora da tela:
pregos, operários, fumaça, casais, esses encontros e desencontros que
vamos encontrando por aí. Eu te mostro quando estiver pronto, está só na
fase da concepção ainda.

André, por sua vez, achava mágica e sublime a capacidade de seu colega de
sair cagando obras: lembrava-se de ao menos dois ou três outros projetos que ele lhe

161
descrevera, no único dia em que foram obrigados a passar juntos, com idêntico
entusiasmo. Era um artista por substituição: substituía o vazio de sentido, por uma
obra que só tinha isso. Como as paredes das galerias não podem faltar aos egos dos
artistas, foi também André buscar sua obra toda vazia por ser toda ela um sentido só:

- Olá, boa tarde. Seus olhos fazem uma meia-lua perfeita, sabia? Um retrato
seu ficaria lindo com um fundo escuro – era o elogio que inventara àquela
nissei magrinha, de óculos.
- Brigada... Você é fotógrafo? – disse em um passo para trás.
- Não, pintor. Ou tento ser, pelo menos. E você, faz o quê?
- Eu trabalho com publicidade, assim, pelo menos é o que eu cursei – foi
como um soco no estômago.
- Por quê? Você não trabalha com publicidade? – tentou vencer-se.
- Trabalho, trabalho sim, mas é uma área bastante ampla – respondeu,
tirando o celular da bolsa, o que para André foi o mesmo que perguntar:
“Mesmo? Na fila de um banco?”.
- Ela tem namorado – voltou, derrotado.
- Eu estou te falando, André. Todo mundo cria personagens para se
aproximar de mulheres, nada melhor do que já ter um personagem
estudado, saber o que dizer para não perder para os outros que também
querem a mesma coisa e também têm que tentar impressioná-las.

André amargurou devotamente mais alguns minutos de diálogo insosso até


que o pagamento de suas contas fizesse o caixa eletrônico imprimir-lhe sua carta de
alforria, a qual entregou verbalmente:

- Um grande prazer te rever, de verdade. Agora tenho que ir, mas não some
não, me chama para ver seus trabalhos. Um abraço.

Finalmente estava livre. Estava enfim de novo só e podia voltar para casa e
para sua obra incompleta. Percebeu logo que teria, outra vez, que trabalhar com
aquela náusea extenuante como inarredável pano de fundo, que exigiria de novo de
todos os seus encargos não só sua diligente execução, mas também sempre uma
vitória cruenta e confidencial sobre esse sentimento impreciso que sua alma insistia

162
em contrabandear para os lados da consciência. Isso se ele fosse de fato capaz de
ainda trabalhar: sabia bem que a sordícia por que entraria agora inspirava pouco e
menos ainda o deixava concentrar, levando-o mais a uma inação sofrida que a
qualquer inquietude produtiva. Talvez fosse mesmo melhor estender forçosamente
aquela sua caminhada para que, debruçando-se corajosamente sobre seus
pensamentos, aniquilasse as dúvidas e, então, pudesse dar forma e sentido a esse
sofrimento já ancestral, mas atualmente de paternidade difusa.
Sentia de novo serem a dúvida, o mistério e o desconhecido as causas perenes
de suas perturbações: sentia que se, ainda que só por um instante, tudo lhe fosse
descoberto, o interno e o externo, o passado e o presente, já não teria por que sofrer.
Concluía mais uma vez esse já gasto raciocínio, quando uma pequena turba de jalecos
brancos lhe atravessaram o caminho: estavam em um número grande demais para que
se pudesse imaginar estarem todos cumprindo o horário de almoço de algum hospital
ali por perto, mas em quantidade muito reduzida para que compusessem qualquer
manifestação capaz de transpor a pecha de ridícula. Não importava – sabia agora já de
antemão a senda por que iria seu pensamento: jalecos, médicos, medicina, festa de
formatura, aquela noite, ele, a humilhação, a vergonha, sua queda ao chão. Juno com
outra pessoa, quantos além daquele, o que aconteceria se não tivesse chegado, será
que ele próprio tinha também uma namorada? Quem era, no fundo, Felipe? Iria atrás
dele, iria ameaçá-lo de novo, jurá-lo de morte se voltasse a se aproximar.

- Oi, amor – começou André um pouco trêmulo, produto do nervosismo e de


uma ligeira hipoglicemia – É que você disse... você está podendo falar?
- Não muito, aconteceu alguma coisa? – Juno sussurrava com a voz firme, à
maneira de quem quer se mostrar atencioso tanto com quem fala quanto
com que se deixou de falar para responder à ligação.
- É que você disse para eu te ligar se achasse que você não devia ir almoçar
sozinha com seu chefe e, assim... Sei que não é nada demais, apesar de que
é diferente você ir almoçar com um cara e eu com uma mulher, eu tenho
certeza que nem ela nem eu vamos tentar nada, mas... Acho que também
não tem nada demais você falar que não quer ir almoçar, que você prefere
discutir qualquer coisa aí na redação mesmo. E não sei, Ju, ainda estou
meio sensível com esses assuntos, fico meio encabulado, você podia
respeitar isso, tentar entender, depois de tudo o que você fez... – André mal

163
podia conter a ansiedade pela resposta de Juno, como se toda sua vida, ou
ao menos sua vida como a entendia naquele dia, dependesse inteiramente
daquelas próximas frases que escutaria, nas quais depositava a esperança
de ter todo seu dia redimido.
- André, não posso falar agora, tá? Depois eu te ligo, pode ser?

As palavras de Juno derrubaram-no sobre o sofá – o mesmo sofá em que já


tantas vezes se deixara prostrar por horas, vez pelo seu completo desespero, vez para
que Juno, constrangida, pudesse compreender a grandeza de seu mal, e uma ou outra
vez ainda por absolutamente não saber o que fazer:

- Pode ser. Só não acredito que depois de tudo o que já conversamos sobre
evitar fazer com que eu ou você soframos desse jeito, por causa desses
motivos, você simplesmente não possa conversar agora. Mas tudo bem.
Depois nos falamos.

Por que se expusera tanto, a ponto de ligar para ela? Era mais um
arrependimento profundo para que remoesse pelos fios infindos de suas mesmices.
Odiava-se por a ter procurado agora, como se odiava por se ter identificado como seu
namorado na frente de todos dentro daquela noite eterna: não compreendia ainda que
para se viver bem, é preciso ver o erro dos outros, para frente e para trás, em seu
império intransponível, assim como os seus próprios na direção passada.
Mas não. Tinha era de parar de se depreciar, de que lhe valia afinal esse
sacrifício? E por que não lhe chamara também de amor? Não tinham o costume, e
justamente por isso valia por uma carícia: desprezada. Mas as mulheres gostam de se
sentir desejadas, e Juno não era diferente, era culpada. Estava já com seu chefe,
sozinhos, um toque em seu braço, um abraço em sua cintura, que mal ela veria nisso?
Seria tudo sua paranoia! Seria ele quem não sabia lidar com seus ciúmes. E sentia-o,
era claro, com isso sobreveio-lhe até certo alívio: não era seu eterno pesadelo redivivo
que se reerguia incólume, mas apenas seus ciúmes, nada mais natural, esse
sentimentozinho contra o qual qualquer um, em qualquer outro relacionamento, tinha
também de lutar. Não era menor que ninguém, ora, quem não seria também assim?
Podiam falar o que fosse, que não deveria se preocupar com um chefe supostamente
velho e asqueroso, que seu dever era confiar em Juno, que cabia a ela, e não a ele,

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defender-se de possíveis assédios, velados ou explícitos, mas quem, que tipo de
criatura percebendo seu par sob as ameaças de um outro olhar interessado deixaria de
sentir – de sentir! – a mesma pontada que sentia?
Que se a sufocasse, reprimisse ou se distraísse para esquecê-la; que se
torturasse, que sofresse ou que à força bruta se lhe extinguisse a causa – pouco
importava: o instinto cruel, verdade da vida, era de onde também teria de partir.
Imprensado por incontáveis gerações na carne animal, aquele sentimento verdadeiro,
real e fisiológico era imbatível: só no seu reconhecimento poderia vislumbrar-se uma
chance de vitória, dentro da derrota que era já o ter sentido. Jamais lhe caberia vencê-
lo completamente, não se podia derrotar a si mesmo: não se podia querer vencer seu
demônio de pensamento antes mesmo de ele se elevar a pensamento.
E ele, diferente de Juno, não tinha problemas de o reconhecer: sentia ciúmes
de seu chefe, enciumava-se, sim, preferia que ela não fosse ao almoço, inquietava-se
com as possíveis investidas dele, desesperava-se com a provável indulgência dela, não
a queria lá, não era obrigado a essas pequenas angústias, não queria esse tipo de
preocupação, não queria homens, não queria Felipe, não queria! Pois era: seu chefe e
Felipe, os outros, os casos interrompidos, e as historietas mal contadas, todas se
fundiam em uma mesma amálgama para só depois se separarem, levando um pedaços
dos outros, corpos sempre se revidando forças, em uma eterna comunidade de
influências: Felipe e o chefe eram assim também um só, reforçados agora pelo novo
Felipe que adentrara desde a noite anterior aquela constelação.
Pois sim, havia constelações: cada um de seus antigos namorados, suas outras
traições, suas quase mentiras formavam sistemas de imagens e detalhes que surgiam
de uma só vez sempre já quase por completas, por mais longínqua que fosse sua
evocação. Nem sempre fora assim. Ela é que os fizera assim: com sua falta de
cuidado. Quis vê-la como a via antes para poder voltar a ser o que era, imerso na
pureza de seu antigo amor. Não podia. Simplesmente não conseguia. Havia sempre
um símbolo antigo, um comichão, um Felipe que lhe impedia a felicidade de antes. E
a felicidade de antes o pressionava ainda mais à felicidade do agora. Sabia precisar
convocar suas forças do passado para que com esse exército pudesse arrimar o seu
presente, mas a manobra só o trazia de volta à sua conclusão mais óbvia: o que
acontecera aquela noite não podia ter sido, Juno não podia ter feito isso com eles,
estava condenado àquela nova existência. Reconhecia. Reconhecia não suportar a
ideia de que Juno e Felipe tinham um enlace eterno e só deles, que consistia

165
justamente em todas as vicissitudes daquela noite, e, com ela, toda a imensa cadeia do
que os levou até ali – fatos que de uma maneira essencial, eram agora tão
inalcançáveis quanto imutáveis. André o sentia. Via crescer seu sofrimento por aquela
comiseração de si. Soçobrava ante seu instinto. Afogava-se em quem era.
Descera de novo, voltara às ruas e era já sua quarta volta por aqueles
quarteirões: não se sentia ainda preparado para permanecer na solidão de seu
apartamento, fosse para trabalhar ou mesmo para apenas se deparar com um lugar tão
cheio de significados, dos móveis ao cheiro de creme dos banheiros, dos quartos à sua
atmosfera feita feminina por Juno. Tudo no mundo era impalpável, e falso. Se fosse a
arte, haveria sempre um chinês a levar ao extremo da perfeição a execução da
música por que se pudesse perder a humanidade. Se a vida, sempre mil filósofos a
deduzirem a forma correta de se a encarar. Se o amor, descobrira, um submundo de
seminários e especialistas a ensinarem como provocá-lo. Tudo tão distante, e o mundo
na ponta dos dedos. Podia caminhar a seu bel prazer por qualquer canto da cidade,
podia esquecer de si em sonos comprados à farmácia, podia até, se assim o quisesse,
enfurnar-se incógnito a tarde toda pelos bordeis, vingando sua dor em gozos
espasmódicos e entregando-se a depravações às quais Juno jamais poderia imitar.
Subiu-lhe um desequilíbrio desconcertante, como se arrebatado por aquela
súbita sensação de liberdade. Pensou em ir ao cinema: almoçaria – e isso se
conseguisse comer – e passaria a tarde a distrair-se nas mais banais histórias que
pudesse encontrar em cartaz. Não demorou muito, porém, e André voltou a si para
desfazer-se de mais essa ilusão: descobrira aos poucos depois daquela noite, na
sociedade em que vivia e no raso imaginário de sua cultura, êmulos pertinazes de
quem se sentia como ele agora – não se faziam mais filmes sem romance, não se
discutia mais nada que amor e traição. Seria como refugiar-se em trincheiras inimigas.
E, de qualquer maneira, não importava: lembrou-se que Juno lhe narrara certa vez
quase ter sido expulsa de uma sessão por um funcionário conservador, que julgara
excessivo o calor vindo de sua poltrona e da do rapaz que a acompanhava, e agora
evitava sempre o cinema sem confessar-se direito o motivo. Por que lhe confidenciara
isso não sabia: eram os primeiros dias – nem isso era mais só deles, e o cinema pouco
lhe podia ajudar.

