no trabalho, aqueles que trabalham são ao mesmo tempo sujeito e objeto desse
trabalhar, sem que seja possível desembaraçar esses dois momentos. É nesse sentido que se
torna mais difícil dimensionar competências de um ser que trabalha in abstrato, sem
considerá-lo inserido em situações de trabalho real. a qualificação, no sentido que
veiculamos aqui, é uma promessa entre o conceito e o ser.
essa maneira de interrogar a qualificação nos permite confrontar o saber adquirido
na formação sistemática e o saber adquirido na prática, incitando a se perguntar sobre o
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estatuto epistemológico desses dois tipos de saber e a importância de uma relação entre
ambos. permite ainda colocar no horizonte o limite da classificação em torno dos tipos de
qualificação, testemunhando que muitas competências estão em ação e processam-se no ato
de trabalhar. tais interrogações nos permitem compreender os limites de uma definição
puramente conceitual, descontextualizando o termo e deixando escapar o vivido do trabalho
como experiência local de situações de trabalho: “a atividade de trabalho que é sempre
gestão, se re-preescrevendo a si mesma regras operatórias, não cessa de se formar nesse
movimento; esta aquisição vindo a ser um elemento maior de todo agir eficaz” (schwartz,
2000, p. 331).
a noção de qualificação compreendida apenas do ponto de vista de uma relação
social contratual obscurece o campo de análise das habilidades desenvolvidas no seio de
uma atividade de trabalho qualquer, reenviando-nos à idéia de uma “substância” que porta
o sujeito que trabalha. a qualificação considerada do ponto de vista da atividade humana
trabalhando é um constante vir a ser pela experiência do trabalho. compreender a
qualificação do ponto de vista do exercício do trabalho nos convida a passar ao conceito de
competências, atribuindo-lhe novos sentidos.
* *
*
o fortalecimento do termo “competências” em detrimento daquele de qualificação
no bojo da recente evolução no mundo do trabalho, a despeito das implicações do ponto de
vista das relações de trabalho flexíveis que visam instituir, implica uma reunificação entre o
trabalhador e o trabalho e desvela a inevitável implicação do sujeito individual presente no
exercício do trabalho. esse movimento permite ampliar nossa percepção do que está em
jogo na realização das competências colocadas em obra no trabalhar.
radical reordenamento das relações entre empresas, maior integração nas relações entre
atividades produtivas e financeiras. nesse contexto, no coração da atividade de trabalho,
haveria uma transferência crescente de operação física e mecânica para um trabalho do tipo
resolução de problemas. afirma-se a importância de reagir aos acontecimentos, e não
somente respeitar as normas prescritas de procedimentos. haveria crescente terciarização –
ampliação das relações de serviço – em todas as atividades de trabalho no setor industrial.
como tendência importante, pontua-se ainda o crescimento das dimensões de “expertise”
nas funções e postos de trabalho. aumenta a inadequação entre as requisições dos postos de
trabalho e a qualificação requerida dos trabalhadores para ocupar tais postos.1 cresce a
exigência de polivalência pela nova configuração técnico-organizacional e que supõe
combinações de saber e habilidade diferentes da formação profissional em vigor. os limites
da qualificação aparecem aqui em função das dificuldades em gerenciar a distância entre as
“formas declarativas dos conhecimentos”2 a sua “forma operativa” no exercício das
competências.
o “paradigma das competências”, cujo impacto é bastante diversificado segundo
realidades nacionais e setores econômicos, nasce dessa nova experiência no pólo da gestão
do trabalho nos conduzindo de uma lógica de postos e níveis de trabalho para uma lógica de
função. os impactos na gestão dos recursos humanos dizem respeito principalmente à
flexibilização das relações de trabalho, bem como a novas normas de avaliação de
produtividade, podendo incidir até nos critérios de remuneração, ou seja, dinamizar as
formas de regulação dessas relações no processo produtivo. para schwartz (2000: 469):
outra zona que vem sofrendo impactos do “paradigma das competências” são as
ligações político-institucionais entre oferta educacional e demandas de mão-de-obra
qualificada pelo mercado de trabalho. nesse âmbito, fala-se em inadequação, ineficiência e
1 cf. sobre essa transformação na natureza da atividade de trabalho no contexto das transformações nos modos
de produção de bens e serviços, conferir dubar, 2001; zarifiam, 1995.
