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INTRODUÇÄO
INTRODUÇÄO
O Atlântico não é só uma imensa massa de água, polvilhada de ilhas, pois a ele
associa-se uma larga tradição histórica que remonta à Antiguidade, donde resultou o
nome de baptismo. Aqui deparamo-nos com um conjunto polifacetado de ilhas e
arquipélagos que se tornaram relevantes no processo histórico do Oceano, quase
sempre como intermediários entre o mar-alto e os portos litorais dos continentes
europeu, africano e americano. As ilhas anicham-se, de um modo geral, junto da
costa dos continentes africano e americano, pois apenas os Açores, Santa Helena,
Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam dela.
Desde o pioneiro trabalho de Fernand Braudel 1 que às ilhas foi atribuída uma
posição chave na vida do oceano e do litoral dos continentes. A partir daqui a
Historiografia passou a manifestar grande interesse pelo seu estudo. Note-se ainda
que, segundo Pierre Chaunu·, foi activa a intervenção dos arquipélagos da Madeira,
Canárias e Açores, que designou Mediterrâneo Atlântico, na economia castelhana dos
séculos XV e XVII.
Para o Atlântico português a conjuntura era diversa, pois a actuação em três
frentes - Costa da Guiné, Brasil e Índico - alargou os enclaves de domínio ao sul do
oceano. Neste contexto surgiram cinco vértices insulares de grande relevo – Açores,
Canárias, Cabo Verde, Madeira e S. Tomé - imprescindíveis para a afirmação da
hegemonia e defesa das rotas oceânicas dos portugueses. Aí assentava a coroa
portuguesa os principais pilares atlânticos da sua acção, fazendo das ilhas desertas,
lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancoradouro seguro e
abastecedor para as embarcações e espaços agrícolas dinamizadores da economia
portuguesa. No primeiro caso podemos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde,
S. Tomé, Santa Helena e Açores, que emergem, a partir de princípios do século XVI,
como os principais eixos das rotas do Atlântico.
Aqui há necessidade de diferenciar aquelas ilhas que se afirmaram como pontos
importantes das rotas intercontinentais, como as Canárias, Santa Helena e Açores, e
as que se filiam nas áreas económicas litorais, como sucede com Arguim, Cabo Verde,
e o arquipélago do Golfo da Guiné. Todas, à excepção de S. Tomé, vivem numa
situação de dependência em relação ao litoral que as tornou importantes. Apenas a
de S. Tomé, pela importância da cana-de-açúcar, esteve fora desta subordinação por
algum tempo.
O protagonismo das ilhas das Canárias e dos Açores é muito mais evidente no
traçado das rotas oceânicas que se dirigiam e regressavam das Índias ocidentais e
orientais, resultado da sua posição às portas do oceano. Elas actuaram como via de
1 . O Mediterrâneo e o Mundo Maditerrânico na época de Filipe III, 2 vols., Lisboa, 1984 (1ª edição em 1949).
entrada e de saída das rotas oceânicas, o que motivava a maior incidência da pirataria
e corso na região circunvizinha. Mas os dois arquipélagos não foram apenas áreas de
apoio, uma vez que o solo fértil permitiu um aproveitamento das suas
potencialidades por meio das culturas europeio-mediterrâneas. Foi esta última
vertente que os projectou para um lugar relevante na História do Atlântico.