- Está podendo falar agora, ou estão muito ocupados no almoço que eu nem
podia ir porque é ESTRITAMENTE PROFISSIONAL?

166
Mensagem visualizada e não respondida, escorria seu amor, quebrava-se o
vidro. Recolheu seu celular ao chão e, porque não debutava naquela sua dor, soube
precisar antes de uma revolução interna que de sair a imitar as loucuras de qualquer
aventureiro. Como se pressentisse nas mãos o cinzel com que moldaria seu futuro,
convicto de que conhecia todas as artimanhas do amor, imaginou morto o objeto do
seu: e se Juno morresse? Quanto não sofreria? Quais últimas súplicas por perdão não
sussurraria aos pés do ouvido de um corpo já surdo, na esperança de exorcizar da
alma a culpa de tê-la feito sofrer as agruras mal-humoradas de seu ciúme? Quão fútil
não pareceriam suas atuais preocupações durante a cerimônia grave e macabra que
marca a derradeira despedida da humanidade? A perversidade de seu lúgubre
imaginário fugazmente funcionou: a fantasiada trégua veio, marchou vitoriosa por
alguns instantes, e logo se retirou.
Mais cedo que queria, André se viu observando o luto dos outros homens de
preto presentes ali: quais já teriam estado com Juno? Quais de seus romances
compareceriam? Quais daqueles olhos por trás de óculos escuros pertenciam à face
temida de suas traições, de seus amigos inoportunos, de Felipe? Quem dentre esses
teria o desplante de arrogar para si um laço especial com Juno e supor em sua dor uma
saudade quase mútua dos tempos que foram seus, despedindo-se em palavras doces de
um passado que agora virava eternidade?
Ah!, como queria ser incumbido de fazer-lhes trair a carne para arrancar uma
retratação profunda e sincera daqueles que o ousassem! Era preciso por limites mais
sóbrios e frutíferos àquelas ousadias de pensamento: se queria ver-se livre das
mesmas ideias obcecadas, do vício repetitivo daquele sofrimento e daquelas já
habituais constelações de rostos torturantes não era preciso fazer Juno morta nessa
fábula histriônica de sua imaginação – bastaria fazê-la morta para si. Era tão óbvio. Se
extirpasse Juno cirurgicamente de sua vida, por mais que demorasse meses ou anos
para recuperar-se da operação, faria com que ela e toda a carga afetiva e simbólica
que trazia consigo também desaparecessem. Lembraria só vagamente, e com a
altanaria condescendente de um íntimo irmão mais velho, de seus antigos infernos
anímicos, causados por sua imaturidade em um louco amor ainda juvenil. Mais que
isso, acrescentaria uma ex-namorada significativa a seu repertório e, solteiro, poderia
lançar-se às mais ousadas libertinagens, encher-se de casos insignificantes, dedicar-se
ao mais alto acúmulo de seduções e experiências divertidamente ultrajantes para que

167
então, munido de um romaneio próprio de indecências impensadas, que em mulher
alguma poderia encontrar páreo, voltaria a buscar talvez alguém para amar.
Sonhava um mundo distante, mas não pôde ignorar por mais muito tempo que
aquelas suas vontades de liberdade para poder enaltecer sua própria imagem de si só
faziam sentido dentro da lógica de um amor já existente, no qual essa mesma
liberdade também existia, embora com gosto sempre amargo: o que queria realmente
era violar sua relação para emparelhar o seu passado com o que imaginava de Juno, e
para isso levava-se aos limites de desejar sua extinção – logo deu com o muro de que
com sua extinção, iam-se também suas imaginadas comparações e, com elas, seu
próprio desejo de sua violação.
Sentiu um arrepio frio ao rever seu apartamento vazio. A calcinha rosa e gasta
jogada ao pé do banheiro, a vela aromática que recendia apagada sobre a mesa, os
pratos sujos no sofá: tinham passado por tanto juntos. Perdoaram-se as fraquezas e as
ilusões, sobreviveram às desilusões, ajudaram-se para construir quem eram. Era
André quem fraquejava. Ligaria, conversariam e dariam um jeito.
Pois que se era André só mais uma vítima desse instinto que engulhava toda
uma civilização, não seria ele a aceitar se reduzir a mais um a apenar quem amava por
um espinho que era só seu. Não seria ele a declará-la puta e vagabunda aos quatro
ventos, não caberia a ele a acusação ancestral de que ela desmerecera seu amor
sincero. Ao menos não enquanto fosse honesto o suficiente para se lembrar de que era
ele quem realmente o fizera. Tampouco se tornaria o famigerado inimigo declarado
do que se toma por origem primeira desse mal. Não combateria com azedume o amor
em abstrato, não faria as vezes do velho sábio e aziago no canto do boteco a
pressagiar agourento o fim sempre iminente da paixão do jovem casal. Não seria o
amigo amargo sempre só a reforçar a predisposição de todas para a traição e a ter
como único conselho o adiantamento de um fim incontornável. Não se prestaria ao
papel de vate incansável do desamor, não seria o poeta oco dos desencontros, não
pintaria com cores frias a impossibilidade de namoros, não comporia sonatas
explosivas para a incongruência do matrimônio.
Não; ele não. Ligaria para Juno ciente de que era perfeitamente natural
enciumar-se de alguém de seu ambiente de trabalho e que aqui, nesse caso, seu
respaldo vinha das convenções mesmas de sua sociedade, ela não teria como negar: se
o instinto visceral que o dominava tivesse que encontrar qualquer expressão no
relacionamento entre as pessoas, só podia caber a elas dar-lhe significado – eram

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todos já cornos de nascença, faltando-lhes apenas o convívio social para lhes dizer por
quê.

- Oi, amor. Vi sua mensagem, desculpa ter demorado. Você está bem?
- Oi, Ju.
- Ô, Dé, não fica assim. Desculpa por hoje, mas aquela hora meu chefe tinha
desmarcado o almoço, disse que não ia dar tempo, e acabamos fazendo a
reunião na sala dele; fomos eu, ele e uma outra repórter aqui do jornal.
Quando você ligou eu já estava em reunião...

André desarmou-se aliviado com aquele início de conversa, rindo


constrangido mais uma vez da ironia de sua dor: sofrera de novo por horas as penas de
um carrasco irreal. Sem saber direito o que fazia, assentiu prontamente a um atrasado
almoço no shopping e, agarrando-se àquela súbita alegria, voltou às ruas em que tanto
se castigara naquele dia até ali. Como podia justificar seus dias por quimeras que não
existiam em lugar algum, em ninguém, já nem mesmo em Juno ou em seus
comparsas? Era preciso mudar. Inspirado pelo calor amarelo do sol, concebeu seu
plano: surpreenderia Juno organizando um churrasco digno de um programa
publicitário, a seu gosto, com amigos mútuos e não mútuos, reservando-se apenas o
direito de não incluir um ou outro que lhe causasse qualquer nesga de ciúmes e o
pudesse impedir de, com o controle de toda a situação, encravar aquilo na linha de
memória de seus eventos compartilhados como um momento de puro deleite para ela,
e, para ele, como marco simbólico de sua virada cósmica na vida.
Já o fizera antes, é verdade, e com o mesmo intuito, mas o faria ainda melhor,
pois que agora contava com a convicção de sua necessidade, e com a entrega exigida
que partiria daí. Organizara com ela, há algum tempo, a reserva de uma chácara
próxima à cidade, e empenhara-se em fazer a melhor festa de que fosse capaz. Havia
no ponto mais alto do extenso campo gramado uma piscina de fibra de vidro em
formato de um oito abaulado, com estampas em mosaico de diferentes tons de azul.
Ao longo de uma de suas bordas, um alto balcão amadeirado servia todo tipo de fruta,
um balde com gelo, um pote com açúcar, vodca e pinga para que se fizessem as
caipirinhas. Ele próprio enchera um congelador de cerveja, e acrescentou whisky,
gim, vermute e Campari ao balcão de bebidas. As drogas, cada um que as levasse as
suas, mas garantira por diversos telefonemas de que elas chegariam até lá.

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Quisera que seu irmão o tivesse visto ali. Uma festa para superar todas as
festas que Juno já recebera de aniversário. As enormes caixas de som asseguravam
que a música chegasse de modo mais ou menos uniforme nos três ambientes que iam
se formando naquela chácara: alguns casais aventurando-se na piscina; grupos de
amigos mais íntimos sentando-se em rodas nas espreguiçadeiras ou no próprio chão
de cimentício; e a imensa maioria estirada no gramado, à qual se juntavam Juno e
André.
Ele recolheu alguns dos pratos de cerâmica espalhados, embrenhou-se
rapidamente por trás do balcão e voltava para o núcleo da festa para assegurar que não
faltava nem carne, nem seus substitutos vegetarianos, para absolutamente ninguém.
Parou na ponta da área da piscina para contemplar aquela realização. Ouviu seu nome
ser chamado de todo canto, e encheu-se de júbilo. Regozijou-se no orgulho de bom
anfitrião, de companhia querida e agradável. Não era assim, afinal, que vivia toda a
gente? Acaso se alegrava o dono da festa por outro motivo que não o de ser
reconhecido, e então de se reconhecer, como bom, feliz, amigável e realizado? Não
fazia todo o mundo o seu melhor justamente para perfazer seus ideais de felicidade e
realização, os quais, como homens que são, têm de tomar de grupos diferentes de
diferentes homens? Seu pai e seu irmão tinham que tê-lo visto ali. E sendo os outros
mais felizes, não o somos então menos exatamente por vermos nosso ideal se
levantar? Ah!..., o que sobrava debaixo do sol que não as vãs vaidades? Alegria,
tristeza, angústia, melancolia ou vergonha: palavras! O que havia mesmo era a
vaidade e diferentes formas de senti-la.
Concluía assim os mistérios de sua satisfação quando soprou uma brisa por
detrás de si a varrer a todos, e a todos os interstícios do churrasco de que nunca se
esquecera. Com ela, veio-lhe também aquele pressentimento definido de tristeza que
já então o perseguia. Que era então? Decidiu-se por não o perquirir, por ater-se
àqueles sentimentos e àquelas imagens coloridas e ensolaradas, mas sua consciência,
como que por trás dela mesma e enganando a si próprio, continuou sua busca. Não
havia ninguém ali a atiçar-lhe o menor ciúme. Não se lembrava tampouco de ter
ouvido de Juno ou de sua família qualquer história de seu passado em um churrasco
como aquele. Ou em um churrasco qualquer. Ou em chácaras afastadas. Mas não
viviam seus outros constantemente assim? Era claro que viviam. Vagavam felizes de
festa em festa análogas àquela. Também se alegravam ao sol, fartos, satisfazendo aos
poucos sua lascívia com as mulheres que amavam. Ou com as que acabavam de

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conhecer. Talvez já o fizessem antes, desde muito jovens, envaidecendo-se desde
então dos mesmos orgulhos. Talvez já tivesse Juno encenado o papel dessas mulheres.
André sofreu como um fracasso todo o seu passado, tanto então, quanto agora,
já na rua do shopping. Todo o seu passado sem Juno, todo o seu passado em que não
pôde beijá-la sem compromisso em um churrasco. Todo o seu passado em que era
menos que seus ex’s, que seus outros, que Felipe. Era isso que o afligia. Era isso que o
afligia quando ouvia de outros casais que estavam apaixonados como ele então estava
por Juno – como se fossem capazes disso! Imaginou todos aqueles homens que já
estiveram com Juno, mais novos e mais velhos, em seus churrascos, com suas Junos,
ou, pior, em um passado provável, com aquela que via ali estirada à grama.
Já não escutava a música com seu próprio corpo, mas com os ouvidos de seus
rivais, em suas peles, em suas existências superiores. Não era dessas comparações que
viviam os homens? Não era assim a humanidade? Afinal, não se matava e morria por
isso? Não se sufocou desde os primórdios o sopro de vida alheio por terem sido
reconhecidas como melhores as primícias do rebanho e não da terra? Como podia se
sentir bem com tudo aquilo? Rejeitou a ideia de se repetir aquele odioso churrasco.
Como podia se sentir bem com alguém que se sentia melhor com base naquilo
que era seu? Não podia. Odiava agora o chefe de Juno, feliz por poder almoçar e
flertar com sua menina quando bem entendesse. Jamais se sentiria bem com aquele
trabalho de Juno. Jamais se sentiria bem com o fato de que ela, quando saía, devia ser
sempre incomodada por pretendentes, circulada por abutres, desejada por
adolescentes e velhos.
Estava quase em seu destino, faltava-lhe apenas um semáforo. Olhou para
dentro do carro com as janelas escancaradas e desvendou uma mocinha
despreocupada, divertindo-se com seu celular e com a música imposta pelo carro aos
quatro ventos. Trazia mechas rosas em seu cabelo e perninhas curtas, que estendia
sobre o painel. Sentiu despeito pelo motorista desmiolado que a acompanhava.
Imaginou-se com ela, em um outro carro, em conversas outras, cercados da mesma
naturalidade irrefletida no convívio e na mesma troca esporádica de idênticas carícias.
Juno se pensava também com outros? Perguntava-se, mesmo que em um breve
momento de desatenção, como seria receber o toque carinhoso de um outro homem?
Pior, de um homem real e concreto que vira à rua ou até mesmo de um que conhecia?
A consciência de André retornara, tenaz, à costumeira lugubridade.