2 termo empregado por dubar no francês “formes prédictibles des connaissances”.
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ineficácia da formação ofertada pelo sistema educacional para atender às novas exigências
oriundas de um mercado em constante mutação. no bojo dessa comunicação, haveremos de
nos limitar a citar as principais tendências que se configuram nesse âmbito: um debate
aberto em torno da institucionalização dos diplomas e dos dispositivos de certificação
profissional; um questionamento quanto à pertinência da formação profissional na etapa
inicial do processo de escolarização, acompanhado, de um lado, de uma transformação das
formas de organização dessa formação em direção a modelos de alternância diversos e, de
outro, de uma tendência à internalização da formação profissional e de sua certificação
pelas empresas.
avolumam-se as práticas de análise de competências. há uma expansão das firmas
de consultoria em análise de competências com seus procedimentos em forma de grades de
análises, ferramentas padronizadas e estabilizadas que buscam correlacionar os postos de
trabalho e conteúdos de empregos reconfigurados e a competência dos homens para ocupá-
los.
É no horizonte mesmo aberto pelo “paradigma das competências” que se coloca o
problema da análise das atividades de trabalho para dimensionar tais competências que
podem ser conscientes/inconscientes, uma vez que, quanto mais o trabalho é familiar ao
trabalhador, mais o subjacente e o implícito no exercício dessas competências são difíceis
de se verbalizar. sendo necessário reconhecer que a experiência de expressar em palavras
sua competência é também uma experiência que pode ser desenvolvida, e que as próprias
situações de trabalho podem favorecer o aparecimento e a consolidação das competências
requeridas numa função qualquer de trabalho.
esse debate interessa à linha de pesquisa trabalho & educação por várias razões que
ultrapassam o reconhecimento dos interesses político-institucionais em jogo. em última
instância, essa discussão em torno das competências nos reenvia a um reconhecimento
pelas empresas de que as atividades de trabalho são atravessadas por valor e saber
estratégicos que podem assegurar maior produtividade. obviamente esse reconhecimento
tem conteúdo conservador, uma vez que diz respeito à ilusão neo-taylorista dos empresários
em criar dispositivos capazes de enquadrar, controlar, dirigir e avaliar a competência
humana em proveito de maiores ganhos de produtividade. trata-se de um movimento que, a
nosso ver, reforça “a contrapé” à idéia do trabalho como espaço de formação, bem como do
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trabalho como experiência formadora; ou seja, no fundo, esse debate promove abertura, no
sentido do reconhecimento da dimensão educativa do trabalho humano.
poderíamos seguir analisando essa nova cultura avaliativa no seio das empresas de
serviços ou produtos e mesmo no seio dos serviços públicos.3 entretanto, preferimos
observar tais competências de um ponto de vista ergológico, ou seja, do ponto de vista da
atividade de trabalho situada. nessa perspectiva abre-nos um vasto horizonte sobre a
formação humana e o uso desta praticado no trabalho.
3 sobre essa perspectiva, conferir m.n.ramos, a pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? 2ª
edição, cortez, 2002. conferir também, para um entendimento de casos de práticas avaliativas de empresas
francesas, d.cunha, cap. ii, “l’éducation em travail: enjeux de l’évaluation, certification et formation de
l’activité industrieuse” da tese de doutoramento intitulada “la formation humaine entre le concept et
l’expérience du travail: éléments pour une pédagogie de l’activité”, universidade de provence, frança, 2005.
