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Renato Souza de Melo

UM NÓ NA GARGANTA
DESDE O PRINCÍPIO DO MUNDO

(POESIA)

Rio Pomba/MG
2023
“Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.”

Manoel de Barros
Sinopse

A obra possui um estilo introspectivo e enigmático que consegue unir o lírico com o
filosófico de uma forma natural, como se cada poema fosse um caminho espiritual que
persigo, um caminho de alegria, dor, resistência na busca de um significado para
a complexa condição humana.
Sumário

1. Paisagens
2. Loucura
3. Amor
4. Indignação
5. Mensagens
PAISAGENS

“Sou minha própria paisagem”

Fernando Pessoa
imagens de hoje

um rio que morre no mar, conquista-se


o segredo é nunca desistir

a vaga ausência numa paisagem


renova meu ardor por quietudes

como o vento que sabe ir


em todas as direções
habito comunhões em cada encontro

resoluto
a força do tempo busco reverter
recordar é viver
fazer e refazer pontes

uma mágoa antiga vem me falar de exílios


imagens de hoje tecem novas lembranças
me clareiam, e disso, não abro mão.
fósseis remotos

mergulho
na garganta do tempo
adormecido
em qualquer regaço

como alguém vencido


pelo odor do momento
caminho sobre estas pedras

são fósseis remotos...

meus sentimentos
ultra
passados.
quando anoitece

todo evento que se ergue


forma uma paisagem que entra
por onde meu orgulho pernoita

(só não consigo ser ingrato)

à minha ignorância natural


a terra exorta
sempre que possível
uma boa melodia me serve
mesmo à distância
me entoa

quando anoitece
o que mais quero
é ouvir uma luz acesa me dizendo
que o amanhã fica depois
de quando a vida aqui se apagar
e o sol que vier a seguir
for completamente outro.
eu e o longe

celebro distâncias
secando lágrimas
sem pranto

no mistério
de minha enfermidade
sonhando sem sono
levo a vida
em canção

reparo lonjuras
nas curvas do haver

amadureço tudo
espiando o céu
sem ansiedade
nas manhãs
de alegres lavadeiras
às margens do rio

aprumo longitudes
sem remédios

na união das partes


no perdão, no cicio
no calor do abraço
que nas madrugadas
sempre recebo de Deus
enquanto aguardo discreto
por nosso
derradeiro encontro.
triste navegante

da janela um céu aberto


o que importa é a paisagem

o sonho ainda existe


também a poesia

descobrindo belezas
é que superamos as impurezas
do real

na procissão dos dias


homens voltados para o mar
sem finalidade se agitam
não sonham mais
os planos que tinham
fugiram deles

não podemos
viver apenas de espanto
feito um triste navegante
que em suas voltas pelo mundo
vaga sem nada descobrir
que quando regressa nunca tem
nada novo pra contar

alguém assim
ou é alguém sem ninguém
ou é alguém
que desistiu do mar.
parecia tristeza

era outono,
minhas folhas caíam amareladas
meu silêncio era profundo, disperso
parecia tristeza

com tantas incertezas,


mais da metade de mim chorava muito
parecia tristeza, mas não era

era apenas
mudança de estação.
inverno melancólico

versos dispersos
num dia de inverno
são incertezas
quais flores brancas
transmitindo saudades

surgem sempre
num fim de tarde
quando andamentos
de solidão
discretamente anunciados
sugerem
triste melodia

nesse caso
meu desassossego
só é curado assim
enquanto escrevo

em minhas confusões
há muita imprudência
porém, pequenos ventos
de liberdade
me transcendem

nas delícias
de um delírio cúmplice
recebo carícias lúdicas
metáforas lentamente
pousam nostálgicas
no poema
são pacientes comigo
(empáticas)
enquanto escrevo
húmidos desamparos
se convertem
em compassivos versos

sentimentos desde o sangue


fervem ao frescor
de um momento
que solenemente anuncia...

