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Para o Sr.

GEORGE BOYD MACMILLAN


ALLOA, SCOTLAND
Em reconhecimento por
Uma longa e estimulante amizade

Índice

A casa do vale

Uma vigília na noite

Uma Invasão de parentes

Um conclave familiar

Só um diamante corta outro diamante

Lua nova

O Livro de Ontem

Prova de fogo

Uma providência especial

Dores de Crescimento

ILSE

A Casa de Tansy Patch

Uma Filha de Eva

Alimentar a Imaginação

Tragédias variadas

Cheque mate para miss Brownell

Epístolas vivas

Padre Cassidy

Amigos novamente

Por correio aéreo

"Romântico mas não confortável"

WYTHER GRANGE

Negócios com fantasmas

Um outro tipo de felicidade

"Ela não pode ter feito isso"

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Na costa da baía

O voto de Emily

Uma teia de sonhos

Sacrilégio

Quando a cortina se levanta

O grande momento de Emily

A CASA DO VALE

A casa do vale estava no “meio do nada”, ou pelo menos era o que


diziam as pessoas de Maywood. Situava-se numa pequena concavidade
cheia de relva, parecendo não ter sido construída como as outras casas
mas como se ali tivesse brotado como um grande cogumelo castanho.
Chegava-se lá por uma grande alameda verde, quase escondida pela
grande quantidade de jovens bétulas que a rodeavam. Dela não se
avistavam quaisquer casas, apesar da aldeia estar logo do outro lado
da colina. Ellen Greene dizia que era o sítio mais sozinho do mundo, e
que não teria lá permanecido um dia, se não fosse por ter pena da
criança.
Emily não sabia que era motivo de pena nem sabia o que significava a
solidão. Tinha muita companhia. Havia o Pai-–e o Mike-–e a Saucy Sal.
A Dama do Vento andava sempre por ali; e haviam as árvores-–Adão e
Eva, o Pinheiro Galo, e todas as jovens bétulas amigáveis.
E havia também o flash. Ela nunca sabia quando é que poderia vir, mas
a possibilidade de ocorrer mantinha-a sempre excitada e expectante.
Emily tinha-se esgueirado de casa naquele frio fim de tarde para dar
um passeio. Ela lembrou-se desse passeio de uma forma muito nítida
toda a sua vida–-talvez porque teve uma certa beleza etérea–-talvez
porque o flash veio pela primeira vez em semanas–-mas mais
provavelmente pelo que aconteceu depois de voltar.
Tinha sido um dia frio e pardo do início de Maio, ameaçando chuva mas
não chegando a chover. O Pai tinha descansado todo o dia na poltrona
da casa de estar. Tinha tossido muito e quase não tinha falado para
Emily, o que era uma coisa muito invulgar nele. Esteve quieto a maior
parte do tempo com as mãos juntas por detrás da cabeça e os grandes
olhos azuis-escuros fixos de forma sonhadora e perdida no grande céu
enevoado que se via por detrás dos ramos dos dois grandes abetos do
jardim da frente-–Adão e Eva, chamavam sempre a esses abetos, por
causa de uma semelhança que tinham na sua posição, em relação a uma
pequena macieira entre eles, com uma ilustração antiga do Adão e Eva e
da Árvore do Conhecimento que havia num livro da Ellen Greene. A
Árvore do Conhecimento parecia mesmo aquela pequena macieira agachada,
e o Adão e a Eva estavam cada um de seu lado da árvore, muito hirtos e
direitos como os abetos.
Emily interrogava-se sobre o que estaria o Pai a pensar, mas nunca o
maçava com perguntas quando ele estava pior da tosse. Só gostava de
ter alguém com quem falar. A Ellen Greene nesse dia também não queria
falar. Não fazia nada senão resmungar, e isso significava que estava
perturbada com alguma coisa. Tinha resmungado ontem quando o doutor
lhe murmurou qualquer coisa ao ouvido na cozinha, e tinha resmungado
quando dera o lanche de pão com melaço à Emily à hora de deitar. Emily
não gostava de pão com melaço, mas comeu-o porque não queria magoar a

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Ellen. Não era costume a Ellen deixa-la comer antes de se deitar, e
quando o fazia significava que lhe estava a fazer um favor especial.
Emily tinha esperado que o ataque de resmunguice se dissipasse durante
a noite, como geralmente acontecia; mas não foi o que se deu, e por
isso Ellen não era grande companhia. Não que alguma vez o tivesse
sido. Certo dia, num ataque de exasperação, Douglas Starr dissera a
Emily que “Ellen Greene é uma coisa gorda, velha e preguiçosa sem
nenhuma importância”, e Emily, sempre que olhava para a Ellen a partir
daí, achava que a descrição era perfeita até ao último pormenor. Por
isso Emily enrolara-se no velho cadeirão de orelhas e leu “O Progresso
do Peregrino” toda a tarde. Emily adorava “O Progresso do Peregrino”.
Tantas vezes seguira o caminho estreito e recto com o Christian e a
Christiana – apesar de não gostar das aventuras da Christiana nem
metade do que gostava das do Christian. Em primeiro lugar, havia
sempre muita gente com a Christiana. Não tinha nem metade do fascínio
da figura solitária e intrépida que enfrentava sozinha as sombras do
vale Sombrio e o encontro com Apollion. A escuridão e os goblins não
eram nada quando se tinha muita companhia. Mas estar sozinho – ah,
Emily tremia com um horror delicioso só de imaginar!
Quando Ellen anunciou que o jantar estava pronto Douglas Starr disse a
Emily que fosse comê-lo.
“Eu não tenho vontade hoje. Vou ficar aqui a descansar. E quando tu
acabares vamos ter uma grande conversa, Elfinha.”
Ele sorriu-lhe com o seu velho e lindo sorriso, com muito amor à
mistura, que Emily sempre achara tão doce. Comeu o seu jantar com
muita satisfação, apesar de não ser um bom jantar. O pão estava húmido
e o ovo mal passado, mas admirou-se por poder ter a Saucy Sal e o Mike
sentados ao seu lado, enquanto a Ellen se limitava a resmungar por ela
lhe dar bocadinhos de pão com manteiga
Mike tinha uma maneira tão querida de se sentar nas patinhas de trás e
apanhar os bocadinhos com as patas da frente, e a Saucy Sal tocava no
tornozelo de Emily de uma forma quase humana quando a sua vez começava
a tardar. Emily adorava-os aos dois, mas o Mike era o seu favorito.
Era um bonito gato cinzento-escuro com grandes olhos de mocho, e era
tão macio, gordo e fofinho. A Sal estava sempre magra; não havia
comida que a fizesse engordar. Emily gostava dela mas não lhe pegava
muito ao colo por causa disso. Ainda assim, ela tinha uma certa beleza
estranha que agradava a Emily. Era cinzenta e branca, muito branca e
muito esguia, com um rosto comprido e muito pontiagudo, orelhas muito
compridas e olhos muito verdes. Era uma lutadora notável e os gatos
estranhos desapareciam num instante à primeira incursão. A pequena
endiabrada até atacava cães e derrotava-os muitas vezes.
Emily adorava os seus gatinhos. Tinha-os criado ela, como dizia
orgulhosa. Tinham-lhe sido dados ainda bebés pela sua professora da
escola dominical.
“Um presente vivo é muito bom,” tinha dito a Ellen, “porque não pára
de melhorar com o tempo.”
Mas ela preocupava-se muito porque a Saucy Sal não tinha gatinhos.
“Não compreendo porque é que não tem,” queixava-se à Ellen Greene. “A
maioria das gatas têm mais gatinhos do que deviam.”
Depois do jantar Emily veio ter com o Pai e encontrou-o adormecido.
Ficou muito contente por isso; ela sabia que ele não dormia há duas
noites; mas ficou desapontada por não irem ter a tal grande conversa.
As grandes conversas com o pai eram sempre coisas tão maravilhosas.
Mas um passeio era quase tão bom, um passeio dado sozinha ao anoitecer
acinzentado de uma jovem primavera. E há tanto tempo que não dava um
passeio.
“Põe o gorro e vem para casa depressa se começar a chover,” avisou
Ellen. “Tu não podes brincar com as constipações como as outras
crianças.”

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“Mas porquê?” perguntou Emily um pouco indignada. Porque é que ela se
teria que se privar de brincar com as constipações quando as outras
crianças o podiam fazer? Não lhe parecia justo.
Mas Ellen limitou-se a resmungar. Emily murmurou baixinho para si
própria, “És uma coisa gorda e velha sem nenhuma importância!” e
deslizou escadas acima para ir buscar o seu gorro–-sem grande vontade,
porque ela adorava andar a correr de cabeça ao vento. Pôs o gorro azul
desbotado sobre as longas tranças de cabelo negro brilhante, e sorriu
amigavelmente ao reflexo que surgiu no seu pequeno espelho esverdeado.
O sorriso começava nos cantos dos lábios e espalhava-se pelo rosto de
uma forma muito subtil e maravilhosa, como tantas vezes pensava
Douglas Starr. Era o sorriso da sua falecida mãe–-o que lhe tinha
chamado a atenção e o prendera quando há muitos anos ele conhecera
Juliet Murray. Parecia ser a única herança física que Emily retinha da
mãe. Em tudo o resto ela era como os Starrs, nos seus grandes olhos
cinza-azulados, com grandes pestanas e sobrancelhas negras, a sua
testa alta, demasiado alta para ser bela, na forma delicada do seu
rosto oval e da sua boca sensível, nas suas orelhas pequenas que eram
um bocadinho pontiagudas, como para demonstrar a sua pertença ás
tribos dos elfos.
“Eu vou passear com a Dama do Vento, querida,” disse Emily. “Gostava
tanto de te poder levar. Tu nunca sais deste quarto, pois não? A Dama
do Vento vai andar pelos campos esta noite. Ela é alta e enevoada, com
finas roupas de seda cinzenta a envolverem-na e asas como as de um
morcego, só que transparentes, e olhos brilhantes como estrelas por
entre os seus longos cabelos soltos. Ela pode voar, mas esta noite vai
andar comigo por entre os campos. É uma grande amiga minha, a Dama do
Vento. Eu conheço-a desde os seis anos. Somos velhas amigas, mas não
tão velhas como nós, pequena Emily Detrás do Espelho. Nós sempre fomos
amigas, não fomos?
Soprando um beijo à pequena Emily Detrás do Espelho, a Emily de fora
do espelho foi andando.
A Dama do Vento esperava-a lá fora-—fazendo ondular as pequenas lanças
de erva riscada que se espetavam para fora do canteiro por baixo da
janela da sala de estar--atirando com os grandes ramos do Adão e Eva--
murmurando entre os ramos verdes e enevoados das bétulas-–provocando o
“Pinheiro Galo” por detrás da casa–-parecia mesmo um enorme e ridículo
galo, com uma cauda enorme e grossa e a cabeça inclinada para trás
preparado para cantar.
Há tanto tempo que Emily não saía sozinha para dar um passeio que
ficou meia louca de alegria. O Inverno tinha sido tão rigoroso e a
neve tão profunda que não a tinham deixado sair; Abril tinha sido um
mês de chuva e de vento; por isso, neste fim de tarde de Maio ela
sentia-se como uma prisioneira posta em liberdade. Onde iria? Lá
abaixo ao riacho, ou para lá dos campos para o bosque de abetos? Emily
escolheu a última opção.
Ela adorava o bosque de abetos, lá longe no fim da grande pastagem
inclinada. Era um sítio cheio de magia. Ali ela tomava plena posse de
todos os seus direitos de pertença ao reino das fadas, mais do que em
qualquer outro lugar. Ninguém que visse Emily correndo através do
campo vazio a teria invejado. Era pequena e pálida e pobremente
vestida; por vezes tremia debaixo do seu fino casaco; mas ainda assim
uma rainha teria abdicado alegremente da sua coroa em troca das suas
visões–-dos seus sonhos maravilhosos. As ervas castanhas e geladas
debaixo dos seus pés eram pilhas de veludo. O velho abeto coberto de
musgo, retorcido e meio morto, debaixo do qual parou um momento para
olhar para o céu, era uma coluna de mármore num palácio dos deuses; os
longínquos montes envoltos nas brumas do fim do dia eram as
fortificações de uma cidade maravilhosa. E para companhia ela tinha
todas as fadas do campo–-porque ela acreditava nelas ali-–as fadas do
trevo branco, o pequeno povo verde da relva, os elfos dos jovens

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pinheiros, espíritos de vento, fetos selvagens e cardos. Ali tudo
podia acontecer, qualquer coisa podia realizar-se.
E o bosque era um lugar tão esplêndido para jogar ás escondidas com a
Dama do Vento. Ela era tão real ali; se se conseguisse rodear
suficientemente depressa um pequeno grupo de abetos–-só que nunca se
conseguia-–conseguiríamos vê-la para além de ouvi-la e senti-la. Ali
estava ela–-aquilo era ela, abanando o seu manto cinzento-–não, ria-se
lá no cimo das árvores mais altas de todas-–e a busca recomeçava
novamente, até que de repente, a Dama do Vento parecia ter
desaparecido–-e o fim de tarde banhava-se num silêncio maravilhoso--
as nuvens encaracoladas a oeste dividiam-se subitamente e revelavam um
lindo céu como um lago verde e rosa com uma lua nova lá dentro.
Emily ficou olhando para ele com as mãos postas e a sua pequena cabeça
negra virada para cima. Ela tinha que ir para casa escrever uma
descrição do que vira no seu velho livro amarelo, onde a última coisa
a ser escrita fora “A Biografia do Mike”. A beleza da cena magoá-la-ia
enquanto não a escrevesse. E depois, iria lê-la ao Pai. Ela não se
podia esquecer como as pontas das árvores da colina sobressaíam como
delicadas rendas negras debruando a orla de um céu verde e rosa.
E então, durante um momento gloriosos e supremo, veio “o flash”.
Emily chamava-lhe mesmo assim, apesar de sentir que o nome não
descrevia bem a coisa. Não poderia ser descrito, nem mesmo para o Pai,
que parecia sempre um pouco perplexo com isto. Emily nunca falara do
assunto a mais ninguém.
Sempre parecera a Emily, desde que se conseguia lembrar, que estava
muito próxima de um mundo de uma beleza extraordinária. Entre este
mundo e ela própria havia apenas uma fina cortina; nunca a conseguia
afastar-–mas por vezes, por um breve momento, um vento deslocava-a e
era como se vislumbrasse o reino encantado do outro lado–-só um
vislumbre-–e ouvisse notas de uma música celeste.
Este momento exacto vinha muito raramente e passava veloz, deixando-a
sem fôlego pela sua delícia inexprimível. Ela nunca se conseguia
lembrar dele depois–-não conseguia retê-lo-–nem fingia conseguir; mas
o deslumbramento permanecia com ela durante dias. Nunca vinha duas
vezes pela mesma coisa. Esta noite, tinha vindo pelos ramos negros que
se destacavam sobre o céu longínquo. Já tinha vindo com uma nota alta
e selvagem do vento na noite, com uma sombra que varria um campo
maduro, com um pássaro cinzento que pousara na sua janela durante uma
tempestade, com um cântico na igreja, com um vislumbre do lume na
cozinha numa noite escura de Outono em que regressava a casa, com o
azul celeste dos flocos de gelo num vidro ao anoitecer, com uma nova
palavra que descobriu quando escrevia uma descrição de qualquer coisa.
E sempre que o flash vinha Emily sentia que a vida era uma coisa
maravilhosa, misteriosa e de uma beleza permanente.
Correu de volta para a casa do vale, através da noite que se adensava,
ansiosa de chegar a casa e escrever a sua descrição antes que a
memória do que vira se começasse a desfocar. Ela já sabia exactamente
como a ia iniciar-–a frase começava a tomar forma na sua mente: “A
colina falou e algo em mim lhe respondeu.”
Encontrou a Ellen Greene esperando-a no gasto degrau de entrada. Emily
estava tão cheia de felicidade que amava tudo naquele momento, até
mesmo as coisas velhas e gordas de nenhuma importância. Atirou os
braços em volta dos joelhos de Ellen e abraçou-os. Esta olhou de uma
forma triste para baixo, para o pequeno rosto deliciado onde a
excitação tinha acendido um ligeiro rubor rosado, e disse, com um
suspiro ponderado:
“Tu sabes que o teu Pai só tem mais uma ou duas semanas de vida?”

UMA VIGÍLIA NA NOITE

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Emily ficou muito quieta e olhou para o rosto largo e avermelhado –
tão imóvel como se tivesse sido transformada em pedra. Sentia-se como
se tivesse. Estava tão atordoada como se Ellen lhe tivesse aplicado um
golpe físico. A cor desapareceu-lhe do pequeno rosto e as suas pupilas
dilataram tanto que engoliram as íris e transformaram os seus olhos em
dois pequenos lagos negros. O efeito foi tão espantoso que até Ellen
Greene se sentiu desconfortável.
“Tou’te a dizer isto porque acho que já é altura de saberes,” disse-
lhe. “Eu ando de volta do teu pai há meses para te dizer, mas ele
passa sempre de um dia para o outro. Eu ‘tou farta de lhe dizer ‘O
senhor sabe como ela é com as coisas, leva tudo tão a peito, se calha
a morrer de repente o mais certo é matá-la por não estar preparada. É
o seu dever prepará-la,’ e ele diz-me, ‘Ainda há muito tempo, Ellen.’
Mas nunca te disse uma palavra, e quando o doutor ontem me disse que o
fim pode estar para estes dias eu decidi-me a fazer o que está certo e
dar-te uma ideia para te preparar. E por um diabo, menina, não fiques
assim! Tu vais ter quem olhe por ti. A família da tua mãe vai
encarregar-se disso, por causa do orgulho dos Murray, se não for por
mais nada. Eles não vão deixar que alguém do sangue deles passe mal ou
vá viver com estranhos-–mesmo tendo sempre odiado o teu pai. Tu vais
ter uma boa casa–-melhor do que a que tiveste aqui. Não precisas de te
preocupar com nada. E quanto ao teu pai, devias ficar agradecida por
ele ficar em paz. Há cinco anos que está a morrer aos bocados. Ele
tem-te poupado, mas é um grande sofredor. As pessoas dizem que o
coração dele se partiu quando a tua mãe morreu–-foi tão de repente,
ela só esteve doente três dias. É por isso que eu queria que tu
soubesses o que aí vinha, para não ficares tão aflita quando vier. E
por amor de Deus, Emily Byrd Starr, não fiques assim parada a olhar
dessa maneira! Estás-me a arrepiar! Não és a primeira criança a ficar
órfã e não vais ser a última. Vê lá se tens juízo. E não vás chatear o
teu pai por causa do que te disse, vê lá. Entra lá agora, está muito
frio, que eu dou-te uma bolacha antes de ires para a cama.”
Ellen desceu o degrau como se pretendesse apanhar a mão da criança.
Emily recuperou a capacidade de se mexer-–ela teria gritado se Ellen
lhe tocasse naquele momento. Com um grito súbito, agudo e amargo
evitou a mão de Ellen, precipitou-se pela porta e fugiu escadas acima
no escuro.
Ellen abanou a cabeça e voltou para a cozinha. “Eu fiz o meu dever, de
qualquer maneira,” reflectiu. “Ele ia continuar a dizer que tínhamos
muito tempo e a adiar até que morresse, e nessa altura é que ninguém
dava conta dela. Assim tem tempo para se habituar à ideia, e vai-se
recompor num dia ou dois. Ela tem muita genica, o que é uma sorte pelo
que tenho ouvido dizer dos Murrays. Eles não vão dominá-la com muita
facilidade. Tem um bocado da arrogância deles, e isso vai ajudá-la. Eu
até já devia ter mandado dizer aos Murrays que ele estava a morrer,
mas não quero ser atrevida demais. Nunca se sabe o que ele podia
fazer. Bem, eu fiquei com eles até ao fim, e não me arrependo. Não
havia muitas mulheres para o fazer, da maneira como eles vivem aqui. É
uma vergonha a maneira como aquela criança foi educada–-nunca a mandou
sequer à escola. Eu disse-lhe muitas vezes o que achava disso–-não
tenho nada na minha consciência, pelo menos. Tu sai daí, sua coisa
Sal! E onde é que está o Mike?”
Ellen não conseguia encontrar o Mike porque ele estava lá em cima com
a Emily, firmemente abraçado nos seus braços, enquanto ela permanecia
sentada na escuridão na sua cama de criança. Por entre a sua agonia e
desolação havia um certo conforto ao sentir o seu pelo macio e a sua
pequena cabeça aveludada.
Emily não chorava; olhava bem para o meio da escuridão, tentando
enfrentar a coisa horrível que Ellen lhe havia dito. Ela não tinha

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dúvidas--alguma coisa lhe dizia que era verdade. Porque é que não
podia morrer ela também? Não seria capaz de viver sem o Pai.
“Se eu fosse Deus não deixava que acontecessem coisas assim,” disse.
Sentia-se muito má por dizer uma coisa daquelas–-Ellen certa vez
tinha-lhe dito uma vez que apontar uma falha a Deus era das coisas
piores que uma pessoa podia fazer. Mas não se importava. Talvez se
fosse mesmo muito má Deus a matasse e depois ela, o Pai e a Mãe
pudessem continuar juntos.
Mas não aconteceu nada–-só o Mike se fartou de ser tão apertado e
fugiu-lhe por entre os braços. Ela estava agora completamente sozinha,
com aquela dor horrível que a queimava por todo o lado mas que não era
no corpo. Nunca se conseguiria livrar dela. Não ajudava nada escrever
sobre ela no velho livro amarelo. Tinha lá escrito sobre a professora
da escola dominical que se tinha ido embora, acerca de ter fome quando
se ia deitar, e da Ellen lhe dizer que ela devia ser maluca por falar
da Dama do Vento e dos flashes; e depois dela escrever todas estas
coisas já não a magoavam. Mas isto não se podia escrever. Ela nem
sequer iria ter com o pai para a reconfortar, como tinha ido quando
queimara a mão ao agarrar o atiçador em brasa por descuido. O Pai
tinha-a tido ao colo toda a noite e contou-lhe histórias, ajudou-a a
aguentar a dor. Mas o pai, pelo que dissera Ellen, ia morrer dentro de
uma semana ou duas. Emily sentia que Ellen lhe tinha dito isto há anos
e anos atrás. De certeza que não tinha passado uma hora desde que
brincara com a Dama do Vento no descampado e tinha visto a lua nova no
céu verde e rosado.
“Nunca mais vou ter o flash – não vou conseguir,” pensou.
Mas Emily tinha herdado algumas coisas dos seus fortes antepassados–-a
capacidade de lutar-–de sofrer–-de ter piedade–-de amar muito
profundamente–-de se regozijar-–de aguentar. Todas estas coisas
estavam dentro dela e respondia-nos através dos seus olhos cinzento
alilasados. A sua herança de resistência veio auxiliá-la e ela
suportou tudo com ela. Ela não deixaria que o Pai soubesse que Ellen
lhe contara–-poderia magoá-lo. Ela tinha que guardar tudo para si e
amar o Pai, oh, tanto, tanto, no bocadinho que lhe restava com ele.
Ouviu-o tossir na sala lá em baixo; tinha que estar na cama quando ele
subisse; despiu-se tão depressa como conseguiram os seus dedos gelados
e meteu-se na pequena cama que ficava atravessada em frente da janela
aberta. As vozes da meiga noite de primavera chamavam-na sem serem
ouvidas–-ignorada, a Dama do Vento assobiava por entre os telhados.
Porque as fadas só existem no Reino da Felicidade; e não tendo alma,
não podem entrar no Reino da Mágoa.
Ali estava deitada, fria, seca e imóvel quando o seu pai entrou no
quarto. Que devagar que ele andava–-que devagar que foi tirando as
roupas.
Douglas Starr veio ter à cama dela. Sentiu a sua querida proximidade
quando ele se sentou na cadeira ao lado dela, no seu velho robe
vermelho. Oh, como ela o amava! Não havia outro Pai como ele em todo o
mundo–-nunca podia ter havido–-tão meigo, tão compreensivo, tão
maravilhoso! Eles tinham sido sempre tão companheiros--gostavam tanto
um do outro–-não podiam estar para ser separados.
“Fofinha, estás a dormir?”
“Não,” sussurrou Emily.
“Estás com sono, pequena querida?”
“Não, não tenho sono.”
Douglas Starr pegou na sua pequena mão e agarrou-a com força.
“Então vamos ter a nossa conversa, querida. Eu também não consigo
dormir. Tenho uma coisa para te dizer.”
“Oh, eu já sei, eu já sei!” exclamou Emily. “Oh, Pai, eu sei! A Ellen
disse-me.”
Douglas Starr ficou em silêncio por um momento. Depois disse baixinho,
“A parva da velha–-a parva da velha gorda!” como se a gordura da Ellen

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fosse uma agravante da sua parvoíce. Mais uma vez, pela última vez,
Emily teve esperança. Talvez fosse tudo um engano, um horrível engano,
só mais uma das parvoíces gordas da Ellen.
“Não...não é verdade, pois não, Pai?” murmurou.
“Emily, filha,” disse o Pai, ”eu não te consigo pegar ao colo–-não
tenho forças para isso–-mas sobe tu para o meu joelho–-como fazias
dantes.”
Emily saiu da cama e sentou-se no joelho do Pai. Ele embrulhou-a no
seu velho roupão e segurou-a perto de si, com o rosto encostado ao
dela.
“Minha querida filha, querida pequena Emilyzinha, é mesmo verdade,”
disse. “Eu queria dizer-te esta noite. E agora aquela absurda Ellen
disse-te, brutalmente, suponho–-e magoou-te terrivelmente. Ela tem o
cérebro de uma galinha e a sensibilidade de uma vaca. Ah, que os
chacais se sentem na campa da avó dela! Eu não te teria magoado,
querida.”
Emily lutou contra algo que a sufocava.
“Pai, eu não consigo–-eu não consigo suportar.”
“Sim, consegues e vais suportar. Tu vais sobreviver porque tens
qualquer coisa de importante a fazer, penso eu. Tu tens o meu dom,
juntamente com uma coisa que eu nunca tive. Tu vais ter sucesso onde
eu falhei, Emily. Eu não fui capaz de fazer grande coisa por ti, meu
amor, mas fiz o que pude. Ensinei-te algumas coisas, acho eu–-apesar
da Ellen Greene. Emily, lembras-te da tua mãe?”
“Só um bocadinho, de vez em quando, como pedaços pequenos de sonhos.”
“Tu só tinhas quatro anos quando ela morreu. Eu nunca te falei muito
dela–-não conseguia. Mas hoje vou-te contar tudo sobre ela. Agora já
não me magoa falar nela-–em breve vou vê-la outra vez. Tu não te
pareces com a tua mãe, Emily, só quando sorris. Em tudo o resto és
como a tua avó, a minha mãe, de quem herdaste o nome. Quando tu
nasceste eu quis chamar-te Juliet também. Mas a tua mãe não quis. Ela
disse que se tu te chamasses Juliet eu ia começar a chamá-la mãe para
vos distinguir e ela não ia suportar isso. Disse que a tia Nancy uma
vez lhe tinha dito ‘A primeira vez que o teu marido te chamar Mãe,
acaba-se o romance na tua vida’. Por isso demos-te o nome da minha
Mãe–-o nome dela de solteira era Emily Byrd. A tua mãe achava que
Emily era o nome mais bonito do mundo–-era antigo, curvo e delicioso,
dizia ela. Emily, a tua mãe era a mulher mais deliciosa que já
existiu.”
A voz dele tremia e Emily aproximou-se mais.
“Eu conheci-a há doze anos, quando era sub-director do Enterprise em
Charlottetown e ela estava no último ano de Queen’s. Era alta, loira e
de olhos azuis. Era parecida com a tua tia Laura, mas a Laura nunca
foi tão bonita. Os olhos delas eram muito parecido, bem como as vozes.
Ela pertencia aos Murray de Blair Water. Eu nunca te contei nada sobre
a família da tua mãe, Emily. Eles vivem na velha costa norte em Blair
Water, na quinta de New Moon–-sempre lá viveram desde que o primeiro
Murray veio do Velho Continente em 1790. O navio em que veio chamava-
se New Moon e ele deu o mesmo nome à quinta.”
“É um nome bonito-–a lua nova é uma coisa tão bonita,” disse Emily,
interessada.
“Desde essa altura que há Murrays em New Moon. São uma família
orgulhosa–-o orgulho dos Murray é muito conhecido na costa norte,
Emily. Bem, eles têm algumas coisas de que se orgulhar, não se pode
negar, mas exageram. As pessoas de lá chamam-lhes ‘os escolhidos’.
Eles cresceram e multiplicaram-se, espalharam-se por todo o lado, mas
a velha guarda em New Moon está um bocado acabada. Agora são só as
tuas tias, Elizabeth e Laura e o primo delas, Jimmy Murray que lá
vivem. Elas nunca casaram–-não encontraram ninguém à altura dos
Murray, era o que se costumava dizer por lá. O teu tio Oliver e o teu

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tio Wallace vivem em Summerside, a tua tia Ruth em Shrewsbury, e a tua
tia-avó Nancy vive em Priest Pond.”
“Priest Pond–-que nome tão interessante–-não é um nome bonito como New
Moon ou Blair Water–-mas é interessante,” disse Emily. Sentindo os
braços do pai à sua volta o horror tinha encolhido temporariamente.
Por um bocadinho tinha deixado de acreditar.
Douglas Starr aconchegou o robe um pouco mais em volta dela, beijou-
lhe a cabeça negra e continuou.
“A Elizabeth, a Laura, o Wallace, o Oliver e a Ruth eram filhos do
velho Archibald Murray. São filhos da primeira mulher dele. Quando ele
tinha sessenta anos tornou a casar–-com uma rapariga nova-–que morreu
quando a tua mãe nasceu. A Juliet era vinte anos mais nova do que a
meia família dela, como lhes costumava chamar. Ela era muito bonita e
encantadora, e eles todos gostavam muito dela, mimavam-na muito e
tinham muito orgulho nela. Quando ela se apaixonou por mim, um jovem
jornalista pobre sem nada no mundo a não ser a caneta e a ambição deu-
se um terramoto familiar. O orgulho dos Murray não podia tolerar tal
coisa. Eu não vou desenterrar isso tudo, mas disseram-se coisas que eu
nunca conseguirei esquecer ou perdoar. A tua mãe casou-se comigo,
Emily e as pessoas de New Moon nunca mais quiseram ter nada a ver com
ela. E tu acreditas que apesar disso tudo ela nunca se arrependeu de
ter casado comigo?”
Emily levantou a mão e fez uma festa no rosto magro do pai.
“Claro que não se ia arrepender. Claro que ela o preferia a si mais do
que a todos os Murray de seja que Lua for.”
O Pai riu-se um bocadinho–-e havia uma nota de triunfo na voz dele.
“Sim, ela parecia pensar isso mesmo. E nós éramos tão felizes,
Emilizinha, nunca houve duas pessoas mais felizes no mundo. Tu foste
filha dessa felicidade. Lembro-me da noite em que tu nasceste na
pequena casa de Charlottetown. Era Maio e um vento de oeste soprava
nuvens prateadas em volta da lua. Havia uma ou duas estrelas por aqui
e por ali. No nosso pequeno jardim-–tudo o que tínhamos era pequeno a
não ser o nosso amor e felicidade-–estava escuro e cheio de rebentos.
Eu andei pelos canteiros de violetas que a tua mãe tinha plantado e
rezei. O céu pálido a este tinha começado a brilhar quando alguém me
veio dizer que eu tinha uma menina. Entrei–-e a tua mãe, branca e
fraca, sorriu daquela forma querida, lenta e maravilhosa que eu amava
e disse-me, ‘Temos–-o-–único–-bebé–-importante–-de-–todo–-o–-mundo,
querido. Imagina–-só!”
“Eu gostava que as pessoas se conseguissem lembrar de tudo desde o
momento em que nasciam,” disse Emily. “Era tão interessante.”
“Acho que íamos ter uma data de memórias desconfortáveis,” disse o pai
dela, rindo-se um pouco. “Não deve ser muito agradável aprender a
viver–-não muito mais do que aprender a deixar de viver. Mas tu não
pareceste achar a coisa difícil, porque foste sempre uma pequena bebé
boazinha, Emily. Nós vivemos quatro anos muito felizes e depois–-
lembras-te Emily, quando a tua mãe morreu?”
“Eu lembro-me do funeral, Pai-–lembro-me nitidamente. O Pai estava ao
meio da sala, comigo ao colo, e a mãe estava deitada numa caixa
comprida e preta. E o Pai estava a chorar–-não percebia porquê–-e eu
perguntava-me porque é que a Mãe estava tão branca e não conseguia
abrir os olhos. E eu inclinei-me e toquei-lhe no rosto-–e oh, estava
tão frio. Deu-me arrepios. E alguém na sala disse, ‘Pobrezinha!’ e eu
assustei-me e encostei a cara ao seu ombro.”
“Sim, eu lembro-me disso. A tua mãe morreu muito subitamente. Não acho
que vamos falar sobre isso. Os Murrays vieram ao funeral. Eles têm
certas tradições e cumprem-nas com muita rigidez. Uma é que em New
Moon não se usa nada para iluminar a não ser velas, e outra é que
nenhuma zanga deve durar para além da morte. Eles vieram quando ela
morreu–-teriam vindo quando adoeceu se tivessem sabido, tenho que
admitir. E portaram-se muito bem-–oh, mesmo muito bem. Não é por nada

9
que são os Murrays de New Moon. A tua tia Elizabeth usou o seu melhor
vestido de seda preto no funeral. Para qualquer outro funeral o
segundo melhor vestido seria suficiente, mas ela era uma Murray; e não
levantaram objecções quando eu disse que a tua mãe seria enterrada no
terreno dos Starr no cemitério de Charlottetown. Eles teriam gostado
de a levar para o velho cemitério dos Murray em Blair Water–-eles têm
um cemitério privado, sabes–-não lhes serve um cemitério comum. Mas o
teu tio Wallace admitiu que uma mulher devia pertencer à família do
marido na morte tal como em vida. E ofereceram-se para te levar e te
criarem–-para te darem ‘o lugar da tua mãe’. Eu recusei-me a que te
levassem-–nessa altura. Fiz bem, Emily?”
“Sim--sim–-sim!” murmurou Emily, com um grande abraço a acompanhar
cada sim.
“Eu disse ao Oliver Murray–-foi ele que me falou de ti–-que enquanto
eu fosse vivo nada me separaria da minha filha. Ele respondeu, ‘Se
alguma vez mudar de ideias diga-nos.’ Mas eu não mudei de ideias-–nem
três anos depois quando o meu médico me disse que tinha que deixar de
trabalhar. ‘Se não fizer isso, dou-lhe um ano de vida,’ disse-me, ‘se
o fizer e passar no exterior todo o tempo que puder, pode viver três,
talvez quatro.’ Ele era um bom profeta. Eu vim para cá e nós tivemos
quatro anos maravilhosos juntos, não foi, minha querida pequena?
“Sim–-oh, sim!”
“Estes anos e o que eu te ensinei neles são tudo o que te posso
deixar, Emily. Eu tenho vivido de um rendimento herdado de um tio que
morreu antes de eu casar. A herança agora vai para uma instituição de
caridade e esta casa é alugada. Do ponto de vista material eu fui com
certeza um falhado. Mas a família da tua mãe vai tomar conta de ti, eu
sei que vão. O orgulho dos Murray vai garantir isso, se tudo o resto
falhar. E eles não vão conseguir deixar de gostar de ti. Talvez eu já
os devesse ter mandado chamar, talvez o deva fazer agora. Mas eu
também tenho o meu orgulho–-os Starr não são de todo desprovidos de
tradições–-e os Murrays disseram umas coisas muito amargas quando eu
me casei com a tua mãe. Achas que escreva para New Moon a pedir que te
venham buscar, Emily?”
“Não!” disse Emily, quase agressivamente.
Ela não queria que ninguém se intrometesse entre ela e o Pai enquanto
durassem aqueles dias preciosos. A ideia era horrível aos olhos dela.
Seria suficientemente mau quando tivesse que ser–-depois. Mas nessa
altura já nada teria importância.
“Então vamos ficar juntos até ao fim, pequena filha Emily. Não nos
vamos separar nem um minuto. E eu quero que sejas corajosa. Não deves
ter medo de nada, Emily. A morte não é terrível. O universo está cheio
de amor–-e a primavera chega em todo o lado-–e na morte abre-se e
fecha-se uma porta. Também há coisas belas do outro lado da porta. Eu
vou encontrar lá a tua mãe–-duvidei de muitas coisas, mas nunca
duvidei disso. Ás vezes tinha medo que ela se afastasse tanto de mim
na eternidade que eu nunca chegasse a apanhá-la. Mas agora sinto que
ela está à minha espera. E nós os dois vamos esperar por ti–-não vamos
ter pressa–-vamos deixar-nos andar por ali até que nos apanhes.”
“Eu gostava que o Pai-–me pudesse levar por essa porta consigo,”
murmurou Emily.
“Depois de uns tempos já não vais desejar isso. Ainda tens que
aprender que o tempo cura. E a vida tem qualquer coisa para ti–-eu
sinto que tem. Vai em frente e procura-o sem medo, querida. Eu sei que
não te sentes assim agora–-mas vais lembrar-te das minhas palavras de
vez em quando.”
“Eu agora sinto,” disse Emily, que não conseguia esconder nada do
Pai,” que já não gosto de Deus.”
Douglas Starr riu-se–-com o riso de que Emily mais gostava. Era um
riso tão querido–-ela respirou fundo com afecto. Sentiu os braços dele
que a apertavam.

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“Gostas sim, querida. Não se consegue deixar de gostar de Deus. Ele é
o próprio Amor, sabes? Não o podes misturar com o Deus da Ellen
Greene, claro.”
Emily não percebeu bem o que o Pai quis dizer. Mas de repente sentiu
que já não tinha medo–-e que a amargura tinha desaparecido da mágoa, e
a dor insuportável do seu coração. Sentia que o amor a envolvia e
rodeava, expirado por uma grande ternura invisível flutuante. Não se
podia ter medo ou amargura onde estava o amor–-e o amor estava em todo
o lado. O Pai ia atravessar aquela porta-–não, ele ia levantar uma
cortina–-ela gostava mais daquela imagem, porque a cortina não era tão
dura nem tão rápida como uma porta-–e ia mergulhar naquele mundo que
ela vislumbrava quando tinha o flash. Ele iria ficar ali imerso em
beleza–-e nunca se afastaria muito dela. Poderia suportar tudo se
soubesse que o Pai não estaria muito longe dela–-só estava para lá
daquela cortina ondulante.
Douglas Starr manteve-a ao colo até que ela adormeceu; e depois,
apesar da sua fraqueza, conseguiu deitá-la na sua pequena cama.
“Ela vai amar profundamente–-vai sofrer terrivelmente–-vai ter
momentos gloriosos para compensar, tal como eu tive os meus. Como a
família da mãe dela a tratar, assim os trate Deus,” murmurou
destroçado.

Uma invasão de parentes

Douglas Starr ainda viveu duas semanas. Nos anos seguintes, quando a
dor se separou da sua lembrança, Emily pensava nelas como as suas
memórias mais preciosas. Foram semanas belas--belas, e não tristes. E
certa noite, em que ele estava deitado no sofá da sala de estar, com
Emily ao seu lado no velho cadeirão de orelhas, passou para o outro
lado da cortina-–foi tão calmo que Emily não notou que ele tinha
partido até sentir a estranha quietude de uma divisão em que ninguém
respirava senão ela.
“Pai – Pai!” exclamou. Depois gritou por Ellen.
Ellen Greene disse aos Murray quando chegaram que Emily se portou
muito bem, no final de contas. Era verdade que toda a noite chorara e
não pregou olho; nenhuma das pessoas de Maywood que vieram em rebanho
ajudar a conseguiu confortar; mas quando chegou a manhã todas as
lágrimas tinham sido derramadas. Estava pálida, calada e dócil.
“E pronto, já viste,” disse Ellen, “é o que acontece quando estamos
preparados como deve ser. O teu pai ficou tão zangado por eu te ter
dito que nunca mais foi educado comigo–-e a morrer e tudo. Mas eu não
lhe guardo rancor. Cumpri o meu dever. A senhora Hubbard está-te a
fazer um vestido preto, e vai estar pronto à hora do jantar. A família
da tua mãe vai chegar esta noite, pelo que disseram, e eu quero que te
vejam respeitável. Eles têm dinheiro e vão tomar conta de ti. O teu
pai não deixou um cêntimo mas também não deixou dívidas, isso é
verdade. Já foste ver o corpo?”
“Não lhe chame isso,” exclamou Emily, franzindo-se. Era horrível ouvir
chamar isso ao Pai.
“E porque não? És uma criança muito estranha! Ele até fez um corpo
mais bem encarado do que eu pensei que fizesse, tão magro e tudo. Ele
foi sempre um homem bonito, embora magro demais.”
“Ellen Greene,” disse Emily subitamente, “se continuar a dizer essas
coisas do pai eu vou-lhe lançar a maldição negra!”
Ellen Greene ficou pasmada a olhar.
“Eu não sei o que queres dizer com isso. Mas olha que não é maneira de
falares comigo, depois de tudo o que fiz por ti. E não deixes que os

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Murray te oiçam falar assim senão não te vão querer ter por perto. A
maldição negra! Ora aí tens a gratidão!”
Os olhos de Emily faiscaram. Era apenas uma criatura solitária e
sentia-se muito sem afecto. Mas não teve remorsos nenhuns pelo que
disse à Ellen e não ia fingir que tinha.
“Anda cá e ajuda-me a lavar a loiça,” ordenou Ellen. “Vai-te fazer bem
ter qualquer coisa em que pensar em vez de andares a amaldiçoar
pessoas que se esfolam a trabalhar por tua causa.”
Emily, com um olhar eloquente ao corpo supostamente esfolado de Ellen,
foi buscar um esfregão da loiça.
“Está muito gorda e anafada,” disse. “Não me parece nada esfolada.”
“Não penses em me responder! Que vergonha, com o teu pobre pai morto
ali dentro. Mas se a tua tia Ruth te levar depressa te cura disso.”
“A tia Ruth é que vai ficar comigo?”
“Eu não sei, mas devia ser ela. É viúva, sem filha nem filho, e tem
muito dinheiro.”
“Não me parece que queira ir com a tia Ruth,” disse Emily
deliberadamente, depois de um momento de reflexão.
“Pois, mas não te devem dar a escolher. Tens que ficar agradecida por
teres um tecto seja onde for. Lembra-te que não tens grande
importância.”
“Eu sou importante para mim,” exclamou Emily orgulhosamente.
“Vai ser uma trabalheira para te educar,” resmungou Ellen. “A tua tia
Ruth é que era mulher para isso, na minha opinião. Ela não vai tolerar
parvoíces. É uma grande senhora, e a melhor dona de casa da Ilha do
Príncipe Eduardo. Pode-se comer do chão dela.”
“Eu não quero comer no chão dela. Nem me interessa se o chão está
sujo, desde que a toalha esteja limpa.”
“Sim, mas a toalhas dela também estão limpas, com certeza. Ela tem uma
casa toda elegante em Shrewsbury com janelas panorâmicas e um telhado
todo trabalhado. Ela é muito fina. Era uma boa casa para ti. E ela ia-
te meter senso nessa cabeça e fazer-te muito bem.”
“Eu não quero ter senso na cabeça nem que me façam muito bem,”
exclamou Emily com um lábio a tremer. “Eu–-eu só quero que gostem de
mim.”
“Pois, tens que te portar bem se quiseres que as pessoas gostem de ti.
A culpa não é tua, o teu pai mimou-te demais. Eu disse-lhe isso muitas
vezes mas ele só se ria. Espero que ele agora não se arrependa. A
verdade, Emily Starr, é que tu és esquisita, e as pessoas não gostam
de crianças esquisitas.”
“Mas como é que eu sou esquisita?” perguntou Emily.
“Tu falas de uma maneira estranha, e portas-te de uma maneira
estranha, e ás vezes até pareces estranha. E és muito velha para a tua
idade–-embora isso não seja culpa tua. É de nunca te teres misturado
com outras crianças. Eu sempre disse ao teu pai que te devia ter
mandado para a escola--aprender em casa não é a mesma coisa–-mas ele
não me dava ouvidos, claro. Eu não digo que não leias tão bem como as
outras crianças, mas tu devias aprender a ser como as outras crianças.
De certa maneira ia ser bom para ti se o teu tio Oliver te levasse,
porque ele tem uma grande família. Ele não vive tão bem como os
outros, por isso não te deve levar. O teu tio Wallace podia levar-te,
como se vê como o chefe da família. Ele só tem uma filha já crescida.
Mas a mulher dele não tem saúde, ou acha que não tem.”
“Eu gostava que a tia Laura me levasse,” disse Emily. Ela lembrou-se
que o pai dissera que a tia Laura era parecida com a sua mãe.
“A tia Laura! Ela não vai ter nada a dizer sobre o assunto–-a
Elizabeth é que manda lá em New Moon. O Jim Murray trata da quinta,
mas ele não joga com o baralho todo, pelo que dizem,”
“E com que parte do baralho é que não joga?” perguntou Emily curiosa.
“Oh, é qualquer coisa com a cabeça dele, pequena. Ele é um bocado
simples, teve um acidente ou qualquer coisa quando era pequeno, foi o

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que ouvi. Deu-lhe cabo da cabeça, mais ou menos. A Elizabeth teve
qualquer coisa a ver com o assunto, eu nunca cheguei a perceber. Não
me parece que a gente de New Moon se queira incomodar contigo. Eles
são muito rígidos. Lembra-te do meu conselho e vê se agradas à tua tia
Ruth. Porta-te bem, vê se és educada, talvez ela goste de ti. Ora aí
está, os pratos estão lavados. Bem podes ir lá para cima e desimpedir-
me o caminho.”
“Posso levar o Mike e a Saucy Sal?” perguntou Emily.
“Não, não podes.”
“Mas eles faziam-me companhia,” pediu Emily.
“Com companhia ou sem companhia não os podes levar. Eles são da rua e
na rua é que ficam. Não os quero a patinhar a casa. O chão foi
esfregado.”
“Porque é que não esfregava o chão quando o pai era vivo?” perguntou
Emily. “Ele gostava das coisas limpas. Quase nunca o esfregava. Porque
é que o fez agora?”
“Olhem p’ra ela! Teria que andar sempre a esfregar o chão com o meu
reumático? Vai lá para cima e deita-te.”
“Eu vou lá para cima mas não me vou deitar,” disse Emily. “Tenho muito
em que pensar.”
“Há uma coisa que eu te aconselho a fazer,” disse Ellen, determinada a
não perder uma oportunidade de fazer o seu dever, “e é que te ajoelhes
e peças a Deus que te torne uma criança boa, grata e respeitadora.”
Emily parou nas escadas e olhou para trás.
“O Pai disse que eu não devia ter nada a ver com o seu Deus,” disse
com gravidade.
Ellen fungou baralhada, mas não se lembrou de nada para responder a
esta afirmação ateia. Apelou ao universo.
“Será que já alguém ouviu tal coisa?”
“Eu sei como é o seu Deus,” disse Emily. “Eu vi uma imagem dele no seu
livro do Adão e da Eva. Tem bigodes e usa camisa de dormir. Eu não
gosto dele. Só gosto do Deus do Pai.”
“E como é o Deus do teu pai, posso saber?” perguntou Ellen
sarcasticamente.
Emily não fazia ideia de como era o Deus do Pai, mas estava
determinada a não se deixar levar pela Ellen.
“Ele é límpido como a Lua, belo como o sol, e terrível como um
exército que marcha para a guerra,” disse triunfante.
“Pois tens sempre que ficar com a última palavra. Deixa que os Murrays
depressa te curam disso,” disse Ellen, desistindo da discussão. “Eles
são presbiterianos rigorosos e não vão atrás dessas noções
disparatadas do teu pai. Vai lá para cima.”
Emily subiu para o quarto sul, sentindo-se desolada.
“Agora não há ninguém no mundo que goste de mim,” disse, enquanto se
aninhava na cama ao pé da janela. Mas estava determinada a não chorar.
Os Murrays, que tanto odiavam o pai dela, não a iam ver chorar. Sentia
que os detestava a todos–-excepto talvez a tia Laura. Que grande e
vazio lhe parecia agora o mundo. Já nada era interessante. Não
interessava que a pequena macieira entre o Adão e a Eva fosse um
pedaço de beleza nevada de rosa–-que os montes para além do vale
fossem de seda verde salpicada de roxo, que os narcisos tivessem
despontado no jardim–-que as bétulas estivessem repletas de berloques
dourados–-que a Dama do Vento soprasse pequenas nuvens que
atravessavam o céu. Nenhuma destas coisas lhe dava consolo ou encanto
agora. Na sua inexperiência ela achava que nunca mais iam dar.
“Mas eu prometi ao pai que ia ser corajosa,” murmurou, cerrando os
pequenos punhos, “e vou ser. E não vou deixar que os Murray vejam que
tenho medo deles–-eu não vou ter medo deles!”
Quando o assobio longínquo do comboio da tarde se fez ouvir por detrás
dos montes, o coração de Emily começou a bater mais depressa. Apertou
as mãos e levantou o rosto.

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“Por favor, ajuda-me Deus do pai, não o Deus da Ellen,” disse. “Ajuda-
me a ser valente e a não chorar em frente dos Murrays.”
Pouco tempo depois ouviu-se o barulho de saltos lá em baixo, e vozes
altas e decididas. Então Ellen veio a resfolgar escada a cima com o
vestido preto, uma coisa desmazelada de merino barato.
“A senhora Hubbard acabou-o mesmo a tempo, graças a Deus. Eu não
queria que os Murray te vissem sem ser de preto por nada deste mundo.
Não podem dizer que não cumpri o meu dever. Eles estão todos aí, os de
New Moon, o Oliver e a mulher, a tua tia Addie, e o Wallace e a mulher
dele, a tua tia Eva, e a tia Ruth–-a senhora Dutton, é o nome dela.
Pronto, estás capaz. Vamos embora.”
“Não posso pôr o meu colar?” perguntou Emily.
“Será possível? Um colar com um vestido de luto? Que vergonha! Será
que nunca deixas de ser vaidosa?”
“Não é vaidade!” exclamou Emily. “O pai deu-me o colar no Natal
passado, e eu quero mostrar aos Murray que tenho alguma coisa!”
“Chega de disparates! Vamos embora, já disse! E vê lá como te portas–-
muita coisa depende da maneira como te portares com eles.”
Emily caminhou rigidamente em frente de Ellen e entrou na sala de
visitas. Oito pessoas estavam sentadas em círculo, e ela sentiu
imediatamente o olhar crítico de dezasseis olhos estranhos. Parecia
muito pálida no seu vestido preto; as sombras púrpura deixadas pela
noite de choro faziam-lhe os olhos demasiado grandes e profundos. Ela
estava desesperada com medo, e sabia-o–-mas não ia deixar que os
Murray se apercebessem. Levantou a cabeça e enfrentou o sacrifício à
sua frente com bravura.
“Este,” disse Ellen, virando-a pelo ombro, “é o teu tio Wallace.”
Emily tremeu e estendeu uma mão fria. Não gostou do tio Wallace–-
percebeu logo isso–-ele era escuro, sério e sombrio, com umas
sobrancelhas carregadas e franzidas e uma boca impiedosa e severa.
Tinha grandes papos por baixo dos olhos, e suíças muito bem aparadas.
Emily decidiu nessa altura que não era grande admiradora de suíças.
“Como estás, Emily?” perguntou friamente-–e de modo igualmente frio
inclinou-se e beijou-lhe o rosto.
Uma súbita onda de indignação varreu a alma de Emily. Como se atrevia
a beijá-la, ele que odiava o pai dela e deserdou a mãe dela! Ela não
queria nenhum dos beijos dele! E rápida como um relâmpago, tirou do
bolso um lençinho e limpou a face ofendida.
“Ora, ora!” exclamou uma voz desagradável do outro lado da sala.
O tio Wallace parecia querer dizer muitas coisas mas não lhe ocorria
nenhuma. Ellen, com um resmungo de desespero, empurrou Emily para a
visita seguinte.
“A tua tia Eva”, disse.
A tia Eva estava sentada embrulhada num xaile. Tinha o rosto neurótico
do inválido imaginário. Apertou a mão a Emily mas não disse nada. Nem
Emily a ela.
“O teu tio Oliver,” anunciou Ellen.
Emily gostou da aparência do tio Oliver. Era grande e gordo, rosado e
de ar alegre. Ela achou que não se ia importar se ele a beijasse,
embora tivesse um áspero bigode branco. Mas o tio Oliver tinha
aprendido a lição com o tio Wallace.
“Eu dou-te uma moeda se me deres um beijo,” murmurou genialmente. Uma
piada era a forma que o tio Oliver tinha de ser simpático e sensível,
mas Emily não sabia isto e ficou ressentida.
“Eu não vendo os meus beijos,” respondeu, levantando a cabeça tão alta
como qualquer um de entre estes Murray.
O tio Oliver riu-se, pareceu divertido e nem um bocadinho ofendido.
Mas Emily ouviu um resmungo do outro lado da sala.
A seguir vinha a tia Addie. Era gorda, rosada e tinha uma aparência
tão divertida como o marido, e deu a Emily um apertão simpático e
gentil.

14
“Como é que estás, querida?” disse.
Aquele “querida” sensibilizou Emily e derreteu-a um bocadinho. Mas a
pessoa a seguir gelou-a logo instantaneamente. Era a tia Ruth–-Emily
soube que era a tia Ruth antes que Ellen o tivesse dito, e soube que
tinha sido a tia Ruth que dissera “ora ora” e resmungado. Ela
reconheceu os olhos frios e cinzentos, o cabelo castanho aprumado e
insípido, a figura baixa e maciça, a boca fina, retraída e impiedosa.
A tia Ruth levantou as pontas dos dedos, mas Emily não os aceitou.
“Aperta a mão à tua tia Ruth,” disse-lhe Ellen num murmúrio furioso.
“Ela não quer apertar a minha,” disse Emily, distintamente,” e eu
também não aperto a dela.”
A tia Ruth voltou a colocar a mão desdenhada no colo vestido de seda
negra.
“Tu és uma criança muito mal criada,” disse; “mas claro, não se podia
esperar outra coisa.”
Emily sentiu-se subitamente cheia de remorsos. Teria ela dado má
impressão do pai pelo seu comportamento? Talvez afinal ela devesse ter
apertado a mão da tia Ruth. Mas era muito tarde agora, Ellen já a
levava à visita seguinte.
“Este é o teu primo, o senhor James Murray,” disse Ellen, no tom
desgostoso de quem se convence que tem um trabalho escusado e está
desejosa de o dar por encerrado.
“Primo Jimmy–-primo Jimmy,” disse o indivíduo. Emily olhou firmemente
para ele, e gostou imediatamente do que viu sem reserves.
Ele tinha um rosto pequeno, rosado e élfico com uma barba cinzenta
dividida em dois; o cabelo encaracolava-se em volta da cabeça num
género não muito Murray, como uma nuvem de castanho brilhante; e os
seus grandes olhos castanhos eram tão francos e meigos como os de uma
criança. Deu a Emily um aperto de mão sincero, apesar de olhar um
pouco receoso para a senhora ao seu lado por o ter feito.
“Olá gatinha!” disse-lhe.
Emily começou a sorrir, mas o seu sorriso foi, como habitual, tão
lento a sair que Ellen já a tinha empurrado quando acabou por
florescer e foi a tia Laura que beneficiou em pleno dele. A tia Laura
ficou calada e empalideceu.
“O sorriso da Juliet!” disse, muito baixinho. Mais uma vez, a tia Ruth
resmungou.
A tia Laura não se parecia com mais ninguém naquela sala. Era quase
bonita, com feições delicadas e grossas madeixas de cabelo pálido,
fino e loiro, levemente acinzentado, enrolado em volta da cabeça. Mas
foram os olhos dela que conquistaram a Emily. Era tão redondos e de um
azul tão distinto. Nunca se conseguia ultrapassar completamente o
choque do seu azul. E quando ela falou, tinha uma voz linda e meiga.
“Minha pobre querida menina,” disse, e envolveu-a com o braço para um
pequeno abraço de ternura.
Emily devolveu-lhe o abraço e foi por pouco que não deu aos Murray a
oportunidade de a verem chorar. Foi salva pelo facto de Ellen a ter
puxado subitamente para o canto ao pé da janela.
“E esta é a tua tia Elizabeth.”
Sim, esta era a tia Elizabeth. Não haviam dúvidas–-e tinha um vestido
de seda preto muito rígido, tão fino e rígido que Emily teve a certeza
que devia ser o seu melhor. Isto agradou a Emily. Fosse o que fosse
que a tia Elizabeth achasse do pai dela, pelo menos tinha-o
homenageado com o seu melhor vestido preto. E a tia Elizabeth era
muito distinta, com um tipo austero, alta e magra, com feições muito
bem desenhadas e um troço maciço de cabelo cinza aço debaixo da
capelina de renda preta. Mas os seus olhos, apesar de azul aço, eram
tão gelados como os da tia Ruth, e a sua boca longa e fina estava
severamente comprimida. Debaixo do seu olhar frio e inquisidor Emily
retirou-se para dentro dela própria e fechou a porta da sua alma.

15
Teria gostado de agradar à tia Elizabeth, que era quem mandava em New
Moon, mas sentiu que não o conseguiria fazer.
A tia Elizabeth apertou-lhe a mão e não disse nada–-a verdade é que
não sabia o que havia de dizer. Elizabeth Murray não se teria sentido
deslocada perante um rei ou um governador-geral. O orgulho dos Murray
tê-la-ia guiado em tais ocasiões; mas sentiu-se perturbada pela
presença desta criança estranha, que a olhava ao mesmo nível e já lhe
tinha mostrado que era tudo menos frágil e humilde. Embora nunca o
fosse admitir, Elizabeth Murray não queria ser desprezada como o
Wallace a Ruth tinham sido.
“Vai-te sentar no sofá,” ordenou Ellen.
Emily sentou-se no sofá com os olhos baixos, uma pequena figura,
escura e indomável. Descansou as mãos sobre o colo e cruzou os
tornozelos. Eles iam ver que ela tinha boas maneiras.
Ellen retirou-se para a cozinha, agradecida por pelo menos isto ter
terminado. Emily não gostava de Ellen, mas sentiu-se abandonada quando
ela saiu. Agora estava sozinha perante o tribunal de opinião dos
Murray. Teria dado tudo para estar fora daquela sala. Mas ainda assim,
na sua cabeça, começava a desenhar os contornos de uma descrição para
escrever no seu velho livro amarelo. Seria interessante. Ela conseguia
descrevê-los a todos – sabia que conseguia. Tinha a palavra ideal para
os olhos da tia Ruth “cinza pedra”. Eram mesmo como pedras–-duros e
frios e sem piedade. Então uma dor súbita atingiu-lhe o coração. O pai
nunca mais poderia ler o que ela escrevia no seu livro de
apontamentos.
Ainda assim-–sentiu que ia gostar de escrever tudo aquilo. Como é que
podia descrever os olhos da tia Laura? Eram uns olhos tão bonitos–-
chamar-lhes só azuis não significava nada–-haviam centenas de pessoas
com olhos azuis–-oh, já sabia–-“poços de azul”-–era o termo exacto.
E então veio o flash!
Era a primeira vez desde aquela noite horrível em que Ellen veio ter
consigo ao degrau de entrada. Tinha pensado que nunca mais viria–-e
era agora, nesta altura e espaço tão improvável que vinha–-e então
viu, com outros olhos que não os dos sentidos, o mundo maravilhoso
para além do véu. A coragem e a esperança inundaram a sua pequena alma
como uma onda de luz rosada. Ela levantou a cabeça e olhou em volta
entusiasmada–-insolente, declarou mais tarde a tia Ruth
“Sim, ela iria escrever tudo no seu livro de apontamentos–-descrevê-
los a todos–-a doce tia Laura, o querido primo Jimmy, o velho e sério
tio Wallace, o tio Oliver com cara de Lua, a imponente tia Elizabeth e
a detestável tia Ruth.
“Ela é uma criança de aspecto delicado,” disse a tia Eva, subitamente,
na sua voz incolor e insegura.
“Pois, mas o que mais se podia esperar?” disse a tia Addie, com um
suspiro que para Emily pareceu ter qualquer significado terrível. “Ela
é demasiado pálida–-se tivesse um pouco mais de cor não teria mau
aspecto.”
“Eu não sei com quem é que ela se parece,” disse o tio Oliver,
observando Emily.
“Com os Murray não é de certeza,” disse a tia Elizabeth, de forma
decidida e desaprovadora.
“Eles estão a falar de mim como se eu aqui não estivesse,” pensou
Emily, com o coração cheio de indignação pela indecência deles.
“Eu também não diria que é uma Starr,” disse o tio Oliver. “Parece-me
que é mais como os Byrds – tem o cabelo e os olhos da avó.”
“Mas tem o nariz do velho George Byrd,” num tom que não deixava
dúvidas quanto à opinião que tinha sobre o nariz do George.
“Tem a testa do pai,” disse a tia Eva, também desaprovadora.
“Ela tem o sorriso da mãe,” disse a tia Laura, mas num tom de voz tão
baixo que ninguém a ouviu.

16
“E as pestanas compridas da Juliet–-a Juliet não tinha umas pestanas
muito compridas?” disse a Tia Addie.
Emily tinha atingido o limite da sua paciência.
“Vocês fazem-me sentir como se eu fosse feita de bocados e retalhos!”
explodiu indignada.
Os Murrays olharam para ela com espanto. Talvez tivessem sentido
alguma pena, porque afinal, eles não eram ogres, eram todos mais ou
menos humanos. Aparentemente ninguém conseguiu pensar em nada para
dizer, mas o silêncio chocado foi interrompido por uma risada do primo
Jimmy–-uma risada baixa, cheia de graça e livre de malícia.
“É isso mesmo, gatinha,” disse. “Não te cales, diz o que pensas.”
“Jimmy!” disse a tia Ruth.
Jimmy obedeceu.
A tia Ruth olhou para Emily.
“Quando eu era uma menina pequena,” disse, “nunca falava se não me
dirigiam a palavra.”
“Mas se ninguém falasse enquanto não lhe dirigissem a palavra nunca se
podia conversar,” argumentou Emily.
“E nunca respondia,” continuou a Tia Ruth com severidade. “Naqueles
dias, as jovens eram educadas como devia ser. Éramos educadas e
respeitosas com os mais velhos. Ensinavam-nos o nosso lugar e nós
aceitávamo-lo.”
“Não me parece que se tenha divertido muito,” disse Emily–-e depois
inspirou de horror. Ela não tinha intenção de dizer aquilo–tinha só
intenção de o pensar. Mas estava tão habituada a pensar alto para o
pai.
“Divertido?!” disse a tia Ruth, num tom chocado. “Eu não pensava em me
divertir quando era pequena.”
“Pois, eu sei,” disse Emily muito séria. A voz e as maneiras dela eram
perfeitamente respeitosas, porque ela estava ansiosa por fazer
esquecer o seu lapso involuntário. Ainda assim, a tia Ruth parecia
querer puxar-lhe as orelhas. Esta criança estava com pena dela–-
insultando-a por a lamentar–-por causa da sua infância sensata e
impecável. Era intolerável, especialmente vindo de uma Starr. E aquele
abominável Jimmy estava-se a rir outra vez! A Elizabeth devia metê-lo
na linha!
Felizmente a Ellen Greene apareceu nesta conjuntura e anunciou o
jantar.
“Tu tens que esperar,” sussurrou a Emily. “Não há lugar para ti à
mesa.”
Emily ficou contente. Sabia que não conseguiria comer sob o olhar dos
Murray. Os seus tios e tias saíram em fila rigidamente sem sequer
olharem para ela-–todos menos a tia Laura, que se virou à porta e lhe
mandou um beijo pequeno e furtivo. Antes que Emily lhe pudesse
responder, Ellen tinha fechado a porta.
Emily foi deixada sozinha na sala que se enchia de sombras ao
anoitecer. O orgulho que a sustentara na presença dos Murray começou
subitamente a faltar-lhe e ela sabia que as lágrimas vinham a caminho.
Dirigiu-se à porta fechada ao fundo da sala de visitas, abriu-a e
entrou. O caixão do pai dela estava ao centro da pequena divisão que
tinha sido um quarto de dormir. Estava repleto de flores–-os Murray
tinham tido a atitude correcta nisto tal como nas outras coisas. A
grande âncora de rosas brancas que o tio Wallace tinha trazido
sobressaía agressivamente na pequena mesa à cabeceira. Emily não
conseguia ver o rosto do pai por causa da almofada de jacintos brancos
fortemente perfumada que a tia Ruth tinha depositado no vidro, e não
se atreveu a afastá-la. Mas aninhou-se no chão e encostou o rosto ao
lado polido do caixão. Foi assim que a encontraram adormecida quando
entraram na sala depois do jantar. A tia Laura levantou-a e disse:
“Eu vou levar esta pobre criança para a cama–-está esgotada.”
Emily abriu os olhos e olhou confusa à sua volta.

17
“Posso levar o Mike?” disse.
“Quem é o Mike?” perguntou.
“O meu gato–-o meu gato grande e cinzento.”
“Um gato!” exclamou a tia Elizabeth com um ar chocado. “Tu não podes
ter um gato no teu quarto!”
“E porque não–-só hoje?” pediu a tia Laura.
“Com certeza que não!” disse a tia Elizabeth. “Um gato é uma coisa
muito pouco saudável para se ter numa divisão de dormir. Estou
admirada contigo, Laura! Leva essa criança para cima e certifica-te
que há roupa suficiente na cama. Está uma noite fria–-mas eu não quero
mais ouvir falar de dormir com gatos.”
“O Mike é um gato asseado,” disse Emily. “Ele lava-se--todos os dias.”
“Leva-a para a cama, Laura!” disse a tia Elizabeth, ignorando a Emily.
A tia Laura obedeceu debilmente. Levou a Emily para cima, ajudou-a a
despir-se e aconchegou-a na cama. Emily tinha muito sono. Mas antes
que adormecesse por completo, sentiu qualquer coisa macia, quente,
ronronante e companheira a aconchegar-se ao seu ombro. A tia Laura
tinha-se esgueirado lá para baixo, encontrou o Mike, e trouxe-o para
cima com ela. A tia Elizabeth não chegou a saber e a Ellen Greene não
se atreveu a protestar–-não era a Laura uma Murray de New Moon?

UM CONCLAVE FAMILIAR

Emily acordou ao nascer do sol da manhã seguinte. Através da sua


janela baixa e sem cortinas entrava o esplendor do nascer do sol, e
uma estrela ténue brilhava ainda no céu verde cristal por cima do
Pinheiro Galo. Um vento fresco e perfumado a relva soprava por entre
os beirais. Ellen Greene dormia na cama grande e ressonava
audivelmente. Exceptuando isso, a pequena casa estava muito
silenciosa. Era a oportunidade pela qual Emily esperava.
Muito cuidadosamente levantou-se da cama, percorreu o quarto em bicos
de pés e abriu a porta. Mike desenrolou-se no tapete do meio do chão e
seguiu-a, roçando o seu dorso quente contra os seus pequenos
tornozelos frios. Sentindo-se quase culpada ela desceu as escadas
escuras e nuas. Como rangiam os degraus--de certeza que ia acordar
toda a gente! Mas não apareceu ninguém e Emily desceu e entrou na sala
de visitas, dando um grande suspiro de alívio quando fechou a porta.
Quase que correu ao atravessar a sala em direcção à outra porta.
A almofada floral da tia Ruth ainda cobria o vidro do caixão. Emily,
com os lábios cerrados de uma forma que a assemelhavam estranhamente à
sua tia Elizabeth, levantou a almofada e colocou-a no chão.
“Oh, Pai–-Pai!” murmurou, levando a mão à garganta para segurar algo.
Ali ficou, uma pequena figura vestida de branco, e olhou para o Pai.
Esta seria a despedida; tinha que a dizer enquanto estivessem sozinhos
os dois–-não a diria perante os Murray.
O pai parecia tão bonito. Todas as linhas de dor tinham desaparecido-–
o seu rosto parecia quase o de um rapaz se não fossem alguns cabelos
prateados. E ele estava a sorrir-–um sorriso tão simpático, invulgar e
sensato, como se tivesse descoberto algo belo, inesperado e
surpreendente. Ela tinha-lhe visto muitos sorrisos no rosto durante a
vida, mas nunca um como este.
“Pai, eu não chorei na frente deles,” murmurou. “Eu tenho a certeza
que não envergonhei os Starrs. Não os envergonhei por não ter apertado
a mão à tia Ruth, pois não? Porque ela não queria mesmo que eu lha
apertasse–-oh, Pai, eu não acho que nenhum deles goste de mim, a não
ser talvez a tia Laura. E eu vou chorar um bocadinho agora, Pai,
porque não consigo evitar o tempo todo.”
Deitou a cara no vidro frio e soluçou amargamente mas durante pouco
tempo. Tinha que dizer adeus antes que alguém a encontrasse.
Levantando a cabeça ela olhou longamente o rosto tão amado.

18
“Adeus, meu mais querido,” murmurou sufocada pelos soluços.
Limpando as lágrimas que a cegavam, voltou a colocar no sítio a
almofada da tia Ruth, escondendo o rosto do pai para sempre. Então
saiu, tencionando voltar rapidamente ao seu quarto. Á porta quase caiu
para cima do primo Jimmy, que sentado numa cadeira ao lado da porta,
vestido com um robe enorme aos quadrados, fazia festas a Mike.
“S-s-h!” sussurrou-lhe, dando-lhe uma palmadinha no ombro. “Eu ouvi-te
descer e segui-te. Eu sabia o que querias. Estive aqui para evitar que
um deles entrasse de repente à tua procura. Vá, toma lá isto e vai
depressa para a tua cama, gatinha.”
“Isto” era um embrulho de losangos de hortelã-pimenta. Emily agarrou-
os e fugiu, cheia de vergonha por ter sido vista de camisa de dormir
pelo primo Jimmy. Ela detestava rebuçados de hortelã-pimenta e nunca
os comia, mas a gentileza do primo Jimmy em lhos ter dado trouxe-lhe
um arrepio de prazer ao coração. E ele também lhe chamava “gatinha”–-
ela gostava disso. Tinha imaginado que nunca mais ninguém lhe chamaria
nomes carinhosos. O pai tinha tantos para ela-– “querida”, e “fofinha”
e “menina-Emily”, e “miúdinha querida”, “doce” e “elfinha”. Ele tinha
um nome diferente para cada estado de espírito, e Emily adorava cada
um deles. E o primo Jimmy era simpático. Fosse qual fosse a parte dele
que faltava, não era o coração. Sentiu-se tão agradecida depois de se
ter metido na cama que comeu um dos losangos, apesar de ter exigido
toda a sua vontade para o engolir.
O funeral teve lugar nessa tarde. Por uma vez, a pequena casa do vale
encheu-se. O caixão foi levado para a sala de visitas e os Murrays
sentaram-se decorosamente em volta dele como pertencentes à família
enlutada, com Emily entre eles, pálida e composta no seu vestido
preto. Sentou-se entre a tia Elizabeth e o tio Wallace e não se
atreveu a mexer um músculo. Mais nenhum Starr estava presente. O seu
pai não tinha parentes próximos. As pessoas de Maywood vieram e
olharam para o seu rosto morto com uma liberdade e curiosidade
descarada que nunca ousariam em vida. Emily odiava que olhassem assim
para o pai. Não tinham esse direito–-nunca tinham sido simpáticos para
ele enquanto foi vivo-–diziam coisas dele–-a Ellen Greene por vezes
repetia-as. Cada olhar que caía sobre ele magoava Emily; mas ela ficou
sentada quieta e não dava sinais. A tia Ruth disse mais tarde que
nunca vira uma criança tão vazia de qualquer sentimento natural.
Quando terminou o serviço religioso os Murray levantaram-se e
marcharam em volta do caixão para um último olhar de despedida. A tia
Elizabeth pegou na mão de Emily e tentou levá-la com eles, mas Emily
retirou-a e abanou a cabeça. Ela já se tinha despedido. A tia
Elizabeth pareceu quase disposta a insistir; mas acabou por seguir
tristemente sozinha e séria, parecendo tão Murray quanto possível. Não
se faziam cenas num funeral.
Douglas Starr seria levado para Charlottetown para ser enterrado ao
lado da esposa. Os Murray iam todos mas Emily não era para ir.
Observou o cortejo do funeral enquanto subia a colina comprida e
relvada, através da chuva miúda e cinzenta que começava a cair. Emily
ficou contente por chover; muitas vezes ouvira Ellen dizer “feliz do
corpo em que a chuva cai”; e era mais fácil ver o pai partir naquela
névoa suave, cinzenta e condoída do que debaixo de um sol sorridente.
“Bem, afinal o funeral correu muito bem,” disse Ellen Greene por cima
do seu ombro. “Foi tudo feito como devia ser. Se o teu pai o viu lá do
céu, Emily, tenho a certeza que ficou satisfeito.”
“Ele não está no céu,” disse Emily.
“Santo Deus! Que criança!” Ellen não conseguiu dizer mais nada.
“Ele ainda lá não está. Está só a caminho. Ele disse que ia esperar,
que ia devagar até que eu morresse também, para eu ainda o apanhar. Só
espero morrer depressa.”
“Isso é uma coisa muito má para se desejar,” respondeu Ellen.

19
Quando o último buggy desapareceu Emily voltou para a sala de estar,
tirou um livro da estante e enterrou-se no cadeirão de orelhas. As
mulheres que lá estavam a arrumar ficaram contentes por ela estar
sossegada e fora do seu caminho.
“Ainda bem que ela sabe ler,” disse a senhora Hubbard tristemente.
“Algumas meninas não conseguem ter tanta compostura–-a Jennie Hood
gritou e berrou depois de terem levado a mãe dela–-os Hoods são
pessoas tão sentimentais.”
Emily não estava a ler. Estava a pensar. Ela sabia que os Murray iam
voltar nessa tarde; sabia que o seu destino iria ser decidido nessa
altura. “Nós vamos falar desse assunto quando voltarmos,” tinha ouvido
dizer ao tio Wallace nessa manhã depois do pequeno-almoço. Um certo
instinto disse-lhe o que era o assunto; e ela teria dado uma das suas
orelhas pontiagudas para ouvir a discussão com a outra. Mas sabia
muito bem que não poderia estar a ouvir. Por isso, não se surpreendeu
quando a Ellen lhe veio dizer ao anoitecer:
“Mais vale ires andando para cima, Emily. As tuas tias e tios estão a
chegar para discutirem o assunto.”
“Não posso ajudar a servir o jantar?” perguntou Emily, que achou que
se andasse para trás e para a frente na cozinha podia ouvir uma
palavra ou outra.
“Não. Ias-me dar mais trabalho que ajuda. Vamos embora.”
Ellen seguiu para a cozinha, sem esperar para se certificar que Emily
se ia embora. Emily levantou-se com relutância. Como é que poderia
dormir esta noite se não sabia o que se ia passar com ela? E estava
certa que não lhe diriam senão de manhã.
Os seus olhos caíram sobre a mesa rectangular ao centro da sala. A
toalha era de proporções generosas e caía em grossas pregas até ao
chão. Um vislumbre de meias pretas a atravessarem o tapete, uma súbita
perturbação nas pregas e depois, silêncio. Emily, no chão por baixo da
mesa, ajeitou as pernas para ficar confortável e sentou-se triunfante.
Ela iria ouvir o que se decidisse sem ter que esperar que lho
dissessem.
Nunca lhe tinham dito que espiar conversas não era propriamente um
comportamento honrado, uma vez que nunca se tinha proporcionado, na
sua vida com o pai, ocasião para tal ensinamento; e achou que tinha
sido uma questão de sorte ter-se lembrado de se esconder debaixo da
mesa. Ela até conseguia ver um bocadinho através do pano. O coração
dela batia tão depressa com a excitação que chegou a ter medo que o
ouvissem; mas não se ouvia mais nada senão o som suave do coaxar das
rãs à chuva, que entrava pela janela aberta.
E eles entraram, sentaram-se em volta na sala; Emily susteve a
respiração; por uns minutos ninguém falou, apesar da tia Eva suspirar
muito e profundamente. Então o tio Wallace pigarreou e disse,
“Bem, então o que é que se faz com a criança?”
Ninguém teve pressa de responder. Emily achou que nunca mais iam
falar. Finalmente a tia Eva disse com um lamento,
“Ela é uma criança tão difícil–-ão estranha. Eu não a consigo
perceber.”
“Eu acho,” disse a tia Laura timidamente,”que ela tem o que se costuma
chamar de temperamento artístico.”
“Ela é uma criança mimada,” disse a tia Ruth muito decidida. “Há muito
trabalho pela frente para lhe endireitarmos as maneiras, se querem
saber a minha opinião.”
(a pequena ouvinte por baixo da mesa virou a cabeça e mandou um olhar
de desdém à tia Ruth por baixo do pano. “Eu acho que as suas maneiras
também estão ligeiramente encurvadas.” Emily nem sequer se atreveu a
murmurar as palavras, mas esboçou-as com a boca; o que foi um grande
alívio e satisfação.)
“Eu concordo contigo,” disse a tia Eva, “e não me sinto à altura da
tarefa.”

20
(Emily compreendeu que isto queria dizer que o tio Wallace não a
queria e ficou portanto contente.)
“A verdade é que,” disse o tio Wallace, “a tia Nancy é que devia ficar
com ela. Ela tem mais bens do que qualquer um de nós.”
“A tia Nancy nem sonha em ficar com ela e tu sabes isso muito bem!”
disse o tio Oliver. “Além disso ela é velha demais para educar uma
criança-–ela e aquela velha bruxa da Caroline. Palavra de honra que
acredito que nenhuma das duas seja humana. Eu gostava de ficar com a
Emily–mas sei que não posso. Tenho uma grande família a meu cargo.”
“Ela também não deve viver o suficiente para ser grande incómodo,”
disse a tia Elizabeth secamente. “O mais certo é morrer tuberculosa
como o pai.”
(“Não morro, não morro!” exclamou Emily–-pelo menos pensou-o com tanto
ardor que quase parecia tê-lo exclamado. Esqueceu-se que queria morrer
depressa, para ir ter com o pai. Só queria ficar viva, só para não dar
razão aos Murray. “Eu não tenho qualquer intenção de morrer. Vou viver
–-anos e anos–-e vou ser uma escritora famosa-–vai ver se não vou, tia
Elizabeth Murray!”)
“Ela realmente é uma miúda com um ar doente,” concordou o tio Wallace.
(Emily aliviou os seus sentimentos fazendo uma careta ao tio Wallace
através do pano. “Se eu alguma vez tiver um porco vou dar-lhe o seu
nome,” pensou–-e sentiu-se bastante satisfeita com a sua vingança.)
“Mas alguém vai ter que olhar por ela enquanto viver, sabem,” disse o
tio Oliver.
(“Era bem feito que eu morresse e vocês sofressem remorsos horríveis
para o resto das vossas vidas,” pensou Emily. Depois, na pausa que se
seguiu, imaginou dramaticamente o seu funeral, escolheu quem lhe
carregaria o caixão, e tentou escolher o versículo que gostaria de ver
gravado na sua pedra tumular. Mas antes que conseguisse acabar, o tio
Wallace recomeçou.)
“Bem, não estamos a chegar a lado nenhum. Nós temos que olhar pela
criança—-“
(“Só queria que não me estivessem sempre a chamar ‘a criança’,” pensou
Emily amargamente.)
“E um de nós vai ter que lhe dar um lar. A filha da Juliet não pode
ser deixada à mercê da caridade de estranhos. Pessoalmente, eu acho
que a saúde da Eva não está à altura do cuidado e do treino de uma
criança.”
“De uma criança assim,” disse a tia Eva.
(Emily deitou a língua de fora à tia Eva.)
“Pobrezinha,” disse a tia Laura gentilmente.
(Qualquer coisa gelada no coração de Emily derreteu nesse momento. Ela
tinha ficado contente por lhe chamarem “pobrezinha” com tanta
ternura.)
“Não me parece que devas ter assim tanta pena dela, Laura,” disse o
tio Wallace decidido. “É evidente que ela tem muito poucos
sentimentos. Não a vi derramar uma lágrima desde que cá cheguei.”
“Não reparaste que não quis olhar para o pai pela última vez?” disse a
tia Elizabeth.
O primo Jimmy subitamente assobiou para o tecto.
“Ela sente tanto as coisas que as tem que esconder,” disse a tia
Laura.
O tio Wallace pigarreou.
“Achas que podíamos ficar com ela, Elizabeth?” continuou Laura
timidamente.
A tia Elizabeth endireitou-se inquieta.
“Não me parece que ela ficasse bem em New Moon, com três velhos como
nós.”
(“Eu ficava - Eu ficava!” pensou Emily.)
“Ruth, e tu?” disse o tio Wallace. “Estás sozinha naquela casa tão
grande. Não era bom para ti teres alguma companhia?”

21
“Eu não gosto dela,” disse a tia Ruth impiedosamente. “É falsa como
uma cobra.”
(“Não sou nada!” pensou Emily.)
“Com uma educação sensata e cuidadosa muitos dos defeitos dela podiam
ser curados,” disse pomposamente o tio Wallace.
(“Eu não os quero curados!” Emily estava a ficar cada vez mais zangada
debaixo da mesa. “Eu gosto dos meus defeitos mais do que das suas-–das
suas-–“ tentou lembrar-se de uma palavra-–então lembrou-se triunfante
de uma frase do seu pai--“das suas abomináveis virtudes!”)
“Eu duvido,” disse a tia Ruth, num tom mordaz. “O que se cria no osso
aparece na carne. E quanto ao Douglas Starr, acho que foi
absolutamente vergonhoso ele ter morrido e deixado esta criança sem um
cêntimo.”
“Mas foi de propósito?” perguntou o primo Jimmy timidamente. Era a
primeira vez que falava.
“Ele foi um falhado e um miserável,” respondeu a tia Ruth.
“Não foi nada-–não foi!” gritou Emily, levantando o pano com a cabeça
e aparecendo por entre as pernas da mesa.
Por um momento os Murray sentaram-se silenciosos e imóveis como se a
explosão os tivesse transformado em pedra. Então a tia Ruth levantou-
se, dirigiu-se para a mesa e levantou o pano, por detrás do qual Emily
se tinha escondido, percebendo por fim o que tinha feito.
“Levanta-te e sai daí Em’ly Starr!” exclamou a tia Ruth.
“Em’ly Starr” levantou-se e saiu. Não estava muito assustada–-estava
zangada demais para isso. Os olhos dela estavam negros e as bochechas
vermelhas.
“Que beleza–-que menina tão linda!” disse o primo Jimmy. Mas ninguém o
ouviu. A tia Ruth dominava o palco.
“Sua coscuvilheira sem vergonha!” disse. “Isto é o sangue dos Starr
que se revela–-um Murray nunca faria tal coisa. Tu devias ser
chicoteada!”
“O meu pai não era um falhado!” gritou Emily, sufocada de raiva. “A
senhora não tem o direito de lhe chamar um falhado. Ninguém que amou
tanto como ele pode ser um falhado. E não acredito que alguém a tenha
amado a si. É a senhora que é uma falhada. E eu não vou morrer
tuberculosa!”
“Mas tu apercebes-te da coisa vergonhosa que fizeste?” perguntou a tia
Ruth, com uma zanga fria.
“Eu queria saber o que ia ser feito de mim,” exclamou Emily. “Não
sabia que era uma coisa assim tão má–-não sabia que iam dizer coisas
tão horríveis sobre mim.”
“Quem espia nunca ouve falar bem de si próprio,” disse a Tia Elizabeth
impassível. “A tua mãe nunca teria feito tal coisa, Emily.”
Todo o atrevimento abandonou a pobre Emily. Sentiu-se culpada e
infeliz–-oh, tão infeliz. Ela não sabia–-mas parecia ter cometido um
erro gravíssimo.
“Vai lá para cima,” disse a tia Ruth.
Emily foi, sem protestar. Mas antes de ir olhou em volta da sala.
“Enquanto estive debaixo da mesa,” disse, “fiz caretas ao tio Wallace
e deitei a língua de fora à tia Eva.”
E disse-o com tristeza, desejando limpar-se dessas transgressões; mas
os mal-entendidos são tão fáceis que os Murray acharam que ela estava
mais uma vez a ser impertinente. Quando a porta se fechou atrás dela
todos–-excepto a tia Laura e o primo Jimmy–-abanaram a cabeça e
resmungaram.
Emily subiu num estado de amarga humilhação. Sentia que tinha feito
qualquer coisa que dava aos Murray o direito de a desprezar, e de
acharem que era o sangue dos Starr dentro dela-–e nem sequer ficou a
saber o que seria o seu destino.
Olhou tristemente para a pequena Emily Detrás do Espelho.

22
“Eu não sabia-–eu não sabia,” murmurou. “Mas agora já sei,”
acrescentou com uma súbita força, “e nunca, nunca mais faço isto outra
vez.”
Por um momento pensou em atirar-se para a cama a chorar. Não conseguia
suportar a dor e a vergonha que lhe queimavam o coração. Então os seus
olhos caíram no velho caderno de apontamentos amarelo na sua mesinha
pequena. Um minuto mais tarde, Emily estava enroscada na sua cama ao
estilo turco, escrevendo ansiosamente no velho livro com o seu pequeno
lápis de chumbo. Enquanto os seus dedos voavam sobre as linhas
esbatidas o seu rosto iluminava-se e os olhos brilhavam. Ela esqueceu-
se dos Murray apesar de estar a escrever sobre eles–-esqueceu-se da
sua humilhação–-apesar de descrever o que se passara; durante uma hora
escreveu à luz fraca da sua lâmpada fumarenta, sem parar a não ser
ocasionalmente para espreitar a beleza velada da noite enevoada pela
janela, enquanto procurava na sua memória uma palavra que precisava;
quando a encontrava, dava um suspiro feliz e retomava a escrita outra
vez.
Quando ouviu os Murray a subirem as escadas guardou o seu livro. Tinha
terminado; tinha escrito uma descrição de toda a ocorrência e daquele
círculo de conclave de Murrays, e tinha terminado com uma descrição
patética do seu próprio leito de morte, com os Murray em volta,
implorando o seu perdão. De início começou por pôr a tia Ruth de
joelhos numa agonia de soluços de remorsos. Então suspendeu a
escrita–-“A tia Ruth nunca se sentiria tão mal assim por nada,”
pensou–-e riscou o que escrevera.
Pela escrita, a dor e a humilhação passaram. Ela apenas se sentia
cansada e um bocado feliz. Tinha sido divertido, encontrar palavras
para descrever o tio Wallace; e que satisfação tinha tido ao descrever
a tia Ruth como “uma mulherzinha atarracada.”
“O que diriam os meus tios e tias se soubessem o que eu realmente
penso deles?” murmurou Emily enquanto se metia na cama.

SÓ UM DIAMANTE CORTA OUTRO DIAMANTE

Emily, que tinha sido evidentemente ignorada pelos Murray ao pequeno-


almoço, foi chamada à sala de visitas quando estes terminaram a
refeição.
Eles estavam lá todos–-o clã inteiro–-e ocorreu a Emily enquanto
olhava para o tio Wallace, sentado ao sol primaveril, que afinal não
tinha encontrado a palavra exacta para definir o tipo de seriedade
peculiar dele.
A tia Elizabeth estava à mesa com uma expressão séria e tinha umas
tiras de papel na mão.
“Emily,” disse, “a noite passada nós não conseguimos decidir quem
tomaria conta de ti. Posso dizer que nenhum de nós ficou com muita
vontade, porque tu te portaste muito mal em muitos aspectos—“
“Oh, Elizabeth,” protestou Laura. “Ela–-ela é filha da nossa irmã.”
Elizabeth levantou a mão, digna como uma rainha.
“Sou eu que estou a fazer isto, Laura. Tem a bondade de não me
interromper. Como estava a dizer, Emily, nós não conseguimos decidir
quem teria que cuidar de ti. Por isso, concordámos com a sugestão do
primo Jimmy, que disse que podíamos resolver o assunto à sorte. Eu
tenho aqui os nossos nomes escritos nestas tiras de papel. Tu vais
tirar um e aquele cujo nome for tirado vai dar-te um lar.”
A tia Elizabeth levantou as tiras de papel. Emily tremia tão
violentamente que de início não conseguiu tirar nenhuma. Isto era
terrível–-parecia que ela tinha que escolher o seu destino ás cegas.
“Tira,” disse a tia Elizabeth.