A valorização sócio-económica dos espaços insulares não foi unilinear,
dependendo da confluência de dois factores. Primeiro os rumos definidos para a
expansão atlântica e os níveis da sua expressão em cada um. Depois as condições
propiciadoras de cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da
existência ou não de uma população autóctone. Quanto ao último aspecto é de
salientar que apenas as Antilhas, Canárias e a pequena ilha de Fernão do Pó, no Golfo
da Guiné, estavam já ocupadas quando aí chegaram os marinheiros peninsulares. As
restantes encontravam-se abandonadas -- não obstante falar-se de visitas esporádicas
às ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé por parte das gentes costeiras -- o
que favoreceu o imediato e rápido povoamento, quando as condições do ecossistema
o permitiam. Se na Madeira esta tarefa foi fácil, não obstante as condições hostis da
orografia, o mesmo não se poderá dizer dos Açores ou de Cabo Verde, onde os
primeiros colonos tiveram que enfrentar diversas dificuldades. Para as ilhas já
ocupadas as circunstâncias foram diferentes, pois enquanto nas Canárias os
castelhanos tiveram que se defrontar com os autóctones por largos anos (1402/1496),
em Fernão do Pó e nas Antilhas foi mais fácil vencer a resistência indígena.
Nos séculos XV e XVI este conjunto variado de ilhas e arquipélagos firmou um
lugar de relevo na economia atlântica, distinguindo-se pela função de escala
económica ou mista: no primeiro caso surgem as ilhas de Santa Helena, Ascensão,
Tristão da Cunha, para o segundo as Antilhas e a Madeira e no terceiro as Canárias,
Os Açores, Cabo Verde, são Tomé e Príncipe.
Neste grupo emergem a Madeira e as Canárias pelo pioneirismo da ocupação que,
por isso mesmo, se projectaram no restante espaço atlântico por meio de portugueses
e castelhanos. Daqui resulta a evidente vinculação económica e institucional da
Madeira ao espaço atlântico português, como o é das Canárias com as índias de
Castela. Daí também a importância que assume para o estudo e conhecimento da
História do Atlântico a valorização da pesquisa histórica sobre ambos os
arquipélagos. Se nas Canárias tal necessidade se tornou um facto com o empenho de
muitos investigadores e instituições, nomeadamente a partir do Colóquio de História
Canario-Americana (1977), na Madeira só em 1986 com a criação do Centro de Estudos
de História do Atlântico. Na verdade, nos últimos quinze anos, as condições criadas ao
nível institucional levaram a que surgisse uma nova geração de jovens historiadores
insulares, que têm procurado desenterrar dos arquivos a realidade recôndita dos seus
antepassados.
Por tudo isto fica justificada a nossa opção pela abordagem do protagonismo das
ilhas portuguesas do Atlântico, relevando a sua afirmação na estratégia lusíada de
domínio deste espaço e usufruto que nelas tiveram das inúmeras potencialidades
económicas.
I. A REVELAÇÄO DO OCEANO
2. Uma das mais recentes aportações reveladoras do interesse dos povos mediterrânicos pelos espaços insulares atlânticos pode ser
comprovada, ainda que só para as Canárias, em Marcos Martinez, Canarias en la Mitologia, Las Palmas, 1992. Confronte-se A. von
Humbolt, Cristóbal Colón y el descubrimiento de América, 2 vols, Madrid, 1925 e 1926; A. García y Bellido, Las islas atlánticas en el mundo
antiguo, Las Palmas, 1967.
Frutuoso. Todavia o empenhamento da historiografia nacional nas reivindicações
imanentes da partilha oitocentista do continente africano conduziu a uma opinião
afirmativa, mantida até à actualidade, da prioridade lusíada no conhecimento do
Atlântico ocidental, oriental e Índico. A publicação em 1954 do polémico estudo de
Armando Cortesão sobre a carta náutica de 1424, em que o autor se declarava a favor do
testemunho da literatura greco-latina, foi mal acolhida. Desta forma se corporizava uma
nova realidade do processo de conhecimento do oceano.