esse inverno melancólico


sem pressa tem mais a dizer
que vontade de ir.
bem-te-vi

num prato raso, delícias


nuvens são bons sinais

na água com liberdade


simulo pequenos ventos

gosto de pensar que sou


apenas um bem-te-vi.
simplicidade

mesmo quando
sem querer estou
nas maravilhas
do mundo
meu coração sabe
em minha própria companhia
que fico sem fim

com simplicidade
volto para casa brincando
na morte da tarde sempre
tão instável
quanto o vento.
centelhas

por todo lado, perfume incerto


olhos num campo de flores — centelhas
na boca, alegrias em rajadas
no espaço, dia e noite, nada mais

crepúsculos recordam-me anelos


um ar de virtude me bastaria
são desejos que tenho feito aves forasteiras
passageiras, mas repletas de visões.
germe

o silêncio e suas substâncias


o sossego na linguagem
forças que circundam a letra
e perante sombrios infortúnios
preservam a mensagem
o amor, o poeta
que ilesos não deixam de semear
seus dons

em si mesma contida
a palavra germina o pensamento
sem aparências aflora
o absoluto evoca e das vis heresias
protege o tema

o cheiro, a música, a paixão


não se perdem
a civilização é redimida
a vida iluminada
tudo isso a partir do verso

a calma que produz no peito


dispersa assombrações
e a mente daquilo que é melhor
mantém a consciência.
moldura

montanhas longínquas estampam na paisagem


mensagens contemplativas
mesmo longe dos olhos, suas alegorias nada usurpam
sua sapiência, sem manipulações
exibe uma moldura todas as manhãs
nem mesmo os ilustres mármores
dariam ao expectante
poemas tão mansos, com doçura tal
que se tentássemos dar-lhe um nome
não conseguiríamos

montanhas longínquas existem para nos ensinar


a fazer de toda paisagem
um refúgio para os olhos
sempre sem nenhum labirinto
ou enigma, ou dilema
aos sentidos.
raízes nuas

a fúria do vento
sepulta o choro

na orla do tempo perfura-se a vista

aqui só me vejo
de raízes nuas

esperando pelo solo


que sempre me falta.
o fogo

me lembro das águas,


da noite sempre ao longe
das palavras lá fora enquanto o fogo
refazia a história

desertos esquecidos são a memória


desta espera

o fogo aceso perscruta e no fundo dos olhos


revela outras fontes

os poderes assim conhecidos


na vastidão do nunca
nos abrem um caminho
bem próximo do que com anseio
esperávamos

depois disso, tudo o que vier de mal grado


obviamente será recebido

como vil

dissonância.
minúcias pacientes

sementes, vida sem ruídos


curas presentes na saliva
transparências na água
a pureza do vegetal

pequenos arbustos
continuamente produzem
imagens nas coisas

vestígios explodem de alegria no ar


enquanto pastagens por meio de ervas
expõem a nossa estupidez

sentidos sem sentido, delícias


no pós-morte, um prato cheio de sinais
minúcias pacientes, liberdade
denúncias que a realidade traz
a qualquer um que não se endurece
quando tocado afetuosamente
pelos gemidos do Espirito.
harmonias

harmonias
alastrando-se
numa música
que perfuma o ar

espelhos surgem
e por toda parte
me enxergo
como nunca

uma aura
perambula suavemente

pássaros livres
tornam tudo
mais intenso

meus horrores
são desfeitos
sinto o infinito
dentro de mim

ao som
de águas calmas
afago meus olhos
sobre o lago

sinto que enlevos


me purificam

tudo isso
num dia de primavera
tudo isso
num silêncio que quero
sempre comigo

em harmonias
que calam
os ruídos do mundo
por todo lugar
dentro
e fora de mim.
afetos do mar

imenso ao longe
superfície azul
sobre um monte por perto
observo o oceano
é meu deleite
afetos
que nenhum ser humano
poderia me ofertar.
em frente de casa

em frente de casa
cada homem faz seu caminho
ouço todos os sons
dia e noite

são cachorros na rua


pássaros, motores
crianças correndo
de vez em quando alguém canta
e assim espanta os espíritos maus
que gostam de se misturar
às partículas sensíveis
de todos os sentimentos estranhos
que normalmente temos

