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USO DE SI E COMPETÊNCIA
1
Usamos esta expressão vulgar – “ir de mal a pior” – para substituir a que o autor utiliza – “de Charybde en
Scylla”. Trata-se de expressão idiomática que remete à mitologia grega (canto XII de Homero, na Odisséia,
acerca do périplo de Ulisses, retornando à terra natal, após a guerra de Tróia. A expressão evoca fugir de um
perigo (o monstro-turbilhão Charybde) para cair em outro pior (monstro Scilla) (NRT).
situação de trabalho, a atividade é sempre o centro desta espécie de dialética
entre o impossível e o invivível2.
Percebe-se, portanto, como é difícil delimitar exatamente o que podem
ser as competências da atividade em uma situação de trabalho, considerando
essas duas dificuldades. Vê-se como dificilmente se poderia delimitá-las,
definí-las, catalogá-las, avaliá-las. Pode-se, então, avaliar de imediato a
dificuldade que está em se apropriar de maneira realmente operacional do
conceito de competência, mesmo se, digo e repito: é legítimo examinar a
questão das competências, porque nenhuma atividade humana pode deixar de
lado a possibilidade de as pessoas engajadas numa operação responderem
positivamente e operarem com eficácia com vistas ao objetivo comum, em uma
situação mercantil ou não mercantil. Ninguém pode escapar a esta questão, mas
é preciso imediatamente avaliar a que ponto vai ser difícil dar um sentido
operacional à questão.
É justamente por essas razões que, em conversas anteriores, tive a
oportunidade de sugerir que existem três elementos presentes na noção de
competência e que não se articulam facilmente:
• existe algo que tem a ver com a apropriação de um certo número de
normas antecedentes, ou de elementos do “registro Um”. Dito de outra
forma, algo do âmbito do relativamente codificado, do relativamente
transmissível, do relativamente bem conceitualizado – e que
evidentemente estrutura, enquadra fortemente toda situação de
trabalho;
• há um elemento diferente que é, ao contrário, o do domínio relativo
àquilo que uma situação pode ter de histórico e de incessantemente
(parcialmente, mas incessantemente) inédito – o que, evidentemente, é
algo inteiramente diferente;
• existe ainda um terceiro elemento, dado que nesta situação, justamente,
cada um é remetido a gerir o inédito: a pessoa é remetida a si própria, e
portanto remetida a escolhas. Uma dimensão de valores, incontornável,
vem cruzar ou se intercalar, ou se articular com as duas primeiras
dimensões: este terceiro elemento é, consequentemente, de uma
natureza absolutamente diferente.
2
Invivable, no original (N.T.).
são “heterogêneas” e que são, de uma certa maneira “incomensuráveis”, isto é
que não podem ser comparadas.
Daí a idéia – mesmo se isso é forçosamente um pouco artificial – para avaliar
essa dificuldade, de mostrar que na noção de competências, elementos
heterogêneos que eu chamo de “ingredientes” se combinam: ingredientes, para
melhor mostrar que, como em uma boa mistura, é preciso um pouco de cada um
deles; mostrar que eles são diferentes uns dos outros, que a pimenta não é a
noz moscada, ou o gengibre, que é diferente; contudo, em uma boa culinária se
deve saber colocar uma pitada de cada um desses ingredientes.
Parece-me que um certo número de ingredientes devem então se articular
no agir em competência. Eu diria “agir em competência”, ao invés de na
competência, justamente porque competência não é uma noção simples e
homogênea.
Um certo número de ingredientes é necessário a todo agir em competência,
para cada pessoa, numa dada situação: é preciso insistir bem nisso. O que não
impede generalidades relativas no que vamos dizer, mas se queremos ser muito
precisos e não deixar escapar qualquer possibilidade de evoluções positivas, é
necessário considerar cada um em sua situação para “caracterizá-la” – em
tendência e com muitas reservas –por um certo perfil de ingredientes. É o que
eu gostaria de evocar agora. Como eventualmente poderíamos caracterizar
esses diversos ingredientes compondo o perfil de uma pessoa, o perfil de seu
tipo de “agir em competência” numa determinada situação?
histórico de uma importante pelo que ele permite pensar, acerca das
situação de trabalho. operárias de componentes eletrônicos, e o agir em
competência da operadora que vimos no esquema 1.