171
Percorreu rapidamente as hipóteses de que já não conseguia mais fugir: não
ele, mas provavelmente aqueles com quem Juno estivera teriam chance com essa
menina; Felipe se divertiria alguns dias com ela sem nem ao menos se preocupar em
anotar seu telefone... teria ele visto Juno aquela noite como André agora via aquela
garota no carro? Tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos: encontraria agora
Juno, e isso só era já motivo para alegrar-se. Com certeza seria feliz, como já o fora,
se não fossem suas lembranças obsessivas, sua doença. Não fosse Felipe, mas
qualquer outro, não fosse aquela noite, mas uma outra situação, não haveria aquela
gravidade a acompanhá-lo até seu almoço. Mas foi com ela teimosa ao seu lado que
André finalmente a encontrou.
Estava sentada ao lado de um casal, com os olhos afundados no teto, com seu
jeito sempre deslumbrado de se estar viva e de poder ver as coisas ao seu redor. Ficou
feliz por formar também um casal, com aquela sua menina, com seus braços finos e o
colo delicado, mas sentiu queimar-se por dentro mais uma vez: o homem ao seu lado
podia se passar por um sósia de Felipe. Parecia mais velho, embora pudessem ter a
mesma idade, já que sabia sempre impor forçosamente uma jovialidade imatura a
Felipe; tinham o mesmo corte curto de cabelo, apesar de o levar bem escuro, enquanto
o de Felipe era claro, quase mel; era pequeno demais para que pudesse ser seu rival,
que era alto; e a barriga proeminente marcada na camisa decidiria também assim
aquela brevidade de dúvida, pois que era Felipe inconfundivelmente esguio: mas era
quase ele. A falta de semelhança não diminuía a realidade do verdugo, e a atmosfera
em torno dele, também pútrida e imaterial como aquela noite, era exatamente o que
lhe vergastava sem dó o sentir de seus dias.
O que faria se de fato o visse assim, fortuitamente? O que diria se, estando ao
lado de Juno, ele os reconhecesse e lhes viesse cumprimentar? Havia algo que dito,
melhoraria como se sentia em relação a tudo? E como Felipe se portaria, como se
sentiria, como o olharia? Provavelmente do alto, com ares de piedade constrangida.
Como era capaz de o odiar! Não pelo que fizera, quem também não o faria?, mas pelo
que representava em sua vida. André pressentiu, porém, que jamais seria tão reles
como seu pesadelo humano. Não se sentiria superior se ele fosse o Felipe de algum
outro, jamais tiraria proveito para sua vaidade se em semelhante situação.
Imaginou então encontrar um de seus antigos casos, uma mulher qualquer de
qualquer noite relâmpaga, acompanhada de seu enciumado marido que soubesse ser
ele o tal artista que criara um clima sem amarras no qual ele pôde a convencer – o que

172
ela só semanas mais tarde confessaria aos prantos – a traí-lo com ele. André tinha
agora a firmeza convicta de que, se reconhecido nessa situação, e se forçado a trocar
cordialidades com o casal, aproveitaria qualquer mínima oportunidade para, seguro,
desculpando-se pelo constrangimento que causara, declarar solene: “Saiba que aquela
noite com sua mulher foi, para mim, a exceção máxima de minha vida e do meu
histórico de conquistas – que é escasso. Tê-la seduzido não conta como um evento
trivial no meu dia-a-dia, mas como ápice raro de minha consagração”. Por mais que
não fosse verdade, e por mais embrutecido que ficasse seu interlocutor naquele
momento, André estava certo de que lhe daria essa tranquilidade.
Desfazendo-se de mais aquele devaneio bizarro, tão desapegado da realidade
quanto possível, aproximou-se de Juno, cumprimentaram-se sem nenhum fervor, e
logo passaram às praticidades a serem resolvidas em um almoço estéril no shopping.
André disfarçava, com sabedoria, que a única coisa que lhe podia interessar a essa
altura era descobrir o que exatamente seu chefe lhe falara, por que desistira do
restaurante, (talvez por se dar conta de que não poderia ir a sós com Juno!), como se
portara durante a reunião, e se lançara alguma insinuação invasiva para ela. Não era
propriamente uma curiosidade, muito menos uma curiosidade cinza e neutra que o
lançava àquelas perguntas, mas uma vontade de possuí-la também no campo do saber
e de mostrar-se, com ou sem razão, vil ou nobremente, soberano absoluto também
naqueles domínios, nos quais ela podia diminuí-lo pelos mais diversos motivos, mas
nunca por não saber ele todos os segredos que lhe interessavam.
André conhecia bem esse sentimento: fora por causa dele que tiveram a última
grande guerra, com as inúmeras batalhas envolvidas em nome de Felipe. Já tinham
discutido à exaustão o significado que tivera para ele o fato de Felipe ter descoberto o
número do celular de Juno e ter trocado com ela, semanas depois, um tanto nunca
definido de mensagens e, pior, de ela ter salvo seu contato no celular. Pesava ainda
contra ela o fato de que toda a situação lhe fora humilhante e que, assim, não se
tratava de mais um caso qualquer; por fim, deram na sua inaceitável falta de
sinceridade, por em discussões em que isso se fizera relevante, ela ter omitido
maliciosamente a tentativa de manter contado, mesmo que partida, como aceitara
relutante, exclusivamente de Felipe. Assim, por mais que Juno não tivesse dado a
mínima abertura à sua reaproximação – e isso ela comprovara lendo furiosa e com o
choro contido as mensagens resgatadas – os dois assentiram inscrever no histórico
sempre incompreensível de valores particulares da ética de um casal que Juno errara

173
em tudo o que fizera, e ficara de excluir o contato de Felipe de seu celular, além de
não comentar sobre isso com ninguém: tais éticas nunca conhecem a luz do dia social,
pois não medram fora dos ensandecidos jogos de poder dos namorados.
O estopim da última guerra começou já aí a se desenhar, porquanto André
decorara vagamente, durante as infindáveis discussões que pareciam provas de
resistência mescladas à explosões sangrentas, o número de Felipe. Mais de um mês
depois, viu antes de Juno – por acidente, jurou – uma mensagem sua. “Ju, você tem
certeza que nunca mais falou com ele, não respondeu nada para ele? Nem alguma
coisa que ele tenha mandado, mesmo depois de você ter pedido para ele não falar
mais com você”? Tinha certeza, mentiu. “Mesmo a mensagenzinha que ele mandou
dizendo que só queria ser seu amigo e que não tinha nada por que se preocupar”?!
Fora esse o início da guerra que duraria semanas e geraria baixas ainda por meses,
sentidas todas as vezes em que se falava em confiança, fidelidade, ciúmes, ou
qualquer coisa que o valesse. Era a mera possibilidade de uma reprise dessa guerra
que mantinha André agora, no shopping, em uma postura meramente reativa aos
assuntos que surgiam.
Conversaram por todo almoço as trivialidades mais desinteressantes de que
podiam se lembrar, repassaram suas obrigações do dia, da próxima semana, do mês,
narraram seus encontros casuais que não tinham nenhum significado. André
apassivava-se a cada nova pauta proposta por Juno, e fazia dele próprio uma
companhia só ligeiramente diferente de um espelho:

- Ei, André. Você está aí? Estou falando que fui escalada para cobrir a feira
literária, entendeu? Sabe o que isso significa? Vou visitar os autores, ir nas
casas deles, entrevistá-los... Sabe o que isso significa para mim? Dá para
você reagir com algo um pouco maior do que que legal, linda?
- Também tive um dia cheio, sabia? Não consegui pintar, estou travado,
travado. Você consegue enxergar alguém que não seja você mesma? –
Juno mordeu os lábios como se só assim pudesse evitar retorquir alguma
resposta impensada.
- André, a sua grosseria eu dispenso... Se você não está legal, pode vir
sempre falar comigo, a gente joga isso junto para cima, como sempre
fizemos. Não reparei que você estava mal, só te achei calado, desculpa.
Desculpa mesmo. Tem alguma coisa te incomodando?

174
- Não, nada em específico.
- Então vamos ficar bem, Dé, essa semana foi tão difícil para nós dois.
Preciso comprar um cinto, você vem comigo?

Por que aquela pergunta lhe fazia tão mal? Cinto, cintura, sexo? Não. Roupa,
aprontar-se, aprontara-se para um outro, maquiara-se. Pode ser que não o fizera
premeditadamente, mas se houve alguém que aproveitou aquilo tudo fora outro, fora
Felipe, e agora se aprontaria também para o chefe, para os colegas de trabalho. Como
tivera coragem de usar o colar que ele lhe dera naquela noite? Será que Felipe
reparara no colar? Comentara algo dele, será que lhe usara de pretexto para começar a
conversa infame que tiveram? André não queria ajudá-la a comprar nenhum cinto.
Queria afundar-se na cama ou no sofá, estar sozinho, desistir de viver com ela. Mas
tinha de ir: lembrava-se do dia em que lhe contara como seu ex-namorado detestava
acompanhá-la em compras, e ele era tão melhor que ele, tão mais divertido e
companheiro, fazia-a tão feliz.
Não era isso. Por que diabos insistira em ler as mensagens que trocaram? A
agência de Felipe trabalhava agora para uma marca de vestidos, mas não, rira, não
podia conseguir-lhe descontos. Que desplante aquela conversinha mole! Entraram em
uma loja ampla e moderna de roupas sociais, que se impunha como atraente por sua
disposição espaçosa, seus móveis em preto, branco e vermelho, como que saídos de
um catálogo do neoplasticismo. Tinha uma iluminação mais suave, de todo agradável.
Abordou-os um vendedor jovem, com a barba curta bem tosada e vestido em um
blazer alinhado, que em combinação com sua camiseta de gola em V, fazia-o peça
integrante do estilo da própria loja: era ao mesmo tempo tão viril e feminino, quanto
era vaidoso e, de fato, bonito.

- Esse Dé, o que você achou? – disse Juno dando-lhe um breve beijo
interessado.
- Nossa, ficou maravilhoso no seu corpo – adiantou-se o vendedor.
- E esse, Dé? Se você não me conhecesse e me visse assim pela primeira
vez, ia me achar bonita? Hein? – estava verdadeiramente linda, nimbada
de um despojamento leve e de uma beleza alegre, mas parecia testá-lo:
respondeu com qualquer elogio de superfície.
- Esse com elástico, será?