23
Emily cerrou os dentes, inclinou a cabeça para trás com o ar de quem
desafia o destino, e escolheu. A tia Elizabeth tirou-lhe o papel da
pequena mão trémula e levantou-o. Era o seu próprio nome–-“Elizabeth
Murray”. Laura Murray levou subitamente o lenço aos olhos.
“Bem, então está decidido,” disse o tio Wallace, levantando-se com um
ar aliviado. “E se vou apanhar o comboio tenho que me apressar. Claro
que, no capítulo das despesas, Elizabeth, eu vou fazer a minha parte.”
“Nós não somos pobres em New Moon,” disse a tia Elizabeth, de uma
forma um pouco fria. “Uma vez que caiu em mim a obrigação de tomar
conta dela, farei tudo o que seja necessário, Wallace. Não faltarei ao
meu dever.”
“Eu sou um dever para ela,” pensou Emily. “O pai disse que ninguém
gostava de um dever. Por isso a tia Elizabeth nunca gostará de mim.”
“Tu tens mais orgulho Murray do que nós todos juntos, Elizabeth,”riu-
se o tio Wallace.
Todos o seguiram para fora–-todos excepto a tia Laura. Ela veio ter
com Emily, que ficara sozinha no meio da sala, e apertou-a nos braços.
“Eu estou tão contente, Emily–-tão contente,” murmurou. “Não te
preocupes, querida menina. Eu já gosto muito de ti–-e New Moon é um
sítio bonito, Emily.”
“Tem–-um nome muito bonito,” disse Emily, lutando por recuperar o
auto-controlo. “Eu--sempre esperei–-poder ficar consigo, tia Laura. Eu
acho que vou chorar–-mas não é por causa de ter pena de ir para lá. As
minhas maneiras não são tão más como vocês possam pensar, tia Laura-–e
eu ontem à noite não teria escutado a conversa se soubesse que era
errado.”
“Claro que não, querida,” disse a tia Laura.
“Mas eu não sou uma Murray, sabe.”
E então a tia Laura respondeu uma coisa estranha–-para uma Murray.
“Graças a Deus!” disse a tia Laura.
O primo Jimmy seguiu a Emily quando esta saiu e apanhou-a no pequeno
hall. Olhando cuidadosamente em volta para assegurar a privacidade da
conversa, murmurou.
“A tua tia Laura faz uma empada de maçã espectacular, gatinha.”
Emily achou que empada de maçã soava bem, mas não sabia bem o que era.
Murmurou-lhe uma pergunta que nunca se teria atrevido a fazer à tia
Elizabeth ou até à tia Laura.
“Primo Jimmy, quando fizerem um bolo em New Moon, acha que me vão
deixar comer as raspas da tigela?”
“A Laura sim, a Elizabeth não.” Respondeu-lhe o primo Jimmy com
solenidade.
“E pôr os pés no forno quando estiverem frios? E comer uma bolacha
antes de ir para a cama?”
“A resposta é a mesma,” disse o primo Jimmy. “Eu vou-te recitar a
minha poesia. Eu faço isso a muito poucas pessoas. Já compus milhares
de poemas. Não estão escritos–-eu tenho-os guardados aqui.” O primo
Jimmy apontou para a cabeça.
“É muito difícil escrever poesia?” perguntou Emily, olhando o primo
Jimmy com um novo respeito.
“É fácil como rebolar um tronco, se conseguires encontrar as rimas,”
disse o primo Jimmy.
Eles foram-se todos embora nessa manhã excepto os de New Moon. A tia
Elizabeth anunciou que eles iriam ficar até ao dia seguinte para
arrumar e trazer todas as coisas de Emily com eles.
“A maior parte das mobílias são da casa,” disse, “por isso não vamos
demorar muito a ter tudo pronto. Só há os livros do Douglas Starr e os
poucos objectos pessoais deles para arrumar.”
“Como é que eu levo os meus gatos?” perguntou Emily ansiosamente.
“Gatos! Tu não vais levar gatos nenhuns, menina.”
“Oh, mas eu tenho que levar o Mike e a Saucy Sal!” exclamou Emily
desesperada. “Não os posso deixar. Eu não consigo viver sem um gato.”

24
“Que disparate! Há lá muitos gatos no celeiro da Lua Nova, mas nunca
podem entrar dentro de casa.”
“A senhora não gosta de gatos?” perguntou Emily.
“Não, não gosto.”
“Não gosta de sentir um gato gordo, macio e fofinho?” persistiu Emily.
“Não; mais depressa tocava numa cobra.”
“Há ali uma boneca de cera tão bonita que foi da tua mãe,” disse a tia
Laura. “Eu faço-lhes uns vestidos.”
“Eu não gosto de bonecas–-elas não falam,” exclamou Emily.
“Nem os gatos.”
“Oh, mas falam! O Mike a Saucy Sal falam. Oh, eu tenho que os levar.
Oh, por favor, tia Elizabeth. Eu adoro aqueles gatos. E são os únicos
seres no mundo que gostam de mim. Por favor!”
“Que diferença é que faz um gato a mais ou a menos em duzentos acres
de terra?” disse o primo Jimmy, puxando a sua barba bifurcada. “Deixa-
os ir, Elizabeth.”
A tia Elizabeth pensou por um momento. Ela não conseguia compreender
porque é que alguém poderia querer um gato. A tia Elizabeth era uma
daquelas pessoas que nunca compreendem nada a não ser que lhes seja
dito numa linguagem muito simples e repetido várias vezes até lhes
entrar na cabeça. E mesmo assim só conseguem compreender com a cabeça
e nunca com o coração.
“Tu podes levar um dos teus gatos,” disse por fim, com o ar de alguém
que faz uma grande concessão. “Um–-e não mais. Não, não discutas. Mais
vale aprenderes agora, Emily, que quando eu digo uma coisa é para se
fazer. Já chega, Jimmy.”
O primo Jimmy engoliu uma coisa que ia dizer, enfiou as mãos nos
bolsos e assobiou para o tecto.
“Quando não quer, não vai–-mesmo à Murray. Nós nascemos todos com essa
falha, gatinha, e vais ter que nos aguentar–-principalmente porque tu
também a tens, sabes. A dizeres que não és Murray! O Starr mal te
cobre a pele.”
“Não sou–-sou toda Starr–-eu quero ser,” exclamou Emily. “E oh, como é
que eu posso escolher entre o Mike e a Saucy Sal?”
Era de facto um problema. Emily lutou com ele todo o dia, com o
coração destroçado. Ela gostava mais do Mike–-não tinha dúvidas; mas
não podia deixar a Saucy Sal entregue aos ternos cuidados da Ellen
Greene. Ellen sempre detestara a Sal; mas até gostava do Mike e seria
boa para ele. Ellen ia regressar à casa dela na aldeia de Maywood e
queria arranjar um gato. Por fim, ao anoitecer, Emily tomou a difícil
decisão. Levaria a Saucy Sal.
“Mais vale levares o macho,” disse o primo Jimmy. “Não te vai dar
problemas com gatinhos, sabes, Emily.”
“Jimmy!” disse a tia Elizabeth desconcertada. Emily interrogou-se
sobre o desconcerto. Porque é que não se podiam mencionar os gatinhos?
Mas não gostou de ouvir o primo Jimmy referir-se a Mike como “o
macho”. Quase parecia um insulto.
E não gostou da confusão de embalar as coisas. Tinha saudades do velho
sossego e das doces conversas que recordava com o pai. Sentia que ele
tinha sido afastado dela por esta invasão de Murrays.
“O que é isto?” perguntou subitamente a tia Elizabeth, parando por um
momento de encaixotar. Emily olhou para cima e viu com desespero que a
tia Elizabeth tinha na mão o velho livro de apontamentos-–que o estava
a abrir–-que o estava a ler. Emily correu para ela e tirou-lhe o livro
das mãos.
“A senhora não pode ler isto, tia Elizabeth,” gritou indignada, “isto
é meu, é propriedade privada minha.”
“Ora muito bem, menina Starr,” disse a tia Elizabeth, fixando-lhe o
olhar, ”deixa-me dizer-te que eu tenho todo o direito de ler os teus
livros. Sou responsável por ti agora. Não vou tolerar coisas
escondidas nem secretas, compreende bem. É evidente que tu tens aí

25
qualquer coisa de que te envergonhas e eu quero ver. Dá-me cá esse
livro.”
“Eu não tenho vergonha dele,” exclamou Emily, fugindo-lhe e abraçando
o livro precioso junto ao peito. “Mas eu não a vou deixar vê-lo, nem a
si nem a ninguém.”
A tia Elizabeth seguiu-a.
“Emily Starr, ouviste o que eu te disse? Dá-me esse livro
imediatamente.”
“Não–-não!” Emily voltou-se e fugiu. Ela nunca deixaria a tia
Elizabeth ver o livro. Fugiu para o fogão da cozinha, levantou uma das
tampas e enfiou o livro no lume brilhante. Este pegou fogo e ardeu
alegremente. Emily observava-o em agonia. Parecia-lhe uma parte dela
que ardia ali. Mas a tia Elizabeth nunca o veria–-nunca veria as
coisinhas que ela escrevera e lera para o pai–-todas as suas ilusões
sobre a Dama do Vento-–sobre a Emily detrás do Espelho–-todos os seus
diálogos de gatos--todas as coisas que ela escrevera na noite passada
sobre os Murray. Ela viu as folhas encolherem-se e tremerem, como se
fossem coisas vivas, e depois ficarem negras. Uma linha de escrita
branca apareceu vívida numa delas. “A tia Elizabeth é muito fria e
convencida.” E se a tia Elizabeth tivesse visto aquilo! Emily olhou
apreensiva por cima do ombro. Não, a tia Elizabeth tinha voltado à
sala e fechou a porta com o que qualquer pessoa que não fosse um
Murray teria chamado um safanão. O livro de apontamentos era agora um
pequeno monte de película branca no carvão incandescente. Emily
sentou-se ao lado do fogão e chorou. Sentia que tinha perdido qualquer
coisa de incalculável preciosidade. Era terrível pensar que todas
aquelas coisas queridas tinham desaparecido. Nunca mais as poderia
escrever novamente–-nunca da mesma maneira; e mesmo que conseguisse
não se atreveria–-ela nunca se atreveria a escrever fosse o que fosse
novamente, se a tia Elizabeth queria ver tudo. O pai nunca insistia em
ver o caderno. Ela gostava de lho ler–-mas se não quisesse fazê-lo ele
nunca a teria obrigado. Emily, com as lágrimas a correrem-lhe cara
abaixo, acrescentou subitamente uma linha ao seu livro imaginário.
“A tia Elizabeth é fria e convencida; e não é justa.”
Na manhã seguinte, enquanto o primo Jimmy carregava as caixas para a
parte de trás do buggy de dois bancos, e a tia Elizabeth dava as
últimas instruções a Ellen, Emily despediu-se de tudo–-do Pinheiro
Galo e do Adão e Eva-–“eles vão sentir tanto a minha falta quando eu
cá não estiver; não vai cá ficar ninguém que os ame,” disse com
tristeza. Disse adeus à racha em forma de aranha na janela da
cozinha-–ao velho cadeirão de orelhas-–ao canteiro de erva riscada–-ás
senhoras bétulas prateadas. Então subiu lá a cima e foi à janela do
seu velho quarto. Aquela pequena janela sempre lhe tinha parecido
abrir um mundo maravilhoso. No livro de apontamentos queimado havia
uma composição da qual ela se orgulhava particularmente. “Uma
descrisão da vista da minha janela.” Ela tinha-se lá sentado e
sonhado; à noite costumava ajoelhar-se lá e rezar as suas orações. Por
vezes as estrelas brilhavam através dela–-por vezes batia-lhe a
chuva–-por vezes as andorinhas e os pardais visitavam-na–-por vezes
flutuavam até lá acima fragrâncias de maçã e lilás-–por vezes a Dama
do Vento ria-se e suspirava e cantava, rodopiando à sua volta–-Emily
ouvira-a lá na noite escura e nas grandes tempestades de Inverno. Não
se despediu da Dama do Vento, porque sabia que esta estaria na Lua
Nova também; mas disse adeus à pequena janela e ao monte verde que
tinha amado, aos bosques repletos de fadas e à pequena Emily Detrás do
Espelho. Poderia haver outra Emily Detrás do Espelho em New Moon, mas
não seria a mesma. E retirou da parede e meteu no bolso uma imagem de
um vestido de baile que recortara de uma revista de moda. Era um
vestido tão maravilhoso, todo cheio de rendas brancas e ramos de rosas
em botão, com uma longa cauda com folhos que quase chegava ao outro
lado do salão. Emily tinha-se imaginado um milhar de vezes usando esse

26
vestido, deslizando como uma rainha de beleza através de um salão de
baile.
Lá em baixo esperavam por ela. Emily disse adeus à Ellen Greene de uma
forma um bocado indiferente–-nunca gostara muito da Ellen Greene, e
desde a noite em que esta lhe dissera que o pai dela estava a morrer
odiava-a e temia-a.
Ellen surpreendeu Emily porque começou a chorar e abraçou-a–-implorou-
lhe que não a esquecesse–-pediu-lhe que lhe escrevesse--e chamou-lhe
“a minha menina abençoada”.
“Eu não sou a sua menina abençoada,” disse Emily, “mas vou-lhe
escrever. E vai ser muito boa para o Mike?”
“Parece-me que tens mais pena de deixar esse gato do que a mim,”
soluçou Ellen.
“Pois com certeza que tenho,” disse a Emily, surpreendida por haver
dúvidas quanto a isso.
E foi precisa toda a sua força de vontade para não chorar quando se
despediu do Mike, que estava enrolado na relva batida pelo sol ao pé
da porta das traseiras.
“Talvez eu te volte a ver um dia,” murmurou-lhe enquanto o abraçava.
“De certeza que os gatinhos bons vão para o céu.”
E partiram então, no buggy de dois assentos com capota debruada,
pretensioso como os Murrays de New Moon. Emily nunca tinha viajado num
transporte tão esplêndido antes. Ela nunca dava grandes passeios. Uma
ou duas vezes o pai pedira a carroça do senhor Hubbard emprestada para
irem a Charlottetown. A carroça dava muito solavancos e o pónei era
lento, mas o pai falara com ela todo o caminho e tornou a viagem uma
maravilha.
O primo Jimmy e a tia Elizabeth sentaram-se à frente, a última muito
imponente com uma touca de renda preta e uma mantilha. A tia Laura e a
Emily ocupavam o assento de trás, com a Saucy Sal entre as duas metida
num cesto, miando aflitivamente.
Emily olhou para trás enquanto atravessavam a alameda relvada e achou
que a pequena casa velhinha e castanha do vale tinha um ar desolado.
Desejou voltar atrás para a consolar. Apesar da sua resolução, vieram-
lhe as lágrimas aos olhos; mas a tia Laura passou a mão enluvada por
cima do cesto da Sal e apanhou a da Emily com um aperto compreensivo.
“Oh, eu gosto tanto de si, tia Laura,” murmurou Emily.
E os olhos da tia Laura ficaram muito, muito azuis, e meigos e
profundos.

LUA NOVA

Emily achou agradável


o passeio através do
mundo florescente de
Junho. Ninguém falou
muito; mesmo a Saucy
Sal tinha caído no
silêncio do
desespero; de vez em
quando o primo Jimmy
fazia um comentário,
mais para si mesmo ao
que parecia, do que
para os outros. Por
vezes a tia Elizabeth
respondia-lhe, por

27
vezes não. Ela falava sempre de forma fria e não usava palavras
desnecessárias.
Pararam em Charlottetown e almoçaram. Emily, que não tinha apetite
desde a morte do seu pai, não conseguiu comer o lombo assado que a
empregada lhe pôs na frente. Assim, a tia Elizabeth disse qualquer
coisa em voz baixa à empregada que se foi embora e regressou com um
prato delicado de galinha fria, com umas finas fatias brancas
enfeitadas com folhinhos de alface.
“E isso, comes?” perguntou a tia Elizabeth, como se interrogasse um
criminoso na barra de um tribunal.
“Eu–-vou tentar,” murmurou Emily.
Ela estava demasiado assustada nessa altura para dizer mais alguma
coisa, mas depois de ter empurrado algumas garfadas de galinha
decidiu-se a pôr um certo assunto em pratos limpos.
“Tia Elizabeth,” disse.
“Sim, o quê?” disse a tia Elizabeth, dirigindo o seu olhar azul-aço
directamente para os olhos perturbados da sua sobrinha.
“Eu gostava que percebesse,” disse Emily, falando de forma muito clara
e precisa para se assegurar que as coisas eram compreendidas, “que não
foi por não gostar da carne assada que não a comi. Eu não tinha fome;
só comi algumas fatias de galinha para lhe fazer a vontade, e não
porque gostasse mais dela.”
“As crianças deviam comer o que lhes põem à frente e nunca virarem os
narizes a comida boa e saudável,” disse a tia Elizabeth severamente.
Por isso Emily sentiu que a tia Elizabeth não tinha percebido e
sentiu-se infeliz.
Depois do almoço a tia Elizabeth anunciou à tia Laura que iam fazer
algumas compras.
“Temos que comprar algumas coisas à criança,” disse.
“Oh, por favor, não me chamem ‘a criança,’” exclamou Emily. “Faz-me
sentir que não pertenço a lado nenhum. Não gosta do meu nome, tia
Elizabeth? A minha mãe achava-o tão bonito. E eu não preciso de
coisas. Tenho dois conjuntos de roupa interior–-só um é que está
remendado-“
“S-s-sh!” disse o primo Jimmy, dando um pequeno pontapé na saia de
Emily por baixo da mesa.
O primo Jimmy só queria dizer que era melhor deixar a tia Elizabeth
comprar-lhe coisas agora que ela estava para aí virada; mas Emily
achou que ele a estava a repreender por ter falado na roupa interior e
ficou imersa numa confusão corada. A tia Elizabeth continuou a falar
com Laura como se não a tivesse ouvido.
“Ela não pode usar esse vestido preto ordinário em Blair Water.
Podiam-se coar as papas por ele. E é um disparate esperar que uma
criança de dez anos ande de luto carregado. Eu vou-lhe comprar um
vestido bonito, branco com um laço preto, e um tecido aos quadradinhos
brancos e pretos para ela levar à escola. Jimmy, a criança fica
contigo. Olha por ela.”
O primo Jimmy tomou conta dela através de um método próprio: levou-a a
um restaurante no fim da rua e entupiu-a de gelado. Emily nunca tivera
muitas oportunidades de comer gelado e não precisou que a
incentivassem, mesmo com falta de apetite conseguiu comer duas taças.
O primo Jimmy olhava para ela com satisfação.
“Não vale a pena comprar-te qualquer coisa que a Elizabeth possa ver,”
disse-lhe. “Mas ela não consegue ver o que está dentro de ti.
Aproveita a oportunidade, sabe Deus quando é que vais comer disto
outra vez.”
“Nunca comem gelado em New Moon?”
O primo Jimmy abanou a cabeça.
“A tua tia Elizabeth não gosta de coisas modernas. Dentro de casa,
vivemos como há cinquenta anos, mas na quinta ela tem que ceder.
Dentro de casa–-velas; na leitaria, as panelas da avó dela para ferver

28
o leite. Mas gatinha, New Moon é um sítio muito bom afinal de contas.
Tu vais ver que vais gostar, com o tempo.”
“Há lá fadas?” perguntou Emily, ansiosa.
“Os bosques estão cheios delas,” disse o primo Jimmy. “E as aquilégias
do velho pomar também. Nós plantamos lá aquilégias de propósito por
causa das fadas.”
Emily suspirou. Desde que tinha oito anos que sabia que não já não
haviam fadas em lado nenhum hoje em dia; mas ainda não tinha perdido
por completo a esperança que uma ou duas pudessem ter ficado para trás
em sítios antiquados e fora de mão. E onde melhor do que em New Moon?
“Fadas mesmo verdadeiras?” perguntou.
“Oh, tu sabes que se uma fada fosse uma fada de verdade não seria uma
fada,” disse o primo Jimmy muito sério. “Ou achas que sim?”
Antes que Emily pudesse responder as tias regressaram e depressa se
puseram a caminho novamente. Foi ao pôr-do-sol que chegaram a Blair
Water--um pôr-do-sol rosado que inundava a comprida costa arenosa de
cor e realçava a estrada vermelha e a colina escurecida pelos
pinheiros numa breve clareza de contornos. Emily olhava em volta para
o seu novo ambiente e achou-o bom. Viu uma grande casa branca
espreitando através de um véu de grandes árvores antigas–-não um
cogumelo de bétulas plantadas no dia anterior mas árvores que tinham
amado e sido amadas por três gerações–-o brilho de água prateada por
detrás de escuros abetos–-e isso ela sabia que era o próprio lago de
Blair Water–-e uma torre de igreja branca e dourada que se projectava
por cima do bosque de áceres no vale mais abaixo. Mas não foi nada
disto que lhe trouxe o flash–-esse veio com um vislumbre da querida,
amigável pequena janela do sótão que a espreitava por entre
trepadeiras no telhado–-e logo por cima dela, no céu opalescente, uma
verdadeira lua nova, dourada e fina. Emily ainda estava toda arrepiada
por ela quando o primo Jimmy a pegou ao colo para a tirar do buggy e a
levou até à cozinha.
Ela sentou-se num banco de madeira que estava acetinado pela idade e
pelas esfregas, e observou a tia Elizabeth a acender velas por aqui e
por ali, em grandes e brilhantes candelabros de cobre–-na prateleira
entre as janelas, na cómoda alta onde as filas de pratos brancos e
azuis começavam a piscar-lhe as boas vindas, na comprida mesa do
canto. E enquanto ela as acendia, elvish "rabbits' candles" cintilavam
entre as árvores do lado de fora das janelas.
Emily nunca vira uma cozinha assim. Tinha paredes de madeira escura e
um tecto baixo, com vigas negras a atravessá-lo, das quais pendiam
presuntos e pedaços de bacon, e ramos de ervas e meias e luvas novas,
e muitas outras coisas cujos nomes e usos Emily não conseguia
imaginar. O chão de madeira estava escrupulosamente branco, e as
tábuas tinham sido lavadas tantas vezes ao longo dos anos que os nós
sobressaíam em pequenas bossas divertidas, e em frente ao fogão tinha-
se desgastado, formando uma pequena concavidade estranha e pouco
profunda. Num canto do tecto estava um grande buraco quadrado que
parecia escuro e fantasmagórico à luz das velas, e a fazia sentir-se
arrepiada. Qualquer coisa podia aparecer de repente de dentro de um
buraco como aquele se uma pessoa não se portasse bem. E as velas
projectavam umas sombras tão estranhas e ondulantes. Emily não sabia
dizer se gostava da cozinha de New Moon ou não. Era um local
interessante–-e ela teria gostado muito de a descrever no velho livro
de apontamentos, se não o tivesse queimado-–mas deu por si subitamente
a tremer à beira das lágrimas.
“Tens frio?” perguntou gentilmente a tia Laura. “Estas noites de Junho
ainda são frias. Anda para a sala de estar–-o Jimmy acendeu um lume no
fogão de lá.”
Emily, lutando desesperada por recuperar o auto controle, foi para a
sala de estar. Era muito mais alegre do que a cozinha. O chão estava
coberto por um tapete de riscas alegres, a mesa tinha um pano de cor

29
carmim, as paredes estavam forradas com um bonito papel com um padrão
em diamante, as cortinas era de um damasco vermelho pálido com
desenhos de fetos brancos estampados. Pareciam tudo muito rico e
imponente, como os Murray. Emily nunca tinha visto cortinas daquelas.
Mas o melhor de tudo foi o crepitar alegre e amigável do lume de lenha
no fogão aberto que derreteu a luz fantasmagórica das velas em algo de
morno e rosa dourado. Emily tostou os dedos dos pés na sua frente e
sentiu um interesse renovado no que a rodeava. Que lindas portas de
vidro decoradas a fio de chumbo nos armários da loiça de cada lado da
lareira alta e negra. Que engraçada que era a sombra projectada pelo
ornamento de madeira trabalhada do armário, parecia o rosto de um
negro visto de lado na parede, decidiu Emily. Que mistérios estariam
escondidos por detrás da porta de vidro com cortinas de algodão
estampado do armário dos livros! Os livros eram amigos de Emily onde
quer que esta os encontrasse. Dirigiu-se para o armário e abriu a
porta. Mas antes que tivesse oportunidade de ver mais do que as
lombadas de alguns livros muito pesados, a Tia Elizabeth entrou com
uma caneca de leite e um prato com dois bolos de aveia.
“Emily,” disse a tia Elizabeth secamente, “fecha essa porta. Depois
disto lembra-te sempre que não deves mexer em coisas que não te
pertencem.”
“Eu achei que os livros pertenciam a toda a gente,” disse Emily.
“Os nossos não,” disse a tia Elizabeth, dando a impressão que os
livros de New Moon tinham uma categoria própria. “Está aqui o teu
jantar, Emily. Nós estamos todos tão cansados que vamos comer só uma
merenda. Come que depois vamos para a cama.
Emily bebeu o leite e empurrou os bolos, ainda olhando à sua volta.
Que bonito que era o papel de parede, com uma grinalda de rosas por
dentro do diamante dourado! Emily perguntou-se se seria capaz de o
”ver no ar”. Tentou e, sim, conseguia–-ali estava, a um metro dos
olhos, um lindo padrão de fadas suspenso no ar como um cenário. Emily
descobriu que tinha esta habilidade estranha quando tinha seis anos.
Com um certo movimento dos músculos dos olhos que nunca era capaz de
descrever, conseguia fazer uma pequena réplica do papel à sua frente–-
conseguia mantê-lo lá e olhar para ele enquanto quisesse–-conseguia
levá-lo para trás e para a frente, à distância que quisesse, tornando-
o maior ou mais pequeno consoante a distância a que estava. Era uma
das suas alegrias secretas quando entrava numa divisão forrada a
papel. E este papel de New Moon fazia o papel das fadas mais bonito
que ela já algumas vez vira.
“Porque é que estás a olhar para o ar dessa maneira esquisita?”
perguntou a tia Elizabeth, que voltara subitamente.
Emily encolheu-se. Não poderia explicar à tia Elizabeth–-a tia seria
como a Ellen Greene e diria que ela era maluca.
“Eu–-eu não estava a olhar para nada.”
“Não me contradigas. Eu vi que estavas,” respondeu a tia Elizabeth.
“Não faças isso outra vez. Dá uma expressão muito estranha à tua cara.
Vamos lá, vamos subir. Tu vais dormir comigo.”
Emily deu um suspiro de espanto. Ela tinha esperado dormir com a tia
Laura. Dormir com a tia Elizabeth parecia ser uma coisa muito
assustadora. Mas não se atreveu a protestar. Então subiram para o
grande e sombrio quarto da tia Elizabeth, onde havia um papel de
parede escuro e sério, que não poderia nunca ser transformado numa
cortina das fadas, uma cómoda alta e escura, com um pequeno espelho
tão alto que nunca lá poderia haver uma Emily Detrás do Espelho,
janelas muito bem fechadas com cortinas verde-escuras, uma grande cama
alta de dossel com cortinas da mesma cor e um enorme e fofo colchão de
penas com grandes almofadas muito duras.
Emily ficou muito quieta, observando tudo.
“Porque é que não te despes?” perguntou a tia Elizabeth.
“Eu–-eu não gostava de me despir à sua frente,” balbuciou Emily.

30
A tia Elizabeth olhou para Emily através dos seus óculos com olhos
frios.
“Tira a roupa imediatamente,” disse.
Emily obedeceu, tremendo com raiva e vergonha. Era abominável–-tirar
as suas roupas com a tia Elizabeth a observá-la. A vergonha era
indescritível. E era ainda pior dizer as suas orações perante a tia
Elizabeth. Emily sentiu que não seria muito bom rezar naquelas
circunstâncias. O Deus do Pai parecia-lhe muito longe e ela suspeitava
que o Deus da tia Elizabeth se parecia demasiado com o da Ellen
Greene.
Emily olhou para a janela fechada.
“Não vai abrir a janela, tia Elizabeth?”
A tia Elizabeth olhou para a Emily como se esta tivesse sugerido que
tirassem o telhado.
“Abrir a janela–-e deixar entrar o ar da noite!” exclamou. “Com
certeza que não!”
“O pai e eu deixávamos sempre a nossa janela aberta,” respondeu Emily.
“Não admira que ele tenha morrido tuberculoso,” disse a tia Elizabeth.
“O ar da noite é veneno.”
“Mas que ar é que há à noite senão ar da noite?” perguntou Emily.
“Emily,” disse a tia Elizabeth de forma gélida, ”mete-te na cama.”
Emily obedeceu.
Mas foi-lhe impossível dormir, deitada naquela cama tão fofa que a
parecia engolir, com aquela nuvem escura a envolvê-la e nem um rasgo
de luz fosse onde fosse–-e a tia Elizabeth deitada ao seu lado,
comprida, rígida e dura.
“Sinto-me como se estivesse na cama com um grifo,” pensou Emily. “Oh–-
oh–-oh–-vou chorar–-eu sei que vou.”
Desesperadamente em vão, tentou impedir as lágrimas de aparecerem–-mas
elas tinham que vir. Sentia-se completamente sozinha e abandonada–-ali
naquela escuridão, com um mundo hostil e estranho à sua volta–-porque
lhe parecia muito hostil agora. E havia um som tão triste no ar–-muito
ao longe, mas ainda assim nítido. Era o murmúrio do mar, mas Emily não
sabia e teve medo. Oh, a caminha dela em casa–-oh, a suave respiração
do Pai no quarto–-oh, a dança amigável das estrelas que ela tão bem
conhecia a brilharem pela janela! Ela tinha que voltar–-não podia
ficar ali–-nunca seria feliz ali! Mas não havia volta atrás–-não havia
casa--nem pai. Um grande soluço irrompeu-–seguiu-se outro-–depois
outro--não valia a pena cerrar as mãos e fechar os dentes-–nem morder
a parte de dentro das bochechas--a natureza conquistava o orgulho e a
determinação e vencia.
“Porque é que estás a chorar, Emily?” perguntou a tia Elizabeth.
Para dizer a verdade, a tia Elizabeth estava tão desconfortável e
desorientada como a Emily. Não estava habituada a partilhar a cama;
não queria dormir com a Emily tanto quanto esta não queria dormir com
ela. Mas achou impossível pôr a criança a dormir num dos grandes
quartos solitários de New Moon; e a Laura tinha um sono muito leve,
acordava com muita facilidade; as crianças têm sempre mau dormir,
tinha ouvido Elizabeth Murray. Por isso não havia mais nada a fazer
senão deitar a Emily com ela; e depois dela ter sacrificado o conforto
e a vontade para fazer o seu dever esta criança ingrata e insatisfeita
não se dava por feliz.
“Eu perguntei-te porque é que estavas a chorar, Emily.” repetiu.
“Eu–-estou com saudades de casa, acho,” soluçou Emily.
A tia Elizabeth ficou aborrecida.
“Tinhas uma bela casa para teres saudades,” disse rispidamente.
“Não–-não era tão elegante–-como New Moon,” soluçou Emily,”mas–-estava
lá o Pai. Devo estar com saudades do Pai, tia Elizabeth. Não se sentiu
horrivelmente sozinha quando o seu pai morreu?”
Elizabeth Murray lembrou-se involuntariamente do sentimento
envergonhado e reprimido de alívio que tivera quando o velho Archibald

31
Murray morrera–-o homem belo, intolerante e autocrático que tinha
governado a família com mão de ferro toda a vida e que tornara a
existência insuportável em New Moon nos cinco anos de invalidez com
que fechou a sua carreira. Os Murrays que sobreviveram tinham-se
comportado impecavelmente e choraram com muito decoro, mandaram fazer
um obituário muito longo e elogioso. Mas teria Archibald Murray sido
acompanhado para o túmulo com um único sentimento de genuíno pesar?
Elizabeth não gostou da recordação e ficou zangada com Emily por lha
ter evocado.
“Eu resignei-me com a vontade de Deus,” disse friamente. “Emily, tu
tens que entender aqui e agora que deves ser grata e obediente e
mostrar o teu apreço por tudo o que está a ser feito por ti. Eu não
quero ouvir lágrimas nem soluços. O que é que terias feito se não
tivesses amigos que te acolhessem? Responde-me a isto.”
“Acho que tinha morrido à fome,” admitiu Emily–-imaginando-se
imediatamente deitada morta, exactamente como umas imagens que tinha
visto numa das revistas de missionários da Ellen Greene, ilustrando as
vítimas da fome na Índia.
“Não exactamente–-mas terias sido mandada para um orfanato onde terias
provavelmente passado fome. Mas sabes do que escapaste. Tu vieste para
uma boa casa, onde serás bem tratada e educada como deve ser.”
Emily não gostou muito da ideia de ser “educada com deve ser”. Mas
disse humildemente,
“Eu sei que foi muito boa por me trazer para New Moon, tia Elizabeth.
E eu não a vou incomodar por muito tempo, sabe. Daqui a pouco fico
crescida e vou ganhar o meu sustento. Quando é que acha que uma pessoa
se pode considerar crescida, tia Elizabeth?”
“Não precisas de te preocupar com isso,” disse a tia Elizabeth
secamente. “As mulheres Murray nunca tiveram necessidade de ganharem o
seu sustento. Tudo o que te pedimos é que sejas uma criança boa e
grata e que te comportes com prudência e modéstia.”
Isto soou-lhe terrivelmente duro.
“Eu vou ser,” disse Emily, subitamente determinada a ser heróica, como
as meninas das histórias que lia. “Talvez afinal não seja tão difícil,
tia Elizabeth,”- Emily lembrou-se nessa altura de um discurso que o
pai fizera, e achou que era uma boa oportunidade de o evocar –“ porque
sabe, Deus é bom, e o diabo pode ser pior.”
Pobre tia Elizabeth! Ter uma coisa daquela dita na escuridão da noite
por esta pequena indesejada na sua vida ordeira e pacífica cama! Não
admira que por um momento ela tenha ficado paralisada demais para
responder! Então exclamou num tom de horror, “Emily, nunca mais digas
isso outra vez!”
“Está bem,” disse Emily docilmente. “Mas,” acrescentou desafiante em
voz baixa, “vou continuar a pensar.”
“E agora,” disse a tia Elizabeth, ”eu quero que saibas que eu não
tenho o hábito de passar a noite a falar. Eu digo-te que durmas e
espero que me obedeças. Boa noite.”
O tom em que a tia Elizabeth disse boa noite teria estragado a melhor
noite do mundo. Mas Emily ficou muito quieta e não soluçou mais,
apesar de lha caírem umas lágrimas silenciosas na escuridão durante
algum tempo. Ficou tão quieta que a tia Elizabeth pensou que ela
estivesse a dormir e adormeceu também.
“Será que há mais alguém acordado no mundo para além de mim,” pensou
Emily, sentindo-se tristemente sozinha. “Se ao menos a Saucy Sal
estivesse aqui! Ela não é tão fofa como o Mike mas sempre era melhor
que nada. Onde estará ela? Será que lhe deram de jantar?”
A tia Elizabeth tinha dado o cesto com a Sal ao primo Jimmy com uma
ordem impaciente, “Toma, trata deste gato,” e o Jimmy tinha-a levado.
Onde é que ele a teria posto? Talvez a Saucy Sal voltasse a casa–-
Emily tinha ouvido dizer que os gatos voltavam sempre a casa. Ela
adorava poder voltar a casa–-imaginou-se a si e à gata a correrem

32
ansiosamente pelas estradas iluminadas pela lua até à pequena casa do
vale-–de volta para as bétulas, para o Adão e Eva e o Mike, e para o
velho cadeirão de orelhas e a sua querida pequena cama e a janela
aberta onde a Dama do Vento lhe cantava e ao amanhecer se podia ver a
névoa azul nas colinas em volta.
“Será que a manhã nunca mais chega?” pensou Emily. “Talvez as coisas
não sejam tão más de manhã.”
E então–-ouviu a Dama do Vento à janela–-ouviu um pequeno murmúrio de
brisa de Junho-–amigável, convidativo, cheio de amor.
“Oh, estás aí, minha querida amiga?” ela sabia Murmurou, esticando os
braços. “Oh, fico tão feliz de te ouvir. És uma grande companhia, Dama
do Vento. Já não me sinto sozinha. E também tive o flash! Eu tinha
medo de nunca mais o ter em New Moon.”
A sua alma escapou subitamente da influência do colchão de penas da
tia Elizabeth, da cama com dossel e das janelas fechadas. Ela estava
lá fora com a Dama do Vento e os outros nómadas da noite – as
mariposas, os pirilampos, os riachos, as nuvens. Por muito longe se
perdeu numa imaginação encantada até que aportou na costa dos sonhos e
adormeceu na grande e dura almofada, enquanto a Dama do Vento cantava
docemente nas trepadeiras que se apinhavam sobre New Moon.

O LIVRO DE ONTEM

Esse primeiro Sábado e Domingo em New Moon ficaram para sempre


marcados na memória de Emily como uma altura maravilhosa, tão repletos
que estiveram de novas e encantadoras impressões. Se é verdade que
“contamos o tempo por batidas de coração”, Emily viveu dois anos em
vez de dois dias. Tudo lhe pareceu fascinante desde o memento em que
desceu a longa escada polida e entrou no hall quadrado cheio de uma
luz suave e rosada que entrava pelos vidros vermelhos da porta da
frente. Emily olhou através dos vidros deliciada. Que mundo tão
diferente e fascinante ela viu, com um céu vermelho muito estranho que
parecia pertencer, pensava ela, ao dia do julgamento final.
Havia um certo charme na velha casa que Emily sentiu vividamente e ao
qual respondeu, apesar de ser jovem demais para o compreender. Era uma
casa que no seu tempo tinha tido jovens noivas e mães e esposas, e a
atmosfera dos seus amores e vidas ainda pairava por lá, não tendo
ainda sido banida pelo regime de solteironas de Elizabeth e Laura.
“Ah –eu vou adorar New Moon,” pensou Emily, bastante surpreendida pela
ideia.
A tia Laura estava a pôr a mesa para o pequeno-almoço na cozinha, que
parecia muito brilhante e alegre vista à luz do sol da manhã. Até o
buraco negro do tecto deixou de ser fantasmagórico e tornou-se apenas
uma entrada normal para o sótão da cozinha. E no degrau de pedra
vermelha da entrada estava sentada Saucy Sal, cuidando do pelo tão
satisfeita como se tivesse vivido em New Moon toda a vida. Emily não
sabia, mas Saucy Sal já se tinha batido em duelo com todos os gatos do
celeiro nessa manhã, e ensinara-lhes a todos qual era o seu lugar dali
para a frente. O grande gato amarelo do primo Jimmy tinha levado uma
valente coça, e faltava-lhe agora alguns pedaços da sua anatomia,
enquanto que uma senhora gata preta muito emproada, que se tinha em
grande consideração, decidira que se aquela sujeita cinza e branca de
cara afunilada vinda sabe Deus de onde ia ficar em New Moon, ela não
ficava.
Emily apanhou Saucy Sal nos braços e beijou-a alegremente, para horror
da tia Elizabeth, que vinha a atravessar o alpendre da casa do fogão
com um prato de bacon fumegante nas mãos.
“Que eu nunca mais te veja beijar um gato,” ordenou-lhe.
“Oh, está bem,” concordou Emily alegremente, “eu só a vou beijar onde
não me veja a partir de agora.”

33
“Não sejas impertinente, menina. Não te quero de todo a beijar gatos.”
“Mas tia Elizabeth, é claro que eu não a beijo na boca. Eu só a beijo
entre as orelhas. É muito agradável – não quer experimentar e ver por
si?”
“Já chega, Emily. Tu já falaste demais.” E a tia Elizabeth deslizou
para a cozinha majestosamente, deixando Emily momentaneamente
desconcertada. Parecia-lhe ter ofendido a tia Elizabeth mas não fazia
a mais pequena ideia do como ou porquê.
Mas a cena perante ela era demasiado interessante para se preocupar
muito tempo com a tia Elizabeth. Cheiros deliciosos escapavam-se da
casa do fogão – um edifício pequeno de telhado muito inclinado ao
canto onde o grande fogão de cozinha era posto no verão. Estava
coberto de trepadeiras, tal como a maior parte dos edifícios em New
Moon. Á direita estava o “novo” pomar, muito bonito agora em flor, mas
um lugar um pouco vulgar uma vez que o primo Jimmy o cultivava de
acordo com as técnicas mais recentes e tinha cereais semeados nos
espaços entre as filas de árvores que pareciam todas iguais. Mas do
outro lado do caminho que ia dar ao celeiro, mesmo por detrás do poço,
estava o “velho” pomar, onde o primo Jimmy tinha dito que haviam
aquilégias e que parecia um local maravilhoso onde as árvores tinham
nascido à sua vontade e cresciam em formas e tamanhos
individualizados, onde a hera se misturava com as raízes e as roseiras
bravas se amotinavam por cima da vedação de paus cinzenta. Mais em
frente, encerrando a vista entre os pomares, estava uma pequena
elevação coberta de enormes bétulas brancas, entre as quais estavam os
celeiros de New Moon, e para lá do novo pomar uma pequena e adorável
estrada vermelha subia a pouco e pouco sobre uma colina até parecer
tocar o vivo azul do céu.
O primo Jimmy veio dos celeiros, carregando brilhantes bilhas de
leite, e Emily correu com ele para a leitaria por detrás da casa do
fogão. Ela nunca vira ou imaginara um local tão maravilhoso. Era uma
pequena casinha branca como a neve enterrada num cacho de balm of
gileads. O seu telhado cinzento estava salpicado de almofadas de musgo
como se fossem gordos ratos de veludo verde. Desciam-se seis degraus
de pedra vermelha com fetos a crescerem pelo meio e abria-se uma
pequena porta branca com um painel de vidro, e desciam-se mais três
degraus. E estávamos num lugar fresco, a cheirar a terra, húmido, com
um chão de terra batida e janelas tapadas pelo esmeralda delicado dos
rebentos de videira, e largas prateleiras de madeira a toda a volta,
onde estavam grandes e fundas panelas de metal castanho brilhante,
cheias de leite coberto de nata tão grossa que era claramente amarela.
A tia Laura esperava-os e coou o leite para umas panelas vazias e
depois começou a separar a nata do leite nalgumas das que estavam
cheias. Emily achou que aquela era uma ocupação encantadora e desejou
experimentar. Também desejou escrever uma descrição da leitaria; mas
infelizmente não havia já o livro de apontamentos; ainda assim,
conseguia escrevê-la na sua cabeça. Sentou-se num pequeno banco de
três pernas num canto mais sombrio e começou a fazê-lo, ficando tão
quieta que o primo Jimmy e a tia Laura se esqueceram dela e saíram,
tendo depois que a procurar durante um quarto de hora. Este pequeno-
almoço atrasado enfureceu a tia Elizabeth. Mas Emily encontrara a
frase exacta para descrever a luz clara mas velada que enchia a
leitaria e ficou tão feliz com isso que não se importou nem um
bocadinho com a cara de má da tia Elizabeth.
Depois do pequeno-almoço a tia Elizabeth informou a Emily que daí para
a frente um dos seus deveres seria levar as vacas para a pastagem
todas as manhãs.
“O Jimmy agora não tem nenhum rapaz de lavoura e isso vai-lhe poupar
uns minutos.”
“E não tenhas medo,” acrescentou a tia Laura,” as vacas sabem o
caminho e vão sozinhas. Tu só tens que as seguir e fechar os portões.”

34
“Eu não tenho medo,” disse Emily.
Mas tinha. Ela não percebia nada de vacas; ainda assim, estava
determinada a que os Murray não suspeitassem que uma Starr podia estar
assustada. Por isso, com o coração a bater como um martelo, dirigiu-se
valentemente para a vacaria e percebeu que o que a tia Laura tinha
dito era verdade e as vacas não era animais ferozes afinal de contas.
Iam com gravidade à sua frente e ela só tinha que as seguir, através
do velho pomar e depois pelo pequeno bosque de aceres muito jovens
mais à frente, ao longo de um caminho sinuoso cheio de fetos onde a
Dama do Vento ronronava e espreitava por entre os rebentos de ácer.
Emily deixou-se ficar ao pé do portão da pastagem até que os seus
olhos ávidos tivessem absorvido toda a geografia da paisagem. A velha
pastagem estendia-se perante ela numa sucessão de pequenos altos
verdes até ao famoso Blair Water – um lago quase perfeitamente
redondo, com margens nuas de árvores, cheias de relva. Para além dele
era o vale de Blair Water, repleto de casas, e para lá dele estava a
grande clareira do golfo orlado a branco. Aos olhos de Emily pareceu-
lhe uma terra encantadora de sombras verdes e águas azuis. A um canto
da pastagem, emparedado por um velho muro de pedra, estava o pequeno
cemitério privado onde todos os falecidos Murray estavam enterrados.
Emily queria lá ir explorar, mas tinha receio de se aventurar na
pastagem.
“Eu vou lá assim que me habituar ás vacas,” resolveu.
Á direita, no topo de uma pequena colina, coberta com jovens bétulas e
pinheiros, estava uma casa que intrigou Emily. Estava cinzenta e
desgastada pelo tempo, mas não parecia velha. Nunca tinha sido
terminada; o telhado estava forrado a telhas mas os lados não, e as
janelas estavam entaipadas. Porque é que nunca teria sido acabada? E
parecia uma casinha tão bonita – uma casinha que se poderia amar – uma
casa onde haveriam boas cadeiras e lumes aconchegantes e estantes de
livros e lindos gatos gordos e ronronantes e cantos inesperados; logo
ali lhe chamou a Casa Decepcionada, e a partir daí passou muitas horas
a acabá-la, mobilando-a como deveria ser mobilada, e inventando as
pessoas e animais adequados para lá viver.
Á esquerda do campo de pastagem estava uma outra casa de um tipo muito
diferente – uma casa grande e velha, recoberta de videiras, com um
tecto pouco inclinado e janelas de mansarda, e um ar de indiferença e
negligência geral. Um grande relvado mal conservado, cheio de rebentos
de arbustos e árvores, estendia-se desleixadamente até um lago, onde
salgueiros enormes se inclinavam sobre a água. Emily decidiu que iria
perguntar sobre estas casas ao primo Jimmy quando tivesse
oportunidade.
Sentiu que, antes de se ir embora, tinha que sair da vedação da
pastagem e explorar um certo caminho que vira entrar no bosque de
aceres e abetos mais abaixo. Foi o que fez, e descobriu ia directa
para a terra das fadas – ao longo de um lindo riacho bem largo, um
caminho selvagem e querido com fetos que lhe acenavam e se estendiam
pelas bermas, a mais tímida das campainhas por baixo dos pinheiros e
pequenas surpresas maravilhosas em cada curva. Ela inspirou o cheiro
de pinheiro balsâmico e viu o brilho das teias de aranha lá altas nos
ramos, e por todo o lado brincavam luzes e sombras élficas. Por aqui e
por ali os jovens ramos de ácer entrelaçavam-se como se fizessem uma
cortina para proteger os rostos das dríades – Emily sabia tudo sobre
dríades, graças ao pai dela – e os grandes lençóis de musgo por baixo
das árvores eram o sofá de Titania.
“Este é um dos sítios onde crescem os sonhos,” disse Emily feliz.
Ela desejava que o caminho se prolongasse para sempre, mas naquela
sítio afastava-se do riacho e quando ela trepou por uma velha vedação
de tábuas cheia de musgo deu consigo no “jardim da frente” de New
Moon, onde o primo Jimmy podava alguns arbustos.

35
“Oh, primo Jimmy, eu encontrei uma estradinha encantadora,” disse
Emily sem fôlego.
“Vieste do bosque do Lofty John?”
“Não é nosso?” perguntou Emily, um pouco desapontada.
“Não, mas devia ser. Há cinquenta anos o tio Archibald vendeu-o ao pai
do Lofty John, o velho Mike Sullivan. Ele fez uma casinha ao pé do
lago e viveu lá até que se brigou com o tio Archibald, o que não levou
muito tempo, claro. Nessa altura ele mudou a casa para o outro lado da
estrada, e agora o Lofty John vive lá. A Elizabeth tentou comprar-lhe
o terreno – ofereceu-lhe até mais do que aquilo vale – mas o Lofty
John não a vende – só para embirrar, porque ele tem uma bela quinta e
este pedaço de terra aqui não lhe dá grande jeito. Ele só lá põe algum
gado a pastar no Verão, e o que antes eram clareiras está agora cheio
de rebentos de ácer. É uma pedra no sapato da Elizabeth e deve
continuar a ser enquanto o Lofty John tiver aquela zanga.”
“Porque é que lhe chamam Lofty John?”
“Porque ele é um tipo alto e arrogante. Mas não te preocupes com ele.
Eu quero-te mostrar o meu jardim, Emily. É meu. A Elizabeth manda na
quinta; mas deixa-me mandar no jardim – para me compensar de me ter
mandado para o poço.”
“Ela fez isso?”
“Sim. Ela não fez de propósito, claro. Nós éramos crianças – eu estava
cá de visita – e os homens estavam a fazer um muro novo para o poço e
a limpá-lo. Estava aberto e nós estávamos a brincar à volta dele. Eu
fiz zangar a Elizabeth, o que também não era difícil como imaginas, e
ela veio para me dar com uma coisa na cabeça. Eu vi-a vir e afastei-me
para trás para fugir e caí para dentro do poço, de cabeça para baixo.
Não me lembro de mais nada. Não havia lá nada senão lama no fundo –
mas a minha cabeça bateu nas pedras dos lados. Acharam que eu estava
morto, com a cabeça toda cortada. A pobre Elizabeth ficou – “o primo
Jimmy abanou a cabeça, como se desse a entender que era impossível
descrever como ficou a pobre Elizabeth. “Eu recuperei passado um
bocado, fiquei quase como novo. As pessoas dizem que eu nunca mais fui
o mesmo - mas só dizem isso porque eu sou um poeta e porque eu nunca
me preocupo com nada. Os poetas são tão raros em Blair Water que as
pessoas não os compreendem, e a maior parte das pessoas preocupam-se
demais, por isso acham que não somos certos quando não nos
preocupamos.”
“Não me recita uma poesia, primo Jimmy?” perguntou Emily ansiosamente.
“Quando o espírito me tocar eu recito. Não vale a pena pedires-me se
não tocar.”
“Mas como é que eu hei-de saber, quando o espírito lhe tocar, primo
Jimmy?”
“Eu vou começar por mim a recitar as minhas composições. Mas digo-te
uma coisa – o espírito normalmente toca-me quando estou a cozer as
batatas para os porcos no Outono. Lembra-te disso e faz por estares
por perto.”
“Porque é que não escreve as suas poesias?”
“Há muito pouco papel de escrever aqui em New Moon. A Elizabeth tem
algumas manias com as economias, e o papel é uma delas.”
“Mas o primo Jimmy não tem nenhum dinheiro seu?”
“Oh, a Elizabeth paga-me um bom salário. Mas ela põe o dinheiro todo
no banco e só me vai dando uns dólares de vez em quando. Ela diz que
eu não sou de confiança com o dinheiro. Quando eu vim para cá
trabalhar ela pagava-me ao fim do mês e eu ia a Shrewsbury pô-lo no
banco. Um dia encontrei um vadio na estrada, uma pobre criatura
abandonada sem um cêntimo. Eu dei-lhe o dinheiro a ele. Porque não? Eu
tinha uma boa casa e um trabalho certo e roupas suficientes para
muitos anos. Deve ter sido a coisa mais palerma que eu fiz – e a
melhor. Mas a Elizabeth nunca mais se esqueceu. A partir daí passou

36
ela a gerir o meu dinheiro. Mas anda daí que eu vou-te mostrar o
jardim antes de ir plantar os nabos.”
O jardim era um lindo lugar, bem merecedor do orgulho do primo Jimmy.
Parecia um jardim onde a geada não queimava e o vento forte não
soprava – um jardim que lembrava cem verões desaparecidos. Havia uma
grande sebe de abetos aparados em volta, intercalados a intervalos por
altas lombardies. O lado norte estava fechado por uma espessa parede
de abetos, e aos pés destes cresciam peónias, com as suas grandes
flores vermelhas a destacarem-se contra o fundo escuro. Um grande
abeto crescia no centro do jardim, e debaixo dele estava um banco de
pedra, feito de pedras achatadas da costa há muito polidas pelos
ventos e pelas ondas. No canto sudeste estava um grande maciço de
lilases, aparados para parecerem uma grande árvore de ramos descaídos,
enfeitada de roxo. Uma velha casa de verão, coberta de videiras,
enchia o canto sudoeste. No canto norte havia um relógio de sol feito
de pedra cinzenta colocado mesmo onde o caminho vermelho orlado a
relva riscada e realçado com conchas rosadas, entrava no bosque do
Lofty John. Emily nunca tinha visto um relógio de sol antes e ficou
encantada.
“Foi o teu trisavô Hugh Murray que o trouxe do velho continente,”
disse o primo Jimmy. “Não há nenhum melhor nas províncias Marítimas. E
o tio George Murray trouxe essas conchas das Índias. Ele era capitão
de um navio.”
Emily olhou em volta deliciada. O jardim era lindo e a casa parecia
muito distinta aos seus olhos infantis. Tinha um grande alpendre
frontal com colunas gregas. Estas eram consideradas muito elegantes em
Blair Water, e justificavam um pouco do orgulho dos Murray. Um mestre-
escola tinha dito que davam à casa um ar clássico. Este estava agora
um pouco enterrado em videiras que invadiam todo o alpendre e se
penduravam em festões verde pálido por cima das filas de vasos de
barro com malvas vermelhas que contornavam os degraus.
O coração de Emily transbordava de orgulho.
“É uma casa nobre,” disse.
“E o meu jardim?” perguntou o primo Jimmy invejoso.
“É digno de uma rainha,” disse Emily, grave e sinceramente.
O primo Jimmy acenou afirmativamente, satisfeito, e um som estranho
entrou-lhe na voz e um olhar diferente tomou-lhe conta dos olhos.
“Há um feitiço tecido em volta deste jardim. A geada poupá-la-à, e a
lagarta verde passar-lhe-à ao lado. A seca não o atingirá e a chuva
cairá gentilmente.”
Emily recuou involuntariamente – quase sentiu vontade de fugir. Mas
logo o primo Jimmy regressou ao normal.
“A relva em volta do relógio de sol não parece veludo verde? Eu tenho
tido muito trabalho com ela, deixa-me dizer-te. Podes considerar este
jardim a tua casa.” O primo Jimmy fez um gesto grandiosos. “Eu
confiro-te liberdade para desfrutares dele. Se tiveres sorte até pode
ser que encontres o Diamante Perdido.”
“O Diamante Perdido?” disse Emily interessada. Que coisa fascinante
seria esta?
“Nunca ouviste a história? Eu conto-ta amanhã, o Domingo é o dia da
preguiça em New Moon. Eu tenho que voltar aos meus nabos ou vou ter a
Elizabeth à perna. Ela não me diz nada, só olha para mim. Alguma vez
viste o verdadeiro olhar dos Murray?”
“Eu acho que o vi quando a tia Ruth me puxou debaixo da mesa,” disse
Emily incomodada.
“Não-–não. Esse era o olhar da Ruth Dutton – malícia e inveja e todo o
tipo de coisas pouco caridosas. Eu odeio a Ruth Dutton. Ela ri-se da
minha poesia – não que alguma vez a tenha ouvido. O espírito nunca me
toma quando ela está por perto. Não sei onde a foram desencantar. A
Elizabeth é estranha, mas é sã como um pêro, e a Laura é uma santa.
Mas a Ruth é retorcida. E quanto ao olhar Murray, tu vais reconhecê-lo

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quando o vires. É tão conhecido como o orgulho dos Murray. Nós somos
uma gente muito estranha – mas somos dos melhores que já apareceram.
Eu vou-te contar tudo sobre nós amanhã.”
O primo Jimmy cumpriu a sua promessa quando as tias foram à igreja no
dia seguinte. Tinha-se decidido por conclave familiar que a Emily não
iria à igreja nesse dia.
“Ela não tem nada decente para vestir,” disse a tia Elizabeth. “Na
próxima semana já temos o vestido branco pronto.”
Emily ficou desiludida por não ir à igreja. Ela sempre tinha achado a
igreja muito interessante nas raras ocasiões em que ia. Era muito
longe em Maywood para o pai ir a pé mas por vezes o irmão da Ellen
Greene vinha buscá-las às duas.
“Acha, tia Elizabeth,” disse esperançada, “que Deus se ofenderia muito
se eu usasse o meu vestido preto para ir à igreja? Eu sei que é barato
– penso que a Ellen Greene é que o deve ter pago – mas tapa-me o corpo
todo.”
“As meninas que não percebem as coisas não deviam dar opiniões,” disse
a tia Elizabeth. “Eu não quero que as pessoas de Blair Water vejam a
minha sobrinha num vestido como aquele. E se a Ellen Greene o pagou,
nós temos que lhe dar o dinheiro. Tu devias ter-nos dito isso antes de
sairmos de Maywood. Não, tu hoje não vais à igreja. Podes usar o
vestido preto na escola amanhã. Podemos tapá-lo com um avental.”
Emily resignou-se com um suspiro de desilusão por ficar em casa; mas
foi muito agradável afinal de contas. O primo Jimmy levou-a a dar um
passeio pelo lago, mostrou-lhe o cemitério e abriu-lhe o “livro de
ontem”.
“Porque é que todos os Murray estão aqui enterrados?” perguntou Emily.
“É mesmo porque são bons demais para serem enterrados com as outras
pessoas?”
“Não, não gatinha. Nós não levamos o nosso orgulho tão longe quanto
isso. Quando o velho Murray se estabeleceu em New Moon não havia aqui
nada em volta senão bosques por milhas e milhas, e não havia cemitério
mais próximo do que o de Charlottetown. Foi por isso que os velhos
Murray se enterraram aqui – e depois continuámos a fazê-lo porque
queríamos repousar com os nossos, aqui nas encostas verdes de Blair
Water.”
“Isso soa quase como um poema, primo Jimmy,” disse a Emily.
“E é – uma parte de um dos meus poemas.”
“Eu até gosto da ideia de um cemitério exclusivo como este,” disse
Emily decididamente, olhando à sua volta com ar de aprovação para a
relva aveludada que descia até ao lago azul como as fadas, os caminhos
alinhados e as campas bem conservadas.
O primo Jimmy de uma gargalhada.
“E ainda dizem que tu não és uma Murray,” disse. “Murray e Byrd e
Starr – e um bocadinho de Shipley também, se o primo Jimmy não está
enganado.”
“Shipley?”
“Sim, a mulher do Hugh Murray – a tua trisavó – era uma Shipley, uma
inglesa. Alguma vez ouviste a história de como é que os Murray vieram
parar a New Moon?”
“Não.”
“Eles iam com destino ao Quebec – não tinham ideia de vir para a Ilha
do Príncipe Eduardo. Eles tiveram uma longa e difícil viagem e a água
começou a escassear, por isso o capitão do New Moon parou aqui par se
abastecer. A Mary Murray quase morreu de enjoos na viagem, não chegou
a habituar-se ao mar, por isso o capitão teve pena dela e deixou-a vir
à costa com os marinheiros para sentir terra firme por uma hora ou
duas. Ela foi toda contente e quando chegou à costa disse, ‘eu fico
aqui’. E ficou; não havia quem a tirasse daqui; o velho Hugh, que na
altura era um jovem Hugh, claro, insistiu, e zangou-se e gritou, e
discutiu – até chegou a chorar, pelo que diziam – mas a Mary não

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deixava que a levassem. Acabou por desistir, mandou trazer as coisas
deles para terra e ficou também. E foi assim que os Murray vieram para
a Ilha do Príncipe Eduardo.”
“Fico contente por ter sido assim,” disse Emily.
“E o velho Hugh também acabou por ficar. Mas ainda assim ia-o moendo,
Emily, ia-o moendo. Ele nunca perdoou completamente à Mary. A campa
dela está ali ao canto – aquela com a pedra vermelha lisa. Vai lá ver
o que ele lá pôs.”
Emily correu até lá curiosa. A grande pedra vermelha estava inscrita
com um longo e complexo epitáfio antigo. Mas por baixo do epitáfio não
havia nenhum versículo das escrituras nem salvo piedoso. Claro e
distinto apesar da idade e dos líquenes, lia-se a frase “Eu fico
aqui.”
“E foi assim que ele se vingou,” disse o primo Jimmy. “Ele era um bom
marido para ela-–e ela uma boa esposa, deu-lhe uma bela família–-e ele
nunca mais foi o mesmo depois da morte dela. Mas aquele assunto mexeu
com ele até que teve que sair.”
Emily sentiu um pequeno arrepio. A ideia daquele antepassado sério com
aquela mágoa imortal contra a sua mais querida e mais próxima pessoa
era de certa forma assustadora.”
“Ainda bem que sou só meia Murray,” pensou para si. Alto disse –“O pai
disse-me que havia uma tradição dos Murray de não levar contenda
nenhuma para lá da campa.”
“agora é assim – mas isso deu-se por causa disto mesmo. As pessoas
ficaram horrorizadas por isto, sabes. Fez um escândalo considerável.
Algumas pessoas distorceram tudo e disseram que o velo Hugh não
acreditava na ressurreição e até falaram em reunir a congregação por
causa disso, mas depois a conversa acabou por morrer.”
Emily passou para outra campa coberta de líquenes.
“Elizabeth Burnley – quem era ela, primo Jimmy?”
“A mulher do velho William Murray. Ele era o irmão do Hugh, e veio
para cá cinco anos depois dele. A mulher dele era muito bonita e tinha
sido uma dama lá no Velho Continente. Ela não gostava dos bosques da
Ilha do Príncipe Eduardo. Tinha saudades, Emily, tinha imensas
saudades. Nas semanas depois de ter chegado não queria tirar a touca –
andava para cima e para baixo com ela a exigir que a levassem de volta
para casa.”
“Não a tirava nem para dormir?” perguntou Emily.
“Não sei se se chegava a deitar. De qualquer maneira, o William não a
levou de volta e ela acabou por tirar a touca habituar-se à ideia. A
filha dela casou com o filho do Hugh, por isso a Elizabeth foi tua
trisavó.”
Emily olhou para a campa enterrada em verde e interrogou-se se as
saudades incomodariam o sono da Elizabeth Murray nestes cem anos.
“É muito mau ter saudades, eu sei,” pensou compreendendo.
“O pequeno Stephen Murray está aqui enterrado,” disse o primo Jimmy.
“Esta foi a primeira lápide em mármore deste cemitério. Ele era irmão
do teu avô – morreu aos doze anos. Ele,” disse o primo Jimmy
solenemente, “tornou-se uma tradição dos Murray.”
“Porquê?”
“Ele era tão bonito e esperto e bom. Ele não tinha um defeito – por
isso claro que não viveu muito tempo. Dizem que nunca houve uma
criança mais bonita na zona. E adorado – toda a gente gostava dele.
Ele já morreu há noventa anos – não há nenhum Murray vivo que o tenha
visto – mas ainda se fala dele nas reuniões de família – é mais real
do que muitas pessoas vivas. Por isso podes ver, Emily, ele deve ter
sido uma criança muito especial – mas acabou ali –“o primo Jimmy
acenou a mão para a campa cheia de musgo e para a bela pedra tumular
branca.
“Será,” pensou Emily,” que alguém se lembrará de mim noventa anos
depois de eu morrer?”

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“Este velho cemitério está quase cheio,” pensou o primo Jimmy. “Só já
há espaço naquele canto dali para a Elizabeth, a Laura e para mim. Não
há para ti, Emily.”
“Eu não quero ser enterrada aqui,” respondeu Emily. “Eu acho que é
esplêndido ter um cemitério como este na família, mas eu vou ser
enterrada em Charlottetown com a Mãe e o Pai. Mas há uma coisa que me
preocupa, primo Jimmy, acha que é provável que eu morra tuberculosa?”
O primo Jimmy olhou-a bem nos olhos.
“Não,” disse-lhe. “Não, gatinha. Tu tens vida suficiente em ti para te
levar longe. Não estás destinada a morrer cedo.”
“Eu também acho isso,” disse a Emily, acenando. “E, primo Jimmy,
porque é que aquela casa ali está desapontada?”
“Qual? Ah, a casa do Fred Clifford. O Fred Clifford começou a
construir aquela casa há trinta anos. Ele era para se casar e a noiva
dele escolheu a planta. E quando a casa já estava naquele estado em
que tu vês ela deixou-o, Emily. Nunca mais se pregou um prego naquela
casa. O Fred foi para a Columbia Britânica. Ele ainda vive lá, casado
e feliz. Mas não vende a casa a ninguém – ainda lhe deve custar.”
“Tenho tanta pena daquela casa. Gostava mesmo que tivesse sido
acabada. Ela quer ser – ainda hoje ela quer ser acabada.”
“Pois, mas parece-me que nunca vai ser. O Fred também tem um bocadinho
de Shipley, sabes. Uma das filhas do velho Hugh foi avó dele. E o
doutor Burnley daquela casa cinzenta lá em cima tem mais que um
bocado.”
“Ele também é nosso parente, primo Jimmy?”
“Em quadragésimo segundo grau. Lá muito para trás ele teve um primo da
Mary Shipling para tetra qualquer coisa. Isso ainda foi no velho
continente – os antepassados dele vieram depois dos nossos. Ele é um
bom médico mas é muito estranho – muito mais estranho que eu, Emily,
mas ninguém diz que lhe falta um bocado a ele. Consegues explicar
isto? Ele não acredita em Deus – e nem eu sou assim tão parvo.”
“Em Deus nenhum?”
“Em nenhum. Ele é um infiel, Emily. E está a educar a filhinha dele
assim também, o que eu acho que é uma vergonha, Emily,” disse o primo
Jimmy em ar de confidência.
“E a mãe dela não lhe ensina coisas ?”
“A mãe dela – morreu,” respondeu o primo Jimmy, com uma estranha
pequena hesitação. “Morreu há dez anos,” acrescentou com um tom mais
firme. “A Ilse Burnley é uma bela menina – tem o cabelo como os
narcisos e os olhos como diamantes amarelos.”
“Oh, primo Jimmy, prometeu-me que me contava do Diamante Perdido,”
exclamou Emily ansiosamente.
“Pois foi – pois foi. Pois, ele está por aí – algures dentro de casa
ou na velha casa de verão, Emily. Há cinquenta anos o Edward Murray e
a esposa vieram de Kingsport para uma visita. Ela era uma grande
senhora, usava sedas e diamantes como uma rainha, embora não fosse
grande beleza. Ela trazia um anel com uma pedra que tinha custado
duzentas libras, Emily. Era uma grande quantidade de dinheiro para
andar pendurado no dedinho de uma mulher, não achas? Brilhava na mão
dela quando ela segurou no vestido para subir os degraus da entrada da
casa de verão; mas quando os desceu já lá não estava.”
“E nunca foi encontrado?” perguntou Emily sem fôlego.
“Nunca – e não foi por falta de o procurarem. O Eduardo Murray queria
que desmanchassem a casa – mas o tio Archibald nem quis ouvir falar do
assunto–-porque ele tinha-a construído para a noiva dele. Os dois
irmãos brigaram-se e nunca mais foram amigos novamente. Toda a gente
da família tentou encontrar o diamante. A maioria das pessoas acham
que caiu da casa de verão e se perdeu entre as flores ou os arbustos.
Mas eu sei, Emily. Eu sei que o diamante da Miriam Murray está algures
naquela velha casa. Nas noites de luar, Emily, eu vejo-o brilhar – a

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brilhar e a acenar. Mas nunca no mesmo lugar – e quando lá chegamos –
já lá não está, e conseguimos vê-lo rir-se de nós noutro lugar.”
Mais uma vez havia aquele tom indefinível na voz ou no olhar do primo
Jimmy que deu a Emily um súbito arrepio pela espinha. Mas ela gostava
muito da forma como ele falava com ela, como se ela fosse adulta; e
ela adorava a linda terra à sua volta; e apesar da dor que sentia pelo
seu pai e pela casa do vale que ainda a acompanhava sempre e a magoava
tanto que a sua almofada de noite estava sempre húmida de lágrimas
secretas, ela começava a ficar contente outra vez com o por do sol,
com as canções dos pássaros e as primeiras estrelas brancas, com as
noites de luar e os ventos cantantes. Ela sabia que a vida aqui
voltaria a ser bela – bela e interessante, com casas do fogão e
leitarias cheias de creme e caminhos para os lagos e relógios de sol,
e Diamantes perdidos e a Casa desapontada e homens que não acreditavam
em Deus nenhum – nem sequer no da Ellen Greene. Emily desejou conhecer
o senhor Burnley em breve. Ela estava muito curiosa por saber qual era
o aspecto de um infiel. E ela também já tinha decidido que ia
encontrar o diamante perdido.

PROVA DE FOGO

A tia Elizabeth levou Emily à escola no dia seguinte. A tia Laura


achava que, uma vez que só faltava um mês para o início das férias
grandes não valia a pena que Emily começasse já. Mas a tia Elizabeth
não se sentia à vontade com uma pequena sobrinha a deambular por New
Moon, a meter o nariz insaciável e concluiu que Emily devia ir à
escola para sair do seu caminho. Emily, sempre ávida por novas
experiências, ficou bastante contente por ir, mas sentia-se
completamente revoltada no caminho para lá. A tia Elizabeth tinha
desencantado um horrível avental de xadrez e um igualmente horrível
chapéu-de-sol em qualquer canto do sótão de New Moon, e obrigou Emily
a usá-los. O avental era uma vestimenta comprida tipo saco, de pescoço
alto e com mangas. Aquelas mangas eram a indignidade máxima. Emily
nunca vira nenhuma menina a usar um avental com mangas. Rebelou-se até
ás lágrimas por causa dele, mas a tia Elizabeth não ia permitir
exageros. Foi então que Emily viu o olhar dos Murray; e quando o viu
guardou todos os sentimentos de rebeldia na alma e deixou que a tia
Elizabeth lhe vestisse o avental.
“Era um avental da tua mãe de quando ela era pequena, Emily,” disse a
tia Laura para a reconfortar, e um pouco sentimental.
“Pois,” respondeu Emily, pouco sentimental e nada reconfortada, “nesse
caso não me admiro que ela tenha fugido com o pai quando cresceu.”
A tia Elizabeth acabou de lhe abotoar o avental e deu um empurrão não
muito gentil a Emily.
“Põe o chapéu-de-sol,” ordenou.
“Oh, por favor, tia Elizabeth, não me obrigue a usar essa coisa
horrível.”
A tia Elizabeth, disposta a não desperdiçar mais palavras, apanhou o
chapéu e atou-o à cabeça de Emily. Ela teve que ceder. Mas das
profundezas do chapéu saiu uma voz desafiante, embora trémula.
“Seja como for, tia Elizabeth, não pode mandar em Deus,” disse.
A tia Elizabeth ficou zangada demais para falar durante o caminho para
a escola. Ela apresentou a Emily à Miss Brownell, e partiu. A aula já
tinha começado e por isso Emily pendurou o chapéu no cabide do
alpendre e foi para a carteira que a Miss Brownell lhe indicou. Ela já
tinha decidido que não gostava da Miss Brownell e nunca viria a
gostar.
Miss Brownell tinha a reputação de ser uma boa professora em Blair
Water – principalmente devida ao facto de ser uma disciplinadora

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severa e manter uma ordem impecável. Era magra, de meia-idade com um
rosto descolorido e dentes proeminentes que mostrava quando se ria, e
olhos cinzentos frios e observadores – ainda mais frios do que os da
tia Ruth. Emily sentia que aqueles olhos impiedosos podiam ver tudo
através dela até ao âmago da sua pequena alma sensível. Emily
conseguia ser temerária em certas ocasiões, mas na presença de uma
natureza que sentiu logo instintivamente tão hostil à sua ela sentiu-
se encolher com algo que era mais repulsa que medo.
Ela foi alvo de muitas olhadelas curiosas nessa manhã. A escola de
Blair Water era grande e haviam pelo menos vinte meninas da idade
dela. Emily retribuía olhares curiosos a todas elas mas achou que elas
murmuravam umas para as outras por detrás dos livros e das mãos de uma
forma muito pouco educada. Sentiu-se subitamente infeliz, cheia de
saudades de casa e sozinha – queria o seu pai, a sua velha casa e as
coisas que tanto amava.
“A miúda de New Moon está a chorar,” murmurou uma rapariga de olhos
negros do outro lado da fila. Depois seguiu-se uma risota cruel.
“O que é que se passa contigo Emily?” disse Miss Brownell subitamente
de forma acusatória.
Emily ficou em silêncio. Ela não podia dizer à Miss Brownell o que se
passava com ela, especialmente quando Miss Brownell usava aquele tom.
“Quando eu faço uma pergunta aos meus alunos, Emily, eu estou
habituada a que me respondam. Porque é que estás a chorar?”
Houve mais uma risota do outro lado da fila de carteiras. Emily
levantou os olhos infelizes e o seu estado de espírito exprimiu-se
através de uma frase do pai.
“É um assunto que apenas a mim diz respeito,” respondeu.
Uma mancha vermelha apareceu subitamente no rosto encovado da Miss
Brownell. Os seus olhos brilhavam numa fúria gélida.
“Tu vais ficar na sala no intervalo, de castigo pela tua
impertinência,” disse – mas deixou Emily em paz durante o resto do
dia.
Emily não se importou de todo de não ir ao recreio, porque agudamente
sensível ao ambiente como era, apercebeu-se que por qualquer razão que
não compreendia, o ambiente da escola lhe era hostil. Os olhares que
lhe lançavam não eram apenas curiosos mas mal intencionados. Ela não
queria ir para o recreio com aquelas meninas. Ela não queria ir à
escola de Blair Water. Mas não ia chorar mais. Sentou-se direita e
manteve os olhos no livro. Até que de repente, um assobio maligno
atravessou a fila de carteiras.
“Miss Mania – Miss Mania!”
Emily olhou para a rapariga. Olhos grandes, de um cinza púrpura
olharam outros negros, brilhantes como contas–-olharam sem se
retraírem–-com algo neles que intimidava e atraía. Os olhos negros
sucumbiram e baixaram, cobrindo a sua dona o recuo com outra
gargalhada e uma sacudidela da sua curta trança de cabelo.
“Eu consigo dominá-la,” pensou Emily com um arrepio de triunfo.
Mas há força no número e à hora do almoço Emily deu consigo sozinha no
recreio enfrentando uma multidão de rostos pouco amigáveis. As
crianças conseguem ser das criaturas vivas mais cruéis. Têm um
instinto de matilha contra qualquer forasteiro, e são implacáveis a
manifestá-lo. Emily era uma forasteira, e uma das orgulhosas Murray,
duas coisas que jogavam contra si. E havia à sua volta, pequena, e
envolta que estava em avental e chapéu-de-sol, uma certa reserva e
dignidade de que todas se ressentiram. E também se ressentiram da
forma como ela olhou para elas de igual para igual, com aquele rosto
desdenhoso por baixo de um cabelo negro, em vez do olhar tímido e
baixo que deveria ter como novata em apreciação.
“Tu és orgulhosa,” disse a Olhos Negros. “Oh, tu podes ter botas com
botões, mas vives da caridade.”

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Emily não tinha querido levar as botas. Queria ter ido descalça como
andava sempre no verão. Mas a tia Elizabeth disse-lhe que criança
nenhuma de New Moon alguma vez tinha ido descalça à escola.
“Oh, olha só para o avental de bebé,” riu-se outra menina, com a
cabeça cheia de caracóis castanhos.
E nessa altura Emily corou. Este era de facto o ponto fraco na sua
armadura. Deliciada por ter feito ferida, a caracóis castanhos tentou
novamente.
“É o chapéu-de-sol da tua avó?”
Houve um coro de risotas.
“Oh, ela anda de chapéu-de-sol para não ficar queimada do sol,” disse
uma rapariga mais crescida. “É a mania dos Murray. Os Murray são
podres de orgulho, diz a minha mãe.”
“Tu és muito feita,” disse uma pequena menina gorda e baixa, quase
redonda. “As tuas orelhas parecem as de um gato.”
“Não precisas de ser tão orgulhosa,” disse a Olhos negros. “O tecto da
tua cozinha nem sequer é estucado.”
“E o teu primo Jimmy é um idiota,” disse a Caracóis castanhos.
“Não é nada!” exclamou Emily. “Ele tem mais tino que qualquer uma de
vocês. Digam o que quiserem de mim, mas não podem insultar a minha
família. Se disserem mais uma palavra lanço-lhes mau-olhado.”
Ninguém percebeu o que aquilo queria dizer, mas isso fez com que a
ameaça fosse ainda mais eficiente. Fez-se um breve silêncio. Depois, o
tormento recomeçou numa nova forma
“Sabes cantar?” perguntou uma miúda magra e sardenta, que ainda assim
era muito bonita apesar das sardas e da magreza.
“Não,” disse Emily.
“Sabes dançar?”
“Não.”
“Sabes cozer?”
“Não.”
“Sabes cozinhar?”
“Não.”
“Sabes fazer croché?”
“Não.”
“Sabes fazer renda?”
“Não.”
“Então o que é que sabes fazer?” perguntou a sardenta num tom
provocante.
“Eu sei escrever poesia,” disse Emily, sem ter tido a mais pequena
intenção de o fazer. Mas naquele instante ela soube que sabia escrever
poesia. E com esta convicção tão pouco razoável veio - o flash! Ali
mesmo, rodeada por hostilidade e suspeita, enquanto lutava sozinha
pelo seu lugar, sem aliados ou vantagem, veio o momento maravilhoso em
que a alma parecia largar a prisão da carne e levantar-se até ás
estrelas. A delícia e encantamento que se lia no rosto de Emily
surpreendeu e enraiveceu as suas inimigas. Acharam-na uma manifestação
do orgulho dos Murray sobre um feito muito pouco usual.
“Mentira,” disse a Olhos Negros secamente.
“Uma Starr nunca mente,” respondeu Emily. O flash tinha desaparecido,
mas o seu efeito animador mantinha-se. Olhou para todas com um frio
distanciamento que as dominou temporariamente.
“Porque é que vocês não gostam de mim?” perguntou directamente.
Não houve resposta. Emily olhou directamente para a caracóis castanhos
e repetiu a pergunta. A caracóis castanhos viu-se obrigada a
responder.
“Porque tu não és nada como nós,” resmungou.
“Nem queria ser,” disse Emily desdenhosa.
“Oh, meu Deus, ela é uma das Escolhidas,” gozou Olhos Negros.
“Claro que sou,” respondeu Emily.
E caminhou de volta para a escola, conquistando aquela batalha.

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Mas as forças que se moviam contra ela não se acobardavam facilmente.
Houve murmúrios e congeminações depois dela se ir embora, uma
conferência com alguns rapazes, e trocaram-se uns lápis e pastinhas em
troca de favores recebidos.
Um agradável sentimento de vitória e o resto do flash fizeram com que
Emily suportasse a tarde, apesar de a Miss Brownell a ridicularizar
por causa dos seus erros ortográficos. A Miss Brownell gostava muito
de ridicularizar os alunos. Todas as meninas se riam excepto uma, que
não tinha lá estado de manhã e não percebia as piadas. Emily
perguntava-se quem seria. Ela era tão diferente das outras como Emily,
mas num estilo completamente diferente. Era alta, vestia-se de uma
forma estranha com um vestido desbotado e grande demais, e andava
descalça. O seu grosso cabelo, cortado curto, rodeava-lhe a cabeça
numa nuvem densa que parecia ouro lavrado; e os seus olhos brilhantes
eram de um castanho tão claro e translúcido como o âmbar. A boca dela
era grande e tinha um queixo atrevido e proeminente. Não se podia
dizer que era bonita, mas o rosto dela era tão vivo e mexido que Emily
não conseguia afastar os olhos dele. E era a única na classe que não
era alvo dos sarcasmos da Miss Brownell, apesar de fazer tantos erros
como os outros.
Ao intervalo uma das meninas foi ter com Emily com uma caixa nas mãos.
Emily sabia que ela se chamava Rhoda Stuart, e achou-a muito bonita e
simpática. A Rhoda tinha estado na roda à sua volta ao meio-dia mas
não tinha dito nada. Estava vestida com um lindo vestido de
quadradinhos cor-de-rosa; tinha umas tranças lustrosas de cabelo
castanho claro, grandes olhos azuis e uma boca rosada, feições de
boneca e uma voz melodiosa. Se a Miss Brownell alguma vez admitisse
ter uma favorita seria a Rhoda Stuart, e ela parecia muito popular no
seu grupo e muito mimada pelas outras raparigas.
“Aqui tens um presente para ti,” disse-lhe com meiguice.
Emily pegou na caixa sem suspeitar de nada. O sorriso de Rhoda teria
desarmado qualquer suspeita. Por um momento Emily ficou feliz com a
antecipação enquanto abria a caixa. Então, com um grito atirou a caixa
para longe de si, e ficou pálida e trémula dos pés à cabeça. Havia uma
cobra na caixa, viva ou morta ela não sabia, nem quis saber. Emily
tinha um horror e uma repulsa por cobras que não conseguia controlar.
Só de ver uma ficava paralisada.
Um coro de gargalhadas percorreu o alpendre. “Quem é que tem medo de
uma cobra velha morta?” gozou Olhos Negros.
“Consegues escrever poesia sobre isso?” riu-se Caracóis Castanhos.
“Eu odeio-as-–odeio-as!” exclamou Emily. “Vocês são meninas más,
odiosas!”
“Não é nada bonito chamar nomes ás pessoas,” disse a Sardenta. “Eu
pensava que os Murray eram bons demais para isso.”
“Se tu vieres à escola amanhã, menina Starr,” disse Olhos Negros com
convicção,”nós vamos pegar nessa cobra e enrolamos-ta ao pescoço.”
“Experimenta!” exclamou uma voz clara e sonante. Para o meio delas com
um estrondo veio a rapariga dos olhos de âmbar e cabelo claro.
“Experimenta só fazer isso, Jennie Strang!”
“Não tens nada a ver com isto, Ilse Burnley,” resmungou Jenny, amuada.
“Oh, não tenho? Não te metas comigo, olhos de porca.” Ilse dirigiu-se
para a Jennie que batia em retirada e abanou-lhe um punho moreno em
frente ao rosto. “Se eu te apanho a provocar a Emily Starr amanhã com
essa cobra agarro-a pela cauda a ela e a ti e prego-te com ela na
cara. Ouviste, olhos de porca? Agora vai e leva essa tua cobra
preciosa para a lixeira.”
Jennie apanhou-a e foi fazer o que lhe disseram. Ilse virou-se para as
outras.
“Vamos embora, vocês todas, e deixem a rapariga de New Moon em paz
depois disto,” disse. “Se as oiço a intrometerem-se ou a implicarem

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corto-lhes as gargantas e arranco-lhes os corações e os olhos. Sim, e
corto-lhes as orelhas e prego-as no meu vestido!”
Acobardadas por estas ameaças ferozes ou por algo na personalidade de
Ilse, as perseguidoras de Emily dispersaram. Ilse virou-se para Emily.
“Não lhes ligues,” disse-lhe, olhando para elas com desdém. “Elas têm
inveja de ti, é só isso – têm inveja porque tu vives em New Moon e
andas num buggy de capota enfeitada e usas botas abotoadas. Se elas te
ladrarem outra vez parte-lhes a boca.”
Ilse saltou a vedação e correu para o bosque de aceres sem tornar a
olhar para Emily. Só a Rhoda Stuart ficou por perto.
“Emily, desculpa,” disse, rolando os seus grandes olhos azuis de forma
apelativa. “Eu não sabia que havia uma cobra na caixa, juro que não
sabia. As meninas pediram-me para ta dar e disseram que era um
presente para ti. Não ficaste zangada comigo, pois não? Porque eu
gosto de ti.”
Emily tinha ficado muito zangada, magoada e humilhada. Mas esta
pequena simpatia derreteu-a instantaneamente. No momento seguinte ela
e Rhoda andavam de braço dado, desfilando pelo recreio.
“Eu vou perguntar à Miss Brownell se te podes sentar comigo,” disse a
Rhoda. “Eu costumava sentar-me com a Annie Gregg mas ela mudou-se de
cá. Tu gostavas de ficar comigo, não gostavas?”
“Eu gostava muito,” disse Emily afectuosamente. Ela estava agora tão
feliz como antes estivera triste. Aqui estava a amiga dos seus sonhos.
Ela já adorava Rhoda.
“Nós devíamos sentar-nos juntas,” disse Rhoda muito importante. “Nós
pertencemos às duas melhores famílias de Blair Water. Sabes que se se
fizesse justiça o trono de Inglaterra seria do meu Pai?”
“Inglaterra!” disse Emily, demasiado surpreendida para responder sem
ser em eco.
“Sim. Nós descendemos dos reis da Escócia,” disse Rhoda. “Por isso é
claro que eu não me dou com toda a gente. O meu pai tem uma loja e eu
tenho lições de música. A tua tia Elizabeth também te vai pagar lições
de música?”
“Eu não sei.”
“Mas devia pagar. Ela é muito rica, não é?”
“Eu não sei,” disse Emily mais uma vez. Ela gostava que a Rhoda não
fizesse este tipo de perguntas. Emily achou que não eram perguntas
muito educadas. Mas com certeza que uma descendente dos reis Stuart
devia saber todas as regras de etiqueta.
“Ela tem muito mau feitio, não tem?” perguntou Rhoda.
“Não, não tem nada!” exclamou Emily.
“Pois, ela quase matou o vosso primo Jimmy numa das fúrias dela,”
disse Rhoda. “É verdade, foi a mãe que me contou. Porque é que a tua
tia Laura não casa? Ela não tem um noivo? Quanto é que a tua tia
Elizabeth paga ao teu primo Jimmy?”
“Eu não sei.”
“Bem,” disse Rhoda, um pouco desapontada. “Eu acho que tu não estás em
New Moon há tempo suficiente para saberes essas coisas. Mas deve ser
muito diferente daquilo a que estavas habituada. O teu pai era pobre
como um rato, não era?”
“O meu pai era um homem muito, muito rico,” disse Emily decididamente.
Rhoda pareceu surpreendida.
“Eu pensei que ele não tinha um cêntimo.”
“E não tinha. Mas as pessoas podem ser muito ricas sem dinheiro.”
“Não vejo como. Mas de qualquer maneira, tu qualquer dia vais ser rica
– a tua tia Elizabeth vai-te deixar o dinheiro dela, com certeza, é o
que diz a Mãe. Por isso eu não me importo que tu vivas da caridade –
eu gosto de ti e vou defender-te. Tens um namorado, Emily?”
“Não,” exclamou Emily, corando violentamente e muito escandalizada
pela ideia.”Eu só tenho onze anos.”