Trata-se da capacidade de se antecipar frente aos espaçamentos entre os
pinos da resistência, que frequentemente não correspondem exatamente ao
que é preciso; antecipar um certo número de eventos, de problemas que podem
tanto vir da vizinha quanto dos materiais enviados, ou da velocidade da base,
não sei. Eu não sei justamente porque é necessário estar na situação local para
sabê-lo! Logo, isso é um agir, uma forma do “agir em competência”, que é
totalmente específico – e que está ligada à historicização da situação, ao
caráter histórico, à infiltração da história na situação de trabalho.
Um exemplo de porte refere-se a tudo o que se pode dizer sobre as
entidades coletivas relativamente pertinentes, a partir desta famosa frase4: “a
17 acabou de entrar, Dodó5, vai ser o teu retorno”. Para que isso funcione,
supõe-se um “agir em competência” coletivamente trabalhado, estocado,
produzido no interior dessas entidades relativamente pertinentes. Isso supõe
também relações entre tais e tais pessoas, supõe que funcione em Miramas6 –
mas não funcionaria em outro lugar, ao menos não da mesma maneira. É toda
uma impregnação da história simultaneamente humana, técnica, viva, da
situação, que permite ao “agir em conjunto” produzir com desempenho – e que é
totalmente diferente do primeiro ingrediente.
Aliás, esse é um problema maior, do qual fala Abdallah Nouroudine em
outra conversa7, o das transferências de tecnologias. De fato, nesse tipo de
projeto a dificuldade se situa na transferência de uma tecnologia que foi
pensada no “não contextualizado”. Justamente, para que funcione, é preciso
contextualizar o não contextualizado: em um país, em uma cultura, em uma
língua.
Neste segundo ingrediente, que é o da impregnação, da inscrição na
história, consideramos:
3
Ver anexo ao capítulo 1 (NT).
4
Ver anexo ao capítulo 5 (NT).
5
Bobo, no original, enigmática forma de nomear um colega de trabalho, analisada no anexo ao capítulo 5.
Como em francês é uma expressão familiar como dodói, em português, optamos por ela (NRT).
6
Cidade francesa onde se localiza um grande centro de triagem ferroviário (NRT).
7
Ver capítulo 4 (NRT).
• por um lado, toda a importância do que chamei o “corpo-si”, porque a
presença no si8 do histórico da situação passa muito, nas relações
humanas, por todas as sensações, por tudo o que é registrado pelo corpo,
pela memória, sem que se pense realmente – o que, por isso mesmo, gera
um problema muito delicado, que é o do pôr em palavras esta segunda
forma do agir em competência, deste segundo ingrediente. Precisamente
porque o “corpo-si” é aí muito importante.
• vê-se também que é preciso um certo tempo, considerando que temos aí
o problema que chamei de temporalidade ergológica. Mas quanto tempo?
Tudo depende das situações e das pessoas. Para que este ingrediente se
cristalize e para que este “agir em competência” se constitua – esta
forma que é impregnação da história –, é necessário uma duração
específica, tanto em relação à pessoa quanto à situação.
O terceiro ingrediente
de uma competência: a
8
Soi, no originalde
capacidade (NT).
articular a
face protocolar e a face
singular de cada situação de
trabalho.
É preciso tentar fazer circular permanentemente o caso típico e a pessoa –
ou o caso singular e a pessoa – ou o caso em sua singularidade. Mesmo que, para
tratar o caso, para tratar a situação, sejam utilizados recursos codificados,
aprovados, do lado do protocolo, estes devem ser ajustados permanentemente
ao que a situação tem de particular. Acho que se trata realmente de algo que
dá muito trabalho, pois este pôr em sinergia ou em dialética dos dois primeiros
ingredientes é um importante trabalho.
Já pudemos dar exemplos, principalmente no setor industrial. Mas isso é
muito característico de todos os tipos de situações de serviço ou de trabalho
social, por exemplo: seja nos guichês de banco ou no trabalho social, quando se
trata de orientar pessoas, seja no caso de jovens em uma Missão Local9, ou no
caso da Proteção Jurídica da Juventude, etc.
Vemos chegar até nós pessoas que se encaixam em determinados
quadros e é preciso conhecer esses quadros. “Quadros”, essa expressão
significa: o que é possível fazer para ajudar essas pessoas, que instituições são
pertinentes, em que quadro jurídico eles se encaixam, o que é possível ou
impossível fazer. São necessários conhecimentos para chegar a ser eficaz
(ingrediente 1). Mas isso deve ser colocado em dialética com o que se percebe
da pessoa, do jovem em questão. Ele mesmo pode corresponder a um perfil,
encaixar-se em certos quadros. Pode-se dizer: “é um jovem de tal grupo e que
vive em tal bairro, onde há um certo número de problemas que eu conheço”.