175
- Seu quadril ficou mais bonito no outro, viu? É Juno, não é? Nome lindo.
- Deixa eu só experimentar esse marrom também... Vê se tem opinião dessa
vez, Dé – tentou uma risada.
- Pode ser... Olha, parece que chamou mais atenção até até para o seu busto
– o vendedor já nem esperava qualquer intervenção do namorado ranzinza
sentado à poltrona de espera – Tenta esse aqui, é um pouco mais discreto.
- Esse? Achei meio comunzinho, tem cara de mercadoria, qualquer uma
poderia ter...
- Nossa, não, é esse. Ficou perfeito. Olha de novo no espelho – o vendedor
aproximou-se e girou-a na direção do espelho, cheio de toques excessivos.
Tomou com cuidado o pingente de seu colar, destacando-o de sua pele –
Combinou até com essa sua pedra, olha que lindo.
- Juno, tenho que ir lá pra fora. Vou te esperar lá – o vendedor, notando o
tom agressivo com que falara, afastou-se discreto, dando-lhes espaço –
Chega, né? – finalizou André, em um sussurro nervoso.

André irrompeu para fora da loja e abrigou-se no primeiro banco que


encontrou. Juno seguiu-o após algumas explicações para o vendedor, e finalmente foi
encontrá-lo:

- Que foi, Dé?


- Esse vendedor dando em cima de você o tempo todo e você não fazendo
nada, como sempre. Não dá para confiar em você fora de casa – balançava
a cabeça e apertava os lábios, tentando falar como se decretasse a
contragosto uma conclusão demorada.
- Desculpa, Dé. Eu não percebi. Você não acha que está exagerando, lindo?
Por que você está tão irritado hoje? – passava a mão em seu rosto,
sentando-se ao seu lado.
- Para, Juno. Você sabe por quê. Você faz tudo para atrapalhar, você não
quer que a gente dê certo. Eu só me pergunto por quê. O que você quer,
será que você sabe?

Juno tirou os braços da volta que dera em sua cintura e recolheu-se. André
olhou-a de relance atrás de amargura, buscando um arrependimento que o

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convencesse, mas achou-a apenas sem brilho. Estava apagada. Não era mais serelepe,
já nada tinha de faceira, parecia uma mulher. Uma mulher estranha, dessas que se vê
nos corredores do shopping, só a andar. Cansada.

- Eu quero te entender, André. Quero saber por que tudo é motivo para
briga. Quero saber se você entende por que você está escolhendo esse
sofrimento, de tantos. Se você não está só reagindo sem pensar.
- Ju... Eu te amo tanto, e o que eu não entendo é porque você quis estragar
tudo. E eu é que tenho que tentar consertar, isso dói. Machuca meu
orgulho... – era a vez de Juno balançar a cabeça: seu maior medo era real,
não se entendiam.
- Você quer me falar alguma coisa, André? Quer ser sincero comigo?
- Não sei... naquela noite... – André escondeu o rosto nas mãos, pensativo:
olhou novamente de esguelha para ver a reação de Juno, que dissimulava
paciência – Naquela noite da festa de formatura... ele... o Felipe, era
Felipe, não era? Ele comentou alguma coisa do colar que eu te dei?
- Não, André. Acho que não.
- Acha porque você não quer falar alguma coisa ou porque você não se
lembra, Ju?
- Não, André. Ele não comentou nada.

André aliviou-se naquela felicidade clandestina que já nascia maculada e que


não duraria muito: Juno indignou-se com a pergunta, André logo se indignou com sua
reação e, antes que se dessem conta, começaram a discutir à maneira inenarrável em
que se começam as brigas conjugais. Andaram, pararam, voltaram a gritar em público,
contavam sempre com a cumplicidade indignada de todos que sentiam já terem feito o
mesmo e passavam por eles, decepcionados:

- André, você tem de esquecer essas coisas. Você tem que superar isso –
André levou as mão a cabeça, já se revoltara com aquelas frases que, para
ele, eram tão acusatórias – A gente tem que superar isso.
- Eu sei, Ju. Eu só preciso de tempo, eu estou melhorando. Eu vou terminar
de organizar essas coisas na minha cabeça, é só que às vezes outras coisas

177
acontecem e eu acabo lembrando desses detalhes. Eu passo mal. Mal
mesmo. Hoje eu quase vomitei de novo, de nervoso.
- André, por mais quanto tempo você acha que eu consigo viver assim? Ou
você acha que não é ruim para mim também lembrar daquela noite, ter que
reviver toda semana a culpa pelo sofrimento que eu te causei? Isso já faz
mais de um ano, André.
- Você se lembra bem da data, pelo visto.
- E você me deixa esquecer, André? Quase toda briga nossa volta nesse
inferno há mais de um ano. O tempo não muda as coisas, o tempo só te dá
mais conteúdo para você trabalhar. Se você moldar tudo sempre do mesmo
jeito, como você espera que qualquer coisa mude? Você tem que se
esforçar, eu sei o quão confortável é sofrer por culpa dos outros, André.
Ou você acha que eu nunca tive problema? Você tem que se esforçar para
mudar o que aconteceu, para interpretar o passado de forma diferente. Ou
você desistiu do que é a gente?
- É impressionante – disse André enquanto apertava os dedos contra um
inimigo imaginário que tinha às mãos – É impressionante a capacidade que
você tem de inverter as coisas: como se a culpa agora fosse minha! Você
que beijou outra pessoa! Você se aprontou, colocou o vestido preto...
- Eu já disse que não era o mesmo. Eu já cansei de dizer que não sabia o que
eu ia fazer quando eu saí de casa... – gritou Juno, com as lágrimas a
tentarem esvaziar a cabeça que sentia entontecida, pesada.
- Não importa, Juno. Você não devia estar com um vestido preto! –
contorcia-se ante a imagem enevoada daquele instante final.
- Você nunca saiu com uma blusa que eu tenha te dado? Com uma camisa
que você já tinha usado comigo? De uma cor que talvez fosse importante
pra mim?
- Você não importa com essas coisas, Ju. Eu importo.

Juno mordeu os lábios, trançou a bolsa de um ombro ao outro, e bateu em


retirada. Tinha medo de desamá-lo, e sentia vergonha de seu amor. André perseguiu-
a, não tinha terminado de destilar seu ódio, muito menos terminara com a imagem de
si que queria – foi refazer o clima inamistoso:

178
- Não é você estar de vestido, Ju. E não é ciúme, isso nunca teve entre a
gente. É sua falta de cuidado. Você foi pra festa sem celular, me humilhou
na frente de todo mundo e ainda depois teve coragem de trocar mensagem
com ele! Estou errado?

Creu que Juno assentia com sua cabeça abaixada. E seu assentimento só
agravou a dor de André: concluiu que muitas vezes não podia haver mal maior que
estar coberto de razão, mal a que Juno o condenara já há muito, cedendo por fadiga
aos seus repetidos argumentos. Estes, André, ou uma parte dele, preferiria ver todas as
vezes rebatidos de forma sempre mais convincente a ter ele de ser lançado no castigo
da legitimidade de suas queixas. Insatisfeito com o silêncio a que chegara, André quis
continuar, e deixou vencer o pedaço de si que desejava impingir-lhe ainda mais culpa:

- Às vezes você não entende que esse é um aspecto da sua vida que vai
sempre me deixar chateado; é uma parte em você que nunca vou conseguir
amar.
- Mas ainda assim você me ama, André, e eu te amo também. A gente vai
dar um jeito.
- Não sei se é possível amar alguém e fazer o que você faz. Quem ama se
preocupa com os outros, tenta entender, sente ciúmes.
- Não, André. Quando se ama, a gente ama. Quando se sente ciúmes se está
amando só a si mesmo. E só o amor pode vencer os ciúmes, Dé. Essa
acumulação de chateações, de feridas, cicatrizes inventadas e que vão
desgastando o carinho do amor.

Sentiam ambos entrarem em um modo de conversa que já há muito não


tentavam, em que faziam de qualquer discussão um debate grave de teses diferentes,
com a beleza a substituir o lugar do fiel da balança da vitória:

- O amor é uma forma de interpretar a realidade, Ju. Nele fica tudo mais
sublime, tudo fica carregado de sua potencial grandeza. A traição traz de
uma vez a realidade descoberta: nossa pequeneza e contingência diante da
superlatividade do amor. Foi o que aquela noite fez comigo, sua traição.

179
- Não sei como isso tem a ver com a gente agora, Dé. Acho que você tem
medo de deixar sua dor pra trás. Você acha que eu ficaria junto.
- Tem tudo a ver. Como você quer que eu interprete diferente, como se fosse
irrelevante, o que eu te vi fazer estando ainda apaixonado por você, Ju? Eu
posso até agir, como agia, de forma não apaixonada com outras mulheres e
apaixonadamente quando com você, mas as carícias, os carinhos e as
delicadezas não iam sempre remeter a nossos momentos de amor? E
pensando neles, eu não vou pensar nas suas remissões quando com outros
ao nosso amor? Estar apaixonado é um estado, Ju, não é um ou outro
comportamento igual você queria – o que André dizia não pareceu a Juno
propriamente errado, mas tinha algo de falso, como uma maçã escura
porque sob uma luz azul.
- Não, lindo. Nem tudo tem que estar sob essa grandeza da capa
interpretativa do amor. Pensa nas suas ex-namoradas, nos meus ex-
namorados, nos casos que a gente teve antes de se conhecer: a gente está
hoje, agora, ainda apaixonado, e que relevância eles têm?
- Mas a gente não teve de lidar com eles pela primeira vez quando já
estávamos amando, Ju. E não sei nada do meu passado mais: parece que há
toda uma vida que é minha e que eu não vivi. Parece que tem toda uma
vida que é minha e que eu não estou vivendo.

Juno conhecia essas manobras evasivas de André: já não queria chegar a um


consenso, convencer ou deixar-se convencer – queria só reafirmar para ela e para si
mesmo o seu próprio sofrimento.

- Você não precisa sofrer, André. Não tem vendedor, Felipe ou chefe que
pode me tirar de você. Pode ter certeza disso.
- Não tenho medo de te perder, Ju. Se tivesse acho que já não teria motivo
para estarmos juntos. É a minha comparação com eles que conta, Ju, não a
sua – viu um sorriso incontido espalhar-se por seu próprio rosto em nova
onda de admiração: sentiu-se querido, e foi logo de querido a mais calmo –
Mas você está certa. Não tem por que sofrermos mais por causa disso. Não
quero tocar nesse assunto mais, já estou com vergonha de hoje.

180
- Não tem que ter vergonha, Dé. Eu te amo por inteiro, por mais difícil que
isso às vezes possa ser. Mas vou te falar o que já te disse tantas vezes: não
é fácil ser feliz, mas é confortável achar motivo para não ser. Tenta não
transformar suas frustrações em problemas com o que já aconteceu entre a
gente. Senão vamos sofrer sempre das mesmas tristezas. Até a tristeza é
bom variar um pouco, Dé.

Juno tinha boa dose de razão: grande parte de sua paranoia era mera rota de
fuga que sua tristeza dava à ansiedade. Não fosse ela, passaria os dias a ruminar sua
solidão, seus fracassos ou o sem sentido da vida. Viver, sabia, era custoso, e
acovardar-se diante da tristeza, fácil. Seu ciúme era o meio ideal de sua evasão para o
sofrimento, de sua fraqueza para a melancolia: enterneceu-se pela inteligência de Juno
e, talvez mais, sem que o soubesse, por caber a ele disfrutar do prazer de decretar
quando a briga podia de fato terminar.

- Eu sei, Ju, já disse. Vou mudar. Vamos fingir, por favor, que essa briga
nunca aconteceu, vamos começar do zero. Eu te amo tanto, tanto, e a gente
ainda tem muito o que viver, nós dois, juntos. É só isso o que me importa.
Eu te amo muito – encheu seu coração de expectativas sinceras, encontrara
mais uma vez em Juno a saída de sua miséria – Deixa eu ir, agora. Tenho
de ir para o museu, meu amor. Minha linda.

Juno despediu-se esperançosa, com lágrimas que julgava talvez serem as


últimas daquela cor. André iria para o museu, mas não para trabalhar. Passaria horas
ensimesmadas em seu contínuo de melancolia. Repassaria a discussão antes, durante e
depois de seus compromissos, que cumpriria como um autômato, para descobrir que
novo elemento comporia a pez negra de seu ciúme imortal. Torceria resignado para
que na manhã seguinte experimentasse ao menos a leveza dos primeiros instantes do
dia, para que só então, desconfiado de seu próprio bem-estar, recomeçasse um novo
dia repetido.