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questões que se interpõem na realização das tarefas determinadas por outrem ou por si
mesmo. esse trabalhar, como gerir variáveis diversas e resolver problemas, é
profundamente histórico, pois, se a dimensão do protocolo, do planificado, falha, o
produtor entra em ação com sua competência para "preencher os furos". nesse processo, ele
se qualifica, consolida e/ou recria tipos de saber, ele ganha em experiência.
como a dimensão histórica perpassa os protocolos do trabalho, assegurando que
todo trabalho seja, em certa medida, encontro, contingência, o segundo ingrediente da
competência é aquele adquirido, em parte, na experiência do trabalho que faz o homem
produtor. essa dimensão do contingente que atravessa toda situação de trabalho não permite
que os gestores padronizem completamente ex-ante, não lhes permite uma antecipação do
vir a ser histórico nessas situações. paradoxalmente, nesse momento, é o homem produtor
que antecipa para além do previsto nos protocolos que regem sua lida, tomando como
pontos de referência o saber da experiência que possui. ele age, por exemplo, segundo o
saber dos códigos de trabalho e das regras de conduta que tem de seu coletivo de trabalho.
esse ingrediente nos remete a uma competência complexa, profundamente ancorada
numa cultura muito específica, geralmente mal formulada ou de difícil formulação,
particularizada pelos hábitos coletivos locais de tratamento dos imprevistos. as
características dessa competência tornam difíceis sua delimitação; seus ingredientes não
podem ser verbalizados nem avaliados segundo normas das disciplinas científicas, com a
ascese das conexões conceituais próprias ao primeiro ingrediente. visto que essa
competência é dificilmente verbalizável, ela é também de difícil transmissão, o que requer
tempo de incorporação, e, sendo feita em situação, requer cooperação daqueles que
“conhecem” o trabalho. por sua maneira específica de armazenamento, de incorporação, de
apropriação, essa forma de saber que gera competência tende a constituir-se com base no
diálogo com o meio particular de vida e trabalho.
nenhuma situação real de trabalho está desprovida de um protocolo de ação e,
simultaneamente, de historicidade. para efeito de análise, essa dimensão pode ser pensada
como pólo extremo, mas que está imbricado de modo orgânico na constituição das
situações de trabalho.
por outro lado, os homens produtores têm, em graus diferentes, as competências
relacionadas à experiência do conceito e aquelas relacionadas à experiência das situações
14
5 cf. <http://www.ergologie.com>.
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motivação para o saber – a relação com o saber, quinto ingrediente que povoa a
competência do homem produtor: o desejo de maior qualidade no seu trabalho favorece o
esforço de aprendizagem necessário para buscar conhecimento e saber, indispensáveis para
tanto. estes dois últimos ingredientes estão fora do alcance das prescrições, das
normatizações gerenciais numa situação de trabalho dada. não se pode prescrever amor ao
saber ou ao bem comum. essas manifestações se constroem nas mais diversas experiências
de vida e trabalho do produtor e nos projetos herdados de coletividades as quais integrou.
finalmente, a competência para gerir e criar sinergias entre individualidades e
coletivos de trabalho. esse sexto ingrediente está sempre presente em trabalhos coletivos,
sendo necessário para assegurar a complementaridade dos diversos ingredientes da
competência, a saber: implica avaliar a si mesmo, suas competências e as dos colegas, a fim
de ajustar as estratégias coletivas de ação. como em todas as situações de trabalho, também
no trabalho escolar existe cooperação. essas sinergias são mais ou menos favorecidas pela
organização do tempo escolar. são produto de interação informal ou intencional em outros
espaços não escolares ou mesmo nos corredores, na cantina, na sala dos professores. essa
sinergia de coletivos de trabalho é tecida em pequenas negociações cotidianas para realizar
um projeto em comum.
* *
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o saber, a qualificação e a competência assim problematizados nos reenviam,
portanto, à dimensão genérica da atividade humana, a uma aptidão geral para viver
colocando em sinergia ingredientes heterogêneos que se expressam no ato do trabalho. as
competências, qualificações e saberes, consideradas a partir do ponto de vista da atividade
humana em trabalho, guardam fronteiras muito fluídas, seriam dimensões da formação
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humana, marcadas evidentemente pela dimensão axiológica própria aos seres humanos. É
por isso mesmo que, para serem compreendidas, exigem ir além das situações de trabalho
propriamente ditas e de uma discussão restrita ao novo modo de gestão capitalista da força
de trabalho. para um re-conhecimento da magnitude dessas dimensões humanas, será
preciso ampliar o horizonte teórico com que analisamos o trabalho humano na
contemporaneidade, já que, se a formação humana se configura nesse confronto de normas
antecedentes e re-normalizações que caracteriza todo trabalhar, paradoxalmente ela o
transcende.
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referências bibliográficas