Poder dizer isto (ingrediente 2) é importante, mas não suficiente para lidar
com a pessoa singular, porque mesmo tais características não serão jamais
suficientes para ter um diálogo fecundo e real com a pessoa, com o jovem que
está face a você: um beneficiário de RMI10, uma pessoa em dificuldade.
Há um trabalho muito complicado que consiste em tentar resolver de
imediato, em estabelecer uma relação entre o tipo, definido abstratamente, e a
pessoa singular. Esta sinergia é uma verdadeira dificuldade, um importante
trabalho. É o ingrediente 3.
Vou tentar ilustrar isso com este esquema 5 abaixo, estas imagens um
pouco estranhas, dado que tais ingredientes não são de fácil expressão. Esse
esquema é a maneira como esses diferentes ingredientes foram representados
por Louis Durrive.
11
Baccalauréat, no original (NT).
a fazer e deve administrar a prescrição médica, é sem dúvida um pouco menos
implicada nesse encontro singular.
Quanto ao segundo ingrediente, coloquei ali o médico, embaixo, sob os
outros, porque seu trabalho não consiste em visitar o tempo todo as salas do
hospital. Consiste em prescrever e, em seguida, ver como a prescrição foi
recebida, acompanhar a evolução da doença, a terapêutica e o prognóstico, etc.,
mas ele tem uma relação com o paciente muito menos individualizada. Logo, ele
sabe muito menos sobre o paciente do que:
• a auxiliar de enfermagem, muito mais frequentemente confrontada com
o doente, por todos os serviços que ela presta, pela ajuda que ela dá à
enfermeira;
• e que a própria enfermeira, profissional que precisa ter um bom
conhecimento da pessoa que está de cama.
12
Milieu, no original (NT).
Logo, há uma dimensão de valores que chega aqui no agir em competência
– e que vai introduzir um espécie de lacuna, uma descontinuidade na
preocupação de avaliar as competências.
Como disse, esse pôr em sinergia não ocorre simplesmente, por conta
própria. É um trabalho que a pessoa deve demandar a ela mesma. É
verdadeiramente “um uso de si por si“, porque ninguém pode descrevê-lo nem
prescrevê-lo. É um importante trabalho.
E se é um trabalho essencial, a questão se coloca como para todo trabalho: o
que nos faz agir? Ora. o que nos leva a fazer este trabalho de pôr em sinergia,
ao menos em parte, está no que o meio de trabalho, portanto a organização do
meio de trabalho, pode eventualmente constituir para nós “nosso” meio –
O quinto ingrediente de uma parcialmente “nosso” meio.
competência : a ativação ou a Se o meio de trabalho vale para nós, mais ou
duplicação do potencial da menos, como “nosso” meio de trabalho, vemos
pessoa, com suas incidências
como isso favorece o pôr em sinergia, como a
sobre cada ingrediente.
pessoa, – na medida em que percebe que um
pepino, uma complicação vai se constituindo –,
vemos como tal pessoa vai ao mesmo tempo
buscar:
15
Ver anexo ao capítulo 5 (NRT).
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Société Nationale des Chemins de Fer – Sociedade ferroviária nacional francesa (NT).
• devo aceitar minhas responsabilidades, porque sou eu quem devo assumir
as consequências se as coisas não funcionam, mas é por isso talvez que
sou mais bem remunerado que os outros;
• ao mesmo tempo, devo estimar em que, do ponto de vista da experiência,
do ponto de vista das relações com os colegas, os outros são talvez mais
evoluídos, enfim, mais “experts” que eu,
• e, permanentemente, ao mesmo tempo que assumo minha posição
hierárquica e minhas responsabilidades que criam desnivelamentos entre
eu e os outros, devo fazer um verdadeiro trabalho de contra-
desnivelamentos, isto é, restaurar igualdades ou superioridades parciais
sobre tal ou tal campo, sobre campos de competência que não são
formalizados, que não são bem conhecidos, que são as vezes invisíveis,
mas que são absolutamente necessários – e que podem, por exemplo, se
referir ao ingrediente 2 ou ao ingrediente 3.