em frente de casa
gota a gota o sol ao nascer
semeia vida e faz amanhecer o tempo
também com isso a gente se torna aquilo que é
mesmo que pela rua um vento circule frio
espalhando a notícia triste
da morte de alguém.
pessoas no vazio

meus abismos
à luz de velas
fazem das ausências
estrépito

isso foi ontem, hoje


eu canto

deixando para trás


sentimentos de algum vazio
meus olhos
buscam pessoas

(gosto de olhar pessoas)

num espelho encardido


afixado
através de meu vazio
há o não vazio
de um horizonte
gente

esta sensação
esculpe diante de mim
homens sem rusgas
nem zangas

eles parecem bem


sem ciúmes

numa semana cinzenta


é isto
que gosto de olhar
pessoas
vivendo no caminho

uma música
bem ao fundo
também me importa

é tempo de enxergar
que nunca estou
tão só.
luzes na água

meus olhos precisam de tempo


com os pés firmados na vida
minha voz segue enfrentando
percalços

uma calma no fundo da noite


é dádiva que rega os sentidos
nos altares da serenidade
não importa o dia da semana
busco sorrisos em qualquer
brisa no ar

perfumes sob os meus pés


apontam os caminhos para o mar
que é para onde sempre me volto

no formato das pedras, um rosto


luzes na água me anunciam coisas boas
assim caminhando, aprendo a suportar
as contradições desta vida.
de doze em doze horas

ao meio-dia quedamos
quase sem perceber à amargura e ao sono

à meia noite emergimos


com todo o tumulo do caminho oculto

no pensamento
dançam angústias, as essências
da consciência na sombra

ao peso dessa carga, ausências


que fazem das circunstâncias
criação

sentimentos de muitas partes transpomos


numa desordem que gera
surpreendentemente do caos
um anseio de vida

o nome disso é difícil saber


nascer de novo seria a melhor descrição

uma ambição que somente Deus


do nada
é capaz de prover ao senso.
LOUCURA

“Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus!


Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!”

Castro Alves
depredação

homens sem coração


morrem mais cedo que outros
ainda que vivam
um pouco mais

um crime de verdade

olhos vencidos perdem a imaginação


é assim que fatalmente
a alma fica mais seca
e má.
primeira página

se o “incentivo” for bom, convenceremos


deus e o mundo de que — canel, maduro e ortega
não são ditadores latino-americanos
mas sim, os principais elementos
de um composto ansiolítico muito eficaz.

— tudo é uma questão de narrativa. pagando


bem, que mal tem?
a aberração

homens brancos
vendendo e comprando
homens pretos
num leilão

seria loucura se não fosse


escravidão
pior que foi
e dói demais
homens brancos
vendendo e comprando
homens pretos
num leilão

desvario, absurdo
cujo ritual violento
estuprou a sanidade
com ódio e sangue
navalha e depois sal
urina com sumo de limão
para doer mais,
só para doer mais

uma aberração
a escravidão
chaga podre
— incurável
na epiderme do mundo.
petição

rei Leopoldo II
filho do demônio
peço a Deus
sete dias no inferno
com vossa majestade

(no sétimo círculo)

peço a Deus privacidade


sigilo de mil anos
e apenas nós
eu, minha revolta
e vossa majestade
no Vale de Flegetonte

peço também meu Deus


permissão para levar comigo
uma máscara de flandres
anjinhos, facão de cortar cana
e uma virgem de Nuremberg.
mutilação

Nsala,
deceparam Boali
mão e pé
por causa do látex

Nsala,
porque não fala?
porque não chora?
porque??

acho que sei porque!

não há o que dizer...


nem o que pensar...
nem o que fazer...
o que fazer?...

(ela só tinha cinco anos).


mundo imperfeito

menino de rua foi morar na marginal


pra ficar junto da mãe
para casa não volta mais
por causa do fumo de pedra
mundo imperfeito

menino de rua não se importa


quer a mãe de qualquer jeito
divide com ela
deitado em seu peito
o cachimbo da morte

que falta de sorte


ele não tem pai
será melhor assim?
para alguns
tanto faz

menino de rua, enquanto a mãe desfalece


olha pra lua
a Deus agradece pelo colo que tem
“porque ninguém” pensa ele
“tem uma mãe tão linda como a minha!”