Durante séculos o Atlântico foi considerado o mar das trevas, incapaz de ser
sulcado pelas embarcações mediterrânicas e de se submeter às técnicas de navegação
em uso. O empenho de cartagineses, árabes e peninsulares veio a revelar o contrário e
a torná-lo, a partir do século quinze, no principal centro de convergência dos
interesses europeus. A ponte entre o mundo antigo e moderno fez-se por via dos
árabes, mas foram os portugueses que materializaram a nova realidade. Ao grego ou
romano esta vasta massa de água materializava a dicotomia do bem e do mal,
expressa em visões aterrorizadoras, contrárias à navegação mas favoráveis à sua
afirmação como paraíso dos deuses da mitologia. Mas para o europeu, dos séculos
XV e XVI, ele será a imagem de uma esperança de total mudança dos interesses
económicos. Onde o homem antigo via o paraíso inalcançável, os peninsulares
tornavam real o mítico paraíso.
Esta criatividade literária greco-romano-árabe deu origem a várias ilhas
fantásticas, que surgem com maior acuidade desde o século XIV, como o alvo
preferencial de alguns navegadores incautos. Primeiro divulgou-se a Atlântida,
depois as Afortunadas, Hespérides, Antília (ou Sete Cidades), S. Brandão e Brasil. As
três últimas, que surgem pelo menos desde o século XIV, dominaram a imaginação
dos cartógrafos nesta e posteriores centúrias, cativaram o interesse de outros tantos
navegadores, persistindo, em alguns casos, até ao século dezanove.
A ilha de S. Brandão manteve-se na cartografia desde o século XIII ao XIX, sendo
deslocada para os espaços inexplorados do oceano. Entretanto a Antília atraiu alguns
portugueses, como Fernão Teles (1474), Fernão Dulmo (1486), João Afonso do Estreito
e os irmãos Corte-Reais, que solicitaram junto da coroa o necessário direito de posse.
Para Gaspar Frutuoso 3 estas e outras ilhas não passaram de meras fantasias dos
literatos europeus que o precederam. Na sua obra está bem expressa a total oposição
a esta realidade e à Atlântida de Platão, sendo vários os argumentos apresentados
para fundamentar a sua ideia. Resta saber se esta opinião é corroborada por todos os
seus contemporâneos. Todavia a última perdurou até hoje, conquistando inúmeros
adeptos nos diversos ramos da ciência, que lhe dedicaram muito tempo em estudos e
pesquisas que se tornaram infrutíferos.
Neste contexto as iniciativas portuguesas, desbravadoras do vasto oceano,
atribuíram a nova imagem à realidade atlântica. À visão de Avieno sobrepôs-se a de
Duarte Pacheco Pereira ou de D. João de Castro e Pedro Nunes. A situação
preferencial do português levou-o à defesa do mare nostrum, que depois teve de ser
partilhado com Castela e mais tarde com vários outros europeus. Esta partilha
4. B.S.J. ISERLIN, "Did Carthaginnian mariners reach the island of Corvo (Azores)? Report on the results of joint field investigations
indertaken on Corvo in June 1983", in Rivista de Studi Fenici, XII, Roma, 1084, 31-46.
5. José AGOSTINHO, "Achados arqueológicos nos Açores", in Açoreana, IV, 97.
perdurou memória da experiência adquirida" capaz de guiar ou motivar as expedições
posteriores dos séculos XIV e XV. Dizemos experiência adquirida e não
conhecimento! Pois das expedições, perpetuadas pela literatura perdurou apenas um
conjunto de ilhas, com nomes variados e indiscriminadamente colocadas ao longo da
costa africana até ao golfo da Guiné.
Por outro lado esta visão que tem prefigurado a História do Atlântico antes do
século XV é demasiado reducionista, por tentar definir o nível de conhecimento à
presença ou passagem de apenas os europeus, ignorando qualquer iniciativa das
populações africanas, desde Marrocos até ao golfo da Guiné. A tal perspectivação
eurocêntrica sobrepõe-se a realidade do Atlântico dominado por ilhas vizinhas ou
não da costa africana, alvos de assíduas visitas ou de uma fixação de gentes, como
sucedeu no arquipélago das Canárias e na ilha de Fernão do Pó. A presença de uma
população autóctone oriunda da costa africana atesta que o espaço insular não se
manteve desconhecido e que certamente muitos dos textos que para nós se afiguram
como mera ficção têm que ser reapreciados à luz desta nova realidade.
