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Isso fica ainda mais claro quando pensamos no epíteto "Ilúvatar": "O Pai de Todos". Eru é,
portanto, Pai por excelência de toda a Criação. Sem ele nada pode existir: "Nenhum tema pode ser
tocado que não tenha a sua fonte última em mim".
Do pensamento de Ilúvatar, dos múltiplos aspectos da sua mente criadora, é que nascem os Ainur,
os Sagrados, que surgem "antes que tudo o mais fosse feito". Como Eru, os Ainur são puro
espírito, e a associação com os anjos da mitologia judaico-cristã, mais uma vez, é inevitável. A
palavra "anjo" (do grego "ânguelos", enviado) é usada, no Novo Testamento, para traduzir um
termo hebraico que, originalmente, significava "manifestação", "aspecto". Os anjos são, dessa
forma, os aspectos do Divino que lidam ativamente com a Criação, protegendo-a e guiando-a.
Como emanações da mente de Eru, mas dotados de liberdade e vontade próprias, os Ainur se
aproximam bastante dessa visão. Muitos dos Ainur acabam descendo a Eä e se tornando os Valar
– os Poderes do Mundo, que em muitos ensaios Tolkien chamava explicitamente de "os Poderes
Angélicos". O próprio termo "Poder" é outro sinal da analogia com os anjos judaico-cristãos – entre
as muitas hierarquias angélicas cunhadas pelos primeiros teólogos cristãos, existe a das
Podestades – do latim podestas, que significa exatamente "poder". As Podestades são, assim, as
inteligências angélicas que auxiliam Deus no governo do mundo material – assim como os nossos
Valar.
Chega o momento em que Ilúvatar decide declarar seu grande tema aos Ainur, e tem início a
grande Canção, da qual todo o Universo surgirá. É importante notar que não se trata de uma
simples música, mas principalmente de uma canção – “como incontáveis corais cantando com
palavras”, sublinha Tolkien. Em todas as mitologias, a palavra – em especial a “palavra de poder”,
pronunciada nos primórdios do Tempo ou pelas divindades – é capaz de trazer à Existência aquilo
que ela nomeia; os verdadeiros nomes das coisas, quando pronunciados, equivalem à própria
coisa, ativam os poderes inerentes a ela. Além disso, porém, a palavra cantada tem ainda outro
poder: por se tratar da mescla entre palavra, ritmo e melodia, o canto privilegia não o sentido
racional dos versos, mas o som, a evocação, o feitiço criado por eles. A palavra se torna
encantamento, magia – e o seu poder criador se multiplica até o infinito. Por isso, em muitas
culturas, o bardo ou menestrel era considerado capaz de, cantando, trazer as cenas de seu canto
diante dos olhos do observador – como acontece com os bardos celtas ou com os poetas gregos
que, como Homero, eram inspirados pelas Musas.
É interessante notar que os Ainur, longe de serem executores passivos de uma partitura
previamente estabelecida, são co-criadores da grande Canção, adicionando sua imaginação e
pensamento ao tema de Ilúvatar. Tal concepção talvez possa ser explicada pela própria visão que
Tolkien tinha do ato criador: para ele, as criaturas são capazes de se tornar “sub-criadoras”,
companheiras do Criador no desenvolvimento e manutenção do Universo. Entretanto, e isso é
bastante claro na narrativa, as criaturas não podem jamais perder de vista o propósito e desígnio
profundo do Criador em tudo o que fazem, sob pena de incorrer na perversão malévola desses
desígnios.
Todo esse raciocínio nos conduz inevitavelmente ao antagonista desse grande drama: Melkor, o
mais poderoso dos Ainur e o que mais dons recebeu da generosa mente de Eru ao ser criado.
“Aquele que se levanta em Poder” é o significado de seu nome, e mais uma vez não se pode
deixar de pensar na analogia com o mais poderoso dos anjos, Lúcifer – em latim “o portador da
luz”. O pecado de Melkor, como o de Lúcifer, é o da auto-suficiência e do orgulho. Melkor passa a
achar que o tema de Ilúvatar pode ser ignorado e suplantado, procura “afogar o tema de Ilúvatar
pela violência de sua voz” – sem perceber que sua própria existência, todas as suas dádivas de
poder e conhecimento, provinham do próprio Eru.
Ao contrário do que acontece com Lúcifer, porém, Melkor não cai no momento em que se inicia sua
rebelião. Sua transformação em Morgoth, “o Inimigo Sinistro” (outro eco do hebraico Satanás, “o
Adversário”), só se dá quando ele desce a Eä com os demais Valar e procura submeter a Criação à
sua vontade. Como Lúcifer, Melkor atrai também para si muitos de seus semelhantes, graças à
sedução do poder. Mas, como o mais poderoso dos anjos, Melkor enfrenta a oposição dos Valar
que permanecem fiéis à vontade e ao desígnio do Criador, e destes o principal é Manwë, o Ainu do
ar e da região celeste. Mais um paralelo surge: Manwë desempenha um papel muito semelhante
ao de Miguel, o segundo em poder dos anjos e o líder da resistência angélica em favor de Deus,
que logra expulsar Satanás do Paraíso e derrotá-lo.
Como se pode ver, é a palavra de Eru – “Portanto eu digo Eä! Que estas coisas Sejam!” – que dá
existência ao Mundo. Embora os Valar tenham contribuído para a concepção do Universo, só
Ilúvatar possui a “palavra de poder” capaz de efetivamente trazer aquilo à Existência. E é quando
os Valar adentram Eä que percebemos a função destes no plano da Criação – a de organizadores
e mantenedores dos desígnios de Ilúvatar. O mundo que os Valar contemplam pela primeira vez é
ainda o Caos primordial: informe, escuro, apenas um potencial adormecido. É uma visão que se
aproxima bastante do Caos grego – que não corresponde, ao contrário do que se imagina, à
confusão, mas sim à indefinição, à potencialidade. Noções semelhantes do mundo em seus
começos podem ser encontradas em outras culturas do Oriente Próximo, como a egípcia – em que
o Caos primordial é visto como uma ilhota de argila emergindo das águas do Oceano primitivo – e
também na narrativa bíblica: “A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o
Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1, 2). Os Valar enfrentam, em seu trabalho de
organização do Mundo, a oposição constante de Melkor, mas apesar dela, conseguem levar a bom
termo sua missão e a Arda, o Reino, é estabelecido “nas Profundezas do Tempo e em meio às
inumeráveis estrelas”.