é desse jeito, no mundo imperfeito


na ponte
na pista ou na linha
até quem morre de pedra e de fome
não o faz
sem gratidão.
pasmo

me espanta a alma destituída


de sua natural condição.
por que não deu para adoção?
por que jogar ainda com o cordão
um anjo no lixo?
entre dois mundos

homens tombados em gotas na terra


caindo, caindo…

faces sem nome, homens no silêncio


minguando…

vidas humanas nos campos da morte


sangrando…
para sempre na história!
AMOR

“Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor


estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia.”

Clarice Lispector
ternuras no silêncio

pés sedentos avançam


em meio à penumbra
passos no escuro a alma tangem
em sua busca por alguém

toda alma
sedenta pela janela escapa
sem medo da noite
pisando madrugadas com olhos
que brilham
feito primeira alvorada
em rara
primavera

sem qualquer receio


das sombras
peregrinando no espaço fulgente
das incertezas
um bem querer surge
surpreendendo a todos

ternuras que
em permanente ocaso no silêncio
dormiam
agora se despertam
tecendo flores num sorriso
eufórico
e livre.
meu pássaro

um só riso teu
reverbera e no espaço
indica passagens

seu aspecto – ternura


figura no ar
feito pássaro cândido

inaugura um novo tempo


de novo, no outro dia
de novo, todo dia
o tempo todo…
candura!
que seja eterno enquanto dure

o nosso amor...

a nossa nudez
essa rua dentro de nós
necessidade que sorve
mas impede o sono
ao perturbar os sentidos
nos informando que se quisermos
ele até pode durar...

para sempre.
águas frágeis

um instante permanente
é o que resta na memória
inscritos na parede
certos momentos
são fragmentos
de uma vida inteira

pulsações
nos recantos da retina
são movimentos da própria sombra
que encantam os sentidos

tantas vezes me arrebata

em tempos de lento regresso


gestos entre um olhar
e a palavra à mesa do café
permitem um conforto inusitado

estranhamente ileso
um espelho na voz revela ternamente
o pacto entre nós — aliança
há certezas nas frestas dos lábios
tais águas frágeis que sempre transportamos
à flor da pele durante nosso trajeto
pela alma de alguém.
amor tem limite

um juramento mal feito


deixa a alma sentida

de tanto esperar em vão


debaixo de um sol forte
qualquer amor sucumbe

ter alguém na vida


é algo que não se despreza
mas há quem não dê valor

o amor que alguém tem


além de outras coisas
é perecível também
pode um dia acabar

basta um vão prometer


basta deixar morrer este amor
de tanto fazê-lo esperar.
é assim que não se deve amar

há mais de mim
em você
que em qualquer
outro lugar

sempre que fico


sem te ver
também fico sem saber
onde posso
me encontrar.
ausência

essa voz que quer falar


mas não sai – dói
arranca sangue em mim
nada diz – não tem voz
como terra seca, trinca de dor
em ânsia de amor me inunda
com profunda…
ausência.
opostos

inversos no mundo
velhas longitudes
habitações
do adverso em mim
cotidiano
de duas cabeças
dor e amor
no mesmo lugar
opostos que se atraem
numa dança
desencontrada
sob um luar
que nunca diz nada
de tão minguante que é.
nostalgias sem saber

nada sei do longe e nem dos olhos

escancarados de amor
homens são iguais no silêncio

na esquina do tempo, palavras inexistentes


me ensinam a não mentir

uma ave antes do voo se parece comigo


sempre ao fim do dia suplicando alegrias
um pouco antes de dormir

qualquer chuva fria


no coração alonga saudades noite adentro

meus sentidos em convulsões


sempre me recordam ao cheiro do vento
aquele amor transbordando nos olhos
que nunca mais terei.
extravagante

no ar, um som e um perfume


meu sonho reacende
uma saudade agora
é crueldade

por que tudo é passageiro?

minha vontade sem gaiolas


existir sem sofrimento
querer é poder
amar sem doer
sou assim mesmo
almejo com extravagância
tudo aquilo que não posso.
INDIGNAÇÃO

“Ah, comigo o mundo vai modificar-se.