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“Oh, toda a gente na nossa classe tem um namorado. O meu é o Teddy
Kent. Eu apertei-lhe a mão depois de contar nove estrelas em nove
noites sem ter falhado uma. SE fizeres isso, o primeiro rapaz a quem
apertares a mão fica teu namorado. Mas é muito difícil contar as
estrelas, eu levei o Inverno todo. O Teddy não veio à escola hoje. Tem
estado doente todo o mês de Junho. Ele é o rapaz mais bonito de Blair
Water. Tu tens que ter um namorado também, Emily.”
“Não tenho nada,” exclamou Emily zangada. “Eu não percebo nada de
namorados e não quero nenhum.”
Rhoda abanou a cabeça.
“Pois, não deve haver nenhum suficientemente bom para ti, a morares em
New Moon. Assim não vais conseguir jogar às palminhas, se não tiveres
um namorado.”
Emily não conhecia os mistérios do jogo das palminhas, e nem se
importava com isso. De qualquer maneira, ela não ia ter um namorado e
repetiu esta intenção de forma tão veemente que Rhoda viu que era
melhor deixar o assunto.
Emily ficou muito contente quando o sino tocou. Miss Brownell aceitou
o pedido de Rhoda e Emily transferiu todos os seus bens para a
carteira da Rhoda. Esta falava bastante durante as lições e Emily foi
repreendida, mas não se importou.
“Eu vou ter uma festa de anos na primeira semana de Julho e vou-te
convidar, se as tuas tias te deixarem ir. Mas não vou convidar a Ilse
Burnley.”
”Não gostas dela?”
“Não. Ela é uma maria-rapaz terrível. E o pai dela é um infiel. E ela
também. Ela escreve sempre deus com 'd' pequeno nos ditados. A Miss
Brownell zanga-se por causa disso, mas ela continua a fazer. A Miss
Brownell não lhe bate porque se anda a fazer ao doutor Burnley. Mas a
Mãe diz que ela não tem hipóteses porque ele odeia mulheres. Eu não
acho bom dar-me com esse tipo de pessoas. Não é ridícula a maneira
como ela arranja o cabelo? Tu devias fazer uma franja, Emily. Estão na
moda e a ti ia-te ficar bem porque tens a testa muito alta. Ias ficar
muito bonita. Tu tens um cabelo muito bonito, e as tuas mãos são
lindas. Todas as Murray têm mãos bonitas. E tu tens uns olhos muito
doces, Emily.”
Emily nunca tinha recebido tantos elogios na vida. A Rhoda distribuía-
os de mãos largas. A cabeça dela estava bastante revirada, e foi para
casa determinada a pedir à tia Elizabeth que lhe fizesse uma franja.
Se a ia fazer tão bonita tinha que ser uma coisa em grande. E ela
também ia pedir à tia Elizabeth se podia levar o colar de contas
venezianas para a escola no dia seguinte.
“Assim as outras meninas iam-me respeitar mais,” pensou.
Ela foi sozinha a partir do cruzamento onde se separou de Rhoda, e
reviu os acontecimentos do dia com a sensação que afinal de contas
tinha mantido a bandeira dos Starr sempre hasteada, à excepção do
pequeno incidente com a cobra. A escola era muito diferente do que
tinha imaginado, mas a vida era mesmo assim, pelo que dizia a Ellen
Greene, e nós tínhamos que aproveitar ao máximo aquilo que tínhamos. A
Rhoda era uma querida; e havia qualquer coisa que ela gostava na Ilse
Burnley; quanto ao resto das meninas Emily desforrou-se imaginando-as
todas enforcadas em fila por terem tentado matá-la de susto com a
cobra, e não sentiu mais ressentimentos, apesar de muitas coisas que
foram ditas continuarem a martelar-lhe a cabeça durante dias. Ela não
tinha pai a quem as contar, e nenhum caderno para as escrever, por
isso não as conseguiu exorcizar.
Ela não teve nenhuma oportunidade de pedir a franja porque haviam
visitas em New Moon e as tias estavam atarefadas a preparar um jantar
elaborado. Mas quando trouxeram as conservas Emily aproveitou uma
aberta na conversa dos adultos.
“Tia Elizabeth,” disse, “posso fazer uma franja?”

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A Tia Elizabeth transpareceu o seu desdém.
“Não,” disse. “Eu não aprovo as franjas. De todas as modas tolas que
têm saído hoje em dia acho as franjas a mais tola.”

“Oh, tia Elizabeth, deixe lá. Eu ia ficar linda, pelo menos foi o que
disse a Rhoda.”
“Era preciso muito mais que uma franja para isso, Emily. Não vamos ter
franjas em New Moon - excepto nas nossas vacas. Elas são as únicas
criaturas que as devem usar.”
A tia Elizabeth sorriu triunfante para a mesa – a tia Elizabeth por
vezes sorria triunfante quando achava que tinha silenciado uma pessoa
pequena ridicularizando-a. Emily compreendeu que não valia a pena
esperar uma franja. A beleza não passaria por esse caminho para ela. A
Tia Elizabeth tinha sido má – muito má. Deu um suspiro de desilusão e
afastou a ideia para já. Havia mais uma coisa que ela queria saber.
“Porque é que o pai da Ilse Burnely não acredita em Deus?” perguntou.
“Por causa da partida que a Mãe dela lhe pregou,” disse o senhor
Slade, com uma gargalhada. O senhor Slade era um homem gordo e de ar
divertido, com um cabelo encaracolado e bigodes. Ela já tinha dito
algumas coisas que Emily não tinha percebido mas que pareciam
envergonhar imenso a mulher dele.
“E que partida é que lhe pregou a Mãe da Ilse?” perguntou Emily, cheia
de interesse.
Nesta altura a tia Laura olhava para a tia Elizabeth e a tia Elizabeth
olhava para a tia Laura. Então esta última disse: “Vai lá fora dar de
comer às galinhas, Emily.”
Emily levantou-se dignamente.
“Bem me podiam ter dito que o assunto da Mãe da Ilse não é para ser
falado que eu obedecia. Eu percebi perfeitamente o que quiseram
dizer,” disse, ao levantar-se da mesa.

UM ACASO PROVIDÊNCIAL

Emily estava certa, naquele primeiro dia de aulas, que nunca viria a
gostar da escola. Sabia que tinha que ir para aprender e conseguir vir
a ganhar o seu sustento; mas seria sempre o que Ellen Greene
denominava solenemente “uma cruz”. POR isso, Emily sentiu-se muito
surpreendida quando, depois de andar uns dias na escola, se apercebeu
que começava a gostar. A Miss Brownell não melhorou com a convivência;
mas as outras meninas já não a atormentavam – de facto, para sua
surpresa, elas pareceram esquecer tudo o que se passara e aceitaram-na
como uma delas. Foi admitida na irmandade e apesar de algumas
observações ocasionais sobre aventais de bebé ou sobre o orgulho dos
Murray não havia mais hostilidade, velada ou aberta. Para além disso
Emily era muito capaz de fazer as suas próprias observações jocosas,
quando começou a conhecer as meninas e os seus pontos fracos, e dizia-
as com tanta lucidez desapiedada e ironia que as outras depressa
aprenderam a não a provocar. A Caracóis Castanhos, cujo nome era Grace
Wells, e a Sardenta, chamada Carrie King, e a Jennie Strang tornaram-
se suas amigas, e a Jennie mandava-lhe pastilhas do outro lado da
fila, em vez de risotas. Emily permitia-lhes a todas entrar na sala
externa do seu templo da amizade, mas apenas Rhoda era admitida no
santo dos santos. Quanto à Ilse Burnley, esta não apareceu depois
desse primeiro dia. Ilse, pelo que dizia Rhoda, ia à escola ou faltava
conforme queria. O pai dela não se importava com ela. Emily sentia
sempre vontade de saber mais sobre Ilse, mas não via hipóteses de o
fazer.
Emily estava a ficar insensivelmente feliz outra vez. Já começava a
sentir que pertencia a este velho berço de família. Pensava muito
sobre os antigos Murray; gostava de os imaginar a revisitarem New Moon

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– a trisavó a esfregar os candelabros e a fazer queijo; a tia-avó
Miriam a deambular em busca do seu tesouro perdido; a saudosa tia-avó
Elizabeth percorrendo a casa de chapéu; o Capitão George, o belo
capitão bronzeado vindo da Índias com as conchas rosadas; Stephen, o
amado de todos, sorrindo da sua janela; a sua própria mãe sonhando com
o pai – todos lhe pareciam tão reais como se os tivesse conhecido em
vida.
Ela ainda tinha horas terríveis em que era assolada de desgosto pelo
pai e em que todos os esplendores de New Moon não afastavam a saudade
da pequena casa do vale onde ambos tinham sido tão felizes. Então
Emily fugia para um qualquer canto secreto e chorava até não poder
mais, aparecendo com os olhos vermelhos, o que parecia sempre
incomodar a tia Elizabeth. A tia Elizabeth tinha-se habituado a ter
Emily em New Moon mas não se tinha aproximado mais da criança. Isto
magoava sempre a Emily; mas a tia Laura e o primo Jimmy amavam-na, e
ela tinha a Saucy Sal e a Rhoda, campos cobertos de trevo, suaves
árvores verdes contra céus cor de âmbar, e a música doida que a Dama
do Vento fazia nos pinheiros por detrás do celeiro quando soprava do
golfo; os seus dias tornaram-se vivos e interessantes, cheios de
pequenos prazeres e delícias, como pequenos botões dourados que se iam
abrindo na árvore da vida. Se ela pudesse ter o seu velho livro de
apontamentos, ou outra coisa equivalente, estaria completamente
satisfeita. Era a coisa de que sentia mais falta a seguir ao pai, e a
sua destruição forçada foi algo pelo que sempre responsabilizou a tia
Elizabeth e que sentia que nunca lhe poderia perdoar. Não lhe parecia
possível arranjar-lhe um substituto. Como dissera o primo Jimmy, o
papel para escrever era raro em New Moon. Escreviam-se poucas cartas e
nesses casos era suficiente uma folha de papel de anotações. Emily não
se atrevia a pedir à tia. Havia alturas em que ela sentia que
rebentaria se não pudesse escrever algumas coisas que lhe ocorriam.
Encontrava uma válvula de escape quando escrevia na ardósia da escola;
mas estes escritos tinham que se apagar mais cedo ou mais tarde, o que
deixava Emily com uma sensação de perda – e havia sempre o risco da
Miss Brownell os ver. Isso, sentia Emily, seria insuportável. Nenhuns
olhos estranhos poderiam admirar as suas criações. Por vezes ela
deixava que Rhoda os visse, embora ela a irritasse por se rir nas
partes mais elaboradas. Emily achava que Rhoda era o ser humano mais
próximo da perfeição, embora a tendência para a risota fosse a sua
falha.
Mas há um destino que tece os fins de jovens meninas nascidas com o
bichinho da escrita nas pontas dos dedos, e a dada altura este destino
deu a Emily o que ela mais desejava – e deu-lho precisamente no dia em
que mais o necessitou. Foi nesse dia, nesse mal fadado dia, que Miss
Brownell decidiu mostrar à sua quinta classe, por exemplo e preceito,
como se deveria ler 'The Bugle Song'1.
De pé no estrado do quadro, Miss Brownell, que não era de todo
destituída de um certo jeito superficial para declamar, leu esses três
extraordinários versos. Emily, que deveria estar a fazer uma soma numa
divisão longa, largou o lápis e ouviu em transe. Ela nunca tinha
ouvido a Bugle Song – mas agora ouvia-a – e via-a – o esplendor
vermelho e rosa caindo sobre os castelos arruinados e montes cheios de
neve – as luzes que nunca brilharam sobre a terra ou sobre o mar
escorrendo sobre os lagos – ouviu os ecos selvagens voando sobre os
vales púrpura e os caminhos cheios de névoas – o mero som das palavras
parecia provocar-lhe um eco delicado na alma – e quando Miss Brownell
chegou à parte das “trompas das terras dos elfos soprando ao longe”
Emily tremeu de delícia. Estava fora de si. Esqueceu-se de tudo menos
da magia daquela frase inigualável – levantou-se da cadeira, fazendo
com que a ardósia caísse ao chão, correu até ao estrado e agarrou o
braço da Miss Brownell.
1
The Bugle Song: “a canção da corneta”, poema de Tennyson da obra The Princess.

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“Oh, senhora professora,” exclamou com uma sinceridade apaixonada,”
leia essa frase outra vez – oh, leia essa frase outra vez!”
Miss Brownell, assim subitamente interrompida na sua exibição
declamatória, olhou para o rosto deliciado e transfigurado, onde
grandes olhos cinza púrpura brilhavam com a radiância de uma visão do
divino-–e ficou zangada. Zangada com esta quebra na sua disciplina
estrita-–zangada com esta invulgar demonstração de interesse neste
átomo da terceira classe que devia estar a fazer divisões. Miss
Brownell fechou o livro, cerrou os lábios e deu a Emily uma estalada
na cara que ressoou pela sala.
“Vai para o teu lugar e mete-te nos teus assuntos, Emily Starr,” disse
Miss Brownell, com olhos malignos de fúria.
Emily, assim trazida de volta à terra, regressou ao seu lugar
atordoada. O seu rosto atingido ficou rosado, mas a ferida maior
estava no seu coração. Um momento atrás estava no sétimo céu – e agora
isto – dor, humilhação, incompreensão! Ela não conseguia suportar. O
que é que teria feito que merecesse isto? Ela nunca tinha levado uma
bofetada antes. A vergonha e a injustiça roíam-lhe a alma. Ela não
conseguia chorar – este era um “desgosto fundo demais para lágrimas” –
e foi para casa depois das aulas numa angústia reprimida de amargura e
vergonha e ressentimento – uma angústia sem escape, porque ela não se
atrevia a contar a história em New Moon. A tia Elizabeth, estava
certa, diria que a Miss Brownell tinha tido razão, e até a tia Laura,
boa e meiga como era, não iria compreender. Ela ia ficar triste por
achar que a Emily se tinha portado mal na escola e tinha sido
castigada.
“Oh, se eu ao menos pudesse contar ao pai!” pensou Emily.
Ela não conseguiu jantar – achou que nunca mais seria capaz de comer
outra vez. E oh, como odiava aquela injusta Miss Brownell! Nunca a
perdoaria, nunca! Se ao menos tivesse uma maneira de se vingar! Emily,
sentada pálida, pequena e calada à mesa do jantar em New Moon,
abrigava um vulcão de sentimentos feridos e dor e orgulho – sim
orgulho! Ainda pior do que a injustiça fora a humilhação do que
sucedera. Ela, Emily Byrd Starr, em quem nenhuma mão se pousara de
forma menos gentil, tinha sido esbofeteada como um bebé maroto diante
de toda a classe. Quem poderia suportar isto e continuar a viver?
Então o destino fez a sua parte e a tia Laura foi levada ao armário de
baixo da estante da sala de estar, em busca de uma carta que queria
ver. Levou Emily com ela para lhe mostrar uma curiosa caixa que
pertencera a Hugh Murray e ao procurá-la levantou um grande pacote de
papel empoeirado – um papel de um rosa escuro com umas folhas
estranhamente compridas e estreitas.
“Já é altura destas velhas contas dos correios serem queimadas,”
disse. “Que maço delas! Estão aqui há anos a juntar pó e não servem
para nada. O pai chegou a gerir a estação dos correios aqui em New
Moon, sabes, Emily. O correio só vinha três vezes por semana e cada
vez que vinha trazia uma conta vermelha destas. A mãe guardava-as
todas, embora depois de usadas uma vez já não sirvam para nada. Mas eu
vou queimá-las hoje.”
“Oh, tia Laura,” murmurou Emily, tão dividia entre o desejo e o medo
que mal podia falar. “Oh, não faça isso – dê-mas a mim – por favor,
dê-mas a mim.”
“Mas para que é que as queres, filha?”
“Oh, titi, elas têm umas costas tão bonitas para escrever. Por favor,
Tia Laura, ia ser um pecado queimar estas folhas.”
“Podes ficar com elas. Mas é melhor não deixares que a Elizabeth as
veja.”
“Eu não deixo, não deixo,” disse Emily com um suspiro.
Agarrou no precioso maço com os braços e correu lá para cima – e
depois mais um lanço de escadas até ao sótão, onde já tinha o seu
esconderijo favorito, e onde o seu velho hábito de pensar até ficar a

49
milhas de distância não podia incomodar a tia Elizabeth. Era o canto
tranquilo ao pé da janela em mansarda, onde as sombras se moviam
sempre, suaves e deslizantes, e lindos mosaicos cobriam o chão nu. DE
lá conseguiam ver-se os topos das árvores até Blair Water. As paredes
estavam forradas com grandes meadas de lã suave e fofa, prontas para
fiar, e outras de fio por torcer. Por vezes a tia Laura ia fiar lá
para cima na grande roda do outro lado do sótão, e Emily adorava vê-
la.
Ao abrigo da janela ela agachou-se sem fôlego, escolheu uma folha e
tirou um lápis do bolso. Uma velha folha de cartão serviu-lhe de
secretária; começou a escrever febrilmente.
“Querido Pai” – e então despejou todos os acontecimentos do dia – da
sua delícia e da sua dor – escrevendo incansavelmente e sem parar até
que a luz esmoreceu e deu lugar ao pálido anoitecer estrelado. As
galinhas ficaram por alimentar – o primo Jimmy teve que ir buscar as
vacas-–a Saucy Sal não teve o seu leite da noite–-a tia Laura teve que
lavar os pratos–-mas que importância tinha isso? Emily, no campo
delicioso da composição literária, estava perdida para todas as coisas
mundanas.
Quando encheu as costas de quatro folhas não conseguia ver o
suficiente para escrever. Mas já tinha despejado o que lhe ia na alma
e estava uma vez mais livre de emoções malignas. Até se sentia
curiosamente indiferente à Miss Brownell. Emily dobrou as suas folhas
e escreveu claramente por cima do embrulho:
Sr. Douglas Starr,
A Caminho do Céu
Então caminhou devagar até um velho sofá gasto num canto afastado e
ajoelhou-se, guardando a sua carta e o maço de folhas numa pequena
prateleira formada por uma tábua que este tinha pregada por baixo.
Emily descobrira este espaço um dia ao brincar no sótão e achou que
seria um óptimo esconderijo para documentos secretos. Ela tinha papel
suficiente para meses de escrita – deviam haver centenas de folhas
cor-de-rosa.
“Oh,” exclamou Emily, dançando nas escadas do sótão, “Eu sinto-me como
se fosse feita de pó de estrelas.”
A partir daí poucos dias se passavam sem que Emily fosse para o sótão
e escrevesse uma carta, longa ou curta, ao seu pai. A amargura
desapareceu do seu desgosto. Escrever-lhe parecia trazê-lo para perto
de si; e ela contava-lhe tudo, com uma certa honestidade na confissão
que era característica sua – os seus triunfos, os seus fracassos, as
suas alegrias, as suas tristezas, tudo ia parar ao papel de um Governo
que tinha sido muito menos económico em relação ao papel do que se
tornou depois. Havia bem à vontade meio metro de papel em cada folha e
Emily escrevia com uma letra pequena para aproveitar cada centímetro.
“Eu gosto de New Moon. Aqui é tudo tão majestoso e esplêndido,” contou
ao pai. “E parecem-me que devemos ser muito aristoqraticos por termos
um relójio de sol. E não consigo deixar de ter orgulho nisso. Eu tenho
medo de ser muito orgulhosa e peço todas as noites a Deus que me tire
a maior parte, mas não todo. É muito fácil ganhar fama de orgulhosa na
escola de Blair Water. Se andarmos a direito e levantar-mos a cabeça
somos logo orgulhosas. A Rhoda também é orgulhosa porque o pai dela
devia ser rei de Inglaterra. Como é que a rainha vitória se sentiria
se soubesse disso? É maravilhoso ter uma amiga que seria uma princeza
se se fizece justiça. Eu amo a Rhoda de todo o meu coração. Ela é tão
doce e meiga. Mas eu não gosto das risadas dela. E quando eu lhe disse
que conseguia ver o papel de parede da escola no ar ela disse estás a
mentir. Magoou-me tanto ter a minha melhor amiga a dizer-me uma coisa
destas. E ainda me magoou mais quando acordei a meio da noite e me
lembrei. E estive tanto tempo para voltar a dormir, porque precisava
de me virar para o outro lado mas estava com medo que a tia Elizabeth
pensasse que eu estava às voltas na cama.

50
“Eu não me atrevi a contar à Rhoda sobre a Dama do Vento porque
parece-me que isso é realmente uma mentira de certa maneira, embora me
pareça real. Eu oiço-a agora a cantar no telhado em volta das
chaminés. Eu aqui não tenho Emily detrás do Espelho. Os espelhos estão
todos muito altos nos quartos onde estive. Eu nunca estive no
miradouro. Está sempre fechado. Era o quarto da Mãe e o primo Jimmy
diz que foi o avô que o fechou quando ela fugiu consigo, e a tia
Elizabeth mantém-o fechado por respeito à memória dele, embora o primo
Jimmy diga que ela brigava com ele de uma maneira vergonhosa quando
era vivo mas ninguém sabia por causa do orgulho dos Murray. Eu também
sinto isso. Quando a Rhoda me perguntou se a tia Elizabeth só usava
velas porque era antiquada e respondi-lhe logo que não, era uma
tradisão dos Murray. O primo Jimmy contou-me todas as tradisões dos
Murray. A Saucy Sal está muito bem e manda nos gatos todos do celeiro
mas ainda não teve gatinhos e eu não percebo porquê. Eu perguntei
porquê à tia Elizabeth e ela disse-me que as meninas boas não fazem
perguntas sobre esses assuntos mas eu não sei porque é que os gatinhos
são indesentes. Quando a tia Elizabeth cá não está eu e a tia Laura
deixamos entrar a Saucy Sal em casa mas quando a tia Elizabeth volta
eu sinto-me sempre culpada e desejava não ter deixado. Mas na próxima
vez faço o mesmo. Eu acho isto tão estranho. Eu nunca mais soube nada
do meu querido Mike. Escrevi à Ellen Greene e perguntei-lhe por ele e
ela respondeu-me sem falar do Mike mas contou-me tudo sobre o
reumatismo dela. Como se eu me importace com isso.
“A Rhoda vai dar uma festa de anos e vai-me convidar. Estou tão
excitada. O pai sabe que eu nunca fui a uma festa. Eu penso muito
nisso e imagino como será. A Rhoda não vai convidar todas as meninas
mas só as que gosta mais. Eu espero que a tia Elizabeth me deixe levar
o vestido branco e o chapéu melhor. Oh, Pai, eu preguei aquela figura
linda do vestido de baile em renda na parede do quarto da tia
Elizabeth, como tinha em casa, e ela arrancou-a e queimou-a e ralhou
comigo por eu fazer buracos na parede. Eu disse-lhe tia Elizabeth não
devia ter queimado aquela figura. Eu queria-a ter quando crescesse
para mandar fazer um vestido igual áquele para os bailes. E a tia
Elizabeth disse Achas que vais ir a muito bailes, se posso saber e eu
disse-lhe Sim, quando eu for rica e famosa e a tia Elizabeth disse
Pois, quando a Lua for feita de queijo.
“Eu vi o doutor Burnley ontem quando ele cá veio comprar ovos à tia
Elizabeth. Fiquei desiludida porque ele parece uma pessoa normal. Eu
achava que um homem que não acredita em Deus devia ser estranho
nalguma coisa. E ele não praguejava e eu tive pena porque nunca ouvi
ninguém pragejar e estou ancioza. Ele tem uns grandes olhos amarelos
como os da Ilse e fala alto, e a Rhoda diz que quando ele se zanga se
ouve gritar em toda a Blair Water. Há um mistério qualquer em relação
à mãe da Ilse mas eu não o consigo descortinar. O Dr. Burnley e a Ilse
vivem sozinhos. A Rhoda diz que o Dr. Burnley não quer diabos de
mulheres dentro de casa. É uma conversa má mas imprecionante. A
senhora Simms vai lá cozinhar o almoço e o jantar para eles e vai-se
embora e eles fazem o pequeno-almoço. O doutor varre a casa de vez em
quando e a Ilse não faz nada senão andar por aí. O doutor nunca se ri
diz a Rhoda. Deve ser como o rei Henrique II.
“Eu gostava de conhesser a Ilse. Ela não é tão boa como a Rhoda mas eu
gosto do ar dela. Mas ela não vem muito à escola e a Rhoda diz que eu
não posso ter outra amiga como ela senão ela chora baba e ranho. A
Rhoda gosta tanto de mim como eu gosto dela. Nós vamos rezar as duas
para podermos viver sempre juntas e morrermos no mesmo dia.
“A tia Elizabeth é que me arranja o almoço para eu levar para a
escola. Ela não me dá nada a não ser pão com manteiga mas ela corta
umas fatias grossas barra-as bem, e a manteiga daqui não tem aquele
sabor horrível que tinha a da Ellen Greene. E a tia Laura mete-me lá
uma bolacha ou uma empada de maçã quando a tia Elizabeth não está a

51
ver. A tia Elizabeth diz que as empadas de maçã não me fazem bem.
Porque é que as coisas que sabem melhor nunca nos fazem bem, Pai? A
Ellen Greene também costumava dizer isso.
“O nome da minha professora é Miss Brownell. Eu não gosto do feito da
proa dela (Isto é uma fraze náutica que o primo Jimmy costuma usar. Eu
sei que fraze não se escreve assim mas não há cá diccionário em New
Moon e é assim que soa). Ela é muito sarcástica e gosta de nos fazer
pareser ridículos. Depois ri-se de nós de uma maneira desagradável.
Mas eu perdoei-lhe por me ter dado uma bofetada naquele dia na escola
e levei-lhe um ramo de flores no outro dia para fazer as pazes. Ela
recebeu-o muito friamente e deixou-o murchar na secretária. Se fosse
uma história ela tinha-se atirado ao meu pescoço a chorar. Eu não sei
se perdoar as pessoas serve de alguma coisa. Quer dizer, sim, serve,
porque nós sentimo-nos melhor. O pai nunca teve que usar aventais nem
chapéus-de-sol porque era um rapaz por isso não deve compreender como
me sinto. E os aventais são feitos de um material tão bom que nunca
mais se gastam, e vão levar anos a deixar de me servir. Mas eu tenho
um vestido branco para levar à igreja com um laço de seda preta e um
chapéu branco com laços negros e sapatinhos, e sinto-me muito elegante
com eles. Eu gostava imenso de ter uma franja, mas a tia Elizabeth nem
quer ouvir falar do assunto. A Rhoda disse-me que eu tinha uns olhos
lindos. Eu gostava que ela não mo tivesse dito. Eu sempre sospeitei
que tinha os olhos bonitos mas não tinha a certeza. Agora que sei que
são acho que estou sempre à espera que as pessoas reparem. Eu tenho
que ir para a cama às sete e meia e não gosto nada mas sento-me na
cama e olho pela janela até ficar escuro, por isso vingo-me da tia
Elizabeth, e oiço o som que o mar faz. Eu agora gosto, embora me faça
sempre ficar triste, mas é uma tristeza agradável. Eu também tenho que
dormir com a tia Elizabeth e não gosto nada porque se me mexo ela diz
que ando ás voltas na cama mas pelo menos admite que eu não dou
pontapés. E ela não me deixa abrir a janela. Ela não gosta de ar
fresco nem de luz na casa. A sala de visitas é escura como um túmulo.
Eu fui lá uma vez e levantei os estores todos e a tia Elizabeth ficou
horrorizada, chamou-me pequena intrometida e mandou-me o olhar dos
Murray. Parecia que eu tinha cometido um crime. Senti-me tão insultada
que vim para o sótão e escrevi uma descrisão do meu afogamento numa
folha e depois senti-me melhor. A tia Elizabeth disse que eu nunca
mais podia ir à sala de visitas sem autorização mas eu não quero ir.
Tenho medo da sala de visitas. As paredes estão cheias de retratos dos
nossos antepassados e não há uma pessoa bonita entre eles a não ser o
avô Murray que parece bonito mas muito zangado. O quarto de hóspedes é
no primeiro andar e é tão escuro como a sala de visitas. A tia
Elizabeth só lá deixa dormir os hóspedes ilustres. Eu gosto da cozinha
durante o dia, e do sótão e da casa do fogão e do hall por causa do
lindo vidro vermelho e adoro a leitaria, mas não gosto das outras
divisões de New Moon. Oh, esqueci-me do armário da cave. Eu adoro
olhar para as filas de potes de doce e jeleia. O primo Jimmy diz que é
uma tradisão dos Murray que os potes nunca fiquem vazios. New Moon tem
mesmo muitas tradisões. É uma casa muito chepaçosa, e as árvores são
lindas. Eu chamei As Três Princesas ás três arvores ao pé do portão do
jardim e chamei à velha casa de Verão a Alcova da Emily, e a grande
macieira ao pé do portão do velho pomar é a Arvore que Reza, porque
tem os ramos levantados como o Sr. Dare levanta os braços quando reza
na igreja.
“A tia Elizabeth deu-me a gaveta de cima do lado direito da cómoda
para eu guardar as minhas coisas.
“Oh, querido pai, eu fiz uma descuberta maravilhosa. Eu gostava de a
ter feito quando o pai era vivo porque acho que tinha gostado de
saber. Eu consigo escrever poesia. Talvez a tivesse conseguido
escrever há mais tempo se tivesse tentado. Mas depois daquele primeiro
dia na escola eu estava obrigada pela honra a tentar e foi tão fácil.

52
Há um livrinho pequeno encadernado a preto na estante da tia Elizabeth
chamado ‘As Estações’ de Thompson e eu decidi que ia escrever um poema
sobre uma estação e os primeiros três versos são,
Agora o Outono chegou, maduro com pêssegos e peras,
A trompa do caçador ecoa sobre a terra,
E a pobre perdiz esvoaçando cai morta
Claro que não há pêssegos na ilha do príncipe Eduardo e eu nunca ouvi
a trompa de um caçador, mas nós não temos que nos cingir aos factos na
poesia. Eu enchi uma folha inteira com elas e depois fui le-las à tia
Laura. Eu achei que ela ia ficar radiante por ter uma sobrinha que
sabia escrever poesia mas ela levou isto muito friamente e disse-me
que não lhe soava muito a poesia. São blank verse, exclamei. Muito
Blanck, disse a tia Elizabeth sarcasticamente apesar de eu não lhe ter
pedido a opinião. Mas eu acho que vou escrever poesia com rimas depois
disto para não haverem enganos e eu quero ser poetisa quando crescer e
ficar famoza. Eu também espero ser tipo ninfa. Uma poetisa deve ser
magra e esguia como uma ninfa. O primo Jimmy também faz poesia. Ele já
fez para cima de 1000 poemas mas nunca os escreve porque os tem todos
na cabeça. Eu ofereci-me para lhe dar algumas das minhas tiras de
papel – porque ele tem sido muito bom para mim – mas ele disse que era
muito velho para ganhar novos hábitos. Eu ainda não ouvi nenhuma da
poesia dele porque o espírito ainda não o tomou mas eu estou muito
ancioza e tenho pena que só comecem a engordar os porcos no Outono. Eu
cada dia gosto mais do primo Jimmy, excepto quando ele fica estranho
na voz e no aspecto. Nessa altura ele açusta-me mas nunca dura muito
tempo. Eu já li uma grande parte dos livros da estante de New Moon.
Uma história da reforma em França, muito religioso e triste. Um
livrinho muito grosso a descrever os meses em Inglaterra e as já
mencionadas ‘Estações’ de Thompson. Eu gosto de o ler porque tem
muitas palavras bonitas mas não gosto da sensação que dá. O papel é
muito grosso e áspero e fico arrepiada. Viagens em Espanha, muito
fachinante, com um lindo papel macio e brilhante, um livro sobre os
missionários das ilhas dos Pacífico, com imagens muito interessantes
por causa da maneira como os chefes ateus arranjam o cabelo. Depois de
se tornarem cristãos cortam-no o que eu acho uma pena. Os poemas de
Mrs. Hemans. Eu gostos apaichonadamente de poesia e de histórias sobre
ilhas desertas. Rob Roy, uma novela, mas eu só li um bocadinho porque
a tia Elizabeth disse que eu não o podia ler porque era uma novela. A
tia Laura disse-me para ler às escondidas. Eu não vejo porque é que
não havia de obedecer à tia Laura mas tenho uma sensação estranha
sobre isto e ainda não o fiz. Um lindo livro sobre tigres, cheio de
imagens e histórias de tigres que me fizeram sentir tão bem e tão
arrepiada. A Estrada Real, também religioso mas divertido e muito bom
para ler aos domingos. Reuben e Grace, uma história que não é uma
novela porque o Reuben e a Grace são irmãos e não há casamentos.
Pequena Katty e Jolly Jim, como o anterior mas não tão excitante e
trágico. As maravilhas da Natureza, que é muito bom e educativo. Alice
no País das Maravilhas, que é adorável e As Memórias de Anzonetta B.
Peters que se converteu aos sete anos e morreu aos doze. Quando alguém
lhe fazia uma pergunta ela respondia-lhes com um verso de um hino.
Isso foi depois dela se converter. Antes falava Inglês normal. A tia
Elizabeth disse-me que eu devia tentar ser como a Anzonetta. Eu
poderia ser como a Alice numas circunstâncias mais favoráveis, mas
nunca poderia ser tão boa como a Anzonetta e não acho que quisesse
porque ela nunca se divertia. Ela ficou doente assim que se converteu
e sofreu agonias durante anos. Além disso, eu tenho a certeza que se
eu falasse por hinos ia parecer ridícula. Eu tentei uma vez. A tia
Laura perguntou-me no outro dia se eu queria riscas azuis em vez de
vermelhas nas minhas meias de Inverno e eu respondi-lhe como a
Anzonetta fez numa pergunta semelhante, acerca de um saco,
Jesus, o Teu sangue e rectidão

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A minha beleza são, o meu traje glorioso

E a tia Laura disse que eu era maluca e a tia Elizabeth disse que eu
era irreverente. Por isso sei que não ia resultar. Além disso a
Anzonetta não comeu nada durante anos por causa de úlceras no estômago
e eu gosto imenso de comer bem.
“O velho senhor Wales de Derry Pond está a morrer de cancro. A Jennie
Strang diz que a mulher dele já tem a roupa de luto toda pronta.
“Eu escrevi uma biografia da Saucy Sal hoje e uma descrisão da estrada
no bosque do Lofty John. Eu vou juntá-los a esta carta para que o Pai
também os possa ler. Boa noite querido Pai.
“A sua mais humilde serva,
“Emily B. Starr.
“P.S. Eu acho que a tia Laura gosta de mim. Eu gosto de ser amada, Pai
querido.
“E. B. S.”

DORES DE CRESCIMENTO

Houve uma grande dose de excitação reprimida na escola durante a


última semana de Junho, devida à festa de anos de Rhoda Stuart, que
deveria ter lugar no início de Julho. A ansiedade era tremenda. Quem
seria convidado? Essa era a grande questão. Haviam algumas que já
sabiam que não iam e outras que sabiam que iam; mas a maioria estava
presa num horrível suspense. Toda a gente apaparicava a Emily porque
ela era a melhor amiga de Rhoda e era possível que ela intercedesse na
escolha dos convidados. Jennie Strang chegou a ir ao ponto de oferecer
uma linda caixa branca para os lápis com uma imagem da rainha Vitória
na tampa se a Emily lhe arranjasse um convite. Emily recusou o suborno
e disse muito importante que não interferia num assunto tão delicado.
Ela chegou a armar-se um bocado por causa disso. Ela estava certa do
seu convite. A Rhoda tinha-lhe falado da festa dias antes e comentara
todos os pormenores. Era para ser uma coisa em grande – um bolo de
anos com cobertura cor-de-rosa e enfeitado com dez velas cor-de-rosa –
gelado e laranjas – e convites por escrito em papel cor-de-rosa com
rebordo dourado – que seriam enviados pelo correio – sendo este último
detalhe um pormenor de exclusividade. Emily sonhava com a festa de
noite e de dia e já tinha o presente para Rhoda – uma Linda fita para
o cabelo que a tia Laura tinha trazido de Shrewsbury.
No primeiro Domingo de Julho Emily deu por si sentada ao lado da
Jennie Strang na escola dominical para os primeiros exercícios.
Normalmente ela sentava-se com Rhoda, mas esta agora estava sentada
três lugares mais à frente com uma rapariga desconhecida – uma menina
muito alegre e bem vestida, com um vestido de seda azul, um grande
chapéu com uma grinalda de flores no seu cabelo elaboradamente
encaracolado, meias de renda brancas nas pernas gorduchas e uma franja
que lhe chegava aos olhos. Mas nem todos os seus enfeites conseguiam
melhorá-la muito; ela não era nada bonita e tinha um ar zangado e
desdenhoso.
“Quem é a menina que está sentada com a Rhoda?” murmurou Emily.
“Oh, é a Muriel Porter,” respondeu Jennie. “Ela é da cidade, sabes.
Veio passar as férias com a tia, a Jane Beatty. Eu detesto-a. Se eu
fosse a ela nem sonhava em usar azul com uma pele tão escura. Mas os
Porter são ricos e a Muriel acha-se o máximo. Dizem que a Rhoda e a
Muriel andam sempre juntas desde que ela chegou – a Rhoda anda sempre
à procura das pessoas que ela acha mais bem relacionadas.”
Emily endireitou-se. Ela não ia ouvir comentários desagradáveis sobre
a sua amiga. Jennie sentiu o desagrado e mudou de assunto.

54
“De qualquer maneira, ainda bem que não fui convidada para a festa da
Rhoda. Eu não ia querer estar no mesmo sítio que a Muriel Porter, toda
manienta.”
“Como é que sabes que não foste convidada?” perguntou Emily.
“Ora, porque os convites já vieram ontem. Não recebeste o teu?”
“Não…”
“E receberam o correio?”
“Sim, foi o primo Jimmy buscá-lo.”
“Pois, talvez fosse a Senhora Beecham que se esqueceu de lho dar.
Deves recebe-lo amanhã.”
Emily achou que seria provável. Mas todo o seu ser foi invadido por
uma estranha sensação de desânimo, que não se aliviou quando depois da
escola dominical a Rhoda seguiu com a Muriel Porter sem sequer olhar
para mais ninguém. Na segunda-feira Emily foi ela própria buscar o
correio, mas não havia nenhum envelope cor-de-rosa para ela. Ela
chorou até adormecer nessa noite, mas não deixou de ter esperança até
que chegou a terça-feira. Então encarou a terrível verdade – que ela –
ela, Emily Byrd Starr, de New Moon – não tinha sido convidada para a
festa de anos de Rhoda Stuart. Era incrível. Tinha que haver um erro
algures. Teria o primo Jimmy perdido a carta a caminho de casa? Será
que a irmã mais velha de Rhoda, que escrevera os convites, se
esquecera do nome dela? Teria – todas as dúvidas amargas de Emily se
transformaram numa amarga certeza graças a Jennie, que veio ter com
ela quando saía dos correios. Havia um brilho malicioso nos olhos de
Jennie. Ela gostava bastante de Emily agora, apesar do seu confronto
no primeiro dia de aulas, mas ainda assim gostava de ver o orgulho
dela ferido.
“Então afinal não foste convidada para a festa da Rhoda.”
“Não,” admitiu Emily.
Foi um momento amargo para ela. O orgulho dos Murray for a duramente
atingido – e, por debaixo do orgulho dos Murray, havia outra coisa que
ficara muito ferido mas que ainda não morrera de todo.
“Pois, eu acho que foi uma maldade,” disse Jennie, muito sinceramente
condoída apesar da sua satisfação secreta. “E depois de todo o
espectáculo que deu por tua causa! Mas isso é mesmo à Rhoda. Chamar-
lhe falsa ainda é pouco.”
“Eu não acho que ela seja falsa,” disse Emily, leal até ao fim. “Eu
acho que deve ter havido um engano qualquer para eu não ter sido
convidada.”
Jennie ficou a olhar para ela.
“Então não sabes porque foi? A Beth Beatty contou-me tudo. A Muriel
Porter detesta-te e disse à Rhoda que não ia à festa se tu fosses
convidada. E a Rhoda estava tão ansiosa por ter uma rapariga da cidade
na festa dela que prometeu que não te convidava.”
“A Muriel Porter não me conhece,” balbuciou Emily. “Como é que ela me
pode detestar se não me conhece?”
Jennie riu-se impiedosamente.
“Eu conto-te. Ela está de rastos pelo Fred Stuart e o Fred sabe disso,
e chateou-a elogiando-te a ti – disse-lhe que tu eras a miúda mais
querida de Blair Water e que ele havia de ficar contigo quando fosse
mais velho. E a Muriel ficou tão furiosa que fez com que a Rhoda não
te convidasse. Eu não me importava se fosse a ti. E quanto à Rhoda não
ser falsa, eu digo-te que é. Ela não te disse que não sabia que a
cobra estava dentro da caixa, quando foi ela que teve a ideia
primeiro?”
Emily ficou demasiado destroçada para responder. Ficou contente por
Jennie ter que se separar dela para seguir pela sua alameda e
prosseguir sozinha. Apressou-se para casa, com medo de não conseguir
impedir as lágrimas de rolarem antes de lá chegar. Desilusão por causa
da festa – humilhação pelo insulto – tudo fora engolido pela angústia
de uma confiança traída. O seu amor por Rhoda estava agora morto, e

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Emily lutava no fundo da sua alma com a força do golpe que o matara.
Era uma tragédia para uma criança – e ainda mais amarga por causa
disso, pois não havia ninguém que compreendesse. A tia Elizabeth
disse-lhe que as festas de anos eram um disparate e que os Murray
nunca se tinham relacionado com os Stuart. Até a tia Laura, embora a
acarinhasse e reconfortasse, não compreendeu como o desgosto fora
profundo e dilacerante, tão profundo e dilacerante que Emily nem
conseguiu escrever sobre ele ao pai, e não teve escape para as
violentas emoções que lhe atingiam todo o ser.
No Domingo seguinte Rhoda estava sozinha na escola dominical, Muriel
Porter tinha sido subitamente chamada de volta a casa por uma doença
do pai; e Rhoda olhava para Emily com uns olhos muito doces. Mas Emily
passou por ela com a cabeça bem levantada e o desprezo bem patente na
expressão. Ela nunca mais teria nada que ver com a Rhoda Stuart – não
poderia ter. Desprezava agora ainda mais a Rhoda por tentar fazer as
pazes com ela, quando a rapariga da cidade por quem a sacrificara
tinha partido. Não era por Rhoda que sofria – era pela amizade que
fora tão importante para ela. Rhoda tinha sido doce e querida pelo
menos superficialmente, e Emily encontrara uma felicidade imensa nessa
companhia. Agora tinha terminado e ela nunca, nunca mais seria capaz
de amar ou confiar em alguém. E aí estava o espinho.
Envenenara tudo. Emily tinha uma natureza mesmo em criança que não
recuperava ou esquecia facilmente um golpe deste tipo. Ela deambulava
por New Moon, perdeu o apetite e emagreceu. Odiava ter que ir à escola
dominical porque achava que as outras meninas se exultavam com a sua
humilhação e o seu afastamento de Rhoda. Havia um ligeiro sentimento
desse género, talvez, mas Emily exagerava-o morbidamente. Se duas
meninas segredavam ou davam risadas em conjunto, Emily achava que
estavam a falar e a rir-se dela. SE uma delas ia para casa com ela
achava que estava a ser caridosa com ela porque não tinha amigas.
Durante um mês, Emily foi o pequeno ser mais infeliz de Blair Water.
“Eu acho que devo ter sido amaldiçoada quando nasci,” reflectia
desconsoladamente.
A tia Elizabeth tinha uma ideia mais prosaica a que atribuía a apatia
e falta de apetite de Emily. Tinha chegado à conclusão que a grande
massa de cabelos de Emily lhe “roubava as forças” e que ela ficaria
mais forte e melhor se lho cortasse. Com a tia Elizabeth, decidir era
agir. Numa manhã informou friamente Emily que o seu cabelo iria ser
“desbastado”.
Emily não acreditou no que ouviu.
“Não está a querer dizer que me vai cortar o cabelo, pois não, tia
Elizabeth?” exclamou.
“Sim, é exactamente o que quero dizer,” disse a tia Elizabeth com
firmeza. “Tu tens cabelo demais, especialmente para este tempo quente.
Tenho a certeza que é por isso que te andas a sentir mal ultimamente.
Pronto, e não quero choraminguisses.”
Mas Emily não conseguia travar as lágrimas.
“Mas não o corte todo,” implorava. “Corte só a parte da frente. Há
tantas meninas que têm franjas desde o alto da cabeça. Assim tirava-me
metade do cabelo e o resto já não me tirava muita força.”
“Não vão haver aqui franjas nenhumas,” disse a tia Elizabeth. “Eu
disse-te isso muitas vezes. Eu vou-te desbastar o cabelo em volta da
cabeça toda por causa do calor. Um dia vais-me agradecer por isto.”
Emily sentia-se tudo menos agradecida nessa altura.
“É a minha única beleza,” soluçou, ”o cabelo e as pestanas. Também me
vai querer cortar as pestanas?”
A tia Elizabeth desconfiava realmente daquelas pestanas compridas e
enroladas de Emily, que eram uma herança da jovem madrasta de
Elizabeth, e muito pouco Murray para serem aprovadas; mas não tinha
planos contra elas. O cabelo, no entanto, tinha que ser cortado e

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disse secamente à Emily que esperasse ali, sem disparates, enquanto
ela ia buscar a tesoura.
Emily esperou, bastante desesperada. Iria perder o seu lindo cabelo –
o cabelo de que o pai tanto se orgulhara. Tornaria a crescer com o
tempo, se a tia Elizabeth deixasse, mas isso ia levar anos e
entretanto, que vista miserável teria! A tia Laura e o primo Jimmy
estavam fora; não tinha ninguém que a defendesse; esta coisa horrível
ia mesmo acontecer.
A tia Elizabeth voltou com a tesoura; e chiou sugestivamente quando
ela a abriu; esse som, como por magia, pareceu libertar algo – um
poder extraordinário em Emily. Ela virou-se deliberadamente para trás
e enfrentou a tia. Sentiu as sobrancelhas juntarem-se de uma forma
invulgar – sentiu um impulso que vinha do seu interior como uma
irresistível fonte de energia.
“Tia Elizabeth,” disse, olhando directamente para a senhora com a
tesoura,”o meu cabelo não vai ser cortado. Não quero ouvir falar mais
nesse assunto.”
E uma coisa extraordinária aconteceu à tia Elizabeth. Empalideceu –
pousou a tesoura – ficou confusa por uns momentos a olhar para a
criança transformada ou possuída à sua frente – e pela primeira vez na
vida de Elizabeth Murray ela virou-se e fugiu – fugiu literalmente
-para a cozinha.
“O que é que se passa, Elizabeth?” exclamou Laura, vinda da casa do
fogão.
“Eu vi – o pai – na cara dela,” balbuciou Elizabeth, a tremer. “E ela
disse, ‘não quero ouvir falar mais nesse assunto’ – mesmo como ele
dizia, com as mesmas palavras.”
Emily ouviu a conversa e correu para o espelho mais próximo. Ela tinha
tido, enquanto falava, a sensação estranha de estar a usar o rosto de
outra pessoa e não o seu. Agora tinha desaparecido – mas Emily ainda
lhe apanhou um vislumbre ao sair, o olhar dos Murray, pensou.
Não admira que tivesse assustado a tia Elizabeth – assustou-a a ela
mesma – e ficou feliz por ter desaparecido. Ela tremeu – fugiu para o
seu refúgio no sótão e chorou; mas de certa forma sabia que o seu
cabelo não seria cortado.
E não foi; a tia Elizabeth não voltou a falar no assunto. Mas passaram
muitos dias sem que interferisse muito com a Emily.
Também foi um facto curioso que ela deixou de se lamentar pela amiga
nesse mesmo dia. O assunto tornou-se subitamente de pouca importância.
Era como se tivesse acontecido há tanto tempo que nada, a não ser uma
memória limpa de emoções, permanecera. Emily recuperou rapidamente o
apetite e a animação, retomou as suas cartas para o pai e descobriu
que a vida era boa novamente, apenas ensombrada por um pressentimento
que a tia Elizabeth, insatisfeita com a sua derrota em relação ao
cabelo, iria encontrar uma forma de se vingar mais tarde ou mais cedo.
E a tia Elizabeth vingou-se dentro dessa mesma semana. Emily foi
mandada a uma loja para fazer um recado. Estava um dia abrasador e ela
tinha autorização para andar descalça em casa; mas para sair tinha que
calçar botas e meias. Emily revoltou-se – estava calor demais – havia
pó a mais – ela não ia conseguir andar aquela longa meia milha de
botas de cano. A tia Elizabeth estava inamovível. Nenhum Murray seria
visto descalço fora de casa – e assim por diante. Mas no minuto que
Emily atravessou o portão de New Moon sentou-se no chão, descalçou-as,
guardou-as num buraco da cerca e prosseguiu caminho descalça.
Fez o seu recado e voltou com a consciência tranquila. Que lindo
estava o mundo – como era grande e azul claro o lago de Blair Water –
como era glorioso o milagre de botões de ouro que cobriam o campo por
baixo do bosque do Lofty John! Ao vê-los Emily ficou parada como em
choque e compôs um verso de poesia.

Botão de ouro, flor da cor amarela,

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Eu vejo o teu rosto alegre
Acenando e saudando por todo o lado
Indiferente ao espaço e ao tempo

Em campo pantanoso ou estrada pública


Ou empalidecendo um jardim refinado
Tu ergues as tuas pétalas suaves como cetim
E lá em baixo no vale.
E até aí, tudo bem. Mas Emily queria mais um verso para terminar o
poema em condições e a inspiração divina parecia ter terminado.
Continuou para casa envolta em sonhos, e na altura em que chegou a New
Moon já tinha o seu verso e recitava-o para si mesma com um agradável
sentimento de completude.

Projectas a tua beleza


Onde quer que estes
E serás sempre, botão de ouro
Uma flor amada por mim

Emily sentia-se muito orgulhosa. Este era o seu terceiro poema e sem
dúvida o seu melhor. Ninguém o poderia chamar forçado. Ela tinha que
se apressar a chegar ao sótão para o escrever. Mas a tia Elizabeth
esperava-a nos degraus.
“Emily, onde estão as tuas meias e as tuas botas?”
Emily desceu da terra dos sonhos com um solavanco muito desagradável.
Tinha-se esquecido completamente das botas e das meias.
“No buraco ao pé do portão,” disse simplesmente.
“Foste à loja descalça?”
“Sim.”
“Depois de eu te ter dito que não podias?”
Esta pareceu uma pergunta supérflua a Emily e ela não a respondeu.
Mas tinha chegado a vez da tia Elizabeth.

ILSE

Emily foi fechada no quarto de hóspedes e a tia disse-lhe que lá tinha


que ficar até à hora de se ir deitar. Ela implorara contra o castigo
em vão. Tinha tentado fazer o olhar dos Murray mas parecia que – pelo
menos no seu caso – este não vinha sempre que convocado.
“Oh, não me feche lá em cima sozinha, Tia Elizabeth,” implorou. “Eu
sei que fui má – mas não me ponha no quarto de hóspedes.”
A tia Elizabeth estava inamovível. Ela sabia que era um castigo cruel,
fechar uma criança sensível como a Emily naquele quarto sombrio. Mas
achou que estava a fazer o seu dever. Não se apercebeu e nem por um
momento pensou que estivesse a dar largas ao seu ressentimento
sufocado pela derrota que Emily lhe infligira e o susto que apanhara
no dia do corte de cabelo. A tia Elizabeth acreditava que naquele dia
tinha sido avassalada por uma semelhança familiar ocasional originada
pelo stress, e tinha vergonha disso. O orgulho dos Murray tinha sido
espicaçado nessa ocasião e só deixou de a incomodar quando trancou a
porta do quarto de visitas no rosto pálido da culpada.
Emily, parecendo muito pequena e perdida e sozinha, com os olhos
cheios de um medo que nunca deveria existir nos olhos de uma criança,
encolheu-se contra a porta do quarto de visitas. Era melhor assim.
Dessa maneira não tinha que imaginar as coisas que tinha por detrás
das costas. E o quarto era tão grande e sombrio que um sem número de
coisas terríveis se podiam lá imaginar. O seu tamanho e a sua
escuridão enchiam-na de um horror contra o qual não conseguia lutar.
Desde que se lembrava que tinha terror de estar fechada sozinha ma

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semi-escuridão. Não tinha medo do anoitecer na rua, mas esta penumbra
sombria e emparedada fazia do quarto de hóspedes um local de terror.
A janela estava coberta por um tecido pesado, verde-escuro, reforçado
por estores de ripas corridas. A grande cama de dossel, partindo da
parede até ao meio da divisão, era alta e rígida e também tinha
penduradas umas cortinas escuras. Qualquer coisa podia saltar sobre
ela vinda de uma cama daquelas. E se uma grande mão negra de lá
saísse, atravessasse a divisão e a agarrasse? As paredes, tal como as
da sala de visitas, estavam adornadas com as fotografias dos parentes
falecidos. Havia uma colecção tão grande de Murrays mortos. Os vidros
das molduras provocavam estranhos reflexos devido aos espectros de
luzes que se filtravam através dos estores. E pior que tudo, do outro
lado do quarto, no alto de um guarda fato muito comprido, estava uma
coruja do árctico empalhada, olhando-a com olhos sobrenaturais. Emily
gritou quando a viu, e depois encolheu-se mais no seu canto,
surpreendida pelo som que fizera no grande quarto silencioso e
ressoante. Ela já desejava que alguma coisa saltasse realmente da cama
e lhe pusesse fim ao sofrimento.
“Como é que a tia Elizabeth se sentiria se eu fosse aqui encontrada
morta?” pensou, vingativa.
Apesar do seu medo começou a dramatizar esta situação e sentiu os
remorsos da tia Elizabeth com tanta precisão que decidiu que ia ficar
só inconsciente e voltar à vida quando todos estivessem
suficientemente assustados e penitentes. Mas já tinham morrido pessoas
naquele quarto, dúzias delas. Pelo que dizia o primo Jimmy era
tradição em New Moon que quando qualquer membro da família estava
perto de morrer se levava para o quarto de hóspedes para morrer
rodeado de grandeza. Emily conseguia vê-los a morrer, naquela cama
terrível. Ela sentia que ia gritar alto mais uma vez, mas lutou contra
o impulso. Uma Starr não pode ser cobarde. Oh, aquela coruja! E se,
quando ela desviasse o olhar descobrisse que ela tinha saído do guarda
fato e estava a vir ter com ela? Emily nem se atrevia a olhar com medo
que fosse o que se passara. não tinham mesmo agora mexido as cortinas?
Ela sentia gotas de suor frio a formarem-se na testa.
Então, algo aconteceu realmente. Um raio de luz penetrou por uma
pequena fenda no estore e caiu directamente sobre a imagem do avô
Murray exposta no móvel. Era um desenho a carvão copiado de um velho
daguerrotipe que havia lá em baixo na sala de visitas. Naquela faixa
de luz o seu rosto parecia sair da escuridão com o sobrolho franzido
estranhamente exagerado. Os nervos de Emily cederam por completo. Num
acesso descontrolado de pânico ela correu como louca para a janela do
outro lado do quarto, afastou as cortinas e levantou o estore. Uma
abençoada torrente de luz entrou. Lá fora via-se um mundo humano,
amigável e saudável. E, maravilha das maravilhas, ali encostada ao
parapeito da janela estava uma escada! Por um momento Emily achou que
se dera um milagre para permitir a sua fuga.
O primo Jimmy tinha nessa manha tropeçado na escada, deitada perdida
entre os burdocks por baixo dos Balm of Gilhead por detrás da
leitaria. Estava muito estragada e ele decidiu que era altura de se
desfazer dela. Tinha-a levantado e encostado à casa para ter a certeza
que a via quando regressasse do campo de feno.
Em menos tempo do que se leva a escrever Emily tinha aberto a janela,
trepado para o parapeito e agarrado a escada. Estava demasiado ansiosa
por fugir daquele quarto horroroso para se aperceber do mau estado em
que estava a escada. Quando chegou ao chão fugiu através dos Balm of
Gilead e trepou a vedação até entrar no bosque do Lofty John, e não
parou de correr até chegar ao caminho do pé do riacho.
Então parou para tomar fôlego, exultante. Estava cheia de uma alegria
nervosa com um prazer élfico pelo meio. Doce era o vento da liberdade
que soprava sobre os fetos. Ela tinha escapado do quarto de hóspedes e
de todos os seus fantasmas – tinha levado a melhor à má tia Elizabeth.

59
“Sinto-me como se fosse uma avezinha acabada de fugir de uma gaiola,”
disse para si mesma; e então dançou com alegria pelo caminho das fadas
até ao fim, onde encontrou a Ilse Burnley empoleirada na trave de uma
vedação, o seu cabelo louro pálido projectando uma marca brilhante
contra os escuros pinheiros jovens que a rodeavam.
Emily não a via desde o seu primeiro dia de aulas e mais uma vez
pensou que nunca vira alguém exactamente como a Ilse.
“Então, Emily de New Moon,” disse Ilse, “para onde vais a correr?”

“Estou a fugir,” disse Emily com sinceridade. “Eu fui má – pelo menos
um bocadinho má – e a tia Elizabeth trancou-me no quarto de hóspedes.
Eu não tinha sido assim tão má–-não foi justo–-por isso eu saí pela
janela e desci a escada.”
“Sua maluca! Nunca achei que tivesses genica suficiente para isso,2
disse Ilse.
Emily respirou fundo. Parecia-lhe incrível terem-lhe chamado maluca.
Mas a Ilse tinha-o dito de uma forma admirável.
“Eu não acho que tenha sido genica,” disse Emily, demasiado honesta
para aceitar um elogio que não merecia. “Eu estava demasiado apavorada
para ficar naquela quarto.
“E então, o que vais fazer agora?” perguntou Ilse. “Vais ter que te
abrigar nalgum lado – não podes ficar na rua. Vem aí uma trovoada.”
E era verdade. Emily não gostava de trovoadas. E a consciência dela
incomodava-a.
“Oh,” disse,” achas que Deus mandou esta tempestade para me castigar
por eu ter fugido?”
“Não,” disse Ilse gozando. “Se existisse um Deus ele não ia armar
tanta confusão por uma coisa sem importância.”
“Oh, Ilse, tu não acreditas em Deus?
“Não sei. O pai diz que ele não existe. Mas nesse caso como é que
aconteceram as coisas? Há uns dias em que acredito em Deus e outros em
que não acredito. É melhor vires para casa comigo. Não há lá ninguém.
Eu estava sozinha como um cão e decide vir para o bosque.”
Ilse desceu e estendeu a mão morena a Emily. Emily aceitou-a e
correram juntas pelo campo do Lofty John até à velha casa dos Burnley,
que parecia um grande gato cinzento estendido ao sol do fim de tarde,
um gato que ainda não fora engolido pelos ameaçadores relâmpagos.
Lá dentro, a casa estava cheia de mobílias que noutros dias teriam
sido esplêndidas; mas a desordem era terrível e o pó depositava-se aos
maços por cima de tudo. Aparentemente não havia nada no lugar e a tia
Laura teria desmaiado de horror se tivesse visto a cozinha. Mas era um
bom sítio para brincar. Não se tinha que ter cuidado com as coisas.
Ilse e Emily fizeram um espantoso jogo das escondidas dentro de casa
até que os trovões começaram a soar tão alto e os relâmpagos a
brilharem tanto que Emily teve que se sentar no sofá para recuperar a
coragem.
“Nunca tens medo dos trovões?” perguntou a Ilse.
“Não, eu não tenho medo de nada senão do diabo,” disse Ilse.
“Eu achei que tu também não acreditavas no diabo – a Rhoda disse que
não acreditavas.”
“Oh, mas há diabo sim senhor, é o pai que diz. Ele só não acredita em
Deus. E se há um diabo e nenhum Deus para o meter na linha não admira
que eu tenha medo dele. Olha, Emily Byrd Starr, eu gosto de ti – aos
montes. Gostei logo de ti. Eu sabia que tu depressa te fartavas
daquela pequena mentirosa descarada da Rhoda Stuart. Eu nunca minto. O
Pai uma vez disse-me que me matava se me apanhasse numa mentira. Eu
quero-te para minha amiga. Eu ia à escola todos os dias se me pudesse
sentar contigo.”
“Está bem,” disse Emily simplesmente. Não iam haver mais votos
sentimentais de devoção eterna estilo Rhoda. Essa fase tinha
terminado.

60
“E tu vais-me contar coisas – ninguém me conta coisas. E deixares-me
contar-te coisas – eu não tenho ninguém a quem as contar,” disse Ilse.
“E tu não vais ter vergonha de mim por as minhas roupas serem sempre
estranhas e porque eu não acredito em Deus?”
“Não. Mas se tu conhecesses o Deus do meu pai tu acreditavas nele.”
“Não acreditava não. Além disso, só há um Deus, se é que há algum.”
“Eu não sei,” disse Emily perplexa. “Não, não pode ser assim. O Deus
da Ellen Greene não é nada como o do pai, nem o da tia Elizabeth. Eu
também não gosto do deus da tia Elizabeth, mas ao menos é um Deus
digno, e o da Ellen não. E tenho a certeza que o da tia Laura é outro,
simpático e bom, mas não é maravilhoso como o do pai.”
“Pois, não te rales – eu não gosto de falar de Deus,” disse Ilse,
desconfortável.
“Eu gosto,” disse Emily. “Eu acho que Deus é um assunto muito
interessante, e eu vou rezar por ti, Ilse, para que possas acreditar
no Deus do Pai.”
“Nem penses!” gritou Ilse, por qualquer razão misteriosa não gostou da
ideia. “Eu não quero que rezem por mim!”
“Tu nunca rezas, Ilse?”
“Oh, de vez em quando – se me sinto sozinha de noite – ou se estou
metida em sarilhos. Mas eu não quero que mais ninguém reze por mim. Se
eu te apanho a fazer isso, Emily Starr, arranco-te os olhos. E fazes
favor de não andares a rezar por mim por trás das costas.”
“Está bem, não rezo,” disse Emily secamente, triste pelo falhanço da
sua ideia tão bem intencionada. “Eu vou rezar por toda a gente que
conheço mas deixo-te de fora.”
Por um momento esta ideia pareceu não agradar muito a Ilse. Mas depois
riu-se e deu a Emily um abraço vulcânico.
“Bem, de qualquer maneira, por favor gosta de mim. Ninguém gosta,
sabes?”
“O teu pai deve gostar de ti, Ilse.”
“Não gosta,” disse Ilse decididamente. “O pai não se rala nada comigo.
Eu até acho que há alturas em que ele odeia pôr-me a vista em cima. Eu
gostava mesmo que ele gostasse de mim porque ele consegue ser muito
simpático quando gosta de alguém. Sabes o que eu vou ser quando for
grande? Vou ser de-cla-ma-do-ra.”
“E isso é o quê?”
“Uma mulher que recita em concertos. Eu faço isso com a maior das
facilidades. E tu, o que vais ser?”
“Uma poetisa.”
“Espectáculo!” disse Ilse, aparentemente surpreendida. “Eu não acho
que tu consigas escrever poesia,” acrescentou.
“Mas posso, de verdade,” exclamou Emily. “Já escrevi três peças –
‘Outono’ e ‘Versos para Rhoda’ – mas esses queimei-os – e ‘Discurso
para um botão de ouro’. Eu compus esse hoje e é a minha obra-prima.”
“Então diz lá,” ordenou Ilse.
Sem relutância, Emily repetiu orgulhosamente os seus versos. Por
qualquer razão não se importava que Ilse os ouvisse.
“Emily Byrd Starr, não me digas que inventaste isso da tua cabeça?”
“Inventei.”
“Juras?”
“Juro.”
“Bem,” – Ilse respirou fundo – “então afinal deves ser mesmo uma
poetisa.”
Foi um momento de grande orgulho para Emily, um dos grandes momentos
da sua vida, na verdade. O seu mundo tinha-lhe atribuído um lugar. Mas
agora, haviam outras coisas em que pensar. A tempestade terminara e o
sol tinha-se posto. Estava a escurecer, em breve seria noite. Ela
tinha que voltar a casa para o quarto de hóspedes antes que a sua
ausência fosse descoberta. Era horrível pensar em voltar mas ela tinha
que o fazer senão a tia Elizabeth ia pensar em algo pior. Nesta

61
altura, sob a influência da personalidade da Ilse, ela estava cheia da
coragem dos holandeses. Além disso, depressa seriam horas de deitar e
iam-na deixar sair.
Marchou para casa através do bosque do Lofty John que estava cheio das
luzes deambulantes dos pirilampos, baixou-se cuidadosamente através
dos balm of gileads – e então parou desalentada. A escada já não
estava lá!
Emily deu a volta pela porta da cozinha, temendo caminhar para a sua
desgraça. Mas por uma vez, o caminho do transgressor foi
pecaminosamente fácil. A tia Laura estava sozinha na cozinha.
“Emily, querida, de onde vieste tu?” exclamou. “Eu ia mesmo agora lá a
cima soltar-te. A Elizabeth disse que eu podia, ela foi à reunião da
igreja.”
A tia Laura não disse que tinha várias vezes ido lá a cima em bicos de
pés e tinha ficado ansiosa pelo silêncio por detrás da porta. Estaria
a menina inconsciente com medo? Nem durante a trovoada a impiedosa
Elizabeth permitiu que a porta fosse aberta. E aqui estava a Emily,
entrando descansada vinda da escuridão depois de toda esta agonia. Por
um momento, até a tia Laura ficou aborrecida. Mas quando ouviu a
história da Emily o seu único sentimento foi de gratidão por a filha
da Juliet não ter partido o pescoço a descer a escada.
Emily sentiu que se tinha safado melhor do que merecia. Sabia que a
tia Laura ia guardar o segredo; e a tia Laura deixou-a dar um prato
cheio de aparas de carne à Saucy Sal e deu-lhe a ela uma bolacha
grande e apetitosa, indo deitá-la com beijos.
“Não devia ser tão boa para mi porque eu hoje fui má,” disse-lhe
Emily, entre dentadas deliciosas. “Eu acho que devo ter envergonhado
os Murrays por ir descalça à loja.”
“Eu se fosse a ti escondia as botas de cada vez que saia do portão,”
disse a tia Laura. “Mas não me esquecia de as calçar antes de entrar.
O que a Elizabeth não sabe não lhe pode fazer mal.”
Emily reflectiu sobre isto enquanto terminava a sua bolacha. Então
disse,
“Isso era bom, mas eu já não penso fazer isto outra vez. Acho que devo
obedecer à tia Elizabeth porque ela é a chefe da família.”
“Onde é que vais buscar estas ideias?” disse a tia Laura.
“Á minha cabeça. Tia Laura, a Ilse Burnley e eu vamos ser amigas. Eu
gosto dela – eu sempre achei que ia gostar dela se tivesse
oportunidade. Eu não acho que vá amar outra rapariga outra vez, mas
vou gostar dela.”
“Pobre Ilse!” disse a tia Laura. Suspirando.
“Sim, o pai não gosta dela. Não é terrível?” disse a Emily. “Porque é
que não gosta?”
“Ele gosta, de verdade. Só pensa que não.”
“Mas porque é que pensa isso?”
“És nova demais para perceberes, Emily.”
Emily odiava que lhe dissessem que ela era nova demais para perceber.
Ela achava que percebia perfeitamente as coisas se as pessoas se
dessem ao trabalho de lhas explicar e não fossem tão misteriosas.
“Eu gostava de poder rezar por ela. Mas não ia ser justo, quando sei o
que ela pensa sobre isso. Mas eu vou pedir sempre a Deus que abençoe
todos os meus amigos e ela é uma, por isso talvez ainda lhe venha
algum bem por aí. ‘Maluca’ é uma palavra que se pode usar, tia Laura?”
“Não!”
“Tenho pena,” disse Emily pensativa. “Porque é muito expressiva.”

EM TANSY2 PATCH
2
Tansy: planta silvestre com uma flor amarela, em português denominada atanásia. O nome da casa seria
assim ‘campo de atanásia’.

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Emily e Ilse tiveram uma bela tarde de diversão antes da sua primeira
briga. Foi na verdade uma briga valente, provocada pelo simples
desacordo quando a terem ou não uma sala de visitas na casa de brincar
que estavam a fazer no bosque do Lofty John. Emily queria uma, Ilse
não. Ilse perdeu as estribeiras e caiu numa verdadeira birra Burnley.
Ela era muito fluente nas suas fúrias e a quantidade de palavras
abusivas que atirava a Emily teriam afugentado a maioria das raparigas
de Blair Water. Mas Emily estava demasiado à vontade com as palavras
para se deixar bater facilmente; zangou-se também mas de uma forma
fria, digna, à Murray, que acabava por ser mais exasperante que a
violência. Quando Ilse parava para tomar fôlego por entre os
impropérios, Emily, sentada numa grande pedra de perna cruzada, os
olhos muito negros e as faces muito rosadas, fazia pequenas
observações sarcásticas que enfureciam Ilse ainda mais. Ilse estava
vermelha também, e os seus olhos eram como poços de fogo amarelado
cintilante. Eram ambas tão bonitas nas suas fúrias que era quase uma
pena não andarem sempre zangadas.
“Tu nem penses, seu pequeno pedaço de merda manipuladora, que vais
mandar em mim, só porque vives em New Moon,” gritava Ilse como um
ultimato, batendo com o pé.
“Eu não vou mandar em ti – eu nem sequer me vou dar contigo nunca
mais,” respondeu Emily, desdenhosa.
“Ainda bem que me vejo livre de ti – sua orgulhosa emproada, manienta,
bípede,” exclamou Ilse. “Nunca mais me fales. E fazes favor de não
andares por Blair Water a dizeres mal de mim.”
Isto era insuportável para uma menina que nunca dizia mal das suas
amigas ou aquelas que o tinham sido.
“Eu não vou falar mal de ti,” disse Emily decididamente. “Eu só vou
pensar mal de ti.”
Isso era muito mais irritante do que falar e Emily sabia-o. Ilse ficou
bastante danada com a ideia. Sabe Deus que coisas vergonhosas Emily
estaria a pensar dela em qualquer altura sem que Ilse soubesse? Ilse
já tinha descoberto como era fértil a imaginação de Emily.
“Achas que eu me ralo com o que tu pensas, sua serpente
insignificante? Não deves ter juízo nenhum.”
“Eu tenho uma coisa que é muito melhor,” disse Emily com um sorriso
irritantemente superior. “Uma coisa que tu nunca poderás ter, Ilse
Burnley.”
Ilse levantou os punhos cerrados como se pretendesse destruir Emily
pela força física.
“Se eu não conseguisse escrever poesia melhor do que tu enforcava-me,”
zombou.
“Eu empresto-te um cêntimo para comprares a corda,” disse Emily.
Ilse olhou para ela, derrotada.
“Podes ir para o diabo que te carregue!” disse.
Emily levantou-se e foi, não para o diabo que a carregasse, mas de
volta para New Moon. Ilse aliviou as suas emoções derrubando as
prateleiras do armário das porcelanas e destruindo os “jardins de
musgo” a pontapé, e depois partiu também.
Emily sentia-se muito mal. Aqui estava outra amizade destruída – uma
amizade que também fora muito agradável e satisfatória. Ilse tinha
sido uma companheira excelente, não havia dúvida disso. Depois de
Emily ter acalmado foi até à janela do sótão e chorou.
“Desgraçada, desgraçada de mim!” soluçou, dramaticamente, mas com
muita sinceridade.
Ainda assim a amargura da sua ruptura com Rhoda não estava lá. Esta
briga tinha sido justa, aberta e correcta. Ela não tinha sido
apunhalada pelas costas. Ma claro que ela e Ilse não poderiam ser
amigas outra vez. Não se podia ser amiga de uma pessoa que nos chamava
merda e bípede, e serpente, e nos dizia que fossemos para o diabo. Era

63
uma coisa impossível. E além disso, a Ilse nunca a perdoaria, porque
Emily era honesta o suficiente para admitir que também tinha sido
bastante irritante.
Mas, quando Emily foi à casa de brincar no dia seguinte com intenção
de ir buscar a sua parte de pratos partidos e tábuas, lá estava Ilse,
andando de um lado para o outro atarefada com trabalho, tendo posto
todas as prateleiras no lugar, refeito o “jardim de musgo” e criado
uma linda sala de visitas ligada à sala de jantar por um arco de
abeto.
“Olá. Aqui está a tua sala de visitas e espero que agora fiques
satisfeita,” disse alegremente. “Porque é que demoraste tanto? Nunca
mais vinhas.”
Isto surpreendeu bastante Emily, depois da sua noite trágica em que
enterrara a sua segunda amizade e chorara sobre a sua campa. Não
estava preparada para uma ressurreição tão rápida. Pelo ar de Ilse
parecia que não tinham tido briga nenhuma.
“Mas isso foi ontem,” respondeu-lhe surpreendida, quando Emily
mencionou o assunto de forma distante. Ontem e hoje eram duas coisas
completamente diferentes na filosofia da Ilse. Emily aceitou o facto –
achou que tinha que o fazer. Ilse, ao que parecia, não conseguia
evitar ter ataques de fúria de vez em quando tal como não conseguia
evitar ser afectuosa e alegre entre eles. O que surpreendeu Emily, em
quem as coisas permaneciam durante um certo tempo, era a forma como
Ilse parecia esquecer a briga no momento em que terminava. Ser chamada
de serpente e crocodilo num minuto e no seguinte ser abraçada e
chamada de querida foi um bocado desconcertante até que o tempo e a
experiência a ensinaram melhor.
“Mas eu não sou suficientemente querida entre as brigas para
compensar?” perguntou Ilse. “A Dot Payne nunca tem acessos de fúria
mas tu querias ser amiga dela?”
“Não, ela é estúpida demais,” admitiu Emily.
“E a Rhoda Stuart nunca perde a compostura, mas tu já tiveste a tua
conta com ela. Achas que ela alguma vez te tratou como eu?”
Não, Emily não tinha dúvidas neste ponto. Fosse o que fosse que Ilse
fizesse, ela era leal e verdadeira.
E com certeza que a Rhoda Stuart e a Dot Payne comparadas com a Ilse
eram como “o luar ao pé do sol e a água ao pé do vinho” – ou teriam
sido se Emily conhecesse mais Tennyson para além da Bugle Song.
“Tu não podes ter tudo,” disse Ilse. “Eu tenho o mau génio do pai e é
só isso. Espera só até veres um ataque de fúria dele.”
Emily ainda não tinha tido esse prazer. Ia muitas vezes a casa do
doutor Burnley mas nas poucas ocasiões que este lá estava ignorava-a à
excepção de um curto aceno de cabeça. Era um homem ocupado, porque,
fossem qual fossem os seus problemas, os seus conhecimentos eram
inquestionáveis e tinha doentes espalhados por muitos sítios. Á
cabeceira de um doente ele era tão atencioso e gentil como era brusco
e sarcástico longe dela. Quando uma pessoa estava doente, não havia
nada que o doutor Burnley não fizesse por ela; quando recuperava ele
parecia já não lhe ligar. Desde Julho que tinha estado absorvido
tentando salvar a vida de Teddy Kent de Tansy Patch. Teddy estava
agora fora de perigo e capaz de andar na rua, mas as suas melhoras não
estavam a ser suficientemente rápidas para satisfazer o doutor
Burnley. Certo dia chamou a Emily e a Ilse, que se dirigiam do relvado
para o lago com canas de pesca e uma lata de minhocas gordas – estas
para serem manipuladas apenas pela Ilse – e ordenou-lhes que fossem ao
Tansy Patch brincar com o Teddy Kent.
“Ele está sozinho e triste. Vão lá alegrá-lo,” disse o doutor.
Ilse ficou relutante em ir. Ela gostava do Teddy, mas não gostava da
mãe dele. Emily ficou secretamente contente. Ela apenas tinha visto o
Teddy uma vez, na escola dominical no dia antes dele ter adoecido, e
gostou do aspecto dele. E tinha-lhe parecido que ele gostara do dela,

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porque o apanhou várias vezes a olhar timidamente para si por entre as
filas de bancos. Ele era muito bonito, concluíra Emily. Ela gostou do
seu cabelo castanho-escuro e denso, dos seus olhos azuis de pestanas
escuras, e ocorreu-lhe pela primeira vez que também seria agradável
ter um rapaz para companheiro de brincadeiras. Não um namorado, claro.
Emily detestava a mania que tinham na escola de começarem logo a dizer
que um rapaz era namorado de alguém só porque lhe deu um lápis ou uma
maçã, ou escolhia essa pessoa muitas vezes para jogar com ele a pares.
“O Teddy é simpático mas a mãe dele é estranha,” disse-lhe Ilse a
caminho de Tansy Patch. “Ela nunca sai a lado nenhum, nem sequer à
igreja – mas acho que isso é por causa da cicatriz que tem na cara.
Eles não são daqui de Blair Water – só vivem em Tansy Patch desde o
Outono passado. São pobres e orgulhosos e poucas pessoas os visitam.
Mas o Teddy é muito simpático por isso se a mãe dele olhar para nós de
lado não te preocupes.”
A senhora Kent não olhou de lado para elas, apesar da recepção ter
sido um pouco distante. Talvez também ela tivesse recebido ordens do
médico. Ela era uma criatura pequena, com um maciço enorme de cabelo
castanho macio, sedoso e seco, olhos escuros e uma enorme cicatriz que
lhe atravessava o rosto pálido. Sem a cicatriz ela teria sido bonita,
e tinha uma voz tão suave e trémula como o vento na atanásia. Emily,
com a sua faculdade instintiva para perceber as pessoas que conhecia,
compreendeu que a senhora Kent não era uma mulher feliz.
Tansy Patch estava a este da Casa Decepcionada, entre Blair Water e as
dunas de areia. A maior parte das pessoas consideravam-na um sítio
solitário, vazio e negligenciado, mas Emily achou-a fascinante. A
pequena casa revestida a pranchas de madeira encimava uma pequena
colina, sobre a qual a atanásia crescia de forma luxuriante,
exibicionista e perfumada, erguendo-se inclinada e abruptamente desde
a estrada principal. Uma vedação irregular de barras horizontais,
quase afogada em roseiras selvagens, delimitava os domínios a que uma
pobre cancela torta e maltratada dava acesso desde a estrada. Tinham
deixado algumas pedras dos lados da colina para fazerem os degraus de
entrada para a porta principal. Por detrás da casa havia um celeiro
meio caído, e um campo de buckweat em flor, de um verde cremoso, que
descia até Blair Water. Na frente havia uma varanda estranha em volta
da qual uma banda brilhante de papoilas vermelhas que levantavam os
seus encantados cálices.
Teddy ficou genuinamente contente de as ver, e passaram uma bela tarde
juntos. Quando terminou, havia já alguma cor na pele cor de azeitona
de Teddy e os seus olhos azuis-escuros estavam mais brilhantes. A
senhora Kent observou estes sinais com avidez e pediu ás meninas que
voltassem, com uma ansiedade que não era ainda cordial. Mas elas
tinham achado Tansy Patch um sítio encantador e tinham vontade de
voltar novamente. No resto das férias não se passaram muitos dias em
que não tivessem voltado – de preferência nos longos e deliciosos fins
de tarde de Agosto quando as traças brancas voavam por cima da
plantação de atanásia e o anoitecer dourado se esbatia até escurecer
púrpura sobre os declives verdes mais além, e os pirilampos acendiam
as suas tochas encantadas ao pé do lago. Por vezes eles jogavam em
Tansy Patch, quando o Teddy e Emily formavam um par à altura da ágil e
veloz Ilse; por vezes o Teddy levava-as para o sótão do celeiro e
mostrava-lhes a sua colecção de desenhos. Ambas as meninas os achavam
maravilhosos sem no entanto terem a noção de como o eram realmente.
Parecia-lhes quase mágico verem o Teddy pegar num lápis e num pedaço
de papel e com uns poucos de riscos rápidos com os seus dedos morenos
fazer aparecer um retrato da Ilse ou da Emily, do Smoke ou do
Buttercup, que quase pareciam prontos a falar, ou miar.
Smoke e Buttercup eram os gatos de Tansy Patch. Buttercup era um
gatinho gordo, amarelo e delicioso mal saído da infância. Smoke era um
grande gato maltês e aristocrata da ponta do nariz à ponta da cauda.

65
Não havia dúvidas que pertencia a uma casta superior. Tinha olhos de
esmeralda e um casaco luxurioso. A única parte branca nele era uma
adorável manchinha no peito.
Emily pensava que de todas as horas agradáveis passadas em Tansy
Patch, as mais agradáveis eram aquelas em que, cansados de brincar, se
sentavam os três nos degraus da estranha varanda embrenhados no
mistério e encantamento da fronteira entre a luz e a escuridão quando
as árvores do pequeno maciço de abetos por trás do celeiro pareciam
lindas e escuras árvores fantasmas. As nuvens a oeste tornavam-se
cinzentas e uma grande lua amarela erguia-se sobre os campos para se
reflectir no lago, onde a Dama do Vento tecia lindos padrões de luz e
sombra.
A senhora Kent nunca se juntava a eles, se bem que Emily tivesse a
estranha convicção que ela os observava furtivamente por detrás das
cortinas da cozinha. A Ilse e o Teddy cantavam cantigas da escola, e a
Ilse recitava, e Emily contava histórias; ou sentavam-se num silêncio
feliz, cada um ancorado num porto secreto de sonhos, enquanto os gatos
se perseguiam como loucos na colina e através da atanásia, irrompendo
pela casa como criaturas possuídas. Eles atiravam-se ás crianças com
saltos bruscos e fugiam com a mesma rapidez. Os seus olhos brilhavam
como jóias, as caudas emproadas como plumas. Palpitavam de vida ágil e
furtiva.
“Oh, não é bom estar vivo – assim?” dissera Emily certa vez. “Não era
terrível se nunca tivéssemos vivido?”
Ainda assim, a existência não estava de todo desensombrada – a tia
Elizabeth assegurava-se disso. Ela só permitia as visitas a Tansy
Patch sob protesto, e porque o Dr. Burnley as tinha ordenado.
“A tia Elizabeth não aprova a minha amizade pelo Teddy,” escreveu
Emily numa das suas cartas ao pai – cujas epístolas se multiplicavam a
bom ritmo na velha prateleira do sofá. “A primeira vez que lhe pedi se
podia ir brincar com o Teddy ela olhou-me severamente e disse, ‘Quem é
esse tal de Teddy? Nós não sabemos nada sobre esses Kents. Lembra-te
Emily, que nós os Murray não nos damos com qualquer um. Eu disse-lhe
que era uma Starr, não uma Murray, a senhora é que o dia. Querido pai,
eu não tive intenção de ser impertinente, mas a tia disse que eu tinha
sido e não me falou o resto do dia. Ela pareceu pensar que era um
castigo muito mau mas eu não me importei muito só que é um bocado
desagradável ver a minha própria família mater um silêncio desdenhoso
para comigo. Mas desde essa altura que ela me deixa ir a Tansy Patch
porque o Dr. Burnley veio cá e disse-lhe para deixar. O Dr. Burnley
tem uma estranha influência sobre a tia Elizabeth. Eu não a
compreendo. A Rhoda dizia que a Tia Elizabeth tinha esperanças que o
Dr. Burnley e a tia Laura de entendessem – o que, como deve saber quer
dizer que se casem – mas não é assim. A senhora Thomas Anderson esteve
cá uma tarde a tomar chá. (A senhora Thomas Anderson é uma mulher
grande e gorda e a avó dela era Murray e não há mais nada a dizer
sobre ela.) Ela perguntou à tia Elizabeth se ela achava que o DR.
Burnley iria casar novamente e a tia Elizabeth disse que não, que não
achava, e que achava incorrecto que as pessoas se casassem segunda
vez. A senhora Anderson disse Eu já pensei que ele podia casar com a
Laura. A tia Elizabeth limitou-se a olhar para ela com um ar superior.
Não vale a pena negá-lo, há alturas em que eu tenho muito orgulho da
tia Elizabeth, mesmo que não goste dela.
“O Teddy é muito bom rapaz, pai. Eu acho que o pai ia gostar dele. Ele
consegue fazer desenhos ezplendidos e vai ser um artista famozo um dia
destes, e quando for vai pintar o meu retrato. Ele guarda as pinturas
no sótão do seleiro porque a mãe não gosta que ele as veja. Ele
consegue assobiar como um pássaro. Tansy Patch é um sítio muito
engrassado, especialmente à noite. Eu adoro o anoitecer lá. Nós
divertimo-nos sempre tanto ao anoitecer. A Dama do Vento faz-se
pequena na atanásia como se fosse uma fada muito pequena e os gatos

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são tão estranhos e assustadores e maravilhosos nessa altura. Eles são
da senhora Kent e o Teddy tem medo de os mimar muito não vá ela afogá-
los. Ela uma vez afogou um gatinho porque achou que ele gostava mais
do gatinho do que dela. Mas ele não gostava porque o Teddy é muito
ligado à mãe. Ele lava-lhe a loiça e ajuda-a em todas as tarefas. A
Ilse diz que os rapazes da escola lhe chamam mariquinhas por causa
disso mas eu acho que é muito nobre e mascolino da parte dele. O Teddy
gostava que ela o deixasse ter um cão mas ela não deixa. Eu pensava
que a tia Elizabeth era tirânica mas a senhora Kent é muito pior de
certa maneira. Mas também ela gosta do Teddy e a tia Elizabeth não
gosta de mim.
“Mas a senhora Kent não gosta nem da Ilse nem de mim. Ela nunca o
disse, mas nós sentimos. Nunca nos convida para tomar chá – e nós
somos sempre tão educadas para ela. Eu acho que ela tem inveja porque
o Teddy gosta de nós. O Teddy deu-me uma pintura linda de Blair Water
feita numa concha de vieira mas disse-me que não devia dizer à mãe
dele senão ela chorava. A senhora Kent é uma pessoa muito misteriosa,
como certas pessoas que lemos nos livros. Eu gosto de pessoas
misteriosas mas não muito ao perto. Os olhos dela parecem sempre
esfomeados embora ela tenha bastante para comer. Ela nunca vai a lado
nenhum porque tem uma cicatriz na cara que fez quando se queimou com a
explosão de uma lâmpada de óleo. Até me gelou o sangue, pai. Fiquei
tão agradecida por a tia Elizabeth só usar velas. Algumas das
tradições dos Murray são muito sensatas. A senhora Kent é uma pessoa
muito religiosa – ou o que ela chama de religiosa. Ela até reza a meio
do dia. O Teddy diz que antes de nascer neste mundo vivia noutro onde
haviam dois sois, um vermelho e um azul. Os dias eram vermelhos e as
noites azuis. Eu não sei onde é que ele foi buscar a ideia mas parece-
me interessante. E ele diz que os riachos tinham mel em vez de água.
Mas o que é que fazias quando tinhas sede, perguntei-lhe. Oh, nós
nunca tínhamos sede lá. Mas eu acho que ia gostar de ter sede porque a
água fresca sabe tão bem. Eu gostava de viver na lua. Deve ser um
sítio tão bonito e prateado.
“A Ilse disse que o Teddy devia gostar mais dela porque ela é muito
mais divertida do que eu mas não é verdade. Eu sou tão divertida como
ela quando não tenho nada na consiência. Eu acho que a Ilse quer que o
Teddy goste mais dela mas não é uma rapariga invejoza.
“Eu estou muito contente porque tanto a tia Elizabeth como a tia Laura
aprovam a minha amizade com a Ilse. É tão raro aprovarem as mesmas
coisas. Eu estou-me a habituar a brigar com a Ilse e agora já não me
importo muito. Além disso eu até brigo muito bem quando me ferve o
sangue. Nós brigamos mais ou menos uma vez por semana mas fazemos logo
as pazes e a Ilse diz que as coisas eram muito aborrecidas se nunca
houvesse uma briga. Eu gostava mais que não houvesse mas nunca se sabe
o que vai enfurecer a Ilse. Ela nunca se enfurece duas vezes pela
mesma coisa. Ela chama-me nomes horriveis. Ontem chamou-me lagarto
desgraçado e víbora desdentada. Mas eu até nem me importei porque
sabia que não era desgraçada nem desdentada e ela também sabia. Eu não
lhe chamo nomes porque não era educado mas eu rio-me e isso faz com
que a Ilse fique ainda mais furiosa do que se eu batesse os pés e
praguejasse como ela faz, e é por isso que o faço. A tia Laura diz que
eu tenho que ter cuidado para não aprender as palavras que a Ilse usa
e que tenho que lhe dar o exemplo porque a pobre rapariga não tem quem
olhe por ela em condições. Eu gostava de poder usar algumas das
palavras dela porque são tão expressivas. Ela aprende-as com o pai. Eu
acho que as minhas tias são esquizitas demais. Numa noite tivemos cá o
rev. Dare para o chá e eu usei a palavra touro na converça. Eu disse
que eu e a Ilse tínhamos medo de ir pela pastagem do Sr. James Lee ao
pé do velho poço porque ele tinha lá um touro bravo. Depois do ver
Dare se ter ido embora a tia Elizabeth deu-me um raspanete incrível e
disse que eu nunca mais podia usar essa palavra outra vez. Mas ela

67
tinha estado a falar de tigres – em relação aos missionários - e eu
não vejo porque é que há de ser pior falar de touros que de tigres.
Claro que os touros são animais feroses mas os tigres também são. Mas
a tia Elizabeth diz que eu a estou sempre a envergonhar quando ela tem
visitas. Quando a senhora Lockwood de Shrewsbury cá esteve na semana
passada estiveram a falar da senhora Foster Beck, que casou há pouco
tempo, e eu disse que o Dr, Burnley acha que ela é diabolicamente
bonita. A tia Elizabeth disse EMILY cá de uma maneira. Estava pálida
de raiva. O Dr. Burnley é que disse, exclamou, eu sou estou a sitar. E
o Dr. Burnley disse isso no dia em que eu lá fiquei para jantar com a
Ilse e estava lá o Dr. Jameson de Shrewsbury. Eu vi o Dr. Burnley com
um ataque de mau génio nessa tarde por cause de qualquer coisa que a
senhora Simms tinha feito no escritório dele. Foi uma visão horrível.
Os grandes olhos amarelos dele faiscavam e ele andava por ali aos
pontapés, atirou com um tapete à parede e com um vaso à janela e disse
coisas terríveis. Eu sentei-me no sofá a olhar como se estivesse
fasinada. Foi tão interessante que eu tive pena quando acabou porque
ele é como a Ilse e nunca fica furioso muito tempo. Mas ele nunca fica
furioso com a Ilse. A Ilse diz que gostava que ele ficasse – era
melhor do que passar sempre desperçebida. Ela é tão orfâ como eu,
pobre criança. No último domingo foi à igreja com o vestido azul
desbotado. Tinha um rasgão mesmo na frente. A tia Laura chorou quando
chegou a casa e depois falou com a senhora Simms sobre aquilo porque
não se atreveu a falar com o Dr. Burnley. A senhora Simms ficou
zangada e disse que quando conseguiu que o Dr. Burnley comprasse um
vestido bonito de musselina à Ilse ela lhe pôs uma nódoa de ovo, e
quando a senhora Simms lhe ralhou por ser tão descuidada a Ilse teve
uma ataque de fúria e rasgou o vestido aos bocados, e a senhora Simms
disse que não ia maçar a cabeça com uma criança assim e que não tinha
mais que vestir senão o vestido azul e a senhora Simms não sabia que
estava rasgado. Por isso eu levei o vestido da Ilse para New Moon e a
tia Laura remendou-o muito bem e fez-lhe um bolso para esconder a
costura. A Ilse disse que tinha rasgado o vestido num dia em que não
acreditava em Deus e não se importava com o que fazia. A Ilse uma
noite encontrou um rato na cama - empurrou-o para fora e meteu-se lá
dentro. Oh, que coragem. Eu nunca seria tão corajosa. Não é verdade
que o Dr. Burnley nunca sorri. Eu já o vi sorrir mas não é muitas
vezes. Ela só sorri com os lábios e não com os olhos e eu fico muito
desconfortável. Na maior parte das vezes ele ri-se com um riso
horrível muito sarcástico como o tio do Jolly Jim.
“Nós tivemos sopa de aveia para o jantar nesse dia, muito aguada.
“A tia Laura vai-me dar cinco cêntimos por semana por lavar a loiça.
Eu só posso usar um cêntimo, o resto tenho que pôr no sapo mealheiro
que está por cima da lareira. O sapo é de cobre e está sentado em cima
do banco e nós pomos-lhe os centimos na boca um de cada vez. Depois
ele engole-os e eles caem no banco. É muito fasinante (eu não devia
escrever fasinate outra vez porque o pai disse-me que não devia usar a
mesma palavra muitas vezes mas eu não encontro outra que descreva tão
bem a sensasão). O sapo mealheiro é da tia Laura mas ela disse que eu
o podia usar. Eu abracei-a. Claro que eu nunca abraço a tia Elizabeth.
Ela é rígida e ossuda demais. Ela não concorda que a tia Laura me
pague por lavar a loiça. Eu tremo só de pensar no que ela ia dizer se
soubesse que o primo Jimmy me deu um dólar inteiro em segredo na
semana passada.
“Eu gostava que ele não me tivesse dado tanto. Preocupa-me. É uma
responsabelidade tremenda. Vai ser tão dificil gastá-lo bem sem a tia
Elizabeth descobrir. Eu só espero nunca vir a ter um milhão de
dólares. Tenho a certeza que me iam esmagar por completo. Eu meti o
meu dólar escondido na prateleira com as minhas cartas dentro de um
envelope e escrevi que o primo Jimmy Murray mo tinha dado porque assim

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se eu morrer de repente e ela o encontrar fica a saber que o ganhei
honestamente.
“Agora que os dias começam a ficar mais frescos a tia Elizabeth
obriga-me a usar um saiote de flanela grossa. Eu detesto-o. Faz-me
parecer tão cheia. Mas a tia Elizabeth diz que eu tenho que o usar
porque o pai morreu de tuberculose. Eu gostava que a ropa pudesse ser
graciosa e saudavel ao mesmo tempo. Eu hoje li a história do
capuchinho vermelho. Eu achei que o lobo era o personagem mais
intressante. A Capuchinho Vermelho era uma coisinha estúpida que se
enganava com toda a facilidade.
“Eu escrevi dois poemas ontem. Um era curto e chamava-se Linhas
Dirigidas a uma flor de olhos azuis apanhada no velho pomar. Era
assim,

Doce pequena flor o teu rosto modesto


Está sempre levantado em direcção ao céu
E um reflecso do seu rosto
Encerra-se no teu próprio olho azul
As rainhas dos prados são altas e belas
As aquilégias são bonitas também
Mas o pouco talento que possuo
Laureia-te a ti minha flor de azul.