Os aborígenes do arquipélago canário foram resultado de dois surtos emigratórios:
um primeiro, em data incerta, entre 2500 e 1000 A.C., que levou à fixação das
primeiras gentes nas ilhas próximas do Cabo Juby (Lanzarote e Fuerteventura); e um
segundo entre os séculos VI e IX, provocado pelo avanço árabe no Norte de África,
que conduziu ao total povoamento do arquipélago.
Em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe é referenciada a presença de gentes africanas
antes da chegada dos portugueses no século XV. Todavia as ilhas encontravam-se
abandonadas à sua chegada na segunda metade do século XV, o que demonstra que
estes encontros, a terem lugar, deveriam ter sido fortuitos. O povoamento delas não
apresentava, então, qualquer interesse, sendo ocasional o da ilha de Ano Bom.
Se para estes arquipélagos, porque próximos da costa, o contacto com as
populações do litoral africano foi uma realidade. O mesmo já não se poderá dizer da
Madeira e dos Açores, cujo distanciamento do litoral, e a navegabilidade dos mares
circunvizinhos não foram de molde a favorecê-lo, ainda que de forma ocasional.
Talvez por isso mesmo seja impossível detectar o rasto da sua existência e
conhecimento na tradição histórico-literária, o que não sucede com as Canárias, por
exemplo.
Ao devassar do oceano na Antiguidade sucedeu nas décadas iniciais da Idade
Média um período de esquecimento. Estivemos perante um acantonamento ao velho
continente e mar mediterrânico, sendo o Atlântico considerado, por isso mesmo, um
mar tenebroso. A ideia começou a ganhar forma com Avieno, que o define como
Ophiusa (= Mar das Trevas). Apenas os geógrafos árabes conhecedores da tradição
clássica e atentos às expedições dos seus compatriotas, continuavam a acreditar na
navegabilidade do mar para além das colunas de Hércules.
Este conhecimento manteve-se por muito tempo fora da área de influência dos
povos peninsulares. A causa disso foi a conjuntura envolvente da alta Idade Média,
em que se sobrepõe a concepção ptolomaica do mundo ocidental, onde imperava a
inabitabilidade e intransponibilidade da zona tórrida 6 . Assim o acesso aos mercados
asiáticos só seria possível pelo mar do Levante.
O oceano continuará por muito tempo como um mar intransponível, repercutindo-
se em Edrisi (1099-1154) as teses de Séneca e Avieno. Mas com o advento do novo
milénio algo estava para acontecer no Ocidente: as cruzadas, por um lado, os
progressos técnicos (bússola, o leme e o navegar à "bolina") e económicos, por outro,
conduziram à abertura dos portos oceânicos. Deste modo às isoladas expedições
árabes: primeiro dos aventureiros de Lisboa em 1147, depois de Ibn Fatima e
Mohamed Ben Ragano, seguiram-se outras, com alguma frequência, sob o comando
de italianos, bretões, bascos, biscainhos e catalães, ao longo do século XIV. Das
últimas, para além do testemunho em texto, perdurou a sua expressão na cartografia,
a partir de finais do primeiro quartel do século catorze.
Desde o século XIII a costa ocidental africana, aquém do Bojador, passou a ser
devassada pelas populações ribeirinhas do litoral mediterrânico que, dando
continuidade à tradição clássica da pesca, encontraram aqui infindáveis riquezas.
Primeiro o aproveitamento dos recursos disponíveis nos mares circundantes. Depois
a procura de plantas tintureiras (urzela) e o resgate de escravos canários. Após a
pioneira viagem dos irmãos Vivaldi, em 1291, seguiram-se outras entre 1342 e 1339,
sendo de referenciar as
Hipotéticas viagens dos "Matelots de Cherebourg", antes de 1312, de Lanzarotte de
Malocello, ao serviço do rei de Portugal, cerca de 1310 e, finalmente, a de Angiolino
del Tegghia de Corbizi e Nicoloso de Recco em Junho de 1341, ao serviço de D.