Não gosto do mundo como ele é.”

Carolina Maria de Jesus


ninguém sabe

ninguém sabe
das tardes quentes
que tive
das aves perdidas
no fundo dos olhos

ninguém sabe
do que só eu sei
do clarão que me falta
mesmo em dias
de luminosa paz

(meu horizonte é hostil)

ninguém sabe
de onde venho
se do vento, da terra
ou do mar

sou nuvem, fogo


ou poeira?
ninguém sabe!

se é algo que importa?


também
não consigo explicar.
angústia

muralhas nos olhos


um grito em vão
cruel mistério — o mal existe?

nudez e solidão
apocalipse nos gestos
silêncio, tortura — negação
ter nascido é a resposta?

sentir dor é aprender


desventura não é má sorte
o mais importante
é nunca envelhecer
calado.
sertanejo

o chão salgado sob os pés


tem a cor do sol
na distância
o peso da carga arde no corpo

não estou cativo, mas minhas mãos já se renderam


longínquas águas pairam nos olhos
de ilusão naufraguei
perdi meu jeito de prosseguir

atordoado, vou descalço até o fundo


agora só me resta o mormaço
no silêncio ao redor e quase sem ar
fecundo a terra com meu suor
minhas lágrimas vãs
servem-me de uma história mal contada
falsas promessas me fazem envelhecer antes do tempo
enquanto espero sem muita confiança
que algum milagre aconteça
antes que eu parta deste mundo
inválido de tanta revolta
também com fome e muita sede.
eu e um anjo no lagar

é a pior sensação...
o abandono
é coisa muito difícil
de superar.
a dor de existir

meus sapatos diluindo me transtornam


desejaria sobre a montanha algum sossego
minha mente exausta procura me dissuadir
no trajeto meus passos doem
mesmo assim
não retrocedo

numa calma pura


águas nas pedras do leito me suturam
hermético, sempre penso numa explicação
distâncias, paixões ou tormentos não me oscilam
ser terrestre é assim

há enigmas suficientes na vida


só não tolero os pensamentos de morte

minhas crenças me acomodam


não se trata de algo tardio
está nos olhos, na pedreira, no claro dia

o incerto é o deserto que abomino, não nasci


para ser “talvez”

sei que a dor de tudo faz parte, isso não me constrange


pensar que algum destino existe
é algo que me consola
suficientemente.
sol quente no gargalo

ao fim do dia
bolhas nas mãos
a alegria
é a sensação
do dever cumprido

servir a mesa
de gente ingrata
é como beber
sol quente no gargalo

sensação escaldante
queima tudo por dentro

não houvesse quem


olhasse por mim
há muito eu teria
desistido de nós
e estaria
vivendo assim
sem pensar
em mais ninguém
porém, vale mais
a palavra que diz:

“não te deixes
vencer pelo mal
mas vence o mal
com o bem.”
retrocesso

desaprendi a vida, o mundo


também
pouco sei do ontem
sobre tudo o que já vi
de nada me serviu

acredito que meu naufrágio


aconteceu na imaginação
até o amor que eu tinha se perdeu
dizem que morri já faz algum tempo
por razões desconhecidas, ignoro

do imaginário que padeço


desaprendi de sonhar,
isso é fatal, a matéria me engoliu
sou quase um mineral

nem a poesia me fala


quando me calo é sempre assim

tudo o que havia antes escureceu


perdi meus horizontes
ao entardecer
desaprendi de tudo,
me esqueci de como é que se revive
depois de padecer solitário
tantas vezes em vão.
a laranja podre

é você!

o mal é você! essa voz irritante em minha mente


meu infortúnio é você!

e eu sou apenas uma pobre vítima


do meu próprio

contrassenso.
eu vi um pássaro surtando

muito nervoso, babando


olhos esbugalhados, com anormal
respiração

pelo que parece, nem mesmo as aves


entendem muito bem
o que, de fato, acontece
com nossa
civilização.
mente sã

o que farei
para superar o desgosto?
penso
tenso é como me movo
contudo, não afoito
prossigo.
MENSAGENS

“A minha Poesia sou eu.”

