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Um visitante salta
entre pilastras no
Memorial do
Holocausto, em
Berlim
Florence Noiville
Imre Kertész (pronuncia-se "quêr-tésh", sobrenome que quer dizer "jardineiro", em húngaro)
nasceu em 1929, em Budapeste, em uma família judia. Em 1944, aos 15 anos, foi deportado a
Auschwitz e posteriormente a Buchenwald. Em 1945, tornou-se jornalista na Hungria
comunista e depois, a partir dos anos 50, se dedicou à literatura e à tradução. Escritor das
sombras, precisava se refugiar para escrever nos "expressos", os pequenos cafés esfumaçados
de Budapeste. Em 2002, tornou-se o primeiro escritor húngaro a receber o Nobel de
Literatura.
Na entrevista a seguir, Kertész fala do paradoxo que é fazer literatura sobre o Holocausto -"é
impossível escrever sem ferir", ao mesmo tempo em que o romance tem "de fazer com que o
leitor deseje virar a página"- e, ao tratar de suas influências, diz ter aprendido distanciamento
e indiferença com Albert Camus, e realismo com Kafka.
Pergunta - É a primeira vez que o senhor aceita receber um jornalista em sua casa, em
Berlim. Há alguns anos, o senhor deixou Budapeste para se instalar nessa cidade, que foi a
capital do Terceiro Reich. E hoje o senhor se exprime em alemão. Não é um paradoxo,
para alguém que foi deportado a Auschwitz com 15 anos e cuja obra é completamente
marcada pela experiência no campo de extermínio?
Imre Kertész - Berlim, é verdade, se tornou minha cidade de adoção. Isso pode parecer
estanho, mas jamais considerei o Shoah [Holocausto em hebraico] como conseqüência de um
ódio irremediável dos alemães pelos judeus. Senão, como explicar o interesse dos leitores
alemães pelos meus livros? Foi na Alemanha que realmente me tornei escritor. Não no sentido
de renome, mas foi na Alemanha que meus livros produziram sua verdadeira impressão.
Quanto ao idioma alemão, ele era obrigatório no colégio, na Hungria. Os autores estrangeiros
não eram traduzidos para o húngaro, e eu os descobri em alemão. Tornei-me tradutor de
Nietzsche, Hoffmanstahl, Schnitzler -e não me parece concebível dizer que a língua de Arthur
Schnitzler e de Joseph Roth é a língua dos nazistas. O alemão, para mim, continua a ser a
língua dos pensadores, não a dos carrascos.
Pergunta - Como foi a acolhida dos seus trabalhos pelo público alemão?
Kertész - Na Hungria, eu tinha apenas um pequeno círculo de leitores fiéis. Na Alemanha,
pela primeira vez tive a impressão de que um escritor podia ter influência. Eu -que pertenço à
última geração de sobreviventes, aqueles que nem tinham 15 anos em Auschwitz- recebi
grande número de cartas de jovens leitores alemães que me agradeciam por lhes ter
"explicado" os campos de maneira tão clara e direta.
A Alemanha, aliás, realizou um grande trabalho quanto ao seu passado, enquanto na Hungria
o assunto continua a ser tabu. Quando comecei minhas pesquisas sobre o Shoah, em 1961,
não encontrei quase nada. Foi no mesmo ano em que se iniciava o processo [em Israel] contra
[Adolf] Eichmann [responsável pela logística da deportação de judeus aos campos de
concentração], mas o caso merecia apenas pequenas notas na imprensa húngara. Foi com base
em uma dessas notas que fui informado sobre a existência de um livro sobre o processo. A
autora era uma mulher cujo nome eu desconhecia, [a filósofa alemã, naturalizada norte-
americana] Hannah Arendt [1906-1975]. Procurei o livro por toda parte, mas era impossível
encontrá-lo em Budapeste. Precisei esperar que o Muro de Berlim caísse antes de ler
"Eichmann em Jerusalém" (Cia. das Letras).
Pergunta - Como o sr. inventou essa linguagem? O sr. chegou a dizer que escrevia para
"ferir" o leitor?
Kertész - No que tange o Shoah, é impossível escrever sem ferir, porque o peso é depositado
sobre os ombros do leitor. É preciso que as palavras tenham um efeito, no sentido de
"wirkung", que elas penetrem a carne. Ao mesmo tempo, há um paradoxo. O romance precisa
"agradar", no sentido de fazer com que o leitor deseje virar a página. É uma armadilha à qual
ele é atirado para que seja receptivo. Se sou cruel ou odioso demais, não conseguirei obter
aquilo que desejo.