Afonso IV de Portugal.
Outras viagens tiveram lugar cuja notícia escapou ao nosso conhecimento. Elas, no
entender de Raymond Mauny 7 , deixaram traços evidentes na cartografia do século
XIV. Desde 1325 os portulanos e cartas passaram a representar as ilhas, sendo a
imagem quase irreal, mas a partir de meados da centúria ela aperfeiçoa-se em termos
de perfil e de posição. No caso da Madeira a evolução é flagrante. Em 1339 na carta
Dulcert no seu local surgem três ilhas com o nome de S. Brandão ou das Donzelas.
No Atlas Mediceu de 1350 elas foram substituídas por outras com o nome real e
actual (Porto Sco, I.de lo Legname, I.Deserte), faltando apenas as Selvagens que
aparecem cinco anos depois no Atlas de Abraão Cresques. Em qualquer dos casos o
contorno e posição aproximam-se da realidade. Quanto às ilhas do sul aponta-se,
ainda que erradamente, que a "ixola otinticha" da carta de Andrea Bianco (1448?) com
uma das ilhas de Cabo Verde, possivelmente descoberta por Vicente Dias.
O progresso na representação cartográfica da Madeira resultou de uma assídua
observação presencial a que não pode ser alheio o incremento das expedições ao
vizinho arquipélago das Canárias. Em 1344 o próprio papa de Avinhäo estava ao
corrente do que aí se passava, concedendo o senhorio das ilhas Afortunadas a D. Luís
de La Cerda. Tal ordem condicionou uma acesa disputa pelo arquipélago das
Canárias, que só terá o seu epílogo em 1479 com o tratado de Alcáçovas. Enquanto os
13. "Relação de Francisco Alcoforado", in Arquivo Histórico da Marinha, I, Lisboa, 1936, 317, 329.
14. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 106-108.
15. "Notas", in Saudades da Terra, Funchal, 1873.
16. Public Reccord Office, Rotuli Parliamentorum, VII, 571-572.
O DESCOBRIMENTO OU ENCONTRO DO SÉCULO XV
17. Memórias para a História das Navegações e Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1819.
18. Memória sobre a Prioridade dos Descobrimentos Portugueses na Costa Ocidental Africana, Lisboa, 1958.
19 O ponto da situação pode ser feito em Pierre Chaunu,Expansão europeia do século XIII ao XV,São Paulo, 1978 (1º ed.1969), pp.183-
196.
20. Confronte-se os livros segundo, terceiro, quarto e ssexto das Saudades da Terra.
A disputa das ilhas Canárias nos séculos XIV e XV é o prelúdio de novos
confrontos com objectivos exclusivistas, bem patentes nos reinos peninsulares 21 . A
defesa do mare clausum e os problemas da sucessão das mesmas coroas foram os
principais responsáveis pelo conflito que teve lugar em dois palcos afins: a Península
Ibérica e o Atlântico Oriental.
O dealbar de uma nova era no século XV conduziu a profundas mudanças na
geografia política da Europa Ocidental. O Mediterrâneo cede lugar ao Atlântico. A
partir de entoo o último oceano, considerado intransponível, passa a afirmar-se como
um dos principais palcos dos acontecimentos onde intervêm as coroas peninsulares,
melhor posicionadas para a disputa.