“o outro poema era comprido e escrevi-o numa folha comprida. Chama-se


O Monarca da Floresta. O Monarca é uma grande bétula do bosque do
Lofty John. Eu gosto tanto daquele bosque que até me doi. Percebe esse
tipo de dor. A Ilse também gosta muito dele e passamos lá a maior
parte do tempo quando não estamos em Tansy Patch. Nós temos lá três
caminhos. Chamamos-lhe o Caminho de Hoje, o Caminho de Ontem e o
Caminho de Amanhã. O Caminho de Hoje é ao pé do riacho e chamámos-lhe
isso porque é bonito agora. O Caminho de Ontem é onde o Lofty John
cortou umas árvores e ficaram os cepos, e chamamos-lhe assim porque
costumava ser bonito. O Caminho de Amanhã é um bocadinho pequeno na
clareira de aceres e chamamos-lhe isso porque achamos que um dia vai
ser lindo, quando os aceres crescerem. Mas oh Pai querido eu não me
esqueci das queridas velhas árvores lá de casa. Eu penso sempre nelas
antes de adormecer. Mas eu sou feliz aqui. Não é mau ser feliz pois
não pai. A tia Elizabeth diz que eu depressa me curei das saudades mas
eu tenho muitas vezes saudades por dentro. Eu conheci o Lofty John. A
Ilse é uma grande amiga dele e vai muitas vezes vê-lo trabalhar na
oficina de carpinteiro dele. Ele diz que já fez escadas suficientes
para chegar ao céu sem a ajuda de padre nenhum mas isso é só uma
piada. Ele é um católico muito devoto e vai todos os domingos à missa
na capela da White Cross. Eu vou com a Ilse apesar de não dever como
ele é inimigo da minha família. Ela é muito educado e tem boas
maneiras – muito civilisado comigo mas eu nem sempre gosto dele.
Quando eu lhe faço uma pergunta séria ele pisca-me sempre o olho
quando responde. É uma afronta. Claro que eu nunca faço perguntas
sobre assuntos religiosos mas a Ilse faz. Ela gosta dele mas diz que
ele nos queimava a todas se tivesse possibilidade. Ela perguntou-lhe
logo se não o fazia e ele piscou-me o olho e disse, Oh, nós não
queimamos protestantes pequenas e bonitas como vocês. Só queimamos as
velhas e feias. Que resposta tão frívola. A senhora do Lofty John é
uma pessoa muito simpatico e não é nada orgulhosa. Parece uma pequena
maçã rosada e enrugada.
“Nos dias de chuva nós brincamos na casa da Ilse. Nós podemos deslisar
pelo corrimão e fazer o que nos apetecer. Ninguém se rala só quando o
doutor está em casa é que temos que fazer pouco barulho porque ele não
suporta mais barulhos em casa do que aqueles que ele faz. O telhado é
quase plano e nós conseguimos ir lá para cima por uma porta que há no
sótão. É muito excitante estar lá em cima no telhado de uma casa. Nós

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fizemos um concurso de gritos noutra noite para vermos quem é que
conseguia gritar mais alto. Para minha surpresa ganhei eu. Nunca se
sabe o que conseguimos fazer antes de tentar. Mas houve muita gente
que nos ouviu e a tia Elizabeth ficou muito zangada. Ela perguntou-me
o que é que me tinha passado pela cabeça para fazer uma coisa
daquelas. É uma pergunta dificil porque eu muitas vezes não sei porque
é que faço as coisas. Às vezes faço-as só para saber como é que me
sinto a fazê-las. E outras vezes faço-as porque quero ter coisas
excitantes para contar aos meus netos. Também não é decente falar em
ter netos. Eu descobri que não é decente falar em ter filhos. Uma
noite em que haviam cá visitas a tia Laura perguntou-me Em que é que
estás a pensar tão concentrada, Emily, querida, e eu respondi Eu estou
a escolher os nomes para os meus filhos. Eu quero ter dez. E depois
das vistas se terem ido embora a tia Elizabeth disse à tia Laura fria
como o gelo que seria melhor no futuro Laura se não perguntares à
criança em que é que ela está a pensar. Se a tia Laura não perguntar
eu vou ter pena porque quando eu penso em qualquer coisa interessante
eu gosto de a contar.
“A escola começa na semana que vem. A Ilse vai pedir à Miss Brownell
se eu me posso sentar ao pé dela. Eu penso agir como se a Rhoda não
estivesse lá. O Teddy também vai. O Dr. Burnley diz que ele já está
suficientemente bom para ir mas a mãe dele não gosta da ideia. O Teddy
diz que ela nunca gosta que ele vá para a escola mas que fica contente
por ele odiar a Miss Brownell. A tia Laura diz que a melhor maneira de
terminar uma carta para um amigo querido é afectuozamente sua.
“Por isso sou muito afectuozamente sua.
“Emily Byrd Starr
“P.S. Porque o pai ainda é o meu amigo mais querido. A Ilse diz que
gosta mais de mim do que tudo no mundo e a seguir gosta das botas de
cabedal encarnado que a Senhora Simms lhe deu.”

UMA FILHA DE EVA

New Moon era bem conhecida pelas suas maçãs e nesse primeiro Outono da
vida de Emily lá tanto o velho pomar como o novo deram uma colheita de
arromba. No pomar novo haviam maçãs de espécies afamadas; e no velho
as desconhecidas dos catálogos que ainda assim tinham um sabor muito
doce e peculiar. Não havia nenhum tabu sobre as maçãs e a Emily era
livre de comer tantas quantas queria de todos os géneros – a única
proibição era a de levar maçãs para a cama. A tia Elizabeth muito
justamente não queria a cama suja de sementes de maçã e a tia Laura
tinha pavor que alguém comesse maçãs ás escuras não fosse engolir uma
lagarta. Emily tinha assim possibilidade de satisfazer o seu apetite
em casa; mas há uma certa característica estranha nos seres humanos
que faz com que o sabor das maçãs dos outros seja muito superior ao
das nossas – como bem sabia a esperta serpente do Éden. Emily, como
todas as pessoas, tinha esta característica e consequentemente achava
que não haviam maçãs mais deliciosas do que as pertencentes a Lofty
John. Ele tinha o hábito de ter uma longa fila delas numa das traves
da sua oficina e era do conhecimento comum que Emily e Ilse se podiam
servir livremente delas quando visitavam aquele local encantador e
poeirento. Três variedades de maçãs do Lofty John eram as favoritas –
as “maçãs esburacadas”, que pareciam ter lepra mas eram de uma doçura
inigualável por debaixo da pele estranhamente manchada; as “pequenas
maçãs vermelhas”, pouco maiores que um caranguejo, vermelhas escuras e
brilhantes como cetim, que tinham um sabor doce e amendoado; e as
grandes maçãs verdes e doces que eram em geral consideradas as
melhores pelas crianças. Emily considerava desperdiçado o dia em que o
sol poente não a contemplava roendo uma “verde doce” do Lofty John.

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Na sua cabeça Emily sabia bem que não devia sequer ir à carpintaria do
Lofty John. Ela nunca tinha sido proibida de lá ir – simplesmente
porque nunca tinha ocorrido ás suas tias que uma residente de New Moon
poderia esquecer o longo conflito familiar entre as casas dos Murray e
dos Sullivan que se mantinha desde há duas gerações atrás. Era uma
herança que qualquer Murray que se prezasse levaria em conta como um
dado adquirido. Mas quando Emily saía com aquela pequena ismaelita da
Ilse as tradições perdiam o seu poder sob o encanto das verdes,
vermelhas e esburacadas do Lofty John.
Sentindo-se um pouco sozinha, ela entrou na carpintaria certo fim de
tarde de Setembro ao anoitecer. Tinha estado sozinha desde que saíra
da escola; as suas tias e o primo Jimmy tinham ido a Shrewsbury
prometendo estar de volta ao pôr-do-sol. Ilse também estava fora,
tendo o pai dela sido convencido pela senhora Simms a comprar um
casaco de Inverno para a filha, foram ambos a Shrewsbury. Emily tinha
gostado de ficar sozinha de início. Sentia-se muito importante por ter
ficado encarregue de New Moon. Comeu o jantar que a tia Laura lhe
deixou na prateleira da casa do fogão e foi para a leitaria coar seis
lindas panelas de leite. Ela não tinha nada que o ir fazer, mas sempre
desejara fazê-lo e era uma oportunidade boa demais para desperdiçar.
Fê-lo muito bem e ninguém deu por nada – cada uma das tias pensando
que tinha sido a outra – e por isso não lhe chegaram a ralhar. Isto
não abona muito a favor da ética, claro; numa história mais moralista
a Emily teria sido descoberta e castigada pela sua desobediência ou
então seria levada a confessar pela sua consciência pesada; mas eu
lamento – ou devia lamentar – ter que afirmar que a consciência da
Emily nunca se preocupou de todo com o assunto. Ainda assim, ela
estava destinada a sofrer o suficiente nessa noite por uma causa
completamente diferente, para compensar todos os seus pequenos
pecados.
Na altura em que o leite ficou bem coado, foi deitado para dentro do
grande vaso de pedra e bem mexido – Emily também não se esqueceu disso
– passara do pôr-do-sol e ainda não tinha chegado ninguém. Não lhe
agradou a ideia de ir para a grande casa cheia de ecos e de sombras
pelo que se dirigiu à oficina do Lofty John, que encontrou desocupada,
apesar da plaina estar a meio de uma tábua indicando que o Lofty John
tinha estado a trabalhar recentemente e era provável que voltasse.
Emily sentou-se na secção redonda de um grande tronco e olhou em volta
para ver o que iria comer. Havia uma fila de vermelhas e de
esburacadas do outro lado da oficina mas não haviam doces entre elas;
e Emily achou que o que precisava era de uma doce e mais nenhuma.
Então descobriu uma – uma enorme – a maior doce que Emily já vira,
completamente sozinha num dos degraus da escada que dava para o sótão.
Ela subiu, apossou-se dela e comeu-a logo. Estava mastigando muito
feliz em volta do centro quando o Lofty John entrou. Ele cumprimentou-
a com a cabeça com um olhar aparentemente descuidado em volta.
“Fui a casa tratar do meu jantar,” disse. “A mulher saiu por isso tive
que ser eu a servir-me.”
E começou a planear em silêncio. Emily sentou-se nas escadas, contando
as sementes da grande maçã – contava-se a sorte pelas sementes – e a
ouvir a Dama do Vento a assobiar como um elfo através de um buraco
redondo do sótão, e compondo uma “Descrisão da Carpintaria do Lofty
John à Luz da Lanterna,” para escrever mais tarde numa folha rosada.
Estava perdida em busca de uma frase que descrevesse a absurda forma
alongada da sombra do nariz do Lofty John que se projectava na parede
oposta quando o Lofty John se virou, tão depressa que a sombra do seu
nariz se levantou como uma enorme lança no tecto e perguntou numa voz
surpreendida,
“O que é que aconteceu àquela maçã doce que estava ali nas escadas?”
“Eu...eu comi-a,” respondeu Emily.

71
O Lofty John largou a plaina, levou as mãos à cabeça e olhou para
Emily com um ar horrorizado.
“Que os santos nos defendam, menina. Tu não comeste aquela maça – não
me digas que foste comer aquela maçã!”
“Sim, comi,” disse Emily desconfortavelmente. “Eu não pensei que
fizesse mal, eu...”
“Mal! Olhem só para isto! A maçã estava envenenada para os ratos! Eles
têm-me andado a empestar a vida aqui em baixo e eu tinha-me decidido a
acabar com eles. E agora tu comeste a maçã – capaz de matar uma dúzia
de meninas como tu enquanto o diabo esfrega um olho.”
Lofty John viu um rosto branco e um avental aos quadrados voar para
fora da oficina a caminho do escuro da noite. O primeiro impulso da
Emily foi voltar a casa – antes que caísse morta. Precipitou-se pelo
campo através do bosque e do jardim e entrou em casa. Ainda estava
silenciosa e escura – ainda não tinham voltado. Emily deu um pequeno
grito amargo de desespero – quando chegassem iam-na encontrar fria e
hirta, provavelmente com o rosto negro, toda a vida à sua frente
perdida para sempre, tudo porque comera uma maçã que achara que não
fazia mal nenhum comer. Não era justo – ela não queria morrer.
Mas era assim que tinha que ser. Ela só esperava desesperadamente que
alguém chegasse antes que morresse. Ia ser tão horrível morrer ali
sozinha naquela casa grande, escura e vazia. Não se atreveu a tentar
procurar ajuda. Estava escuro demais e o mais certo era cair morta a
meio do caminho. Morrer lá fora – sozinha – no escuro – oh, isso seria
terrível demais. Não lhe ocorreu que alguém pudesse fazer alguma coisa
por ela; pensava que uma vez que se ingeria veneno não havia nada a
fazer.
Com as mãos a tremer de pânico acendeu uma vela. Assim já não era tão
mau – conseguem-se enfrentar as coisas com luz. E Emily, pálida,
aterrorizada, sozinha, começava a decidir que tinha que enfrentar a
morte com bravura. Não podia envergonhar os Starr nem os Murray.
Agarrou as suas mãos trémulas e tentou que parassem de tremer. Quanto
tempo faltaria até morrer, pensou. O Lofty John tinha dito que a maçã
a ia matar enquanto o diabo esfrega um olho. O que é que isso queria
dizer? Quanto tempo demorava? Iria doer-lhe a morrer? Ela tinha uma
vaga ideia que o veneno provocava dores horríveis. Oh, e há tão pouco
tempo estava tão feliz! Ela tinha pensado que ia viver anos e anos e
escrever grandes poemas e ser muito famosa como a senhora Hemans.
Tinha tido uma briga com a Ilse na noite passada e ainda não tinham
feito as pazes – agora nunca as chegariam a fazer. E a Ilse ia-se
sentir tão mal. Tinha que escrever um bilhete de despedida a perdoá-
la. Teria tempo para isso? Oh, como tinha as mãos frias! Talvez isso
quisesse dizer que já estava a morrer. Ela tinha lido ou ouvido dizer
que as mãos ficavam frias antes das pessoas morrerem. Perguntava-se se
o seu rosto estava a ficar negro. Agarrou na vela e subiu as escadas
até ao quarto de hóspedes. Havia lá um espelho – o único na casa que
estava suficientemente baixo para que ela se conseguisse ver se o
inclinasse um bocadinho em baixo. Numa ocasião normal Emily teria
ficado apavorada só de pensar em entrar no quarto escuro só com a luz
de uma vela. Mas o terror maior tinha engolido todos os mais pequenos.
Ela olhou para o reflexo do seu rosto, entre os cabelos negros e
lisos, na luz vinda de cima e com a escuridão do quarto por detrás.
Oh, ela estava já pálida como os mortos. Sim, era o rosto de uma
moribunda que ela via, não podiam haver dúvidas.
Algo subiu em Emily e tomou posse dela – qualquer herança do velho clã
poderoso que tinha por detrás. Deixou de tremer – aceitou o seu
destino – com um remorso amargo, mas com calma.
“Eu não quero morrer mas já que vou morrer, vou fazê-lo como uma
Murray,” disse. Tinha lido uma frase semelhante num livro e ocorreu-
lhe no memento. E agora tinha que se apressar. A carta para Ilse tinha
que ser escrita. Emily foi primeiro ao quarto da tia Elizabeth, para

72
se assegurar que a sua gaveta estava arrumada; depois foi pelas
escadas até à janela do sótão.
O espaço estava cheio de sombras ondulantes que povoavam a pequena
ilha de luz que a vela criava, mas não metiam medo a Emily agora.
“Só de pensar que hoje me chateei porque o saiote me fazia parecer
empantufada,” pensou, enquanto tirava uma das suas queridas folhas
rosadas – a última que iria escrever. Não precisava de escrever ao pai
– ia vê-lo em breve – mas a Ilse tinha que ter a carta dela – querida
alegre amorosa Ilse tão endiabrada, que no dia anterior lhe gritara
epitáfios insultuosos e que seria assombrada pelos remorsos para o
resto da vida por causa disso.
“Minha querida Ilse,” escreveu Emily, a sua mão um pouco trémula mas
com os lábios firmemente cerrados. “Eu vou morrer. Fui envenenada por
uma maçã que o Lofty John deixou para os ratos. Eu nunca mais te vou
ver, mas estou a escrever isto para te dizer que gosto muito de ti e
que não te deves sentir mal por me teres chamado doninha fedorenta e
marmota sedenta de sangue ontem. Eu perdoo-te, por isso não tens que
te preocupar. Eu também tenho pena de te ter tido que tu estavas
abaixo dos meus comentários porque não queria dizer nada disso. Deixo-
te a minha parte dos pratos partidos da nossa casa de brincar e por
favor diz adeus ao Teddy por mim. Ele agora nunca me vai poder ensinar
a enfiar as minhocas no anzol. Eu prometi-lhe que aprendia porque não
queria que ele me achasse cobarde mas ainda bem que não aprendi porque
agora sei como se sente uma minhoca. Ainda não me sinto mal mas não
sei quais são os sintomas de envenenamento e o Lofty John disse que
havia veneno suficiente na maçã +ara matar uma dúzia de meninas como
eu por isso não posso ter muito mais tempo de vida. Se a tia Elizabeth
estiver de acordo podes ficar com o meu colar de contas. É o único bem
de valor que tenho. Não deixes que façam nada ao Lofty John porque ele
não teve intenção de me envenenar a culpa foi minha por ser tão
gulosa. Talvez as pessoas pensem que ele fez de propósito por eu ser
protestante mas eu tenho a certeza que não e diz-lhe por favor para
não ficar com remorsos. Eu acho que sinto uma dor no estômago agora
por isso o fim deve estar próximo. Adeus e lembra-te da tua amiga que
morreu tão jovem.
“A tua devota amiga,
“Emily.”
Enquanto dobrava a carta Emily ouviu o som de rodas no pátio lá em
baixo. Um momento mais tarde, Elizabeth e Laura Murray depararam com
uma pequena criatura de rosto trágico na cozinha, agarrando uma vela
com uma mão e uma carta com a outra.
“Emily, o que é que se passa?” exclamou a tia Laura.
“Eu estou a morrer,” disse Emily com solenidade. “Comi uma maçã que o
Lofty John tinha envenenado para os ratos. Só já tenho uns minutos de
vida, Tia Laura.”
Laura Murray deixou-se cair para cima do banco negro com a mão
agarrada ao coração. Elizabeth ficou tão pálida como a própria Emily.
“Emily, isto é alguma brincadeira tua?” perguntou severamente.
“Não,” exclamou Emily indignada. “É verdade. Acha que uma pessoa ás
portas da morte pode ter ânimo para brincadeiras? E, oh, tia
Elizabeth, por favor, dê esta carta à Ilse – e perdoe-me por favor por
ser má – embora eu nem sempre fosse má quando a tia pensou que eu
estava a ser – e não deixe que ninguém me veja depois de morta se eu
ficar com a cara negra – especialmente a Rhoda Stuart.”
Nesta altura Elizabeth Murray tinha recuperado o raciocínio.
“Há quanto tempo é que comeste a maçã, Emily?”
“Mais ou menos há uma hora.”
“Mas se tu tivesses comido uma maçã envenenada já estavas morta ou
doente por esta altura.”
“Oh,” exclamou Emily, transformada nesse segundo. Uma doce esperança
selvagem levantou-se no seu coração – haveria uma hipótese afinal?

73
Então acrescentou desesperadamente, “Mas eu senti uma dor no estômago
mesmo quando estava a vir para baixo.”
“Laura,” disse a tia Elizabeth,” leva esta criança para a casa do
fogão e dá-lhe já uma boa dose de água com mostarda. Mal não lhe faz
de certeza e pode fazer-lhe algum bem se há alguma verdade nesta
história dela. Eu vou ver do Doutor, pode ser que já tenha voltado,
mas antes vou falar com o Lofty John.”
A tia Elizabeth saiu–-e saiu muito rapidamente–-se se tratasse de
outra pessoa até se poderia dizer que tinha corrido. Quanta a Emily,
bem, a tia Laura deu-lhe o emético assim que o preparou e dois minutos
mais tarde Emily não tinha dúvidas que estava a morrer e quanto mais
depressa fosse melhor. Quando a tia Elizabeth regressou Emily estava
deitada no sofá da cozinha, branca como a almofada que tinha debaixo
da cabeça, e tão inerte como um lírio murcho.
“O doutor não estava em casa?” exclamou a tia Laura desesperada.
“Eu não sei – não há necessidade de o chamar. Eu achei logo que não
havia. Foi só uma piada do Lofty John. Ele achou que ia assustar a
Emily – só por graça – é a ideia que ele tem de piada. Vá andando para
a cama, menina Emily. É muito bem feito o que se passou, não tinhas
nada que ir à carpintaria do Lofty John e não tenho pena nenhuma de
ti. Há anos que não havia aqui uma balbúrdia tão grande.”
“Mas eu tinha uma dor de estômago,” gemeu Emily, em quem o medo e a
combinação de mostarda com água tinham temporariamente extinto o
fulgor.
“Uma pessoa que come maçãs desde que se levanta até que se deita tem
que esperar algumas dores de estômago. Mas esta noite não tens mais,
penso eu – a mostarda vai curar isso. Leva a tua vela e sobe.”
“Bem,” disse Emily, levantando-se um pouco trémula. “Eu detesto aquele
traste do Lofty John.”
”Emily!” exclamaram ambas as tias em uníssono.
“Ele merece,”disse Emily vingativa.
“Oh, Emily, que palavra tão feia que tu usaste!” a tia Laura parecia
curiosamente perturbada por algo.
“Mas qual é o problema com traste?” disse Emily, muito intrigada. “O
primo Jimmy está sempre a usar a palavra, quando as coisas o chateiam.
Ainda hoje a usou, disse que o traste do bezerro tinha saído da
pastagem do cemitério outra vez.”
“Emily,” disse a tia Elizabeth com o ar de se fixar no ponto mais
fácil de um dilema,” o teu primo Jimmy é um homem – e os homens por
vezes usam expressões, no calor da ira, que não são próprias de uma
menina.”
“Mas qual é o problema de traste?” continuou Emily. “Não é uma
blasfémia, pois não? E se não é, porque é que não a posso usar?”
“Não é uma palavra – delicada,” disse a tia Laura.
“Bem, então não a vou usar mais,” resignou-se Emily, “mas o Lofty John
é um traste.”
A tia Laura riu-se tanto depois de Emily ter subido para o quarto que
a tia Elizabeth lhe disse que uma mulher da idade dela devia ter mais
juízo.
“Elizabeth, tu sabes que foi engraçado,” protestou Laura.
Com Emily bem fora de vista, Elizabeth permitiu-se dar um sorriso um
pouco rígido.
“Eu disse umas coisas àquele Lofty John – não vai ter muita vontade de
voltar a dizer ás crianças que estão envenenadas. Deixei-o
praticamente a pular de raiva.”
Esgotada, Emily adormeceu assim que caiu na cama; mas uma hora mais
tarde acordou. Como a tia Elizabeth ainda não tinha vindo deitar-se a
persiana ainda estava levantada e Emily viu uma querida estrela
amigável a piscar-lhe o olho lá de cima. Lá ao longe o mar gemia
fascinante. Oh, só o facto de estar sozinha e viva já era tão bom. A
vida sabia bem novamente – “sabia a mais”, como dizia o primo Jimmy.

74
Ela podia ter muitas oportunidades de escrever mais cartas, e poesia –
Emily já via um metro de versos intitulados “Pensamentos de Alguém
condenado a uma morte súbita” – e de brincar com a Ilse e o Teddy – de
percorrer os celeiros com a Saucy Sal, de ver a tia Laura a desnatar o
leite na leitaria e de ajudar o primo Jimmy no jardim – de ler livros
na Alcova da Emily e passear pela Estrada de Hoje – mas não visitar a
oficina do Lofty John. Ela estava determinada a nunca mais ter nada
que ver com o Lofty John depois desta crueldade diabólica. Sentia-se
tão indignada com ele por a ter assustado – ainda por cima depois de
terem sido tão bons amigos – que não conseguiu adormecer antes de ter
composto um relato da sua morte por envenenamento, do Lofty John ter
sido julgado pelo seu assassinato e condenado à morte, e do seu corpo
ter sido pendurado de uma forca tão alta como ele, e Emily
presenciando a cena toda, apesar de estar supostamente morta nesta
altura.
Quando ela finalmente lhe cortou a corda e o enterrou em vergonha, as
lágrimas corriam-lhe cara abaixo por pena da senhora Lofty John –
perdoou-lhe. Afinal de contas, talvez ele não fosse um traste.
No dia seguinte, escreveu tudo isto numa folha rosada no sótão.

ALIMENTAR A IMAGINAÇÃO

Em Outubro o primo Jimmy começava a cozer as batatas para os porcos –


um nome pouco romântico para uma ocupação muito romântica – ou pelo
menos assim parecia a Emily, cujo amor pelo belo e pitoresco ficou
satisfeito como nunca antes tinha sido naqueles fins de tarde
compridos, frescos e repletos de estrelas do ano que declinava em New
Moon.
Havia um punhado de abetos num canto do velho pomar, e debaixo deles
um enorme caldeirão de ferro estava pendurado sobre um círculo de
grandes pedras – um pote tão grande que um boi poderia lá ter sido
estufado inteiro. Emily achava que tinha que ter vindo dos tempos dos
contos de fadas e sido o caldeirão das papas de algum gigante; mas o
primo Jimmy disse-lhe que só tinha cem anos e que tinha sido um velho
Hugh Murray a mandá-lo vir de Inglaterra.
“Eu sempre o usei para cozer as batatas para os porcos de New Moon,”
disse. “As pessoas de Blair Water acham-no antiquado; eles agora têm
todos casas com caldeiras próprias lá dentro, mas enquanto a Elizabeth
mandar cá em New Moon é isto que usamos.”
Emily tinha a certeza que nenhuma caldeira podia ter o encanto deste
grande caldeirão. Ela ajudava o primo Jimmy a enchê-lo de batatas
depois de vir da escola; depois, quando acabavam de jantar, o primo
Jimmy acendia-lhe o lume por baixo e ia-o mexendo toda a noite. Por
vezes ele atiçava o lume – Emily adorava essa parte – projectando
jactos gloriosos de faúlhas rosadas através da escuridão; por vezes
ele mexia as batatas com um pau muito comprido, parecendo com a sua
comprida barba bifurcada e jardineiras com cinto um velho gnomo ou
troll de uma história nórdica misturando os ingredientes num caldeirão
mágico; e por vezes ele sentava-se ao lado de Emily na grande pedra de
granito ao lado do caldeirão e recitava a sua poesia para ela. Emily
gostava disto acima de tudo, porque a poesia do primo Jimmy era
surpreendentemente boa – pelo menos partes dela – e o primo Jimmy
tinha uma audiência à altura como poucos nesta pequena dama de rosto
pálido e ávido e olhos deslumbrados.
Eles formavam um par estranho e eram perfeitamente felizes juntos. As
pessoas de Blair Water achavam que o primo Jimmy era um falhado e um
débil mental. Mas ele vivia num mundo ideal de que nenhum deles sabia
nada. Ele tinha recitado os seus poemas centenas de vezes enquanto
cozia as batatas dos porcos; os fantasmas de uma data de Outonos

75
assombravam o punhado de abetos para si. Ele era uma figura
suficientemente invulgar e ridícula, curvada, enrugada e mal
arranjada, gesticulando de forma estranha enquanto recitava. Mas esta
era a sua hora; ele já não era o “Murray simples” mas um príncipe no
seu próprio reino. Durante um tempo ele era forte e jovem e esplêndido
e belo, mestre acreditado de canções para um mundo atento e encantado.
Nenhum dos seus prósperos e iluminados vizinhos de Blair Water viveu
assim uma hora que fosse. Ele não teria trocado de lugar com nenhum
deles. Emily, escutando-o, sentia vagamente que se não fosse por causa
daquele empurrão infeliz para dentro do poço de New Moon, este pequeno
e estranho homem perante ela poderia estar na presença de reis.
Mas Elizabeth tinha-o empurrado para dentro do poço de New Moon e em
consequência disso ele cozia as batatas para os porcos e recitava
poesia para Emily – e Emily, que escrevia poesia também, adorava tanto
estas noites que não conseguia adormecer antes de compor uma descrição
de um minuto para cada uma delas. O flash vinha quase todas as noites
por uma coisa ou por outra. A Dama do Vento ronronava ou cirandava nos
ramos por cima deles – Emily nunca estivera tão perto de a ver; o ar
cortante estava cheio de aromas agradáveis das pinhas de abeto que o
primo Jimmy deitava para o lume; O gatinho peludo de Emily, Mike II,
corria e brincava como um pequeno e encantador demónio da noite; o
lume brilhava com um vermelho lindo e chamativo através da escuridão;
haviam sons de murmúrios suaves por todo o lado; o grande escuro jazia
espalhado à sua volta cheio de mistérios que a luz do dia nunca
revelava; e por cima de tudo isto um céu roxo ponteado de estrelas.
Ilse e Teddy vinham também, nalgumas noites. Emily sabia sempre quando
eles vinham porque assim que o Teddy chegava ao velho pomar assobiava
o seu chamamento – aquele que ele usava só para ela – um pequeno
chamamento como três assobios de ave, o primeiro de tom médio, o
segundo mais alto, e um terceiro que caía para uma doçura que se
esvaía lentamente – como os ecos da Bugle Song que se tornavam mais
claros e amplos ao terminarem. Esse chamamento tinha sempre um efeito
estranho sobre Emily; parecia arrancar-lhe o coração do corpo e ela
tinha que lhe responder. Ela achava que o Teddy a faria atravessar o
mundo se lhe assobiasse aquelas três notas mágicas. Quando quer que
fosse que as ouvisse, ela corria depressa pelo pomar e dizia ao Teddy
se o primo Jimmy lá os queria ou não, porque só em certas noites o
primo Jimmy lá queria pessoas para além dela. Ele nunca recitava
poesia para a Ilse ou para o Teddy; mas contava-lhes contos de fadas,
e histórias dos Murrays de antigamente enterrados no cemitério do lago
que eram tão estranhas por vezes como os contos de fadas; e a Ilse
recitava também, ali melhor do que em qualquer outro lugar; e por
vezes o Teddy estendia-se no chão ao lado do grande caldeirão e
desenhava à luz do fogo – retratos do primo Jimmy a mexer as batatas –
retratos da Ilse e da Emily a dançarem de mãos dadas em volta dele
como pequenas bruxas, retratos do pequeno rosto esperto e bigodudo de
Mike espreitando por detrás da pedra, imagens de rostos vagos e
estranhos povoando a escuridão para além do seu círculo encantado.
Passavam noites maravilhosas lá, aquelas quatro crianças.
“Oh, não gostas do mundo à noite, Ilse?” tinha Emily perguntado certa
vez encantada.
Ilse olhara feliz em sua volta – a pobre e negligenciada Ilse, que
encontrara na companhia de Emily aquilo por que ansiara toda a sua
curta vida e que era nessa altura levada a aceitar pelo amor algo que
era sua herança legítima.
“Sim,” respondera. “E eu acredito sempre que Deus existe quando aqui
estou assim.”
Quando as batatas ficavam prontas o primo Jimmy dava uma a cada um
deles antes de misturar o farelo; eles partiam-nas aos bocados sobre
pedaços de casca de vidoeiro e salpicavam-nas de sal que Emily tinha
escondido numa caixa debaixo das raízes do maior abeto, e comiam-nas

76
todos com imenso gosto. Nenhum banquete dos deuses alguma vez foi tão
delicioso como aquelas batatas.
Então por fim ouvia-se a voz meiga e refinada da tia Laura chamando
através da escuridão geada; Ilse e Teddy voltavam a casa; e Emily
apanhava o Mike II e prendia-o a salvo dentro da casota do cão de New
Moon que há anos não tinha cão mas ainda assim era cuidadosamente
cuidada e caiada todas as primaveras. O coração de Emily teria ficado
despedaçado se alguma coisa acontecesse ao Mike II.
O velho Kelly, vendedor ambulante, tinha-lho dado. O velho Kelly fazia
a volta a Blair Water há trinta anos, de Maio a Novembro, apoiado no
assento de uma carroça de vendedor vermelha vivo e atrás de um pónei
empoeirado e desenrascado, de cor vermelha e aparência e porte comuns
a todos os póneis de vendedores ambulantes do campo – uma certa
magreza vagarosa e plácida de um bicho que encontrou a sua dose de
problemas e os resolveu com paciência e persistência. Da carroça
vermelha viva ecoavam certos sons metálicos enquanto andava e dois
enormes ninhos de panelas de lata no seu tecto plano rodeado a corda
reflectiam a luz de forma tão intensa que o velho Kelly parecia o sol
replandecente do seu próprio sistema solar. Uma vassoura nova,
espetando-se agressivamente a cada um dos quatro cantos dava à carroça
uma certa semelhança a um carro de batalha triunfal. Emily desejava
secretamente dar uma volta na carroça do velho Kelly. Achava que devia
ser mesmo maravilhoso.
O velho Kelly e Emily eram grandes amigos. Ela gostava do seu rosto
vermelho e bem barbeado por baixo do pequeno chapéu, dos seus olhos
azuis simpáticos e brilhantes, da sua nuvem de cabelo espetado e cor
de areia, e da sua boca cómica enrugada para cima, cuja forma se devia
em parte à natureza e em parte ao seu hábito de assobiar. Ele tinha
sempre um pacote triangular de papel com rebuçados de limão para ela,
ou uma bengala doce de muitas cores, que lhe metia no bolso quando a
tia Elizabeth não estava a ver. E nunca se esquecia de lhe dizer que
achava que qualquer dia ela ia começar a pensar em casar-se – porque
para o velho Kelly não havia maneira mais certa de agradar a uma
criatura feminina fosse de que idade fosse do que brincar com ela
acerca do seu casamento.
Um dia, em vez de doces, ele tirou um gatinho cinzento muito gordinho
da gaveta de trás da sua carroça e disse-lhe que era para si. Emily
recebeu o presente deliciada, mas depois do velho Kelly ter
desaparecido atrás do barulho das latas a tia Elizabeth disse-lhe que
não queriam mais gatos em New Moon.
“Oh, por favor, deixe-me ficar com ele, Tia Elizabeth,” implorou
Emily. “Não a vai incomodar nada de nada. Eu tenho experiência em
educar gatos. E gostava tanto de um gatinho. A Saucy Sal está tão
empenhada em perseguir os gatos do celeiro que eu já não me consigo
dar com ela como dava – e ela nunca foi boa de abraçar. Por favor, tia
Elizabeth.”
A tia Elizabeth não queria nem acabou por fazer a vontade a Emily.
Estava de muito mau humor nesse dia, de qualquer forma – e ninguém
percebia porquê. Nesse estado de espírito ela ficava completamente
fora do razoável. Não deu ouvidos a ninguém – a tia Laura e o primo
Jimmy tiveram que se manter calados, e este último foi incumbido de ir
levar o gatinho cinzento ao lago de Blair Water e afogá-lo. Emily
desfez-se em lágrimas por causa desta ordem cruel e isto irritou ainda
mais a tia Elizabeth. Ficou tão furiosa que o primo Jimmy não se
atreveu a levar o gatinho para o celeiro à socapa como tinha pensado
fazer.
“Leva esse animal para o lago e afoga-o, e depois vem-me dizer quando
acabares,” disse Elizabeth muito zangada. “Eu exijo que me obedeçam –
New Moon não é lugar para os gatos supérfluos do Jock Kelly.”
O primo Jimmy fez o que lhe foi dito e Emily não comeu nada ao almoço.
Depois da refeição saiu tristemente pelo velho pomar atravessando a

77
pastagem até ao lago. A razão pela qual foi nessa direcção não a
poderia explicar, mas sentiu que tinha que ir. Quando chegou à margem
do rio onde o pequeno riacho do Lofty John se juntava ao lago de Blair
Water, ouviu gritos angustiados; e ali, isolado numa pequena ilhota de
erva no riacho, estava um infeliz animalzinho, com o pelo molhado
colado ao corpo e tremendo ao vento do frio dia de Outono. O velho
saco de aveia no qual o primo Jimmy o tinha mandado flutuava no lago.
Emily não parou para pensar, nem para procurar uma tábua, nem para
pesar as consequências. Entrou no riacho até aos joelhos, encharcou-se
até chegar à pequena ilha e agarrou o gatinho. Estava tão indignada
que não sentiu o frio da água nem o gelo do vento enquanto correu de
volta para New Moon. Um animal torturado ou em sofrimento enchia-a
sempre de tanta pena que a fazia ficar fora de si. Entrou pela casa do
fogão a dentro onde a tia Elizabeth estava a fritar donuts.
“Tia Elizabeth,” exclamou, ”o gatinho afinal não se afogou e eu vou
ficar com ele.”
“Não vais não,” disse a tia Elizabeth.
Emily olhou a tia nos olhos. Mais uma vez, sentiu a estranha sensação
que tivera quando a tia trouxera a tesoura para lhe cortar o cabelo.
“Tia Elizabeth, este pobre gatinho está com frio e com fome, e oh, tão
infeliz. Há horas que está a sofrer. Não vai ser afogado novamente.”
O olhar de Archibald Murray estava no seu rosto e o tom de Archibald
Murray na sua voz. Isto só acontecia quando o fundo da sua alma se
agitava por uma emoção especialmente pungente. Neste momento ela
estava numa agonia de pena e raiva.
Quando Elizabeth Murray viu a cara do seu pai a olhá-la através do
pequeno rosto branco de Emily, rendeu-se sem luta, ainda que mais
tarde se enfurecesse com a sua fraqueza. Era o seu ponto vulnerável. A
coisa poderia não ser tão estranha se Emily se parecesse com os
Murray. Mas ver o olhar dos Murray sobreposto como uma máscara sobre
feições alheias era um tal choque para os nervos dela que não o
conseguia suportar. Um fantasma saído do túmulo não a derrotaria tão
facilmente.
Virou as costas a Emily em silêncio mas esta soube que tinha ganho a
sua segunda vitória. O gatinho cinzento ficou em New Moon e a tia
Elizabeth nunca deu pela sua existência, a não ser quando o punha na
rua porque a Emily não estava. Mas demorou semanas a perdoar a Emily e
ela sentia-se mal por isso. A tia Elizabeth podia ser uma
conquistadora generosa mas era muito desagradável na derrota. Era uma
sorte que Emily não conseguisse evocar o olhar dos Murray sempre que
queria.

TRAGÉDIAS VARIADAS

Emily, obediente ás ordens da tia Elizabeth, tinha eliminado a palavra


touro do seu vocabulário. Mas ignorar de todo a existência de touros
não fazia desaparecer a sua preocupação com eles – e especialmente com
o touro inglês do senhor James Lee, que habitava a grande pastagem
ventosa a oeste de Blair Water e que tinha uma reputação terrível. Era
certamente uma criatura de aspecto imponente e Emily tinha muitas
vezes pesadelos em que ele a perseguia enquanto ela não se conseguia
mover. E certo dia frio de Novembro este pesadelo realizou-se.
Havia um certo poço no canto mais afastado da pastagem em relação ao
qual Emily sentia curiosidade, porque o primo Jimmy lhe tinha contado
uma história horrível sobre ele. O poço tinha sido cavado há sessenta
anos atrás por dois irmãos que viviam numa pequena casa construída ao
pé da costa. Era um poço muito profundo, o que era considerado
estranho numa terra baixa perto do mar e de um lago; os irmãos tinham

78
cavado noventa e nove pés antes de encontrarem uma nascente. Então
tinham murado os lados do poço – mas o trabalho ficou por aí. O Thomas
e o Silas Lee tinham discutido por causa de uma divergência casual
sobre a forma de murar o poço; e no calor da discussão o Silas tinha
batido na cabeça do Thomas com o martelo e matou-o.
O muro do poço não chegou a ser construído. O Silas Lee foi mandado
para a prisão e morreu lá. A quinta passou para outro irmão – pai do
senhor James Lee – que mudou a casa para o outro lado da propriedade e
tapou o poço com tábuas. O primo Jimmy tinha acrescentado que se dizia
que o fantasma do Thomas Lee assombrava o local da sua morte trágica
mas não podia assegurar que era verdade, embora tivesse feito um poema
sobre isso. Era um poema muito arrepiante, e gelou o sangue a Emily de
uma forma deliciosa quando ele lho recitou numa noite enevoada ao lado
do caldeirão das batatas. Desde essa altura que ela queria ver o velho
poço.
A sua oportunidade veio num Sábado em que passeava sozinha no velho
cemitério. Para lá dele estava a pastagem dos Lee e não havia sinais
aparentes do touro. Emily decidiu visitar o velho poço e foi andando
através do campo contra o vento de norte que soprava através do golfo.
A Dama do Vento era uma gigante nesse dia e levantava um grande
remoinho ao longo da costa; mas quando Emily se aproximou das grandes
dunas de areia sentiu-se uma acalmia em volta do velho poço.
Emily levantou despreocupadamente uma das tábuas, ajoelhou-se nas
outras e espreitou. Felizmente as tábuas eram fortes e relativamente
novas – de outra forma a pequena donzela de New Moon teria explorado o
poço com mais pormenor do que tencionava. Tal como estava, pouco se
conseguia ver; enormes fetos cresciam espessos nas fendas por entre as
pedras da parede dos lados e atravessavam-no, impedindo a vista até ao
seu sombrio fundo. Bastante desiludida, Emily voltou a por a tábua
onde estava e preparou-se para regressar a casa. Não tinha dado dez
passos parou. O touro do senhor James Lee vinha direito a ela e estava
a menos de vinte metros de distância.
A vedação da costa não estava muito longe de Emily e podia tê-la
atingido a tempo se tivesse corrido. Mas ela estava incapaz de correr;
como escreveu nessa noite na sua carta ao pai estava paralisada de
terror e não se conseguia mexer melhor do que nos sonhos que tivera
sobre essa mesma ocorrência. É muito provável que uma coisa muito
grave tivesse acontecido naquela mesma hora se um certo rapaz não
estivesse sentado na vedação da costa. Tinha ali estado sentado o
tempo todo em que Emily explorara o poço sem que ela se tivesse
apercebido, mas agora começava a correr para baixo.
Emily viu, ou sentiu, um corpo forte passando por si. O dono deste
correu até estar a dez metros do touro, apanhou uma pedra e atirou-a
certeira à cara do monstro, correndo então aos ziguezagues até à
vedação da costa. O touro, assim insultado, virou-se com um resfolegar
ameaçador e perseguiu este intruso.
“Corre agora!” exclamou o rapaz por cima do ombro para Emily.
Emily não correu. Aterrorizada como estava, havia algo nela que não a
deixava correr antes de se assegurar que o seu galante salvador estava
a salvo. Ele chegou à vedação mesmo a tempo. Nesse instante Emily
correu também, e passou por baixo da vedação assim que o touro começou
a atravessar a pastagem, evidentemente determinado a apanhar alguém.
Tremendo, ela meteu caminho através das ervas cheias de picos da duna
e encontrou o rapaz à esquina. Ficaram parados a olhar um para o outro
por momentos.
O rapaz era desconhecido para Emily. Tinha uma cara alegre e
desavergonhada, de traços firmes e olhos espertos e cinzentos e muitos
caracóis amarelo-alaranjados. Usava tão pouca roupa quanto a decência
permitia e tinha uma triste desculpa de chapéu. Emily gostou dele; não
tinha nada a ver com o encanto subtil do Teddy mas tinha um certo

79
fascínio em si mesmo, e tinha acabado de a salvar de uma morte
terrível.
“Obrigada,” disse Emily timidamente, olhando para cima com os seus
grandes olhos cinzentos que pareciam azuis debaixo das suas longas
pestanas. Era um olhar muito eficiente que não perdia nenhuma da sua
eficiência por ser totalmente inconsciente. Ninguém tinha ainda dito a
Emily até que ponto aquele seu olhar tímido e súbito era encantador.
“Não é cá um bicho?” disse o rapaz com ligeireza. Enfiou as mãos nos
bolsos rasgados e olhou para Emily tão fixamente que ela baixou os
olhos envergonhada – fazendo novos estragos com as pálpebras modestas
de contornos sedosos.
“É horrível,” disse ela com um arrepio. “E eu tive tanto medo dele.”
“Tiveste? E eu a achar que tu eras muito corajosa por estares ali a
olhar para ele fresca que nem um carapau. Como é que é ter medo?”
“Tu nunca tiveste medo?” perguntou Emily.
“Não, nunca tive,” disse o rapaz despreocupadamente, e um pouco
gabarolas. “Como é que te chamas?”
“Emily Byrd Starr.”
“Vives por aqui?”
“Eu vivo em New Moon.”
“Onde vive o Jimmy simples?”
“Ele não é simples,” exclamou Emily indignada.
“Oh, está bem. Eu não o conheço. Mas vou conhecê-lo. Vou ser o moço de
lavoura dele no Inverno.”
“Não sabia,” disse Emily surpreendida. “Vais a sério?”
“Sim. Nem eu sabia até agora. Ele perguntou por mim à tia Tom na
semana passada mas eu ainda não tinha intenção de aceitar. Mas agora
acho que aceito. Queres saber o meu nome?”
“Claro.”
“Perry Miller. Eu vivo com uma besta de uma tia velha, a tia Tom lá em
baixo em Stovepipe Town. O meu pai era capitão de um navio e eu
costumava navegar com ele quando era vivo. Navegávamos para todo o
lado. Vais à escola?”
“Sim.”
“Eu não, nunca fui. A tia Tom vive longe demais. De qualquer maneira,
eu nunca achei que fosse gostar. Mas agora devo ter que ir.”
“Não sabes ler?” perguntou Emily interessada.
“Sim, um bocado, e sei fazer contas. O pai ensinou-me quando era vivo.
Eu nunca mais me macei com isso – preferia estar lá em baixo no porto.
É muito divertido. Mas se eu me convencer a ir à escola vou aprender
em menos de nada. Tu deves ser muito esperta, não?”
“Não, não muito. O pai dizia que eu era um génio, mas a tia Elizabeth
diz que eu sou só estranha.”
“O que é um génio?”
“Não tenho bem a certeza. Ás vezes é alguém que escreve poesia. Eu
escrevo poesia.”
Perry ficou parado a olhar para ela.
“Porreiro. Eu também vou escrever poesia, assim.”
“Eu não acho que tu consigas escrever poesia,” disse Emily, um bocado
desdenhosa, pode-se dizer. “O Teddy não consegue – e ele é muito
inteligente.”
“Quem é o Teddy?”
“Um amigo meu.” Havia um traço pequeno de rigidez no tom de voz de
Emily.
“Então,” disse o Perry, cruzando os braços sobre o peito e amuando,
“Eu vou dar um murro na cabeça desse teu amigo.”
“Não vais nada,” exclamou Emily. Ela estava muito indignada e
praticamente esqueceu-se que o Perry a tinha salvo do touro. Ela
empinou a cabeça e começou a dirigir-se a casa. O Perry voltou-se
também.

80
“Bem posso ir falar com o Jimmy Murray sobre o trabalho antes de ir
para casa,” disse. “Não fiques zangada, então. Se não quiseres que eu
esmurre ninguém podes ficar descansada. Só que também tens que gostar
de mim.”
“Ora, mas claro que gosto de ti,” disse Emily, como se não houvessem
dúvidas acerca disso. Ela dirigiu-lhe um dos seus sorrisos lentos e
encantadores e reduziu-o a uma vassalagem desesperada.
Dois dias mais tarde Perry Miller instalava-se como moço de lavoura em
New Moon e ao fim de uns dias parecia a Emily que ele sempre lá tinha
estado.
“A tia Elizabeth não queria que o primo Jimmy o contratasse,” escreveu
ao pai, “porque ele foi um dos rapazes que fizeram uma coisa terrível
no ano passado. Mudaram todos os cavalos que estavam atrelados aos
buggies no Sábado à noite quando as pessoas estavam reunidas para
rezar e quando as pessoas saíram a confuzão foi tremenda. A tia
Elizabeth disse que não era boa ideia tê-lo por aqui. Mas o primo
Jimmy disse que era muito difícil arranjar um moço de lavoura e que
nós estávamos em dívida ao Perry por me ter salvo a vida em relação ao
touro. Por isso a tia Elizabeth cedeu e deixa-o sentar-se à mesa
conosco mas tem que ficar na cozinha ao serão. Nós vamos para a sala
de estar, mas eu posso ir ajudar o Perry nas lições. Nós só podemos
ter lá uma vela e há muito pouca luz. It keeps us snuffing it all the
time. It is great fun to snuff candles. O Perry já é o melhor da
classe dele. Ele só está no terceiro livro apesar de já ter quase doze
anos. A Miss Brownell disse-lhe qualquer coisa sarcástica no primeiro
dia de aulas e ele só atirou a cabeça para trás e começou-se a rir
alto. Ela deu-lhe umas réguadas por causa disso mas nunca mais foi
sarcástica com ele. Ela não gosta que se riam dela, pelo que vejo. O
Perry não tem medo de nada. Eu achei que ele podia não voltar à escola
depois de ela lhe ter batido mas ele diz que não é uma coisinha dessas
que o vai impedir de ter uma educação agora que se convençeu a tê-la.
Ele é muito determinado.
“A tia Elizabeth também é determinada. Mas ela diz que o Perry é
teimoso. Eu estou a ensinar gramática ao Perry. Ele quer aprender a
falar como deve ser. Eu disse que ele não devia chamar à tia Tom velha
besta mas ele disse que tinha que ser porque ela não era uma besta
nova. Ele diz que o sítio onde vivia se chama Stovepipe Town porque as
casas não têm chaminés, só têm os tubos dos fogões a sair pelos
telhados, mas ele um dia vai viver numa manção. A tia Elizabeth diz
que eu não devia ser amiga de um empregado. Mas ele é bom rapaz embora
tenha umas maneiras um bocado rudes. A tia Laura diz que são rudes. Eu
não sei bem o que é que quer dizer mas acho que é porque ele diz logo
aquilo que pensa e come os feijões com a faca. Eu gosto do Perry mas
gosto dele de uma maneira diferente do Teddy. Não é engraçado, Pai,
que ajam tantas maneiras diferentes de gostar? Eu não acho que a Ilse
goste dele. Ela faz pouco da ignorancia dele e torce o nariz ás ropas
dele porque são remendadas mas as dela também são muito estranhas. O
Teddy também não gosta muito dele e fez um desenho tão giro dele
pendurado de cabeça para os pés de uma forca. A cara parecia a do
Perry mas ao mesmo tempo não parecia. O primo Jimmy disse que era uma
caricatora e riu-se dela mas eu não me atrevi a mostrá-la ao Perry com
medo que ele esmurrasse a cara do Teddy. Eu mostrei-a à Ilse e ela
ficou furiosa e rasgou-a ao meio. Não percebi porquê.
“O Perry diz que consegue recitar tão bem como a Ilse se quiser. Eu já
vi que ele não gosta de pensar que alguém sabe fazer uma coisa que ele
não sabe. Mas ele não consegue ver o papel de parede no ar como eu,
embora ele tente até eu ter medo dele entortar os olhos de vez. Ele
consegue fazer discursos melhores do que qualquer um de nós. Ele diz
que dantes queria ser marinheiro como o pai mas agora diz que vai ser
advogado quando crescer e vai para o parlamento. O Teddy vai ser
artista se a mãe dele deixar, e a Ilse vai ser uma declamante

81
profissional – ora aqui está outra palavra que eu não sei como se
escreve – e eu vou ser poetisa. Eu acho que nós somos um grupo muito
talentozo. Talvez eu seja muito vaidosa por dizer isto, querido Pai.”
“No dia antes de ontem aconteceu uma coisa mesmo terrível. Na manhã de
Sábado estávamos reunidos para rezar em família, todos ajoelhados
muito solenes em volta da cozinha. Eu olhei uma vez para o Perry e ele
fez uma cara tão engraçada que eu tive que me rir alto antes de
conseguir evitar. (E isto não foi a coisa terrível.) A tia Elizabeth
ficou muito zangada. Eu não pude dizer que tinha sido o Perry a fazer-
me rir porque tive medo que ela o mandasse embora se dissesse. Por
isso a tia Elizabeth castigou-me e disse que eu não podia ir à festa
da Jennie Strang nessa tarde. (Foi uma desilusão tremenda mas ainda
não foi a coisa terrível.) O Perry esteve fora com o primo Jimmy todo
o dia e quando chegou a casa disse-me furioso, Quem te fez chorar. Eu
disse-lhe que tinha estado a chorar – um bocadinho mas não muito –
porque não me tinham deixado ir à festa por eu me ter rido à hora da
oração. E o Perry foi ter com a tia Elizabeth e disse-lhe que tinha
sido culpa dele se eu me tinha rido. A tia Elizabeth disse que eu não
me devia ter rido da mesma maneira, mas a tia Laura ficou muito
pertorbada e disse que eu tinha sido castigada com demasiada
severidade; e disse que me deixava levar o anel de pérolas dela para a
escola na segunda-feira para compensar. Eu fiquei encantada porque é
um anel muito bonito e mais nenhuma menina tem um. Assim que o sino
parou de tocar para a entrada na segunda-feira eu pus o dedo no ar
para perguntar uma coisa à Miss Brownell mas na verdade era para
mostrar o anel. Foi uma vaidade horrível e fui castigada por isso. Ao
intervalo a Cora Lee, uma das meninas grandes da sexta classe veio ter
comigo e pediu-me que a deixasse usar o anel um bocado. Eu não queria
mas ela disse que se eu não deixasse ela fazia com que todas as
meninas da minha classe me mandassem para o Convento (que é uma coisa
terrível, querido pai, sentimo-nos postas de lado). Por isso
emprestei-lho e ela ficou com ele até ao intervalo da tarde e quando
veio ter comigo disse-me que o tinha perdido no riacho. (E foi isto a
coisa terrível.) Oh, querido pai, eu fiquei quase louca. Não me
atrevia a ir para casa e encarar a tia Laura. Eu tinha-lhe prometido
que ia ter tanto cuidado com o anel. Eu achei que podia ganhar
dinheiro para lhe comprar outro anel mas quando fiz as contas na minha
ardózia vi que tinha que lavar pratos durante vinte anos antes que lho
conseguisse comprar. Chorei de desespero. O Perry viu e depois da
escola foi ter com a Cora Lee e disse-lhe Tu vai lá procurar esse anel
ou eu conto à Miss Brownell. E a Cora Lee procurou-o, muito mansa e
disse Eu de qualquer maneira ia-lho dar. Eu estava só a fazer uma
partida à Emily e o Perry disse-lhe Não pregas mais partidas à Emily
senão quem te prega uma sou eu. É muito bom ter um cavalheiro assim!
Eu tremo só de pensar como é que seria entrar em casa e dizer à tia
Laura que tinha perdido o anel. Mas foi tão cruel a Cora Lee ter-me
dito que o tinha perdido sem ter e preocupar-me tanto. Eu nunca seria
tão cruel com uma rapariga órfã.
“Quando fui para casa olhei para o espelho para ver se o meu cabelo
tinha ficado branco. Disseram-me que por vezes isso acontece. Mas não
tinha acontecido comigo.
“O Perry sabe mais geografia do que qualquer um de nós porque ele já
esteve em todo o lado com o pai dele. Ele conta-me histórias tão
facinantes depois de estudar as lições. Ele fala até a vela chegar
quase ao fim e depois usa-a para ir para a cama que é no buraco negro
do sótão da cozinha porque a tia Elizabeth não o deixa queimar mais do
que uma vela por noite.
“A Ilse e eu tivemos um briga ontem sobre se preferíamos ser a Joana
d’Arc ou a Frances Willard. Não começámos logo como briga era só uma
discussão mas acabámos assim. Eu preferia ser a Frances Willard porque
ela está viva.

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“Ontem tivemos neve pela primeira vez. Eu fiz um poema sobre isso.
Aqui está.

Ao longo da neve brilham os raios de sol


A terra é uma noiva radiante sem igual
Escorrendo em diamantes, vestida de branco
Nenhuma outra noiva jamais foi tão bela e brilhante

“Eu li-o ao Perry e ele disse logo que conseguia fazer um poema tão
bom como o meu e disse,

O Mike fez uma longa fila


De pegadas através da neve.

E esta não é tão boa como a tua? Eu não achei que fosse porque se
podia dizer uma coisa assim em prosa. Mas quando se fala de noivas
radiantes sem igual em prosa fica engraçado. O Mike fez mesmo uma fila
de pegadas através da neve a atravessar o campo do celeiro e eram
lindas, mas não tão bonitas como as pegadas dos ratos na farinha que o
primo Jimmy entornou no galinheiro. Eram mesmo queridas. Essas é que
pareciam poesia.
“Eu tenho pena que o Inverno tenha chegado porque eu e a Ilse já não
podemos brincar na nossa casa no bosque do Lofty John ou no quintal de
Tansy Patch. Ás vezes brincamos dentro de casa lá mas a senhora Kent
faz-nos sentir mal. Ela senta-se a ver-nos o tempo todo. Por isso só
vamos quando o Teddy nos pede muito. E os porcos já foram mortos,
coitados, por isso o primo Jimmy já não lhes coze batatas. Mas há um
conçolo eu já não tenho que usar chapéu-de-sol para ir à escola. A tia
Laura fez-me um capuz vermelho tão bonito com fitas que a tia
Elizabeth olhou de lado e disse que era extravagante demais. Eu cada
vez gosto mais da escola mas não consigo gostar da Miss Brownell. Ela
não é justa. Disse-nos que dava uma fita cor-de-rosa para usar de
sexta à noite até segunda-feira a quem escrevesse a melhor compozisão.
Eu escrevi A História do Riacho sobre o riacho do bosque do Lofty John
– todas as suas aventuras e pensamentos – e a Miss Brownell disse que
eu o devia ter copiado e deu a fita à Rhoda Stuart. A tia Elizabeth
disse Tu passas tanto tempo a escrever porcarias que acho que devias
ter ganho essa fita. Ficou envergonhada (penso eu) porque eu tinha
deixado New Moon ficar mal quando não ganhei a fita mas eu não lhe
contei o que se passou. O Teddy diz que um bom desportista nunca se
queixa de perder. Eu gostava de ser uma boa desportista. A Rhoda agora
é tão detestável para mim. Ela diz que acha muito estranho que uma
rapariga de New Moon tenha um moço de lavoura para namorado. Isso é
uma parvoíce porque o Perry não é meu namorado. Ele disse-lhe que ela
tinha mais paleio que juízo. Não foi muito educado mas é verdade. Um
dia na aula a Rhoda disse que a Lua ficava situada a este do Canadá. O
Perry riu-se logo alto e a Miss Brownell fê-lo ficar na sala durante o
intervalo mas não disse nada à Rhoda por ter dito uma coisa tão
ridicola. Mas a coisa mais má que a Rhoda disse foi que me tinha
perdoado pela maneira mesquinha como a usei. Isso fez-me ferver o
sangue porque eu não lhe fiz nada para ser perdoada. Que ideia.
“Nós começámos a comer o grande presunto que estava no canto sudoeste
da cozinha.
“Na passada quarta feira à noite o Perry e eu ajudámos o primo Jimmy a
escolher um caminho através dos nabos do primeira cave. Nós temos que
a atravessar para irmos para a segunda cave porque a entrada está
cheia de neve agora. Foi muito divertido. Nós espetámos uma vela num
buraco da parede e fazia umas sombras tão bonitas, e nós podíamos
comer todas as maçãs que quiséssemos e o espírito entrou no primo
Jimmy e ele recitou algumas poesias enquanto afastava os nabos.

83
“Eu estou a ler O Alhambra. É um livro da nossa estante. A tia
Elizabeth não diz que não é próprio para eu ler porque era um dos
livros do pai dela, mas eu acho que ela não gosta que eu o leia porque
tricota furiosamente e olha de lado para mim através dos óculos. O
Teddy emprestou-me um livro do Hans Anderson. Eu adoro-as – só que
imagino sempre um fim diferente para a Dama do Gelo e salvo o Rudy.
“Dizem que a senhora Killegrew engoliu a aliança de casamento. Eu
pergunto-me porque é que terá feito uma coisa dessas.
“O primo Jimmy diz que vai haver um iclipese do sol em Dezembro. Eu
espero que não interfira com o Natal.
“As minhas mãos estão gretadas. A tia Laura esfrega-mas com gordura de
borrego todas as noites quando vou para a cama. É muito difícil
escrever poesia com as mãos gretadas. Será que a senhora Hemans alguma
vez teve esse problema? Ela não fala disso na biografia dela.
“O Jimmy Ball tem que ser pastor quando crescer. A mãe dele disse à
tia Laura que o tinha conçagrado ainda no berço. Como é que ela terá
feito?
“Nós agora tomamos o pequeno-almoço à luz das velas e eu gosto muito.
“A Ilse esteve cá na tarde de Domingo e nós fomos ao sótão e falámos
sobre Deus, porque é um assunto próprio para os Domingos. Nós temos
que ter muito cuidado com o que fazemos nos Domingos. É uma tradisão
de New Moon manter os Domingos muito sagrados. O avô Murray era muito
severo. O primo Jimmy contou-me uma história sobre ele. Eles cortavam
sempre a lenha para o Domingo no sábado à noite mas um dia esqueçeram-
se e não havia lenha para acender o fogão, por isso o avô Murray disse
vocês não podem cortar lenha no Domingo, rapazes, partam-na só com a
parte de trás do machado. A Ilse é muito curiosa acerca de Deus apesar
de não acreditar nele a maior parte do tempo e não gostar de falar
dele mas ainda assim quer saber ciosas sobre ele. Ela diz que até era
capaz de gostar dele se o conhecesse. Ela agora já escreve o nome dele
com D grande porque acha que é bom jogar pelo seguro. Eu acho que Deus
é tal e qual como o meu flash, só que o flash dura uns segundos e Deus
dura sempre. Nós falámos tanto tempo que eu fiquei com fome e fui ao
armário da sala de estar buscar dois donuts. Eu esqueci-me que a tia
Elizabeth tinha dito que eu não podia comer donuts entre as refeições.
Não os roubei, foi só esquecer-me. Mas a Ilse ficou zangada e disse-me
que a jacobita era eu (seja lá o que isso for) e uma ladra e que
nenhuma cristã roubaria donuts à sua pobre tia. Por isso eu fui
confessar à tia Elizabeth e ela disse que eu não podia comer donuts ao
jantar. Foi difícil ver os outros a comerem-nos, Eu pensei que o Perry
comeu o dele muito depressa mas depois do jantar ele chamou-me lá fora
e deu-me metade que tinha guardado para mim. Ele tinha-o embrulhado no
lenço que não estava muito limpo mas eu comi-o na mesma para não lhe
magoar os sentimentos.
“A tia Laura diz que a Ilse tem um sorriso bonito. Eu pergunto-me se
terei um sorriso bonito. Eu olhei para o espelho do quarto da Ilse e
sorri mas não me pareceu muito bonito.
“Agora que as noites ficaram frias a tia Elizabeth põe sempre
uma garrafa de gin cheia de água quente na cama. Eu gosto de lhe
encostar os dedos dos pés. É só para isso que usamos as garrafas de
gin hoje em dia. Mas o avô Murray usava-as para guardar gin
verdadeiro.
“Agora que veio a neve o primo Jimmy já não pode trabalhar no jardim e
sente-se muito sozinho. Eu acho que o jardim é tão bonito no Inverno
como no verão. Há umas covinhas e uns montes bebés tão queridos onde a
neve cobriu os canteiros. E ao anoitecer fica tudo cor-de-rosa e
rosado ao pôr-do-sol e à noite é como uma terra de sonhos. Eu gosto de
olhar pela janela da sala de estar e ver as rabits candles flutuarem
no ar por cima delas e pergunto-me o que pensarão aquelas sementes e
raízes debaixo da neve. E dá-me uma sensação muito agradável e

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arrepiante olhar para fora através do vidro vermelho da porta da
frente.
“Há uma linda franja de pinjentes de gelo ao longo do telhado da casa
do fogão. Mas devem haver coisas muito mais bonitas no céu. Eu outro
dia li umas coisas sobre a Anzonetta e fiquei a sentir-me muito
relijiosa. Boa noite, meu mais querido dos pais.
“Emily.
“P.S. Isto não quer dizer que eu tenha outro Pai. É só uma maneira de
dizer meu querido muito especial.
“E.B.S.”

CHEQUE MATE PARA A MISS BROWNELL

Emily e Ilse estavam sentadas no banco de lado da escola de Blair


Water escrevendo poesia nas suas ardósias – pelo menos Emily estava a
escrever poesia e Ilse lia-a enquanto ela escrevia e ocasionalmente
sugeria-lhe uma rima quando Emily precisava de uma. Pode-se desde já
admitir que não tinham nada que estar a fazer isto naquela altura.
Deviam estar a fazer somas, como Miss Brownell supunha que estavam.
Mas Emily nunca fazia somas quando metia na sua cabecinha negra que ia
escrever poesia e Ilse odiava aritmética de uma forma geral. Miss
Brownell estava a ouvir a classe de geografia do outro lado da sala,
um sol agradável inundava-as através da grande janela, e tudo parecia
propício a uma fuga com as musas. Emily começou a escrever um poema
sobre a vista da janela da escola.
Já há muito tempo que não se sentava no banco de lado. Este era um
privilégio reservado aos alunos que entravam nas graças de Miss
Brownell – e Emily nunca estivera entre eles. Mas nesta tarde Ilse
tinha pedido por si e por Emily e Miss Brownell tinha-as deixado lá
sentar, incapaz de encontrar justificação para deixar Ilse e recusar
Emily – como teria gostado de fazer, porque tinha uma daquelas
naturezas mesquinhas que nunca perdoam ou esquecem uma ofensa. No seu
primeiro dia de escola Emily tinha, ou assim pensava Miss Brownell,
sido culpada de impertinência e provocação – e de uma provocação bem
sucedida, ainda por cima. Isto ainda ressoava na cabeça de Miss
Brownell e Emily sentia o seu veneno de inúmeras formas subtis. Ela
nunca recebia nenhum elogio – era um alvo contínuo do sarcasmo de Miss
Brownell – e os pequenos favores que as outras meninas recebiam nunca
a contemplavam a ela. Por isso esta oportunidade de se sentar no banco
do lado era uma novidade muito agradável.
Haviam vantagens em se sentar no banco do lado. Conseguia-se ver toda
a sala de aulas sem se ter que virar a cabeça – e a Miss Brownell não
podia insinuar-se por detrás dos seus ombros para ver o que estavam a
fazer; mas aos olhos de Emily a melhor coisa era que se podia olhar
directamente para o bosque da escola, e ver os velhos abetos onde
brincava a dama do vento, as longas fitas de musgo verde acinzentado
que pendiam dos ramos, como estandartes da Terra dos Elfos, os
pequenos esquilos vermelhos correndo ao longo da vedação, e os longos
passeios de neve onde caíam salpicos de raios de luz como poças de
vinho dourado; e havia uma pequena abertura nas árvores através da
qual se podia ver o próprio vale de Blair Water até ás dunas de areia
e o golfo mais além. Hoje as dunas estavam suavemente arredondadas e
brilhando brancas cobertas de neve, mas para além delas o golfo estava
escuro e profundamente azul com massas cintilantes de gelo que
pareciam icebergues bebés, flutuando por ele. Só de olhar para lá
Emily arrepiava-se de uma delícia inexprimível mas que ainda assim
tentava exprimir. Começou o seu poema. As fracções foram
irremediavelmente esquecidas – quais eram os numeradores e os
denominadores daqueles seios redondos de neve branca – aquele azul
celestial – aqueles topos escuros de pinheiros cruzados contra o céu

85
cor de pérola – aqueles caminhos do bosque feitos de pérolas e ouro?
Emily perdeu-se no seu mundo – tão pedida que não se apercebeu que a
classe de geografia se tinha dispersado para os seus lugares normais e
que Miss Brownell, apercebendo-se do olhar alheado de Emily em
direcção ao céu enquanto procurava uma rima, se dirigia suavemente
para si. Ilse desenhava qualquer coisa na ardósia e não a viu, ou
teria avisado Emily. Esta última sentiu a ardósia ser-lhe bruscamente
arrancada das mãos e ouviu Miss Brownell dizendo:
“Presumo que tenhas acabado as tuas somas, Emily?”
Emily não tinha acabado nem uma soma – ela tinha coberto a sua ardósia
com versos – versos que a Miss Brownell não devia ver – não podia ver!
Emily pôs-se em pé e tentou agarrar novamente a sua ardósia. Mas Miss
Brownell, com um sorriso de alegre malícia nos lábios finos, manteve-a
fora do seu alcance.
“O que é isto? Não me parecem exactamente fracções. ‘Linhas sobre a
vista da janela da escola de Blair Water.’ Realmente meninos, parece
que temos um poeta em potência entre nós.”
As palavras eram bastante inócuas, mas – oh, o horrível desprezo que
percorria o tom – o desdém, o gozo que havia nelas! Atingiu a alma de
Emily como se fosse um chicote. Nada lhe era mais desagradável do que
ver os seus poemas lidos por olhos estranhos – olhos frios,
antipáticos, cínicos e estranhos.
“Por favor – por favor, Miss Brownell,” balbuciou miseravelmente, “não
leia – eu apago isso – eu vou já fazer as minhas somas. Mas não o
leia. Não é nada de especial.”
Miss Brownell riu-se com crueldade.
“Tu és demasiado modesta, Emily. É uma ardósia cheia de–-poesia-–
imaginem só, crianças–-poesia. Nós temos nesta escola um aluno que
sabe escrever – poesia. E ela não quer que nós vejamos esta – poesia.
Receio bem que Emily seja egoísta. Tenho a certeza que todos íamos
gostar desta – poesia.”
Emily encolhia-se cada vez que Miss Brownell dizia “poesia” com aquela
ênfase escarnecedor e aquela horrível pausa antes. Muitas das crianças
ria-se, em parte porque gostavam de ver uma Murray de New Moon ser
humilhada e em parte porque se apercebiam que Miss Brownell queria que
se rissem. Rhoda Stuart ria-se mais alto que todos os outros; mas
Jennie Strang, que atormentara Emily no seu primeiro dia de aulas,
recusava-se a rir e olhava para Miss Brownell com olhos sérios e
reprovadores.
Miss Brownell manteve a ardósia bem alta e leu o poema de Emily para a
classe, com uma voz nasal e afectada, gestos e entoações absurdas que
o fizeram parecer uma coisa muito ridícula. Os versos que Emily achara
melhores pareciam os mais ridículos. Os outros alunos riram-se mais
que nunca e Emily sentiu que a amargura daquele momento nunca mais
desapareceria do seu coração. Os pequenos sonhos que lhe tinham
parecido tão belos quando os escrevera foram estilhaçados e magoados,
como borboletas despedaçadas e desmembradas – “vistas nalgum sonho de
fadas,” cantava Miss Brownell, fechando os olhos e abanando a cabeça
de um lado para o outro. As risotas tornaram-se gargalhadas.
“Oh,” pensou Emily, cerrando os punhos, “Eu só desejava que os ursos
que comeram as crianças más na bíblia os viessem comer a vocês.”
Mas não haviam ursos bons e justiceiros no bosque perto da escola, e
Miss Brownell acabou por ler todo o poema. Ela estava a divertir-se
tremendamente. Ridicularizar um aluno dava-lhe sempre muito gosto e se
esse aluno era Emily de New Moon, em cuja alma e coração ela sempre
detectara algo fundamentalmente diferente de si, o prazer era
redobrado.
Quando chegou ao fim entregou a ardósia de volta Emily, que estava
corada de vergonha.
“Toma a tua – poesia, Emily,” disse.

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Emily apanhou a ardósia. Não havia nenhum trapo por perto mas Emily
lambeu a palma da mão e lá se foi um lado da ardósia. Uma nova
lambidela e marchou-se o resto do poema. Tinha sido desgraçado –
degradado – tinha que ser apagado da existência. Até ao fim da sua
vida Emily nunca se esqueceu da humilhação da experiência.
Miss Brownell riu-se novamente.
“Que pena eliminares uma peça de - poesia dessas, Emily,” disse.
“Agora deves voltar ás tuas somas. Não são – poesia, mas eu estou
nesta escola para ensinar aritmética e não para ensinar a arte da
escrita – poética. Vai para o teu lugar. Sim, Rhoda?”
Porque Rhoda Stuart tinha a mão no ar e estalava os dedos.
“Por favor, Miss Brownell,” disse, com um triunfo distinto na voz, “a
Emily Starr tem um molho de poesias na carteira. Ela leu-as à Ilse
Burnley esta manhã enquanto a senhora pensava que estavam a estudar
história.”
Perry Miller voltou-se para trás e um míssil maravilhoso, composto por
papel mastigado e conhecido como uma “bola de cuspo”, atravessou a
sala e atingiu Rhoda mesmo na cara. Mas Miss Brownell já estava ao pé
da carteira de Emily, tendo-a alcançado antes da própria Emily.
“Não lhe toque – não tem o direito!” exclamou Emily fora de si.
Mas Miss Brownell tinha o “molho de poesias” na mão. Ela virou-se e
marchou em direcção ao estrado. Emily seguiu-a. Aqueles poemas eram-
lhe muito queridos. Tinha-os composto durante os intervalos em que era
impossível ir lá para fora por causa do tempo e escrevera-os em
pedaços de papel emprestados pelos colegas. Ela tinha querido levá-los
para casa nessa tarde e copiá-los para as folhas cor-de-rosa. E agora
esta mulher horrível ia-os ler para toda a escola gozar e rir.
Mas Miss Brownell apercebeu-se que o tempo era pouco para isso. Tinha
que se contentar em ler os títulos, com alguns comentários
apropriados.
Entretanto Perry Miller aliviava os seus sentimentos bombardeando
Rhoda Stuart com bolas de cuspo, tão bem cronometradas que Rhoda não
fazia ideia de que lado vinham e por isso não podia fazer queixinhas.
No entanto, interferiram bastante com a sua apreciação do sofrimento
de Emily. Quanto a Teddy Kent, que não travava a guerra com bolas de
cuspo mas preferia métodos mais subtis de vingança, estava ocupado a
desenhar qualquer coisa numa folha de papel. Rhoda encontrou a folha
no dia seguinte na sua carteira; nela via-se um pequeno macaco
escanzelado, pendurado de um ramo pela cauda; e a cara do macaco era a
cara da Rhoda Stuart. Em consequência Rhoda Stuart ardeu em raiva, mas
por causa da sua vaidade desfez o desenho em pedaços e manteve o
silêncio em relação a isso. Ela não sabia que Teddy Kent fizera um
desenho semelhante, com a Miss Brownell figurando como um morcego de
ar vampiresco, e mandou-o a Emily quando saíram da escola.
“O Diamante Perdido – Um Conto Romantico,’” lia Miss Brownell.
“’Versos Sobre uma Bétula’ – parecem-me mais versos sobre um bocado
muito sujo de papel, Emily – ‘Verso Escritos sobre um Relógio de Sol
do Nosso Jardim’ – cito – ‘Versos ao Meu Gato Favorito” – mais um
conto romântico, presumo – ‘Ode a Ilse’ – ‘O teu pescoço é como uma
pérola de um brilho maravilhoso’ – não sei como. O pescoço da Ilse
está muito Moreno – “Uma descrissão da nossa sala de visitas,’ ‘O
Feitiço da Violeta’ espero que a violeta escreva melhor que tu, Emily
– ‘A Casa Decepcionada’--

“Lírios levantavam os seus cálices brancos


para as abelhas be-be-rrem”

“Não foi assim que eu escrevi!” gritou a torturada Emily.


“’Versos a um Pedaço de Brocado na Gaveta da Tia Laura,’ ‘Adeus Á
Minha Casa,’ ‘Versos a um Abeto’ – ‘Afasta o calor o sol e o brilho, É
uma árvore abençoada que contendo’ tens a certeza do que quer dizer

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contendo, Emily? ‘Poema sobre o Campo do Senhor Tom Bennet’ – ‘Poema
sobre a Vista da janela do quarto da tia Elizabeth’ – já vi que gostas
muito de vistas, Emily – “Epitáfio a um gatinho afogado,’’Meditassões
sobre a campa da minha trisavó’ – pobre senhora – ‘Ás minhas aves do
norte’ – ‘Versos compostos nas margens de Blair Water olhando as
estrelas’- hum,hum –
“Cravejadas de gemas incontáveis,
Aquelas estrelas tão distantes, frias e verdadeiras,
Não tentes passar esses versos como teus, Emily. Tu não os podes ter
escrito.”
“Mas escrevi – escrevi!” Emily estava fora de si com a ofensa. “E
escrevi outros muito melhores.”
Miss Brownell subitamente amarrotou os pequenos papéis nas mãos.
“Nós já perdemos tempo suficiente com este lixo,” disse. “Vai para o
teu lugar, Emily.”
Dirigiu-se ao fogão. Por um momento, Emily não se apercebeu do seu
propósito. Depois, quando Miss Brownell abriu a porta do fogão, Emily
compreendeu e correu para a frente. Apanhou os papéis e tirou-os das
mãos de Miss Brownell antes que ela tivesse oportunidade de os segurar
melhor.
“A senhora não os vai queimar – não vai ficar com eles,” declarou
Emily. Enfiou os poemas no bolso do deu avental e encarou Miss
Brownell numa espécie de raiva calma. O olhar dos Murray estava na sua
cara – e embora Miss Brownell não ficasse tão impressionada com ele
como a tia Elizabeth deu-lhe a sensação desagradável de ter invocado
forças com as quais não gostava de se defrontar. Esta criança
perturbada parecia capaz de se atirar a ela de unhas e dentes.
“Dá-me esses papéis, Emily,” mas disse-o um pouco insegura.
“Não dou,” disse Emily furiosa. “São meus. A senhora não tem direito a
eles. Eu escrevi-os nos intervalos – não quebrei nenhuma regra. A
senhora” – Emily olhou para os olhos frios de Miss Brownell em desafio
– “A senhora é uma pessoa injusta e tirânica.”
Miss Brownell virou-se para a sua secretária.
“Eu hoje à noite vou a New Moon contar isto à tua tia Elizabeth,”
disse.
Emily começou por ficar demasiado excitada por ter salvo a sua
preciosa poesia para prestar atenção a esta ameaça. Mas enquanto a
excitação esmorecia o medo começava a invadi-la. Ela sabia que tinha
um mau bocado à sua frente. Mas fosse como fosse eles não ficariam com
os seus poemas – nem com um deles, fosse o que fosse que fizessem com
ela. Assim que chegou a casa da escola voou para o sótão e escondeu-os
no sofá.
Ela tinha uma vontade terrível de chorar mas não chorou. A Miss
Brownell ia lá a casa e a Miss Brownell não a veria com os olhos
encarnados. Mas o coração ardia-lhe no peito. Um templo sagrado do seu
ser fora profanado e envergonhado. E ainda havia mais para vir,
sentia-se certa. A tia Elizabeth ia pôr-se do lado de Miss Brownell de
certeza. Emily encolhia-se perante o tormento com todo o terror de uma
natureza sensível perante a humilhação. Não teria receado a justiça;
mas ela sabia que no tribunal da tia Elizabeth e da Miss Brownell não
a encontraria.
“E não posso escrever sobre isto ao pai,” pensou, com o pequeno peito
arquejante. A vergonha de todo o episódio era demasiado profunda e
íntima para ser escrita, e por isso não encontrou alívio para a sua
dor.
Em New Moon no Inverno não se jantava enquanto o primo Jimmy não
terminava as suas tarefas e voltava a casa. Por isso Emily foi deixada
em sossego no sótão.
Da janela de mansarda ela olhava lá para baixo para uma cena de conto
de fadas que normalmente a teria encantado. Havia um pôr-do-sol
vermelho por detrás dos montes brancos e distantes, brilhando através

88
das árvores escuras como um lume gigante; havia o traçado de um azul
delicado de sombras de ramos despidos em volta do jardim coberto;
havia um brilho alpino etéreo e pálido por todo o céu de sudeste; e
nesse momento uma pequena lua prateada erguia-se sobre o bosque do
Lofty John. Mas Emily não se alegrou com nada disso.
Nesta altura viu Miss Brownell subindo a alameda, por baixo dos braços
brancos das bétulas, com o seu andar masculino.
“Se o meu pai fosse vivo,” disse Emily, olhando para ela de cima para
baixo, “ias-te daqui embora em menos de três tempos.”
Os minutos passaram, cada um parecendo muito longo a Emily. Por fim, a
tia Laura foi lá a cima.
“A tua Tia Elizabeth quer que vás lá abaixo à cozinha, Emily.”
A voz da tia Laura era triste e meiga. Emily segurou um soluço.
Detestava que a tia Laura pensasse que ela tinha sido má, mas não
podia explicar-lhe a situação. A tia Laura ia compreender e a sua
compreensão ia-a deitar a baixo. Desceu silenciosamente os dois lanços
de escadas à frente da tia Laura e até à cozinha.
A mesa estava posta para o jantar e as velas acesas. A grande cozinha
de traves negras parecia fantasmagórica e estranha, como sempre
acontecia à luz das velas. A tia Elizabeth estava rigidamente sentada
à mesa e o seu rosto tinha uma expressão muito dura. Miss Brownell
estava sentada na cadeira de baloiço, os olhos pálidos brilhando de
triunfo. Parecia ter algo de maligno e venenoso no olhar. E também
tinha o nariz muito vermelho, o que não lhe acrescentava grande
beleza.
O primo Jimmy, nas suas jardineiras cinzentas, estava sentado na ponta
da caixa da lenha, assobiando ao tecto e parecendo mais gnomo que
nunca. O Perry não estava à vista. Emily teve pena por isso. A
presença de Perry, que estava do seu lado, teria sido um grande apoio
moral.
“Tenho muita pena Emily, de saber que te portaste muito mal hoje na
escola,” disse a tia Elizabeth.
“Não, eu não acho que tenha pena,” disse Emily, muito séria.
Agora que tinha chegado o momento da crise ela viu-se pronta a
confrontá-la calmamente – e ainda para aproveitar o interesse curioso
por ela, debaixo de todo o medo e vergonha secretos, como se uma parte
de si se destacasse do resto e absorvesse impressões com interesse,
analisasse motivos e descrevesse cenários. Pensava que quando mais
tarde escrevesse sobre esta cena não se poderia esquecer de descrever
as estranhas sombras que a luz da vela por baixo do nariz da tia
Elizabeth lhe projectava sobre o rosto dela, dando-lhe uma aparência
esquelética. Quanto à Miss Brownell, poderia ela alguma vez ter sido
um bebé – um bebé cheio de covinhas, gordo e sorridente? A coisa era
inconcebível.
“Não sejas impertinente comigo, Emily,” disse a tia Elizabeth.
“Bem pode ver,” disse Miss Brownell, como se isto confirmasse a
história.
“Eu não tive intenção de ser impertinente, mas a senhora não tem
pena,” continuou Emily. “A senhora está zangada porque acha que eu
envergonhei New Moon, mas está um bocadinho contente porque encontrou
uma pessoa para concordar consigo quando diz que sou má.”
“Que criança tão grata,” disse Miss Brownell – dirigindo os olhos ao
tecto – onde encontraram uma cena surpreendente. A cabeça de Perry
Miller – e nada mais de si – sobressaía do “buraco negro” e no rosto
invertido de Perry Miller via-se um sorriso do mais desrespeitoso e
ímpio. O rosto e a cabeça desapareceram num instante, deixando Miss
Brownell olhando para o tecto de uma forma aparvalhada.
“Tu tens-te portado de uma forma vergonhosa na escola,” disse a tia
Elizabeth, que não vira esta diversão. “Tenho vergonha de ti.”
“Não foi assim tão mau, tia Elizabeth,” disse Emily prontamente. “Sabe
que foi tudo porque –“

89
“Eu não quero ouvir mais falar no assunto,” disse a tia Elizabeth.
“mas tem que ouvir,” exclamou Emily. “Não é justo ouvir só o lado
dela. Eu fui um bocado má, mas não tanto como ela diz-“
“Nem mais uma palavra! Eu já ouvi toda a história,” disse a tia
Elizabeth zangada.
“A senhora ouviu um chorrilho de mentiras,” disse o Perry, espetando a
cabeça para fora do “buraco negro” novamente.
Toda a gente deu um salto – incluindo a tia Elizabeth, que ficou ainda
mais zangada porque tinha saltado.
“Perry Miller, desce imediatamente desse sótão!” ordenou.
“Não posso,” disse Perry laconicamente.
“Imediatamente, já disse!”
“Não posso,” repetiu Perry, piscando audaciosamente o olho a Miss
Brownell.
“Perry Miller, desce daí! Eu exijo que me obedeçam. Ainda sou a dona
desta casa.”
“Oh, está bem,” disse Perry alegremente. “Já que tem que ser.”
Ele balançou-se para baixo até que os seus pés tocaram nas escadas. A
tia Laura deu um pequeno grito. Toda a gente parecia ter ficado muda
de repente.
“Eu acabei de tirar as minhas calças molhadas,” ia dizendo Perry
alegremente, balançando a perna para apanhar um degrau da escada
enquanto se segurava ao buraco negro pelos cotovelos. “Caí ao ribeiro
quando dei de beber ás vacas. Ia pôr umas secas – mas como a senhora
diz –“
“Jimmy,” implorou a pobre Elizabeth Murray, rendendo-se à discrição.
Ela não era capaz de lidar com a situação.
“Perry, entra já para dentro do sótão e veste umas calças
imediatamente!” ordenou o primo Jimmy.
As pernas nuas subiram e desapareceram. Ouviu-se uma gargalhada tão
maliciosa e cheia de alegria como a de um mocho por detrás do buraco
negro. A tia Elizabeth deu um suspiro de alívio e virou-se para Emily.
Ela estava determinada a recuperar a sua ascendência e Emily tinha que
ser completamente humilhada.
“Emily, ajoelha-te em frente à Miss Brownell e pede-lhe desculpa pela
tua conduta de hoje,” disse.
No rosto pálido de Emily viu-se um protesto escarlate. Ela não poderia
fazer isto – pediria perdão à Miss Brownell mas não de joelhos. Aquela
mulher cruel magoara-a tanto – nunca conseguiria – não o iria fazer.
Toda a sua natureza se elevou em protesto por esta humilhação.
“Ajoelha-te,” repetiu a tia Elizabeth.
Miss Brownell parecia expectante e satisfeita. Seria muito bom ver
esta criança que a desafiara ajoelhada perante si como uma penitente.
Nunca mais, achava Miss Brownell, teria coragem de olhar para ela
olhos nos olhos com aquele seu ar que denunciava uma alma indomável e
livre, fosse qual fosse o castigo infligido no seu corpo ou na sua
alma. A memória deste momento ficaria com Emily para sempre – ela
nunca se esqueceria que se rebaixara de joelhos. Emily sentia isto tão
claramente como Miss Brownell e manteve-se teimosamente de pé.
“Tia Elizabeth, por favor, deixe-me contra o meu lado da história,”
implorou.
“Eu já ouvi mais do queria sobre esse assunto. Tu vais fazer o que eu
mandei, Emily, ou vais ser isolada nesta casa até que o faças. Ninguém
falará contigo – brincará contigo – comerá contigo – faça seja o que
for contigo até que me obedeças.”
Emily estremeceu. Isso era um castigo que ela não conseguia enfrentar.
Ser excluída do mundo dela – sabia que a faria vergar num instante.
Bem podia ajoelhar-se agora – mas ah, a amargura e a vergonha de ter
que o fazer!
“Um ser humano não se deve ajoelhar perante ninguém senão Deus,” disse
o primo Jimmy inesperadamente, ainda olhando para o tecto.