181
X

Desceria mesmo assim. Se sentisse ser preciso tomaria depois o banho


silencioso com que enxaguaria o cheiro de álcool, tabaco e quase traição que ainda
recendesse de seu corpo. Não haveria necessidade de o acordar: ele próprio tinha
bebido demais para suportar ver por tanto tempo e de tão perto sua vida fora do
casal; ela, exausta, sofria adiantada da ressaca de se ter visto transformada, durante
todo o fim de semana, em uma entidade inerte, no mesmo casal.
Tomou o elevador, pediu a senha do wi-fi à recepcionista sorridente e,
torcendo para não encontrar mais nenhum de seus colegas do jornal, idealizadores
daquela curta viagem de fim de ano, passou ao ato de traição de se dizer a seu par as
verdades que não se diz a ninguém:

André,

não creio que haja neste mundo nenhuma mentira mais verdadeira que uma
verdade de parcialidades escolhidas: você me fez escrava das suas, desfaço-as agora
pelas minhas: liberto-me enfim, ou assim espero.
Desde aquela noite – ou de outra noite qualquer, antes ou depois, por receio
de uma que seria ou por ódio de uma que já fora: os caminhos para desandar são
tantos, tão poucos são os que não nos levam de volta à corrente, tentei te falar isso
tantas vezes, te pedi cuidado com tanto carinho – desde aquela noite morreu, porque
cresceu, o menino lindo, esbelto e esnobe de nosso amor, que não pode mais correr
por jardim algum, que vive, coitado, sozinho na memória do esquecimento.
Foi seu sorriso quem me disse isso, André. Seus olhos em seu sorriso. O
sorriso de quando você investigava discreto quem era um amigo meu, de quando você
fazia uma piada insincera sobre minha adolescência em minha cidade, de quando
você repetia o nome de meus antigos namorados para que você se provasse que podia
ouvi-los. Desde aquela noite você já não me via só, André.
E suas pupilas fundas me gritavam minha prisão. Era seu sorriso com a testa
cheia de linhas, os olhos cheios de uma forma de piedade, de pedido de socorro, de
vontade de outra coisa. Eles não me viam mais, André. Quantas vezes eu terei de
repetir isso? Viam minhas pernas presas por cima das suas em todos os bancos dos

182
parques, viam nós dois em seu quarto com preguiça de ir trocar a música, viam as
mãos dadas na frente do muro esverdeado da minha antiga casa. É preciso primeiro
perder para o tempo para aprender a vencê-lo, André. Você preferiu aprisioná-lo e
aprisionar-me. Você só conseguia olhar para mim se visse também ao meu lado o
nosso passado – e isso não é mais amor.
“Você já esteve com algum desses que conhecemos no aniversário?”, e
subiam as grades. “Será que aquele seu amigo vai estar lá?”, enlaçavam as
correntes. “Ele é até engraçado. Bobo, mas engraçado”, lacravam o ferrolho. Seu
tom mal disfarçado de medo. Você à beira do pavor total, completo. Eu sentia. Seu
jeito de morder os lábios me diziam. Seus olhos. Sobretudo os seus olhos.
Sua prisão é engenhosa, André, e eu demorei a percebê-la. Mesmo hoje, no
dia de minha libertação, não ouso falar os nomes, não vou além da concretude do
“aquela noite”. Eu as quero de volta, André, minhas palavras. Meu passado: desde o
dia em que você me viu beijando o Felipe na festa de formatura da minha prima
Desde então eu aprendi, obediente, a te agradecer por minha cela por acreditar que
ao menos assim você me adiava o inferno presente. H é l a s, André, H é l a s.
Mas tivesse confessado sua derrota para o ciúme, que idiota eu era, não
andaria agora a espreitar meus sentimentos em vez de conhecê-los, não me obrigaria
à perene atenção para evitar qualquer assunto que lhe reacenda a tal fagulha do que
te tortura. Não estragaria nossa viagem para me jogar na cara um ato do qual, no
fundo, tenho de confessar, só me arrependo até hoje pela doença em que te
transformei. Até as palavras você foi me ensinando a perder, André, mas digo porque
me liberto: não estragaria nossa viagem por eu ter conversado demais com um
colega que, sinto muito, calhou de também ser Felipe, de também ser loiro, de
também me querer e, falo, de também ser lindo. Já estivemos um dia atrás da beleza.
Disso meus olhos também se lembram.
O ciúme é uma forma de desamar, André, e era essa a lógica estúpida que
queríamos evitar. Possuir com exclusividade só substitui a humildade de se
reconhecer menor do que o amor e do que se ama. Eu aprendi a te amar sem te
possuir: não se pode amar mais que isso. “Mas quando se ama, sempre se ama a si
mesmo”, você me disse uma vez. Quase te ouço argumentar de novo, nervoso, os
primeiros fios da teia de aparente racionalidade imparcial com que você me vai
enredando até que eu, por cansaço, para evitar mais uma longa discussão sobre o
mesmo problema – sobre o s e u mesmo problema – acabe concordando mais com

183
sua realidade esquemática que com minha própria impressão dos fatos. E então é de
novo a culpa do que não volta, o arrependimento do que não tem perdão, a
submissão da minha à sua realidade.
Pode ser que você tivesse razão. Pode ser que eu não te mereça, coisa que
você nunca se atreveu a falar com essas palavras, mas nunca se importou em dizer
com todas as outras. Mas Narciso é incompleto, André: se é mesmo o amor a
realização máxima de si mesmo, para si mesmo, então você trocou a pessoa que te
mediava esse esplendor por uma imagem que reluzia em um lago. Você.
E se eu falo por metáforas é porque há mais na vida que nossos conceitos
dariam conta, André. Não, não adianta gritar comigo. Falo por metáforas por
pensar que uma lanterna jogada na escuridão é melhor que a mesma escuridão.
Minha vida, como a sua e a de todos os outros que ora ou outra decidem viver, é sim
um livro aberto: está aí, escancarado em cima da escrivaninha das relações sociais;
só se tem uma outra ideia graças à solitude de toda existência, André: é por isso que
não tem linhas nem segue um alfabeto conhecido: não pode, como todos os outros,
ser lido.
Nunca tentei me sonegar de quem eu tanto amei. Foi você quem se afastou e
se escondeu. Foi você quem reservou para si sua autodestruição, o campo inteiro e
sombrio de sua vida, seus medos e sua insegurança. Eu nunca soube ver pelos seus
olhos: meu crime foi mais grave por fazê-lo pelo palco a que seu espírito conseguia
iluminar? Não acho. Não acho porque eu não sou quem te fez sofrer. Eu não sou
quem não teve consideração pelos seus sentimentos. Eu não sou a pessoa horrível que
pensou mais nela que na pessoa incrível a que amava. A que amava muito. Eu não
sou quem seus olhos fundos de passado veem e querem me forçar a ver. Eu não sou,
André.
Tenho que escrever isso para alcançar as chaves, e não é fácil. Hoje enxergo
com clareza de onde tento sair. Hoje vejo que essas pequenas criaturas que vêm bater
na porta de vidro de onde escrevo são você. Bichinhos formidáveis esses besouros
alados. Vêm de longe, voam em erro, esbarram estabanados em tudo antes mesmo de
chegarem à luz que buscavam: têm corpos pesados demais para o voo e acabam
caindo sempre, tórax ao chão, abdômen ao alto, presas fáceis, quase oferendas a
qualquer predador. “Coleópteros comuns em qualquer hotel-fazenda”. Discordo.
Vêm me mostrar no que você se tornou. Só que seus pares de patas, asquerosas,
saindo de seu ventre negro, contraindo e esticando, contraindo e esticando quase em

184
sincronia, não são uma tentativa de vencer o próprio peso, virar-se e retomar o voo.
São sua maneira doentia e endoidecida de alcançar-me, são suas garras
desesperadas de culpa e racionalizações a sujarem-me e a ousarem jogar-me também
ao chão, a seu lado.
“Galho tão vistoso não pode continuar unido, por muito tempo, a tronco tão
gasto”. Sim, é uma citação histórica. Sim, dessas que eu já há muito não me permito
mais. Dessa vez foi seu timbre de voz, seu ritmo de fala, sem avançar nem se impor,
um tom de quem não se afirma, de quem mostra o sacrifício e espera loas pelo
próprio martírio. Foi sobretudo a forma como você apertava, como um cientista
diante da proveta, seus dois olhos negros, arqueando as sobrancelhas, ansioso por
uma aprovação qualquer por s u p o r t a r as brincadeiras que eu já tive com um
outro. Você começou a estudar em vinte volumes a história do mundo, André.
Não consegui amar essa baixeza em você: ou não nos falávamos mais por
citações, ou você tinha de superar sua imagem de alguém que você nunca chegou a
conhecer. Meu ex. Pessoa com quem eu nunca mais nem ousei conversar. Não deixei
de quase admirar seu esforço obsedado, sua resiliência calada. Quase. Você preferia
abrir sua encomenda em segredo para não me sufocar e para que eu não flagrasse
seu amor-próprio ferido, você deixando-se de ser. Mas eu cheguei mais cedo, te
surpreendi e você tentou se explicar, ridiculamente: “Decidi também estudar história,
é preciso entender a humanidade para pintá-la”. Quase calado. Quase acreditei. Se
você queria mesmo fazer de nós uma obra de arte, chegou perto de fazer aquele tipo
de obra-prima da qual se diz, em um suspiro complacentemente admirado, que ela
talvez seja impecável, mas que continua longe de ser perfeita.
Suas patas me alcançaram, André. E eu não aguento mais entregar-me ao
seu toque e ter de imaginar seu toque nela. Eu quero, juro que quero, voltar a
acordar sem ter de te imaginar acordando ao lado dela. É-me absolutamente
insuportável me perguntar sempre se aquela sua expressão com que você me olha,
com sua bochecha mordida, com seu carinho e tesão, foi também como ela se sentiu
vista. Não posso mais desabotoar sua camisa com a comparação de como ela o teria
feito, se em um rasgo ou com cuidado. Não posso mais forçar-me a te ver em terceira
pessoa, impessoalmente: o que antes me enlevava de amores, desola-me de tristeza
por saber que foi assim que ela te olhou pela primeira vez.
São essas as palavras que você ensinou à minha boca, André. A razão, como a
você, me deu quase tudo o que tenho. O coração só me deu o essencial: por isso

185
nunca poderei te perdoar. Mas não se engane: nada do que eu disse vale agora para
nós. É a tinta fora do papel que conta, e eu ainda te amo. Muito. Cada vez mais
infelizmente, mas amo.

De sua pequena,

Ju

Juno sorveu assim as últimas letras do bosquejo de sua carta e se intimidou


da sensação comum de que o que nasce escrito nasce, de alguma forma, para ser
lido. Imaginou, pernóstica, a felicidade de um biógrafo apaixonado por seus textos ao
resgatar aquela carta depois de escavar com a paciência de uma traça os arquivos
pessoais de todos os seus antigos namorados, e envaideceu-se de sua própria
importância. Pensou, então, na mesquinhez com que aquilo temperaria sua história
de vida. Envaideceu-se às avessas e condenou seu e-mail à pasta de rascunhos, de
onde sussurraria para sempre sua honestidade fantasmática. Fez-se de novo em seus
sonhos exagerados e, para si, rasgou a carta que nunca imaginara de fato entregar.