As ilhas situadas às portas do Novo Mundo têm um papel primordial no processo
de transmutação. Deste modo a disputa pelo vasto oceano inicia-se no mundo
insular, pois do seu domínio dependerá o exclusivo das navegações e comércio no
Atlântico para sul. Assim o entenderam os monarcas de Portugal e Castela, que
desde o século XIV, estiveram envolvidos numa acesa disputa pela sua posse. Por
Portugal tivemos, primeiro, D. Afonso IV e depois, o Infante D. Henrique. O último, a
partir de finais do primeiro quartel do século XV, apostou forte nesta empresa. O
alheamento parcial da coroa castelhana favoreceu o reforço da posição henriquina em
face do seu opositor, a burguesia andaluza. Esta aposta do Infante na conquista das
Canárias e a forma de intervenção na Madeira e nos Açores levou Charles Verlinden
a perguntar-se se estava nos intentos do infante criar um estado insular.
A viagem de Jean de Betencourt em 1402 evidencia, por um lado, o afastamento da
Normandia da opção atlântica e, por outro, o reforço da terra andaluza, uma vez que
o referido expedicionário apenas conseguiu conquistar o apoio da comunidade
sevilhana, nomeadamente da família Las Casas. Depois o conquistador submeteu-se
à suserania do rei de Castela, no sentido de cativar apoios, o que veio a legitimar, à
priori, a soberania castelhana. À burguesia andaluza interessava a posse das ilhas
porque se apresentavam como um mercado importante para o comércio de escravos
e materiais corantes e, mesmo, como base de apoio para posteriores incursões no
litoral africano. O monarca de Castela, grato pela intervenção de Afonso de Las Casas
neste processo, decidiu premiar o seu esforço, solicitando em 2 de Maio de 1421 a
confirmação papal para a posse das ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Gomera e La
Palma.
Perante o evoluir dos acontecimentos ao infante D. Henrique restavam apenas
duas alternativas: a solução diplomática fazendo valer os direitos portugueses junto
do papado ou o recurso a uma intervenção bélica, legitimada pelo espírito de
cruzada, uma vez que os guanches eram pagãos. Assim tivemos as viagens de D.
Fernando de Castro (1424-1440) e António Gonçalves da Câmara (1427).
Nas alegações apresentadas em 1435 no Concílio de Basileia defrontaram-se as
duas opções políticas das coroas peninsulares: a portuguesa pela voz do bispo de
Viseu, D. Luís Amaral, e a castelhana pelo bispo de Burgos, D.Alonso de Cartagena.
Na dissertação do último foram apresentadas as normas que pautavam o direito
21 . Peter E.RUSSELL, O Infante D. Henrique e as ilhas Canárias. Uma dimensão mal compreendida da biografia henriquina, LLisboa, 1979.
internacional da época no que concerne à legitimação da posse das ilhas atlânticas 22 .
Algumas das razões aí aduzidas já haviam sido invocadas no século XIV por D.
Afonso IV para contrariar a ordem papal de conceder a D. Luís de La Cerda o
senhorio das ilhas Afortunadas. Mas numa e noutra frente as conquistas foram
efémeras e não permitiram uma solução imediata do conflito que perdurou por mais
alguns anos, que só foi conseguida por via do tratado estabelecido no ano de 1479 em
Alcáçovas e confirmado pelos monarcas no seguinte em Toledo. A sua assinatura
assinala o abandono definitivo das pretensões portuguesas pela posse das Canárias e
o aparecimento de novos locais de disputa além do Bojador.
Quais os motivos que levaram a esta mudança de atitude?
Por parte dos portugueses ela não deriva apenas do facto de estarmos perante uma
opção henriquina, e que terá morrido em 1460 com o infante, pois que se associam
também mudanças provocadas no espaço Atlântico com o avanço de reconhecimento
de terras para sul. As Canárias, que num primeiro momento eram imprescindíveis
para o apoio à navegação e comércio no litoral africano, perderam-na em favor da
Madeira ou das feitorias recém-criadas na costa africana, como foi o caso de Arguim
(1445). Além disso os avanços na técnica náutica e construção naval permitiam uma
maior autonomia das embarcações deixando de ser necessária esta escala. Por último
acresce o facto de a burguesia andaluza estar empenhada no comércio da Costa da
Guiné, fazendo aí várias incursões, que colocavam em perigo o exclusivo comercial
lusíada. Perante este panorama só uma solução era possível: a via diplomática por
meio da assinatura de um tratado de partilha do oceano.