90
Uma súbita mudança invadiu o rosto zangado e orgulhoso de Elizabeth
Murray. Ficou muito quieta, a olhar para o primo Jimmy, olhou tanto
tempo para ele que a Miss Brownell fez um movimento de impaciência
petulante.
“Emily,” disse a tia Elizabeth num tom diferente. “Eu estava errada –
não te vou pedir que te ajoelhes. Mas tens que pedir desculpa à tua
Professora – e eu vou-te castigar mais tarde.”
Emily pôs as mãos atrás das costas e olhou de frente para os olhos de
Miss Brownell novamente.
“Eu estou arrependida de tudo o que fiz de errado hoje,” disse, “e
peço-lhe perdão por isso.”
Miss Brownell pôs-se rapidamente de pé. Achava-se destituída de um
triunfo legítimo. Fosse qual fosse o castigo de Emily ela não teria a
satisfação de o testemunhar. Se pudesse, teria abanado o “Jimmy
simples” com toda a vontade do mundo. Mas não seria boa ideia mostrar
o que sentia. Elizabeth Murray não era administradora mas era a maior
contribuinte em New Moon e tinha uma grande influência junto da
comissão escolar.
“Eu vou perdoar a tua conduta se te comportares melhor no futuro,”
disse friamente. “Eu acho que não fiz mais do que o meu dever ao
trazer o assunto à tua tia Elizabeth. Não, obrigada, Miss Murray, eu
não posso ficar para jantar – eu quero chegar a casa antes que
escureça.”
“Então boa viagem,” disse Perry alegremente, descendo a escada desta
vez com as calças vestidas.
A tia Elizabeth ignorou-o – não ia fazer uma cena com um moço de
lavoura em frente a Miss Brownell. A última saiu e a tia Elizabeth
olhou para Emily.
“Tu vais comer o teu jantar sozinha esta noite, Emily, na despensa –
tu só vais comer pão e leite. E não vais dizer uma palavra a ninguém
senão amanhã de manhã.”
“Mas não me proíbe de pensar?” disse Emily preocupada.
A tia Elizabeth não respondeu mas sentou-se amuada à mesa do jantar.
Emily foi para a despensa onde comeu pão e leite, com o cheiro das
deliciosas salsichas que os outros comiam como aroma. Emily gostava de
salsichas, e as salsichas de New Moon eram das melhores que havia.
Elizabeth Burnley tinha trazido a receita com ela do Velho Continente
e o seu segredo era cuidadosamente guardado. Emily tinha fome. Mas ela
tinha-se escapado ao insuportável e as coisas podiam ter sido pior.
Ocorreu-lhe de repente que ela podia escrever um poema épico imitando
O Descanso do Último Trovador. O primo Jimmy tinha-lho lido no último
Sábado. Ela ia começar o primeiro canto desde já. Quando a tia Laura
entrou na despensa, Emily tinha o pão e o leite a meio, e estava com
os cotovelos apoiados na cómoda, olhando o espaço com lábios que se
moviam devagar e com uma luz desconhecida na terra e no mar a pairar-
lhe nos olhos. Até o aroma das salsichas fora esquecido – não bebia
ela de uma fonte superior?
“Emily,” disse a tia Laura, fechando a porta e olhando muito
amorosamente para Emily através dos seus meigos olhos azuis, “tu podes
falar comigo quando quiseres. Eu não gosto da Miss Brownell e não acho
que tivesses feito mal – embora não devesses escrever poesias quando
tinhas contas para fazer. E há ali uns biscoitos de gengibre naquela
caixa.”
“Eu não quero falar com ninguém, querida tia Laura – eu estou feliz
demais,” disse Emily de forma sonhadora. “Eu estou a compor um épico –
vai-se chamar A Dama Branca, e já tenho vinte versos escritos – e dois
deles são arrepiantes. A heroína quer ir para um convento e o pai dela
avisa-a que se for nunca mais vai poder

Voltar à vida que deste


Com todos os prazeres à morte

91
Oh, tia Laura, quando compus estes versos senti o flash. E as bolachas
de gengibre agora não significam nada para mim.”
A tia Laura sorriu novamente.
“Talvez agora não sejam, querida. Mas quando o teu momento de
inspiração passar não vai fazer mal nenhum lembrares-te que as
bolachas daquela caixa não estão contadas e que são tão minhas como da
Elizabeth.”

Epístolas vivas

"Querido Pai:
“Oh, tenho uma coisa tão chitante para lhe contar. Eu fui a heroína de
uma aventura. Um dia da semana passada a Ilse perguntou-me se eu ia lá
ficar à noite com ela porque o pai dela estava fora e só ia voltar
muito tarde e a Ilse disse que não estava açustada mas que se sentia
muito sozinha. Por isso perguntei à tia Elizabeth se podia. Nem me
atrevia a ter esperança, querido pai, que ela me deixasse, porque ela
não aprova que as meninas passem a noite fora de casa mas para minha
surpresa ela disse que podia ir com muita gentileza. E depois ouvia-a
dizer na despensa à tia Laura que era uma vergonha a maneira como o
doutor deixa aquela pobre criança sozinha à noite. É malvado. E a tia
Laura disse O pobre homem está destroçado. Tu sabes que ele não era
nada assim antes da mulher – e logo quando a conversa estava a ficar
intressante a tia Elizabeth deu um toque à tia Laura e disse S-s-s-h,
as paredes têm ouvidos. Eu vi que ela se estava a referir a mim. Eu
gostava tanto de descobrir o que fez a mãe da Ilse. Preocupa-me quando
me deito. Fico acordada imenso tempo a pensar nisso. A Ilse não faz
ideia do que foi. Um dia perguntou ao pai e ele disse-lhe (numa VOZ DE
TROVÃO)que nunca mais lhe falasse NAQUELA MULHER. E há outra coisa que
me preocupa também. Eu estou sempre a pensar no Silas Lee que matou o
irmão no velho poço. Como se deve ter sentido mal o pobre homem. E o
que é estar destroçado.
“Eu fui para a casa da Ilse e brincámos no sótão. Eu gosto de brincar
lá porque não tenho que ser cuidadosas e arrumadas como no nosso. O
sótão da Ilse é muito desarrumado e não lhe limpam o pó há anos. A
casa dos trapos está pior do que resto. Está pregada a um canto do
sótão e cheia de ropa velha e sacos de trapos e mobílias partidas. Eu
não gosto do cheiro dela. A chaminé da cozinha sobe por ali e há
coisas peduradas dela (ou havia). Porque tudo isto pertence agora ao
passado, querido Pai.
“Quando nos cansámos de brincar sentámo-nos numa arca velha e
conversámos. Isto é esplêndido durante o dia mas é muito esquesito à
noite. Ratos, disse a Ilse – e aranhas e fantasmas. Eu não acredito em
fantasmas disse eu a gosar. Os fantasmas não existem. (Mas talvez
existam lá depois disto tudo, querido Pai.) Eu acredito que este sótão
está assombrado, disse a Ilse. Dizem que todos os sótãos estão. Que
disparate, disse eu. O Pai sabe que uma pessoa de New Moon não pode
acreditar em fantasmas. Mas eu senti-me muito estranha. Falar é fácil
disse a Ilse que começava a ficar zangada (embora eu não estivesse a
fazer pouco do sótão dela) mas tu não eras capaz de aqui ficar sozinha
de noite. Eu não me importava nem um bocadinho disse eu. Então
desafio-te a fazê-lo disse a Ilse. Desafio-te e vires para aqui à hora
de deitar e a passares aqui a noite. Então eu vi que estava metida num
bonito sarilho Pai querido. É uma grande parvoíce gabarmo-nos. Eu não
sabia o que havia de fazer. Era terrível imaginar-me a dormir ali
sozinha naquele sótão mas se não o fizesse a Ilse ia para sempre
atirar-me isso à cara quando brigássemos e pior que tudo ia contar ao

92
Teddy e ele ia achar que eu era cobarde. Por isso disse-lhe
orgulhosamente Eu vou fazer isso Ilse Burnley e não tenho medo nenhum.
(Mas oh tinha – por dentro.) Os ratos vão andar por cima de ti disse a
Ilse. Oh eu não queria estar no teu lugar por nada deste mundo. Foi
muito mau a Ilse ter tornado as coisas piores do que já estavam. Mas
eu também senti que ela me admirava e isso ajudou-me um bocado.
Arrastámos um velho colchão de penas da casa dos trapos e a Ilse deu-
me uma almofada e metade da ropa de cama dela. Nesta altura já estava
escuro e a Ilse já não queria voltar ao sótão. Por isso eu disse as
minhas orações com muito cuidado e depois agarrei numa lâmpada e subi.
Eu agora estou tão habituada às velas que as lâmpadas me fazem sentir
nervoza. A Ilse disse que eu parecia apavorada. Os meus joelhos
tremiam querido Pai mas pela honra dos Starrs (e também dos Murray) eu
continuei. Tinha-me despido no quarto da Ilse, por isso meti-me logo
na cama e apaguei a lâmpada. Mas não consegui adormecer durante um bom
bocado. A luz da lua fazia o sótão parecer suturno. Eu não sei bem o
que quer dizer suturno mas acho que o sótão era isso. Eu pensei que
não devia estar assustada. Os anjos estavam comigo. Mas depois achei
que os anjos me assustavam tanto como qualquer outra coisa. E eu
conseguia ouvir os ratos e as ratazanas a andarem por cima das coisas.
Eu pensei E se um rato me passa por cima, e depois pensei que no dia
seguinte podia escrever uma descrissão do sótão ao luar e do que
senti. Até que por fim ouvi o doutor a chegar e ouvi-o a entrar pela
porta da cozinha e senti-me melhor e dali a pouco estava a dormir e
tive um sonho horrível. Sonhei que a porta da casa dos trapos se abria
e um grande jornal saía de lá e perseguia-me por todo o sótão. E
depois peguava fogo e eu conseguia cheirar o fumo como se fosse de
verdade e estava mesmo a apanhar-me quando gritei e acordei. Eu estava
sentada na cama e o jornal tinha desaparecido mas eu ainda conseguia
cheirar o fumo. Olhei para a porta da casa dos trapos e saía fumo por
baixo da porta e eu vi luz por entre as frinchas das tábuas. Gritei
tão alto quanto consegui e fui a correr até ao quarto da Ilse e ela
correu ao outro lado do corredor e acordou o pai. Ele disse Raios mas
levantou-se logo e depois nós os três andámos para cima e para baixo
das escadas do sótão com baldes de água e fizémos uma grande porcaria
mas apagámos o fogo. Tinham sido os sacos de lã que estavam pendurados
ao pé da chaminé que tinham pegado fogo. Quando acabou tudo o doutor
limpou a transpiração do seu rosto másculo e disse Foi por pouco. Uns
minutos mais tarde seria tarde demais. Eu acendi o lume quando cheguei
para fazer um chá e os sacos devem ter pegado fogo por causa de uma
faúlha. Dá para ver um buraco ali onde caiu o estuque. Eu tenho que
mandar limpar isto tudo. Como é que tu vieste a descobrir o fogo,
Emily. Eu estava a dormir no sótão disse eu. A dormir no sótão disse o
doutor, que di–-que-–o que é que estavas a fazer aqui. A Ilse
desafiou-me disse eu. Ela disse que eu não ia conseguir aqui ficar com
medo e eu disse que conseguia. Adormeci e quando acordei cheirou-me a
fumo. Sua diabinha, disse o doutor. Eu acho que devia ser muito mau
ser chamada de diabinha mas o doutor olhou para mim com tanta
admiração que me pareceu que era um elogio. Ele tem uma maneira
estranha de falar. A Ilse diz que a única vez que lhe disse uma coisa
mais meiga foi quando ela teve a garganta inflamada e chamou-lhe
“pobre animalzinho” e pareceu ter pena dela. Eu tenho a certeza que a
Ilse se sente mal por o pai não gostar dela embora ela finja que não
se importa. Mas oh, Pai querido, há mais coisas a contar. Ontem veio o
Shrewsbury Weekly Times e na parte de Blair Water vinha tudo sobre o
fogo da casa do doutor e dizia lá que felizmente tinha sido descoberto
a tempo pela Miss Emily Starr. Eu não sei como lhe explicar o que
senti quando vi o meu nome num jornal. Senti-me famoza. E eu nunca
tinha sido chamada de Miss Emily a sério antes.
“No Sábado passado a tia Elizabeth e a tia Laura foram a Shrewsbury
passar o dia e deixaram-me a mim e ao primo Jimmy a tomar conta da

93
casa. Nós divertimo-nos tanto e o primo Jimmy deixou-me ferver todas
as panelas de leite. Mas depois do almoço tivémos umas visitas
inespradas e não havia nenhum bolo cá em casa. Foi uma coisa terrível.
Nunca tinha acontecido antes nos anais de New Moon. A tia Elizabeth
tinha tido dor de dentes todo o dia anterior e a tia Laura estava fora
a visitar a tia-avó Nancy em Priest Pond, por isso não havia nenhum
bolo feito. Eu rezei e depois meti-me ao trabalho e fiz um bolo pela
receita da tia Laura e saiu bem. O primo Jimmy ajudou-me a pôr a mesa
e a trazer o jantar e eu servi o chá e não entornei nada nos pires. O
Pai teria tido tanto orgulho em mim. A senhora Lewis serviu-se de uma
segunda fatia de bolo e disse Eu conhecia um bolo da Elizabeth Murray
mesmo que o encontrasse na África Central. Eu não disse uma palavra
por causa da honra da família. Mas senti-me muito orgulhosa. Salvei os
Murray de uma vergonha. Quando a tia Elizabeth chegou e ouviu a
história ficou muito séria e provou uma fatia que tinha sobrado e
depois disse Bem, sempre tens alguma coisa de Murray afinal. Foi a
primeira vez que a tia Elizabeth me elogiou. Ela tinha arrancado três
dentes por isso já não lhe vão doer mais. Eu fico contente por ela.
Antes de ter ido para a cama peguei no livro de cozinha e escolhi
todas as coisas que gostava de fazer. Pudim Rainha, Molho Espuma do
Mar, Bolinhos Margarida, Porcos em Cobertores. Soam mesmo bem.
“Eu consigo ver umas nuvens brancas fofinhas lindas por cima do bosque
do Lofty John. Gostava tanto de poder subir e cair mesmo em cima
delas. Não acredito que fossem molhadas e frias como diz o Teddy. O
Teddy cortou as minhas iniciais em conjunto com as dele no Monarca da
Floresta mas alguém apagou. Eu não sei se foi o Perry ou a Ilse.
“A Miss Brownell agora nunca me dá boas notas e a tia Elizabeth fica
muito aborrecida nas noites de sexta-feira mas a tia Laura compreende.
Eu escrevi um relatório da tarde em que a Miss Brownell gosou com os
meus poemas, pû-lo num envelope e escrevi nele o nome da tia Elizabeth
e guardei-o entre os meus papeis. Se eu morrer tuberculosa a tia
Elizabeth vai encontrá-lo e descobrir toda a verdade e vai ter pena de
ter sido tão injusta comigo. Mas agora não acho que vá morrer porque
estou a engordar muito e a Ilse disse-me que tinha ouvido o pai dela
dizer à minha tia Laura que eu até era bonita se tivesse mais cor. É
errado querer ser bonita, Pai mais querido. A tia Elizabeth diz que é
e quando eu lhe disse Não gostava de ser bonita tia Elizabeth, ela
pareceu chateada com qualquer coisa.
“A Miss Brownell ficou irritada com o Perry desde aquela noite e
trata-o muito mal mas ele é humilde e diz que não vai armar confusão
na escola porque quer aprender e progredir. Ele está sempre a dizer
que as rimas dele são tão boas como as minhas e eu sei que não são e
fico furioza. Se eu não presto atenção a tudo na escola a Miss
Brownell diz Deves estar a compor – poesia Emily e depois toda a gente
se ri. Não nem toda a gente. Eu não posso ser exagerada. O Teddy o
Perry a Ilse e a Jennie nunca se riem. É engraçado como eu agora gosto
tanto da Jennie e odiei-a no primeiro dia de aulas. Os olhos dela não
são nada de porca. São pequenos mas são alegres e brilhantes. Ela é
muito pupular na escola. Mas eu destesto o Frank Baker. Ele tirou-me o
livro de leitura novo e escreveu-o com uma letra grande na página da
frente
Não roubes este livro por medo da vergonha
Porque tem na capa o nome do dono
E quando tu morreres o Senhor vai-te dizer
Onde está o livro que tu roubaste
E quando disseres que não sabes
O Senhor vai dizer vai lá para baixo
“Isso não é um poema refinado e para além disso não é a forma correta
de falar de Deus. Eu arranquei-lhe a folha e queimei-a e a tia
Elizabeth zangou-se e quando eu lhe expliquei porque a raiva dela não
se acalmou. A Ilse diz que vai chamar Alá a Deus depois disto. Eu

94
também acho que é um nome mais bonito. É tão suave e não soa tão
rígido. Mas parece-me que não é suficientemente relijioso.

20 de Maio.

“Ontem foram os meus anos querido Pai. Daqui a pouco faz um ano que
cheguei a New Moon. Sinto-me como se sempre aqui tivesse vivido. Eu
cresci duas polegadas. O primo Jimmy mediu-me por uma marca na porta
da leitaria. O meu aniversário foi muito bom. A tia Laura fez-me um
lindo bolo e deu-me um lindo saiote novo com um folho bordado. Ela
tinha-lhe passado uma fita azul mas a tia Elizabeth fê-la tirá-la. A
tia Laura também me deu uma linda peça de brocado de cetim cor-de-rosa
que estava na gaveta da cómoda dela. Eu desejava-a desde que a vi mas
nunca esperei vir a tê-la. A Ilse perguntou-me o que é que eu pensava
fazer com ela mas eu não quero fazer nada. Só quero guardá-la aqui no
sótão com os meus outros tesouros e olhar para ela porque é linda. A
tia Elizabeth deu-me um dissionário. Foi um presente muito útil. Eu
achei que devia ter gostado. Daqui a pouco vai notar uma melhoria na
minha escrita, espero. O único problema é que quando eu estou a
escrever ficou tão empenhada que é horrível ter que parar e procurar
uma palavra para ver como se escreve. Eu vi o que queria dizer
contendo e vi que a Miss Brownell tinha razão. Eu fiz confusão com
comtemplo. O primo Jimmy deu-me um grande livro em branco. Eu estou
tão orgulhosa dele. Vai ser tão bom escrever peças lá. Mas eu vou
continuar a usar as folhas cor-de-rosa para lhe escrever a si, querido
pai, porque eu posso dobrá-las e endereçá-las a si como se fossem uma
carta de verdade. O Teddy deu-me um retrato meu. Ele pintou-o com
aguarelas e chamou-lhe A Rapariga Sorridente. Eu pareço estar a ouvir
qualquer coisa que me faz muito feliz. A Ilse diz que me favorece.
Realmente faz-me mais bonita do que sou mas não mais do que seria se
tivesse uma franja. O Teddy diz que vai pintar um retrato meu a sério
quando for grande. O Perry foi a pé até Shrewsbury para me comprar um
colar de missangas cor de pérola e perdeu-o. Ele não tinha mais
dinheiro por isso foi a casa em Stovepipe Town e pediu uma galinha à
tia Tom e deu-me. Ele é um rapaz muito persistente. Eu posso ficar com
todos os ovos que a galinha puser para vender ao homem dos ovos. A
Ilse deu-me uma caixa de doces. . Eu só vou comer um por dia para
durarem mais tempo. Eu quis que a Ilse comesse alguns mas ela disse
que era mau se ajudasse a comer um presente que me deu e eu insisti e
brigámos e a Ilse chamou-me uma largartôncia quadrúpede (que é
ridículo) que não tinha esperteza para entrar em casa quando estava a
chover. E eu disse-lhe que sabia o suficiente para ter boas maneiras
pelo menos. A Ilse ficou tão furiosa que foi para casa mas arrefeceu
logo e veio jantar conosco.
“Esta noite está a chover e soa como se houvessem fadas a dançar sobre
o telhado do sótão. Se não tivesse chovido o Teddy tinha vindo ajudar-
me a procurar o Diamante Perdido. Não era esplêndido se o
encontrássemos.
“O Primo Jimmy está a arranjar o jardim. Ele deixa-me ajudá-lo e tenho
um pequeno canteiro só para mim. A primeira coisa que faço de manhã é
ir a correr lá para fora para ver quanto cresceram as coisas desde
ontem. A Primavera é uma altura tão felicitadora não é Pai. As
pequenas Pessoas Azuis estão todas de fora em volta da casa de verão.
Isso é o que o primo Jimmy chama ás violetas e eu acho encantador. Ele
tem nomes assim para todas as flores. As rosas são as Rainhas e os
narcisos brancos são as Damas da Neve e as tulipas são a Gente Alegre
e os narcisos amarelos são os Dourados e as ásteres são As Minhas
Amigas Cor-de-rosa.
“O Mike II está aqui comigo, sentado no parapeito da janela. O Mike é
um gato finho (smee). Finho não está no dicionário. É uma palavra que

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eu inventei. Eu não consegui lembrar-me de nenhuma palavra que
descrevesse o Mike II por isso inventei esta. Quer dizer esguio e
brilhante e macio e fofo só numa palavra, e qualquer outra coisa que
não sei expressar.
“A tia Laura está-me a ensinar a coser. Ela diz que eu tenho que
aprender a fazer uma bainha invisível em musselina (tradissão). Eu
espero que ela me ensine a fazer renda de bilros um dia. Todos os
Murray de New Moon são conhecidos por fazer renda de bilros (Refiro-me
ás mulheres Murray). Nenhuma das meninas da escola sabem fazer renda
de bilros. A tia Laura diz que ela me vai fazer um lenço de renda de
bilros para quando eu me casar. Todas as noivas de New Moon tinham
lenços de renda de bilros menos a minha mãe que fugiu. Ma o pai não se
importou dela não ter pois não Pai. A tia Laura fala-me muito da minha
mãe mas não quando a tia Elizabeth está por perto. A tia Elizabeth
nunca fala no nome dela. A tia Laura queria mostrar-me o quarto da mãe
mas nunca conseguiu encontrar a chave do quarto porque a tia Elizabeth
tem-na escondida. A tia Laura diz que a tia Elizabeth gostava muito da
minha mãe. Podíamos achar que gostasse um bocadinho da filha dela não
é. Mas não gosta. Ela só me está a criar por obrigação.

"1 DE JUNHO.

"QUERIDO PAI:

“Este foi um dia muito importante. Eu escrevi a minha primeira carta.


Quero dizer a primeira carta que foi mesmo para os correios. Foi para
a tia-avó Nancy que vive em Priest Pond e é muito velha. Ela escreveu
à tia Elizabeth e disse que eu podia escrever de vez em quando a uma
pobre velha. O meu coração comoveu-se e eu quis escrever. A tia
Elizabeth disse Bem a podemos deixar. E ela disse-me a mim Tens que
ver se escreves uma carta bonita eu vou lê-la quando estiver
terminada. Se tu causares uma boa impressão na tia Nancy ela pode
fazer qualquer coisa por ti. Eu escrevi a carta com muito cuidado mas
não soava nada a mim quando a terminei. Eu não consegui escrever uma
boa carta por saber que a tia Elizabeth a ia ler. Senti-me paralizada.

"7 DE JUNHO.

“Querido Pai, a minha carta não causou uma boa impressão com a tia-avó
Nancy. Ela não me respondeu mas escreveu à tia Elizabeth e disse que
eu devia ser uma criança muito estúpida para escrever uma carta
igualmente estúpida. Eu senti-me insultada porque não sou estúpida. O
Perry diz que lhe apetecia ir a Priest Pond dar um murro na tia-avó
Nancy. Eu disse-lhe que não devia falar assim da minha família, e de
qualquer maneira não vejo como é que o murro lhe ia mudar a opinião em
relação a eu ser estúpida. (I
wonder what daylights are and how you knock them out of people.)
“Eu já tenho três cantos da Dama Branca terminados. Eu tenho a heroína
emparedada num convento e não sei como tirá-la de lá porque não sou
católica. Teria sido realmente melhor ter arranjado uma heroína
protestante mas não haviam protestantes no tempo da cavalaria. Eu
podia ter perguntado ao Lofty John no ano passado mas este ano eu não
posso porque nunca mais falei com ele desde que ele me pregou aquela
partida horrível com a maçã.
“Quando eu o encontro na estrada eu olho em frente tão altiva como
ele. Eu pús o nome dele ao meu porco para ficarmos quites. O primo
Jimmy deu-me um porquinho só para mim. Quando for vendido eu fico com
o dinheiro. Eu estou a pensar dar uma parte para os missionários e pôr

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o resto no banco para a minha educassão. E eu achei que se alguma vez
tivesse um porco lhe ia chamar tio Wallace. Mas agora não me parece
bem dar o nome de tios aos porcos mesmo se não gostarmos deles.
“O Teddy o Perry a Ilse e eu brincamos como se vivessemos nos dias da
cavalaria e a Ilse e eu somos donzelas em perigo resgatadas por
cavaleiros galantes. O Teddy fez uma armadura esplêndida de uma
barrica velha e depois o Perry fez um ainda melhor com panelas de lata
velhas marteladas com uma frigideira partida para capacete. Ás vezes
brincamos em Tansy Patch. Eu tenho a estranha sensação que a mãe do
Teddy me odeia este verão. No Verão passado ela só não gostava de mim.
O Smoke e o Buttercup já não estão cá. Eles desapareceram
misteriosamente no Inverno. O Teddy diz que tem a certeza que a mãe
dele os envenenou porque ele se estava a afeiçoar muito a eles. O
Teddy está a ensinar-me a assobiar mas a tia Laura diz que não é
próprio de uma menina. Há tantas coisas giras que não são proprias de
meninas. Ás vezes eu quase desejava que as minhas tias fossem infiéis
como o Dr. Burnley. Ele nunca se preocupa de a Ilse tem boas maneiras.
Mas não, não seria decente ser infiel. Não seria uma tradissão de New
Moon.
“Hoje ensinei ao Perry que não devia comer com a faca. Ele quer
aprender todas as regras de etiqueta. Eu estou a ajudá-lo a aprender
uma declamação para o dia do exame da escola. Eu queria que fosse a
Ilse a fazê-lo mas ela ficou furiosa porque ele me pediu primeiro a
mim e não quis. Mas devia ter querido porque ela é muito melhor a
declamar do que eu. Eu sou nervoza demais.

"14 DE JUNHO.

“Querido Pai, agora temos composição na escola e eu aprendi hoje que


pomos as coisas entre’’quando escrevemos qualquer coisa que alguém
disse. Eu não sabia isto antes. Eu tenho que ler todas as minhas
cartas para si e pô-los. E depois de uma pergunta temos que pôr um
sinal assim ? e quando uma letra é cortada temos que pôr um póstrofo
que é uma vírgula no ar. A Miss Brownell é sarcástica mas ela ensina-
nos as coisas. Eu estou a escrever isto porque quero ser justa embora
eu a odeie. E ela é interessante embora não seja simpática. Eu escrevi
uma descrissão dela numa folha cor-de-rosa. Eu gosto mais de escrever
sobre pessoas que não gosto do que sobre as que gosto. Vive-se melhor
com a tia Laura do que com a tia Elizabeth, mas ela é melhor para se
escrever. Eu consigo descrever os defeitos dela mas sinto-me má e
ingrata se não escrever qualquer coisa elogiosa sobre a querida tia
Laura. A tia Elizabeth trancou todos os seus livros e diz que eu só
posso ficar com eles quando for crescida. Como se eu não fosse ter
cuidado com eles, querido Pai. Ela diz que eu não tenho cuidado porque
ela descobriu que quando eu os lia punha uma pintinha pequenina a
lápiz por baixo de cada palavra bonita. Não fazia mal nenhum ao livro,
querido Pai. Algumas das palavras eram ressoar, perlado, salpicado,
intervalos, charneca, flauta, brilho, crepitante, marfim. Eu acho que
são todas palavras lindas, Pai.
“A tia Laura deixa-me ler a cópia dela do Progresso do Peregrino nos
Domingos. Eu chamo ao grande monte na estrada para a White Cross a
Montanha Deleitável porque é tão bonito.
“O Teddy emprestou-me três livros de poesia. Um era de Tennyson e eu
aprendi a Bugle Song de cor para que a tenha sempre comigo. O outro
era da senhora Browning. Ela é maravilhosa. Eu gostava de a conhecer.
Eu acho que em princípio a conheço quando morrer mas ainda pode
demorar tanto. O outro só tem um poema chamado Sohrab e Rustum. Depois
de ir para a cama chorei por causa dele. A tia Elizabeth disse “porque
é que estás a fungar?” Eu não estava a fungar – estava a chorar
desalmadamente. Ela obrigou-me a contar-lhe e depois disse ”Deves ser

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maluca.” Mas eu não consegui adormecer enquanto não consegui inventar
um fim diferente para ele, um final feliz.

"25 DE JUNHO.

QUERIDO PAI:

“Houve uma sombra negra sobre este dia. Eu deixei cair o meu cêntimo
na igreja. Fez um barulho horrível. Eu senti-me como se toa a gente
estivesse a olhar para mim. A tia Elizabeth ficou muito aborrecida. O
Perry deixou cair o dele logo a seguir. Ele disse-me depois do serviço
que tinha feito isso de propósito para eu me sentir melhor mas não
senti porque tive medo que as pessoas pensassem que era eu a deixá-lo
cair outra vez. Os rapazes fazem coisa tão estranhas. Eu espero que o
pastor não tivesse ouvido porque começo a gostar dele. Eu nunca gostei
muito dele antes da terça-feira passada. Na família dele são todos
rapazes por isso acho que ele não deve perceber muito de meninas.
Então ele veio a New Moon. A tia Laura e a tia Elizabeth estavam as
duas fora e eu estava sozinha na cozinha. O senhor Dare entrou e
sentou-se em cima da Saucy Sal que estava a dormir na cadeira de
baloiço. Ele estava confortável mas a Saucy Sal não. Ele não se sentou
na barriga dela. Se se tivesse sentado se calhar tinha-a matado.
Sentou-se só nas patas traseiras e na cauda. A Sal miou mas o senhor
Dare é um bocado surdo e não a ouviu e eu estava envergonhada demais
para lhe dizer. Mas o primo Jimmy entrou quando ele me estava a
perguntar se eu sabia o meu catecismo e disse “Catecismo, hã? Santo
Deus, homem, oiça esse pobre animal. Levante-se se é Cristão.” Por
isso o senhor Dare levantou-se e disse “Pois é, que coisa tão
estranha. Eu achei que tinha sentido qualquer coisa a mexer.”
“Eu achei que lhe devia escrever isto, querido pai, porque me pareceu
ser humoroso.
“Quando o senhor Dare acabou de me fazer perguntas eu achei que era a
minha vez de lhe perguntar umas coisa que há anos eu queria saber.
Perguntei-lhe se ele achava que Deus era muito picuinhas sobre cada
pequenina coisa que eu fazia e se ele achava que os meus gatos iam
para o céu. Ele disse que esperava que eu nunca fizesse coisas erradas
e que os animais não tinham alma. E eu perguntei-lhe porque é que não
se podia pôr vinho novo em garrafas velhas. A tia Elizabeth faz isso
com as garrafas de vinho de dente de leão e as velhas servem tão bem
como as novas. Ele explicou-me muito gentilmente que as garrafas da
Bíblia eram feitas de pele de cordeiro e que apodreciam quando ficavam
velhas. Isso esclareceu-me. Depois eu disse-lhe que estava preocupada
porque sabia que tinha que amar a Deus sobre todas as coisas mas
haviam coisa que eu amava mais do que a Deus. Ele disse “Que coisas?”
e eu disse flores e estrelas e a Dama do Vento e as Três Princesas e
coisas assim. E ele sorriu e disse “Mas essas coisa são todas parte de
Deus, Emily – todas as coisas belas são.” E de repente comecei a
gostar tanto dele e nunca mais me senti tímida. Ele fez um sermão
sobre o céu no Domingo passado. Pareceu-me um sítio muito aborrecido.
Eu acho que deve ser mais excitante que aquilo. Pergunto-me o que
farei quando for para o céu porque eu não sei cantar. Será que me
deixam escrever poesia? Mas eu acho que a igreja é interessante. A tia
Elizabeth e a tia Laura lêem sempre as Bíblias antes do serviço mas eu
gosto de ficar a olhar para as pessoas e imagino o que estarão a
pensar. É tão bom ouvir os vestidos de seda a resmalhar entre os
bancos. As ancas falsas estão muito na moda agora mas a tia Elizabeth
recusa-se a usar. A tia Laura usa uma muito pequena.
“Da sua Filha que o ama mais,
“Emily B. Starr.

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“P.S. Querido Pai, é maravilhoso escrever-lhe. Mas O, eu nunca tenho
uma resposta.
“E. B. S.”

PADRE CASSIDY

Reinava a consternação em New Moon. Toda a gente estava


desesperadamente infeliz. A tia Laura chorava. A Tia Elizabeth andava
tão impaciente que não se podia viver com ela. O primo Jimmy andava
por ali se estivesse perturbado e a Emily deixou de se preocupar com a
mãe da Ilse e com o fantasma arrependido do Silas Lee depois de se
deitar, e preocupava-se com este novo problema. Porque tudo tinha
começado com o seu desrespeito pelas tradições de New Moon ao visitar
o Lofty John, e a tia Elizabeth não a poupava quando lho dizia. Se
ela, Emily Byrd Starr, nunca tivesse ido à oficina do Lofty John nunca
teria comido a maça, e se ela nunca tivesse comido a maçã o Lofty John
não lhe teria pregado a partida e se ele não lhe tivesse pregado a
partida a tia Elizabeth nunca lhe teria ido dizer coisas amargas, à
Murray; e se a Tia Elizabeth nunca lhe tivesse dito coisa amargas à
Murray o Lofty John não teria ficado ofendido e com vontade de se
vingar; e se o Lofty John não se tivesse ofendido e com vontade de se
vingar não teria metido na sua cabeça altiva cortar o lindo bosque a
norte de New Moon.
Porque esta sucessão sucessiva de sucessos tinha aterrado sobre todos
eles. O Lofty John tinha anunciado publicamente na ferraria de Blair
Water que ia cortar o bosque assim que acabasse a ceifa – cada árvore
e rebento ia ser deitado abaixo. As notícias foram prontamente levadas
a New Moon e preocuparam os seus habitantes como há anos estes não se
preocupavam. Aos seus olhos, isto não era menos que uma catástrofe.
Elizabeth e Laura mas conseguiam acreditar naquilo. Era uma coisa
incrível. Aquele grande bosque denso e protector de abetos e pau-ferro
SEMPRE ali estivera; pertencia moralmente a New Moon; nem mesmo o
Lofty John Sullivan se atreveria a cortá-lo. Mas o Lofty John tinha a
desconfortável reputação de fazer tudo o que dizia; era uma parte da
sua altivez; e se ele o fizesse – se o fizesse –
“New Moon vai ficar arruinada,” chorava a pobre tia Laura. “Vai
parecer horrível – toda a sua beleza vai desaparecer – e vamos ficar
desabrigados do vento de norte e das tempestades do mar – sempre
estivemos tão abrigados e quentes aqui. E o jardim do Jimmy também vai
ficar arruinado.“
“Foi o que deu trazer para cá a Emily,” disse a tia Elizabeth.
Era uma coisa muito cruel para se dizer, mesmo com todos os descontos
dados cruel e injusta, porque a sua língua afiada e o sarcasmo dos
Murray tinham tido tanto que ver com o assunto como a Emily. Mas ela
disse-o e atingiu o coração de Emily com uma violência que deixou
cicatrizes durante anos. A pobre Emily achava que não precisava de
nenhum desgosto adicional. Ela já se sentia tão desgraçada que não
conseguia comer nem dormir. Elizabeth Murray, zangada e infeliz como
estava, dormia profundamente à noite; mas ao seu lado na escuridão,
com receio de se mexer ou virar, jazia uma criatura esguia cujas
lágrimas, correndo silenciosamente cara abaixo, não lhe aliviavam o
coração destroçado. Porque Emily achava que o seu coração estava
destroçado; ela não ia conseguir viver a sofrer assim. Ninguém
conseguiria.
Emily vivera tempo suficiente em New Moon para que o sítio se lhe
metesse no sangue. Talvez até tivesse nascido com ela. De qualquer
forma, quando ela lá chegou entrou na sua atmosfera que lhe servia
como uma luva. Ela amava tanto aquela quinta como se tivesse ali
vivido toda a sua curta vida – amava cada pau e pedra e árvore e folha
de erva nela – cada prego no velho chão da cozinha, cada almofada de

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musgo do telhado da leitaria, cada aquilégia branca e cor-de-rosa que
crescia no velho pomar, cada “tradissão” da sua história. Pensar que
poderia ser despojada de uma grande parte da sua beleza punha-a em
grande agonia. E imaginar o jardim do primo Jimmy arruinado! Emily
amava aquele jardim quase como ele; se era o orgulho da vida do primo
Jimmy conseguir ali ter plantas que não vingavam em mais nenhum sítio
da Ilse do Príncipe Eduardo; se o seu abrigo a norte fosse destruído
elas morreriam. E imaginar aquele lindo bosque só por si, cortado – a
Estrada de Hoje e a Estrada de Ontem e a Estrada de Amanhã a serem
varridas da existência – o altivo Monarca da Floresta destronado – a
pequena casa de brincar onde Ilse e ela passaram tantos momentos
gloriosos destruída – todo aquele lindo lugar cheio de fetos e
intimidade arrancado da sua vida de uma vez.
Oh, Lofty John tinha escolhido muito bem o local e a hora da sua
vingança!
Quando cairia o golpe? Todas as manhãs Emily escutava infelicíssima
parada nos degraus da cozinha, procurando o som de machados no limpo
ar de Setembro. Cada tarde ao voltar da escola temia ver que o
trabalho de destruição começara. Ela tremia e preocupava-se. Havia
alturas em que parecia já não conseguir suportar a vida. Todos os dias
a tia Elizabeth dizia qualquer coisa que lhe atribuía a culpa e a
criança ficava morbidamente sensível a tudo isso. Quase desejava que o
Lofty John começasse de uma vez. Se Emily alguma vez tivesse ouvido a
história clássica de Damocles teria empatizado completamente com ele.
Se ela tivesse alguma esperança que adiantasse alguma coisa ela teria
engolido todo o orgulho dos Murray e qualquer outro tipo de orgulho
também e teria ido pedir a Lofty John de joelhos que detivesse a sua
mão vingativa. Mas ela acreditava que não adiantaria. Lofty John não
tinha deixado ninguém com dúvidas no que respeita à sua amarga
determinação no assunto. Havia muitas conversas sobre o assunto em
Blair Water e alguns estavam bastante contentes com este golpe no
orgulho dos Murray, outros achavam que era um procedimento baixo e
sujo por parte de Lofty John, e todos concordavam que tinha que
acontecer uma coisa destas quando o feudo de três gerações entre
Murrays e Sullivans chegasse ao seu inevitável auge. A única coisa
surpreendente era que o Lofty John não o tivesse feito há muito tempo.
Ele sempre odiara a Elizabeth Murray desde os dias de escola, quando a
língua dela não o poupara.
Um dia nas margens do lago de Blair Water Emily sentou-se e chorou.
Ela tinha sido enviada para cortar as flores mortas da roseira da
campa da avó Murray; tendo terminado a sua tarefa não teve coragem de
voltar a casa onde a tia Elizabeth fazia toda a gente infeliz porque
se sentia ela própria assim. O Perry tinha afirmado que o Lofty John
dissera no dia anterior no ferreiro que ia começar a cortar o bosque
na segunda-feira de manhã.
“Eu não consigo suportar,” soluçou Emily para as roseiras.
Umas poucas de rosas tardias acenaram-lhe; a Dama do Vento penteou-se
e ondulou e levantou a longa relva verde das campas onde os orgulhosos
Murray, homens e mulheres, dormiam calmamente, imperturbados por
velhos feudos ou paixões; O sol de Setembro brilhava docemente mais
além nos campos ceifados, claro e sereno, e ronronava rodeando muito
suavemente as margens verdes e repletas de arbustos do lago azul de
Blair Water.
“Eu não vejo como é que Deus não impede o Lofty John,” disse Emily
apaixonadamente. Certamente que os Murray de New Moon podiam esperar
esse tanto da divina Providência.
Teddy veio assobiando pela pastagem abaixo, com as notas da sua
melodia soprando através da água de Blair Water como élficas gotas de
som, saltou a vedação do cemitério e instalou o seu corpo magro e
gracioso irreverentemente no “Eu fico aqui” da campa rasa da tetravó
Murray.

100
“O que é que se passa?” perguntou.
“Tudo,” disse Emily, um pouco chateada. O Teddy não tinha nada que
estar tão animado. Ela estava habituada a mais compreensão por parte
do Teddy e aborreceu-se por não a encontrar. “Não sabes que o Lofty
John vai começar a cortar o bosque na segunda-feira?”
Terry acenou afirmativamente.
“Sim. A Ilse disse-me. Mas olha lá, Emily, eu pensei numa coisa. O
Lofty John não se ia atrever a cortar o bosque se o padre lhe dissesse
que não o fizesse, não achas?”
“Porquê?”
“Porque os católicos têm que fazer o que os padres deles mandam, não
é?”
“Eu não sei – eu não sei nada sobre eles. Nós somos presbiterianos.”
Emily deu um pequeno aceno de cabeça. A senhora Kent era da Igreja
Anglicana e apesar do Teddy ir à escola dominical presbiteriana esse
facto dava-lhe pouca ascendência sobre os círculos de presbiterianos
natos.
“Se a tua tia Elizabeth fosse falar com o Padre Cassidy à igreja de
White Cross e lhe pedisse que impedisse o Lofty John, ele talvez o
fizesse,” insistiu Teddy.
“A tia Elizabeth nunca faria isso,” disse Emily convencida. “Tenho a
certeza. Ela é orgulhosa demais.”
“Nem mesmo para salvar o bosque?”
“Nem mesmo por isso.”
“Então acho que não há nada a fazer,” disse o Teddy um pouco
desanimado. “Olha, vê o que eu fiz. Isto é um desenho do Lofty John no
purgatório, com três demónios pequenos a espetarem-lhe garfos em
brasa. Eu copiei-os de um livro da Mãe – o Inferno de Dante, acho que
é – mas eu pus o Lofty John no lugar do homem do livro. Podes ficar
com ele.”
“Eu não o quero.” Emily descruzou as pernas e levantou-se. Já tinha
passado do estádio em que infligir tormentos imaginários a Lofty John
a poderia reconfortar. Já o tinha assassinado de várias formas
agonizantes durante as suas vigílias nocturnas. Mas tinha-lhe surgido
uma ideia – uma ideia atrevida de tirar o fôlego. “Eu tenho que ir
para casa agora, Teddy – é hora de jantar.”
Teddy meteu o desenho desprezado no bolso – e este era realmente um
grande desenho se algum deles tivesse capacidade para avaliar: o ar de
angústia na cara do Lofty John quando o diabinho lhe espetava o garfo
teria desesperado muitos artistas experientes. Ele foi para casa
desejando poder ajudar a Emily; era tão errado que uma criatura como a
Emily – com suaves olhos cinza púrpura e um sorriso que nos fazia
pensar em todos os tipos de coisas maravilhosas que não se podia
passar para palavras – pudesse estar tão infeliz. Teddy sentia-se tão
preocupado com isso que acrescentou mais uns demónios ao desenho do
Lofty John no purgatório e aumentou o tamanho dos garfos de forma
considerável.
Emily foi para casa com uma expressão determinada na boca. Comeu tanto
quanto pode – e não foi muito, porque a cara da tia Elizabeth teria
destruído o seu apetite se o tivesse – e depois esgueirou-se para fora
de casa pela porta da frente. O primo Jimmy estava a trabalhar no
jardim da frente mas não a chamou. O primo Jimmy agora andava sempre
muito triste. Emily ficou uns momentos no alpendre grego e olhou para
o bosque do Lofty John – pleno de verde, ondulando, tão lindo. Seria
um campo profanado cheio de cotos de árvore na Segunda-feira à noite?
Impelida pela ideia Emily pôs de lado o medo e a hesitação e começou o
seu caminho alameda abaixo. Quando chegou ao portão virou à esquerda
para a longa estrada vermelha e misteriosa que ia até à Montanha
Deleitável. Ela nunca tinha andado por aquela estrada; ia direita à
igreja de White Cross; Emily ia à casa paroquial falar com o Padre
Cassidy. Eram duas milhas até White Cross e Emily andou-as muito

101
depressa – não porque fosse uma estrada linda cheia de ventos e fetos
e assombrada por pequenos coelhos – mas porque temia o que a aguardava
no fim. Ela tinha tentado pensar no que ia dizer – como o deveria
dizer; mas a sua imaginação abandonava-a. Ela nunca conhecera padres
católicos, e não imaginava como deveria falar com eles. Eram ainda
mais misteriosos e inimagináveis que os pastores. Imaginem se o padre
Cassidy fosse ficar muito zangado por ela lá ir pedir-lhe um favor.
Talvez fosse uma coisa horrível de fazer em todos os pontos de vista.
E o mais certo era não adiantar nada. O mais certo era o padre Cassidy
recusar-se a interferir com o Lofty John, que era um bom católico,
enquanto que ela era, na sua opinião, uma herege. Mas por uma
hipótese, por mais ténue que fosse, de evitar a calamidade que
ameaçava New Moon, Emily teria enfrentado a Sagrada Inquisição.
Horrivelmente assustada, miseravelmente nervosa como estava, a ideia
de voltar para trás nunca lhe ocorreu. Ela apenas tinha pena de não
ter posto o colar de contas venezianas. Poderiam impressionar o Padre
Cassidy.
Apesar de Emily nunca ter estado em White Cross reconheceu a casa
paroquial quando a viu – uma residência bonita, rodeada de árvores
perto da grande capela branca com a brilhante cruz dourada no cimo e
quatro pequenos anjos dourados, um em cada uma das pequenas torres aos
cantos. Emily achou-os muito bonitos enquanto brilhavam à luz do sol
descendente, e desejava que pudessem ter alguns na sua igreja simples
de Blair Water. Ela não compreendia porque é que os católicos ficavam
com os anjos todos. Mas não havia tempo para se debruçar sobre esta
questão, porque a porta estava a abrir-se e a pequena criada muito
arrumada estava à espera da sua pergunta.
“O – Padre Cassidy – está – em casa?” perguntou Emily, um pouco
desconjuntadamente.
“Sim.”
“Posso – falar – com ele?”
“Entra,” disse a pequena criada. Evidentemente não haviam dificuldades
para ver o padre Cassidy – nenhuma cerimónia misteriosa como Emily
tinha mais ou menos esperado, no caso de o poder chegar a ver. Ela foi
levada para uma sala cheia de livros e deixada lá, enquanto a criada
foi chamar o padre Cassidy, que, como ela disse, estava a trabalhar no
jardim. Isso soava-lhe natural e encorajador. Se o padre Cassidy
trabalhava no jardim, não podia ser tão terrível.
Emily olhou em volta curiosa. Estava numa sala muito bonita – com
cadeiras confortáveis e quadros e flores. Nada de alarmante ou
estranho ali – excepto um enorme gato preto que estava sentado no cimo
de uma das estantes. Era realmente uma criatura enorme. Emily adorava
gatos e sentia-se à vontade com qualquer que fosse. Mas ela nunca
tinha visto um gato como este. Com o seu tamanho e os seus olhos
insolentes de cor dourada, postos como jóias vivas no seu rosto negro
de veludo, não parecia pertencer à mesma espécie que os gatinhos
mansos, meigos e fofinhos. O senhor Dare nunca teria um animal assim
na sua casa paroquial. Todo o terror que Emily sentira pelo padre
Cassidy voltou.
E nessa altura entrou o padre Cassidy, com o sorriso mais simpático do
mundo. Emily avaliou-o com um olhar como era seu hábito – ou dom – e
nunca mais teve o mais mínimo receio do padre Cassidy. Ele era alto e
tinha ombros largos, com olhos e cabelos castanhos; o seu rosto estava
tão bronzeado do sol que era castanho também. Emily achou que ele
parecia uma grande noz – uma grande noz castanha e sadia.
O Padre Cassidy olhou para ela enquanto lhe apertava as mãos; Emily
teve uma visita da beleza nessa altura. A excitação tinha-lhe trazido
um tom de rosa selvagem ao rosto, o sol realçava o brilho sedoso do
seu cabelo negro; os seus olhos estavam suavemente escuros e límpidos;
mas foi pelas suas orelhas que o Padre Cassidy se dobrou para

102
observar. Emily interrogou-se por um momento de agonia se estariam
limpas.
“Ela tem orelhas pontiagudas,” disse o padre Cassidy, num murmúrio
encantado. “Orelhas pontiagudas! Eu sabia que ela tinha vindo directa
da terra das fadas no momento em que a vi. Senta-te Elfa – se as elfas
se sentam – senta-te e dá-me as últimas notícias da corte de Titânia.”
Os pés de Emily estavam agora bem assentes no seu solo nativo. O Padre
Cassidy falava a sua linguagem e tinha uma voz tão suave, pronunciando
as palavras como devia um verdadeiro irlandês. Mas ela abanou a cabeça
tristemente. Com o peso do dever nos seus ombros não podia desempenhar
o seu papel de embaixadora das fadas.
“Eu sou só a Emily Starr de New Moon,” disse; e depois gaguejou à
pressa, porque não deviam haver enganos – nenhuma ideia de se passar
por aquilo que não era, ”e sou protestante.”
“E és uma bela protestante,” disse o padre Cassidy. “Mas de verdade
que fico um pouco desapontado. Eu estou habituado aos protestantes –
os bosques aqui em volta estão cheios deles – mas há mais de cem anos
que um elfo não me visita.”
Emily ficou a olhar. Certamente que o padre Cassidy não tinha cem
anos. Não parecia ter mais de cinquenta. Mas talvez os padres
católicos vivessem mais do que as outras pessoas. Ela não sabia bem o
que dizer, por isso começou, um pouco hesitante,
“Vejo que tem um gato.”
“Não.” O Padre Cassidy abanou a cabeça e gemeu tristemente. “Há um
gato que me tem a mim.”
Emily desistiu de tentar entender o padre Cassidy. Ele era simpático
mas incompreensível. Não ia pensar mais nisso. Tinha que prosseguir
com a sua tarefa.
“O senhor é uma espécie de pastor, não é?” perguntou timidamente. Ela
não sabia se o padre Cassidy iria gostar de ser chamado de pastor.
“Uma espécie, sim,” concordou amigavelmente. “E sabes que os pastores
e os padres não podem dizer blasfémias. Têm que ter gatos que as digam
por eles. Eu nunca vi nenhum gato que blasfemasse tão gentil e
eficazmente como o B’y.”
“É assim que lhe chama?” perguntou Emily, olhando para o gato preto
com assombro. Não lhe parecia muito seguro falar dele na sua cara.
“É o que ele chama a si mesmo. A minha mãe não gosta dele porque lhe
rouba as natas. Agora eu não me importo que ele faça isso; não, é a
maneira como ele lambe as patas depois que eu não suporto. Oh, B’y,
temos uma fada a visitar-nos. Entusiasma-te por uma vez, imploro-te –
ora aí está um belo gato.”
O B’y recusou-se a ficar entusiasmando. Piscou um olho insolente a
Emily.
“Tens a mais pequena ideia do que se passa na mente de um gato, Elfa?”
Que perguntas tão estranhas fazia o padre Cassidy. Ainda assim, Emily
teria gostado das suas perguntas se não estivesse tão preocupada. De
repente o padre Cassidy inclinou-se sobre a mesa e disse,
“Então, o que é que te preocupa?”
“Eu estou tão infeliz,” disse Emily dando pena.
“Tu e montes de outras pessoas. Toda a gente está infeliz, de vez em
quando, mas as criaturas que têm orelhas ponte agudas não devem estar
infelizes. Só os mortais é que devem estar.”
“Oh, por favor, por favor –“ Emily perguntava-se como havia de o
tratar. Ofenderse-ia se uma protestante lhe chamasse padre? Mas ela
teve que se arriscar – “por favor Padre Cassidy, eu tenho um problema
tão grande e vim pedir-lhe um grande favor.”
Emily contou-lhe toda a história do princípio ao fim – o velho feudo
entre Murray e Sullivan, a sua amizade com Lofty John, a grande maçã
doce, a infeliz consequência, e a ameaça de vingança do Lofty John. O
B’y e o Padre Cassidy ouviram-na com igual gravidade até que ela

103
terminasse. Então o B’y piscou-lhe o olho mas o Padre Cassidy juntou
os seus longos dedos castanhos.
“Humph,” disse.
(“Foi a primeira vez,” reflectiu Emily, “que ouvi uma pessoa dizer
‘Humpf.’ fora de um livro.)
“Humpf.” Disse o Padre Cassidy novamente. “E tu queres que eu ponha
fim a essa acção nefanda?”
“Se puder,” disse Emily. “Oh, seria esplêndido se pudesse. Vai fazê-
lo, vai?”
O Padre Cassidy encaixou os seus dedos ainda mais cuidadosamente.
“Receio que não possa invocar o poder das chaves para impedir o Lofty
John de fazer o que ele quer com a sua propriedade legítima, sabes
Elfa.”
Emily não compreendeu a alusão ás chaves mas compreendeu que o padre
Cassidy declinava a ideia de usar a alavanca da igreja para demover o
Lofty John. Não havia esperança, então. Ela não conseguia impedir que
lágrimas de desilusão lhe corressem cara abaixo.
“Oh, então querida, não chores,” implorou o Padre Cassidy. “Os Elfos
nunca choram – não podem. Ias partir-me o coração se descobrisse que
não eras do Povo Verde. Podes-te dizer de New Moon e da religião que
quiseres, mas o facto é que pertences à Era Dourada e aos velhos
deuses. É por isso que tenho que salvar o teu precioso pedaço de
bosque.
Emily ficou a olhar.
“Eu acho que pode ser feito,” continuou o Padre Cassidy. “Eu acho que
se for ter uma conversa de homem para homem com o Lofty John lhe
consigo fazer ver as coisas. Eu e o Lofty John somos bons amigos. Ele
é uma criatura razoável, se soubermos como o levar – o que significa
alimentar-lhe bem a vaidade. Vou-lhe por o assunto não como pároco
para paroquiano, mas de homem para homem, porque nenhum irlandês que
se preze mantém feudos com mulheres e que nenhuma pessoa sensata
destrói por nada a não ser uma zanga aquelas lindas árvores antigas
que levaram meio século a crescer e que nunca seriam substituídas. O
homem que corta árvores daquelas excepto quando é mesmo necessário
devia ser enforcado tão alto como Haman, numa forca feita com a
madeira delas.”
(Emily pensou que tinha que escrever esta última frase do padre
Cassidy no livro em branco do primo Jimmy assim que chegasse a casa.)
“Mas eu não vou dizer isso ao Lofty John,” concluiu o Padre Cassidy.
“Sim, Emily de New Moon, acho que podes tomar como certo que o teu
bosque não vai ser cortado.”
De repente, Emily sentiu-se muito feliz. Ela tinha por qualquer razão
ma confiança plena no padre Cassidy. Tinha a certeza que ele ia dar a
volta ao Lofty John.
“Oh, nunca lhe conseguirei agradecer!” disse sinceramente.
“Isso é verdade, por isso não vale a pena tentar. E agora conta-me
coisas. Ainda há muitos como tu? E há quanto tempo existe tu?”
“Eu tenho doze anos – e não tenho irmãos nem irmãs. E eu acho que é
melhor ir para casa.”
“Não sem teres comido alguma coisa.”
“Oh, obrigada, eu já jantei.”
“Há duas horas e andaste duas milhas desde aí. Não me digas. Eu tenho
pena de não ter néctar nem ambrósia à mão – ou outra comida de elfos –
nem mesmo um pires de luz de lua – mas a minha mãe faz o melhor bolo
de ameixa da Ilha do Príncipe Eduardo. E nós temos uma vaca leiteira.
Espera um bocadinho. Não tenhas medo do B’y. Ele ás vezes come uns
protestantes tenrinhos mas nunca se mete com duendes.”
Quando o Padre Cassidy voltou a sua mãe vinha com ele, trazendo um
tabuleiro. Emily tinha esperado que ela fosse grande e castanha
também, mas ela era a mulher mais pequena que se possa imaginar, com

104
um cabelo sedoso, branco como a neve, olhos azuis-claros e bochechas
rosadas.
“Não é a coisa mais adorável para mãe?” perguntou o Padre Cassidy. “Eu
tenho-a cá só para olhar para ela. Claro –“o padre Cassidy baixou o
tom de voz até ficar reduzida a um murmúrio – “que ela tem qualquer
coisa de estranho. Eu já vi esta mulher parar a meio das limpezas e
sair para passar a tarde nos bosques. Como tu, parece-me que ela tem
qualquer coisa com as fadas.”
A senhora Cassidy sorriu, beijou Emily, disse que tinha que ir acabar
as suas conservas e saiu.
“Agora senta-te aqui, Elfa, faz de conta que és humana por dez minutos
para fazer-mos um lanche amigável.”
Emily tinha fome – uma sensação boa e confortável que não
experimentava há uns dias. O bolo de ameixa da senhora Cassidy estava
à altura dos elogios do seu reverendo filho, e as natas não eram mito.
“O que é que achas de mim agora?” perguntou subitamente o padre
Cassidy, apercebendo-se dos olhos de Emily fixos em si de forma
especulativa.
Emily corou. Ela tinha-se estado a interrogar se se atreveria a pedir
um novo favor ao Padre Cassidy.
“Eu acho que o senhor é muito bom,” disse.
“Eu sou muito bom,” concordou o Padre Cassidy. “Sou tão bom que vou
fazer o que tu queres que eu faça – porque me parece que há outra
coisa que me queres pedir.”
“Eu tenho um problema e tenho-o tido todo o Verão. O senhor sabe”—
Emily estava muito séria—“eu sou poetisa.”
“Santo Deus! Isso é sério. Eu não sei se poderei fazer alguma coisa
por ti. Há quanto tempo te aconteceu isso?”
“Está a fazer pouco de mim?” perguntou Emily com gravidade.
O Padre Cassidy engoliu qualquer coisa para além do bolo de ameixa.
“Que os santos nos defendam! É sou que estou surpreendido. Receber uma
menina de New Moon – e uma elfa – e uma poetisa tudo na mesma pessoa é
um bocado demais para um padre humilde como eu. Come outra fatia de
bolo e conta-me tudo.”
“É o seguinte – eu estou a escrever um épico.”
O Padre Cassidy inclinou-se subitamente para a frente e deu um pequeno
beliscão no pulso de Emily.
“Eu só queria ver se eras real,” explicou. “Sim – sim, estás a
escrever um épico – continua. Eu acho que já recuperei o fôlego.”
“Comecei-o na primavera passada. Chamei-lhe “A Dama Branca” primeiro
mas agora mudei o nome para A Filha do Mar. Não acha que é um título
melhor?”
“muito melhor.”
“Eu já tenho três cantos, e não consigo avançar mais porque há uma
coisa que eu não sei e não sou capaz de descobrir. Tenho estado tão
preocupada com isto.”
“O que é?”
“O meu épico,” disse Emily, devorando o bolo de ameixa
diligentemente,” é acerca de uma linda rapariga de elevado nascimento
que foi roubada dos seus verdadeiros pais quando era bebé e que foi
criada na cabana de um lenhador.”
“Um dos sete argumentos originais do mundo,” murmurou o Padre Cassidy.
“Como?”
“Nada. É só o meu velho hábito de pensar alto. Continua.”
“Ela tinha um noivo de alta estirpe mas a família dele não queria que
eles se casassem porque ela era filha de um lenhador—“
“mais um dos sete argumentos—desculpa-me.”
“—por isso mandaram-no para a Terra Santa numa cruzada e veio a
notícia que ele tinha morrido e Editha – o nome dela era Editha—entrou
para um convento—“

105
Emily parou para comer um bocadinho de bolo de ameixa e o Padre
Cassidy continuou-lhe o raciocínio.
“E depois o noivo dela regressou bem vivo, embora coberto de
cicatrizes, e o segredo do nascimento dela é descoberto pela confissão
da parteira no seu leito de morte e do sinal de nascimento que ela tem
no braço.”
“Como é que soube?” gaguejou Emily deslumbrada.
“Oh, adivinhei—eu sou bom a adivinhar coisas. Mas qual é o teu
problema nisto tudo?”
“Eu não sei como é que a hei-de tirar o convento,” confessou Emily.
“Eu achei que talvez o senhor me pudesse dizer como é que hei-de
fazer.”
Mais uma vez, o padre Cassidy juntou os dedos.
“Deixa-me ver. Não é uma tarefa fácil, essa em que te meteste, menina.
Como é que ficamos? Editha tomou o hábito, não por ter vocação
religiosa mas porque imagina que o seu coração está despedaçado. A
Igreja Católica não liberta as suas freiras dos seus votos por elas
terem feito uma pequena confusão desse género. Não, não—temos que ter
uma razão melhor. Esta Editha é filha única dos pais verdadeiros?”
“Sim.”
“Oh, então está resolvido. Se ela tivesse irmãos ou irmãs terias que
os matar, o que é sempre uma trapalhada. Bem, então se ela é filha
única e herdeira de uma família nobre que há anos mantém um feudo de
morte com outra família nobre—a família do noivo. Sabes o que é um
feudo?”
“Claro,” disse Emily desdenhosa. “E já tenho tudo isso no meu poema.”
“Ainda bem. Este feudo dilacerou o reino e só se pode resolver com uma
aliança entre os Capuleto e os Montague.”
“Mas não são esses os nomes deles.”
“Não interessa. Este é então um assunto de interesse nacional com
consequências de monta, e por isso justifica-se um apelo ao Sumo
Pontífice. O que tu precisas,” o padre Cassidy acenou solenemente, “é
de uma dispensa de Roma.”
“Uma dispensa é um termo difícil de pôr num poema,” disse Emily.
“Sem dúvida. Mas as jovens meninas que escrevem épicos em que as
coisas se passam há centenas de anos, e escolhem heroínas de uma
religião que lhes é completamente desconhecida, têm que estar à espera
de algumas dificuldades.”
“Oh, eu acho que vou ser capaz de lhe dar a volta,” disse Emily muito
alegre. “E fico-lhe muito agradecida. Não sabe o alívio que foi para a
minha mente. Eu agora vou acabar o poema em poucas semanas. Não
consegui fazer nada todo o verão. Mas claro também estive ocupada. A
Ilse Burnley e eu temos estado a inventar uma nova linguagem.”
“A inventar uma nova—desculpa lá. Disseste linguagem?”
“Sim.”
“Mas que problema é que vêm no Inglês? Não é suficientemente bom para
ti, minha pequena incompreensível?”
“Oh, é. Não é por isso que estamos a fazer uma nova. Sabe que na
primavera, o primo Jimmy contratou uns poucos de rapazes franceses
para o ajudarem a plantar as batatas. Eu também tive que ajudar e a
Ilse vinha muitas vezes para me fazer companhia. E era tão irritante
ouvir os rapazes falar francês quando nós não percebíamos uma palavra
do que diziam. Que confusão de língua! Por isso a Ilse e eu decidimos
inventar uma língua nova que eles não percebessem. Estamos a fazer
muitos progressos e quando chegar a altura de apanhar as batatas vamos
conseguir falar uma com a outra sem que os rapazes percebam uma
palavra do que dizemos. Oh, vai ser tão divertido!”
“Não duvido. Mas duas meninas que se dão ao trabalho de inventar uma
nova linguagem só para se vingarem de uns pobres rapazes franceses—
vocês ultrapassam-me,” disse o Padre Cassidy impotente. “Sabe deus o

106
que vão fazer quando crescerem. Talvez venham a ser Rebeldes
Vermelhas. Temo pelo futuro do Canadá.”
“Oh, mas não é trabalho nenhum—é divertido. E todas as raparigas da
escola estão doidas porque nos ouvem falar e não conseguem perceber.
Nós dizemos segredos mesmo à frente delas.”
“Sendo a natureza humana o que é posso ver de onde vem o divertimento.
Deixa-me lá ouvir uma amostra da tua língua.”
"Nat millan O ste dolman bote ta Shrewsbury fernas ta poo litanos,"
disse Emily rapidamente. "Quer dizer, 'No próximo Verão eu vou à mata
de Shrewsbury apanhar morangos.' Eu outro dia gritei isso para a Ilse
do outro lado do pátio da escola ao intervalo e ficaram todas com uma
cara!”
“Ficaram, foi? Eu também ficava. Os meus pobres olhos estão a saltar-
me as órbitas. Deixa-me lá ouvir mais um bocado.”
"Mo tral li morto seb ad li mo trene. Mo bertral seb mo bertrene
das sten mortos e ting setra. Isto quer dizer ‘O meu Pai está morto e
a minha mãe também. O meu avô e a minha avó estão mortos há muito
tempo.” Nós ainda não inventámos uma palavra para morto. Eu acho que
em breve vou ser capaz de escrever os meus poemas na nossa nova língua
e nessa altura a tia Elizabeth não vai ser capaz de os ler se os
descobrir.”
“E escreveste mais poesias para além do épico?”
“Oh, sim—mas só pequenas peças—dúzias delas.”
“H’m. E eras amável ao ponto de me recitares uma?”
Emily ficou muito lisonjeada. E não se importava nada de deixar o
Padre Cassidy ouvir as suas preciosas criações.
“Vou-lhe recitar o meu último poema,” disse, pigarreando para limpar a
voz muito importante. “Chama-se Sonhos Nocturnos.”
O Padre Cassidy ouviu muito atentamente. Depois do primeiro verso deu-
se uma mudança na sua expressão e começou a bater os dedos uns nos
outros. Quando Emily terminou baixou os olhos e esperou humildemente.
E se o Padre Cassidy dissesse que os seus versos não prestavam? Não,
ele não seria tão mal educado-—mas se brincasse com ela como fizera
sobre o seu épico—-ela saberia o que isso significava.
O Padre Cassidy não falou logo. O suspense prolongado foi terrível
para Emily. Ela tinha receio que ele não tivesse gostado e não lhe
quisesse magoar os sentimentos dizendo-lho. De repente, os seus
‘Sonhos Nocturnos’ pareceram-lhe lixo e perguntava-se como tinha sido
tola em dizê-los perante o padre Cassidy.
Claro que eram maus. O Padre Cassidy bem o via. Mas ao mesmo tempo,
para uma criança como esta-—e a rima e o ritmo não tinham falhas--e
havia um verso—-apenas um verso-—“a luz das estrelas tenuemente
douradas”—-por causa desse verso o Padre Cassidy disse repentinamente,
“Continua—-continua a escrever poesia.”
“Quer dizer--?” Emily estava sem fôlego.
“Quero dizer que és capaz de conseguir alguma coisa com o tempo.
Alguma coisa--eu não sei quanto--mas continua—-continua.”
Emily ficou tão feliz que quase lhe apetecia chorar. Era o primeiro
elogio que recebia de um adulto que não fosse o seu pai--e um pai
podia ter uma opinião muito própria. Isto era diferente. Até ao fim da
sua luta para se afirmar Emily nunca se esqueceu do “continua” do
Padre Cassidy, nem do tom com que o disse.
“A tia Elizabeth ralha-me por escrever poesia,” disse com tristeza.
“Ela diz que as pessoas vão achar que sou tão simples como o primo
Jimmy.”
“O caminho dos génios nunca foi suave. Mas toma outra fatia de bolo--
toma, só para eu ver que tens qualquer coisa de humano.”
"Ve, merry ti. O del re dolman cosey aman ri sen ritter. Isto quer
dizer,’Não, obrigada. Eu tenho que ir para casa antes que fique
escuro.’”
“Eu levo-te a casa.”

107
“Oh, não, não. È muito gentil da sua parte”--a língua inglesa servia
bastante bem a Emily agora,”mas prefiro ir a pé. É—é—um exercício tão
agradável.”
“Queres com isso dizer,” disse o padre Cassidy com um piscar de
olho,”que isto tem que ser segredo para a velhota? Adeus, e que vejas
sempre uma cara alegre ao espelho!”
Emily estava demasiado feliz para se cansar no caminho para casa.
Parecia ter uma bolha de alegria no coração—uma bolha brilhante e
prismática. Quando chegou ao cimo do grande monte e olhou para New
Moon, os seus olhos estavam satisfeitos e cheios de amor. Que linda
era, jazendo rodeada de velhas árvores; as pontas dos abetos mais
altos destacavam-se como silhuetas púrpura contra o céu de noroeste
rosa e âmbar; lá em baixo por detrás estava o lago de Blair Water
sonhando em prata; a Dama do Vento tinha dobrado as suas asas
enevoadas num vale de pôr-do-sol e uma quietude espalhava-se pelo
mundo como uma bênção. Emily teve a certeza que tudo acabaria bem. O
Padre Cassidy trataria disso à sua maneira.
E ele tinha-lhe dito que continuasse.

AMIGOS NOVAMENTE

Emily estivera muito atenta na segunda-feira de manhã, mas não se


ouviam sons de machado nem poderosos golpes de martelo vindos do
bosque do Lofty John. Nessa tarde quando voltava a casa da escola, o
próprio Lofty John se aproximou dela com o buggy e pela primeira vez
desde a noite da maçã parou e abordou-a.
“Aceita uma boleia, Miss Emily de New Moon?” perguntou afavelmente.
Emily trepou para dentro, sentindo-se um pouco palerma. Mas o Lofty
John parecia muito amigável enquanto segurava as rédeas do seu cavalo.
“Então roubaste o coração do Padre Cassidy, ‘O pedaço mais doce de
rapariga que eu já vi’, disse-me ele a mim. Bem podias ter deixado o
pobre do padre em paz.”
Emily observou o Lofty John pelo canto do olho. Não parecia zangado.
“E puseste-me a mim num lindo sarilho,” continuou. “Eu sou tão
orgulhoso como qualquer Murray de New Moon e a tua Tia Elizabeth
disse-me uma série de coisas que me ficaram na cabeça. Eu tenho muitas
contas antigas a ajustar com ela. Por isso achei que podia acertá-las
cortando o bosque. E tu tinhas que lá ir meter-te com o meu padre por
causa disso e agora com certeza que não me vou atrever a cortar um
galho que seja para aquecer a minha carcaça trémula sem ter que pedir
autorização ao Papa.”
“Oh, senhor Sullivan, de verdade que não vai cortar o bosque?” disse
Emily sem fôlego.
“Tudo depende de si, Miss Emily de New Moon. Não pode esperar que o
Lofty John seja humilde demais. Não foi pela minha mansidão que ganhei
este nome.”
“O que quer que eu faça?”
“Em primeiro lugar, vamos deitar para trás das costas aquele assunto
da maçã. E por causa disso venham ver-me de vez em quando para
conversarmos como faziam no verão passado. É bem verdade que tive
saudades tuas—tuas e daquela diaba da Ilse que também nunca mais veio
porque achou que eu te tinha tratado mal.”
“Eu vou, com certeza,” disse Emily ainda em dúvida,” se a tia
Elizabeth me deixar.”
“Diz-lhe que se não deixar o bosque vai à vida--até ao último pau.
Isso arruma-a. E mais uma coisa. Tu tens que me pedir mesmo meiga e
educada o favor de não cortar o bosque. Se o fizeres bem não toco nem
numa árvore. Mas se não, lá se vão elas, com padre ou sem padre,”
concluiu Lofty John.

108
Emily apelou a toda a sua vontade em seu auxílio. Juntou as mãos,
olhou para cima através das pestanas para o Lofty John, sorriu tão
lenta e sedutora como conseguiu--e Emily tinha já um certo
conhecimento do género. “Por favor, senhor Lofty John,” pediu, ”não me
vai deixar o querido bosque de que tanto gosto?”
Lofty John tirou o seu velho chapéu de feltro amolgado. “Com certeza
que deixo. Um irlandês decente faz sempre o que uma senhora lhe pede.
É bem verdade que tem sido a nossa ruína. Estamos à mercê dos saiotes.
Se me tivesses pedido isto antes não tinhas tido que andar até White
Cross. Mas vê lá se manténs o resto do acordo. As vermelhas estão
maduras as esburacadas não tardam--e os ratos foram todos arrumados.”
Emily voou para a cozinha de New Moon como um remoinho esguio.
“Tia Elizabeth, o Lofty John já não vai cortar o bosque--ele disse-me
que não cortava--mas eu tenho que o ir ver de vez em quando--se não
tiver nada em contrário.”
“E se tivesse também não te devia fazer grande diferença,” disse a tia
Elizabeth. Mas a sua voz não era amarga como habitual. Ela não
confessaria quanto ficara aliviada pela notícia de Emily; mas adoçou-
lhe consideravelmente a atitude. “Está aqui uma carta para ti. Eu
quero saber o que significa isto.”
Emily apanhou a carta. Era a primeira vez que recebia uma carta
verdadeira dos correios e tremia deliciada com o momento. Estava
endereçada com uma letra escura e carregada a “Miss Emily Starr, New
Moon, Blair Water." Mas--
“A senhora abriu-a!” exclamou indignada.
“Claro que abri. Tu não vais receber cartas sem que eu as veja,
menina. O que eu quero saber é—-como é que o Padre Cassidy te está a
escrevera ti--e porque é que escreve todos esses disparates?”
“Eu fui falar com ele no Sábado,” confessou Emily, apercebendo-se que
não valia a pena disfarçar. “E pedi-lhe que tentasse impedir o Lofty
John de cortar o bosque.”
“Emily—-Byrd--Starr!”
“Eu disse-lhe que era protestante,” exclamou Emily. “Ele compreendeu
tudo. E é uma pessoa como as outras. Gostei mais dele do que do senhor
Dare.”
A tia Elizabeth não falou muito mais. Não parecia haver muito mais a
dizer. Além disso o bosque não ia ser cortado. A portadora de boas
notícias foi bastante perdoada. Contentou-se com olhar para Emily com
ar austero--e Emily estava contente demais para se importar com
olhares. Levou a sua carta para a janela do sótão e deliciou-se com o
selo e o sobrescrito antes de tirar a carta.
“Querida Pérola das Emilys,” escrevia o Padre Cassidy. “Eu vi o nosso
amigo orgulhoso e tenho a certeza que o teu condado verde do reino das
fadas será poupado para muitos passeios futuros ao luar. Eu sei que tu
danças lá à luz da lua enquanto ressonam os meros mortais. Acho que
deves ter que pedir ao senhor Sullivan que poupe as árvores, mas vai-
lo encontrar bastante razoável. O segredo reside na ocasião e na fase
da lua. Como vai o épico e a língua? Espero que não tenhas problemas
em libertar a Filha do Mar dos seus votos. Continua a ser amiga de
todos os bons elfos e do
Teu amigo que te admira,

"James Cassidy.

“P.S. O B’y manda cumprimentos. Qual é a palavra para ‘gato’ na tua


língua? De certeza que não consegues encontrar nada mais gatal do que
gato, ou consegues?”
Lofty John espalhou a história do apelo de Emily ao Padre Cassidy por
todo o lado, divertindo-se com a piada sobre si mesmo. Rhoda Stuart
disse que sempre soubera que Emily Starr era uma miúda atrevida e Miss
Brownell disse que não havia nada que Emily não fizesse, e o Dr.

109
Burnley chamou-lhe pequeno demónio com mais admiração que nunca, o
Perry disse que ela tinha garra e o Teddy ficou com os louros por lho
ter sugerido, a Tia Elizabeth suportou tudo e a tia Laura achou que as
coisas podiam ter sido piores. Mas o primo Jimmy fez a Emily ficar
muito feliz.
“Ia estragar o jardim e partia-me o coração, Emily,” disse-lhe. “Tu
foste uma menina muito querida por teres evitado que acontecesse.”
Certo dia um mês mais tarde, quando a tia Elizabeth levou Emily a
Shrewsbury para lhe provarem o novo agasalho de Inverno, encontraram o
Padre Cassidy numa loja. A tia Elizabeth baixou a cabeça com grande
dignidade mas Emily estendeu-lhe uma mãozita magra.
“E então a dispensa de Roma?” murmurou-lhe o padre Cassidy.
Uma parte de Emily ficou horrorizada pela possibilidade da tia
Elizabeth ouvir e pensar que ela tivesse negócios escuros com o papa,
como nenhuma boa presbiteriana meia Murray deveria ter. A outra parte
ficou arrepiada até ás pontas dos pés com a delícia dramática de uma
compreensão secreta de mistério e intriga. Acenou com gravidade, de
olhos eloquentes com a satisfação.
“Eu consegui-a sem nenhum problema,” murmurou-lhe de volta.
“Muito bem,” disse o Padre Cassidy. “Desejo-te boa sorte, e desejo-a
muito. Adeus.”
“Até breve,” disse Emily, achando que era uma palavra mais adequada a
segredos sombrios do que adeus. Deliciou-se com o sabor desse encontro
meio roubado todo o caminho para casa, e sentia-se quase como se ela
própria vivesse um épico. Não tornou a ver o Padre Cassidy durante
anos--ele foi pouco tempo depois transferido para outra paróquia; mas
ela pensou sempre nele como uma pessoa muito agradável e compreensiva.

POR CORREIO AÉREO

"MAIS QUERIDO DOS PAIS:


“O meu coração está muito triste esta noite. O meu querido Mike II
morreu. O primo Jimmy diz que ele deve ter sido envenenado. Oh, pai
querido, eu chorei, chorei e chorei. A tia Elizabeth ficou
escandalizada. Disse, ‘Tu não fizeste metade do arraial quando morreu
o teu pai.’ Que coisa tão cruel. A tia Laura foi mais simpática mas
depois disse, ‘Não chores, querida. Eu arranjo-te outro gatinho,’ e eu
vi que ela também não tinha compreendido. Eu não quero outro gatinho.
Nem se eu tivesse um milhão de gatinhos compensava a perda do Mike.
“Eu e a Ilse enterrámo-lo no bosque do Lofty John. Ainda bem que o
chão ainda não estava gelado. A tia Laura deu-me uma caixa de sapatos
para servir de caixão, e um bocadinho de papel cor-de-rosa para
embrulharmos o seu pobre corpinho. E pusemos uma pedra sobre a campa e
eu disse ‘Abençoados são os que morrem no Senhor.’ Quando eu contei
isto à tia Laura ela ficou horrorizada e disse ‘Oh, Emily, que coisa
tão má. Tu não devias ter dito uma coisa dessas por causa de um gato.’
E o primo Jimmy disse, ‘Não achas, Laura, que a pobre criatura
inocente tinha uma parte de Deus? A Emily amava-o e todo o amor é
parte de Deus.’ E a tia Laura disse, ‘Talvez tenhas razão, Jimmy. Mas
ainda bem que a Elizabeth não a ouviu.’
“O primo Jimmy pode não estar completo, mas a parte que tem é muito
boa.
“Mas, oh, Pai, tenho tantas saudades do Mike esta noite. A noite
passada ele estava aqui a brincar comigo, tão esperto, bonito e finho,
e agora está frio e morto no bosque do Lofty John.

"18 de Dezembro.

110
"Querido Pai:

“Eu estou aqui no sótão. A Dama do Vento está muito triste com alguma
coisa esta noite. Anda a suspirar tão triste em volta da janela. Mas
ainda assim, a primeira vez que a ouvi veio o flash—-senti-me como se
tivesse visto alguma coisa que tivesse acontecido há muito, muito
tempo--uma coisa tão bonita que me magoou.
“O primo Jimmy diz que vai haver uma tempestade de neve esta noite.
Ainda bem. Eu gosto de ouvir uma tempestade à noite. É tão bom
aconchegarmo-nos entre os cobertores e pensarmos que não nos consegue
atingir. Só que quando eu me aconchego a tia Elizabeth diz que eu ando
ás voltas. Imagine só uma pessoa que não sabe a diferença entre
aconchegar-se e andar às voltas.
“Eu estou contente por termos neve no Natal. O jantar dos Murray vai
ser em New Moon este ano. É a nossa vez. No ano passado era a vez do
tio Oliver mas o primo Jimmy teve gripe e não podia ir, por isso
ficámos todos em casa com ele. Eu vou estar mesmo no centro da festa
este Natal e isso entusiasma-me. Eu vou-lhe contar tudo depois de ter
passado, mais querido.
“Eu quero dizer-lhe uma coisa, pai. Eu tenho vergonha dela, mas acho
melhor contar-lhe tudo sobre ela. No Sábado passado a Ella Lee deu uma
festa de aniversário e eu fui convidada. A tia Elizabeth deixou-me
usar o meu vestido de caxemira azul. É um vestido muito bonito. A tia
Elizabeth queria comprar-me um castanho-escuro mas a tia Laura
insistiu no azul. Eu olhei para mim ao espelho e lembrei-me que a Ilse
tinha dito que o pai dela tinha dito à tia Laura que eu era mais
bonita se tivesse mais cor. Por isso belisquei as bochechas para
ficarem vermelhas. Eu fiquei muito melhor mas não durou muito tempo.
Então apanhei uma velha flor de veludo que tinha estado no chapéu da
tia Laura, molhei-a e esfreguei o vermelho nas bochechas. Eu fui à
festa e as meninas olharam todas para mim mas ninguém disse nada, só a
Rhoda Stuart é que ria que se fartava. Eu tinha intenção de lavar logo
a cara assim que chegasse a casa antes que a tia Elizabeth me visse.
Mas ela teve a ideia de me vir buscar para ir com ela para casa no
regresso de umas compras. Ela lá não disse nada mas quando chegámos a
casa disse, ‘O que é que andaste a fazer à cara, Emily?’ Eu disse-lhe
e fiquei à espera que ela me ralhasse imenso, mas só me disse, ‘Não
sabes que ficaste ordinária?’ E eu sabia, é verdade. Eu tinha sentido
isso o tempo todo, só que ainda não tinha encontrado uma palavra para
descrever a sensação. ‘Eu nunca mais torno a fazer uma coisa destas,
Tia Elizabeth,’ respondi-lhe. Mais vale que não,’ disse-me ela. ‘Vai
lavar a cara imediatamente.’ Eu lavei-a e não estava tão bonita mas
senti-me muito melhor. O que é mais estranho, querido pai, é que mais
tarde ouvi a tia Elizabeth a rir-se por causa disto com a tia Laura na
despensa. Nunca se sabe o que vai fazer rir a tia Elizabeth. Eu tenho
a certeza que não teve nem metade da graça de quando a Saucy Sal me
seguiu até à reunião de orações na última quarta feira à noite, mas a
tia Elizabeth não se riu nem um bocadinho. Eu não costumo ir ás
reuniões de oração mas a tia Laura não podia ir nessa noite e a tia
Elizabeth levou-me porque não gosta de ir sozinha. Eu não me apercebi
que a Sal nos vinha a seguir a não ser quando a vi quando chegámos à
igreja. Eu mandei-a embora mas depois de lá estarmos dentro ela deve
ter arranjado maneira de entrar e foi lá para cima para a galeria. E
assim que o reverendo Dare começou a rezar a Sal começou a gritar.
Parecia muito alto naquela grande galeria vazia. Eu senti-me tão
culpada e infeliz. Não precisei de pintar a cara. Estava tão vermelha
de vergonha e os olhos da tia Elizabeth brilhavam de fúria. O senhor
Dare rezou durante muito tempo. Ele é surdo, por isso não ouviu melhor
a Sal do que quando se sentou em cima dela. Mas toda as outras pessoas
ouviram e os rapazes riram-se. Depois da oração o senhor Moris foi lá

111
acima à galeria e enxotou a sal. Nós conseguíamos ouvi-la a trepar por
cima dos assentos e o senhor Morris atrás dela. Eu estava tão cheia de
medo que ele a magoasse. Eu tinha ideia de lhe bater no dia seguinte
com uma tábua mas não queria que ela levasse pontapés. Depois de um
grande bocado ele conseguiu que ela saísse da galeria e ela entrou a
correr pela igreja, desceu por um lado da fila de bancos e subiu por
outra umas duas ou três vezes, tão depressa quanto podia e o senhor
Morris a correr atrás dela com uma vassoura. È muito engraçado quando
me lembro agora mas não achei assim tão engraçado na altura e tive
tanta vergonha e medo que a Sal se magoasse.
“O senhor Morris acabou por a pôr na rua. Quando nos sentámos eu fiz-
lhe uma careta por trás do meu livro de hinos. Quando vínhamos para
casa nessa noite a tia Elizabeth disse, ‘Eu espero que te tenhas dado
por satisfeita com a vergonha que nos fizeste passar esta noite,
Emily. Nunca mais te trago a uma reunião de orações.’ Eu tenho pena de
ter envergonhado os Murrays mas não sei que culpa tive e de qualquer
maneira eu não gosto das reuniões de orações porque são aborrecidas.
“Mas naquela noite não foram, querido pai.
“Já reparou que eu estou a escrever muito melhor? Eu arranjei um plano
tão bom. Eu primeiro escrevo a minha carta e depois verifico todas as
palavras de que não tenho a certeza e corrijo-as. Ás vezes acho que
uma palavra está bem escrita e não está.
“Eu e a Ilse desistimos da nossa língua. Brigámos por causa dos
verbos. A Ilse não queria que os verbos tivessem tempos. Ela queria
uma palavra diferente para cada tempo dos verbos. Eu disse-lhe que se
ia fazer uma língua nova ia-a fazer como deve ser e a Ilse ficou
furiosa e disse que já se chateava demais com a gramática em Inglês e
eu podia ir inventar uma língua sozinha. Mas isso não tem graça
nenhuma por isso desisti. Tive pena porque era muito interessante e
era muito divertido confundir as outras meninas na escola. Nós
acabamos por não nos vingar dos rapazes franceses porque a Ilse teve
dores de garganta todo o tempo da apanha da batata e não pode vir cá à
quinta. Parece-me que a vida está cheia de desilusões.
“Nós tivemos exames na escola esta semana. Eu saí-me bastante bem a
todos menos aritmética. A Miss Brownell explicou qualquer coisa sobre
as perguntas mas eu estava ocupada a compor uma história na minha
cabeça e não a ouvi por isso tive má nota. A história chama-se O
Segredo de Madge MacPherson. Eu vou comprar quatro folhas de foolscap
com o meu dinheiro dos ovos e cose-las para fazer um livro onde vou
escrever a história. Eu posso fazer o que quiser com o meu dinheiro
dos ovos. Eu acho que talvez também venha a escrever novelas quando
crescer, para além de poesia. Mas a tia Elizabeth não me deixa ler
novelas por isso como é que posso aprender a escreve-las? Outra coisa
que me preocupa é que se eu crescer e escrever um poema maravilhoso,
talvez as pessoas não vejam como é maravilhoso.
“O primo Jimmy diz que um homem de Priest Pond anda a dizer que o fim
do mundo está para breve. Eu espero que não venha enquanto eu não
tenha visto tudo nele.
“O pobre Elder MacKay está com papeira.
“Eu fui dormir a casa da Ilse outro dia porque o pai dela estava fora.
A Ilse agora diz sempre umas orações à noite e disse que aposta o que
eu quiser em como consegue rezar mais tempo que eu. Eu disse-lhe que
não conseguia e comecei a rezar sobre tudo o que me lembrava e quando
já não tinha nada para dizer pensei em começar tudo de novo. Depois
pensei, ?Não, isso não era honrado. Uma Starr tem que ser honrada.’
Por isso levantei-me e disse’Ganhaste’ e a Ilse não me respondeu.
Então eu fui até ao outro lado da cama e vi que ela tinha adormecido
de joelhos. Quando eu a acordei ela disse-me que tínhamos que anular a
aposta porque ela teria conseguido rezar muito mais tempo se não se
tivesse deixado dormir.