186
XI

- E você, gostou da peça? – quis saber André, aproximando-se e abraçando-


a por cima dos ombros.
- Gostei, claro, muito boa. Brigadíssimo, eu adorei.
- Gostou mesmo?
- Claro, senão eu falava. Um pouco enfadonha só. Noventa minutos com o
mesmo conflito a peça inteira? Sem aquela espécie de coro cantando as
dúvidas óbvias da mulher não se perdia nada, e não seria tão cansativa.
- Mas você reparou as diferenças sutis entre as músicas? O coro cantava as
nuances de desespero que cada decisão dela podia implicar. Era a atenção
à vida interna para a qual não se tem tempo hoje em dia. Para mim, era o
mais importante.
- Justamente por isso critiquei. Sobre o mais importante não se fala: vira
uma tentativa chata de tentar controlar o que é mais importante, o que é
sempre inútil. Seria como começar a história das formigas e da cigarra
com uma introdução sobre a importância do trabalho. Pronto, mata a
fábula. Além de ficar enfadonha.
- Acho que era intenção da diretora ser um pouco enfadonha a peça. Refletia
a compressão dos pensamentos da esposa.
- Não gostei da intenção, então. Olha só, chegaram – Juno limpou a borra de
vinho do lábio de cima com uma mordida, embolou o guardanapo de pano
sobre a mesa e segurou a mão de André para levantarem, embora ele
houvesse julgado melhor só afastar a cadeira e esperar que se
aproximassem, o que os deixou por alguns segundos naquela estranha
formação, ela de pé, ele ainda sentado, as mãos dadas.

Chegavam em fila os convidados de Juno, o de André era um só, e


mimetizaram todos o mais velho, que parecia ter se esquecido que André dispensava
apresentações: chegou assim educadamente, apresentando-se, o seu chefe, convidado
só em agradecimento pela promoção de Juno à editoria, chegou risonha uma baixinha
bem preta, de quem André se esquecera o nome, chegou Cecília, de quem André não
conseguia não se lembrar, e chegou aquele novo Felipe. Sentaram todos em roda à

187
volta da mesa redonda, e logo se viram em dança de braços pela cesta de pão italiano
e pelos acompanhamentos, molho pesto e antepasto de berinjela.

- Deu tempo de vocês irem na peça? O que acharam? – começou Cecília,


quem a tinha recomendado.
- Deu sim, chegamos agora há pouco. Eu gostei, mas achei um pouco
extensa demais – respondeu Juno em posição muito ereta, quase formal,
ainda nervosa pela chegada dos convidados.
- É aquela em que o marido não consegue sair da cama por causa da
doença? – participou Felipe.
- Não é por causa da doença, é a certeza da morte que o deixa prostrado a
peça inteira – corrigiu André, emendando um largo gole em sua taça.
- Ele gostou bastante, não foi, Dé? – Juno forçou-lhe a confirmação para
Felipe, dada só com um aceno de cabeça.
- E o que vocês fariam? – continuou Cecília, desatenta – Você eu sei que
contaria, Juno, não segura a boca pra nada.
- Não sei. Às vezes acho que é um desperdício da inteligência humana essa
fixação com sinceridade. O coro canta isso a certa altura. Se somos
capazes de dissimular, omitir, ela ia confessar às custas de quê?
- Estou achando melhor eu abrir meus olhos, então – brincou André,
exigindo a risada ensaiada sobre a mesa.
- Não é isso, Dé. Acho que a questão da peça não era nem tanto se é certo
ou não mentir de acordo com a circunstância, mas se haveria uma verdade
que eles pudessem realmente compartilhar. A esposa percebeu que tudo o
que ela dissesse seria, da perspectiva do marido, uma mentira. E qualquer
coisa que ele viesse a pensar dela baseado no que ela contasse, seja lá o
que fosse, seria, para ela, uma mentira da mentira, um erro.
- Tudo bem. Vamos superar esse dever abstrato, imaginado e inútil de se
dizer a verdade para quem se ama. Nós homens não somos lá muito
conhecidos pela sinceridade, não é mesmo? – buscava com o olhar a
aprovação do chefe de Juno e de Felipe – Mas para além disso, você acha
que ela tinha o direito de negar seu último desejo? Você acha que ela podia
se intrometer na vida dele a ponto de impedi-lo de fazer o balanço final do

188
que fora realmente sua vida? – concluiu sua ironia, levantando a voz e o
vinho.
- Eu também fiquei mais com isso na cabeça, quando assisti – concordou
Felipe olhando para André, que teve por suficiente um meio sorriso ligeiro
como resposta, como a dizer que agora dispensava o seu apoio.
- Espera aí, para tudo – pedia a moça que não tinha nome para André,
gesticulando como se apagasse com as mãos uma lousa imaginária no ar –
Eu não assisti a peça, qual é a situação?
- É cheio de detalhes relevantes, mas o quadro geral é o seguinte: –
adiantou-se André, com inédita paciência – uma esposa tem um caso
extraconjugal, mas começa a sentir remorso, principalmente porque o
marido é bastante preocupado com ela, sempre quer saber se ela está bem,
é atencioso. Uma noite a esposa chega em casa bem tarde, como de
costume, mas decidida agora a contar tudo. Só que ao entrar no quarto dá
com o marido acordado na cama, desolado, e ele conta que descobriu
naquela tarde que tem câncer terminal, tem pouquíssimo tempo de vida.
- Só não acho que fique assim tão claro se ele é realmente atencioso, ou se
ele sempre quer saber dela porque pressente sua traição – interveio Felipe,
sem perceber que era observado pelos olhos enlanguescidos de Juno.
- É isso – confirmou Cecília – E então, Ju? Seu veredito final?
- Não sei. Todos tinham que ter assistido também – respondeu já com outros
olhos, agora virados para o guardanapo sobre as pernas.
- Qual é o nome da peça?
- O décimo primeiro mandamento – acorreu Felipe, inaugurando um breve
silêncio.
- A peça parece ser boa... – disse o chefe ao passar a última nesga de pão no
que sobrava do pesto – Mas essa cantina é excelente. O lugar é agradável,
o atendimento é rápido, e esse couvert está, olha – teve de interromper o
beijo na ponta unida dos dedos para limpar o molho que caíra sobre a
camisa – Enfim, a aniversariante pode casar com quem quer que seja. Se
não souber cozinhar, pelo menos o restaurante ela vai saber escolher muito
bem.

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André desgostou de quase tudo quanto ele dissera, tom, forma, e conteúdo,
mas tinha de consentir que se sentia bem naquele restaurante – as volumosas cortinas
rubras em um “V” invertido, o toque acetinado da toalha a rejeitar os cotovelos, as
gravatas borboletas dos garçons sempre mais velhos, a servirem todo prato juntando
apenas duas colheres, com a mesma mão: tudo ali parecia distinto, mas a seu alcance;
elegante, mas de sua elegância. Inspirado dessa fidalguia burguesa, resolveu amofinar
o lugar, para que não pudesse se fazer em casa:

- Eu particularmente nunca gostei muito de cantina italiana. Tem qualquer


coisa de decadente, de forçadamente antiga.
- Em cantina come-se bem, e come-se muito – respondeu alisando a barriga
– O que mais você quer de um restaurante, rapaz?
- É sério isso? Todo o resto, ora.
- Naquilo que me diz respeito, se todas as decisões editoriais de Juno forem
tão boas quanto as suas escolhas gastronômicas, estamos feitos. Já suas
escolhas na vida pessoal... – insinuou em uma risada rouca.
- Você está querendo dizer alguma coisa com isso? – contra-atacou André,
pondo as duas mãos sobre o colo só para ter uma delas logo agarrada com
carinho por Juno, que passou a apertá-la com força.
- Estou mexendo com você, rapaz. Eu implico com todo mundo da equipe,
só estou te tratando como um de nós. Ele parece aquele menino do
marketing...
- Será que o Cássio não vem? – cochichou Juno em particular, garantindo
que a conversa se deslocasse para outro lado.
- Por que você está me perguntando isso agora? – indagou em um falso
sussurro.
- O pessoal já começou a pedir, Dé...
- Ahhh, que peçam! Esperar o Cássio em um restaurante é sempre um
desperdício.

Fora André terminar de falar e Cássio surgir da dupla porta pesada de madeira
e vidro, ao fundo da cantina. Cumprimentou a todos de uma só vez e esperou vir um
dos garçons ajeitar-lhe mais um lugar à mesa: a conversa, apesar das seguidas
inaugurações de novos litros de vinho tinto, decantava em comentários esparsos.

190
- Deixa o celular de lado um pouco, Ju. Até no seu aniversário – repreendeu
André.
- Deixa de implicância um pouco, Dé. Até no dia do meu aniversário –
defendeu-se enquanto ainda respondia a uma mensagem com a mão livre
da mão de André, o celular encoberto para lá de sua perna.
- Quem é agora?
- Minha mãe, Dé. Agradeço a preocupação.
- Mas de novo? Você não ligou para ela na saída da peça?
- Liguei, Dé. Ela esqueceu que horas eu vou chegar. E quer saber se você
não vai mesmo – concluiu Juno, voltando a atenção para o resto da mesa.
- Eu já expliquei que eu não posso, tenho que...
- Um Cássio calado e sem beber: esse eu não conhecia! – anunciou Juno
para todos.
- Pois é, minha cara. Percebi um grande erro na minha vida – aguardou e
recebeu rapidamente o interesse de todos, como de costume – Estava
sofrendo do primeiro tipo de cegueira, um dos mais graves para mim.
Ficava tão ocupado em falar que não reparava nas coisas à minha volta:
era a cegueira da atenção. Como pode um pintor ser cego? – exagerou em
sua teatralidade.
- Que bonito – atravessou Cecília, do outro lado – Mas como você chegou a
perceber isso? Quando?
- Foi anteontem – respondeu Cássio, comicamente conspícuo.
- Não é tanto tempo assim, é? – riu André – Mas me diga: imagino que esse
não seja o único tipo de cegueira que você descobriu.
- Não descobri nada, aprendi. E não: existe também a cegueira das paixões,
mas essa não me preocupa, pode ser útil. E por fim, há a cegueira da
cegueira, a de que eu também era vítima, a pior delas, não se ver que se
está cego. É a cegueira absoluta – terminou Cássio, conjurando um novo
silêncio.
- Antônio Vieira! – gritou Juno, batendo os dedos sobre a mesa, finalmente
de volta de sua estranha fixação pelo teto da cantina.
- Exatamente. Essa minha cunhadinha nunca me decepciona. Você é
demais, Ju. Quinta Quarta-Feira da Quaresma.

191
- Isso mesmo. Acho que Juno tinha comentado, vocês são artistas, não é
isso? Artistas plásticos, pintores, alguma coisa assim, não é? – perguntou
Felipe.
- Na verdade, eu estou agora com uma bolsa...
- Sim, somos artistas – não deixou Cássio que André concluísse.
- Você estava falando, está recebendo uma bolsa, André? – quis saber o
chefe de Juno, com um interesse que soava esnobe.
- Estou fazendo doutorado na mesma Escola onde a gente estudou. Além de
trabalhar em um museu já há um tempo agora.
- É... Acho que a vida chega para todos – arrematou o chefe.
- Só não chega para uma empresa de comunicação, eu imagino – rebateu
André enquanto a mão de Juno alcançava seu ombro.
- E vocês, meninas? Vocês lembraram de convidar aquela nossa estagiária?
Hoje é meu aniversário com o pessoal do trabalho e está mais vazio que
nosso happy hour! A estagiária do bem, claro – perguntou Juno.
- Nem uma, nem outra. Elas também vão ter de sair, ia ficar mais difícil
ainda conversar com elas semana que vem.

O jantar caminhou para um fim conveniente, com as repetidas congratulações


à aniversariante e com as tradicionais promessas de se encontrarem mais vezes fora
do trabalho. Agradeceram todos ao chefe, que, fazia questão, pagara toda a conta, e
logo estava Juno aconchegada de seu lado da cama, próxima à parede, lendo de
calcinha e sutiã por baixo das cobertas. André terminou de escovar os dentes, admirou
a leitura sempre solitariamente arrebatada de Juno e orgulhou-se: noves fora, mais
uma noite agradável e sem brigas para o casal:

- Foi legal hoje, não foi, Ju? – perguntou como desculpa para deitar-se bem
perto dela, beijando-lhe repetidamente o pescoço.
- Foi sim...
- Como você acha que as pessoas veem a gente?
- Como assim?
- Veem como um casal divertido, como um casal chato, como um casal
cheio de mistérios, como um casal que deve ter umas fantasias sexuais

192
malucas... Como? – acrescentara aos beijos uma carícia ao longo de seu
colo, e uma risada.
- Veem como um casal, né. Como todo mundo vê os outros casais.
- E eu te vejo como uma doidinha bem linda, sabia...
- Não, Dé. Não estou muito afim não – reclamou Juno ao sentir que sua mão
descia pelo seu corpo.
- Certeza? – insistiu, mordiscando seu pescoço.
- É sério, Dé. Tenho que terminar de ler esse livro logo, é de uma colega –
tinham chegado àquela temível prisão, onde o sexo não passa de uma
masturbação a dois, e seu acontecimento milagroso depende de uma
sincronia forçada dos desejos.
- Você está chateada porque não posso ir visitar seus pais com você?
- Claro que não, besta. Não é isso. Só perguntei de novo para garantir.
- Boa noite então, Ju. Você se importa de ler só com a luz do abajur? –
perguntou ao apagar a luz do quarto e dar-lhe um beijo no rosto.