A proximidade da Madeira ao arquipélago canário em consonância com o rápido
surto do povoamento e valorização económica do solo madeirense orientaram as
atenções dos primeiros colonos para uma activa intervenção na disputa ao lado do
infante. Primeiro foi João Gonçalves, sobrinho de Zarco, que em 1446 foi enviado pelo
infante à ilha de Lanzarote para firmar o contrato de compra da ilha com Maciot de
Betencourt, depois foi a forte presença dos madeirenses na armada para lá enviada
em 1451. Daí resultou inevitavelmente a abertura de uma rota de contacto entre os
dois arquipélagos, que perdurou nas centúrias seguintes.
Enquanto nas Canárias se fala apenas em conquista, cujo inicial obreiro foi Jean de
Betencourt, para os arquipélagos portugueses, abandonados quando da ocupação, o
debate subsistiu em torno da autoria e da data do seu descobrimento. As lacunas e
contradições das fontes diplomáticas ou narrativas não propiciam qualquer consenso.
Para Cabo Verde a disputa gira apenas em torno do nome do descobridor, na
Madeira e nos Açores não existe acordo quanto à data e ao nome do verdadeiro
descobridor.
Quanto aos Açores há os que defendem a tese tradicional apontando Gonçalo
Velho como o seu descobridor em 1439, e os que fundamentam a sua tese numa
legenda da carta Valsequa (1439), que afirma peremptoriamente o descobrimento em
1427 por Diogo de Silves 23 . Esta última opção conquistou a historiografia no
A partir desta informação, consignada nos textos dos cronistas coevos ou quasi-
coevos, encontrou a Historiografia os meios para fundamentar a tese do
descobrimento do arquipélago. Desde o primeiro estudo de Álvaro Rodrigues de
Azevedo (1873) até às mais recentes publicações poderemos estabelecer duas formas
de encarar a questão. Para uns o conhecimento terá sucedido no século XIV, como
resultado das expedições portuguesas às Canárias, sendo prova disso os portulanos e
cartas da época, ou a aventura de Roberto Machim. Enquanto outros, baseados nos
textos de Zurara, João de Barros e Gaspar Frutuoso, afirmam que o descobrimento
teve lugar no século quinze por iniciativa de João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz.
Estranhamente nos documentos da Chancelaria régia aqueles que a tradição
aponta como os descobridores das ilhas não são referenciados como tal mas apenas
como povoadores. Aliás o infante D. Henrique em carta de 18 de Setembro de 1460 30
referia-se à Madeira como ilha que "novamente achei", enquanto D. João II noutra carta
de 8 de Maio de 1493 31 refere que a mesma havia sido "descoberta y ocupada" por seu
bisavô.
Conjugadas estas informações com as anteriormente referenciadas a conclusão
mais plausível para o caso da Madeira e dos Açores é que o seu conhecimento era
anterior à presença dos portugueses, que surgem como redescobridores e povoadores
deste novo espaço. As abordagens anteriores não foram suficientes para lhes atribuir
o real valor que lhes estava reservado no século XV. Desde entoo elas firmaram-se
como protagonistas activas do novo mundo. A Madeira foi por muito tempo um
porto necessário às navegações ao longo da costa africana, enquanto os Açores
mantiveram idêntica missão nas viagens para ocidente e no retorno das viagens
exploratórias da costa africana e das grandes rotas oceânicas.
De acordo com Zurara 32 a Madeira emerge, a partir de 1445, como o principal
porto de escala para as navegações ao longo da costa ocidental africana. O rápido
surto económico da ilha, associado às já referidas dificuldades encontradas nas
Canárias, assim o determinaram. Os excedentes agrícolas que a ilha produzia eram
suficientes para abastecer as caravelas henriquinas de biscoito, vinho e demais
víveres frescos.