Amílcar Cabral
o caminho para dentro

em olhos viciados
por utópicas terras
um fogo que dói
e nunca se apaga
faz o andarilho
se esquecer
do caminho de volta
de tantas estradas
percorridas em vão

estas são agruras


às portas de um mundo
sem nenhum interior
como resultado de caminhar
dias a fio à luz das ficções
do trajeto que possui
apenas um destino:
– o extrínseco!

com efeito...

o caminho para dentro


é a maior
de todas as distâncias.
humanidade

ventania no caminho...
sabedoria!

descansar sobre um ninho...


paciência!

brincar com terra


feito criança — eu sou!

nascido diferente — calado


vaidoso feito um cisne
poeta!

agradecido e um pouco pobre...

mas toda vez que fico ciente


me sinto como se fosse
alguém importante — e também

muito sabido.
libertação

meus exílios no fundo da alma


são como palavras apagadas
um nó na garganta desde o princípio do mundo
atravessando os lugares do meu espírito agitado
me torna refém de um passado hostil

porém, ondas incessantes de esperança


numa voz tateando os olhos
me acalenta no cárcere

de repente um mundo novo descubro por dentro


meu lado oprimido desvencilha-se
estremecendo às margens de uma saída
percebo breves fragmentos da fala
que me fazem transcender

nas águas eu distinguia


minha própria face em silêncio
reclinado sobre inocências
alguém de uma outra hierarquia
numa presença incendiada, intangível aos olhos
mas sensível ao ser
fez renascer em mim um olhar
que eu já havia esquecido, e sem menos esperar
percebi que para ser livre preciso
melhor seletar
a quem cativo me rendo.
destroços

tantas vezes sem prudência


as feridas voltam, idênticas ou piores

por causa do corpo


os embaraços nos orbitam, bem como
as contusões

regressar quando as coisas não andam


não é sinal de covardia,
nem de derrota, nem de abandono

é natural viver comovido


saudades acontecem, surgem sem precisar

quem vive disponível


sempre corre o risco de, às vezes, acordar
meio abandonado, isso não tem jeito
faz parte e dói.
resistência

pouco me importa
os maus tratos, as ofensas
num pedestal estendi minha indiferença
sob um sol poente
acendo meus versos
apregoo enigmas impossíveis aos que
com dissimulada intolerância, desprezam
o meu direito de não abdicar
das coisas absolutas.
incompreensões

diante de mim
outra montanha
por dentro
crenças remotas

civilizações
antigas
trago no
hipocampo

confusão e loucura
diariamente
me assediam

conto para Deus


minhas incompreensões

me tornar poeta
foi a melhor saída
ainda mais que agora
tudo o que é
incógnito
cresce dentro de mim.
apreensões profundas

mudanças súbitas
e excêntricas no mundo
propagam nos olhos
agitações
perturbadoras

felicidades e renúncias se misturam

um encontro de vidas
acontece
o tempo todo

contudo,

no silêncio da noite
enquanto ao redor o mundo morre
muitas coisas ainda
sobrevivem dentro de mim

guardo muitos refúgios na memória

sempre refaço minha história


enquanto outros
em todas as direções vivem
como se
seus últimos dias
já tivessem chegado.
manhã menino

comoções na face da manhã


exigem que eu seja apenas menino
expressões sombrias invadindo a sala
sem qualquer receio me transtornam

crescer é revoltante mesmo quando os dias


não se movem no fundo de mim

contudo, numa estranha margem do existir


há clareiras e água fresca
sentidos dispersos que perante o sol aprecio

vozes não resolvidas não me convém


pressupostos de areia se tornam
agressões contínuas ao sono

perante o silêncio do tempo


anomalias retóricas são dispensáveis
meninos não precisam dessas coisas
minha relação com a tristeza se rompe
nas transparências de um amanhecer
enquanto luto para não envelhecer
também por dentro.
espaçamentos

numa rua longe daqui


o tempo escureceu
com impaciência nos olhos
as palavras não me serviram
nem a poesia me acolheu