Ela não se importava. Assim como não se importou de se aprontar às escuras


para não acordar André, que só despertaria bem mais tarde com duas notificações em
um celular que não era o seu: Dé, esqueci meu celular (este mesmo, que você está
segurando abobalhado aí na cama) em casa. Tem como você trazer pra mim assim
que der? Pode ficar com meu carro. Um beijo nessa sua cara de sono. André se
esforçava por reprimir ainda a curiosidade desinquietante que lhe surgia aos poucos
na ponta dos dedos, quando outra mensagem pulou do funda da tela: Ainda está de pé
hoje? Eu estou!!”. Novo abismo.
Ainda está de pé hoje? Eu estou!!, repetiu lentamente para si mesmo já sem
sono nenhum. Quis concluir que mal fazia algum sentido a frase e não parecia ter lá
muita importância, mas, de saída para o jornal, enquanto constatava que qualquer
mensagem anterior fora apagada, flagrou-se a construir contextos: pensou encontrar
um tom familiar na mensagem, descobriu-lhe uma referência sexual, entreviu uma
amizade de colégio. Não podia permitir que suas antigas barreira ruíssem ante uma
dúvida tão débil: não era nada, ora, que mal podia haver, Juno ia, afinal, comemorar
seu aniversário em sua cidade, mas, eu estou? Sentia seu antigo mecanismo
associativo voltar à tona, um mero erro de linguagem a torturar-lhe o dia e – por que
garantir? Não se garante uma ausência, ela é sempre apenas confirmada, só a garante

193
quem a quer: “Perguntei de novo só para garantir”, foi o que dissera Juno. Parecia
estar claro, ou não, melhor, estava claro, tinha só que lhe devolver o celular, não era
nada. Trêmulo e tentado pela quantidade de planos investigativos que sua
imaginação lhe fazia o favor de conceber, ajudou a secretária da portaria a se lembrar
de quem Juno era, e lhe arrastou o celular sobre o balcão. Não tinha ainda ela fechado
a gaveta, pôde-se escutar o celular vibrar seco contra o metal. Era só uma a
testemunha, e desconhecida, e ele não cometia, aliás, nenhum crime:

- Desculpa. Acho melhor desligar o telefone, senão vai vibrar aí até ela vir
buscar – disse constrangido, voltando depois de já ter quase alcançado a
porta de saída.
- Pode deixar, senhor. Se começar a incomodar eu mesma desligo –
prontificou-se a secretária.
- Não, na verdade... É melhor eu mesmo entregar o celular a ela.
- Eu entendo a preocupação, senhor, mas pode ficar tranquilo – respondeu
em um sorriso treinado – É comum as pessoas fazerem entregas, eu já
deixei anotado o item aqui na lista. Temos um procedimento padrão.
- Eu prefiro deixar o celular desligado, se você não se importar – agrediu
André, logo se arrependendo de sua ênfase arrogante – Juno não gosta de
parecer que não está querendo atender alguém, é por isso.
- Pois não, senhor. Vamos desligar o celular, então – ressentiu-se com
ironia, retirando o celular da gaveta e se atrapalhando para desligá-lo.
- Você poderia me entregar o celular, já que você não tem nada com isso?

André tomou o celular e fracassou em desbloquear-lhe a tela: se Juno a


deixara aberta, por que fora ele a travar-lhe de volta? Arrependeu-se de sua falta de
malícia. Ainda assim, lá estava a nova mensagem, uma parte dela, picada, só uma
fração já suficiente para lhe rasgar o manto de indiferença da realidade por que tinha
de ir: devolveu o celular sem dizer palavra e voltou ao carro, não sem tentar em vão
reparar nos comentários da secretária com o segurança, que, ouvidos, harmonizariam
perfeitamente com sua presente humilhação.
Sobre aquilo que não se pode falar, cala-se, e o sábio, quando defronta uma
dúvida ainda indefinida, suspende o juízo: eram as frases que lhe sobravam agora de
sua optativa de filosofia, dessas que se deixa, sem crítica alguma, forjar nossas

194
decisões mais do que se estaria disposto a reconhecer. Podia haver alguma explicação
perfeitamente coerente, faltavam-lhe informações imprescindíveis, desconhecia, ora,
desconhecia em absoluto todo o resto da mensagem: o melhor era seguir seu dia que
não podia mesmo parar.
Almoçou como se com pressa, concluiu com falsa alegria algumas ligações,
pagou angustiosamente suas contas pelo celular e, tentando em vão adiantar o
conteúdo da matéria, forçou-se enfim à aula: “O que é a condição pós-moderna na
arte? Para se entender o contemporâneo é preciso, primeiro, entender o modernismo e
a modernidade. Na clássica definição de Greenberg, que vocês devem conhecer –
devem não de ser provável, de dever mesmo, a essa altura não é possível! – o
modernismo começaria em Manet e em suas telas que reforçavam os limites da
própria tela, da bidimensionalidade, da cor...” – por que ela falaria de novo com a mãe
por mensagem se já havia conversado com ela, combinado tudo, repassado os horários
demoradamente? Por que praticamente escondia o celular por debaixo da mesa?
Sentia a garganta secar e o corpo dissolver-se em um calor que derretia sua
capacidade de viver seu dia.
“A distância para o impressionismo é abissal. Em seu artigo de 1941, Lionello
Venturi vai definir a concepção estética desse movimento como a tentativa de se
pintar a nossa experiência da luz, antes daquilo que eu chamo de ato acabado da
visão, para o qual concorre também o entendimento, e que eu descrevo com toda
aquela parafernália do kantismo e da Gestalttheorie, no artigo que vocês devem ter
lido...” – o que mais podia significar? Hoje você não vai me aguentar, vamos... Ou era
hoje você não vai aguentar? O que estava escrito além do que podia ler? Ou aquém
do que era possível ler, talvez entrasse demais naquela frase repetida. Sentiu o ácido
queimar o peito por detrás do esterno, e voltar a descer para desregrar o estômago.
Tinha de sair, de lutar por ar, embora nenhum de seus colegas reparasse que ele
margeava um abismo tão próximo de um colapso total.
“É claro que isso não podia ainda ser questão para a crítica da época. Estava
transcendentalmente fora das próprias possibilidades de pensamento de um Gautier,
sobretudo de um Paul de Saint-Victor ou de, digamos, Louis Enault, ou até de Zola.
Mas em tempos em que a arte tomou consciência de si mesma e passou para um
terreno tão intelectivo, fica para nossa geração o desafio: seria possível representar as
nossas sensações puras antes da intervenção do pensamento ou de qualquer sistema
simbólico de comunicação”? Não, não era. Só se fosse possível pintar um carré noir

195
de puro desespero e angústia, uma claustrofobia de sentimentos que seria também a
claustrofobia das paredes daquela sala de aula. Só se fosse possível expressar o
horror, o suor frio, a angústia e o calor de uma só vez, com as dúvidas a martelarem
em sua cabeça, com todo seu passado de sofrimento a contornarem aquela agonia
desoladora, com suas imagens humilhantes a girarem em torno de si.

- Licença, professor. Vou sair mais cedo, estou doente e agora estou
passando muito mal – desculpou-se em particular, ao passar na frente de
toda a classe.

Não mentia André. Talvez fosse até mesmo sua doença que o fazia agora gerar
buzinas coléricas no trânsito, quase esmagar seu carro na contramão de um ônibus e
errar seus caminhos sem nem mesmo ter um. Não se sabia mais ser. Sentia-se fora
de si e da vida, como se em anestesia para as coisas do mundo. Girava em torno da
dúvida do sentido da mensagem e do medo de conhecê-lo. Postava-se à exata meia
distância entre a ilusão de que sanando a dúvida nada mais lhe faria sofrer por esses
mesmos vergonhosos motivos e suas promessas embevecidas de nunca mais acossar
Juno por eles. À embriaguez ensandecida de que padecia não se dá nome, não se
estuda, não se mede: mas bêbado, não podia mais dirigir.
Estacionou o carro na frente do prédio envidraçado, velho conhecido, e
aproveitou que o homem de boné bastante enfiado na cabeça, com a aba dobrada, não
fechara ainda o portão atrás de si para subir sem autorização. Bateu à porta e ninguém
atendeu. Tocou a campainha e, por mais que surgisse um som indiscernível vindo de
lá dentro, ficou só com seu silêncio. Girou cautelosamente a maçaneta, atribuiu à sua
confusão ver seu próprio quadro no fundo da sala, e descobriu-a deitada no sofá, em
uma espécie de choro, sem camisa, ou quase, pois que estava com a camisa a lhe
servir só de coberta para o rosto.

- Vá embora ou então vou chamar a polícia – berrou com a voz abafada


através da seda sobre a boca – O que você quer? Não está satisfeito com o
que você já fez? Ou quer mais?
- Olha, desculpa se eu te fiz tão mal, mas você está falando comigo mesmo?
– desconcertou-se André sem fechar ainda a porta – Eu te expliquei a
situação... Comecei a namorar e não podia...

196
- André?! – sentou-se de um pulo, trocando a camisa pelas mãos para tapar a
maquiagem que sangrava pelo rosto – O que você está fazendo aqui?
- Eu devia ter avisado, mas só queria conversar, então... Mas eu vou embora,
não sei o que eu estava pensando.
- Não, fica, por favor. Eu não quero ficar sozinha agora.
- Claro que quer, você mal está conseguindo olhar para mim. E eu não devia
estar aqui de qualquer jeito, me desculpa de novo – disse André, que se
mantinha quase abraçado à porta, um pé dentro e outro fora do
apartamento.

Paula, a coitada que lhes servira de cupido há tanto tempo e também, há


menos, à época em que ainda se o permitiam, de peso para que André pudesse
equilibrar o fiel de seu orgulho, levantou-se e descobriu seu rosto. Mostrou-se toda
em seu tremor, em seu colo esquálido de peitos mirrados, em seus olhos negros que
pareciam cegos, doentes, abertos demais para não parecerem de loucura. Desceu a
blusa até a metade do ventre, e encostou-o contra o de André, forçando um beijo que
lhe doía os lábios, como se em uma mordida.

- Paula, o que é que está acontecendo? – assustou-se André, afastando seu


corpo do dela – O que é que aconteceu? – perguntou cobrindo com a mão
a parte de sua boca que sentia latejar.
- Eu não quero falar sobre isso. Eu quero que você fique. Eu quero você.
- Não, Paula, espera. Alguém te bateu? Que marca é essa?
- Bateu. Satisfeito? Agora vem cá.
- Quem fez isso? Você tem que denunciar, vou ligar pra delegacia da
mulher, não pode ficar assim.
- E eu vou falar o quê? – Paula tomou-lhe o celular – O cara pra quem eu
estou dando me deu um tapa na cara? O delegado vai rir de mim.
- Deve ser delegada. E não importa, você tem que fazer alguma coisa. Você
sabe o nome dele, pelo menos? – Paula aluiu em um canto, de volta ao
sofá.
- Foi o Miguel.

197
- Esse Miguel de novo? Ele está de volta? Foi ele que saiu de boné daqui?
Meu Deus, Paula, você não pensa em mudar as pessoas que você conhece,
não? – repreendeu-a ao sentar-se do seu lado.
- Ele estava frio, distante, parecia você quando aparecia aqui de madrugada,
sem avisar. Fui dar uma mordida no lábio dele, de brincadeira, pedir
atenção, e ele encheu a mão no meu rosto. Ele disse que só me empurrou,
que eu estava fazendo escândalo, mas você está vendo – apontou de novo
para a marca vermelha que já começava a se tornar de volta pele morena –
Eu quero que ele se foda e eu sei o que dói mais nele que um tapa. Vem,
André, não precisa me explicar nada, eu sei por que você veio aqui.