112
“Depois disto fomos para a cama e eu contei-lhe umas poucas de coisas
que mais tarde pensei que não devia ter contado. Segredos.
“No outro dia na aula de história a Miss Brownell leu que o Sir Walter
Raleigh tinha jazido na torre de Londres durante catorze anos. O Perry
disse, “Mas não o deixavam levantar-se de vez em quando?’. Então a
Miss Brownell castigou-o por ser impertinente mas ele estava a
perguntar a sério. A Ilse ficou furiosa com a Miss Brownell por ter
batido no Perry e furiosa com o Perry por ter feito uma pergunta tão
parva como se não percebesse nada. Mas o Perry diz que um dia vai
escrever um livro de História que não tenha coisas tão intrigantes.
“Eu estou a terminar a Casa Decepcionada na minha cabeça. Estou a
mobilar os quartos como as flores. Tenho um quarto rosa todo cor-de-
rosa, e um quarto lírio todo branco e prateado, e um quarto amor-
perfeito azul e dourado. Eu gostava tanto que a Casa Desapontada
tivesse um Natal. Nunca teve nenhum.
“Oh, Pai, eu acabei de pensar numa coisa tão boa. Quando eu crescer e
escrever uma grande novela e fizer muito dinheiro, vou comprar a Casa
Desapontada e acabá-la. Então já não vai ser Desapontada.
“A Ilse diz que a professora da escola dominical, a Miss Willeson, lhe
deu uma Bíblia para ela aprender 200 versículos. Mas quando ela a
levou para casa o pai dela deitou-a ao chão e mandou-a para o quintal
ao pontapé. A senhora Simms diz que um dia ele vai ser julgado mas
nada aconteceu até agora. O pobre homem está destroçado. Foi por isso
que fez uma coisa tão má.
“A tia Laura levou-me ao funeral da velha senhora Manson da quarta-
feira passada. Eu gosto de funerais. São tão dramáticos.
“O meu porco morreu na semana passada. Foi uma grande perda finanseira
para mim. A tia Elizabeth disse que o primo Jimmy lhe dava comida
demais. Eu acho que não lhe devia ter dado o nome do Lofty John.
“Nós agora na escola estamos a desenhar mapas. A Rhoda Stuart é quem
tem sempre as melhores notas. A Miss Brownell não sabe que a Rhoda põe
os mapas contra uma janela com o papel por cima e os copia. Eu gosto
de desenhar mapas. A Noruega e a Suécia parecem um tigre com montanhas
a fazer de riscas e a Irlanda parece um cãozinho de costas voltadas
para a Inglaterra, com as patas levantadas ao pé do peito, e a África
parece um grande presunto de porco. A Austrália tem um lindo mapa para
desenhar.
“A Ilse agora vai muito bem na escola. Ela diz que não me vai deixar
ultrapassá-la. Ela aprende que se farta, como diz o Perry, quando
quer, e agora ganhou a medalha de prata do distrito de Queens. A
W.C.T.U. em Charlottetown deu-o à melhor declamante. Fizeram o
concurso em Shrewsbury e a tia Laura levou a Ilse porque o Dr. Burnley
não quis e a Ilse ganhou. A Tia Laura disse ao Dr. Burnley quando ele
cá esteve no outro dia que ele devia dar uma boa educação à Ilse. Ele
respondeu, ‘Não vou desperdiçar dinheiro nenhum a educar uma coisa
feminina'. E pareceu negro como uma nuvem de trovoada. Oh, eu só
desejava que o Dr. Burnley amasse a Ilse. Ainda bem que o Pai me amava
a mim.

"22 de Dezembro.

“Querido Pai: nós fizemos o exame da escola hoje. Foi uma grande
ocasião. Quase toda a gente lá estava menos o Dr. Burnley e a tia
Elizabeth. Todas as meninas tinham os vestidos melhores menos eu. Eu
sabia que a Ilse não tinha mais nada para levar do que o velho vestido
do ano passado que lhe fica muito curto, por isso para ela não se
sentir mal eu vesti o meu vestido velho castanho também. A tia
Elizabeth primeiro não me queria deixar fazer isso porque os Murrays
de New Moon devem andar sempre bem vestidos mas quando eu lhe
expliquei sobre a Ilse ela olhou para a tia Laura e disse que eu
podia.

113
“A Rhoda Stuart gozou com a Ilse mas eu dei-lhe uma bofetada com luva
de pelica (isto é o que se chama uma figura de estilo). Ela
atrapalhou-se na declamação dela. Tinha deixado o livro em casa e mais
ninguém sabia a peça senão eu. Primeiro olhei para ela em triunfo. Mas
depois deu-me uma sensação estranha e pensei, ‘Como é que eu me sentia
se estivesse bloqueada à frente de tanta gente? E além disso está em
jogo a honra da escola,’ por isso disse—lhe baixinho porque estava
muito próxima dela. Ela conseguiu dizer o resto bastante bem. A coisa
mais estranha foi, Pai, que agora já não sinto que a odeie. Até me
sinto mais simpática com ela e é muito melhor. É muito descofortável
odiar uma pessoa.

"28 de Dezembro.

"Querido Pai:

“O Natal já passou. Foi muito agradável. Eu nunca tinha visto tantas


coisas boas cozinhadas ao mesmo tempo. O tio Wallace e a tia Eva e o
tio Oliver e a tia Addie e a tia Ruth estiveram cá. O tio Oliver não
trouxe nenhum dos filhos e eu fiquei muito desiludida. Nós também cá
tivemos o Dr. Burnley e a Ilse. Toda a gente estava muito bem vestida.
A tia Elizabeth usou o vestido de cetim preto dela com uma gola de
renda e uma touca. Parecia muito bem e eu tive muito orgulho dela. Nós
gostamos que os nossos parentes se apresentem bem mesmo quando não
gostamos deles. A tia Laura usou um vestido de seda castanha e a tia
Ruth tinha um vestido cinzento. A tia Eva estava muito elegante. O
vestido dela tinha cauda. Mas cheirava a naftalina.
“Eu usei o meu vestido de caxemira azul e o meu cabelo atado com fitas
azuis, e a tia Laura deixou-me usar o cinto de seda azul com
margaridas cor-de-rosa bordadas que foi da mãe quando ela era menina
em New Moon. A tia Ruth respingou quando me viu. Disse, ‘Cresceste
bastante, Emily. Espero que sejas uma menina melhor.’
“Mas ela não esperava mesmo. Eu vi bem isso. Depois disse-me que tinha
o atacador desatado.
“’Ela parece melhor,’ disse o tio Oliver. ‘Não me admirava que
crescesse uma rapariga forte e saudável afinal de contas.’
“A tia Eva suspirou e abanou a cabeça. O tio Wallace não disse nada
mas apertou-me a mão. A mãe dele estava fria como um peixe. Quando nós
fomos para a sala de jantar em pisei a cauda do vestido da tia Eva e
ouvi uns pontos a partirem-se em qualquer lado. A tia Eva empurrou-me
a tia Ruth disse, ‘Que criança estranha que tu és, Em’ly.’ Eu pús-me
atrás da tia Ruth e deitei-lhe a língua de fora. O tio Oliver faz
barulho a comer a sopa. Nós usámos as melhores colheres de prata. O
primo Jimmy trinchou o peru e deu-me duas fatias do peito porque ele
sabe que eu gosto mais da carne branca. A tia Ruth disse ‘Quando eu
era pequena a asa era suficientemente boa para mim,’ e o primo Jimmy
pôs-me outra fatia de peito no prato. A tia Ruth não disse mais nada
até ele ter acabado de cortar e depois disse, ‘Eu via a ta professora
em Shrewsbury no último Sábado, Em’li, e ela não me disse muitas
coisas boas de ti. Se fosses minha filha eu ia esperar algo bastante
diferente.’
“’Ainda bem que não sou sua filha,’ disse eu na minha cabeça. Eu não
disse isto alto, claro, mas a tia Ruth disse,’Fazes favor de não
ficares com esse ar amuado quando falo contigo, Em’ly.’ E o tio
Wallace disse ‘É uma pena que tenha uma expressão tão pouco atraente.’
“’E o senhor é convencido e dominador e forreta,’ disse eu, ainda ma
minha cabeça. ‘Eu ouvi o Dr. Burnley dizer que era.’
“’Vejo que tens uma mancha de tinta no dedo,’ disse a tia Ruth. (Eu
tinha estado a escrever um poema antes do jantar.)

114
“E nessa altura aconteceu a coisa mais surpreendente. As pessoas
estão-nos sempre a surpreender. A tia Elizabeth falou e disse, ’Eu
gostava, Ruth, que tu e o Wallace deixassem a criança em paz.’ Eu mal
acreditei no que ouvi. A tia Ruth pareceu aborrecida mas deixou-me
mesmo em paz e só voltou a fungar quando o primo Jimmy me pôs mais um
pedaço de peito no prato.
“Depois disso o jantar foi agradável. E quando chegámos ao pudim eles
começaram a falar e foi esplêndido ouvi-los. Contaram histórias e
piadas sobre os Murrays. Até o tio Wallace se riu e a tia Ruth contou
umas coisas sobre a tia-avó Nancy. Eram sarcásticas mas interessantes.
A tia Elizabeth abriu a secretária do tio Wallace e tirou de lá um
velho poema que tinha sido escrito à tia-avó Nancy por um pretendente
quando ela era nova e o tio Wallace leu-o. A tia-avó Nancy deve ter
sido muito bonita. Eu pergunto-me se alguém me escreverá um poema a
mim. Se eu pudesse ter uma franja talvez alguém escrevesse. Eu disse,
‘A tia-avó Nancy era mesmo assim tão bonita?’ e o tio Oliver disse,
‘Dizem que sim, há setenta anos’ e o tio Wallace disse, ‘Ela tem-se
aguentado bem--ainda vai chegar aos cem anos,’ e o tio Wallace disse,
‘Oh, ela habituou-se tanto a viver que já não morre.’
“O Dr. Burnley contou uma história que eu não percebi. O tio Wallace
riu-se imediatamente e o tio Oliver pôs o guardanapo à frente da cara.
A tia Addie e a tia Eva olharam uma para a outra de lado, depois
olharam para os pratos e sorriram um pouco. A tia Ruth pareceu
ofendida e a tia Elizabeth olhou friamente para o Dr. Burnley e disse,
‘Acho que se esquece que há crianças presentes.’ O Dr. Burnley disse,
‘Peço desculpa, Elizabeth,’ muito educadamente. Ele consegue falar com
grande pompa quando quer. É muito bonito quando está bem vestido e
barbeado. A Ilse diz que tem orgulho dele embora ele a odeie.
“Depois do jantar ter terminado foram distribuídos os presentes. Essa
é outra tradissão dos Murray. Nós não temos meias nem árvores mas uma
grande tarte de farelo é passada em volta com os presentes enterrados
com fitas de fora com os nomes das pessoas. Foi divertido. Todos os
meus parentes me deram presentes úteis menos a tia Laura. Ela deu-me
uma garrafa de perfume. Eu gostei muito. Eu adoro cheiros bons. A tia
Elizabeth é contra os perfumes. Ela deu-me um avental novo mas eu
fiquei agradecida por não ser de bebé. A tia Ruth deu-me um novo
testamento e disse-me ‘Em´ly, eu espero que leias um bocado todos os
dias até o teres lido todo,’ e eu disse, ’Ora tia Ruth, eu já li o
novo testamento todo pelo menos uma dúzia de vezes (e é verdade.) Eu
adoro o Apocalipse.’ (e adoro. Quando li o versículo ‘e os doze
portões eram doze pérolas,’ eu ví-os e veio o flash.) ‘A Bíblia não é
para se ler como um livro de histórias,’ disse friamente a tia Ruth. O
tio Wallace e a tia Eva deram-me um par de luvas pretas e o tio Oliver
e a tia Addie deram-me um dólar inteiro em lindas moedas novas de dez
cêntimos e o primo Jimmy deu-me uma fita para o cabelo. O Perry tinha
deixado um marcador de livros em seda para mim. Ele teve que ir passar
o Natal a Stovepipe Town com a tia Tom mas eu guardei-lhe um monte de
passas e nozes. Eu dei-lhe lenços a ele e ao Teddy (o do Teddy era um
bocadinho mais bonito) e dei uma fita para o cabelo à Ilse. Eu
comprei-os com dinheiro dos meus ovos. (Eu agora não vou ter dinheiro
dos ovos durante um tempo porque a minha galinha deixou de pôr.) Toda
a gente estava feliz e uma vez o tio Wallace até sorriu para mim. Eu
não o achei tão feio quando sorria.
“Depois do jantar eu e a Ilse fomos jogar para a cozinha e o primo
Jimmy ajudou-nos a fazer caramelo. Nós tivemos uma grande ceia mas
ninguém conseguiu comer muito porque tínhamos tido um belo jantar. A
Tia Eva tinha uma dor de cabeça e a tia Ruth disse que não sabia
porque é que a Elizabeth punha tantos temperos nas salsichas. Mas os
outros estavam de bom humor e a tia Laura manteve as coisas
agradáveis. Ela é muito boa a tornar as coisas agradáveis. E depois de
tudo ter acabado o tio Wallace disse (Isto é outra tradissão dos

115
Murray) ‘Vamos agora pensar por uns momentos em todos aqueles que já
não estão entre nós.’ Eu gostei da maneira como ele o disse—muito
solene e gentil. Foi uma das alturas em que fiquei contente por ter
sangue Murray a correr-me nas veias. E pensei em si, querido pai, e na
Mãe e no querido Mike e na trisavó Murray, e no meu livro de
apontamentos amarelo que queimei, porque era quase como uma pessoa
para mim. E depois juntámos todos as mãos e cantámos antes de eles
irem para casa. Eu já não me senti uma estranha entre os Murray. A tia
Laura e eu ficámos as duas no alpendre a vê-los partir. A tia Laura
pôs-me o braço em volta e disse, ’Eu e a tua mãe costumávamos ficar
assim há muito tempo, Emily, a ver partir os convidados do Natal.’ A
neve crepitava e os sinos soavam através das árvores, e a geada no
telhado das pocilgas brilhava ao luar. E era tudo tão lindo (os sinos
e a geada e a grande noite branca a brilhar) que o flash veio e isso
foi o melhor de tudo.”

"ROMANTICO MAS NÃO CONFORTÁVEL"

Uma certa coisa aconteceu em New Moon porque o Teddy Kent a dada
altura fez um elogio a Ilse e Emily Starr não ficou muito contente com
isso. Já caíram impérios pelas mesmas razões.
O Teddy andava a patinar no lago gelado de Blair Water e levava Emily
e Ilse a deslizar com ele à vez. Nem a Ilse nem a Emily tinham patins.
Ninguém se interessava o suficiente pela Ilse para lhe comprar patins
e, quanto a Emily, a tia Elizabeth não concordava que as raparigas
patinassem. As raparigas de New Moon nunca patinaram. A tia Laura teve
a ideia revolucionária que esquiar poderia ser um bom exercício para a
Emily e teria a vantagem de evitar que ela gastasse as solas das botas
a deslizar. Mas nenhum destes argumentos foi suficiente para convencer
a tia Elizabeth, apesar do argumento que veio a favor por parte dos
Burnleys. Este último acabou por dar origem a que ela decretasse que
Emily não devia deslizar. Emily levou isto muito a mal. Lamentou-se
pela casa de uma forma desusada e escreveu ao seu pai, ‘Eu odeio a tia
Elizabeth. Ela é tão injusta. Nunca joga pelas regras.’ Mas um dia o
Dr. Burnley enfiou a cabeça pela porta da cozinha de New Moon e disse
em tom de resmungo, “Que história é essa de não deixares a Emily
patinar, Elizabeth?”
“Ela gasta as solas das botas,” disse Elizabeth.
“As botas que se---“ o doutor lembrou-se mesmo a tempo que haviam
senhoras presentes. “Deixem a criatura deslizar quanto quiser. Ela
devia andar ao ar livre o tempo todo. Ela devia”—o doutor olhou
ferozmente para Elizabeth—“devia dormir na rua.”
Elizabeth tremeu dos pés à cabeça com a hipótese do doutor insistir
neste procedimento nunca visto. Ela sabia que ele tinha ideias
originais sobre o tratamento dos tuberculosos e daqueles que o
poderiam vir a ser. Estava contente por lhe fazer a vontade deixando a
Emily andar ao ar livre e fazer o que lhe apetecesse, se ele nunca
mais dissesse nada sobre dormir na rua.
“Ele preocupa-se muito mais com a Emily do que com a filha dele,”
disse rispidamente para Laura.
“A Ilse tem saúde a mais,” disse a tia laura com um sorriso. “Se ela
fosse uma criança delicada o Allan talvez lhe perdoasse por--por ser
filha da mãe dela.”
“S--s--h,” disse a tia Elizabeth. Mas ela tinha feito chiu tarde
demais. Emily, vinda da cozinha, tinha ouvido a tia Laura e intrigara-
se sobre isso todo o dia na escola. Porque é que a Ilse tinha que ser
perdoada por ser filha da mãe dela? Toda a gente era filha das suas
mães, não era? Em que é que consistia o crime? Emily pensou tanto
nisto que esteve desatenta ás lições e a Miss Brownell atingiu-a
inúmeras vezes com o seu sarcasmo.

116
Mas é altura de voltarmos ao lago gelado de Blair Water onde o Teddy
acabava de trazer a Emily de uma volta gloriosa através do grande
círculo de gelo. Ilse esperava a sua vez na margem. A sua nuvem
dourada de cabelos aureolava-lhe o rosto e caía-lhe sobre a testa
debaixo de um pequeno gorro vermelho desbotado que ela usava. As
roupas de Ilse eram sempre desbotadas. O beijo gelado do vento tinha-
lhe tornado as bochechas vermelhas e os seus olhos brilhavam como
poços de âmbar com fogo nos corações. A percepção artística de Teddy
captou-lhe a beleza e alegrou-se com ela.
“A Ilse não é bonita?” disse.
Emily não era ciumenta. Nunca a magoava ouvir elogiar a Ilse. Mas de
certa maneira ela não gostou deste comentário. O Teddy olhava para a
Ilse com demasiada admiração. Tudo se devia, achava Emily, àquela
franja de cabelos brilhantes sobre a testa branca de Ilse.
“Se eu tivesse uma franja o Teddy também me ia achar bonita,” pensou
ressentida. “Claro que cabelo preto não é tão bonito como loiro. Mas a
minha testa é alta demais--toda a gente diz isso. E eu fiquei mesmo
bonita no retrato do Teddy porque ele me pintou lá uns caracóis.”
O assunto persistia. Emily pensava nele quando ia para casa sob o
brilho do campo coberto de neve inclinado à luz do por do sol de
Inverno, e não conseguiu comer o jantar porque não tinha uma franja.
Todo o seu anseio longamente escondido veio-lhe à cabeça de uma só
vez. Ela sabia que não valia a pena pedir uma franja à tia Elizabeth.
Mas quando se ia deitar nessa noite pôs-se de pé em cima de uma
cadeira para conseguir ver a pequena Emily por detrás do espelho, e
pegou no final encaracolado da sua longa trança e colocou-o sobre a
testa. O efeito, pelo menos aos olhos de Emily, era muito apelativo.
Pensou repentinamente--e se cortasse ela própria uma franja? Só lhe
levaria um minuto. E depois de cortada, o que podia fazer a tia
Elizabeth? Ficaria muito zangada e com certeza infligir-lhe-ia um
castigo qualquer. Mas a franja estaria lá—-pelo menos até crescer.
Emily, com os lábios cerrados, foi buscar a tesoura. Desmanchou a
trança do cabelo e dividiu as duas metades da frente. Snip-snip—
fizeram as tesouras. Madeixas brilhantes caíram-lhe aos pés. Num
minuto Emily via-se com a tão desejada franja. Atravessando-lhe a
testa caía-lhe a lustrosa franja encurvada. Mudou-lhe todo o carácter
do rosto. Tornou-o redondo, provocador, misterioso. Por um breve
momento Emily contemplou o seu reflexo em triunfo.
E depois--o mais puro terror dominou-a. Oh, o que é que tinha feito?
Como a tia Elizabeth ficaria zangada! A sua consciência também
despertou e juntou-lhe os seus toques. Ela tinha sido má. Era mau
cortar uma franja quando a tia Elizabeth o tinha proibido. A tia
Elizabeth tinha-lhe proporcionado um lar em New Moon--a Rhoda Stuart
não lhe tinha dito no primeiro dia de escola que “vivia da caridade”?
E ela pagava-a com a desobediência e a ingratidão? Uma Starr nunca
faria uma coisa dessas. Num pânico de medo e remorsos Emily pagou
novamente na tesoura e cortou novamente a franja--mesmo na linha onde
os cabelos nasciam. Foi pior a emenda que o soneto! Emily contemplou o
resultado em choque. Qualquer pessoa podia ver que ali se tinha
cortado uma franja, por isso ainda teria que enfrentar a raiva da tia
Elizabeth. E tinha ficado tão feia. Emily desfez-se em lágrimas,
agarrou as madeixas caídas e atirou-as para o cesto dos papéis, soprou
a sua vela e meteu-se na cama no momento em que a tia Elizabeth
entrava no quarto.
Emily enterrou a cara na almofada e fingiu estar a dormir. Tinha
receio que a tia Elizabeth lhe fizesse alguma pergunta e insistisse em
que a fitasse enquanto respondia. Essa era outra tradição dos Murray—
olhavam sempre as pessoas nos olhos quando falavam para elas. Ma a tia
Elizabeth despiu-se em silêncio e deitou-se. O quarto estava escuro—de
uma profunda escuridão. Emily suspirou e virou-se. Havia uma grande
garrafa de gin na cama, ela sabia, e tinha os pés frios. Mas não achou

117
que tivesse direito à garrafa de gin nessa noite. Tinha sido má
demais--ingrata demais.
“Pára de te mexer,” disse a tia Elizabeth.
Emily não se mexeu mais--pelo menos fisicamente. Mentalmente
continuou ás voltas. Não conseguia dormir. Os pés dela ou a sua
consciência, ou ambos, mantinham-na acordada. E o medo também. Temia a
manhã. A tia Elizabeth veria o que tinha acontecido. Se ao menos já
tivesse tudo acabado—-se a revelação já tivesse sido feita. Emily
esqueceu-se e mexeu-se novamente.
“Porque é que estás tão inquieta esta noite?” perguntou a tia
Elizabeth, muito aborrecida. “Estás a constipar-te?”
“Não minha senhora.”
“Então vê se dormes. Não suporto mexidas. Parece que tenho uma enguia
na cama--OH--!”
A tia Elizabeth, dando também ela umas voltas, tinha tocado com o seu
pé num dos pés gelados de Emily.
“valha-me deus, menina, os teus pés parecem gelo. Vá lá, põe-os na
garrafa de gin.”
A tia Elizabeth empurrou a garrafa para perto dos pés de Emily. Que
bom e quente, que confortável que era!
Emily encostou-lhe os dedos como se fosse um gato. Mas apercebeu-se
repentinamente que não conseguia esperar pela manhã.
“Tia Elizabeth, eu tenho que confessar-lhe uma coisa.”
A tia Elizabeth estava cansada e cheia de sono e não estava na
disposição de ouvir confissões. Num tom muito pouco gracioso disse:
“O que é que andaste a fazer?”
“Eu--eu cortei uma franja, tia Elizabeth.”
“Uma franja?”
A tia Elizabeth sentou-se na cama.
“Mas eu cortei-a de novo,” tão curta como consegui, mesmo rente ao
cabelo.”
A tia Elizabeth saiu da cama, acendeu uma vela e inspeccionou Emily.
“Fizeste um lindo serviço,” disse tristemente. “Eu nunca tinha visto
ninguém tão feia como tu até agora. E portaste-te de uma forma
vergonhosa.”
E foi uma das ocasiões em que Emily se sentiu obrigada a concordar com
a tia Elizabeth.
“Desculpe,” disse, levantando uns olhos suplicantes.
“Vais comer o jantar na despensa durante uma semana,” disse a tia
Elizabeth. “E não vais comigo à casa do tio Oliver para a semana
comigo. Eu tinha prometido que te levava. Mas não vou levar uma
criança com a tua figura comigo para lado nenhum.”
Isto era duro. Emily tinha andado ansiosa por ir visitar o tio Oliver.
Mas no conjunto até ficara aliviada. O pior tinha passado e os seus
pés começavam a aquecer. Mas ainda havia outra coisa. Ela bem que
podia descarregar o seu coração completamente já que tinha começado.
“Há ainda outra coisa que acho que devo dizer-lhe.”
A tia Elizabeth meteu-se na cama de novo com um grunhido. Emily
interpretou-o como permissão para falar.
“Tia Elizabeth, lembra-se daquele livro que eu encontrei na estante do
Dr. Burnley e trouxe para casa para lhe pedir autorização para o ler?
Chamava-se A História de Henry Esmond. A tia olhou para ele e disse
que não tinha nenhuma objecção a que eu lesse livros de história. Por
isso li-o. Mas, tia Elizabeth, não era de história--era uma novela. E
eu sabia isso quando o trouxe para casa.”
“Tu sabes que eu te proibi de ler novelas, Emily Starr. São livros
maldosos que estragaram muitas boas almas.”
“Era muito aborrecido,” argumentou Emily, como se a maldade e o
aborrecimento fossem coisas incompatíveis. “E fez-me ficar triste.
Toda a gente parecia apaixonar-se pelas pessoas erradas. Eu tomei a

118
decisão, tia Elizabeth, de nunca me apaixonar. Traz demasiados
problemas.”
“Não fales daquilo que não entendes e de coisas em que as crianças não
deviam pensar. É o resultado de andares a ler novelas. Eu vou dizer ao
Dr. Burnley que tranque o armário dos livros.”
“Oh, não faça isso, Tia Elizabeth,” exclamou Emily. “Ele não tem mais
novelas. Mas eu estou a ler um livro tão interessante lá. Conta tudo
sobre o que temos por dentro. Já cheguei à parte do fígado e das suas
doenças. As imagens são tão interessantes. Por favor, deixe-me
terminá-lo.” E isto era pior que novelas. A tia Elizabeth estava
verdadeiramente horrorizada. As coisas que tínhamos por dentro não
eram assunto de leitura.
“Não terás vergonha, Emily Starr? Se não tens tenho eu por ti. As
menina não devem ler livros desses.”
“Mas porquê, tia Elizabeth? Eu tenho um fígado, não tenho—-e coração—-
e pulmões--e estômago—e--"
“Já chega, Emily. Nem mais uma palavra.”
Emily adormeceu infeliz. Desejou não ter dito nada sobre o Esmond. E
sabia que não teria oportunidade de acabar aquele livro fascinante. E
assim foi. A partir daí a estante do DR. Burnley foi fechada e o
doutor ordenou-lhe a ela e a Ilse que se mantivessem fora do seu
gabinete. Ele estava de muito mau humor por causa disso pois discutira
com Elizabeth Murray sobre o assunto.
Emily não teve forma de esquecer a franja. Foi alvo de troça na escola
e a tia Elizabeth olhava para lá sempre que olhava para Emily e o
desprezo que tinha no olhar queimava Emily como uma chama. Ainda
assim, quando o maltratado cabelo começou a crescer e se encaracolou
em pequenos aneis negros, Emily encontrou um consolo. A franja foi
tacitamente permitida e ela sentiu que o seu aspecto melhorara
bastante desde aí. Claro que ela sabia que a tia Elizabeth a obrigaria
a pentear para trás assim que tivesse tamanho suficiente. Mas
entretanto reconfortava-se com a sua beleza adicional.
A franja estava no seu melhor quando chegou a carta da tia-avó Nancy.
For a escrita para a tia Laura—-a tia-avó Nancy e a tia Elizabeth não
eram particularmente próximas uma da outra--e nela a tia-avó Nancy
dizia, “SE tens uma fotografia dessa menina Emily manda-ma. Eu não a
quero conhecer; é estúpida--sei que é. Mas quero ver como é a filha da
Juliet. E também daquele jovem fascinante, o Douglas Starr. Era
realmente fascinante. Que parvos que foram todos quando fizeram tanta
confusão por a Juliet ter fugido com ele. Se tu e a Elizabeth tivessem
fugido as duas quando era altura disso estaria bem melhor.”
Esta carta não foi mostrada a Emily. A tia Elizabeth e a tia Laura
tiveram uma longa conferência secreta e foi dito a Emily que seria
levada a Shrewsbury para lhe tirarem um retrato para mandar à tia
Nancy. Emily ficou muito entusiasmada com isto. Foi com o vestido de
caxemira azul e a tia Laura pôs-lhe uma gola de renda de bilros e
pendurou-lhe o colar de contas venezianas ao pescoço. E as novas botas
de botões estavam à altura da ocasião.
“Ainda bem que isto aconteceu quando eu ainda tenho a minha franja,”
pensava Emily muito feliz.
Mas no fotógrafo a tia Elizabeth penteou-lhe a franja para trás e
segurou-lhe com ganchos de cabelo.
“Oh, por favor, tia Elizabeth, deixe-me tê-la para baixo,” pediu
Emily. “Só para a fotografia. Depois disto eu penteio-a para trás
outra vez.”
A tia Elizabeth estava inamovível. A franja ficou puxada para trás e a
fotografia tirada. Quando a tia Elizabeth viu o resultado ficou
satisfeita.
“Ela parece amuada; mas está aprumada; e tem uma certa semelhança com
os Murray que eu nunca tinha notado antes,” disse à tia Laura. “Isso

119
vai agradar à tia Nancy. Ela é muito ligada à família apesar de todas
as esquisitices.”
Emily teria gostado de atirar todas as fotografias para o lixo.
Odiava-as a todas. Faziam-na parecer horrível. A cara dela parecia ser
toda testa. Se mandassem aquilo à tia Nancy ela ia achá-la mais
estúpida que nunca. Quando a tia Elizabeth arranjou a fotografia com
um cartão e disse a Emily que a levasse aos correios, ela viu logo o
que queria fazer. Foi direita ao sótão e tirou da sua caixa o retrato
a aguarela que o Teddy lhe tinha dado. Era mesmo do tamanho da
fotografia. Emily retirou-a do seu embrulho e atirou-a para longe com
o pé.
“Esta não sou eu,” disse. “Pareço amuada porque estava amuada por
causa da franja. Mas eu quase nunca estou amuada, por isso não é
justo.”
Embrulhou o desenho do Teddy no cartão e depois sentou-se e escreveu
uma carta.
“QUERIDA TIA-AVÓ NANCY:
“A tia Elizabeth mandou-me tirar uma fotografia para lhe mandar mas eu
não gosto dela porque me faz parecer feia e eu vou mandar-lhe outra em
vez dessa. Um artista meu amigo fê-la para mim. É mesmo como eu sou
quando sorrio e tenho franja. Eu só lha estou a emprestar, não lha
dou, porque a valoriso muito.”
A sua sobrinha neta obediente,
“Emily Byrd Starr.
“P.S. Eu não sou tão estúpida como pensa.
“E.B.S.
“P.S. Nº2 Eu não sou nada estúpida.”
Emily pôs a sua carta no envelope com a pintura—-enganando assim sem
saber os correios--e saiu de casa para o enviar. Assim que o meteu na
caixa do correio respirou fundo de alívio. Achou a viagem de regresso
muito agradável. Era um dia morno em pleno Abril e a primavera mirava-
nos em cada canto. A dama do Vento assobiava e ria sobre os campos
húmidos e perfumados; corvos alegres conferenciavam nos cimos das
árvores; pequenas poças e luz do sol desciam sobre os vales cheios de
musgo; o mar era um fogo azul safira para lá das dunas douradas; os
aceres do bosque do Lofty John falavam sobre os seus rebentos
vermelhos. Tudo o que Emily alguma vez lera sobre sonhos, lendas e
mitos parecia parte do encanto daquele bosque. Estava cheia de alegria
de viver da cabeça aos pés.
“Oh, consigo cheirar a primavera!” exclamou, enquanto dançava ao longo
do caminho do riacho.
Então começou a escrever um poema sobre o assunto. Toda a gente que
alguma vez viveu no mundo e sabe fazer rimas já escreveu um poema
sobre a primavera. É o assunto mais rimado do mundo—e sempre o será,
porque é ela própria a poesia encarnada. Nunca se é um verdadeiro
poeta se não e fez pelo menos um ou dois poemas sobre a primavera.
Emily interrogava-se se deveria incluir elfos a dançarem na margem do
riacho ao luar ou pixies dormindo numa cama de fetos no seu poema,
quando algo a confrontou numa curva do caminho que não era nem elfo
nem pixie, mas que parecia estranho e invulgar o suficiente para
pertencer a qualquer das tribos do povo pequeno. Seria uma bruxa? Ou
uma fada velha de más intenções--a fada má de todas as histórias de
baptismos?
“Eu sou a tia Tom do rapaz,” disse a aparição, vendo que Emily estava
admirada demais para fazer fosse o que fosse senão olhar e observar.
“Oh!” Emily suspirou de alívio. Já não estava assustada. Mas que
senhora tão peculiar era aquela tia Tom. Velha--tão velha que quase
parecia impossível alguma vez ter sido jovem; um gorro vermelho vivo
sobre caracóis crone-like cinzentos esvoaçantes; um pequeno rosto
atravessado por milhares de rugas finas e cruzadas; um longo nariz com
um alto no fim; pequenos olhos brilhantes e ansiosos debaixo das

120
sobrancelhas farfalhudas; um casaco de homem todo esfarrapado
cobrindo-a da cabeça aos pés; um cesto numa mão e um pau escuro e
cheio de nós na outra
“No meu tempo não era boa educação ficar a olhar para as pessoas,”
disse a tia Tom.
“Oh!” disse Emily novamente. “Desculpe-me—-Como está?” acrescentou
tentando vagamente agarrar-se ás suas boas maneiras.
“educada--e não é orgulhosa demais,” disse a tia Tom, olhando-a
curiosamente. “Vim cá à casa grande com um par de meias para o rapaz
mas era a ti que eu queria ver.”
“A mim?” disse Emily sem compreender.
“Sim. O rapaz não pára de falar de ti e veio-me um plano à cabeça.
Parece-me que não é má ideia. Mas tenho que ter a certeza antes de
gastar o meu dinheiro. Emily Byrd Starr é o teu nome e Murray a tua
natureza. Se eu der uma educação ao rapaz tu casas-te com ele quando
crescer?”
“Eu!” disse Emily novamente. Parecia-lhe tudo o que conseguia dizer.
Estaria a sonhar? Tinha que estar.
“Sim tu. És meia Murray e era um grande casamento para o rapaz. Ele é
esperto e pode vir a ser um homem muito rico e mandar no país. Mas eu
não gasto nem um cêntimo se tu não prometeres.”
“A tia Elizabeth não me deixa,” exclamou Emily, demasiado assustada
com esta estranha velha aparição para recusar por si mesma.
“Se tu tens alguma coisa de Murray em ti vais fazer o que quiseres,”
disse a tia Tom, pondo a cara dela tão perto da de Emily que as suas
sobrancelhas fartas fizeram cócegas no nariz de Emily. “Diz que casas
com o rapaz que ele vai para o colégio.”
Emily parecia estar sem fala. Não conseguia pensar em nada para dizer-
Oh, se conseguisse acordar! Nem sequer conseguia fugir.
“Diz!” insistia a tia Tom, batendo fortemente com o pau numa pedra do
caminho.
Emily estava tão horrorizada que poderia ter dito uma coisa qualquer--
fosse o que fosse—para escapar à situação. Mas nesse momento Perry
saiu de um maciço de abetos, com o rosto branco de raiva, e apanhou a
sua tia Tom pelo ombro com uma grande falta de respeito.
“Você vá para casa!” disse furiosamente.
“Então, querido rapaz,” disse a tia Tom ironicamente. “Eu só estava a
tentar fazer-te um favor. Estava a pedir-lhe que se casasse contigo
depois de--"
“Eu posso pedir por mim!” Perry estava mais furioso que nunca. “Você
deve ter estragado tudo. Vá para casa--para casa, já disse!”
A tia Tom foi andando e resmungado,”Então já sei que não gasto o meu
dinheiro. Não há Murray não há dinheiro, meu rapaz.”
Quando ela desapareceu pelo caminho do ribeiro abaixo o Perry voltou-
se para Emily. De branco passara a muito vermelho.
“Não lhe ligues--ela é maluca,” disse. “Claro que quando eu crescer
tenho intenção de te pedir em casamento mas--"
“Eu não posso--a tia Elizabeth--"
“Oh, ela deixa nessa altura. Eu vou ser primeiro-ministro do Canadá,
um dia.”
“Mas eu não vou querer--de certeza que não--“
“Vais querer quando cresceres. A Ilse é mais bonita, claro, e eu nem
sei porque é que gosto mais de ti mas gosto.”
“Nunca mais fales para mim assim outra vez!” ordenou Emily, começando
a recuperar a sua dignidade.
“Oh, não falo--não enquanto não formos crescidos. Estou tão
envergonhado por isto como tu,” disse o Perry com um sorriso amarelo.
“Só que eu tinha que dizer alguma coisa depois da tia Tom ter metido o
nariz daquela maneira. A culpa não foi minha por isso não guardes
ressentimentos. Mas lembra-te só que eu um dia vou pedir-te. E acho
que o Teddy Kent também.”

121
Emily estava rapidamente a afastar-se mas nesta altura virou-se para
trás e disse friamente por cima do ombro.
“Se pedir eu caso com ele.”
“Se fizeres isso eu arranco-lhe a cabeça,” gritou Perry numa fúria
imediata.
Mas Emily continuou o seu caminho para casa e foi para o sótão digerir
os acontecimentos.
“Foi romântico mas não confortável,” foi a sua conclusão. E aquele
poema sobre a primavera não chegou a ser acabado.

WYTHER GRANGE

A tia-avó Nancy Priest não enviou resposta nem aviso de recepção em


relação ao retrato de Emily. A tia Elizabeth e a tia Laura, conhecendo
o feitio da tia mais ou menos bem, não se surpreenderam, mas Emily
sentia-se preocupada. Talvez a tia-avó Nancy não aprovasse o que tinha
feito; ou talvez ainda a achasse estúpida demais para se incomodar com
ela.
Emily não gostava de estar rotulada como estúpida. Escreveu uma carta
muito sarcástica à tia-avó Nancy numa folha cor-de-rosa na qual não
poupou a velhota em relação ao conhecimento das normas de etiqueta
epistolar; a carta foi dobrada e guardada na pequena prateleira
debaixo do sofá mas serviu o seu propósito de aliviar tenções e Emily
tinha deixado de pensar no assunto quando chegou uma carta da tia
Nancy em Julho.
Elizabeth e Laura discutiram o assunto na casa do fogão, esquecidas ou
ignorando o facto de Emily estar sentada no degrau da porta da cozinha
logo ali ao lado. Emily imaginava-se a ser recebida na sala de visitas
da Rainha Vitória. Vestida de branco, com penas de avestruz, véu e
vestido de cauda, ela tinha acabado de se inclinar para beijar a mão
da rainha quando a voz da tia Elizabeth desfez o seu sonho como uma
pedra num charco destrói o reflexo.
“Qual é a tua opinião, Laura,” dizia a tia Elizabeth,” sobre deixar a
Emily ir visitar a tia Nancy?”
Emily afilou as orelhas. O que viria por aí, agora?
“Na carta ela parece muito ansiosa por conhecer a criança,” disse
Laura.
Elizabeth respingou.
“Um capricho--só um capricho. Tu sabes como ela é caprichosa. O mais
provável é que na altura em que Emily lá chegue já lhe tenha passado e
ela não lhe veja piada nenhuma.”
“Sim, mas por outro lado se não a deixamos ir ela vai ficar
terrivelmente ofendida e nunca nos vai perdoar--nem à Emily. A Emily
devia ter uma hipótese.”
“Eu não sei se será uma grande hipótese. Se a tia Nancy realmente tem
algum dinheiro para além da anuidade dela—-e isso nem tu nem eu nem
ninguém sabe, a não ser talvez a Caroline—-provavelmente deixa-o todo
aos Priests--o Leslie Priest é o favorito dela, pelo que sei. A tia
Nancy sempre gostou mais da família do marido do que da dela, embora
esteja sempre a criticá-los. Ainda assim--talvez goste da Emily--são
as duas tão estranhas que devem estar bem uma para a outra--mas tu
sabes a maneira como ela fala--ela e aquela abominável velha
Caroline.”
“Emily é jovem demais para compreender,” disse a tia Laura.
“Eu compreendo mais do que vocês pensam,” exclamou Emily indignada.
A tia Elizabeth abriu de rompante a porta da casa do fogão.
“Emily Starr, não tinhas já aprendido que é muito feito estar à
escuta?”

122
“Eu não estava à escuta. Eu pensei que soubessem que eu aqui estava
sentada—-e não posso impedir os meus ouvidos de ouvirem. Porque é que
não falaram baixinho? Quando vocês falam baixinho eu sei que estão a
dizer segredos e não tento ouvir o que dizem. Eu vou visitar a tia-avó
Nancy?”
“Nós ainda não decidimos,” disse friamente a tia Elizabeth, e foram
todas as satisfações que deram a Emily durante uma semana. Ela própria
não conseguia definir se queria ou não ir. A tia Elizabeth tinha
começado a fazer queijo--New Moon era conhecida pelos seus queijos--e
Emily achava todo o processo muito interessante, desde a altura em que
se fazia coalhar o leite morno até que o coalho era posto nos arcos e
postos sob a prensa no velho pomar, com a grande pedra “do queijo”,
redonda e cinzenta que o prensava como tinha feito com todos os
queijos de New Moon desde há cem anos. E além disso ela e Ilse e Teddy
e Perry estavam absorvidos de corpo e alma com a peça do Conto de Uma
Noite de Verão que ensaiavam no bosque do Lofty John e que era
verdadeiramente fascinante. Quando entravam no bosque do Lofty John
saíam do reino da luz do dia e das coisas conhecidas, e entravam no
reino da noite, do mistério e do encantamento. Teddy pintara um
cenário maravilhoso em tábuas velhas e pedaços de velas que Perry
tinha trazido do porto. Ilse tinha criado umas fantásticas asas de
fada de papel de seda e papel de prata, e o Perry fizera uma cabeça de
burro de uma velha pele de carneiro que parecia muito realista. Emily
lutara alegremente durante semanas copiando e adaptando as diferentes
partes e adaptando-as ás circunstâncias. Tinha cortado a peça de uma
forma que dilaceraria o coração de Shakespeare, mas no final o
resultado estava bastante bonito e coerente. Não os preocupava que
quatro pequenos actores tivessem que fazer seis vezes quatro papéis.
Emily era Titania e Hermia e uma quantidade mais de fadas, Ilse era
Hippolyta e Helena, mais outras tantas fadas, e os rapazes eram o que
quer que fosse que os diálogos exigissem. A tia Elizabeth não sabia
nada sobre o assunto; teria rapidamente posto um fim à história,
porque achava que a representação de peças era uma coisa maquiavélica;
mas a tia Laura estava a par do enredo, e o primo Jimmy e o Lofty John
tinham inclusivamente assistido a um ensaio ao luar.
Ir-se embora e deixar tudo isto, mesmo só por uns tempos, seria um
duro golpe, mas por outro lado Emily tinha uma curiosidade tremenda
por ver a tia-avó Nancy e Wyther Grange, a sua velha e estranha casa
em Priest Pond com os famosos cães de pedra no portão de entrada. No
fundo ela achava que gostava de ir; e quando viu a tia Laura engomar-
lhe os saiotes e a tia Elizabeth a limpar o pó de uma pequena mala
preta no sótão soube, antes que lhe dissessem, que a visita a Priest
Pond se ia realizar; pelo que tirou do sítio a carta que escrevera à
tia-avó Nancy e escreveu-lhe um post-scriptum em tom de pedido de
desculpas.
Ilse decidiu ficar aborrecida porque Emily ia fazer uma visita. Na
verdade, Ilse sentia que a perspectiva de um mês inteiro de solidão
sem a sua companheira inseparável era muito pouco apelativa. Não
haveriam mais tardes alegres de ensaios no bosque do Lofty John, nem
mais brigas pungentes. Para além disso, a Ilse nunca tinha sido
convidada fosse para onde fosse em toda a sua vida e sentia-se magoada
por isso.
“_Eu_ não ia para Wyther Grange nem por nada deste mundo,” disse Ilse.
“Está assombrada.”
“Não está nada!”
“Está! Está assombrada por um fantasma que se consegue sentir e ouvir
mas que não se consegue ver. Oh, eu não trocava de lugar contigo por
nada deste mundo! A tua tia-avó Nancy é tão esquisita, e aquela velha
que vive com ela é bruxa. Vai-te lançar um feitiço. Vais-te definhar e
morrer.”
“Não vou nada--não é nada!”

123
“É pois! Ora, ela até faz com que os cães de pedra do portão uivem
todas as noites quando se aproxima deles. Eles fazem, ‘AUUUUUU.’”
Não era por nada que Ilse era uma declamadora nata. O seu “AUUUUU” era
extremamente assustador. Mas à luz do dia a Emily era corajosa como um
leão.”
“Tu tens é inveja,” disse, e saiu.
“Não tenho nada, sua centípede rastejante,” gritou-lhe Ilse pelas
costas. “A armares-te em grande porque a tua tia tem cães de pedra ao
portão! Eu sei de uma mulher em Shrewsbury que tem cães ao portão e
são dez vezes melhores que os da tua tia!”
Mas na manhã seguinte Ilse estava lá para se despedir de Emily e para
lhe pedir que lhe escrevesse todas as semanas. Emily ia para Priest
Pond com o velho Kelly. A tia Elizabeth é que a devia ter levado mas
não se sentia muito bem nesse dia e a tia Laura não a podia deixar
sozinha. O primo Jimmy tinha que trabalhar no feno. Quase parecia que
ela não podia ir, e isto era um bocado grave porque a tia Nancy estava
à espera dela nesse dia e a tia Nancy não gostava de ser desapontada.
Se Emily não aparecesse em Priest Pond no dia combinado a tia-avó
Nancy era capaz de lhe fechar a porta na cara quando aparecesse e
dizer-lhe que fosse para casa. Nada senão esta convicção teria
convencido Elizabeth a aceitar a sugestão do velho Kelly de a levar
com ele. A sua casa era no fim de Priest Pond e ele ia nessa direcção.
Emily ficou deliciada. Ela gostava do velho Kelly e achava que uma
viagem feita na sua velha carroça seria uma aventura e peras. A sua
pequena mala preta foi içada até ao tecto e atada, e seguiram caminho
tilintando e reluzindo pela alameda de New Moon abaixo em grande
estilo. As latas nas entranhas da carroça por detrás deles batiam como
um tremor de terra bebé.
“Vamos embora, ruço, vamos embora,” dizia o velho Kelly. “Eu sempre
gostei de levar raparigas bonitas, é verdade. E para quando é o
casório?”
“O casório de quem?”
“A fazer-se desentendida…O teu, claro.”
“Eu não tenho intenção nenhuma de me casar--para já,” disse Emily,
numa excelente imitação do tom e estilo da tia Elizabeth.”
“Pois, pois, não sais ás pedras da calçada. A Miss Elizabeth não dizia
isso melhor que tu. Vamos embora, ruço, vamos embora.”
“eu só queria dizer,” disse Emily, sentindo que talvez tivesse
insultado o velho Kelly,” que sou muito nova para casar.”
“Quanto mais novas melhor--menos sarilhos arranjas com esses olhos de
“chega-te p’ra cá”. Vamos embora, ruço, vamos embora. A besta está
cansada. Por isso vamos deixá-lo ir à vontade dele. Ora aqui tens um
saco de doces. O velho Kelly trata sempre bem as meninas. Vamos lá,
conta-me tudo sobre ele.”
“Sobre quem?”--mas Emily sabia bem quem era.
“O teu namorado, claro.”
“Eu não tenho namorado nenhum. Senhor Kelly, não devia falar comigo
dessas coisas.”
“Pois, e não falo se te deixa incomodada. Não te preocupes se não
tiveres nenhum--vais ter carradas deles daqui por uns anos. E se o que
gostares não souber o que bom para ele dizes aqui ao velho Kelly que
eu arranjo-te um unguento de sapo.”
Unguento de sapo! Parecia horrível. Emily estremeceu. Mas ainda assim
preferia falar de unguentos de sapo do que de namorados.
“E para é que serve isso?”
“É uma poção do amor,” disse o velho Kelly misteriosamente. “Pões-lhe
um bocadinho nas pálpebras e ele é teu para o resto da vida sem olhar
para outras raparigas.”
“Não me soa muito bem,” disse a Emily. “Como é que o faz?”
“Ferves quatro sapos vivos até estarem macios e depois esmagas-os—“

124
“Oh, pare, pare!” implorou Emily, pondo as mãos nos ouvidos.”Eu não
quero ouvir mais nada--não ia ser tão cruel!”
“Cruel, hã? Tu ainda hoje comeste lagostas que foram cozidas vivas--"
“Eu não acredito. Não acredito. Se é verdade nunca, nunca mais como
nenhuma. Oh, senhor Kelly, eu achei que o senhor era um homem bom--mas
aqueles pobres sapos!”
“Querida menina, eu estava só a brincar. E tu não vais precisar de
unguento nenhum para ganhares o amor da tua vida. Espera lá--tenho
aqui uma coisa para te dar de presente.”
O velho Kelly apanhou uma caixa que pôs no colo de Emily. Ema
encontrou lá dentro uma pequena escova do cabelo.
“Olha para a parte de trás dela,” disse o velho Kelly. “Vais lá ver
uma coisa bonita, é toda a poção do amor que vais precisar.”
Emily virou-a. O seu próprio rosto aparecia a olhá-la de volta através
de um pequeno espelho encastrado rodeado por uma grinalda de flores
pintadas.
“Oh, senhor Kelly--que bonito--quero dizer as rosas e o espelho,”
exclamou. “É mesmo para mim? Oh, obrigada, obrigada! Agora posso ter a
Emily detrás do espelho sempre que queira. Até posso andar com ela. E
estava mesmo a brincar em relação aos sapos!”
“Claro. Vamos embora, ruço, vamos embora. Então vais visitar a velhota
lá em Priest Pond? Já alguma vez lá estiveste?”
“Não.”
“Está cheio de Priests. Não se consegue atirar uma pedra sem se
acertar num. E quando se acerta num, é como se se acertasse em todos.
São tão orgulhosos e empinados como os próprios Murray. O único que eu
conheço é o Adam Priest--os outros acham-se muito bens. Ele até é
bastante razoável. Mas se quiseres ver como aprecia o mundo na manhã
do dilúvio é ires ao celeiro dele num dia de chuva. Ouve uma coisa,
querida menina”--o velho Kelly baixou misteriosamente a voz--"nunca te
lembres de casar com um Priest.”
“Porque não?” perguntou Emily curiosa, que embora nunca tivesse
pensado em tal coisa ficou logo a pensar no assunto.
“São maus para casar--maus para se viver. As esposas morrem novas. A
velhota da granja ganhou ao homem dela e enterrou-o mas ela tinha a
sorte dos Murray do lado dela. Eu não confiava tanto. O único Priest
decente entre todos eles é o Jarback Priest e esse é velho demais para
ti.”
“Porque é que lhe chamam Jarback3?”
“Tem um ombro um bocado mais alto que o outro. Ele tem algum dinheiro
e não tem grande interesse em trabalhar. Um rato de biblioteca, acho
eu. Tens algum bocado de metal contigo?”
“Não; porquê?”
“Devias ter. A velha Caroline Priest lá da granja é bruxa ou eu não me
chamo Kelly.”
“Oh, foi mesmo isso que a Ilse me disse. Mas não há bruxas de verdade,
senhor Kelly.”
“Talvez seja verdade mas nunca fiando. Olha, pões este prego da
ferradura no bolso e não a chateies se puderes evitar. Não te importas
que eu fume um bocado, pois não?”
Emily não se importava nada. Deixava-a livre para deixar correr o
pensamento, que era mais agradável do que a conversa de sapos e bruxas
do velho Kelly. A estrada para Priest Pond era muito bonita, ladeado a
costa do golfo, atravessando rios e baías orladas a pinheiros, e
encontrado de vez em quando alguns dos laguinhos pelos quais essa zona
do norte era conhecida—-Blair Water, Lago Derry, Lago Comprido, Três
Lagos onde três pequenos laguinhos se pegavam um com o outro como três
brilhantes safiras penduradas num fio de prata; e por fim Priest Pond,
o maior de todos, quase tão redondo como Blair Water. Enquanto
viajavam na sua direcção Emily bebeu a cena com olhos ávidos--assim
3
Jarback: significa costas tortas

125
que pudesse escreveria uma descrição dele; tinha metido o livro em
branco que o primo Jimmy lhe oferecera na mala para essas coisas.
O ar parecia repleto de um pó opalino sobre o grande lago e as casas
alinhadas ao por do sol à sua volta. O céu de oeste pintado a vermelho
esfumado arqueava-se sobre a grande baía de Malvern mais à frente.
Pequenas velas cinzentas percorriam as costas debruadas a pinheiros.
Uma estrada lateral, profusamente ladeada de jovens aceres e bétulas,
levava-os a Wyther Grange. Que frio e húmido estava o ar nos vales! E
como cheiravam bem os fetos! Emily teve pena quando alcançaram Wyther
Grange e entraram pelo portão onde os grandes cães de pedra se
sentavam muito imponentes, parecendo muito sérios ao anoitecer.
A grande porta do hall estava aberta e uma enxurrada de luz saía até
ao relvado. Uma pequena mulher idosa estava para à porta. O velho
Kelly pareceu ficar subitamente apressado. Pôs Emily e a sua mala no
chão, apertou-lhe rapidamente a mão e murmurou, “Não percas esse
prego. Adeus. Desejo-te uma cabeça fria e um coração morno,” e partiu
antes que a estranha velhota os conseguisse alcançar.
“Então esta é a Emily de New Moon!” ouviu Emily dizer numa voz um
pouco aguda e quebradiça. Sentiu uma mão fria, quase como uma garra,
apanhar a sua e levá-la para a porta. Não existem bruxas, Emily bem
sabia--mas levou a mão ao bolso e tocou no prego da ferradura.

NEGÓCIOS COM FANTASMAS

“A tua tia está na sala de visitas de trás,” disse Caroline Priest.


“Anda por aqui. Estás cansada?”
“Não,” disse Emily, seguindo Caroline e observando-a cuidadosamente.
Se a Caroline fosse realmente uma bruxa era uma muito pequena. Não era
mais alta que a própria Emily. Usava um vestido de seda preta e uma
touca de croché preto debruada com um pequeno folho preto por cima do
cabelo branco amarelado. O seu rosto era mais enrugado do que Emily
pensava ser possível e tinha os olhos de um verde acinzentado
particular, que Emily descobriu mais tarde ser característico dos
Priests.
“Podes ser uma bruxa,” pensou Emily, “mas eu acho que posso contigo.”
Atravessaram o espaçoso hall, vislumbrando detalhes de divisões
grandes e esplêndidas, e depois atravessaram a cozinha até um pequeno
hall nas traseiras. Era comprido e estreito. De um lado tinha uma fila
de quatro janelas quadradas de vidros pequenos, do outro tinha
armários, que iam do chão ao tecto com portas de madeira preta e
brilhante. Emily sentiu-se como uma heroína de um romance gótico,
deambulado à meia-noite por uma masmorra subterrânea, com um guia
sobrenatural. Ela tinha lido Os Mistérios de Udolpho e O Romance da
Floresta antes que a anátema tivesse caído sobre a estante do Dr.
Burnley. Tremia. Era terrível mas interessante.
Ao fim do hall um lanço de quatro degraus levavam a uma porta. Ao lado
dos degraus estava um enorme relógio de pé que quase chegava ao tecto.
“Nós trancamos as meninas lá dentro quando se portam mal,” disse-lhe
baixinho Caroline, acenando a Emily enquanto abria a porta que dava
para a sala de visitas de trás.
“Eu vou ter cuidado para que não me feches lá a mim,” pensou Emily.
A sala de visitas de trás era uma divisão bonita e pitoresca onde uma
mesa estava posta para o jantar. Caroline levou Emily através dela e
bateu a uma outra porta, usando um batente de latão antigo que tinha a
forma de um gato risonho, com um sorriso tão irresistível que nos
fazia ter vontade de rir também quando o víamos. Alguém disse,
“Entre,” e desceram outros quatro degraus--onde é que se vira uma casa
tão engraçada?--ao entrarem num quarto. Ali por fim estava a tia-avó
Nancy Priest, sentada num cadeirão, com a sua bengala preta encostada

126
ao joelho e as mãos pequenas e brancas, ainda bonitas, brilhando de
aneis finos, pousadas sobre um avental de seda roxa.
Emily sentiu um choque de distinta desilusão. Depois de ter ouvido o
poema em que a beleza de Nancy Murray era rimada, de cabelo cor de
avelã e olhos castanhos com brilho de estrelas, faces de rosa
acetinado, de certa forma esperava que a tia-avó Nancy, apesar dos
seus noventa anos, ainda fosse bela. Mas a tia-avó Nancy tinha o
cabelo branco e a pele amarelada e enrugada e encovada, embora os seus
olhos ainda fossem brilhantes e espertos. De certa forma, ela parecia
uma fada velhota--uma fada velhota atrevida e tolerante, que se
poderia revelar subitamente malévola se as coisas não lhe fossem a
jeito--só que as fadas nunca usavam brincos de ouro tão compridos que
quase chegavam aos ombros, ou toucas de croché brancas enfeitadas com
amores-perfeitos violetas.
“Então esta é que é a menina da Juliet!” disse, dando a Emily uma das
suas mãos reluzentes. “Não fiques tão desorientada, rapariga. Eu não
te quero beijar. Nunca gostei de infligir beijos em criaturas
indefesas só porque tinham a pouca sorte de serem da minha família.
Então, com quem é que ela se parece, Caroline?”
Emily fez uma careta mental. Agora seria um novo desfile de
comparações, onde narizes e testas há muito desaparecidos seriam
chamados a compara com os dela. Estava perfeitamente saturada de ver o
seu aspecto discutido em cada reunião do clã.
“Com os Murray não é,” disse Caroline, aproximando-se tanto do rosto
de Emily que esta se afastou instintivamente. “Não é tão bonita como
os Murray.”
“Nem como os Starr. O pai dela era um belo homem--tão bonito que eu
tinha fugido com ele se fosse cinquenta anos mais nova. Não tem nada
da Juliet pelo que vejo. A Juliet era bonita. Tu não és tão bonita
como o retrato mas eu também não esperei que fosses. Os retratos e os
epitáfios não são coisas de confiança. Para onde foi a tua franja?”
“A tia Elizabeth penteou-ma para trás.”
“Na minha casa pode-la pentear para a frente. E há qualquer coisa do
teu avô Murray nas tuas sobrancelhas. O teu avô era um homem bonito--
tinha um feitio tremendo--quase tão mau como o dos Priests--hã
Caroline?”
“Se não se importa, tia-avó Nancy,” disse Emily decididamente, “Eu não
gosto que me comparem com outras pessoas. Eu pareço-me comigo.”
A tia Nancy deu uma gargalhada.
“Tens fibra, sim senhora. Ainda bem. Nunca gostei de miúdos apagados.
Com que então não és estúpida, hã?”
“Não, não sou.”
A tia-avó Nancy sorriu nesta altura. Os seus dentes postiços pareciam
invulgarmente brancos e jovens no seu rosto velho e escurecido.
“Ainda bem. Se tens esperteza é melhor do que seres bonita-—a
inteligência dura, a beleza não. Como eu, por exemplo. Aqui a Caroline
nunca teve nem beleza nem inteligência, não é Caroline? Então vamos
jantar. Graças a Deus que o meu estômago não me falhou como a minha
beleza.”
A tia-avó Nancy foi coxeando, apoiada na sua bengala, subiu os degraus
atravessou a outra sala até à mesa. Sentou-se num dos topos, Caroline
no outro, Emily entre elas, sentindo-se um pouco desconfortável. Mas a
sua paixão dominante ainda tomava conta dela e já começava a compor
uma descrição de ambas para o seu livro em branco.
“Será que alguém vai ter pena quando você morrer,” pensou, olhando
interessada para o rosto engelhado de Caroline.
“então agora diz-me lá,” disse a tia Nancy. “Se tu não és estúpida
como é que me escreveste uma carta tão parva naquela primeira vez. Que
estúpida que era! Eu leio-a à Caroline para a castigar de cada vez que
se porta mal.”

127
“Eu não conseguia escrever outro tipo de carta porque a tia Elizabeth
ia lê-la.”
“Ah, era bem capaz disso. Bem, aqui podes escrever o que quiseres--e
dizer o que quiseres--e fazer o que quiseres. Ninguém vai meter-se
contigo nem tentar educar-te. Eu chamei-te para uma visita não foi
para um castigo. Acho que o mais certo é teres castigos demais em New
Moon. Podes mandar na casa e escolher o namorado que mais te agrade
entre os rapazes de Priest Pond--embora os jovens já não sejam o que
eram no meu tempo.”
“Eu não quero um namorado,” respondeu Emily. Sentiu-se bastante
incomodada. O velho Kelly falara-lhe de namorados metade do caminho e
cá estava a tia Nancy a pegar no mesmo assunto desnecessário.
“Não me digas,” disse a tia-avó Nancy, rindo-se até abanar os seus
brincos de ouro. “Não houve uma Murray de New Moon que não quisesse um
namorado. Quando eu tinha a tua idade tive meia dúzia. Todos os
rapazes de Blair Water se brigavam por minha causa. Aqui a Caroline
nunca teve um namorado na vida, pois não, Caroline?”
“Também nunca quis nenhum,” respondeu Caroline.
“Todas dizem o mesmo e nenhuma fala a verdade,” disse a tia Nancy.
“Tem algum sentido sermos hipócritas umas para as outras? Eu não digo
que não fica bem quando há homens por perto. Caroline, já reparaste
como a Emily tem umas mãos bonitas? Tão bonitas como as minhas quando
eu era nova. E tem cotovelos de gata. A prima Susan Murray tinha uns
cotovelos assim. É estranho--ela tem mais coisas dos Murray do que dos
Starr e no entanto parece-se mais com os Starr. Que somas tão
estranhas que nós fazemos--a resposta nunca é a que estávamos à
espera. Caroline, é uma pena que o Jarback não esteja por cá. Ele ia
gostar da Emily--parece-me que ia gostar dela. O Jarback é o único
Priest com hipóteses de ir para o céu quando morrer, Emily. Deixa-me
ver os teus tornozelos, gatinha.”
Emily tirou o pé para fora sem muita vontade. A tia Nancy acenou de
satisfação.
“O tornozelo da Mary Shipley. Só aparece um por geração. Eu tinha-o.
Os tornozelos dos Murray são grossos. Até os da tua mãe eram. Olha só
para aquele pé, Caroline. Emily, não és nenhuma beldade mas se
aprenderes a usar os olhos, as mãos e os pés como deve ser passas por
uma. Os homens enganam-se com facilidade e se as mulheres disserem que
não és vão parecer invejosas.”
Emily decidiu que era uma boa oportunidade de descobrir uma coisa que
a intrigava.
“O senhor Kelly diz que eu tenho uns olhos de “chega-te p’ra cá”, tia
Nancy. È verdade? E o que é que isso quer dizer?”
“O Jock Kelly é um velho parvo. Tu não tens olhos de “chega-te p’ra
cá”--isso não está de acordo com a tradição dos Murray.” A tia Nancy
riu-se. “Os Murray têm todos olhos de “meta-se no seu lugar”--e tu
também tens—-embora as tuas pestanas te contradigam um bocado. Mas ás
vezes olhos assim--combinados com certos outros pontos--são tão
eficientes como olhos de “chega-te p’ra cá”. Os homens são espíritos
de contradição a maior parte das vezes—-se lhes dizes para se irem
embora não despegam de maneira nenhuma. O meu Nathaniel, por exemplo--
a única maneira de o pôr a fazer alguma coisa era mandá-lo fazer o
contrário. Lembras-te Caroline? Apetece-te outra bolacha, Emily?”
“Eu ainda não comi nenhuma,” disse Emily, um pouco ressentida.
As bolachas tinham um aspecto tentador e ela tinha estado à espera que
lhas passassem. Não percebeu porque é que a tia Nancy e a Caroline se
riram as duas. O riso da Caroline era desagradável--um riso seco e
enferrujado—-“sem sumo,” decidiu Emily. Achou que na sua descrição ia
escrever que a Caroline tinha um riso “fino e craquejante.”
“O que é que achas de nós?” perguntou a ia Nancy. “Vá, de verdade, o
que é que pensas de nós?”

128
Emily ficou terrivelmente embaraçada. Tinha acabado de pensar que a
tia Nancy parecia “encolhida e ressequida;” mas uma pessoa não podia
dizer uma coisa dessas, não podia.
“Diz a verdade e envergonha o diabo,” disse a tia Nancy.
“Essa pergunta não é justa,” exclamou Emily.
“Tu achas,” disse a tia Nancy rindo,”que eu sou uma velha hedionda e
que a Caroline não é bem humana. E não é. Nunca foi--mas se tu me
visses há setenta anos... Eu era a mais bonita dos Murray bonitos. Os
homens ficavam loucos por mim. Quando eu me casei com o Nat Priest os
três irmãos dele ficaram capazes de lhe cortar o pescoço. Um deles
cortou o dele próprio. Oh, eu fiz grandes distúrbios no meu tempo. Só
me arrependo de não poder fazer tudo outra vez. Foi bom enquanto
durou. Eu reinei sobre eles todos. Claro que as mulheres me odiavam--
todas menos aqui a Caroline. Tu adoravas-me, não era Caroline? E ainda
me adoras, não é? Caroline, eu só desejava que não tivesses esse cravo
no nariz.”
“Eu desejava que tivesse um na língua,” disse Caroline viperina.
Emily começava a sentir-se cansada e desorientada. Era interessante—-e
a tia Nancy era bastante simpática no seu jeito estranho; mas lá em
casa a Ilse e o Perry e o Teddy iam-se estar a juntar no bosque do
Lofty John para uma reunião nocturna e a Saucy Sal estaria sentada nos
degraus da leitaria, à espera que o primo Jimmy lhe desse a espuma do
leite. Emily apercebeu-se nessa altura que estava com saudades de New
Moon como tivera de Maywood na primeira noite que lá passara.
“A criança está cansada,” disse a Tia Nancy. “Leva-a para a cama,
Caroline. Põe-na no quarto rosa.”
Emily seguiu Caroline através do hall das traseiras, atravessaram a
cozinha, atravessaram o hall da frente, subiram umas escadas,
atravessaram outro corredor comprido e um outro hall lateral. Para
onde é que a estavam a levar? Finalmente chegaram a um grande quarto.
Caroline acendeu a lâmpada e perguntou a Emily se ela tinha camisa de
dormir.
“Claro que tenho. Acha que a tia Elizabeth me tinha mandado sem
nenhuma?”
Emily estava bastante indignada.
“A Nancy diz que podes dormir até que queiras de manhã,” disse
Caroline. “Boa noite. Eu e a Nancy dormimos na ala velha, claro, e os
outros dormem bem nas suas campas.”
Com este comentário críptico a Caroline saiu e fechou a porta.
Emily sentou-se numa otomana bordada e olhou à sua volta. As cortinas
das janelas eram de um brocado cor-de-rosa desbotado e as paredes
estavam forradas a papel cor-de-rosa decorado com losangos de cadeias
de rosas. Fazia um papel de fadas muito bonito, como Emily descobriu
quando fez o truque dela com os olhos. Havia uma carpete verde no
chão, tão salpicada de rosas grandes e cor-de-rosa que Emily quase
tinha receio de lhe pôr os pés em cima. Ela decidiu que o quarto era
realmente esplêndido.
“Mas eu tenho que aqui dormir sozinha, por isso tenho que dizer as
minhas orações com muito cuidado,” pensou.
Despiu-se um pouco à pressa, apagou a luz e meteu-se na cama. Cobriu-
se até ao queixo e ali ficou, olhando para o tecto alto e branco.
Tinha-se habituado de tal maneira à cama de dossel da tia Elizabeth
que se sentia curiosamente desamparada naquela, mais baixa e mais
moderna. Mas pelo menos a janela estava aberta de par em par--era
evidente que a tia Nancy não partilhava do horror da tia Elizabeth
pelo ar da noite. Através dela Emily conseguia ver os campos estivais
jazendo sob a magia de uma lua amarela que se levantava. Mas o quarto
era grande e assustador. Ela sentia-se horrivelmente distante de toda
a gente. Estava sozinha--com saudades de casa. Pensou no velho Kelly e
no unguento de sapo. Talvez ele fervesse mesmo os sapos vivos. Este
pensamento hediondo atormentava-a. Era horrível imaginar os sapos--ou

129
qualquer outro animal--a serem fervidos vivos. Ela nunca dormira
sozinha antes. De repente ficou assustada. Como batia a janela. Soava
como se alguém--ou alguma coisa--tentasse entrar. Ela lembrou-se do
fantasma da Ilse--um fantasma que não se via mas se ouvia e sentia era
realmente uma coisa assustadora no que diz respeito a fantasmas--
pensou nos cães de pedra que faziam “Auuuuu” à meia-noite. Um cão
começou realmente a uivar em qualquer lado. Emily sentiu uma gota de
suor fria sobre a sobrancelha. O que tinha querido dizer a Caroline
com “os outros dormem bem nas suas campas”? O chão estalava. Não
estaria alguém--ou alguma coisa--a passar em bicos de pés em frente à
porta? Será que tinha visto alguma coisa mexer naquele canto? Haviam
sons misteriosos por todo o hall.
“Eu não vou ficar assustada,” disse Emily. “Não vou pensar nessas
coisas, e amanhã vou escrever sobre como me sinto agora.”
E então—-ouviu realmente qualquer coisa--mesmo por trás da parede à
cabeceira da cama. Não haviam dúvidas. Não era a sua imaginação. Ouviu
distintamente um resmalhares estranhos--como se vestidos de seda muito
engomados se roçassem uns nos outros—como se asas flutuantes
percorressem o ar--e haviam sons suaves e abafados como gritos ou
choros de crianças pequenas. Eles permaneciam--continuavam. De vez em
quando esmoreciam-—depois continuavam novamente.
Emily refugiou-se debaixo dos lençóis, fria de verdadeiro terror.
Primeiro o seu medo fora apenas superficial--ela sabia que não havia
nada a temer, embora estivesse assustada. Qualquer coisa nela a levou
a suportar. Mas isto não era engano nenhum, não era fruto da
imaginação. Os resmalhos e as asas a bater e os gritos e gemidos de
crianças eram demasiado reais. Wyther Grange subitamente tornou-se num
sítio horrível e misterioso. Ilse tinha razão--estava realmente
assombrado. E ela estava ali completamente sozinha com milhas de
quartos de halls entre ela e qualquer ser humano. A tia Nancy tinha
sido muito cruel por a ter posto num quarto assombrado. A tia Nancy
devia saber que estava assombrado--a cruel tia Nancy com o seu orgulho
macabro nos homens que se tinham matado por ela. Oh, se ela estivesse
de volta à querida New Moon, com a tia Elizabeth ao seu lado. A tia
Elizabeth não era a companheira de cama ideal mas era de carne e osso.
E se mantinha as janelas hermeticamente fechadas mantinham tanto o ar
da noite como os fantasmas lá fora.
“talvez não seja tão mau se eu disser as minhas orações outra vez,”
pensou Emily.
Mas nem isto ajudou muito.
Até ao fim da sua vida Emily nunca se esqueceu desta horrível primeira
noite em Wyther Grange. Estava tão cansada que por vezes adormecia por
instantes para depois acordar em pânico, pelos gemidos abafados por
detrás da cama. Cada fantasma e gemido, cada espírito torturado e
freira sangrenta dos livros que lera lhe veio à ideia.
“A tia Elizabeth tinha razão--as novelas não são bons livros para
ler,” pensou. “Oh, eu vou morrer aqui--de medo--eu sei que vou. Eu
sei que sou cobarde--não consigo ter coragem.”
Quando a manhã despontou o quarto ficou iluminado pela luz do sol e
liberto de sons misteriosos. Emily levantou-se, vestiu-se e encontrou
o caminho para a ala antiga. Estava pálida, com olheiras, mas
resoluta.
“Então, e que tal dormiste?” perguntou a tia Nancy simpaticamente.
Emily ignorou a questão.
“Eu quero voltar a casa hoje,” disse.
A tia Nancy ficou a olhar para ela.
“Para casa? Que disparate! Não me digas que és um bebé cheio de
saudades?”
“Eu não tenho saudades--não muitas--mas eu tenho que ir para casa.”
“Não podes—-não há cá ninguém que te leve. Não esperas que a Caroline
te leve de volta a Blair Water, pois não?”

130
“Então vou a pé.”
A tia Nancy bateu com a bengala no chão muito zangada.
“TU vais ficar aqui até que eu te deixe ir, menina gatinha. Eu não
tolero mais caprichos que os meus. A Caroline sabe disso, não sabes,
Caroline? Senta-te e come o teu pequeno almoço--come.”
A tia Nancy olhou muito séria para Emily.
“Eu não fico aqui,” disse Emily. “Não passo nem mais uma noite naquele
horrível quarto assombrado. Foi muito cruel por me ter posto lá. Se-—“
Emily devolveu o olhar à tia Nancy—-“Se eu fosse a Salomé eu ia pedir
a sua cabeça numa bandeja.”
“Olha para ela! Que disparate é esse de quarto assombrado? Nós não
temos cá fantasmas em Whyter Grange. Pois não, Caroline? Não os
consideramos muito higiénicos.”
“Mas há qualquer coisa horrível naquele quarto—-gemeu e resmalhou e
gritou toda a noite na parede por trás da minha cama. Eu ali não
fico--não fico--”
As lágrimas de Emily correram-lhe cara abaixo apesar dos seus esforços
para as reprimir. Estava tão excitada e nervosa que não conseguia
evitar chorar. Já lhe faltava muito pouco para a histeria.
A tia Nancy olhou para Caroline e Caroline olhou para a tia Nancy.
“Nós devíamos ter-lhe dito, Caroline. A culpa é toda nossa. Eu
esqueci-me--já há tanto tempo que ninguém dorme no quarto cor-de-rosa.
Não admira que ela esteja assustada. Emily, pobre criança, foi uma
vergonha. Era bem feito que me servissem a cabeça numa bandeja, sua
fedelha vingativa. Nós devíamos ter-te dito.”
“Dito--o quê?”
“Sobre as andorinhas na chaminé. Foi isso que ouviste. A grande
chaminé central passa mesmo pela parede por trás da tua cama. Nunca
mais a usámos desde que fizemos as lareiras. As andorinhas fazem lá o
ninho--ás centenas. E fazem realmente um barulho estranho—-a voarem e
a brigarem como costumam.”
Emily sentiu-se tola e envergonhada--muito mais envergonhada do que
devia, porque a sua experiência fora realmente assustadora e pessoas
mais velhas que ela já tinham apanhado sustos de morte no quarto cor-
de-rosa de Whyter Grange. Nancy punha por vezes as pessoas a dormir lá
expressamente para as assustar Mas para sua justiça há que dizer que
se esquecera no caso de Emily.
Emily não falou mais em voltar para casa; a Caroline e a tia Nancy
foram ambas muito simpáticas para ela nesse dia; dormiu uma boa sesta
durante a tarde; e quando chegou a segunda noite foi direita ao quarto
cor-de-rosa e dormiu profundamente toda a noite. Os gritos e resmalhos
eram tão distintos como sempre, mas andorinhas e espectros são duas
coisas completamente diferentes.
“Afinal de contas, eu até acho que gosto de Whyter Grange,” disse
Emily.

UM OUTRO TIPO DE FELICIDADE

"20 DE JULHO.

"QUERIDO PAI:

“Já estou em Whyter Grange há uns dias e não lhe escrevi nem uma vez.
Mas tenho pensado em si todos os dias. Tive que escrever à tia Laura e
a Ilse e ao Teddy, ao primo Jimmy e ao Perry, mas entre cartas
divirto-me muito. Na primeira noite que cá passei não achei que fosse
ser muito feliz. Mas estou--só que é um tipo de felicidade diferente
do de New Moon.

131
“A tia Nancy e a Caroline são muito boas para mim e deixa-me fazer
tudo o que quero. Isto é muito agradável. Elas são muito sarcásticas
uma para a outra. Mas eu acho que são um bocado como eu e a Ilse—-
brigam muitas vezes mas gostam muito uma da outra entre as brigas. Eu
tenho a certeza que a Caroline não é bruxa mas eu gostava de saber em
que é que ela pensa quando está sozinha. A tia Nancy já não é bonita
mas tem um ar muito aristocrático. Ela não anda muito por causa do
reumatismo, por isso passa a maior parte do tempo sentada na sala de
visitas das traseiras e lê ou faz renda de duas agulhas ou joga ás
cartas com a Caroline. Eu falo muito com ela porque ela diz que a
divirto e já lhe contei muitas coisas mas nunca lhe contei que escrevo
poesia. Se contasse ela ia pedir-me que lhe recitasse qualquer coisa e
não acho que ela seja a pessoa indicada para eu recitar as minhas
poesias. E eu também não falo da Mãe e do Pai com ela, embora ela
tente. Eu contei-lhe tudo sobre o Lofty John e o bosque, e ter ido
falar com o padre Cassidy. Ela riu-se e disse que sempre gostou de
falar com os padres católicos porque eram os únicos homens com quem
uma mulher podia falar mais de dez minutos sem dizerem que se estava a
atirar a eles.
“A tia Nancy diz muitas coisas assim. Ela e a Caroline falam muito uma
com a outra sobre coisas que aconteceram nas famílias dos Murray e dos
Priest. Eu gosto de me sentar a ouvi-las. Elas não param quando as
coisas ficam interessantes como a tia Elizabeth e a tia Laura. Há
muitas coisas que eu não percebo mas eu vou-me lembrar delas até
descobrir o que eram um ia. Eu escrevi descrições da tia-avó Nancy e
da Caroline no meu livro-Jimmy. Tenho o livro por detrás do guarda
fato do quarto porque um dia dei com a Caroline a vasculhar as minhas
coisas. Eu não chamo tia-avó à tia Nancy. Ela diz que a faz sentir
como se fosse o Matusalem. Ela contou-me tudo sobre os homens que
estiveram apaixonados por ela. Parece-me que faziam quase todos as
mesmas coisas. Não acho que fosse muito excitante, mas ela acha.
Conta-me sobre todas as festas e bailes que faziam dantes. Whyter
Grange é maior que New Moon e a mobília é muito mais bonita mas é mais
difícil sentirmo-nos à vontade.
“Há tantas coisas interessantes nesta casa. Eu adoro vê-las. Há um
copo jacobita num pedestal da sala de visitas. Foi um copo que um
velho antepassado dos Priests trouxe há muitos anos da Escócia e tem
um cardo e uma rosa e só o usavam para beber à saúde do príncipe
Charlie e para mais nada. É um tesouro de família muito valioso e a
tia Nancy dá-lhe muito valor. E ela tem uma cobra em conserva num
grande frasco de vidro no armário da loiça. É horrível mas fascinante.
Eu tremo quando a vejo mas tenho que a ir ver todos os dias. Qualquer
coisa me arrasta para lá. A tia Nancy tem uma secretária no quarto com
puxadores de vidro e um vaso com a forma de um peixe verde sentado
sobre a cauda e um dragão chinês com a cauda encaracolada, e uma caixa
cheia de pequenos colibris embalsamados e um vidro para cozer ovos e
uma coroa emoldurada feita do cabelo de todos os Priests que já
morreram e montes de daguerreótipos antigos. Mas a coisa de que eu
mais gosto é de uma grande bola brilhante que está pendurada de uma
lâmpada na sala de visitas. Reflecte tudo como se fosse um pequeno
mundo de fadas. A tia Nancy chama-lhe uma bola de olhar e diz que
quando morrer deixa-ma a mim. Eu gostava que ela não me tivesse dito
porque eu queria tanto aquela bola que não consigo deixar de pensar
quando morrerá ela e sinto-me mal por isso. Eu também vou ficar com o
batente gato e com os brincos de ouro dela. Estes são heranças dos
Murray. A tia Nancy diz que as heranças dos Priests têm que ir para os
Priests. Eu vou gostar do gato mas não queria os brincos. Prefiro que
as pessoas não reparem nas minhas orelhas.
“Eu tenho que dormir sozinha. Sinto-me assustada mas acho que se me
passar isso vou gostar. Agora já não me importo com as andorinhas. Só
me assusta estar sozinha tão longe de toda a gente. Mas é muito bom

132
poder esticar as pernas à vontade sem que ninguém me ralhe por andar
ás voltas. E quando eu acordo a meio da noite e penso numa esplêndida
poesia (Porque as coisas em que pensamos são sempre as melhores) posso
levantar-me e escreve-las no meu livro-Jimmy. Eu não podia fazer isso
lá em casa e depois de manhã já não me lembrava. Pensei num verso tão
bonito ontem à noite. “Lírios levantam cálices perlados (um cálice é
uma espécie de copo mas mais poético) onde as abelhas se afogam em
doçura” e senti-me feliz porque tinha a certeza que eram os dois
melhores versos que já compus.
“Eu posso ir para a cozinha ajudar a Caroline a cozinhar. A Caroline é
boa cozinheira mas ás vezes engana-se a cozinhar e isto chateia a tia
Nancy porque ela gosta de comer coisas boas. Outro dia fez a sopa
grossa demais e quando a tia Nancy olhou para o prato disse ‘Santo
Deus, isto é para comer ou é uma cataplasma?’ A Caroline disse-lhe
‘Está suficientemente bom para uma Priest e o que é bom para uma
Priest é bom para uma Murray,’ e a tia Nancy disse-lhe, ‘Oh mulher, os
Priests comem as migalhas que caem das mesas dos Murray,’ e a Caroline
ficou tão furiosa que chorou. E a tia Nancy disse-me ‘Emily, nunca te
cases com um Priest’--tal e qual como o velho Kelly, quando eu não
tenho ideia de me casar com nenhum. Eu não gostei muito de nenhum dos
que conheci mas parecem-me ser como as outras pessoas. O Jim é o
melhor deles mas é impertinente.
“Eu gosto mais dos pequenos-almoços de Whyther Grange do que dos de
New Moon. Nós comemos torradas e bacon e marmelada--que é melhor que
papas de aveia.
“O domingo é mais divertido aqui do que em New Moon mas não tão
sagrados. São bons para variar. A tia Nancy não pode ir à igreja nem
fazer renda por isso joga todo o dia ás cartas com a Caroline mas ela
diz que eu nunca devo fazer o mesmo--que ela é um mau exemplo. Eu
adoro ver a grande Bíblia da sala de visitas porque está cheia de
coisas interessantes--pedaços de vestidos e de cabelo, de poesias e
acentos de mortes e casamentos. Eu encontrei uma coisa sobre o meu
próprio nascimento e deu-me uma sensação muito estranha.
“Á tarde alguns Priests vêm ver a tia Nancy e ficam para jantar. O
Leslie Priest vem sempre. Ele é o sobrinho favorito da tia Nancy, pelo
que diz o Jim. Eu acho que deve ser porque ele lhe faz muitos elogios.
Mas eu vi-o piscar o olho ao Isaac Priest um dia quando lhe fez um. Eu
não gosto dele. Trata-me como se eu fosse uma mera criança. A tia
Nancy diz-lhes coisas terríveis a todos mas eles só se riem. Quando se
vão embora a tia Nancy faz pouco deles e a Caroline não gosta porque
ela é uma Priest por isso brigam-se sempre nos Domingos à noite e só
se falam outra vez nas segundas de manhã.
“Eu posso ler todos os livros da estante da tia Nancy menos os da
prateleira de cima. Não sei porque não posso. A tia Nancy disse-me que
eram romances franceses mas eu espreitei um e estava em inglês. Será
que a tia Nancy diz mentiras?
“O sítio que eu mais gosto é a costa da baía. Nalgumas partes a costa
é muito íngreme e há tantos sítios cheios de mato, inexperados e
agradáveis ao longo dela. Eu ando por lá e componho poesias. Tenho
muitas saudades da Ilse, do Teddy, do Perry e da Saucy Sal. Eu recebi
uma carta da Ilse hoje. Ela escreveu a dizer que não conseguiam fazer
mais da peça do Sonho de Uma Noite de Verão enquanto eu não voltasse.
É tão bom sentirmo-nos necessários.
“A tia Nancy não gosta da tia Elizabeth. Chamou-lhe ‘tirana’ um dia
destes e depois disse ‘O Jimmy Murray era um rapaz muito esperto. A
Elizabeth matou-lhe a inteligência numa fúria--e não lhe aconteceu
nada. Se ela tivesse morto o corpo dele tinha sido uma assassina. E
isto foi pior, se querem saber.’ Eu não gosto da tia Elizabeth ás
vezes mas senti, querido pai, que tinha que defender a minha família e
disse ‘Não quero tornar a ouvir dizer essas coisas da minha tia
Elizabeth.’

133
“E mandei-lhe um olhar. Ela disse ‘Sim senhora, o meu irmão Archibald
não vai morrer enquanto tu estiveres viva. Se não queres ouvir certas
coisas não venhas para o pé de nós quando eu e a Caroline estamos a
conversar. Já vi que há muitas coisas que gostas de ouvir.’
“E isto foi sarcasmo, querido pai, mas eu ainda acho que a tia Nancy
gosta de mim mas talvez não goste por muito tempo. O Jim Priest diz
que ela é instável e que nunca gostou de ninguém, nem do marido, por
muito tempo. Mas depois de ser sarcástica comigo ela diz sempre à
Caroline que me dê uma fatia de tarte por isso até nem me importo. Ela
também me deixa beber chá verdadeiro. Eu gosto. Em New Moon a tia
Elizabeth não me dá nada senão chá coado porque diz que é melhor para
a minha saúde. A tia Nancy diz que a melhor maneira de sermos
saudáveis é comermos do que queremos e nunca pensarmos no estômago.
Mas ela nunca esteve ameaçada pela tuberculose. Ela diz que eu não
tenho que me preocupar com a tuberculose porque tenho vida demais para
isso. É uma ideia agradável. As únicas alturas em que não gosto da tia
Nancy é quando se põe a falar das diferentes partes de mim e do efeito
que vão ter nos homens. Faz-me sentir tão tola.
“Eu vou-lhe escrever mais vezes depois disto, querido Pai. Acho que o
tenho negligenciado.
P.S. Se calhar houve alguns erros nesta carta. Eu esqueci-me de trazer
o meu dicionário.