exceder nossos limites


promove obscuras colheitas

realmente, não convém distâncias


em qualquer dimensão onde
tudo aquilo que há de bom em nós
se perca.
discrepâncias

contrição
é uma ave minguando

fugir da terra
para conhecer um sorriso
é o mesmo
que acolher profundezas

a mágoa
nos destitui da luz

nasce da morte
meu respirar sementes
de um sono profundo
meu sentir foi curado

o sonho
liberta e cativa

cheirando vinganças
é que o vento chama chuva
foi despertando paixões
que perdi a reverência.
o valor das feridas

uma janela aberta aos adornos do mundo


diante dos olhos fazem cavalgar a alma
mesmo em noite de traições

quem procura os limites do céu


navega firme mesmo onde a alegria é difícil

indiferente ao mau tempo


o sentimento que guardo sepulta o despeito

nunca usarei da coragem que tenho


para impetrar vinganças
seguirei sem me tornar rancoroso

de que valem certas feridas se estas


não me fizerem entender que aqui
ninguém é melhor que ninguém

sei do que sou capaz, mas jamais usarei isso


como justificativa para ser vão.
valsa infinita

ilesas na pedra
estão minhas convicções

sentir algo estranho é normal

qualquer espanto ao dormir


nunca mais me afligiu

em toda certeza inversa


há sempre um confronto
tudo o mais perde importância

na fronteira entre a diferença


e o contrário
sofro de afastamentos

fazer o quê se sou assim?

ser humano o tempo todo


é como dançar uma valsa infinita
sofrendo metáforas nos pés
enquanto são percorridos
labirintos espelhados

nem palavras nem olhares servem

sobram apenas dilemas entre


criatura e Criador
por detrás de suspiros viciados
em tudo aquilo que aponta
para o alto e para o chão
simultaneamente.
enxergar é preciso

olhar para as coisas


para cima

olhar para tudo


lentamente
infinitamente

olhar calado
sem acreditar
olhar para ver, encontrar

olhar simplesmente
com calma
o mais distante que puder

olhar acreditando
olhar sem fé
olhar para dentro
se olhar...
olhar novamente
...

até enxergar.
o tempo

nas fronteiras do tempo


passos a ermo
uma ambiguidade latente
anula a carne
confundindo faces, formas
consciência

luzes deixadas
nas encostas das eras
sinalizam perigos
não devemos ignorar
são mensagens da história
sabedoria

o vento que revela o destino


também anuncia
pacatamente
pelos anos afora
que lembranças importam
devemos cuidar
para que não se tornem
feridas
e de maus tratos
nos adoeçam

as clandestinidades
dos últimos dias
não nos fizeram bem
parece que
os frívolos momentos
em abraços
com o que é pérfido
de irreverência e estupidez
nos embriagaram
os sentidos

imagino que o tempo


à semelhança da angústia,
dá os seus sinais
suas correntes
são quase inquebráveis
é melhor se precaver
não deixando
que ele passe em vão
e nem que imprima
na memória
impiedosos remorsos
para a hora de morrer.
aves brancas no crepúsculo

faz muito frio hoje


de dentro
ouço os automóveis na rua
uma criança passando
canta suas aventuras no dia
infelizes são aqueles
que não percebem
tamanhas significâncias

o sol nasce
um brilho na face me transpõe
inaugura a realidade como sempre
num cotidiano universal

suspiro calmarias
num entardecer como qualquer outro
muitos silêncios

aves brancas no crepúsculo


derrubam paredes que surgiram
no acúmulo
de vãs passagens

ando desconfiado
me parece que a vida possui
tantos mistérios no ordinário
que depender de milagres
para superar tristezas
se torna algo completamente
desnecessário.
terra fértil

minha garganta
terra fértil

a palavra
antes de nascer
é fome
anseio, esperança
sobretudo
luz

não foi atoa


que o próprio Verbo
se fez carne
veio aqui
e armou entre nós
Sua habitação.
para isso é que nascem os poetas

uma voz interior me diz


que o melhor do homem
são as palavras
porém
é dúbio o local
de onde surgem

para isso
é que nascem os poetas

seus lábios calados


falam na letra
delimitando as distâncias
que separam a virtude
da voz
que se vende.

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