O pano de sua saia azul foi se enrugando até o alto das coxas onde estacou,
esticado, em enorme desforço para não se rasgar, quando Paula saltou sobre André,
enlaçou-lhe as pernas entre os joelhos e deixou encostar-se nele, em um suave e
contínuo movimento de quadril que ia e vinha, subia e descia, e ia e voltava. André
escorregou frouxamente as mãos por suas costas até encontrar o fecho de sua única
peça de roupa acima do quadril e, tendo-a vencido, carregou Paula para o quarto em
exageros de vontade. Beijou-a, virou-a, mudou-lhe de posição e, nem tinham ainda
começado, André não pôde continuar. Foi e voltou duas vezes do banheiro e,
humilhado, foi se resignar no sofá:

- É culpa minha, André. Forcei uma situação pelo meu desespero, não sabia
o que fazer e você me apareceu do nada, como se fosse um sinal – ele
permanecia imóvel, o rosto apoiado sobre os punhos – Fala alguma coisa,
André. Me desculpa. Fala o que você queria conversar – André era só uma
continuação do sofá, feitos um em paralisia – Você sabe que está
exagerando... Nesse tempo todo de namoro, vai dizer que nunca aconteceu
isso com ela? Por mais perfeito que você ache que ela seja, André, deve ter
acontecido.
- Tenho que ir, Paula. Eu é que peço desculpas – decretou sem tempo para
despedidas, mal reparando que ela ainda o seguiria, correndo, até a porta
da escada.

198
Os degraus negros em caracol espiralavam na direção de sua vertigem, e ele
descia. O cheiro das lixeiras de cada andar apertava-lhe o estômago revirado, e ele
vencia mais um lance. Saíra para a escuridão cega do subsolo, e ele se deu conta de
que nada mais podia fazer: estavam todos extintos os antigos rituais de expurgação da
desonra – só lhe restava voltar a viver. Não havia mais duelos, crimes de adultério,
anulações públicas e humilhantes de casamentos: a razão havia ocupado à força os
espaços guardados para se lidar com o desmedido – males da modernidade. Subiu
com mais calma e menos fôlego para a portaria, deu duas vezes com a caixa-postal de
Juno, e de repente lhe ocorreu: tinha de falar com Cássio. Discou e, sem deixar
completar a ligação, desligou: pensara que nunca mais se valeria de um telefone
público e de uma chamada a cobrar:

- Alô! Cássio, tá podendo falar? – começou, esbaforido.


- Tá tudo bem, André?
- Tá sim, você tá podendo falar?
- Cara, na verdade, não queria falar agora não. Pode ser depois?
- É coisa rápida, Cássio, não vai te tomar tempo não...
- Faz tanto tempo que você não me liga... Aconteceu alguma coisa? Por que
você tá me ligando? – perguntou em um tom estranho, parecia medir cada
palavra.
- Como assim, Cássio? Olha, é o seguinte...

Precisava de uma senha, eis tudo. Chegou com a vista suja de suor ao quarto
que dividia com Juno e revirou-o com o olhar singular dos momentos decisivos: as
três bolhas na tinta azul da parede a sugerirem o início de um balão de pensamento, o
lugar reservado a seu desenho de Juno, nunca feito, as pilhas de livro desorganizados
por assunto, catalogados em padrões de cor e, em cima de uma delas, seu diário de
capa de couro azul piscina, costurado à mão, preso naquele cadeado que fora tão
difícil de encontrar em um dia de chuva. O diário! Mas já não eram mais os mesmos,
a chave não estaria jogada por ali, em displicência de confiança. Arrependeu-se
envergonhado do que faria.
Enquanto procurava pelas coisas nos armários da dispensa assustou-se, em um
pensamento secundário, só no halo de sua compreensão, com a distância a que se
botava de si. Não refletia, não pensava no que fazia, pouco lhe importava como

199
julgariam no futuro seus atos, fosse o juízo o seu próprio ou o dos outros. Florescia
nele malignamente certo orgulho por estar finalmente livre de todas as amarras,
e de poder se entregar agora apenas àquilo que realmente desejava.
Uma chave de fenda grossa no anel do cadeado e: a primeira pancada no ar –
talvez houvesse mesmo sinais antes dos grandes erros de uma existência, talvez eles
não surgissem só em retrospectiva. Pegada mais firme na mesma chave de fenda e:
uma lasca tirada da mesa de estudos de Juno – até onde destruiria a si e e às coisas
que não lhe pertenciam? Terceira, quarta e quinta pancada certeira do martelo:
4ch3rontaMovebo, na última página, tudo emendado, tão ela. Logo aparecia na tela do
computador aquela localização no mapa digital, e seu desespero ia confundindo-se
com o agradecimento, com uma falsa felicidade nostálgica das brincadeiras infantis de
Cássio, que fora cúmplice desconhecendo o crime: tinha dito que era seu o celular que
estava perdido.
Mal pôde se aguentar enquanto se encarava profundamente no espelho do
elevador, tentando dar ares elevados à situação que vivia. Chegou ao carro, deu um
último suspiro antes de se decidir, e abriu o rangente portão da garagem. As vielas
iam se fazendo cada vez mais escuras e as paredes em pichação reta de imóveis
ocupados revestiam-se de um tom tenebroso, reforçado pela procissão ora de travestis,
ora de bandos de moleques de um mundo que André desconhecia. Emocionalmente,
tinha de ser ali. Pelo que conhecia de Juno, não tinha como ser.
Era na pior parte do centro escuro, sujo, drogado, bêbado, fedendo a mijo.
Entre as cadeiras velhas de madeira vagavam como fantasmas as putas de profissão,
bichos com buracos, e velhos tarados cheios de história de vida, entregues. A jukebox
embalava algum clássico de letra nojenta e havia envelhecido no ar um vestígio de
violação. Dançavam aquelas quase anãs raquíticas, ressecadas, de cabelo descolorido
e a espinha quase toda à mostra, saltando da pele, sobretudo quando se curvavam para
alcançar o pó. E dançavam com o dono do pó, dono de poucos dentes, dono da camisa
aberta e das correntes, dono de mãos peludas virilmente desavergonhadas. Muito
desavergonhadas. O celular de Juno só podia ter sido roubado, era claro. Quis
terminar seu trajeto ao inferno e foi pedir uma cachaça que o amargasse:

- Tá perdido, playboy? – era um dos bêbados que rodeavam o senhor


daquele lugar, na esperança de um teco grátis, como explicou.
- Não posso beber aqui, por acaso?

200
- Estava tentando te ajudar, playboy. Agora vai ter que pagar uma pra mim.
Uma dose do que o senhor aqui está bebendo – riu o bêbado com uma
malícia natural.
- Não vou pagar nada para você não, já estava indo – disse André com um
passo receoso rumo à calçada, para longe do balcão.
- Fica com medo não, boy. Está esperando alguém ou veio pelo GPS? – não
entendeu a pergunta – Está achando que é o primeiro que fica perdido
rondando por aqui?
- Deixa eu beber sozinho, parceiro. Por favor – constrangeu-se André – Não
estou bem não.
- Ah, é corno. E de primeira viagem. A primeira vez é sempre desajeitada
mesmo, vou te ajudar: essa vielinha aqui, que tem nome de rua... Vai pagar
minha bebida ou não vai? – provocou um André que, despido de qualquer
senso crítico de seu próprio ridículo, hesitava ainda ser passado para trás.
- Não tem como você me ajudar... – o bêbado deu de ombros, com um ar
distinto e superior, querendo indicar que deixava para André o papel de
fazer de si seu próprio carrasco – Mas pode falar o que você quiser, eu
acerto e vou embora.
- Essa vielinha aqui, que tem nome de rua... – retomou como se
pronunciasse um ato formal, que só valia se dito do início ao fim – ela dá
lá no final dela em uma avenida grande. Você vai ver uns prédio de bacana
e pode continuar. Lá no final dela é que ficam os motéis, é onde você ia
chegar se não tivesse trocado avenida por rua.
- Entendi, mas não é esse o caso não – respondeu André, deixando uma nota
alta sobre o balcão e batendo em retirada.

Um motel. Não era perfeito? Um pintor e uma escritora, com o mundo bem
abaixo da pena e do pincel, rejeitavam a herança de tralhas dos séculos empoeirados
de evolução da humanidade para recriar um novo universo, e terminavam
melancolicamente em uma dessas casas que trocam dinheiro por tempo contado de
pretenso prazer. Errou a marcha e sentiu enfraquecer a perna: deixara morrer o carro.
O endereço que trazia anotado, no topo rasgado de uma folha sem linhas de diário,
não dava, porém, nos motéis, mas naqueles pequenos números estampados em
azulejos verdes, na porta de uma tentativa malfadada e de mal gosto de prédio art

201
déco. Era ali, então. Era ali onde o herói finalmente vai perceber que a vida não é feita
de tragédias, é só farsa.
Sentia ter atingido uma espécie de ponto de inflexão, por onde sua vida se ia
esvaindo em um visco, arrastando consigo suas glórias de artista, sua conquista do
mundo, seus feitos pessoais: qualquer critério de orgulho fenecia cada vez menos
nítido, em um mero fundo de vida sem Juno. Desamava e sentia o desespero e a
liberdade do desamor. Podia fazer tudo e deste tudo, entrou no prédio, e subiu
precisamente ao apartamento certo, e surpreendeu-os, e lá estava Juno com outro
homem, Juno de costas, pegada a seu ventre, fumando uma nova noite sem estrelas,
dividindo os fones de ouvido embaraçados em seu pescoço. Por que fumava Juno, ela
que não fumava e não lhe deixava fumar?
O maço de cigarros encontrado no porta-luvas de seu carro, era por isso.
Quem era aquele homem que roubava em uma só noite todos os sentidos de sua vida?
Reconheceu a leveza feliz, que ele não podia mais dar a Juno, no sorriso faceiro de
Cássio, em seu trato negligente, vivo e despreocupado com sua arte, em sua cabeleira
inconfundível: a traição das traições, tão óbvia, a troca pelo melhor amigo. Por isso
soara tão estranho na ligação que o levara até ali. Viraram-se, e André pôde ver no
amável nariz adunco e nos curtos cabelos loiros de Felipe, no rapaz de fisionomia de
forma alguma detestável, a aventura libertina que um namorado jamais poderia
encarnar. Confrontou-os aos berros, fez notarem a hipocrisia de Juno, provou sua
superioridade moral provocando um escândalo à altura: o vaso de cactos encostado à
porta estilhaçou a cristaleira, deixando aos cacos os copos, as taças e os porta-retratos.
Se não fizera valer sua vontade durante a vida, fazia agora questão de sentir o poder
que ela carregava.
As pinceladas eram finas em detalhes e era bem feito o acabado das paisagens,
posto que de sonho o quadro. André pegou humildemente do cigarro que lhe era já do
homem que o subjugava aquela noite, e fumou de seu tabaco tóxico, de seu mesmo
tabaco que só preenchia os ingentes vazios do corpo e servia com diligência ao
propósito de se fazer mal sem horrorizar demais a medíocre patrulha do bom senso.
Olhou desolado as onze sacadas cheias de possibilidades do prédio diante do
qual parara, e concluiu, mais uma vez, que nada tinha a fazer. Tudo não passava de
um teatro que só ele insistia em não ignorar: aprendera tudo da vida, e nada de viver.
Não importava o que fizesse, estava condenado. Não importava o que fizesse, porque
pensava que não importava o que fizesse. Não importava que terminasse com Juno,

202
ou que lhe cobrasse explicações, que brigassem e que reconciliassem mais uma vez,
que a perdoasse ou fosse perdoado: estavam, juntos ou separados, definitivamente
acabados. Seriam sempre a mesma cegueira das amarras mundanas, a mesma
incapacidade de nunca desenredá-los, de nunca ver a vida de cima do monte, de nunca
desprender-se das vaidades que não importavam. Sempre o mesmo nunca. Sempre
nunca.

203

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