"22 DE JULHO.

“Oh, querido Pai, eu estou metida num sarilho terrível. Não sei o que
hei-de fazer. Oh Pai, eu parti o copo jacobita da tia Nancy. Parece-me
um pesadelo horrível.
“Eu fui à sala de visitas hoje para ver a cobra em conserva e quando
me ia virar a minha manga tocou no copo jacobita e lá foi ele parar ao
chão onde se desfês em mil pedaços. Primeiro fugi lá para fora e
deixei-os lá mas depois voltei, apanhei-os todos e escondi-os numa
caixa por trás do sofá. A tia Nancy agora nunca vai à sala de visitas
e a Caroline não vai muitas vezes, por isso pode ser que não dêem por
falta do copo antes de eu ir para casa. Mas isto persegue-me. Estou
sempre a pensar nele e não consigo distrair-me com nada. Eu sei que a
tia Nancy vai ficar furiosa e nunca mais me vai perdoar se souber. Não
dormi a noite toda a pensar nisto. O Jim Priest veio cá hoje para
brincar comigo mas disse que eu não tinha graça nenhuma e foi-se
embora. Os Priests dizem o que pensam a maioria das vezes. Claro que
eu não tinha graça nenhuma. Como é que podia ter? Será que resolve
alguma coisa se eu rezar por causa disto? Nem sequer sinto que devesse
rezar, parece-me que estou a enganar a tia Nancy.

“24 DE JULHO.

“Querido Pai, este mundo é mesmo estranho. Nada se passa da maneira


que esperamos. Na noite passada eu não conseguia dormir novamente.
Estava tão preocupada. Achava que era uma cobarde, a fazer coisas
daquelas e a não estar à altura das minhas tradissões. Por fim senti-
me tão mal que já não aguentava. Eu consigo aguentar quando outras
pessoas têm má opinião de mim mas magoa-me tanto quando tenho má
opinião de mim própria. Por isso levantei-me da cama e percorri
aqueles halls todos até chegar à sala de visitas das traseiras. A tia
Nancy ainda lá estava a jogar solitaire. Ela perguntou-me o que raio
estava a fazer fora da cama a uma hora daquelas. Eu disse-lhe, logo
depressa para despachar o pior, ‘Eu parti o seu copo jacobita ontem e
escondi os pedaços por trás do sofá.’ Então fiquei à espera que a
tempestade rebentasse. A tia Nancy disse ‘Ainda bem. Eu quis espatifá-
lo tantas vezes mas nunca tive coragem. Todos os Priests estavam à

134
espera que eu morresse para ficarem com o copo e brigarem por causa
dele e agrada-me saber que nenhum o pode ter agora e nem sequer se
podem zangar comigo por o ter partido. Vai para a cama fazer o teu
sono de beleza.’ Eu disse-lhe ‘E a tia não está chateada, tia Nancy?’
‘Se fosse uma herança dos Murray eu ia ficar pior que estragada’
respondeu-me ela. ‘Mas não ligo peva ás coisas dos Priests.’
“Por isso voltei para a cama, querido Pai e senti-me aliviada, mas não
muito heróica.
“Eu recebi uma carta da Ilse hoje. Ela diz que a Saucy Sal teve
finalmente gatinhos. Eu achei que lá devia estar para cuidar deles. O
mais certo é a tia Elizabeth afogá-los todos antes de eu chegar.
Também tive uma carta do Teddy, não era bem uma carta mas cheia de
desenhos queridos da Ilse e do Perry e de Tansy Patch e do bosque do
Lofty John. Fizeram-me ficar com saudades.

"28 DE JULHO.

“Oh, querido Pai, eu descobri tudo sobre o mistério da mãe da Ilse. É


tão terrível que não consegui escrever sobre ele, nem para si. Eu não
consigo acreditar mas a tia Nancy diz que é verdade. Nunca pensei que
pudessem haver coisas tão horríveis no mundo. Não, eu não acredito,
nem vou acreditar, não interessa quem diga que é verdade. Eu sei que a
mãe da Ilse não pode ter feito uma coisa daquelas. Tem que ter havido
um engano terrível. Estou tão triste que acho que nunca mais vou ser
feliz outra vez. Na noite passada chorei na minha almofada, como as
heroínas dos livros da tia Nancy.”

“ELA NÃO PODE TER FEITO ISSO”

A tia-avó Nancy e a Caroline gostavam de colorir os seus dias


cinzentos com as lembranças escarlates de velhas distracções e
festarolas, mas iam mais longe que isto e falavam de todo o tipo de
histórias de família perante a Emily sem qualquer respeito pela
infância desta. Amores, nascimentos, mortes, escândalos, tragédias—-
tudo o que lhe vinha ás velhas cabeças. Nem se poupavam a detalhes. A
tia Nancy deliciava-se com os detalhes. Não se esquecia de nada, e os
pecados e fraquezas que a morte cobrira e o tempo fizera esquecer eram
arrastados impiedosamente e dissecados por esta macabra velha senhora.
Emily não estava bem certa se realmente gostava disso ou não. Era
fascinante--alimentava-lhe uma qualquer necessidade de drama--mas
fazia-a de certa forma infeliz, como se qualquer coisa muito feia
estivesse escondida nas profundezas de um poço que elas abriam perante
os seus olhos inocentes. Como tinha dito a tia Laura, a juventude dela
protegia-a até certo ponto, mas não a pôde salvar de compreender a
triste história da mãe da Ilse na tarde em que pareceu bem à tia Nancy
ressuscitar este episódio de angústia e vergonha.
Emily estava aninhada no sofá da sala de visitas das traseiras, lendo
“Os Chefes Escoceses” porque era uma tarde de Julho sufocante de
quente—-quente demais para passear pela costa. Emily sentia-se muito
feliz. A Dama do Vento sussurrava sobre o grande bosque de aceres por
detrás de Whyter Grange, virando as folhas até que cada árvore parecia
coberta de estranhos rebentos prateados; entravam fragrâncias
desprendidas do jardim; o mundo era lindo; tinha recebido uma carta de
tia Laura dizendo que um dos gatinhos de Saucy Sal tinha sido guardado
para ela. Quando o Mike II morreu, Emily sentira que nunca mais ia
querer outro gato. Mas agora achava que queria. Tudo lhe estava a
correr muito bem; estava tão feliz que teria sacrificado o seu bem
mais precioso aos deuses invejosos se conhecesse alguma coisa sobre as
antigas crenças pagãs.

135
A tia Nancy estava farta de jogar solitaire. Empurrou as cartas e
agarrou na sua renda.
“Emily,” disse, “a tua teia Laura tem ideia de casar com o DR.
Burnley?”
Emily, assim resgatada do campo de Bannockburn, pareceu aborrecida.
Esta questão era muitas vezes levantada pelos mexericos de Blair Water
e agora vinha apanhá-la aqui em Priest Pond.
“Não, com certeza que não,” disse. “Ora, tia Nancy, o Dr. Burnley
odeia as mulheres.”
A tia Nancy riu-se.
“Pensei que talvez já tivesse ultrapassado isso. Já há onze anos que a
mulher dele fugiu. Poucos homens se mantêm firmes numa ideia tanto
tempo. Mas o Allan Burnley sempre foi teimoso em tudo--no amor como no
ódio. Ele ainda ama a mulher--e é por isso que odeia tanto a memória
dela e todas as outras mulheres.”
“Eu nunca percebi bem essa história,” disse a Caroline. “Quem era a
mulher dele?”
“A Beatrice Mitchell--uma das Mitchells de Shrewsbury. Ela só tinha
dezoito anos quando o Allan se casou com ela. Ele tinha trinta e cinco
anos. Emily, nunca sejas parva ao ponto de casar com um homem muito
mais velho que tu.”
Emily não respondeu. Os chefes escoceses foram completamente
esquecidos. As pontas dos seus dedos estavam a ficar geladas como
sempre ficavam com a excitação, os olhos ficaram pretos. Sentia-se à
beira de resolver o mistério que há tanto tempo a preocupava e
intrigava. Estava desesperadamente receosa que a tia Nancy
desembocasse noutro tema qualquer.
“Eu ouvi dizer que ela era muito bonita,” disse Caroline.
A tia Nancy fungou.
“Depende do gosto de cada um. Oh, ela era bonita--uma boneca de
cabelos dourados. Tinha um pequeno sinal por cima da sobrancelha
esquerda--parecia um pequeno coração vermelho--quando eu olhava para
ela só via o sinal. Mas os pretendentes dela diziam-lhe que era um
sinal de beleza—-‘Dama de Copas’, era o que lhe chamavam. Allan estava
doido por ela. A Beatrice tinha sido uma conquistadora antes de casar.
Mas eu sou capaz de afirmar--porque a justiça entre as mulheres é uma
coisa rara, Caroline--tu por exemplo és uma megera injusta--que ela
não se portou mal depois de casar--pelo menos ás claras. Ela era uma
gata falsa—-sempre a cantar e a rir e a dançar--não era mulher para o
Allan Burnley se queres que te diga. E ele podia ter ficado com a
Laura Murray. Mas entre uma palerma e uma mulher sensata qual é o
homem que hesita? As palermas ganham sempre, Caroline. Foi por isso
que não arranjaste marido. Eu arranjei o meu fingindo-me de tonta.
Emily, lembra-te disto. Tu tens miolos--esconde-os. Os teus tornozelos
vão fazer muito mais por ti do que os teus miolos.”
“Deixe lá os tornozelos da Emily,” disse Caroline, ansiosa por ouvir o
escândalo. “Continue lá com os Burnleys.”
“Bem, havia um primo dela--Leo Mitchell de Shrewsbury. Lembras-te dos
Mitchells, não lembras, Caroline? Este Leo era um tipo muito bonito--
um capitão de navio. Tinha estado apaixonado pela Beatrice, pelo que
se dizia. Algumas pessoas diziam que ela gostava dele mas que a
família a tinha obrigado a casar com o Allan Burnley porque ele era
melhor partido. Quem sabe? Os mexericos mentem nove vezes e dizem meia
verdade na décima. Ela fingiu estar apaixonada pelo Allan Burnley e
ele acreditou. Quando Leo veio de uma viagem e deu com a Beatrice
casada levou aquilo muito bem. Mas estava sempre em Blair Water. A
Beatrice tinha muitas desculpas. O Leo era primo dela--tinham sido
criados juntos--eram como irmãos--ela sentia-se tão sozinha em Blair
Water depois de ter vivido numa cidade--ele não tinha outra casa senão
a de um irmão. Allan acreditava naquilo tudo--estava tão apaixonado
por ela que teria acreditado fosse no que fosse. O Leo e ela andavam

136
sempre juntos quando o Allan ia ver os pacientes. Então veio a noite
em que o barco do Leo--A Dama dos Ventos--devia partir do porto de
Blair Water para a América do Sul. Ele partiu--e a senhora dona
Beatrice partiu com ele.
Um pequeno som estrangulado fez-se ouvir do canto onde Emily estava.
Se a tia Nancy ou a Caroline tivessem olhado para ela teriam visto que
a criança estava branca como morta, com os olhos muito grandes,
repletos de horror. Mas elas não olharam. Tricotavam e falavam,
divertindo-se imenso.
“E como é que o doutor reagiu?” perguntou Caroline.
“Como reagiu--como reagiu--ninguém sabe. Mas toda a gente sabe o tipo
de homem que ele é desde essa altura. Voltou a casa nesse dia ao
anoitecer. O bebé estava a dormir no berço e uma empregada que tinham
tomava conta dela. Disse ao Dr. Burnley que a senhora tinha ido ao
porto despedir-se do primo e que estaria de volta ás dez horas. Allan
esperou por ela com calma--nunca duvidou dela--mas ela não chegou a
voltar. Nunca tinha tido intenção disso. De manhã a Dama dos Ventos
tinha partido--tinha deixado o porto ao anoitecer do dia anterior.
Beatrice tinha ido a bordo com ele--era o que toda a gente sabia.
Allan Burnley não disse nada, para além de proibir que o seu nome
fosse pronunciado à sua frente outra vez. Mas a Dama dos Ventos
perdeu-se com toda a tripulação ao largo de Hatteras e foi o fim
daquela fuga, e o fim de Beatrice com toda a sua beleza e riso e o seu
‘sinal de beleza’.”
“Mas não foi o fim da vergonha e da maldade que trouxe ao seu lar,”
disse Caroline amargamente. “Eu deitava alcatrão e penas numa mulher
dessas.”
“Que disparate--se um homem não consegue tomar conta da sua própria
esposa--se cega os seus próprios olhos--Valha-me Deus, menina, o que é
que se passa?”
“Eu não acredito nisso,” gritou, com uma voz alta e pouco natural. “Eu
não acredito que a mãe da Ilse tenha feito isso. Não fez--não pode ter
feito--a mãe da Ilse não.”
“Agarra-a Caroline!” exclamou a tia Nancy.
Mas embora a sala de visitas tivesse rodado à sua volta por uns
momentos, Emily estava recuperada.
“Não me toque!” gritou apaixonadamente. “Não me toque! Você--você--
você gostou de ouvir essa história!”
E saiu de rompante pela porta. A tia Nancy pareceu envergonhada por
uns momentos. Pela primeira vez ocorreu-lhe que a sua língua
devoradora de escândalos tinha feito uma coisa má. Depois encolheu os
ombros.
“Ela não pode passar a vida iludida. Mais vale descobrir agora que uma
espada é uma espada. Eu pensei que ela já tivesse ouvido a história há
muito tempo se os mexericos em Blair Water ainda fossem como eram
dantes. Se vai para casa contar isto não tarda nada tenho as virgens
indignadas de New Moon a baterem-me à porta em sagrado horror por eu
corromper a juventude. Caroline, não me peças para te contar mais
vergonhas familiares à frente da minha sobrinha, sua velha
escandalosa. Com a tua idade! Parece mentira!”
A tia Nancy e Caroline voltaram ás suas rendas e ás suas lembranças
picantes, e lá em cima Emily deitada de barriga para baixo na cama
chorou durante horas. Que coisa horrível--a mãe da Ilse fugir e deixar
a sua bebezinha. Para Emily essa era a coisa mais horrível--mais
estranha, cruel e desalmada que fizera a mãe da Ilse. Não conseguia
acreditar—-tinha que haver algum engano--havia com certeza.
“Talvez tenha sido raptada,” disse Emily, tentando desesperadamente
explicar. “Ela foi a bordo só para espreitar--e ele levantou a âncora
e levou-a com ele. Ela não pode ter ido de livre vontade deixando a
sua querida bebé.”

137
A história impressionou honestamente a Emily. Não conseguia pensar em
mais nada durante dias. Tomou posse dela e preocupou-a e moeu-a quase
ao ponto de lhe causar dor física. Temia voltar a New Moon e encontrar
a Ilse com a consciência deste segredo negro de que tinha que a
preservar. Ilse não sabia de nada. Ela tinha-lhe perguntado onde
estava enterrada a mãe e Ilse dissera, “Oh, não sei, em Shrewsbury,
talvez--é onde estão todos os Mitchells.”
Emily apertava as suas mãos magras. Era tão sensível à fealdade e à
dor como à beleza e ao prazer, e esta história era horrorosa e
agonizante. Ainda assim, não conseguia evitar pensar nela de noite e
de dia. A vida em Whyter Grange tornou-se subitamente monótona. A tia
Nancy e a Caroline deixaram de comentar histórias de família, mesmo as
inofensivas, perante ela. E como era uma repressão dolorosa para elas
não a encorajavam a andar por ali. Emily começou a sentir que elas
preferiam não a ter por perto e mantinha-se longe, passando a maior
parte dos dias passeando na costa. Não conseguia compor poesia—-não
conseguia escrever no livro-Jimmy, nem sequer conseguia escrever ao
pai. Qualquer coisa parecia interpor-se entre ela e os seus antigos
prazeres. Havia uma gota de veneno em cada cálice. Nem as sombras
transparentes sobre a grande baía, o encanto dos seus penhascos
recortados a pinheiros e as suas ilhotas roxas que pareciam pedaços do
país das fadas não lhe conseguiam trazer o encanto descuidado de
antigamente. Tinha receio de nunca mais ser feliz outra vez--de tão
intensa que tinha sido a sua reacção à revelação das mágoas e pecados
do mundo. E por debaixo disto tudo, persistia a mesma incredulidade—-a
mãe da Ilse não podia ter feito aquilo—-e o mesmo desejo impotente de
provar que ela não o tinha feito. Mas poderia provar-se? Não podia.
Ela tinha resolvido um mistério mas emprenhara-se noutro ainda mais
denso--a razão pela qual Beatrice Burnley não regressara naquele
anoitecer de Verão de há tantos anos. Porque, embora todos os factos
apontassem em sentido contrário, Emily persistia na sua crença secreta
que qualquer que fosse a razão, não era porque tivesse embarcado na
Dama dos Ventos quando o malfadado navio saíra para a maravilha
estrelada do golfo para além de Blair Water.

NA COSTA DA BAÍA

“Quanto tempo ainda terei de vida,” pensava Emily.


Ela tinha-se afastado naquela tarde mais do que nunca no seu passeio
pela costa da baía. Era uma tarde quente e ventosa, o ar estava
resinoso e perfumado; a baía de um turquesa enevoado. A parte de costa
onde se encontrava agora parecia-lhe tão solitária e virgem como se
nenhum pé humano a tivesse alguma vez pisado, a não ser num pequeno e
ondeado caminho, estreito como um fio vermelho e orlado por grandes
lençóis de ervas verdes aveludadas que entravam e saíam por entre os
grandes pinheiros e abetos. As encostas ficavam mais íngremes e
rochosas à medida que avançava e finalmente o caminho desapareceu por
completo num maciço de fetos. Emily ia mesmo a voltar para trás quando
viu um magnífico ramo de farewell-summer, crescendo já muito próximos
da beira da encosta. Tinha que os colher--nunca tinha visto farewell-
summers de um roxo tão rico e profundo. Caminhou na sua direcção para
os apanhar--o solo traiçoeiro cedeu por baixo dos seus pés e deslizou
pela encosta abaixo. Emily fez um esforço aflito para se afastar mas
quanto mais tentava, mais depressa deslizava a terra, levando-a atrás.
Mais um momento e chegaria à beira e ao limite das rochas, em direcção
à praia salpicada de rochas seis metros mais abaixo. Emily teve um
momento de terror e desespero; mas depois viu que o pedaço de terra
que se partira tinha ficado preso numa estreita saliência de pedra,
meio pendurado; e ela estava deitada sobre esse pedaço. Parecia-lhe

138
que o menor movimento da sua parte poderia fazê-lo cair, direito aos
cruéis pedregulhos lá em baixo.
Ficou ali muito quieta, tentando pensar--tentando não ter medo. Estava
longe, muito longe de casa--ninguém a ouviria se gritasse. E ela nem
se atrevia a gritar com receio que o seu corpo fizesse deslocar o
fragmento em que se apoiava. Quanto tempo conseguiria ali aguentar sem
se mexer? A noite estava quase a cair. A tia Nancy ficaria ansiosa
assim que escurecesse e iria mandar a Caroline procurá-la. Mas a
Caroline nunca a encontraria aqui. Ninguém a encontraria aqui, tão
longe de Whyter Grange, nos bosques de abetos da Baía de baixo. Ficar
ali deitada sozinha toda a noite--imaginar que a terra podia ceder--
esperar por uma ajuda que poderia nunca chegar—Emily mal conseguia
reprimir um tremor que lhe poderia ser fatal.
Ela tinha enfrentado a morte antes, ou pensou que enfrentara, na noite
em que o Lofty John lhe dissera que tinha comido uma maçã envenenada--
mas isto era ainda pior. Morrer aqui, sozinha, tão longe de casa!
Poderiam nunca saber o que lhe tinha acontecido, nunca a encontrar. Os
corvos ou as gaivotas iam comer-lhe os olhos. Imaginou a coisa tão
vividamente que quase gritou de terror. Ia desaparecer do mundo como
desaparecera a mãe de Ilse.
O que é que acontecera à mãe da Ilse? Mesmo nesta situação apertada
Emily interrogava-se sobre a questão. E ela não tornaria a ver a
querida New Moon ou o Teddy e a leitaria e Tansy Patch e o bosque do
Lofty John e o relógio de sol coberto de musgo e o seu precioso molho
de manuscritos escondidos por detrás do sofá no sótão.
“Eu tenho que ser muito corajosa e paciente,” pensou. “A minha única
hipótese é ficar muito quieta. E posso rezar na minha cabeça--tenho a
certeza que Deus consegue ouvir pensamentos tão bem como ouve as
palavras. É muito bom pensar que ele nos pode ouvir mesmo quando mais
ninguém pode. Oh, Deus--Deus do Pai--por favor faz um milagre e salva-
me a vida, porque eu acho que ainda não estou pronta para morrer.
Perdoa-me não estar de joelhos--bem vê que não me posso mexer. E se eu
morrer por favor não deixe que a tia Elizabeth encontre as minhas
cartas, nunca. Faça com que a tia Laura as encontre. E por favor não
deixe que a Caroline afaste o guarda fato quando fizer a limpeza
porque pode encontrar o meu livro Jimmy e ler o que escrevi sobre ela.
Por favor, perdoe todos os meus pecados, especialmente o não ser
suficientemente grata e ter cortado uma franja, e por favor não deixe
que o Pai se afaste muito. Ámen.”
Então, como era sua característica, pensou num post-scriptum. “E oh,
por favor, faça com que alguém descubra que a mãe da Ilse não fez
aquilo.”
Ali ficou muito quieta. A luz sobre a água começou a ficar rosa e
dourada. Um grande pinheiro numa encosta à sua frente emplumava-se com
uma crista de ramos escuros contra o esplendor âmbar que tinha por
trás--uma parte da beleza do mundo que lhe começava a escapar. O frio
da brisa da noite no golfo começou a avançar sobre ela. A dada altura
um pedaço de terra ao seu lado cedeu e caiu—-Emily ouviu-o bater nos
pedregulhos lá de baixo. O pedaço onde apoiava uma das pernas estava
também um pouco solto e pendente. Ela sabia que também se podia
quebrar a qualquer momento. Seria muito assustador ficar ali quando
anoitecesse. Ela conseguia ver o grande ramo de farewell summer que a
tinha atraído à desgraça, acenando-lhe descaradamente,
maravilhosamente roxo e belo.
Então, ao seu lado, ela viu a cabeça de um homem a olhar para ela!
Ouviu-o dizer,”Meus Deus!” devagar para si mesmo. Viu que era magro e
que um dos seus ombros era um pouco mais alto que o outro. Este devia
ser o Dean Priest—-Jarback Priest. Emily não se atreveu a chamá-lo.
Ficou muito quieta com os seus grandes olhos cinza alilasado a
dizerem, “salve-me”.

139
“Como é que te posso ajudar?” disse Dean Priest arrastadamente, como
se fosse para ele próprio. “Não te consigo alcançar--e parece que o
mais pequeno toque ou peso pode mandar essa terra toda lá para baixo.
Eu tenho que ir buscar uma corda--e deixar-te aqui sozinha--assim.
Podes esperar, pequena?”
“Sim,” disse Emily. Sorriu para o encorajar--o pequeno sorriso suave
que começava nos cantos da sua boca e se espalhava lentamente pelo
rosto. Dean Priest nunca esqueceu esse sorriso—-e os olhos infantis e
seguros que o olhavam num rosto tão próximo do abismo.
“Eu vou ser tão rápido quanto possa,” disse. “Não consigo ir muito
depressa--sou um bocado coxo, sabes. Mas não tenhas medo--eu vou-te
salvar. Deixo-te o meu cão para te fazer companhia. Aqui Tweed.”
Assobiou--e um grande cão dourado apareceu lá em cima.
“Senta-te aqui, Tweed, até que eu volte. Não mexas uma pata—-não
abanes a cauda—-fala com ela só com os olhos.”
Tweed sentou-se obediente e Dean Priest desapareceu.
Emily ficou ali deitada e organizou todo o incidente para o seu livro
Jimmy. Estava ainda um pouco assustada, mas não tanto que não
conseguisse imaginar-se a escrever sobre tudo isto no dia seguinte.
Seria um episódio muito arrepiante.
Gostava de saber que o cão ali estava. Não era tão entendida em case
como em gatos. Mas ele parecia-lhe muito humano e digno de confiança,
olhando por ela com grandes olhos meigos. Um gatinho cinzento era uma
coisa adorável--mas um gatinho cinzento não teria ali ficado sentado a
encorajá-la. “Acho,” pensou Emily, “que um cão é melhor que um gato
quando estamos em apuros.”
Dean Priest demorou meia hora a voltar.
“Graças a Deus que não foste parar lá abaixo,” murmurou. “Eu não tive
que ir tão longe quanto temia--encontrei uma corda num barco vazio
mais acima e trouxe-a. E agora—se eu te mandar a corda tens força
suficiente para te agarrares a ela enquanto a terra cai e segurar-te
enquanto te puxo?”
“Vou tentar,” disse Emily.
Dean Priest deu um nó na corda a fazer uma pega e fê-la deslizar até
ela. Depois atou a corda em volta de um pinheiro grande.
“Agora,” disse.
Emily disse para dentro,”querido Deus, por favor—-“e apanhou a corda
que se balançava. No momento seguinte todo o peso do seu corpo estava
pendurado dela, porque ao primeiro movimento o solo quebrado debaixo
de si deslizou--e caiu. Dean Priest tremeu. Seria ela capaz de se
manter agarrada enquanto ele a içava?
Então viu que ela tinha encontrado apoio numa pequena saliência.
Cuidadosamente puxou a corda. Emily, cheia de coragem, ajudou-o
espetando os dedos dos pés na encosta. Num momento estava ao seu
alcance. Ele apanhou-lhe os braços e puxou-a para cima, pondo-a ao seu
lado em segurança. Enquanto a subia ao lado dos farewell summer Emily
estendeu um braço e agarrou um punhado deles.
“Já os tenho, seja lá como for,” disse rejubilante. Depois lembrou-se
das suas boas maneiras. “Fico-lhe muito grata. Salvou-me a vida. E--e—
acho que me vou sentar um bocado. Tenho as pernas estranhas, a
tremer.”
Emily sentou-se, de repente mais trémula do que estivera durante todo
o perigo. Dean Priest apoiou-se contra o velho pinheiro. Também ele
parecia trémulo. Limpou a testa com o lenço. Emily olhou para ele com
curiosidade. Tinha sabido muitas coisas sobre ele pelos comentários da
tia Nancy--nem sempre comentários positivos, porque a tia Nancy não
gostava particularmente dele, ao que parecia. Chamava-lhe sempre
“Jarback” em desafio, enquanto a Caroline sempre lhe chamou Dean.
Emily sabia que ele tinha estado na faculdade, que tinha trinta e seis
anos--o que a Emily parecia uma idade venerável--que estava bem na
vida; que tinha um ombro mal formado e coxeava ligeiramente; que não

140
ligava a nada senão a livros e sempre assim fora; que vivia com um
irmão mais velho e viajava muito; e que todo o clã Priest ficava um
pouco em suspenso com a sua língua irónica. A tia Nancy tinha-lhe
chamado cínico. Emily não sabia o que era um cínico mas parecera-lhe
interessante. Observou-o cuidadosamente e viu que ele tinha feições
pálidas e delicadas e cabelo castanho claro. Os lábios eram finos e
sensíveis, com uma curva invulgar. Ela gostava da boca dele. Se fosse
mais velha tinha percebido porquê--denotava força e ternura e humor.
Apesar do seu ombro tinha uma certa dignidade despreocupada na
presença que era característica dos Priests e que era muitas vezes mal
interpretada como orgulho. Os olhos verdes dos Priests, que eram
inquisidores e estranhos em Caroline e impertinentes em Jim Priest
eram invulgarmente sonhadores e atraentes em Dean.
“Então, achas-me bonito?” disse, sentando-se noutra pedra e sorrindo
para ela. A sua voz era bela--musical e meiga.
Emily corou. Sabia que ficar a olhar não era boa educação e não o
achava nada bonito, pelo que ficou agradecida por ele não repetir a
pergunta, mas ter feito outra.
“Sabes quem foi o cavaleiro andante que te salvou?”
“Eu acho que deve ser Jar--o senhor Dean Priest.” Emily corou mais uma
vez de vergonha. Tinha estado tão perto de fazer outro erro terrível
de etiqueta.
“Sim, Jarback Priest. Não te preocupes com a alcunha. Já a ouvi muitas
vezes. É o que os Priests chamam uma piada.” E riu-se de uma forma
desagradável. “A razão é bastante óbvia, não é? Eu não ouvia outra
coisa na escola. Como é que foste parar ao precipício?”
“Eu queria isto,” disse Emily, acenando com os seus farewell summer.
“E já o tens! Consegues sempre aquilo que queres, mesmo com a morte a
um passo? Acho que nasceste com sorte. Consigo ver os sinais. Se
aquela grande aster te atraiu para o perigo também te salvou, porque
foi por a querer observar melhor que te encontrei. O tamanho e a cor
delas chamaram-me a atenção. De outra maneira eu tinha seguido e tu--o
que seria de ti? A quem pertences tu, que te deixa arriscar a vida
nestas encostas perigosas? Como é que te chamas--se é que tens nome!
Começo a duvidar de ti, já vi que tens orelhas pontiagudas. Será que
fui levado a envolver-me com fadas, e vou descobrir que passaram vinte
anos e que sou um velho há muito perdido do mundo, sem nada a não ser
o esqueleto do meu cão para me fazer companhia?”
“Eu sou a Emily Byrd Starr de New Moon,” disse Emily, com uma certa
frieza. Começava a ficar sensível em relação ás orelhas. O Padre
Cassidy tinha reparado nelas--e agora era o Jarback Priest. Haveria de
facto alguma coisa de estranho nelas?
Mas ainda assim, havia algo neste Jarback Priest de que ela gostava—-
decididamente sim. Emily nunca ficava muito tempo na dúvida em relação
a alguém que conhecia. Em poucos minutos sabia sempre se gostava, não
gostava ou era indiferente à pessoa. Tinha a estranha sensação de já
conhecer o Jarback Priest há anos--talvez porque lhe pareceu que
estivera tanto tempo deitada na terra movediça à espera que ele
voltasse. Ele não era bonito mas ela gostava do rosto esperto, magro
dele com os seus magnéticos olhos verdes.
“Então és tu a menina que está de visita na granja!” disse Dean Priest
com alguma admiração. “Então a minha querida tia Nancy devia tomar
melhor conta de ti--a minha muito querida tia Nancy.”
“Já vi que não gosta da tia Nancy,” disse Emily friamente.
“De que é que serve gostar de uma senhora que não gosta de mim? Já
deves ter descoberto nesta altura que a minha tia me detesta.”
“OH, não acho que seja tão mau como isso,” disse Emily. “Ela tem que
ter uma boa opinião de si, ela diz que é o único Priest com hipóteses
de ir para o céu.”
“Não me parece que diga isso como elogio, seja lá o que for que a tua
inocência te faça acreditar. E tu és filha do Douglas Starr? Eu

141
conheci o teu pai. Nós andámos juntos na academia de Queen’s,
separámo-nos depois de sairmos--ele foi para jornalismo e eu para
McGill. Mas ele foi o único amigo que tive na escola--o único rapaz
que se incomodava com o Jarback Priest, que era coxo e não podia jogar
futebol ou hóquei. Emily Byrd Starr-—Starr devia ser o teu primeiro
nome. Tu pareces uma estrela-—tens uma certa personalidade radiante
que brilha através de ti--o teu ambiente devia ser o da noite depois
do pôr-do-sol--ou o céu da manhã antes do nascer do sol. Sim, estarias
melhor no céu da manhã. Acho que te vou chamar Star.”
“Quer dizer que me acha bonita?” perguntou Emily directamente.
“Olha, não me ocorreu pensar se eras bonita ou não. Achas que uma
estrela deve ser bonita?”
Emily reflectiu.
“Não,” disse finalmente,”a palavra não condiz com uma estrela.”
“Deves ser uma artista com as palavras. Claro que não. As estrelas são
prismáticas--palpitantes--efusiva. Não encontramos muitas vezes uma
feita de carne e osso. Acho que vou esperar por ti.”
“Oh, eu estou pronta para ir,” disse Emily, levantando-se.
“Humm. Não me referia a isso. Não interessa. Vamos embora, Star--se
não te importares de andar um pouco mais devagar. Pelo menos vou
acompanhar-te até ao fim do bosque—-não sei se me aventuro a ir a
Wyther Grange esta noite. E então, não me achas bonito?”
“Eu não disse isso,” exclamou Emily.
“Não por palavras. Mas eu consigo ler-te os pensamentos, Star--não
penses que podes pensar qualquer coisa que não queiras que eu saiba.
Os deuses deram-me esse dom--e tiraram-me tudo o resto que eu quis. Tu
não me achas bonito mas achas-me agradável. Achas-te bonita?”
“Um bocadinho--desde que a tia Nancy me deixa usar franja,” disse
Emily com franqueza.
Jarback Priest fez uma careta.
“Não lhe chames isso. É um nome ainda pior que anca. Franjas e ancas--
magoam-me. Gosto da onda negra que quebra a tua testa branca, mas não
lhe chames franja, nunca mais.”
“É realmente uma palavra feia. Eu nunca a uso na minha poesia, claro.”
E Dean Priest descobriu que Emily escrevia poesia. Também descobriu
quase tudo o resto sobre ela naquele delicioso regresso a Priest Pond
na escuridão perfumada pelos pinheiros, com Tweed caminhando entre os
dois, tocando suavemente com o nariz na mão do dono de vez em quando,
enquanto os piscos nas árvores por cima deles assobiavam alegremente
na penumbra.
Com nove em cada dez pessoas Emily era reservada e cheia de segredos,
mas Dean Priest pertencia à sua espécie e ela adivinhou-o
instantaneamente. Tinha um direito inato ao santuário do seu coração e
ela permitiu-lhe a entrada inquestionavelmente. Falava livremente com
ele.
Para além disso, sentia-se viva novamente--sentia o arrepio
maravilhoso da vida, depois daquele momento horrível em que parecia
suspensa entre a vida e a morte. Sentia-se, como escreveu mais tarde a
seu pai, “como se uma ave me cantasse no coração.” E oh, como lhe
sabia bem sentir a erva verde debaixo dos pés!
Contou-lhe tudo sobre si própria, o que era e o que fazia. Só houve
uma coisa que não lhe contou--a sua preocupação com a mãe da Ilse.
Disso não conseguia falar com ninguém. A tia Nancy não precisava de
recear que ela fosse para New Moon repetir conversas.
“Eu ontem escrevi um poema completo enquanto chovia e não pude sair,”
disse. “Começava assim,
Sento-me à janela do oeste
Que dá para a baía de Malvern

“E não me dizes o resto?” perguntou Dean, que sabia perfeitamente que


Emily estava à espera que ele lho pedisse.

142
Emily deliciada repetiu-lhe todo o poema. Quando chegou aos dois
versos de que mais gostava,
Talvez naquelas ilhas cheias de florestas
Que brilham no peito da altiva baía
Olhou para cima de soslaio para ver se ele tinha gostado. Mas ele ia
andando de olhos baixos e expressão ausente. Sentiu-se um pouco
desiludida.
“Hum,” disse quando ela terminou. “Tu tens doze anos, não foi o que
disseste? Quando tiveres mais dez anos não me admirava--mas não vamos
pensar nisso.”
“O Padre Cassidy disse-me que continuasse,” exclamou Emily.
“Não havia necessidade disso. Tu ias continuar de qualquer maneira--o
bichinho da escrita nasceu contigo. É incurável, sabes? O que pensas
fazer com ele?”
“Acho que vou ser ou uma grande poetisa ou uma distinta novelista,”
disse Emily em tom de reflexão.
“Só te falta escolher,” comentou Dean irónico. “Mais vale seres
novelista, ouvi dizer que ganham melhor.”
“O que me preocupa em relação ás novelas,” confidenciou Emily, “são as
conversas apaixonadas. Tenho a certeza que nunca serei capaz de as
escrever. Já tentei,” concluiu inocentemente, “e não consigo pensar em
nada para dizer.”
“Não te preocupes com isso. Eu um dia ensino-te,” disse Dean.
“De verdade--ensinava mesmo?” Emily ficou muito entusiasmada. “Eu ia-
lhe ficar tão agradecida se ensinasse. Acho que conseguia ultrapassar
tudo o resto muito bem.”
“Então está combinado-—não te esqueças. E não andes à procura de outro
professor. O que é que fazes para te entreter na granja para além de
escreveres poesia? Nunca te sentes sozinha com aquelas duas
relíquias?”
“Não. Eu gosto da minha própria companhia,” disse Emily muito séria.
“Deves gostar. Dizem que as estrelas vivem sozinhas, de qualquer
forma, auto-suficientes e rodeadas da sua própria luz. Gostas mesmo da
tia Nancy?”
“Sim, bastante. Ela é muito boa para mim. Não me obriga a usar chapéu-
de-sol e deixa-me andar descalça de manhã. Mas eu tenho que usar botas
de tarde, e odeio botas abotoadas.”
“Com certeza. Devias usar sandálias de luar e um cachecol de maresia
com algumas libelinhas apanhadas no cabelo. Star, tu não te pareces
com o teu pai, mas fazes-me lembrar dele nalgumas coisas. Pareces-te
com a tua mãe? Eu nunca a conheci.”
De repente Emily sorriu timidamente. Naquele momento nasceu-lhe um
verdadeiro sentido de humor. Nunca mais se sentiria tão distintamente
trágica sobre fosse o que fosse.
“Não,” disse, ”dela só tenho as pestanas e o sorriso. Mas tenho a
testa do pai e o calo e olhos da avó Starr, e o nariz do tio-avô
George e as mãos da tia-avó Nancy, os cotovelos da prima Susan e os
tornozelos da trisavó Murray, e as sobrancelhas do avô Murray.”
Dean Priest riu-se.
“És uma manta de retalhos, como todos nós,” disse.”Mas a tua alma é só
tua, e novinha em folha, era capaz de jurar.”
“Oh, ainda bem que gosto de si,” disse Emily impulsivamente. “Era
horrível pensar que alguém de quem não gosto me tinha salvo a vida. Eu
não me importo nada que você a tenha salvo.”
“Que bom. Porque sabes que a tua vida me pertence daqui para a frente.
Uma vez que a salvei é minha. Nunca te esqueças disso.”
Emily sentiu uma estranha sensação de revolta. Não lhe agradava nada a
ideia de a sua vida pertencer a quem quer que fosse são a si—nem mesmo
a alguém de quem gostava tanto como do Dean Priest. Dean, observando-
a, viu isso e sorriu para ela com o seu sorriso meigo que parecia
sempre muito mais do que um sorriso.

143
“isso não te agrada muito? Ah, toda a gente paga um preço quando se
atinge algo fora do vulgar. Paga-se sempre com uma vassalagem
qualquer. Leva a tua magnífica aster para casa e guarda-a enquanto
puderes. Custou-te a tua liberdade.”
Ele ria-se--estava só a brincar, claro--mas Emily sentia-se como se
uma teia de aranha se tivesse enrolado à sua volta. Cedendo a um
impulso súbito atirou a grande áster para o chão e pôs-lhe o pé em
cima.
Dean Priest olhou para ela divertido. Os seus olhos estranhos eram
muito meigos quando encontraram os dela.
“Tu és uma coisa rara-—sua coisa viva—-sua coisa brilhante! Nós vamos
ser bons amigos--somos bons amigos. Eu vou a Wyther Grange amanhã para
ver essas descrições que fizeste da Caroline e da minha venerável tia
no teu livro Jimmy. Tenho a certeza que não deliciosas. Aqui está o
teu caminho--não te vás agora afastar para tão longe da civilização.
Boa noite, minha Estrela da Manhã.”
Ficou parado na encruzilhada à espera de a perder de vista.
“Que criança!” murmurou. “Nunca esquecerei os olhos dela ali deitada à
beira da terra--aquela pequena alma intrépida--e nunca vi uma criatura
tão cheia da mais pura alegria de viver. Ela é filha do Douglas
Starr--ele nunca me chamou Jarback.”
Baixou-se e apanhou a áster quebrada. O calcanhar de Emily tinha-a
partido ao meio e fora muito esmagada. Mas guardou-a nessa noite entre
as páginas de um velho volume de Jane Eyre, onde marcara um verso,
Toda gloriosa se ergueu perante a minha vista
Aquela criança de deslumbramento e de brilho

O VOTO DE EMILY

Em Dean Priest Emily encontrou pela primeira vez desde que o seu pai
morrera, um companheiro que a compreendia completamente. Esta sempre
no seu melhor com ele, com um sentimento delicioso de ser
compreendida. Amar é fácil, e portanto comum--mas compreender—-como é
raro! Percorreram maravilhosas terras de fantasia juntos nos dias
mágicos de Agosto que se seguiram à aventura de Emily na costa da
baía, falaram de coisas suculentas e imorais, e sentiam-se em casa com
as “antigas felicidades (felicities) naturais” que Wordsworth tão
alegremente refere.
Emily mostrou-lhe todas as poesias e descrições do seu livro Jimmy e
ele leu-as com seriedade, e tal como o pai, fez-lhes pequenas críticas
que não magoaram Emily porque ela sabia que eram justas. Quanto a Dean
Priest, uma certa fonte secreta de imaginário que há muito parecia
seca borbulhava nele, brilhando mais uma vez.
“Tu fazes-me acreditar em fadas, quer eu queira quer não,” disse-lhe,”
e isso significa ser jovem. Enquanto uma pessoa acredite em fadas
nunca poderá envelhecer.”
“Mas eu própria não acredito em fadas,” protestou Emily tristemente.
“Gostava tanto de acreditar.”
“Mas tu és tu própria uma fada--ou não serias capaz de encontrar a
terra das fadas. Não se pode comprar uma entrada para lá, sabes? Ou as
próprias fadas te dão o passaporte à nascença—-ou não dão. É tudo.”
“Não acha a ‘terra das fadas’ uma expressão maravilhosa?” disse Emily
sonhadora.
“Porque significa tudo o que deseja o coração humano,” disse Dean.
Quando ele lhe falava Emily sentia que olhava para um espelho
encantado onde todos os seus sonhos e desejos secretos se reflectiam
de volta com um encanto acrescentado. Se Dean Priest era um cínico,
não mostrava cinismo a Emily. Mas na sua companhia ele não era cínico;
atirava os anos para trás e era novamente um rapaz, com a compreensão

144
e as percepções imaculadas de um rapaz. Ela amava-o pelo mundo que ele
lhe abria perante os olhos.
E ele era tão divertido, também-—de um divertimento inesperado e
matreiro. Contava-lhe piadas--fazia-a rir. Contava-lhe estranhas
histórias antigas de deuses esquecidos que eram muito belos--de
festivais de corte e dos casamentos reais. Parecia ter toda a história
do mundo nas pontas dos dedos. Descrevia-lhe as coisas em frases
inesquecíveis enquanto passeavam pela costa da baía ou se sentavam na
erva alta do velho jardim ensombrado de Wyther Grange. Quando ele lhe
falou de Atenas como a “Cidade da Coroa Violeta” Emily apercebeu-se
que a magia acontecia quando se misturavam as palavras certas; e
adorava pensar em Roma como a “Cidade das Sete Colinas.” Dean estivera
em Roma e em Atenas—-como em quase todo o lado.
“Eu não sabia que havia pessoas que falavam como você sem ser nos
livros,” disse-lhe.
Dean rira-se--com uma pequena nota de amargura que estava tantas vezes
presente no seu riso--embora menos com Emily do que com outras
pessoas. Era de facto o seu riso que dera a Dean a reputação de
cinismo. As pessoas sentiam muitas vezes que ele se ria delas em vez
de se rir com elas.
“Eu só tive livros como companheiros a maior parte da minha vida,”
disse. “Será de admirar que fale como eles?”
“Tenho a certeza que vou gostar de estudar história depois disto,”
disse Emily; “Menos história do Canadá. Nunca gostei—-é tão
aborrecida. Só não é no princípio, quando pertencíamos à França e
havia muitas lutas, mas depois disso não há nada senão política.”
“Os países mais felizes, tal como as mulheres mais felizes, não têm
história,” disse Dean.
“Eu espero vir a ter historia,” exclamou Emily. “Eu quero uma carreira
emocionante.”
“Todos nós queremos, tonta. Sabes o que faz a história? Dor—-e
vergonha--e rebelião--e derramamentos de sangue e dores de alma. Star,
pergunta-te a ti mesma quantos corações sofreram--e se quebraram--para
fazer aquelas páginas vermelhas da história que tu achas tão
fascinantes. Eu contei-te a história de Leónidas e dos Espartanos no
outro dia. Eles tinham mães, irmãs, namoradas. Se se pudessem ter
debatido numa batalha sem sangue nas urnas não teria sido melhor--
embora não tão dramático?”
“Eu--não consigo--sentir isso assim,” disse Emily confusa. Ainda não
tinha idade suficiente para pensar ou dizer, como o faria dez anos
mais tarde, “Os heróis de Thremophylae foram uma inspiração para a
Humanidade durante séculos. Que disputa em torno de uma urna alguma
vez será assim?”
“E, como todas as criaturas fêmeas, baseias as tuas opiniões nos teus
sentimentos. Bem, espera pela tua carreira excitante--mas lembra-te
que se vieres a ter drama na tua vida alguém terá que pagar sob a
forma de sofrimento. Se não fores tu, então será outra pessoa
qualquer.”
“Oh, não, eu não ia gostar disso.”
“Então contenta-te com menos arrepios. E o que dizes à tua queda perto
da ravina. Esteve próxima de ser uma tragédia. E se eu não te tivesse
encontrado?”
“Mas encontrou-me,” exclamou Emily. “Eu gosto de saídas apertadas--
depois de tudo acabado,” acrescentou. “Se toda a gente fosse sempre
feliz não havia nada sobre o que ler.”
Tweed era um companheiro assíduo nas suas voltas e Emily cada vez
gostava mais dele, sem perder a sua lealdade para com o povo felino.
“Eu gosto de gatos com uma parte da cabeça e de cães com a outra,”
disse.

145
“Eu gosto de gatos mas nunca tenho nenhum,” disse Dean. “São demasiado
exigentes--pedem demasiado. Os cães só querem amor mas os gatos exigem
adoração. Nunca ultrapassaram os hábitos antigos de Bubastis.”
Emily compreendeu--ele contara-lhe tudo sobre o velho Egipto e a deusa
Pasht--mas ela não concordava completamente com ele.”
“Os gatinhos não querem ser adorados,” disse-lhe. “Só querem ser
mimados.”
“Pela sua sacerdotisa, sim. Se tivesses nascido nas margens do Nilo há
cinco mil anos atrás, Emily, terias sido sacerdotisa de Pasht--uma
criatura adorável, magra e escura com um fio de ouro em volta do
cabelo negro e braceletes de prata em volta dos tornozelos que a tua
tia Nancy tanto admira, com dúzias de pequenos deuses esfregando-se
por ti debaixo das palmeiras do pátio do templo.”
“Oh,” disse Emily encantada,”isso deu-me o flash. E,” acrescentou
intrigada, “por um momento senti saudades, também. Porquê?”
“Porquê? Porque eu não tenho dúvidas que terás sido uma sacerdotisa
assim numa encarnação anterior e as minhas palavras fizeram que a tua
alma se recordasse. Acreditas na doutrina da transmigração das almas,
Star? Mas, claro que não, criada pelos calvinistas puros e duros de
New Moon.”
“O que é que isso quer dizer?” perguntou Emily, e quando Dean lhe
explicou achou que era uma crença encantadora mas tinha a certeza que
a tia Elizabeth não aprovaria.
“Por isso eu não vou acreditar--por enquanto,” disse muito séria.
E então tudo terminou, muito subitamente. Tinha sido tomado por certo
por todos os envolvidos que Emily ficaria em Wyther Grange até ao fim
de Agosto. Mas a meio de Agosto certo dia a tia Nancy disse-lhe
subitamente:
“Vai para casa, Emily. Estou cansada de ti. Eu gosto bastante de ti--
não és estúpida e és razoavelmente bonita e portaste-te impecavelmente
bem—-diz à Elizabeth que estás à altura dos Murray--mas estou cansada
de ti. Vai para casa.”
Os sentimentos de Emily ficaram baralhados. Magoou-a ouvir a tia Nancy
dizer que estava cansada dela--teria magoado qualquer pessoas. Moeu-a
durante uns dias até que pensou numa resposta que poderia ter dado à
tia Nancy e a escreveu no seu livro Jimmy. Sentiu-se tão aliviada como
se a tivesse dado.
E tinha pena de deixar Wyther Grange; tinha começado a gostar daquela
bela casa antiga, com o seu sabor de segredos escondidos—-um paladar
que se devia apenas à sua arquitectura, porque nunca lá houvera nada
senão as simples histórias de nascimentos e mortes e casamentos e vida
diária que a maioria das casas têm. Tinha pena de deixar a costa da
baía, e o estranho jardim, e a bola de olhar e o gato que ri e o
quarto cor-de-rosa da sua liberdade; e acima de tudo tinha pena de
deixar o Dean Priest. Mas por outro lado era maravilhoso voltar a New
Moon e rever todos os que lá amava--Teddy e o seu querido assobio,
Ilse e a sua camaradagem estimulante, Perry com a sua determinação em
alcançar coisas melhores, Saucy Sal e o novo gatinho que devia
precisar de ser educado, e o mundo encantado do Sonho de uma Noite de
Verão. O jardim do primo Jimmy estaria no seu ponto mais alto, as
maçãs de Agosto estariam maduras. De repente, Emily ficou muito
ansiosa por partir. Preparou com alegria a sua pequena mala preta e
achou que esta era a oportunidade perfeita para aplicar um certo verso
de um poema que Dean lhe lera e que lhe estimulara a imaginação.
“’Adeus, mundo altivo, vou voltar a casa,’” declamou sinceramente,
parada no topo das longas, escuras e brilhantes escadas, dirigindo-se
à fila de fotografias de Priests muito sérios, penduradas nas paredes.
Mas estava muito aborrecida com uma coisa. A tia Nancy não lhe queria
devolver o retrato que Teddy tinha pintado dela.

146
“Eu vou ficar com ele,” dissera a tia Nancy, rindo-se e abanando os
brincos dourados. “Um dia esse retrato vai valer qualquer coisa por
ser um dos primeiros trabalhos de um artista famoso.”
“Eu só lho emprestei--eu disse-lhe que era só emprestado,” disse Emily
indignada.
“Eu sou um velho demónio sem escrúpulos,” disse a tia Nancy friamente.
“É isso que os Priests me chamam pelas costas. Não é, Caroline? Bem
posso ficar com o proveito já que tenho a fama. Eu calhei a gostar
desse retrato, é tudo. Vou mandá-lo emoldurar e vou-o pendurar na
minha sala de visitas. Mas vou-to deixar no meu testamento—-isso e o
gato que ri, e a bola de olhar e os meus brincos de ouro. Mais nada--
não te vou deixar um cêntimo do meu dinheiro--nunca contes com isso.”
“Eu também não o quero,” disse Emily altivamente. “Eu vou ganhar
montes de dinheiro para mim. Mas não é justo ficar com o meu retrato.
Foi-me dado a mim.”
“Eu nunca fui justa,” disse a tia Nancy. “Ou fui, Caroline?”
“Não,” disse Caroline irritada.
“Bem vês. Então não insistas, Emily. Tens sido uma menina muito bem
comportada mas acho que fiz o meu dever contigo este ano. Vai para New
Moon e quando a Elizabeth não te deixar fazer qualquer coisa diz-lhe
que eu te deixava sempre fazer isso. Não sei se valerá de alguma coisa
mas tenta. A Elizabeth, como toda a gente da minha família, pergunta-
se muitas vezes o que farei com o meu dinheiro.”
O primo Jimmy veio buscar a Emily. Como estava contente por ver a cara
meiga dele com os seus olhos de elfo e a barba bifurcada novamente!
Mas sentiu-se muito mal quando se virou para Dean.
“Se quiser dou-lhe um beijo de despedida,” disse meio sufocada.
Emily não gostava de dar beijos nas pessoas. Não queria realmente dar
um beijo no Dean mas gostava tanto dele que achou que lhe devia
conceder todos os privilégios.
Dean olhou para baixo, sorriu para o seu rosto, tão jovem, tão puro,
tão suavemente curvado.
“Não, eu não quero que me dês um beijo--ainda. E o nosso primeiro
beijo não pode ter o sabor de uma despedida. Seria um mau presságio.
Estrela da Manhã, tenho pena que te vás embora. Mas vou ver-te dentro
em breve. A minha irmã mais velha vive em Blair Water, como sabes, e
sinto um súbito acesso de afecto fraterno para com ela. Imagino-me a
visitá-la muitas vezes daqui para a frente. Entretanto lembra-te que
prometeste escrever-me uma vez por semana. E eu vou-te escrever a ti.”
“Umas cartas gordas e boas,” insistiu Emily. “Eu adoro cartas gordas.”
“Gordas! Vão ser absolutamente corpulentas, Star. Pronto, eu nem
sequer te vou dizer adeus. Vamos fazer um pacto, Star. Nunca vamos
dizer adeus um ao outro. Vamos só sorrir e partir.”
Emily fez um esforço muito galante para sorrir—-e partiu. A tia Nancy
e a Caroline voltaram para a sala de visitas das traseiras e para o
seu jogo de cartas. Dean Priest assobiou por Tweed e foi para a costa
da baía. Estava tão sozinho que se riu de si mesmo.
Emily e o primo Jimmy tiveram tanto que conversar que a viagem de
volta lhe pareceu muito curta.
New Moon estava branca ao sol do fim de tarde que também caía com
grande suavidade sobre os velhos celeiros cinzentos. As três
princesas, destacando-se contra o céu prateado, estavam tão remotas e
principescas como sempre. O velho golfo cantava lá em baixo para lá
dos campos.
A tia Laura veio a correr ter com eles, os seus olhos azuis brilhantes
de prazer. A tia Elizabeth estava na casa do fogão a preparar o jantar
e só apertou a mão a Emily, mas parecia um pouco menos séria e
composta que o normal, e fez os fofos de creme favoritos de Emily para
o jantar. O Perry andava por ali descalço e queimado do sol, para lhe
contar todos os mexericos de gatinhos e bezerros e leitões e galinhas
novas. Ilse veio lá ter, e Emily descobriu que se esquecera como a

147
Ilse era viva--como brilhavam os seus olhos cor de âmbar, como era
dourado o seu cabelo sedoso, parecendo mais dourado que nunca devido
ao vestido de seda azul brilhante que a senhora Simms lhe trouxera de
Shrewsbury. Para peça de roupa, aquela cor fazia doer os olhos e a
sensibilidade de Laura Murray, mas a sua cor destacava muito a cor de
cabelo da Ilse. Ela engoliu Emily num abraço encantado e dez minutos
depois brigou amargamente com ela porque Emily se recusou a dar-lhe o
único gatinho sobrevivente de Saucy Sal.
“Eu é que devia ficar com ele, sua hiena senil,” exclamava Ilse. “É
tão meu como teu, porca! É filho do meu gato velho do celeiro.”
“Não é bonito falarem assim,” disse a tia Elizabeth, pálida de terror.
“E se vocês as duas vão brigar por causa desse gatinho eu mando-o
afogar--lembrem-se disso.”
Ilse ficou finalmente apaziguada pela sugestão de Emily, que a deixou
dar o nome ao gatinho e ser dona dele a meias. A Ilse chamou-lhe
Daffodil. Emily não achou que fosse adequado, porque como o primo
Jimmy se referia a ele como pequeno Tommy ela suspeitava que ele era
do sexo forte. Mas para não provocar a raiva da tia Elizabeth
discutindo assuntos proibidos, ela concordou.
“Eu vou chamar-lhe Daff, então,” pensou. “Soa um bocado mais
masculino.”
O gatinho era um delicado pedaço de cinza riscado que lembrava Emily
do seu falecido Mike. E cheirava tão bem--a pelo morno e limpo, e ao
feno de trevo onde a Saucy Sal tinha feito o ninho.
Depois do jantar ouviu o assobio do Teddy no velho pomar--o mesmo
chamamento encantador. Emily voou ao seu encontro--afinal, não havia
mais ninguém como o Teddy no mundo. Deram um passeio extático até
Tansy Patch para ver um novo cachorrinho que o Dr. Burnley dera ao
Teddy. A senhora Kent não pareceu muito contente por ver a Emily—
estava mais fria e distante que nunca, e sentou-se a ver as duas
crianças a brincarem com o pequeno cachorrinho gorducho com um fogo
abrasador nos olhos que fazia com que Emily se sentisse vagamente
desconfortável quando os seus olhares se cruzavam por acaso. Nunca
sentira tão distintamente a antipatia que a senhora Kent sentia por
ela.
“Porque é que a tua mãe não gosta de mim?” perguntou ao Teddy, quando
levaram o pequeno Leo de volta ao estábulo para passar a noite.
“Porque eu gosto,” disse Teddy simplesmente. “Ela não gosta de nada
que eu goste. Tenho medo que daqui a pouco envenene o Leo. Eu--eu
gostava tanto que ela não gostasse tanto de mim,” desabafou, no início
de uma revolta contra este ciúme anormal, que sentia mais do que
compreendia ser um laço que se poderia transformar numa forca. “Ela
diz sempre que não me deixa estudar latim e álgebra este ano-—sabes
que a Miss Brownell disse que eu podia—porque não me deixa ir para o
colégio. Ela diz que não suportaria separar-se de mim--nunca. Eu não
me importo com o latim e isso, mas eu quero aprender a ser um artista
e quero ir um dia para as escolas onde ensinam isso. Ela não me vai
deixar--ela odeia as minhas pinturas porque acha que eu gosto mais
delas do que dela. E eu não gosto--eu gosto tanto da minha mãe--ela é
tão meiga e boa para mi nas outras coisas todas. Mas ela acha que eu
gosto--e já me queimou algumas. Eu sei que queimou. Já não estão na
parede do celeiro e não as encontro em lado nenhum. Se ela faz alguma
coisa ao Leo--eu--eu—vou odiá-la.”
“Diz-lhe isso,” disse Emily friamente, com algum do azedume dos Murray
a levar-lhe a melhor. “Ela não sabe que tu sabes que ela envenenou o
Smoke e o Buttercup. Diz-lhe que sabes e que se ela fizer alguma coisa
ao Leo tu já não vais gostar mais dela. Ela vai ficar tão assustada
por tu não gostares mais dela que não se vai meter com o Leo-—eu sei.
Diz-lhe com jeito-—não a magoes-—mas diz-lhe. Vai,” concluiu Emily,
com uma excelente imitação do tom e pose da tia Elizabeth quando dava
um ultimato, “ser melhor para todos os envolvidos.”

148
“Eu acho que vai,” disse Teddy, muito impressionado. “Eu não podia
suportar se o Leo desaparecesse como os meus gatos--ele é o único cão
que eu já tive e eu sempre quis ter um cão. Oh, Emily, é tão bom ter-
te de volta!”
“Agora já não deves gostar muito de velas, Emily, depois de te teres
habituado ás lâmpadas em Wyther Grange,” disse a tia Laura com um
pequeno suspiro. Era outra das pequenas amarguras na vida de Laura
Murray, que a tirania de Elizabeth se estendesse ás velas.
Emily olhou em volta pensativa. Uma vela ondeou e encaracolou-se para
ela como se a saudasse. Outra, com uma chama comprida, brilhou mais e
deitou fumo como um pequeno demónio amuado. Uma tinha uma chama
pequena--uma vela tímida e meditativa. Outra tremia com uma graça
atrevida numa corrente de ar que vinha da porta. Outra ardia com uma
chama segura e estável como uma alma fiel.
“Eu--não sei--Tia Laura,” respondeu lentamente. “Nós conseguimos ser--
amigos--das velas. Eu acho que afinal gosto mais de velas.”
A tia Elizabeth, vinda da casa do fogão, ouviu-a. Algo semelhante a
prazer brilhou-lhe nos olhos azuis como o golfo.
“Afinal sempre tens algum senso,” disse.
“É o segundo elogio que me faz,”pensou Emily.
“Eu acho que a Emily está mais alta desde que foi para Wyther Grange,”
disse a tia Laura, olhando para ela com saudade.
A tia Elizabeth, apagando as velas, observou-a com agudez por cima dos
óculos.
“Não acho,” disse. “O vestido está à mesma altura.”
“Eu tenho a certeza que está,” insistiu Laura.
O primo Jimmy, para resolver a disputa, mediu a Emily pela porta da
sala de estar. Ela só tocava na marca anterior.
“Pois,” disse a tia Elizabeth triunfante, gostando de ter razão mesmo
nestes pequenos assuntos.
“Ela parece--diferente,” disse a tia Laura com um suspiro.
E Laura, afinal, estava certa. Emily tinha crescido, mais alta e mais
velha, na alma, senão no corpo. Era esta mudança que Laura sentia,
como sente sempre o afecto terno e próximo. A Emily que voltou de
Wyther Grange não era a Emily que para lá tinha ido. Já não havia
apenas a criança. As histórias de família que ela ouvira da tia Nancy,
a sua angústia permanente sobre a mãe da Ilse, aquela hora terrível em
que estivera lado a lado com a morte naquele penhasco na baía, o seu
convívio com Dean Priest, tudo se combinara para amadurecer a sua
inteligência e as suas emoções. Quando foi ao sótão na manhã seguinte
e tirou o seu precioso molho de manuscritos para reler ficou
surpreendida e um pouco desgostosa por não os achar tão bons como
tinha achado que eram. Alguns deles eram mesmo tolos, achava; tinha
vergonha deles--tanta vergonha que os levou para a casa do fogão e os
queimou, para desagrado da tia Elizabeth que quando veio preparar o
almoço deu com a caixa das cinzas cheia de restos de papel queimado.
Emily já não se perguntava porque é que a Miss Brownell tinha feito
pouco deles--embora isto não lhe suavizasse o azedume que sentia em
relação àquela senhora em particular. O resto ela voltou a pôr na
prateleira do sofá, incluindo A Filha do Mar, que ainda lhe parecia
bastante bom, embora já não a maravilhosa composição que pensara que
era. Achava que havia tantas passagens que podiam ser reescritas.
Depois começou imediatamente a escrever um novo poema, “Sobre o
Regresso a Casa Depois de Semanas de Ausência”. Como tudo e todos
relacionados com New Moon tinham que ser referidos no poema este
prometia ficar bastante longo e dar-lhe uma ocupação agradável durante
os minutos que tinha livres nas semanas que se seguiam. Era muito bom
estar de volta a casa.
“Não há outro lugar como a querida New Moon,” pensou Emily.
Outra coisa que marcou o seu regresso-—um daqueles marcos domésticos
que traçam uma impressão mais funda na memória do que a sua real

149
importância lhes daria-—foi o facto de lhe ter sido dado um quarto só
para si. A tia Elizabeth tinha achado que o seu sono solitário era uma
coisa boa demais para perder novamente. Decidiu que não ia aturar mais
uma companheira de cama mexida que fazia perguntas descabidas ás mais
estranhas horas da noite em que lhe ocorriam.
Por isso, depois de uma longa conferência com Laura, foi decidido que
Emily ficaria com o quarto da mãe dela--o miradouro, como lhe
chamavam, embora não fosse realmente um miradouro. Mas ocupava em New
Moon o lugar que os miradouros verdadeiros ocupavam nas casa de Balir
Water, dando para o jardim da frente, e por isso assim se referiam a
ele. Tinha sido preparado para Emily na sua ausência e quando chegou a
hora de deitar na primeira noite do seu regresso a tia Elizabeth
disse-lhe secamente que dali para a frente ela ficaria com o quarto
que fora da mãe.
“Só para mim?” exclamou Emily.
“Sim. Nós esperamos que tomes tu conta dele e que o mantenhas muito
arrumado.”
“Nunca lá dormiu ninguém desde que a tua mãe--se foi embora,” disse a
tia Laura, com um tom estranho na voz--um tom que Elizabeth
desaprovou.
“A tua mãe,” disse, olhando friamente para Emily por cima da chama da
vela--uma atitude que dava uma aparência muito tétrica ás suas feições
aquilinas--"fugiu—-abandonou a família e quebrou o coração do pai
dela. Era uma rapariga tonta, ingrata e desobediente. Eu espero que tu
nunca envergonhes a tua família com uma conduta assim.”
“Oh, tia Elizabeth,” disse Emily quase sem fôlego,” quando segura
assim na vela faz com que a sua cara pareça um cadáver! Oh, é tão
interessante.”
A tia Elizabeth virou-se e conduziu-as pelas escadas num silêncio
sério. Não valia a pena desperdiçar bons conselhos com uma criança
como esta.
Deixada a sós no miradouro, iluminado apenas por uma pequena vela,
Emily olhou em volta com um interesse vivo e arrepiante. Não se
conseguiu meter na cama enquanto não explorou cada pequeno aspecto. O
quarto era muito antiquado, como todos os quartos de New Moon. As
paredes tinham um papel com desenho de losangos dourados, com pequenas
estrelas douradas dentro, e tinham pendurados quadros bordados a lã
com provérbios e figuras que teriam sido “suplementos” nos tempos de
juventude das suas tias. Um deles, pendurado por cima da cama,
representava dois anjos da guarda. No seu tempo tinha sido muito
apreciado, mas Emily olhou para ele com desagrado.
“Eu não gosto de penas nas asas dos anjos,” disse decididamente. “Os
anjos deviam ter asas de arco-íris.”
No chão havia uma bonita carpete feita em casa e tapetes redondos
entrançados. Havia uma cama alta e preta, com postes trabalhados, e
uma colcha de retalhos, mas sem cortinas, para contentamento de Emily.
Uma pequena mesa, com uns pés muito engraçados em forma de garras e
gavetas com puxadores de latão ficava ao pé da janela, que tinha
cortinas de musselina aos folhos; um dos vidros da janela contorcia a
paisagem de uma forma engraçada, fazendo aparecer um monte onde não
havia nenhum. Emily gostou disso--não sabia dizer porquê, mas era
porque dava àquele vidro uma individualidade própria. Um espelho oval
com moldura de um dourado envelhecido estava pendurado por cima da
mesa; Emily ficou deliciada quando descobriu que se conseguia ver toda
—“toda excepto as botas”—-sem ter que se esticar ou pôr em bicos de
pés. ”E não me torce a cara nem me faz ficar com ar esverdeado,”
pensou feliz. Duas grandes cadeiras negras de costas altas com
assentos de crina de cavalo, um pequeno lavatório com uma bacia e um
jarro e uma otomana esbatida com rosas de lã bordadas completavam o
mobiliário. Por cima da pequena lareira haviam potes cheios de plantas
secas coloridas e uma fascinante garrafa bojuda cheia de conchas da

150
Índia ocidental. de cada lado haviam adoráveis armários pequenos com
portas de vidro decorado com chumbo como as da sala de estar. Por
baixo havia uma pequena lareira.
“Será que a tia Elizabeth me deixa acender aqui um pequeno lume?”,
pensou Emily.
O quarto estava cheio daquele charme indefinível que se encontra em
todas as divisões em que as peças de mobília se conjugam bem e as
paredes e o chão estão bem relacionados. Emily sentia isto por todo o
lado enquanto se precipitava para examinar tudo. Este era o seu
quarto--ela já o amava--e sentia-se perfeitamente em casa.
“Eu pertenço aqui,” disse feliz.
Sentia-se deliciosamente perto da sua mãe--como se Juliet Starr se
tivesse subitamente tornado real para ela. Arrepiava-a pensar que a
mãe tinha provavelmente feito a cobertura da almofada para alfinetes
em croché que estava em cima da mesa. E o pote preto e baixo de pot-
pourri devia ter sido ela a compô-lo. Quando Emily levantou a tampa
sentiu um leve odor libertar-se dele. As almas de todas as rosas que
floresceram há muitos verões passados em New Moon pareciam ali
aprisionadas numa espécie de purgatório das flores. Qualquer coisa
naquele odor místico, incessante e indefinido deu o flash a Emily--e o
quarto recebeu a sua consagração.
Havia no quarto um grande retrato da mãe pendurado por cima da lareira
—-um grande daguerreótipo tirado quando ela era uma menina pequena.
Emily olhou para ele com amor. Tinha uma fotografia da mãe e do pai,
tirada depois do seu casamento. Mas quando a tia Elizabeth a trouxe de
Maywood tinha-a pendurado na sala de visitas, onde a Emily raramente a
via. Esta imagem no seu quarto, de uma menina de cabelo louro e faces
rosadas era só sua. Podia olhar para ela--falar com ela tanto quanto
quisesse.
“Oh, Mãe,” disse,”em que é que pensava quando era uma menina como eu?
Gostava tanto de a ter conhecido nessa altura. E só de imaginar que
ninguém aqui dormiu desde a última noite em que a mãe aqui esteve
antes de fugir com o pai. A tia Elizabeth diz que a mãe foi má por ter
feito isso mas eu não acho que tenha sido. Não foi como se tivesse
fugido com um estranho. De qualquer maneira, fico muito contente por
ter feito isso, porque senão eu não existia.”
Emily, muito feliz por haver uma Emily, abriu a sua janela tão alto
como conseguiu, meteu-se na cama e adormeceu, sentindo uma felicidade
tão profunda que era quase uma dor, ouvindo o sonoro roçar do vento da
noite contra as grandes árvores do bosque do Lofty John. Quando
escreveu ao pai uns dias mais tarde ela começou a carta com, “Querido
Pai e Mãe.”
“E eu vou sempre escrever-lhe a si tal como ao pai depois disto, Mãe.
Tenho pena de a ter deixado de fora tanto tempo. Mas não me parecia
real até àquela noite em que voltei a casa. Fiz muito bem a cama na
manhã seguinte--a tia Elizabeth não lhe conseguiu apontar uma falha--e
limpei o pó a tudo--e quando sai ajoelhei-me e beijei a entrada. Não
pensei que a tia Elizabeth me tivesse visto mas viu e disse que eu
tinha ficado maluca. Porque é que a tia Elizabeth acha sempre que uma
pessoa é maluca quando faz qualquer coisa que ela nunca faz? Eu
respondi-lhe, ‘Não, é só porque gosto tanto do meu quarto’ e ela
resmungou e disse ‘Mais valia gostares do teu Deus. Mas eu gosto,
querido Pai--e Mãe—-e ainda gosto mais Dele desde que tenho o meu
querido quarto. Dele consigo ver o jardim todo e o bosque do Lofty
John e um bocadinho do lago de Blair Water através das árvores, onde
passa a Estrada de Ontem. E agora gosto de ir cedo para a cama. E
adoro ficar ali deitada sozinha no meu próprio quarto e escrever
poesia e pensar em descrições de coisas enquanto olho através da
janela aberta para as estrelas e as árvores do bosque do Lofty John,
grandes, bonitas, calmas e meigas.

151
“Oh, Pai querido e Mãe, nós vamos ter um professor novo. A Miss
Brownell não vai voltar. Vai-se casar e a Ilse diz que ouviu o pai
dela dizer ‘Deus ajude o pobre homem.’ E o novo professor é o senhor
Carpenter. A Ilse viu-o quando ele veio falar com o pai dela por causa
da escola--porque o Dr. Burnley é um dos administradores este ano--e
ela disse que ele tinha um cabelo cinzento alvoraçado e bigodes. Ele
também é casado e vai viver naquela casinha velha pequena do vale que
está por detrás da escola. Parece engraçado pensar num professor com
mulher e bigodes.
“Estou tão contente por estar em casa. Mas tenho saudades do Dean e da
bola de olhar. A tia Elizabeth ficou muito zangada quando viu a minha
franja mas não disse nada. A tia Laura disse para me calar e continuar
a usá-la. Mas eu não me sinto bem a ir contra a vontade da tia
Elizabeth por isso penteei-a para trás quase toda, só deixei uma
franjinha. Eu não me sinto muito confortável mesmo assim mas tenho que
me conformar com isso por causa do meu aspecto. A tia Laura diz que
agora as ancas estão a sair de moda por isso nunca vou poder usar
nenhuma mas não me importo porque acho que são feias. A Rhoda Stuart é
que vai ficar zangada porque ela andava ansiosa por ter idade
suficiente para usar uma. Eu espero poder ter uma garrafa de gin só
para mim quando o tempo ficar mais frio. Há uma fila de garrafas de
gin na prateleira mais alta da casa do fogão.
“Eu e o Teddy tivemos a aventura mais gira ontem à tarde. Nós vamos
guardar segredo com toda a gente--em parte porque foi tão giro e em
parte porque temos medo que nos ralhem muito por uma das coisas que
fizemos.
“Nós fomos lá acima até à Casa Decepcionada, e vimos que uma das
tábuas de uma janela estava solta. Por isso arrancámo-la, entrámos e
vimos a casa toda. Está forrada a tábuas de madeira mas não foi
estucada, e as tábuas estão espalhadas por todo o chão, tal como os
carpinteiros as deixaram há anos atrás. Pareceu-me mais desapontada
que nunca. Eu tive vontade de chorar. Havia uma lareira pequena tão
querida numa das divisões por isso nós metemos mão à obra e acendemos
um lume pequeno com restos de madeira e pedaços de tábuas (por isto é
que nos iam ralhar, provavelmente) e depois sentámo-nos à frente do
lume num velho banco de carpinteiro e conversámos. Nós decidimos que
quando crescermos vamos comprar a Casa Desapontada e vamos lá viver
juntos. O Teddy diz que acha que devemos ter que casar, mas eu penso
que deve haver maneira de resolver o assunto sem tantas maçadas. O
Teddy vai pintar quadros e eu vou escrever poesia e vamos comer
torradas e bacon e marmelada todos os dias ao pequeno-almoço como em
Wyther Grange, e nunca papas de aveia. E vamos ter sempre imensas
coisas boas para comer na despensa e eu vou fazer montes de doce e o
Teddy vai-me sempre ajudar a lavar a loiça e vamos pendurar a bola de
olhar no meio do tecto da sala da lareira--porque o mais certo é a tia
Nancy já ter morrido nessa altura.
“Quando o lume se apagou nós saímos e pusemos a tábua no lugar. De vez
em quando hoje o Teddy dizia-me “torradas e bacon e marmelada” num tom
muito misterioso e a Ilse e o Perry ficavam furiosos porque não
percebiam o que é que ele queria dizer com aquilo.
“O primo Jimmy contratou o Jimmy Joe Belle para ajudar nas colheitas.
O Jimmy Joe Belle vem de mais longe do que o Derry Pond. Há lá muitos
franceses e quando uma rapariga se casa eles tratam-na principalmente
pelo primeiro nome do marido em vez de por senhora como os ingleses
fazem. Se uma rapariga chamada Mary se casa com um homem chamado Leon
chama-lhe sempre Mary Leon depois. Mas no caso do Jimmy Joe Belle foi
ao contrário e ele ficou a ser chamado pelo nome da mulher. Eu
perguntei ao primo Jimmy porque é que foi e ele disse-me que era
porque o Jimmy era um pobre diabo e a Belle é que vestia as calças lá
em casa. Mas eu ainda assim não percebo. O Jimmy Joe também usa
calças, e porque é que ele tem que se chamar Jimmy Joe Belle em vez

152
dela se chamar Belle Jimmy Joe só porque usa calças também?! Eu não
descanço enquanto não descobrir.
“O jardim do Primo Jimmy está esplêndido agora. Os lírios laranja e
amarelos já abriram. Eu tento gostar deles porque ninguém mais parece
gostar mas no fundo do meu coração as que mais gosto são as rosas
tardias. Não se consegue evitar gostar mais das rosas.
“Eu e a Ilse hoje andámos todo o dia à caça de um trevo de quatro
folhas no velho pomar mas não conseguimos encontrar nenhum. Depois eu
encontrei um num molho de trevo ao pé dos degraus da leitaria quando
estava a passar o leite e nem sequer pensava neles. O primo Jimmy diz
que é sempre dessa maneira que a sorte vem, não vale a pena andar à
procura dela.
“É tão bom estar com a Ilse Outra vez. Nós só brigámos duas vezes
desde que voltei a casa. Eu vou tentar não brigar mais com a Ilse
porque acho que não é um comportamento digno, embora seja
interessante. Mas é difícil porque mesmo quando eu tento muito e não
digo nada a Ilse acha que é uma maneira de brigar e fica ainda mais
furiosa e diz coisa piores que nunca. A tia Elizabeth diz que são
precisos dois para haver uma briga mas ela não conhece a Ilse tão bem
como eu. A Ilse hoje chamou-me albatroz traiçoeiro. Pergunto-me
quantos animais ainda faltarão para ela me chamar. Ela nunca repete o
mesmo nome duas vezes. Eu só gostava que ela não peguilhasse tantas
vezes com o Perry. (Peguilhar é uma palavra que aprendi com a tia
Nancy. Acho-a muito expressiva.) Parece que ela não o consegue
suportar. Ele desafiou o Teddy a saltar do telhado do galinheiro para
o telhado do chiqueiro. O Teddy não quis. Ele disse que até o fazia se
isso trouxesse benefício a alguém mas que não ia fazer isso só para se
exibir. O Perry fê-lo e aterrou bem. Se não, talvez tivesse partido o
pescoço. Depois gabou-se disso e disse que o Teddy tinha tido medo e a
Ilse ficou vermelha de raiva e disse-lhe que ou ele se calava ou ela
arrancava-lhe o nariz à dentada. Ela não suporta que se diga nada
contra o Teddy, mas eu acho que ele é capaz de tomar conta dele
próprio.
“Eu e a Ilse também não podemos estudar para a Entrada. O pai dela não
a deixa. Mas ela diz que não se importa. Ela diz que vai fugir de casa
quando for um bocado mais velha e vai estudar representação. Isso
parece mau, mas interessante.
“Eu senti-me muito estranha e culpada logo quando vi a Ilse, porque
sabia sobre a mãe dela. Eu não sei porque é que me senti culpada se
não tinha nada a ver com aquilo. A sensação está a desaparecer aos
poucos mas de vez em quando fico tão infeliz por causa disto. Gostava
tanto de poder esquecer toda a história ou conseguir descobri a
verdade. Porque eu tenho a certeza que ninguém a conhece.
“Eu hoje tive uma carta do Dean. Ele escreve-me umas cartas
adoráveis--mesmo como se eu fosse crescida. Mandou-me um pequeno poema
que tinha cortado de um jornal. Ele disse que o fez lembrar de mim. É
todo muito bonito mas o que eu mais gosto é da última estrofe. É
assim:

Então murmura, desponta, no vosso sono


Como poderei subir mais alto
O Trilho Alpino, tão difícil, tão íngreme,
Que leva a alturas sublimes
Como posso atingir esse objectivo longínquo
De fama honrada e verdadeira
E escrever no seu brilhante rol
O humilde nome de uma mulher.

“Quando eu li isto veio o flash, e eu apanhei uma folha de papel--eu


esqueci-me de lhe dizer que o primo Jimmy me deu uma caixinha de papel
e envelopes --ás escondidas—e eu escrevi:

153
Eu, Emily Byrd Starr, juro solenemente neste dia que subirei o Trilho
Alpino e escreverei o meu nome no pergaminho da fama.
“Depois pú-lo num envelope, selei-o e escrevi A Promessa de Emily Byrd
Starr, na idade de doze anos e três meses, e guardei-o na prateleira
do sofá no sótão.
“Eu estou a escrever uma história policial agora e estou a tentar
sentir-me como um homem que foi assassino. É assustador, mas
arrepiante. Eu quase me senti como se tivesse assassinado alguém.
“Boa noite, querido Pai e Mãe.
“Da vossa filha que vos ama, Emily

“P.S. Eu tenho andado a pensar como hei-de assinar o meu nome quando
for mais velha e imprimir os meus trabalhos. Não sei o que será melhor
—-Emily Byrd Starr completo, ou E.B. Starr, ou E. Byrd Starr. Ás vezes
acho que vou ter um ‘nom de plume’, que é outro nome que escolhemos
para nós. Está no meu dicionário entre as ‘Frases francesas’ lá atrás.
Se eu fizesse isso ia poder ouvir as pessoas falarem dos meus
trabalhos à minha frente sem suspeitarem, e dizerem mesmo o que
pensavam delas. Isso ia ser interessante mas nem sempre confortável.
Eu acho que vou ser,
“E. Byrd Starr.”

UMA TEIA DE SONHOS

Levou algumas semanas até Emily decidir se gostava do senhor Carpenter


ou não. Ela sabia que não desgostava dele, mesmo depois do seu
primeiro cumprimento, gritado numa voz rouca ao primeiro dia de aulas,
acompanhado por um levantar assombroso das farfalhudas sobrancelhas
cinzentas, ter sido “Então és tu a rapariga que escreve poesia, hã?
Mais vale agarrares-te à agulha e ao espanador. Já houve palermas
suficientes no mundo a tentarem escrever poesia e a falharem. Eu
também tentei. Agora tenho mais juízo.”
“O senhor não tem as unhas limpas,” pensou Emily.
Mas ele perturbou todo o tipo de tradições escolares tão rápida e
completamente que Ilse, que se orgulhava de perturbar as coisas e
odiava a rotina, foi a única aluna que gostou dele desde o princípio.
Alguns nunca chegaram a gostar dele--o tipo Rhoda Stuart, por
exemplo--mas a maioria começou a gostar depois de se terem habituado a
nunca se habituarem a nada. E Emily decidiu finalmente que gostava
tremendamente dele.
O senhor Carpenter estava algures entre os quarenta e os cinquenta--um
homem alto com um cabelo arrepiado, cinzento grosso e áspero, bigodes
e sobrancelhas cinzentos e espetados, uma barba desafiante, olhos
azuis brilhantes cujo fogo não fora de todo apagado pela sua vida
desregrada, e um rosto comprido, macilento e muito enrugado. Vivia
numa pequena casa de duas divisões abaixo da escola com uma mulher
muito tímida. Nunca falava do passado nem do facto de, na sua idade,
não ter melhor ocupação do que ensinar numa escola de província por um
salário miserável, mas a verdade constou-se depois de uns tempos;
porque a Ilha do Príncipe Eduardo é uma zona pequena e nela toda a
gente sabe tudo sobre toda a gente. Por isso, eventualmente as pessoas
de Blair Water, incluindo as crianças da escola, ficaram a saber que o
senhor Carpenter tinha sido um aluno brilhante na sua juventude e que
estivera com o olho na Igreja. Mas no colégio tinha-se envolvido com
más companhias--as pessoas de Blair Water abanavam lentamente as
cabeças e murmuravam a terrível expressão de forma portentosa—-e as
más companhias tinham-no arruinado. Começou a beber e veio por aí
abaixo. Como resultado de tudo isto, Francis Carpenter, que for a o
melhor da sua turma de primeiro e segundo ano em MacGill e a quem os
seus professores haviam profetizado uma grande carreira, era professor

154
de uma escola de província aos quarenta e cinco anos sem nenhumas
perspectivas de vir a ser qualquer outra coisa. Talvez ele se tivesse
resignado a isso--talvez não. Ninguém chegou a saber, nem sequer a sua
insignificante mulher. Ninguém se importava com isso em Blair Water--
era um bom professor, e isso era tudo o que interessava. Mesmo que ele
tivesse os seus ocasionais devaneios escolhia sempre os Sábados e
estava sempre suficientemente sóbrio na segunda-feira.
Sóbrio e especialmente digno, usando um casaco preto um pouco ruço que
nunca usava nos outros dias da semana. Não induzia a pena e não se
apresentava como uma tragédia. Mas por vezes, quando Emily lhe
observava o rosto, curvado sobre um qualquer problema de aritmética da
escola de Blair Water, sentia-se horrivelmente triste por ele sem
compreender minimamente porquê.
Tinha um temperamento explosivo que geralmente se inflamava pelo menos
uma vez por dia, enfurecendo-se terrivelmente durante uns minutos,
afagando a barba, implorando aos Céus que lhe concedessem paciência,
embirrando com toda a gente em geral em com o infeliz objecto da sua
raiva em particular. Mas estes acessos nunca duravam muito tempo. Em
poucos minutos o senhor Carpenter estaria a sorrir, gracioso como o
sol que desponta por detrás de nuvens de tempestade, para o próprio
aluno que desencadeara a tormenta. Ninguém guardava ressentimentos por
causa das suas descomposturas. Ele nunca dizia coisas cruéis como a
Miss Brownell costumava dizer, que permaneciam na cabeça durante
semanas; o seu cortejo de palavras caía da mesma maneira no justo e no
pecador e passava sem fazer estragos.
Conseguia admitir que se fizesse uma piada sobre ele com um perfeito
bom humor. “Está-me a ouvir? Está-me a ouvir, cavalheiro?” gritou para
Perry certo dia. “Claro que o oiço,” respondeu Perry calmamente,
“devem ouvi-lo em Charlottetown.” O senhor Carpenter ficou a olhar por
momentos, e depois irrompeu numa gargalhada alegre e prolongada.
Os seus métodos de ensino eram tão diferentes dos de Miss Brownell que
a princípio os alunos de Blair Water sentiam-se de cabeça para os pés.
Miss Brownell fora um bastião da ordem. O senhor Carpenter
aparentemente nunca se preocupava em manter a ordem. Mas à sua maneira
mantinha as crianças tão ocupadas que não tinham tempo de fazer
asneiras. Ensinava história de forma tempestuosa durante um mês,
fazendo com que os alunos interpretassem os diversos personagens e
retratassem os incidentes. Nunca incomodava ninguém com as datas--mas
estas ficavam na memória da mesma maneira. Se, como Mary, rainha dos
escoceses, tivessem sido decapitados pelo machado da escola,
ajoelhados no degrau de entrada da escola com os olhos vendados, com o
Perry Miller que usava uma máscara feita de um pedaço de seda velha da
tia Laura, como carrasco, interrogando-se o que aconteceria se ele
fizesse cair o machado com força demais, não nos conseguíamos esquecer
do ano em que isso acontecera; e se lutássemos a batalha de Waterloo
por todo o recreio da escola e ouvíssemos o Teddy Kent gritar, “Vamos,
guardas e a eles!” enquanto este dirigia a última carga em fúria
lembrávamo-nos de 1815 sem sequer tentar fazê-lo.
No mês seguinte a História seria deixada de lado e a geografia tomaria
o seu lugar, e aí a escola e o recreio seriam divididos em países e os
alunos vestidos dos animais que os habitavam ou negociavam várias
mercadorias sobre os seus rios ou cidades. Quando a Rhoda Stuart nos
enganava com um negócio de peles, lembrávamo-nos que ela tinha
comprado a carga à República da Argentina, e quando o Perry Miller não
bebeu água todo um dia quente de verão porque estava a atravessar o
deserto da arábia com uma caravana de camelos, e depois bebeu tanta
que teve dores de estômago e a tia Laura esteve toda a noite a pé com
ele—-ninguém se esquecia onde era o dito deserto. Os administradores
tinham ficado bastante escandalizados com algumas coisas e achavam que
as crianças se divertiam demais para estarem realmente a aprender
alguma coisa.