Mas essa é uma reflexão feita a posteriori. É evidente que não era isso que eu tinha em mente
quando escrevi "Sem Destino". De forma alguma. O que me obcecava era tentar evitar a pose
literária. Eu pensava na lona que recobria as mesas das livrarias húngaras -um pano grosseiro
sobre o qual se depositavam os livros que era possível adquirir por cinco ou dez florins
apenas. Queria evocar o grão bruto desse tecido, alguma coisa de grosseiro como nos
romances populares ou policiais. Para isso, era preciso colocar os detalhes em primeiro plano:
diante de um oficial uniformizado, meu narrador só pensa no piolho que lhe causa coceira. É,
assim, uma maneira de mostrar a impossibilidade de escrever com meios racionais sobre
aquele mundo.
Pergunta - A sua compreensão da música não exerce, também, influência sobre a maneira
pela qual o sr. reconstrói a linguagem?
Kertész - Exato. Ouço música todos os dias antes de escrever. No momento, prefiro Bach e
Mozart. Na época de "Sem Destino", era a música atonal que me assombrava -Berg,
Schoenberg... Da mesma forma, tentei criar uma linguagem atonal. A atonalidade é a anulação
do consenso. Nada mais de ré maior ou mi bemol menor. A tonalidade é abolida, como os
valores da sociedade. O baixo contínuo é destruído, o que significa que o sol (não a nota
musical, mas aquele sol sob o qual marchamos a cada dia) deixa de ser fixo e desaparece a
grade de referências que dão fundamento à razão. Idéias como honra e felicidade se tornam
risíveis. Tudo está em movimento, nada é certo. Do ponto de vista da linguagem, é isso que
penso ter criado em "Sem Destino". Depois, continuei a brincar com essas descobertas. Em
"Kadish - Por uma Criança Não Nascida" (Imago), a perspectiva não era tão alienada -é um
homem que fala, uma pessoa que percebe claramente as leis da vida e que cometeu apenas um
erro: se apaixonar.
Pergunta - Como o sr. se situa com relação aos demais autores que descreveram o universo
dos campos de extermínio?
Kertész - Odeio a pintura dos horrores. O que me interessa é a distância. A língua é limitada e
seus limites são intransponíveis. É preciso portanto rompê-los do interior. Admiro os autores
que conseguem trabalhar com os meios fornecidos pela literatura e ainda assim ultrapassar as
fronteiras do dizível. Recentemente, reli "A Dor" (Nova Fronteira), de Marguerite Duras: nada
de extraordinário, e no entanto tudo é expresso sobre aquilo que Duras designa como "a
desordem fenomenal do pensamento e do sentimento". Vemos aquela mulher cujo marido
escapou de um campo. Ela o contempla "com suas calças cujas pernas flutuam como velas".
"Quando faz sol, pode-se ver o brilho através das mãos dele".
Ele começa a comer. Sua fome toma proporção assustadora. Vemos a mulher que o contempla
da porta da sala e sentimos que se tornou uma estranha para o homem. É espantoso tudo que
se reflete nas ações mínimas daquele dia. Poderia citar também Tadeusz Borowski, polonês
deportado para Auschwitz e subseqüentemente para Dachau. Pouco depois de sua libertação,
escreveu contos reunidos sob o título "O Mundo de Pedra". A objetividade sarcástica de seu
estilo me faz pensar em Mérimée. Mas o grande, o maior, escritor sobre os campos, para mim,
sempre será Jean Améry.
Pergunta - Em "A Bandeira Inglesa", o senhor evoca a repressão, pelos tanques soviéticos,
à insurreição de 1956 em Budapeste. O sr. trabalhava como jornalista...
Kertész - Quando voltei dos campos, estava só. Em Budapeste, quis pegar o ônibus e exigiram
que eu pagasse a passagem. O apartamento de minha família estava ocupado. Era estranho;
porque eu ainda era tão novo, tinha de retornar à escola em um momento em que eu já tinha,
pode-se dizer, uma certa experiência de vida...
A seguir, veio a ditadura stalinista. Durante dois anos fui jornalista. Mas como eu era incapaz
de escrever sob ordens, terminei demitido. Foi então que decidi me tornar escritor. Não um
escritor oficial, mas um clandestino da escrita. Qualquer pessoa que tenha vivido sob o
nazismo e o stalinismo acumulou experiência suficiente de ditadura para traduzi-la em forma
literária.
Pergunta - De onde surge esse seu distanciamento sarcástico, esse aparente isolamento que
é a marca de todos os seus livros?
Kertész - Fui influenciado por Camus. Para mim, o grande exemplo dessa "distância" é "O
Estrangeiro" (Record). Tinha 25 anos quando descobri aquele pequeno livro. Eu me disse que
era tão fino que não devia custar caro demais. Não sabia nada sobre o autor e estava longe de
suspeitar que sua prova me marcaria tanto, com o passar dos anos. Em húngaro, "O
Estrangeiro" foi traduzido com o título "O Indiferente". Indiferente no sentido de distanciado
do mundo, distanciado de si mesmo mas também no sentido de liberto, ou seja, de homem
livre.