155
Se queríamos aprender latim ou francês tinha que ser falando os
exercícios, e não só por escrevê-los, e nas tardes de sexta-feira
todos os trabalhos eram deixados de lado porque o senhor Carpenter
punha as crianças a recitar poemas, fazer discursos e declamar
passagens de Shakespeare e da Bíblia. Este era o dia que Ilse adorava.
O senhor Carpenter incitava-lhe o dom como um osso incita um cão
esfomeado e criticava-a sem misericórdia. Tinham inúmeras brigas e a
Ilse batia o pé e chamava-lhe nomes, enquanto os alunos se perguntavam
porque é que ela não era castigada por isso, mas no fim ela fazia
exactamente como ele queria. Ilse ia à escola com regularidade--uma
coisa que nunca fizera antes. O senhor Carpenter tinha-lhe dito que se
faltasse um dia sem uma boa desculpa não podia participar nos
exercícios de sexta-feira e isso seria demais para ela.
Certo dia o senhor Carpenter apanhou a ardósia do Teddy e viu um
esboço dele próprio, numa das suas atitudes preferidas se bem que não
das que o favoreciam mais. Teddy tinha-a rotulado de “Peste Negra”-—
metade dos alunos da escola tinham morrido nesse dia da peste e tinham
sido transportados em macas para o campo do Potter pelos aterrorizados
sobreviventes.
Teddy esperava um tumulto de impropérios, pois no dia anterior o
Garret Marshall tinha sido triturado em polpa figurativa por ter sido
descoberta uma inofensiva vaca na sua ardósia--pelo menos o Garrett
dizia que tinha querido fazer uma vaca. Mas agora este extraordinário
senhor Carpenter só enrugara as espessas sobrancelhas, olhando
atentamente para a ardósia do Teddy, pousou-a na mesa e disse,
“Eu não sei nada sobre desenhos--não te posso ajudar, mas por Deus, o
melhor é deixares os exercícios extra de matemática à tarde e
dedicares-te a fazer desenhos.”
Pelo que o Garret Marshall foi para casa nesse dia e disse que o
senhor Carpenter não era justo e que preferia o Teddy Kent.
O senhor Carpenter foi a Tansy Patch certa noite e viu os desenhos do
Teddy no estúdio do velho celeiro. Depois foi lá a casa falar com a
senhora Kent. Sobre o que falaram ninguém sabe. Mas o senhor Carpenter
foi-se embora com um ar sério, como se tivesse encontrado um obstáculo
inesperado. Preocupava-se muito com os resultados gerais do Teddy e
arranjou em qualquer lado uns livros sobre desenho que lhe deu,
pedindo-lhe que não os levasse para casa--uma recomendação que Teddy
não precisava. Ele sabia bem que se os tivesse levado iam desaparecer
tão misteriosamente como os seus gatos. Tinha seguido o conselho de
Emily e dito à mãe que não ia continuar a gostar dela se acontecesse
alguma coisa ao Leo, e este florescia gordo e feliz. Mas o Teddy era
demasiado mole de coração para fazer essa ameaça mais do que uma vez.
Sabia que a mãe tinha chorado toda a noite depois do senhor Carpenter
se ter ido embora, e rezara de joelhos no seu pequeno quarto a maior
parte do dia seguinte, olhando para ele com olhos amargos e
perseguidores durante mais de uma semana. Ele desejava que ela fosse
mais parecida com as mães dos outros rapazes mas eles gostavam muito
um do outro e passavam momentos muito bons na sua pequena casa
cinzenta no monte da atanásia. Só com outras pessoas é que a senhora
Kent era estranha e invejosa.
“Ela é sempre querida quando estamos sozinhos,” dizia Teddy a Emily.
Quanto aos outros rapazes, Perry Miller era o único com quem o senhor
Carpenter se incomodava no que dizia respeito aos discursos--e era tão
impiedoso com ele como com Ilse. Perry trabalhava muito para lhe
agradar e praticava os discursos no celeiro e nos campos--mesmo à
noite no sótão da cozinha--até a tia Elizabeth ter posto um fim à
coisa. Emily não conseguia compreender porque é que o senhor Carpenter
sorria e dizia “Muito bem,” quando o Neddy Gray papagueava um discurso
sem qualquer expressividade, e depois se enfurecia com o Perry e o
acusava de ser um burro e uma nulidade, por deus, porque tinha falhado

156
em dar a ênfase correcta a uma certa palavra, ou tinha feito um gesto
uma fracção de segundo antes do tempo.
Nem conseguia compreender porque é que ele fazia correcções a lápis em
todas as suas composições e a massacrava por usar adjectivos muito
elaborados e andava para cima e para baixo no estrado a ofendê-la
porque ela “nunca sabe onde deve parar, por deus,” e depois dizia à
Rhoda Stuart e à Nan Lee que as composições delas eram muito bonitas e
lhas devolvia sem sequer uma marca. Ainda assim, e apesar disto tudo,
ela cada vez gostava mais dele e o Outono passou e veio o inverso com
as suas lindas árvores despidas, e céus cinza pérola que se
trespassavam de fendas douradas à tarde, e depois desapareciam para
dar lugar a um cortejo de estrelas sobre os largos montes brancos e
vales em volta de New Moon.
Emily cresceu tanto nesse Inverno que a tia Laura teve que lhe descer
as bainhas dos vestidos. A tia Ruth, que tinha vindo de visita por uma
semana, disse que ela estava a crescer depressa demais--as crianças
tuberculosas cresciam sempre depressa demais.
“Eu não sou tuberculosa,” dissera Emily. “Os Starr são altos,”
acrescentou, com um toque subtil de malícia que não era de esperar aos
quase treze anos.
A tia Ruth, que era sensível à sua baixa estatura, fungou.
“Era bom que fosse só nisso que te parecesses com eles,” disse. “Como
é que vais na escola?”
“Muito bem. Sou a aluna mais inteligente da minha classe,” respondeu
Emily com muita compostura.
“Sua criança presunçosa!” disse a tia Ruth.
“Eu não sou presunçosa.” Emily ficou indignada. “É o senhor Carpenter
que o diz, e ele nunca mente. Além disso, eu não posso evitar vê-lo
por mim.”
“Bem, é de esperar que tenhas alguma esperteza, porque em termos de
aspecto não foste favorecida,” disse a tia Ruth. “Não tens cor nenhuma
—-e esse cabelo preto em volta de uma cara tão branca é demasiado
chamativo. Vais ser uma rapariga feia.”
“A senhora nunca diria isso na cara de um adulto,” disse Emily, com
uma gravidade deliberada que exasperava sempre a tia Ruth, que não a
compreendia numa criança. “Eu acho que não lhe fazia mal nenhum ser
educada para mim como é para as outras pessoas.”
“Eu estou-te a dizer o teus defeitos para que os possas corrigir,”
disse friamente a tia Ruth.
“Não é culpa minha ter a cara pálida e o cabelo preto,” protestou
Emily. “Eu não posso corrigir isso.”
“Se tu fosse uma rapariga diferente,” disse a tia Ruth, “eu podia--"
“Mas eu não quero ser uma rapariga diferente,” disse a Emily
decididamente. Não tinha a menor intenção de deixar cair a bandeira
dos Starr perante a tia Ruth. “Eu não queria ser ninguém senão eu,
mesmo que seja feia. Além disso,” acrescentou de forma intencional
virando-se ao sair da divisão, “embora eu agora não seja bonita,
acredito que vou ser deslumbrante quando for para o céu.”
“Algumas pessoas acham a Emily muito bonita,” disse a tia Laura, mas
não o disse enquanto Emily a pudesse ouvir. Era suficientemente Murray
para isso.
“Eu não sei como,” disse a tia Ruth. “Ela é vaidosa e impertinente e
diz coisas para se fazer engraçada. Tu ouviste-a agora. Mas a coisa
que menos gosto nela é que não é como uma criança normal--é funda como
o mar. Sim, é verdade, Laura, funda como o mar. Vais ver isso à tua
custa se desprezares o meu aviso. É capaz de qualquer coisa. Falsa não
é suficiente para ela. Tu e a Elizabeth não têm as rédeas
suficientemente curtas com ela.”
“Eu tenho dado o meu melhor,” disse Elizabeth rigidamente. Ela própria
tinha essa opinião—-a Laura e o Jimmy eram dois para uma--mas
aborrecia-a ouvir a Ruth dizê-lo.

157
O tio Wallace também teve um ataque de preocupação sobre a Emily nesse
Inverno.
Olhou para ela certo dia quando estava em New Moon e comentou que ela
estava a ficar muito crescida.
“Quantos anos tens, Emily?” perguntava-lhe cada vez que vinha a New
Moon.
“Faço treze anos em Maio.”
“H’um. O que pensas fazer com ela, Elizabeth?”
“Não sei o que queres dizer com isso,” disse a tia Elizabeth friamente
—-ou tão friamente como possível para alguém que deitava cera
derretida para formas de velas.
“Bem, ela qualquer dia é uma mulher. Não pode esperar que tu a
sustentes indefinidamente—“
“E não espero,” murmurou Emily ressentida.
“--e tem que se decidir o que é melhor fazer com ela.”
“As mulheres Murray nunca tiveram que trabalhar para se sustentarem,”
disse a tia Elizabeth, como se isso resolvesse o assunto.
“A Emily só é meio Murray,” disse Wallace. “Além disso o tempo agora é
outro. Tu e a Laura não vão viver para sempre e quando vocês morrerem
New Moon vai para o Andrew do Oliver. Na minha opinião a Emily devia
ser preparada para se poder sustentar se for necessário.”
Emily não gostava do tio Wallace mas ficou-lhe muito agradecida
naquele momento. Fossem quais fossem os seus motivos ele estava a
propor a coisa que ela secretamente mais desejava.
“Eu sugeria que ela fosse mandada para a academia de Queen’s para
tirar uma licença de professora. O ensino é uma profissão nobre,
feminina. Eu faço a minha parte financiando as despesas.”
Um cego teria visto que o tio Wallace achava que isto era um acto
admirável da sua parte.
“Se o fizer,” pensou Emily, “eu pago-lhe todas as despesas, até ao
último cêntimo.”
Mas a tia Elizabeth estava inamovível.
“Não acho que as raparigas devam andar de qualquer maneira pelo
mundo,” disse. “Eu não quero que a Emily vá para Queen’s. Disse isso
mesmo ao senhor Carpenter quando ele cá veio falar comigo sobre a
possibilidade de começar a trabalhar para a entrada com ela. Ele foi
muito rude--os mestres-escola sabiam melhor qual era o seu lugar no
tempo do meu pai. Mas eu dei-lhe a entender o que penso. Estou até
surpreendida contigo, Wallace. Tu não mandaste a tua filha trabalhar
para fora.”
“A minha filha tem pais que a podem sustentar,” respondeu o tio
Wallace pomposamente. “A Emily é órfã. Pelo que ouvi imaginei que ela
ia preferir ganhar o seu sustento a viver da caridade.”
“E é verdade,” exclamou Emily. “É verdade, tio Wallace. Oh, tia
Elizabeth, por favor deixe-me estudar para a entrada. Por favor! Eu
pago-lhe cada cêntimo que gastar comigo--de verdade. Dou-lhe a minha
palavra de honra.”
“Só que não se trata de uma questão de dinheiro,” disse a tia
Elizabeth com o seu ar altivo. “Eu fiquei responsável por ti, Emily e
assumo as minhas responsabilidades. Quando fores mais velha mando-te
para o liceu em Shrewsbury por uns anos. Não estou a negar-te uma
educação. Mas não vais ser uma escrava do público--nenhuma rapariga
Murray alguma vez o foi.”
Emily, apercebendo-se da inutilidade dos pedidos, continuou com a
mesma desilusão amarga que sentira aquando da visita do senhor
Carpenter.
Então a tia Elizabeth virou-se para o tio Wallace.
“Já te esqueceste no que deu a ida da Juliet para Queen’s?” perguntou.
Se Emily não pode estudar para os exames de entrada, Perry não tinha
quem lhe dissesse que não e atirou-se ao estudo com a mesma
determinação que mostrava em todos os outros assuntos. O estatuto de

158
Perry em New Moon tinha mudado subtilmente de forma rápida. A tia
Elizabeth deixara de se referir a ele como um “moço de lavoura”. Até
ela reconhecia que embora ele fosse sem dúvida um moço de lavoura ele
não ia permanecer assim, pelo que deixou de levantar objecções quando
a tia Laura lhe remendava as roupas, ou quando a Emily o ajudava a
estudar na cozinha depois do jantar, nem se indignou quando o primo
Jimmy lhe começou a pagar uma pequena quantia--embora houvessem
rapazes mais velhos que o Perry dispostos a passar o Inverno numa casa
confortável a troco do alojamento e da comida. Se havia um futuro
primeiro-ministro na forja em New Moon a tia Elizabeth queria ter a
sua parte. Era recomendável e credível que um rapaz tivesse ambições.
Uma rapariga era um caso completamente diferente. O lugar de uma
rapariga era em casa.
Emily ajudava Perry nos problemas de álgebra e ouvia as lições dele em
latim e francês. Aprendeu desta forma mais do que a tia Elizabeth
teria gostado e mais ainda quando os alunos da entrada falavam as
línguas que aprendiam na escola. Era uma matéria bastante fácil para
uma rapariga que a dada altura tinha inventado uma língua própria.
Quando o Georges Bates, para se exibir, lhe perguntou certo dia em
francês—-o seu francês, do qual o senhor Carpenter dissera que talvez
Deus o entendesse—“Tens a tinta da minha avó e a escova do meu primo e
o guarda-chuva do marido da minha tia na tua secretária?” Emily
respondeu-lhe muito fluentemente e em francês, “Não, mas tenho a
caneta do teu pai e o queijo do estalajadeiro e a toalha da criada do
teu tio no meu cesto.”
Para se consolar da sua desilusão em relação à classe da entrada Emily
escrevia mais poesia que nunca. Era especialmente agradável escrever
poesia numa noite de Inverno quando os ventos de tempestade sopravam
sem parar e enchiam o jardim e o pomar de cargas de neve
fantasmagóricas, ponteadas de reflexos de velas. Ela também escreveu
várias histórias—-amores desesperados onde lutava heroicamente contra
as dificuldades dos diálogos afectuosos; contos de bandidos e
piratas--Emily gostava destes porque não havia necessidade de
conversas amorosas com bandidos e piratas; tragédias de cavaleiros e
condessas cujas conversas ela adorava apimentar com pedaços de
francês; e uma dúzia de outros assuntos dos quais não sabia grande
coisa. Também tinha pensado em começar uma novela mas decidiu que
seria demasiado difícil arranjar tanto papel. Os papéis cor-de-rosa já
se tinham acabado e os livros Jimmy não eram suficientemente grandes,
embora aparecesse sempre misteriosamente um novo no seu cesto da
escola quando o velho estava quase cheio. O primo Jimmy parecia ter
uma premonição estranha da altura certa--essa era outra das suas
características inexplicáveis.
Então, certa noite, enquanto estava deitada na sua cama observando uma
lua cheia que brilhava lustrosa num céu sem estrelas por cima do vale,
teve uma ideia súbita e estonteante.
Ela ia mandar o seu último poema para o Charlottetown Enterprise.
O Enterprise tinha um Canto do Poeta onde se publicavam frequentemente
versos “originais”. No seu íntimo, Emily achava-os tão bons como os
seus—-e provavelmente eram-no, porque a maior parte dos poemas do
Enterprise eram muito fracos.
Emily ficou tão excitada com a ideia que não conseguiu dormir grande
parte da noite—-e também não o quis fazer. Era glorioso ficar ali,
arrepiada na escuridão, imaginando tudo. Via os seus versos impressos
e assinados E. Byrd Starr--via os olhos da tia Laura brilhando de
orgulho--via os senhor Carpenter a apontá-los a estranhos—-“são de uma
aluna minha, por Deus”--via os seus colegas a invejá-la ou a
admirarem-na, dependendo do tipo-—via-se com pelo menos um pé
firmemente plantado na escada da fama--pelo menos um monte do Trilho
Alpino desbravado, com uma nova e gloriosa perspectiva abrindo-se a
partir daí.

159
Chegou a manhã. Emily foi para a escola, tão distraída por causa do
seu segredo que não fez nada bem e foi descomposta pelo senhor
Carpenter. Mas tudo passou por ela como a água passa pelas penas de um
pato. O seu corpo estava na escola de Blair Water mas o seu espírito
estava em reinos celestes.
Assim que terminou o dia de aulas ela dirigiu-se ao sótão com meia
folha de papel de notas com linhas azuis. Copiou o poema com todo o
cuidado, pondo pintas em cada i e o traço em cada t. Escreveu-o em
ambos os lados do papel, ignorante de qualquer tabu a esse respeito.
Depois leu-o deliciada em voz alta, sem omitir o título, Sonhos
Nocturnos. Havia um verso nele que saboreou duas ou três vezes:

A assombrosa música élfica do ar

“Acho que este verso é muito bom,” disse Emily. “Até me pergunto como
é que pensei nele.”
Enviou o seu poema no dia seguinte e viveu numa delícia mística até ao
Sábado seguinte. Quando chegou o Enterprise ela abriu-o com uma
ansiedade trémula e os dedos frios, e procurou o Canto do Poeta. E
agora o grande momento!
Não havia sinais de Sonhos Nocturnos nele!
Emily atirou o Enterprise ao chão e fugiu para a janela do sótão, onde
de cara enfiada no sofá, chorou a amargura da sua desilusão. Exalou o
ar do fracasso até ao último vestígio. Aquilo era horrivelmente real e
trágico para ela. Sentia-se mesmo como se tivesse levado um estalo na
cara. Estava esmagada no pó da humilhação e achava que nunca se
ergueria novamente.
Estava tão agradecida por não ter dito nada ao Teddy sobre aquilo--
tinha estado muito tentada a fazê-lo e só se refreou porque não queria
estragar a surpresa do momento em que lhe mostraria os versos
assinados por si. Ela tinha dito ao Perry, e ele ficou furioso quando
viu a cara dela manchada pelas lágrimas mais tarde na leitaria,
enquanto coavam o leite juntos.
Normalmente Emily adorava fazer isso, mas nesta tarde todo o sabor
tinha desaparecido do mundo. Mesmo o esplendor leitoso da fria e calma
tarde de Inverno e o reflexo arroxeado sobre os bosques do monte que
anunciava um degelo não lhe deu o habitual arrepio de alma.
“Eu vou a Charlottetown nem que tenha que ir a pé, rebentar a cabeça
daquele editor do Enterprise,” disse o Perry, com a mesma expressão
que trinta anos mais tarde avisaria os membros do seu partido que era
altura de se abrigarem.
“Isso não ia servir de nada,” disse Emily tristemente. “Ele não achou
que fosse suficientemente bom para ser publicado--é isso que me magoa
tanto, Perry--ele não achou que fosse bom. Partir-lhe a cabeça não ia
mudar isso.”
Levou uma semana a recuperar do golpe. Então escreveu uma história em
que o editor do Enterprise fazia o papel de um vilão negro e
desesperado que acabou por encontrar o seu lugar atrás das grades.
Isto purgou-lhe o veneno do sistema e ela esqueceu-se dele deliciando-
se com a escrita de um novo poema intitulado “Doce Senhora April 4.” Mas
eu não sei se ela o terá realmente perdoado-—mesmo que tenha
eventualmente descoberto que não devia ter escrito nos dois lados da
folha de papel--mesmo quando um ano mais tarde releu os Sonhos
Nocturnos e se perguntou como é que alguma vez o achou bom.
Este tipo de coisas aconteciam-lhe frequentemente agora. De cada vez
que lia o seu pequeno molho de manuscritos encontrava um em que o ouro
dos tolos se tinha transformado em folhas murchas, útil apenas para
queimar. Emily queimava-os--mas magoava-a um bocadinho. Crescer mais
do que as coisas que gostamos nunca é um processo agradável.

4
April é simultaneamente o nome do mês de Abril e um nome próprio feminino.

160
SACRILÉGIO

Nesse Inverno e Primavera tinham havido alguns choques entre a tia


Elizabeth e Emily. Geralmente a tia Elizabeth saía vencedora; tinha
uma certa mania de só fazer a sua vontade mesmo em assuntos de pouca
importância. Mas de vez em quando encontrava um curioso veio de
granito na composição de Emily que era indeformável, inquebrável e
inamovível. A Mary Murray de há cem anos tinha sido, como rezavam as
crónicas de família, uma criatura submissa e meiga no geral; mas tinha
esse mesmo veio, como abundantemente testemunhou o seu “Eu fico aqui”.
Quando a tia Elizabeth se enfrentava com aquele elemento da Emily
nunca levava a melhor. Mas ainda assim não aprendera a ser sábia,
prosseguindo com a sua política de repressão ainda mais vigorosamente;
pois apercebia-se ocasionalmente, enquanto Laura ia descendo bainhas,
que a Emily estava a crescer e que várias tormentas e rochedos se
avizinhavam, aumentados pela névoa dos anos imprevisíveis, pelo que
Emily não podia sair do seu controle agora ou naufragaria tal como
acontecera com sua mãe—-ou pelo menos esta era a convicção de
Elizabeth Murray. Não haveriam, em suma, mais fugas em New Moon.
Uma das coisas que sobressaíam era o facto de Emily gastar mais
dinheiro em papel do que aquele que a tia Elizabeth aprovaria. O que
fazia Emily com tanto papel? Tiveram uma discussão sobre isto e a tia
Elizabeth acabou por descobrir que Emily andava a escrever histórias.
Emily escrevera histórias todo o Inverno debaixo do nariz da tia sem
que esta suspeitasse. Tinha acreditado piamente que Emily estava a
escrever composições para a escola. A tia Elizabeth sabia vagamente
que Emily escrevia uns versos tolos que denominava “poesia” mas isto
não a perturbava particularmente. O Jimmy também produzia muito lixo
semelhante. Era tolo mas inofensivo e Emily iria com certeza
ultrapassar essa fase. O Jimmy não a tinha ultrapassado, era verdade,
mas havia o acidente—-Elizabeth sentia sempre uma certa dor de alma
quando se lembrava--que o tinha tornado mais ou menos numa criança
para toda a vida.
Mas escrever histórias era uma coisa muito diferente e a tia Elizabeth
ficara horrorizada. A ficção, fosse de que tipo fosse, era uma coisa
abominável. Elizabeth fora criada nesta crença na sua juventude e até
esta idade não se tinha afastado dela. Pensava honestamente que jogar
ás cartas, dançar, ir ao teatro, ler ou escrever novelas eram coisas
malvadas e pecaminosas, e que no caso da Emily havia ainda uma
agravante—-era o Starr que sobressaía nela--especialmente o Douglas
Starr. Nenhum Murray de New Moon alguma vez fora acusado de escrever
histórias, nem sequer de pensar em fazê-lo. Era um rebento estranho
que tinha que ser podado imediatamente. A tia Elizabeth aplicaria a
tesoura; e encontrara não uma raiz mole mas o mesmo veio de granito.
Emily era respeitosa e razoável e tudo o mais; não ia comprar mais
papel com o dinheiro dos ovos; mas disse à tia Elizabeth que não ia
deixar de escrever histórias e que ia continuar a escrevê-las, em
pedaços de papel de embrulho e nas costas em braço das publicidades de
alfaias agrícolas que mandavam ao primo Jimmy.
“Tu não sabes que é mau escrever novelas?” perguntou a tia Elizabeth.
“Oh, mas eu não escrevo novelas—-ainda,” disse Emily. “Eu não consigo
arranjar papel suficiente. Isto são só contos. E não é mau--o Pai
gostava de novelas.”
“O teu pai—-“ começou a Tia Elizabeth, e parou. Lembrou-se que Emily
já respondera mal antes quando se dizia algo negativo sobre o pai
dela. Mas o próprio facto de se ter sentido misteriosamente compelida
a parar aborreceu Elizabeth, que toda a sua vida dissera o que lhe

161
apetecia em New Moon sem qualquer complacência pelos sentimentos das
outras pessoas.
“Tu não vais escrever mais coisas destas,” a tia Elizabeth abanava
desdenhosamente “O Segredo do Castelo” debaixo do nariz de Emily, “eu
proíbo-te-—ouviste, proíbo-te.”
“Oh, mas eu tenho que escrever, tia Elizabeth,” disse Emily muito
séria, juntando as suas lindas mãos sobre a mesa e olhando
directamente para o rosto zangado da tia Elizabeth, sem pestanejar e
com segurança, o olhar que a tia Ruth dizia não ser natural numa
criança. “A tia pode ver, é assim. Isto está em mim. Não consigo
evitar. E o pai disse para eu continuar sempre a escrever. Ele disse
que eu um dia ia ser famosa. Não gostava de ter uma sobrinha famosa,
tia Elizabeth?”
“Eu não vou discutir este assunto,” disse a tia Elizabeth.
“Eu não estou a discutir, estou só a explicar.” Emily era
exasperantemente respeitosa. “Eu só quero que a tia compreenda que eu
tenho que continuar a escrever histórias, mesmo tendo muita pena que
não aprove.”
“Se tu não deixares esse--esse mais que disparate, Emily, eu—-eu—“
A tia Elizabeth parou, sem saber o que iria dizer que fazia. Emily era
agora grande demais para levar uma palmada ou ser posta de castigo; e
não serviria de nada dizer, como estava tentada a dizer, “Mando-te
embora de New Moon,” porque Elizabeth Murray sabia muito bem que não
mandaria Emily para longe de New Moon--não a conseguiria mandar
embora, de facto, ainda que não se apercebesse disso pois este
conhecimento apenas estava nos seus sentimentos, não tendo ainda sido
traduzido para o seu intelecto. Ela sentia apenas que estava impotente
e isso enfurecia-a; mas Emily era senhora da situação e continuou
calmamente a escrever histórias. Se a tia Elizabeth lhe exigisse que
deixasse de fazer croché ou caramelo, ou que não comesse nunca mais as
deliciosas bolachas da tia Laura, Emily tê-lo-ia feito completa e
alegremente, embora gostasse imenso de todas essas coisas. Mas deixar
de escrever histórias--a tia Elizabeth até lhe podia ter exigido que
deixasse de respirar. Porque é que não conseguia compreender? Parecia
tão simples e inquestionável a Emily.
“O Teddy não consegue deixar de fazer desenhos e a Ilse não consegue
deixar de recitar e eu não consigo deixar de escrever. Não vê, tia
Elizabeth?”
“O que eu vejo é que és uma criança ingrata e desobediente, Emily,”
disse a tia Elizabeth.
Isto magoou horrivelmente Emily, mas não podia ceder; e continuou a
haver um sentimento de mágoa e desagrado entre as duas em todos os
aspectos das suas vidas diárias que envenenava a existência à criança,
tão sensível ao seu ambiente e aos sentimentos daqueles que a
rodeavam. Emily sentia isso o tempo todo--excepto quando escrevia as
suas histórias. Então esquecia tudo, rumando a um país encantado entre
o sol e a lua, onde via seres maravilhosos que tentava descrever e
feitos maravilhosos que tentava recordar, voltando à cozinha iluminada
pelas velas com a difusa sensação de ter passado anos numa terra de
ninguém.
Nem sequer tinha a tia Laura para a apoiar no assunto. A tia Laura
achava que a Emily devia ceder num assunto de tão pouca importância
para agradar à Elizabeth.
“Mas não é de pouca importância,” disse Emily desesperada. “É a coisa
mais importante do mundo para mim, tia Laura. Oh, eu achei que a tia
ia compreender.”
“Eu compreendo que tu gostes de o fazer, querida, e acho que é um
divertimento perfeitamente inofensivo. Mas parece aborrecer a
Elizabeth e acho que devias deixar de o fazer por causa disso. Não é
nada de muito importante—-até é uma perda de tempo.”

162
“Não-—não,” disse Emily aborrecida. “Olhe, um dia, tia Laura, eu vou
escrever livros verdadeiros—-e vou ganhar muito dinheiro,”
acrescentou, sentindo que os Murray mediam a natureza da maioria das
coisas com base no princípio do dinheiro.
A tia Laura sorriu indulgentemente.
“Eu receio que tu não venhas a enriquecer dessa maneira, minha
querida. Seria mais sensato empregares o teu tempo a preparares-te
para um trabalho útil.”
Era de enlouquecer, ver-se alvo deste tipo de condescendência--que
ninguém visse que ela tinha que escrever-—ver a tia Laura tão meiga,
doce e estúpida em relação a isto.
“Oh,” pensava Emily amargamente, “se aquele horrível editor do
Enterprise tivesse publicado a minha peça elas iam acreditar em mim.”
“De qualquer forma,” aconselhava a tia Laura, “não deixes que a
Elizabeth te veja a escrever.”
Mas por qualquer razão Emily não conseguiu seguir este prudente
conselho. Haviam ocasiões em que tinha sido conivente com a tia Laura
e escondera algo da tia Elizabeth, mas achou que não o podia fazer em
relação a isto. Isto tinha que ser uma coisa aberta e conhecida. Ela
tinha que escrever histórias—-e a tia Elisabeth tinha que saber--e era
assim que tinha que ser. Não podia ser falsa consigo mesma nisto--não
podia fingir ser falsa.
Escreveu ao seu pai e contou-lhe tudo sobre o assunto--despejou toda a
sua amargura e perplexidade na que, embora não o suspeitasse na
altura, seria a última carta que lhe escreveria. Havia agora um grande
maço de cartas na prateleira do sofá no sótão--porque Emily tinha
escrito muitas cartas ao pai para além das que foram transcritas nesta
história. Haviam muito parágrafos sobre a tia Elizabeth, a maioria
deles muito pouco elogiosos e alguns deles, como a própria Emily teria
admitido depois de lhe passar a amargura, eram exagerados e
desproporcionais. Tinham sido escritos em momentos em que a sua fúria
e a sua alma magoada precisava de um escape para as suas emoções e
afiara a sua caneta com veneno. Emily era senhora de um estilo
malicioso e subtil quando escolhia sê-lo. Depois de escrever a magoa
desaparecia e não pensava mais no que escrevera. Mas o papel
permanecia.
E num certo dia de primavera, a tia Elizabeth fazendo as limpezas do
sótão enquanto Emily brincava alegremente com o Teddy em Tansy Patch,
encontrou o maço de cartas na prateleira do sofá, sentou-se e leu-as
todas.
Elizabeth Murray nunca teria lido nada que pertencesse a um adulto.
Mas não lhe chegou a ocorrer que houvesse algo pouco honrado em ler as
cartas onde Emily, sozinha e--por vezes—-mal entendida, tinha
desabafado o que lhe ia no coração para o pai que amara e a tinha
amado, de forma tão intensa e compreensiva. A tia Elizabeth achou que
tinha o direito de conhecer tudo o que esta sua hóspede fazia, dizia
ou pensava. Leu as cartas e descobriu o que a Emily pensava dela--
dela, Elizabeth Murray, autocrata indisputada, a quem nunca ninguém se
atrevia a dizer fosse o que fosse de menos elogioso. Esta experiência
não era mais agradável aos sessenta anos do que aos dezasseis.
Enquanto Elizabeth Murray dobrava a última carta as suas mãos tremiam-
lhe--de raiva, e de algo mais que estava por baixo e não era bem
raiva.
“Emily, a tua tia Elizabeth quer falar contigo na sala de visitas,”
disse a tia Laura, quando Emily voltou de Tansy Patch, apressada pela
fina chuva cinzenta que começava a cair sobre os campos verdejantes. O
seu tom--o seu ar pesaroso--avisaram Emily que havia qualquer coisa no
ar. Emily não tinha ideia do quê—-não se conseguia lembrar de nada que
tivesse feito recentemente que pudesse trazê-la perante o tribunal que
a tia Elizabeth ocasionalmente fazia funcionar na sala de visitas. Era
coisa séria quando era na sala de visitas. Por razões só dela

163
conhecidas a tia Elizabeth tinha conversas super-sérias como estas na
sala de visitas. Talvez fosse porque sentia vagamente que as
fotografias dos Murray pelas paredes lhe davam o apoio que precisava
quando lidava com esta hop-out-of-kin; e por essa mesma razão Emily
detestava um julgamento na sala de visitas. Sentia-se sempre como um
ratinho pequeno rodeado por um círculo de gatos muito sérios.
Emily atravessou o grande hall, parando apesar do seu alarme, para
apreciar o charmoso mundo vermelho que se via através do vidro; depois
empurrou a porta. A divisão estava na penumbra, pois só uma das
persianas estava parcialmente levantada. A tia Elizabeth estava
sentada muito direita na cadeira preta de pelo de cavalo do avô
Murray. Emily olhou primeiro para o seu rosto austero e zangado--e
depois para o seu colo.
Emily compreendeu.
A primeira coisa que fez foi recuperar as suas preciosas cartas. Com a
rapidez de um relâmpago ela dirigiu-se à tia Elizabeth, agarrou o
molho e recuou até à porta; ali enfrentou a tia Elizabeth com o rosto
escarlate de indignação e ultraje.
Tinha sido cometido um sacrilégio--o santuário mais sagrado da sua
alma fora profanado.
“Como se atreve?” disse. “Como se atreve a tocar nos meus papéis
particulares, tia Elizabeth?”
A tia Elizabeth nunca esperara isto. Ela tinha esperado confusão—-
tristeza--vergonha—-medo--qualquer coisa menos esta indignação, como
se ela fosse a culpada. Levantou-se.
“Dá-me essas cartas, Emily.”
“Não, não dou,” disse Emily, branca de fúria, enquanto apertava as
mãos em volta do molho. “Elas são minhas e do pai—-não são suas. Não
tinha o direito de lhes tocar. Eu nunca lhe vou perdoar isto!”
Isto virava completamente o jogo. A tia Elizabeth estava tão
desorientada que mal sabia o que dizer ou fazer. E pior de tudo, era
assaltada pela dúvida relativamente à sua própria conduta--provocada
talvez pela intensidade e sinceridade da acusação de Emily. Pela
primeira vez na sua vida Elizabeth Murray interrogou-se sobre a
correcção da sua atitude. Pela primeira vez na vida sentiu-se
envergonhada; e a vergonha fê-la ficar furiosa. Era intolerável que a
pudessem fazer sentir tão envergonhada.
De momento encaravam-se uma à outra, não como sobrinha e tia, não como
criança e adulta, mas como dois seres humanos com ódio um pelo outro
nos corações--Elizabeth Murray, alta e austera e de lábios finos;
Emily Starr, de rosto branco, olhos negros de raiva, braços trémulos
envolvendo as suas cartas.
“Então é assim que me agradeces,” disse a tia Elizabeth. “Eras uma
órfã sem um tostão--eu trouxe-te para casa--dei-te abrigo, educação,
comida e gentileza--e é assim que me agradeces.”
Por enquanto a tempestade de zanga e ressentimento que se abatia sobre
Emily impedia-a de ser atingida por isto.
“A tia não me queria trazer,” respondeu-lhe. “Fez-me tirar à sorte e
trouxe-me porque lhe calhou a si. Vocês sabiam que um de vocês tinha
que ficar comigo porque eram os orgulhosos Murray e não podiam deixar
um parente vosso ir para um asilo de órfãos. A tia Laura agora gosta
de mim mas a tia não. Então porque é que eu hei-de gostar de si?”
“Criança ingrata e mal-agradecida!”
“Eu não sou mal-agradecida. Tentei ser boa--tentei obedecer-lhe e
agradar-lhe--faço todas as tarefas que posso para ajudar. E não tinha
nada que ler as minhas cartas para o meu pai.”
“São cartas vergonhosas--e têm que ser destruídas,” disse a tia
Elizabeth.
“Não,” Emily agarrou-as com mais força. “Antes me queimava a mim. A
tia não vai ficar com elas, tia Elizabeth.”

164
Sentiu as suas sobrancelhas a aproximarem-se--sentiu o olhar dos
Murray no seu rosto--sabia que ia ganhar.
Elizabeth Murray empalideceu, se tal fosse possível. Haviam alturas em
que ela própria conseguia fazer o olhar dos Murray; não era isso que a
desanimava--era algo de estranho que aparecia por detrás do olhar dos
Murray que levava sempre a melhor com ela. Tremeu--vacilou—cedeu.
“Fica com as tuas cartas,” disse amargamente, “e goza com a velha
mulher que te abriu as portas de casa.”
E saiu da sala de visitas. Emily ficou senhora do campo de batalha. E
subitamente a sua vitória transformou-se em cinzas e pó.
Subiu para o seu quarto, escondeu as cartas na gaveta do armário por
cima da lareira, e depois subiu para a cama, enroscando-se com a cara
escondida na almofada. Ainda estava magoada e com uma sensação de
ultraje—-mas por baixo disso uma dor começava a crescer terrivelmente.
Alguma coisa nela doía porque ela tinha magoado a tia Elizabeth--
porque sentia que a tia Elizabeth, debaixo daquela raiva toda, estava
magoada. Isto surpreendeu Emily. Teria esperado que a tia Elizabeth
ficasse zangada, claro, mas nunca teria pensado que a afectaria de
qualquer outra forma. Mas ainda assim ela tinha visto algo nos olhos
da tia Elizabeth quando lhe dissera aquela última frase--algo que
exprimia uma mágoa profunda.
“Oh! Oh!” soluçou Emily. Começou a chorar sufocada contra a almofada.
Estava tão arrasada que não se conseguia distanciar de si e observar o
seu sofrimento com uma espécie de prazer neste drama--dedicar-se a
analisar os seus sentimentos—-e quando Emily estava assim arrasada
estava mesmo muito arrasada e inconsolável. A tia Elizabeth não
ficaria com ela em New Moon depois de uma discussão amarga como esta.
Ia mandá-la embora, com certeza. Emily acreditava nisto. Não havia
nada demasiado horrível para acreditar, nesta altura. Como poderia
viver longe de New Moon?
“E eu ainda posso viver oitenta anos,” gemia Emily.
Mas pior que sito era a recordação do olhar da tia Elizabeth.
O seu próprio sentimento de ultraje cedeu sob essa recordação. Pensou
em todas as coisas que tinha escrito ao seu pai sobre a tia
Elizabeth--coisas amargas, frias, algumas justas, outras injustas.
Começou a sentir que talvez não as devesse ter escrito. Era verdade
que a tia Elizabeth não gostava dela--que não tinha querido trazê-la
para New Moon. Mas tinha-o feito e embora por dever, não por amor, o
facto permanecia. Não lhe servia de nada dizer que as cartas não
tinham sido escritas para alguém vivo, ou para serem vistas por outras
pessoas. Enquanto ela estava debaixo do tecto da tia Elizabeth--
enquanto ela lhe devesse a comida que comia e as roupas que usava—-não
devia dizer, nem ao seu pai, as coisas duras que dissera dela. Um
Starr nunca o teria feito.
“Eu tenho que ir pedir desculpa à tia Elizabeth,” pensou por fim
Emily, quando toda a fura a tinha deixado e só ficaram os remorsos e o
arrependimento. “Ela não me deve perdoar nunca--vai-me odiar sempre a
partir de agora. Mas eu devo ir.”
Virou-se—-e então abriu-se a porta e entrou a tia Elizabeth. Ela
atravessou o quarto e ficou parada ao lado da cama, olhando para o
pequeno rosto infeliz sobre a almofada—-um rosto que no fim de tarde
chuvoso e escuro, manchado de lágrimas e com os olhos muito fundos,
parecia estranhamente maduro.
Elizabeth Murray ainda estava austera e fria. A sua voz soava dura;
mas disse uma coisa assombrosa:
“Emily, eu não tinha o direito de ler as tuas cartas. Admito que
errei. Consegues perdoar-me?”
“Oh!” A palavra era quase um grito. A tia Elizabeth tinha finalmente
descoberto uma forma de conquistar Emily. Esta levantou-se, lançou os
braços sobre a tia Elizabeth e disse sufocada pelas lágrimas:

165
“Oh--tia Elizabeth--desculpe--desculpe—eu não devia ter escrito
aquelas coisas--mas escrevi-as quando estava zangada--e não queria
dizer aquilo tudo--de verdade que não quis dizer as coisas piores. Oh,
a tia acredita, não acredita, tia Elizabeth?”
“Eu gostava de acreditar, Emily.” Um arrepio estranho percorreu a
forma alta e rígida. “Eu—-não gostava de pensar que tu—-me odeias--a
filha da minha irmã--a menina da pequena Juliet.”
“Oh, eu não odeio,” soluçou Emily. “E eu vou gostar de si, tia
Elizabeth, se me deixar--se quiser que eu goste. Eu não sabia que se
importava. Querida tia Elizabeth.”
Emily deu um grande abraço à tia Elizabeth e um beijo apaixonado no
seu rosto branco de rugas finas. A tia Elizabeth beijou-a com
gravidade na testa e depois disse, como se desse o incidente por
terminado,
“Vai lá lavar a cara e vem jantar.”
Mas ainda havia algo para esclarecer.
“Tia Elizabeth,” murmurou Emily. “Eu não posso queimar aquelas cartas,
sabe--elas pertencem ao Pai. Mas eu digo-lhe o que faço. Vou lê-las
todas e ponho uma estrela em cada coisa que escrevi sobre si, e depois
faço uma nota explicativa a dizer que me enganei.”
Emily passou o seu tempo livre de vários dias pondo “notas
explicativas” nas cartas até a sua consciência ter serenado. Mas
quando tornou a tentar escrever uma carta ao pai viu que já não
significava nada para ela. A sensação de realidade--proximidade—-de
comunhão tinha terminado. Talvez ela tivesse ultrapassado essa fase
gradualmente, enquanto a infância se unia à juventude--talvez a cena
amarga com a tia Elizabeth tivesse estilhaçado qualquer coisa já
destituída de espírito. Mas fosse qual fosse a explicação, não era
possível continuar a escrever tais cartas. Ela sentia-lhes
terrivelmente a falta mas não conseguia voltar a elas. Uma certa porta
da vida fechou-se por detrás dela e não se podia abrir novamente.

QUANDO A CORTINA SE LEVANTA

Teria sido agradável dizer que depois da reconciliação Emily e a tia


Elizabeth viveram em perfeita amizade e harmonia. Mas a verdade é que
as coisa prosseguiram mais ou menos da mesma forma que dantes. Emily
tentava juntar a sabedora da serpente com a inocência da pomba em
proporções práticas, mas os seus pontos de vista eram tão diferentes
que tinham que haver confrontos; elas não falavam a mesma língua, pelo
que tinham que haver desentendimentos.
Mas ainda assim havia uma diferença--uma diferença vital. Elizabeth
Murray tinha aprendido uma importante lição--que não havia uma regra
de justiça para as crianças e outra para os adultos. Continuou a ser
tão autocrática como sempre--mas já não dizia ou fazia a Emily
qualquer coisa que não teria feito ou dito à Laura numa ocasião
semelhante.
Emily, por seu lado, descobrira que por debaixo da sua frieza e
rigidez, a tia Elizabeth tinha de facto afecto por ela; e isto fez uma
diferença maravilhosa. Tirou o arpão das palavras e acções da tia
Elizabeth e curou um ponto frágil meio inconsciente no coração de
Emily que existia desde o incidente do sorteio em Maywood.
“Eu já não acredito que seja só um dever para a tia Elizabeth,” pensou
exultante.
Emily cresceu rapidamente nesse Verão, em corpo, mente e espírito. A
vida era maravilhosa, mais rica a cada hora, como uma rosa que se
abre. Várias formas de beleza enchiam-lhe a imaginação e ela
transferia-as tão bem quanto podia para papel, embora nunca fossem tão
belas lá, e Emily tinha os momentos desgostosos do artista que
descobre que

166
Nunca na tela do pintor jaz
O encanto do sonho da sua imaginação
Queimou muitos dos seus velhos trabalhos; mesmo a Filha do Mar foi
reduzida a cinzas. Mas o pequeno monte de manuscritos na gaveta do
armário por cima da lareira ia ficando cada vez maior. Emily mantinha
lá os seus escritos, agora; a prateleira do sofá do sótão fora
devassada; e para além disso, ela sentia que agora a tia Elizabeth
nunca mexeria nas suas coisas privadas, fosse onde fosse que as
tivesse. Agora já não ia para o sótão ler ou escrever ou sonhar; o seu
querido miradouro era o melhor lugar para isso. Ela adorava aquele
pequeno velho quarto intensamente; era quase uma coisa viva para ela-—
partilhava as alegrias—-confortava-lhe as mágoas.
Ilse também ia crescendo, desabrochando com uma beleza estranha e
brilhante, sem conhecer regras para além do seu prazer, sem reconhecer
autoridades para além dos seus caprichos. A tia Laura preocupava-se
com ela.
“Não tarda é uma mulher--e quem irá olhar por ela? O Allan não, com
certeza.”
“Eu não tenho paciência para o Allan,” disse a tia Elizabeth
secamente. “Ele está sempre pronto a aconselhar e encaminhar as outras
pessoas. Mais valia olhar para a casa dele. Vem cá a casa e diz-me que
faça isto ou aquilo, ou que não faça, por causa da Emily; mas se lhe
dou uma palavra sobre a Ilse atira-se ao ar. A ideia do homem se virar
contra a filha e negligenciá-la como faz só porque a mãe dela não foi
o que devia ser--como se a pobre criança tivesse culpa disso.”
“Shhh,” disse a tia Laura, enquanto Emily atravessava a sala de estar
a caminho do quarto dela.
Emily sorriu tristemente para si mesma. A tia Laura não precisava de
estar em cuidado. Não havia mais nada a descobrir sobre a mãe da
Ilse--nada a não ser o mais importante, que ninguém, nem ela nem
ninguém vivo sabiam. Porque Emily nunca abandonara a convicção que não
se conhecia toda a verdade sobre a Beatrice Burnley. Pensava muitas
vezes nisso quando estava deitada na sua cama escura à noite, ouvindo
o murmúrio do golfo e a Dama do Vento nas árvores, e entrava à deriva
no sono desejando intensamente conseguir resolver o velho mistério e
dissolver a sua lenda de vergonha e amargura.
Emily subiu as escadas languidamente até ao seu quarto. Tinha intenção
de escrever uma história, O Fantasma do Poço, onde tecia a velha lenda
do poço do campo do senhor Lee; mas faltava-lhe de certa forma o
interesse; deixou o manuscrito no armário da lareira; releu uma carta
do Dean Priest que tinha vindo nesse dia, uma das suas cartas alegres,
deliciosas e gordas em que lhe dissera que vinha a Blair Water e ia
ficar por um mês em casa da sua irmã. Ela perguntou-se porque é que
não tinha ficado mais entusiasmada com a ideia. Estava cansada--doía-
lhe a cabeça. Emily não se lembrava de ter tido uma dor de cabeça
antes. Uma vez que não ia escrever decidiu deitar-se e ser a Lady
Trevanion durante um bocado. Emily tinha sido a Lady Trevanion
bastantes vezes nesse Verão, numa das vidas imaginadas que começara a
construir para si. A Lady Trevanion era mulher de um nobre inglês,
para além de ser uma novelista famosa era membro da Casa dos Comuns
britânica--onde aparecia sempre vestida de veludo negro com uma coroa
de pérolas no seu cabelo escuro. Era a única mulher na Câmara, e como
isto era antes do tempo das sufragistas, tinha que suportar o desdém,
os comentários e insultos dos homens menos galantes à sua volta. A
cena que Emily preferia sonhar era aquela em que se levantava para
fazer o seu primeiro discurso--um acontecimento verdadeiramente
arrepiante. Como Emily achava difícil fazer justiça à cena com ideias
suas, usava sempre a resposta de “Pitt a Walpole”, que estudara no
livro de leitura, e declamava-a com algumas variações. O insolente
orador que provocara a Lady Trevanion tinha-a desdenhado por ser

167
mulher, e a Lady Trevanion, uma criatura magnífica de veludo e
pérolas, levantou-se entre sussurros e num silêncio dramático disse,
“O crime atroz de ser mulher que o nosso honrado membro, com tanto
espírito e decência, me aponta, não vou tentar negar nem mitigar, mas
contentar-me-ei apenas por esperar pertencer ao grupo daqueles cujas
loucuras terminam no seu género, e não ao daqueles que são ignorantes
apesar da sua masculinidade e experiência.”
(Aqui ela era sempre interrompida por uma tempestade de aplausos.)
Mas nesse dia o sabor estava completamente ausente da cena, e na
altura em que Emily chegava à parte de, “mas ser mulher, senhor, não é
o meu único crime” desistiu e começou a pensar na mãe da Ilse mais uma
vez, à mistura com algumas especulações incómodas relativamente ao
clímax da sua história do fantasma do poço e outras sensações físicas
desagradáveis.
Os seus olhos doíam-lhe quando os mexia. Tinha frio, embora fosse um
dia de Julho quente. Ainda ali estava deitada quando a tia Elizabeth
lhe veio perguntar porque é que não tinha ido buscar as vacas à
pastagem.
“Eu--eu não sabia que era tão tarde,” disse a Emily confusa. “Eu--dói-
me a cabeça, tia Elizabeth.”
0 tia Elizabeth afastou a cortina de algodão branco e olhou para
Emily. Reparou no seu rosto corado—-sentiu-lhe a pulsação. Depois
pediu-lhe que ficasse onde estava, desceu e mandou o Perry ir buscar o
Dr. Burnley.
“Provavelmente apanhou sarampo,” disse o médico tão secamente como era
habitual. Emily ainda não estava suficientemente doente para lhe
apelar à gentileza. “Há uma epidemia dela em Derry Pond. Será que a
apanhou?”
“Os dois filhos do Jimmy Joe Belle estiveram aqui uma tarde, há dez
dias. Ela brincou com eles--está sempre a brincar com pessoas com quem
não tem nada que se misturar. Eu não ouvi dizer que eles estivessem
doentes.”
O Jimmy Joe Belle, quando interrogado, confessou que “os seus
catraios” tinham aparecido com sarampo no mesmo dia em que tinham
estado em New Moon. Não havia assim grande dúvida em relação à doença
de Emily.
“É um tipo mau de sarampo, aparentemente,” disse o doutor. “Já houve
umas poucas de crianças de Derry Pond a morrerem dela. A maioria eram
francesas--os miúdos andavam fora da cama quando não deviam e
arrefeciam. Não acho que se devam preocupar com a Emily. Mais vale ter
o sarampo e dar o caso por arrumado. Mantenham-na quente e com o
quarto escuro. Eu volto cá amanhã de manhã.”
Durante dois ou três dias ninguém ficou muito alarmado. O sarampo era
uma doença que toda a gente tinha que ter. A tia Elizabeth tratava da
Emily e dormia num sofá que tinha sido levado para o miradouro. Até
mantinha a janela aberta à noite. Apesar disso--talvez até por causa
disso, pensava a tia Elizabeth--Emily estava cada vez mais doente, e
no quinto dia deu-se uma mudança rápida para pior. A febre subiu-lhe
rapidamente, começou a delirar; o Dr. Burnley veio, pareceu ansioso,
mudou os remédios.
“Eu tenho que ir ver um caso grave de pneumonia em White Cross,”
disse, “e tenho que ir a Charlottetown amanhã assistir à operação da
senhora Jackwell. Eu prometi-lhe que ia. Vou voltar à tarde. A Emily
está muito inquieta--aquele sistema sensível dela parece ser muito
sensível à febre. Que disparate é esse que ela está a dizer sobre a
Dama do Vento?”
“Oh, não sei,” disse a tia Elizabeth preocupada. “Ela está sempre a
dizer disparates desses, mesmo quando está bem. Allan, diz-me a
verdade--ela está em perigo?”
“Há sempre perigo neste tipo de sarampo. Eu não gosto destes
sintomas--a erupção já devia ter saído e não há sinal dela. A febre

168
dela está muito alta--mas acho que ainda não é altura para alarmes. Se
achasse o contrário não ia à cidade. Mantenham-na tão sossegada quanto
possível, faça-lhe as vontades se puderem, eu não gosto dessa
perturbação toda. Parece terrivelmente perturbada, como se estivesse
preocupada com alguma coisa. Ela andava aborrecida com alguma coisa
ultimamente?”
“Não que eu saiba,” disse a tia Elizabeth. Apercebeu-se subitamente
que não sabia muito sobre as preocupações da criança. A Emily nunca
lhe vinha contar coisas dela.
“Emily, o que é que te preocupa?” perguntou o Dr. Burnley suavemente-—
muito suavemente. Agarrou na pequena mão quente com muita, muita
gentileza.
Emily olhou para ele com olhos brilhantes e estranhos de febre.
“Ela não pode ter feito isso--não pode ter feito isso.”
“Claro que não,” disse o doutor animadamente. “Não te preocupes, ela
não fez nada.”
Os olhos dele perguntavam, “O que quer ela dizer?” a Elizabeth, mas
ela abanou a cabeça.
“De que é que estás a falar—-querida?” perguntou a Emily. Era a
primeira vez que chamava querida a Emily.
Mas Emily já ia noutra direcção. O poço do campo do senhor Lee estava
aberto, afirmava. Alguém lá ia cair dentro. Porque é que o senhor Lee
não fechava o poço? O Dr. Burnley deixou Elizabeth a tentar
reconfortar a Emily e apressou-se para White Cross.
Ao passar à porta quase caiu sobre o Perry que estava sentado na porta
de entrada, abraçado ás pernas morenas em desespero. “Como é que está
a Emily?” perguntou, agarrando-lhe uma ponta do casaco.
“Não me chateies--estou com pressa,” resmungou o doutor.
“Você diga-me como está a Emily ou eu agarro-lhe o casaco até lhe
rebentar as costuras,” disse Perry teimosamente. “Eu não consigo tirar
uma palavra de jeito daquelas velhas solteironas. Diga-me você.”
“Ela está doente mas ainda não estou seriamente preocupado com ela.” O
doutor deu outro safanão ao casaco--mas o Perry tinha uma última coisa
a dizer.
“Você tem que a curar,” disse. “Se acontece alguma coisa à Emily eu
afogo-me no lago, ouviu?”
Largou-o tão subitamente que o Dr. Burnley quase foi ter ao chão de
cabeça. Depois o Perry enrolou-se no degrau novamente. Ficou ali de
guarda até a Laura e o primo Jimmy se terem ido deitar e depois entrou
em casa e sentou-se nas escadas, onde podia ouvir o que se passava no
quarto da Emily. Sentou-se ali toda a noite, com os punhos cerrados,
como se estivesse de guarda contra um inimigo invisível.
Elizabeth Murray olhou pela Emily até ás duas da manhã e depois a
Laura veio tomar o seu lugar.
“Ela tem delirado muito,” disse a tia Elizabeth. “Só queria saber o
que a preocupa--há qualquer coisa, tenho a certeza. Não é tudo
delírio. Ela está sempre a repetir? Ela não pode ter feito isso’ com
um ar tão implorante. Eu pergunto-me, oh, Laura, lembras-te da altura
em que lhe li as cartas? Achas que é isso que ela quer dizer?”
Laura abanou a cabeça. Ela nunca tinha visto Elizabeth tão preocupada.
“Se a criança--não melhorar—"disse a tia Elizabeth.
Não disse mais nada mas saiu rapidamente do quarto.
Laura sentou-se ao pé da cama. Estava pálida e esgotada com a sua
própria preocupação e fadiga--porque não conseguia dormir. Gostava da
Emily como se fosse sua e o medo terrível que lhe possuía o coração
não descansava nem um instante. Sentou-se ali e rezou em silêncio.
Emily caiu num sono perturbado que durou até que a madrugada se
insinuou no quarto. Então abriu os olhos e olhou para Laura--olhou
através dela--para além dela.
“Eu vejo-a a vir pelos campos,” disse numa voz alta e clara. “Ela vem
tão contente--está a cantar--está a pensar na bebé--oh, não a deixem

169
vir--não deixem--ela não vê o poço--está tão escuro que ela não vê o
poço—-Oh, já caiu—-já caiu lá dentro!”
A voz de Emily levantou-se num grito lancinante que chegou ao quarto
da tia Elizabeth e a trouxe a correr na sua camisa de dormir de
flanela.
“O que foi, Laura?” perguntou.
Laura tentava acalmar Emily, que lutava para se sentar na cama. As
suas bochechas estavam vermelhas e os olhos ainda tinham aquele olhar
distante e selvagem.
“Emily--Emily, querida, só tiveste um pesadelo. O poço do Lee não está
aberto--ninguém caiu lá para dentro.”
“Sim, houve alguém que caiu,” disse Emily claramente. “Ela estava--eu
vi-a--com o ás de copas na testa. Acham que não a conheço?”
Voltou a cair na almofada, gemeu e afastou as mãos que Laura Murray
tinha largado de surpresa.
As duas senhoras de New Moon olharam uma para a outra por cima da cama
com assombro—-e algo parecido a terror.
“Quem é que viste, Emily?” perguntou a tia Elizabeth.
“A mãe da Ilse, claro. Eu sempre soube que ela não podia ter feito
aquilo. Ela caiu no velho poço--está lá agora—-vão--vão lá tirá-la,
tia Laura. Por favor.”
“Sim--sim, Claro que a tiramos, querida,” disse a tia Laura tentando
acalmá-la.
Emily sentou-se na cama e olhou novamente para a tia Laura. Agora não
olhava através dela--olhava para dentro dela. Laura Murray sentiu
aqueles olhos lerem-lhe a alma.
“Está-me a mentir,” exclamou Emily. “Não está a pensar ir lá tirá-la.
Só me está a dizer isso para me calar. Tia Elizabeth,” ela virou-se
subitamente e apanhou a mão da tia, “a senhora faz isso por mim, não
faz? Vai lá tirá-la do velho poço, não vai?”
Elizabeth lembrou-se que o Dr. Burnley tinha dito que se deviam fazer
as vontades a Emily, se possível. Ela estava aterrorizada com o estado
da criança.
“Sim, eu vou tirá-la de lá se ela lá estiver.”
Emily libertou-lhe e mão e encostou-se. O brilho estranho saiu-lhe dos
olhos. Uma grande calma caiu subitamente sobre o seu pequeno rosto
angustiado.
“Eu sei que vai cumprir a sua palavra,” disse. “A tia é muito dura-—
mas nunca mente, Tia Elizabeth.”
Elizabeth Murray regressou ao seu quarto e vestiu-se com dedos
trémulos. Um pouco mais tarde, quando Emily já estava calmamente a
dormir, Laura foi lá abaixo e ouviu Elizabeth a dar algumas ordens ao
primo Jimmy na cozinha.
“Elizabeth, não estás mesmo disposta a mandar investigar aquele poço
velho?”
“Estou,” disse Elizabeth resolutamente. “Eu sei que é um disparate tão
bem como tu. Mas eu tive que prometer para a acalmar--e vou manter a
minha promessa. Tu ouviste o que ela disse--ela acredita que eu não
lhe minto. E não o vou fazer. Jimmy, tu vais lá a casa do James Lee
depois do pequeno-almoço e pede-lhe que venha aqui.”
“Como é que ela ouviu aquela história?” disse Laura.
“Não sei--oh, alguém lhe disse, claro--talvez aquele velho demónio da
Nancy Priest. Não interessa quem foi. Ela ouviu-o e o que interessa é
mantê-la calma. Não dá assim tanto trabalho descer umas escadas pelo
poço e pedir a alguém que lá vá. O problema é ser tão absurdo.”
“Vamos ser gozadas como um par de tolas,” protestou Laura, cuja dose
de orgulho Murray ardia de revolta. “E além disso, vai reavivar o
velho escândalo outra vez.”
“Não interessa. Eu vou manter o que prometi à criança.” Disse
Elizabeth teimosamente.

170
Allan Burnley veio a New Moon ao por do sol, de regresso a casa vindo
da cidade. Estava cansado, porque andava a trabalhar de dia e de noite
há uma semana; estava mais preocupado do que admitira com a Emily;
parecia envelhecido e um pouco desolado quando entrou na cozinha.
Só lá estava o primo Jimmy. O primo Jimmy não parecia ter grande coisa
para fazer, embora fosse dia de ceifar o feno e o Jimmy Joe Belle e o
Perry andassem a carregar grandes molhos perfumados e secos ao sol.
Estava sentado à janela oeste com uma expressão estranha no rosto.
“Olá Jimmy, onde estão as raparigas? E como está a Emily?”
“A Emily está melhor,” disse o primo Jimmy. “A erupção já saiu e a
febre baixou. Acho que ela está a dormir.”
“Ainda bem. Nós não podíamos ficar sem aquela pequena, pois não,
Jimmy?”
“Não,” disse Jimmy. Mas ele não parecia querer falar sobre o assunto.
“A Laura e a Elizabeth estão na sala de estar. Querem falar consigo.”
Parou um momento e depois acrescentou de uma forma assustadora. “Não
há nada escondido que não venha a ser revelado.”
Allan Burnley reparou que o Jimmy estava um bocado estranho. Se a
Laura e a Elizabeth o queriam ver porque é que não vinham falar com
ele? Não era normal elas fazerem este tipo de cerimónias. Empurrou a
porta da sala de estar com impaciência.
Laura Murray estava sentada no sofá, com a cabeça apoiada no braço.
Não lhe conseguia ver a cara mas percebeu que estava a chorar.
Elizabeth estava sentada muito direita numa cadeira. Vestia o seu
segundo melhor vestido de seda e a sua segunda melhor capelina de
renda. E ela também estivera a chorar. O Dr. Burnley nunca dera grande
importância ás lágrimas da Laura, fáceis de cair como as de todas as
mulheres, mas a Elizabeth Murray a chorar--será que ele alguma vez a
vira chorar?”
A imagem de Ilse passou-lhe pela cabeça--a sua pequena filha
negligenciada. Ter-lhe-ia acontecido alguma coisa? Num horrível
momento Allan Burnley pagou o preço por anos de desinteresse pela
filha.
“O que é que se passa?” exclamou na sua forma mais rude.
“Oh, Allan,” disse Elizabeth Murray. “Que Deus nos perdoe--que Deus
nos perdoe a todos!”
“É—-é--a Ilse,” disse o Dr. Burnley apático.
“Não--não—-não é a Ilse.”
Então ela contou-lhe--contou-lhe o que fora encontrado no fundo do
velho poço do Lee--contou-lhe o que fora de facto o fim da sua linda e
alegre mulher, cujo nome há doze amargos anos não pronunciava.
Só na noite seguinte é que Emily tornou a ver o doutor. Estava deitada
na cama, fraca e mole, vermelha como uma joaninha por causa do
sarampo, mas já bastante melhor. Allan Burnley parou ao pé da cama e
olhou para ela.
“Emily--minha querida menina--sabes o que fizeste por mim? Só Deus
sabe como o fizeste.”
“Eu pensei que não acreditasse em Deus,” disse Emily intrigada.
“Tu devolveste-me a minha fé Nele, Emily.”
“Porquê, o que é que eu fiz?”
O Dr. Burnley viu que ela não se recordava do delírio. A Laura
dissera-lhe que ela tinha dormido profundamente depois da promessa de
Elizabeth e tinha acordado sem febre e com a erupção a sair. Não tinha
perguntado nada e nada lhe tinham dito.”
“Quando estiveres melhor nós contamos-te,” disse, sorrindo para ela.
Havia algo muito triste naquele sorriso--mas ainda assim era um
sorriso doce.
“Ele já sorri com os olhos e não só com a boca,” pensou Emily.
“Como--como é que ela soube?” perguntou-lhe Laura Murray baixinho
quando ele desceu. “Eu--não consigo compreender, Allan.”

171
“Nem eu. Estas coisas ultrapassam-nos, Laura,” respondeu-lhe muito
sério. “Eu só sei que esta criança me devolveu a Beatrice, amada e sem
mancha. Talvez se consiga explicar racionalmente. É evidente que
contaram a história à Emily e ela preocupou-se com isso--o facto de
repetir ‘ela não pode ter feito isso’ mostra que sim. E as histórias
do velho poço do Lee impressionaram-na naturalmente, ela é uma criança
tão sensível ás coisas dramáticas. No seu delírio misturou tudo com o
facto do Jimmy ter caído para dentro do poço de New Moon--e o resto
foi coincidência. Eu teria dito isto tudo a mim mesmo, dantes, mas
agora--agora, Laura, eu só digo com humildade, ‘Uma criança mostrar-
lhes-á o caminho.’”
“A nossa madrasta era escocesa, das Highlands. Diziam que ela tinha
uma segunda visão,” disse Elizabeth. “Eu nunca acreditei nisso--
antes.”
A excitação em Blair Water esmoreceu antes que Emily ficasse em
condições de ouvir a histórias. O que se encontrou no poço do Lee foi
enterrado junto aos Mitchell em Shrewsbury e ergueu-se uma lápide de
mármore branco dizendo, “Sagrada memória de Beatrice Burnley, amada
esposa de Allan Burnley”. A sensação que causava a presença do doutor
Burnley todos os domingos no serviço religioso também já esmorecera.
Na primeira tarde em que Emily se pode levantar a tia Luar contou-lhe
toda a história. A sua forma de contar retirou-lhe todas as
insinuações venenosas deixadas pela tia Nancy.
“Eu sabia que a mãe da Ilse não podia ter feito isso,” disse Emily
triunfante.
“Nós agora culpamo-nos pela nossa falta de fé,” disse a tia Laura.
“Devíamos ter visto isso também--mas as coisas pareciam tão feias em
relação a ela nessa altura, Emily. Ela era uma criatura inteligente,
alegre e linda--nós achávamos que a amizade dela com o primo natural e
inofensiva. Agora vimos isso--mas todos estes anos desde que ela
desapareceu acreditámos outra coisa. O senhor James Lee lembra-se
claramente que o poço tinha ficado aberto na noite em que a Beatrice
desapareceu. O homem que ele tinha contratado para o limpar tinha
tirado a cobertura com a intenção de lhe pôr logo. Mas a casa do
Robert Greerson pegou fogo e ele foi ajudar a apagá-lo. Na altura em
que terminaram estava escuro demais para acabar o poço e o homem não
disse nada senão de manhã. O senhor Lee ficou zangado com ele—disse
que era uma coisa vergonhosa deixar um poço destapado daquela maneira.
Foi logo lá e tapou-o ele mesmo. Não olhou lá para baixo--se tivesse
olhado também não tinha visto nada porque haviam fetos as crescer nos
lados que não deixavam ver bem o fundo. Só na primavera é que voltou
alguém àquele campo. Ele nunca relacionou o desaparecimento da
Beatrice com o poço aberto, e agora nem percebe porquê. Mas sabes,
querida—tinha havido tantos mexericos maliciosos—e sabia-se que a
Beatrice tinha estado a bordo da Dama dos Ventos. Era tido por certo
que ela lá tinha ficado. Mas saiu--e foi encontrar a morte no campo do
Lee. Foi um fim horrível para a vida dela, tão jovem e brilhante—-mas
afinal não foi tão mau como todos pensávamos. Durante doze anos
injustiçámos a morta. Mas Emily, como pudeste tu saber?”
“Eu--eu não sei. Quando o doutor veio naquele dia eu não me lembrava
de nada--mas agora parece que me lembro de qualquer coisa--como se
tivesse sonhado--de ver a mãe da Ilse a vir a cantar através dos
campos. Estava escuro--mas eu conseguia ver o sinal dela—-oh titi, eu
não sei--eu não gosto de pensar nisto.”
“Então não vamos tornar a falar nisto,” disse a tia Laura meigamente.
“É melhor não falarmos destas coisas--são segredos de Deus.”
“E a Ilse--o agora já gosta dela?” perguntou Emily ansiosamente.
“Se gosta! Não consegue gostar mais. Parece que lhe está a despejar de
enxorrada todo o amor que teve guardado estes anos todos.”

172
“Ele vai estragá-la com mimos agora, mais do que a estragou antes com
a negligência dele,” disse Elizabeth, que vinha trazer o jantar a
Emily e ouvira a resposta de Laura.
“Vai ser preciso muito amor para estragar a Ilse,” riu-se Laura. “Ela
bebe-o como uma esponja seca. E ela gosta tanto dele. Não tem nem um
traço de ressentimento.”
“Ainda assim,” disse Elizabeth secamente, arranjando as almofadas por
detrás das costas de Emily com muita gentileza, o que contrastava
estranhamente com a expressão severa,” não se vai safar facilmente. A
Ilse anda à solta há doze anos. Não vai ser assim tão fácil fazê-la
portar-se como deve ser agora--se alguma vez se chegar a conseguir.”
“O amor faz maravilhas,” disse a tia Laura suavemente. “Claro que a
Ilse está morta por te vir ver, Emily. Mas ela tem que esperar até não
haver mais perigo de contágio. Eu disse-lhe que ela te podia
escrever--mas disse-lhe também que tinha que ser eu a ler por causa
dos teus olhos e ela disse preferia esperar até que a lesses tu. Claro
—“a tia Laura riu-se novamente, “que a Ilse tem coisas de muita
importância a dizer-te.”
“Eu não sabia que alguém podia ser tão feliz como eu sou agora,” disse
Emily. “E oh, tia Elizabeth, é tão bom ter fome outra vez e poder
mastigar alguma coisa.”

O GRANDE MOMENTO DE EMILY

A convalescência de Emily foi bastante lenta. Fisicamente recuperou


com a rapidez normal, mas persistiu nela um certo langor espiritual e
emocional. Um ser humano não pode passar imune pelas profundezas dos
factos escondidos. A tia Elizabeth dizia que ela se arrastava. Mas
Emily estava demasiado feliz e contente para se arrastar. Era como se
a vida tivesse perdido o sabor por uns tempos, como se uma nascente de
energia vital se tivesse esgotado e demorasse a tornar a correr.
Nessa altura não havia ninguém com quem brincar. O Perry, a Ilse e o
Teddy tinham todos tido sarampo ao mesmo tempo. A senhora Kent
primeiro disse que o Teddy o tinha apanhado em New Moon, mas todos os
três o tinham contraído no piquenique da escola dominical onde se
encontraram com crianças de Derry Pond. Esse piquenique infectou todas
as crianças de Blair Water. Houve uma perfeita orgia de sarampo. O
Teddy e a Ilse só ficaram moderadamente doentes, mas o Perry, que
insistiu em ir para casa da tia Tom aos primeiros sintomas, quase
morreu. Não deram a saber a Emily o verdadeiro perigo que ele passara,
com receio que isso a preocupasse demais. Até a tia Elizabeth se
preocupou. Ficou surpreendida por descobrir quanto sentiam a falta o
Perry lá em casa.
Foi uma sorte para Emily que Dean Priest estivesse em Blair Water
durante estes infelizes dias. A sua companhia foi tudo o que a Emily
precisava para se recuperar plenamente. Deram longos passeios em volta
de Blair Water, com Tweed ladrando-lhes por perto, e exploraram
lugares e estradas que Emily nunca vira antes. Observaram a Lua a
envelhecer, noite após noite; conversaram em escuras câmaras ao
anoitecer sobre estradas longas e vermelhas de mistério; seguiram o
encanto dos ventos dos montes; Viram o nascer das estrelas e Dean
contou-lhe tudo sobre elas--as grandes constelações e os velhos mitos.
Era um mês maravilhoso; mas no primeiro dia da convalescença de Teddy
Emily foi a Tansy Patch passar a tarde e Jarback Priest passeou-—se é
que passeou--sozinho.
A tia Elizabeth foi extremamente educada com ele, embora não gostasse
particularmente dos Priests de Priest Pond, e nunca se chegou a sentir

173
confortável ao alcance dos olhos verdes e trocistas de Jarback e da
leve insinuação do seu sorriso, que fazia com que o orgulho e as
tradições dos Murray parecessem muito menos importantes do que
realmente eram.
“Ele tem o sabor dos Priests,” disse para Laura, “embora não seja tão
forte nele como na maioria. E ele está com certeza a ajudar a Emily—
ela começou a ter mais energia desde que ele chegou.”
Emily continuou a ganhar mais energia ate Setembro, quando passou a
epidemia de sarampo e o Dean Priest partiu numa das suas súbitas idas
para a Europa, quando ela estava pronta para a escola novamente-—um
pouco mais alta, um pouco mais magra, um pouco menos infantil com
grandes olhos cinza sombrios que tinham olhado para a morte e
resolvido o enigma de uma coisa enterrada, e que daí para a frente
encerrariam sempre a recordação do mundo por detrás do véu. Dean
Priest vira-o--o senhor Carpenter viu-o quando ele lhe sorriu do outro
lado da sua carteira de escola.
“Ela deixou para trás a infância da alma, embora ainda tenha um corpo
de criança,” murmurou.
Certa tarde entre os dias dourados e as neblinas de Outubro ele
perguntou-lhe secamente se o deixava ver alguns dos versos dela.
“Eu nunca tive intenção de te encorajar em relação a eles,” disse.
“Nem é a minha intenção agora. O mais provável é não conseguires
escrever uma linha de poesia verdadeira, nem agora nem nunca. Mas
deixa-me ver os teus versos. Se forem mesmo maus eu digo-te. Não te
quero ver a desperdiçar anos de vida em busca do inatingível--ou pelo
menos não quero ter nada na minha consciência se o fizeres. E traz-me
também algumas das tuas histórias--essas de certeza que ainda são
lixo, mas vamos ver se há razões para continuares.
Emily passou uma hora muito solene nessa tarde, a escolher, a pesar, a
rejeitar. Ao pequeno molho de versos ela acrescentou um dos seus
livros Jimmy, que continha, pensava ela, as suas melhores histórias.
Foi para a escola no dia seguinte, tão secreta e misteriosa que a Ilse
se ofendeu, começou a chamar-lhe nomes-—e depois parou. Ilse tinha
prometido ao seu pai que tentaria deixar esse seu hábito de chamar
nomes ás pessoas. Ela tinha-se andado a portar muito bem, e as suas
conversas, se bem que menos viva, começava a aproximar-se dos padrões
de New Moon.
Emily fez uma triste figura nas suas lições desse dia. Estava nervosa
e assustada. Tinha um respeito tremendo pelas opiniões do senhor
Carpenter. O padre Cassidy tinha-lhe dito que continuasse—-o Dean
Priest tinha-lhe dito que um dia talvez ela escrevesse mesmo a sério—
mas talvez eles só a tentassem encorajar porque gostavam dela e não
lhe queriam magoar os sentimentos. Emily sabia que o senhor Carpenter
não faria isto. Por muito que gostasse dela não lhe inflamaria as
ambições se visse que ela não tinha substrato para elas. Se, pelo
contrário, ele lhe desejasse boa sorte, ela ficaria descansada com
isso e não perderia o ânimo ao enfrentar qualquer criticismo futuro.
Não admira que o dia parecesse carregado de assuntos vitais para
Emily.
Quando terminaram as aulas o senhor Carpenter pediu-lhe que ficasse.
Ela estava tão branca e tensa que os outros alunos acharam que ela
devia ter sido apanhada nalgum comportamento terrível pelo senhor
Carpenter e sabia que ia ser “escovada”. A Rhoda Stuart mandou-lhe um
sorriso maliciosamente significativo do alpendre--que Emily não chegou
a ver. Ela estava realmente num tribunal momentâneo, com o senhor
Carpenter como juiz supremo e toda a sua futura carreira--assim o
acreditava—-pendendo do seu veredicto.
Os alunos desapareceram e uma calma repleta de sol instalou-se na
velha sala de aulas. O senhor Carpenter agarrou no pequeno pacote que
ela lhe tinha entregue de manhã e veio ter com ela, sentando-se na
carteira em frente à sua, olhando para ela. Ajeitou os óculos muito

174
deliberadamente por cima do nariz adunco, tirou os manuscritos e
começou a lê-los--ou a passar-lhes os olhos por cima, atirando pedaços
de comentários, misturados com resmungos, respingos ou gritos
dirigidos a ela enquanto a olhava. Emily juntou as mãos frias sobre a
secretária e enrolou as pernas em volta das pernas desta, para que os
seus joelhos não tremessem. Esta foi uma experiência verdadeiramente
terrível. Desejou várias vezes não ter dado os seus versos a ler ao
senhor Carpenter. Eles não eram bons--claro que não eram bons.
Lembrava-se do editor do Enterprise.
“Humpf!” disse o senhor Carpenter. “Pôr-do-sol, quantos poemas se
escreveram já sobre o pôr-do-sol—

As nuvens adensam-se num estado esplêndido


Ao portão destrancado a oeste
Onde aguardam tropas de espíritos acesos

Por Deus, o que quer isto dizer?”


“Eu--eu—não sei,” balbuciou Emily, cuja coragem fora dissipada pelo
súbito varrimento do olhar dele.
O senhor Carpenter resmungou.
“Por amor de Deus, rapariga, não escrevas coisas que nem tu percebes.
E isto--Para a Vida—-‘Vida, como presente não te peço uma alegria de
mil cores’--isto é sincero? È mesmo, rapariga? Pára e pensa. Tu não
pedes nenhuma alegria de muitas cores à vida?”
Ele transfigurou-se noutro olhar. Mas Emily começava a levantar o
ânimo. Ainda assim, sentia-se estranhamente envergonhada pelos desejos
elevados e altruístas expressos naquele soneto.
“Não,” respondeu relutante, “Eu quero alegrias me mil cores, montes
delas!”
“Claro que queres. Todos nós queremos. Nós não as temos--tu não as
vias ter--mas não sejas hipócrita ao ponto de fingires que não as
queres, nem mesmo num soneto. Versos a uma cascata das montanhas—-‘Nas
suas rochas escuras como a brancura de um véu em volta de uma noiva’--
onde viste tu uma cascata das montanhas na Ilha do Príncipe Eduardo?”
“Em lado nenhum—há uma imagem de uma no gabinete do Dr. Burnley.”
“Um riacho do bosque--
Os raios de sol enovelados estremecem (quiver)
Os arbustos inclinados tremem (shiver)
Sobre o pequeno riacho ensombrado (river)—

Só te faltou uma palavra aqui a rimar, e é ‘fígado’(liver). Porque é


que a deixaste de fora?”
Emily encolheu-se.
“Canção Selvagem--

Eu abanei a maresia dos campos


Sobre o manto creme do trevo--

É poesia, mas fraca. Junho, Junho, por amor de deus rapariga, não
escrevas poesias sobre Junho. É o assunto mais enjoativo do mundo. Já
foi escrito até à exaustão.
“Não, o Junho é imortal,” exclamou Emily subitamente, com um brilho
momentâneo a substituir-lhe a preocupação no olhar. Ela não ia deixar
que o Senhor Carpenter ficasse sem resposta em tudo.
Mas o senhor Carpenter tinha deixado o Junho de lado sem sequer ler
uma linha.
“’Eu estou cansada deste mundo faminto’--o que sabes tu do mundo
faminto?--Tu na tua reclusão de árvores velhas e velhas solteironas em
New Moon--mas ele é faminto. Ode ao Inverno--as estações são uma
espécie de doença que todos os jovens poetas têm que ter, ao que

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parece—-ah! ‘A Primavera não esquecerá’-—isto é um bom verso-—o único
bom verso. Hum’m—-Reflexões—

Ouvi os segredos das runas


Que os sóbrios pinheiros dos montes cantam—“

Será--será que ouviste mesmo os segredos?”


“Eu acho que sempre os soube,” disse Emily sonhadora. Aquele flash de
uma doçura inimaginável que por vezes a surpreendia tinha acabado de
vir e partir. “Objectivo e Demanda—-demasiado didáctico—demasiado
didáctico. Não tens nada que querer ensinar enquanto não fores velha—e
nessa altura não o vais querer fazer—-

O seu rosto era uma estrela pálida e bela--


Estavas a olhar para o espelho quando compuseste este verso?”
“Não—“ respondeu indignada.
“’Quando a luz da manhã se ergue como uma bandeira sobre os montes’--
um bom verso--um bom verso—

Oh, numa manhã tão dourada


Estar vivo é uma delícia--

Parece-me um eco de Wodsworth. O mar em Setembro--'Azul e austeramente


brilhante’—‘austeramente brilhante’--menina, como é consegues casar
assim os adjectivos? Manhã--'todos os medos secretos que assombram as
noites’--o que sabes tu dos medos que assombram as noites?”
“Eu sei algumas coisas,” disse Emily decidida, lembrando-se da sua
primeira noite em Wyther Grange.
“A um dia morto--

Com a gelada calma no sobrolho


Que só os mortos podem usar--

Tu já viste a calma gelada no sobrolho de um morto, Emily?”


“Sim,” disse Emily docemente, lembrando-se da triste manhã na velha
casa do vale.
“Eu pensei que sim, ou não terias escrito isto--e mesmo assim—quantos
anos tens tu, jade?”
“Fiz treze em Março.”
“Humpf! Versos ao pequeno infante da senhora George Irving--tu devias
estudar a arte dos títulos, Emily--eles têm modas como tudo o resto.
Os teus títulos estão tão fora de moda como as velas de New Moon--

Profundamente ele dorme com os seus rubros lábios selados


Como um lindo botão de flor contra o seu peito--

O resto nem vale a pena ler. Setembro--haverá algum mês que te falte?
--'Prados ao vento profundos como a colheita’—-um bom verso. Blair
Water ao luar—-teias de aranha, Emily, nada senão teias de aranha. O
Jardim de New Moon--

Apelando ao riso e velhas canções


De donzelas felizes e homens—

Um bom verso--eu acho que New Moon está cheia de fantasmas. ‘O baixo
lacaio da morte cumpriu bem o seu papel’--isto podia ter passado no
tempo de Addison, Emily, mas não agora—-não agora, Emily--

As tuas covas azuis são as campas


Onde brincam milhões de raios de sol—

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Atroz, menina, atroz. As campas não são parques de diversões. Achas
que brincavas muito depois de enterrada?”
Emily encolheu-se e corou novamente. Porque é que não tinha visto isto
ela mesma? Qualquer palerma o teria visto.

“Naveguem em frente, navios—-asas brancas, continuem a navegar


Até passarem a a barra púrpura do horizonte
Á deriva saem-nos da vista—-ao alvorecer
Continuem a navegar ao encontro da primeira estrela—

Lixo—lixo—-mas ainda assim tem uma imagem--

Beijem suavemente, ondas púrpura. Eu sonho


E os sonhos são doces--não acordarei mais--

Ah, mas tens que acordar se quiseres alcançar alguma coisa.


Menina, usaste a duas vezes a palavra púrpura no mesmo poema.

Botões de ouro num frenesim dourado—-

‘um frenesim dourado’ rapariga, eu vejo o vento a abanar os botões de


ouro,

Venho dos portões púrpura do oeste--

Tu gostas demais de púrpura, Emily.”


“É uma palavra tão linda,” disse Emily.

“Sonhos que me parecem brilhantes demais para morrer--

Parecem mas nunca são, Emily—

A voz cativante do eco, fama—

Então também a ouviste? E é cativante, para a maioria de nós não passa


de um eco. E é a última do monte.”
O senhor Carpenter pôs as pequenas folhas de lado, cruzou os braços e
olhou por cima dos óculos para Emily.
Emily olhou para ele em silêncio, sem coragem. Toda a sua vida parecia
ter-se esvaído do corpo e concentrava-se nos seus olhos.
“Dez versos bons em cem, Emily--comparativamente bom, de facto--e tudo
o resto balelas--balelas, Emily.”
“Se calhar são,” disse Emily com voz fraca.
Os seus olhos brilhavam com lágrimas, os lábios tremiam. Ela não
conseguia evitar. O orgulho fora desesperadamente engolido pela
amargura da sua desilusão. Sentiu-se exactamente como uma vela que
alguém apagara.
“Porque é que estás a chorar?” perguntou o senhor Carpenter.
Emily piscou os olhos e tentou rir-se.
“Eu--eu tenho pena que ache que não prestem—-“ disse.
O senhor Carpenter deu um grande murro na carteira.
“Não prestam! Não te acabei de dizer que tinhas dez versos bons? Jade,
Sodoma foi poupada por dez homens bons.”
“Quer dizer—-que--afinal--" A vela acendia-se novamente.
“Claro que sim. Se aos treze anos consegues escrever dez versos bons
aos vinte podes escrever dez vezes dez--se tiveres sorte. Mas deixa de
escrever sobre os meses--e não imagines ser um génio, também, só
porque tens dez versos bons. Eu acho que há qualquer coisa a tentar
falar através de ti--mas tu tens que te tornar um bom instrumento para
ela. Tens que trabalhar bastante e fazer muito sacrifícios--por deus,
rapariga, escolheste uma deusa invejosa. E ela nunca liberta quem lhe

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fez votos--mesmo quando fecha os ouvidos ás suas súplicas. O que tens
aí?”
Emily, com o coração aos pulos, entregou-lhe o livro Jimmy. Estava tão
feliz que todo o seu ser radiava positivamente. Ela antevia o seu
futuro, maravilhoso, brilhante—-oh, a sua deusa iria atendê-la—-“E.
Byrd Starr, a jovem novelista em ascensão.”
Foi trazida de volta à realidade por uma gargalhada do senhor
Carpenter. Emily perguntou-se um pouco inquieta porque se ria ele. Não
achou que houvesse algo cómico naquele livro. Continha apenas três ou
quatro das suas histórias mais recentes—-A Rainha das Borboletas, um
pequeno conto de fadas; A Casa Decepcionada, onde tinha tecido uma
pequena teia de sonhos que se realizavam após muitos anos; O Segredo
da Charneca, que apesar do seu título era um pequeno diálogo
interessante entre o Espírito da Neve, o Espírito da Chuva Cinzenta, o
Espírito da Névoa e o Espírito do Luar.
“Com que então não me achas bonito quando digo as orações?” disse o
senhor Carpenter.
Emily gaguejou—-apercebeu-se do que acontecera--fez uma tentativa de
apanhar o livro Jimmy—-não conseguiu. O senhor Carpenter manteve-o
fora do seu alcance e gozou com ela.
Ela tinha-lhe dado o livro Jimmy errado! E neste, oh, que horror, o
que havia neste? Ou por outra, o que não havia neste? Descrições de
todas as pessoas em Blair Water--e uma descrição completa--mesmo muito
completa-—do próprio senhor Carpenter. Tentando descreve-lo com
exactidão, ela tinha sido tão desapiedadamente lúcida como sempre era,
especialmente em relação ás caras que ele fazia de manhã quando rezava
a oração matinal. Graças ao seu jeito para pintar por palavras, o
senhor Carpenter vivia naquele retrato. Emily não tinha consciência
disso, mas ele tinha--via-se como se fosse num espelho e a forma como
tinha sido feito agradava-lhe tanto que se esqueceu de tudo o resto.
Além disso ela tinha-lhe desenhado os pontos fortes tão bem como os
fracos. E haviam algumas frases ali—-“Ele parece saber muitas coisas
que nunca lhe servirão para nada”--"Eu acho que ele usa o casaco preto
nas segundas-feiras porque o faz sentir como se nunca se tivesse
embebedado.” Quem tinha ensinado aquelas coisas à pequena Jade? Oh, a
sua deusa não ignoraria Emily!
“Desculpe,” disse Emily, escarlate de vergonha sobre a sua palidez
habitual.
“Ora, eu nunca trocaria uma coisa destas por toda a poesia que
escreveste ou venhas a escrever! Por Deus, isto é literatura--
LITERATURA—-e tu só tens treze anos. Mas não sabes o que tens à tua
frente--os montes pedregosos--as subidas íngremes--os golpes--os
desencorajamentos. Fica pelos vales se és sensata. Emily, porque é que
queres escrever? Diz-me a tua razão.”
“Eu quero ser rica e famosa,” disse Emily calmamente.
“Isso toda a gente quer. É tudo?”
“Não. Eu adoro escrever.”
“Uma razão melhor--mas não suficiente—-não é suficiente. Diz-me lá--se
tu soubesses que toda a vida ias ser pobre--se soubesses que nunca
publicarias uma linha de nada--continuarias a escrever?”
“Claro que sim,” disse Emily confiante. “Ora, eu tenho que escrever--
não consigo evitá-lo de vez em quando--simplesmente tenho que o
fazer.”
“oh--então não vou gastar o meu tempo a dar-te conselhos. Se está em
ti essa vontade tens que o fazer—-há pessoas que têm que levantar os
olhos para os montes--não conseguem respirar bem nos vales. Que Deus
os ajude se têm alguma fraqueza que os impeça de subir. Tu ainda não
compreendes uma palavra do que digo. Mas vai lá, sobe! Vá, toma o teu
livro e vai para casa. Daqui por trinta anos poderei dizer que a Emily
Starr foi aluna minha. Vai--vai--antes que eu me lembre como foste

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impertinente por escreveres essas coisas obre mim e fique devidamente
enraivecido.”
Emily foi, ainda um pouco assustada mas estranhamente exultante por
detrás do susto. Estava tão feliz que a sua felicidade irradiava para
o mundo com o seu próprio esplendor. Todos os doces sons da natureza à
sua volta pareciam as palavras quebradas da sua própria alegria. O
senhor Carpenter observou-a até sair da sua vista desde o velho poial
desgastado da entrada da escola.
“Vento--e chama--e mar!” murmurou. “A Natureza está-nos sempre a
apanhar de surpresa. Esta criança tem--o que eu nunca tive e teria
dado tudo para ter. Mas ‘os deuses não nos permitem ficar-lhes em
dívida--ela vai pagar por isso—-vai pagar.”
Ao pôr-do-sol Emily sentou-se à janela do quarto. Estava inundada por
um esplendor suave. Lá fora, nos céus e nas árvores, haviam tons
delicados e sons etéreos. Lá em baixo no jardim Daffy perseguia folhas
mortas pelos caminhos vermelhos. Á vista dos seus flancos elegantes e
riscados, a graça dos seus movimentos, deu-lhe prazer—-tal como as
filas certas e brilhantes dos campos arados para lá da alameda, e a
primeira estrela ténue e branca no céu verde cristal.
O vento da noite de Outono fazia soar trompetes na terra das fadas
sobre os montes; e sobre o bosque do Lofty John pairava o riso--como o
riso dos faunos. Ilse e Perry e Teddy estavam lá à sua espera--tinham
combinado um encontro ao fim da tarde. Ela iria ter com eles--mais
tarde—-não agora. Estava ainda tão cheia de encanto que simplesmente
tinha que escrever tudo antes de sair do seu mundo de sonhos para o
mundo da realidade. Noutra altura teria despejado tudo numa carta para
o pai. Agora já não podia fazer isso. Mas na mesa à sua frente estava
um livro Jimmy novo em folha. Puxou-o para si, pegou na sua caneta, e
na primeira página em branco escreveu,

New Moon,
Blair Water,
Ilha do Príncipe Eduardo

8 de Outubro.
Vou escrever um diário, para ser publicado depois de eu morrer.

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