COLOMBO E AS ILHAS
AS ILHAS DO SUL
A Madeira foi de todas as ilhas a primeira a merecer uma ocupação efectiva por
parte dos colonos europeus. Por isso ela emerge no contexto do espaço atlântico
como uma área pioneira e depois modelo para os processos, técnicas e produtos que
serviram de referência para a afirmação portuguesa.
O povoamento iniciou-se a partir de 1420 e os primeiros colonos tinham ao seu
dispor inúmeras condições propiciadoras do êxito da iniciativa. Era uma ilha que
estava abandonada, aberta a qualquer iniciativa de povoamento, rica em madeiras e
água e com boas enseadas para a sua abordagem. O mesmo não sucedia nos Açores
ou nas Canárias, Cabo Verde e S. Tomé, onde surgiram inúmeras dificuldades à
fixação peninsular. No primeiro caso foram os sismos e vulcões que fizeram
afugentar os primeiros colonos. No segundo, a presença de uma população autóctone
- os guanches - difícil de dominar, enquanto nas últimas duas foram as condições
inóspitas do seu clima que dificultaram a presença europeia.
Por tudo isto a Madeira merece uma referência especial, uma vez que serviu de
modelo para as demais actividades de ocupação levadas a cabo pelos portugueses e
castelhanos no espaço atlântico.
Tal como já aqui demos conta, não obstante a existência de provas irrefutáveis
sobre o conhecimento das ilhas aquém do Bojador desde tempos remotos, só em
princípios do século XV surgiu a necessidade de as reconhecer e ocupar. A
conjuntura peninsular, a que se alia inevitavelmente a disputa pela posse das
Canárias, condicionou a imediata aposta portuguesa no povoamento da Madeira.
De acordo com os cronistas o processo foi faseado. Zurara refere-nos quatro
expedições, a partir de 1418, que conduziram ao redescobrimento, reconhecimento e
ocupação por meio do envio dos primeiros colonos. Aqui discute-se a data e o
comando das tarefas de povoamento.
Os cronistas insistem na activa intervenção do infante D. Henrique, mas os
documentos e o próprio infante referem algo diferente. Assim é o mesmo infante diz
que só em 1425 tomou conta do processo, enquanto a documentação estabelece o ano
de 1433 como o de início da sua intervenção como senhor da ilha, ficando ela,
segundo o dizer de João Gonçalves da Câmara em 1511, num "horto do senhor
infante". Mas o próprio D. Afonso V declarava em 1461 que João Gonçalves Zarco
fora o primeiro povoador aí enviado pelo infante, o que contraria a ideia defendida
por alguns, de que a coordenação desta tarefa pertenceu ao rei, por intermédio do
vedor da fazenda João Afonso. De concreto apenas se sabe que foi no uso dos plenos
poderes que o infante D. Henrique distribuiu, a partir de 1440, as terras do
arquipélago àqueles que haviam procedido ao seu reconhecimento e seriam os seus
capitães.
Dizem os cronistas que a ocupação das ilhas da Madeira e do Porto Santo teve
lugar no Verão de 1420 e que os promotores da iniciativa (João Gonçalves Zarco,
Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo) se fizeram acompanhar de homens,
produtos e instrumentos necessários para aí lançarem a semente europeia. Esta era a
terceira de um conjunto de expedições realizadas ao arquipélago nos dois anos que a
antecederam.
Com a distribuição das terras pelos três povoadores, as ilhas do Porto Santo e
Madeira ficaram divididas em três capitanias. O Porto Santo por ser ilha pequena
ficou entregue na totalidade a Bartolomeu Perestrelo, enquanto a Madeira foi
separada em duas por uma separação em linha diagonal entre a Ponta da Oliveira e a
do Tristão. A vertente meridional, dominada pelo Funchal ficou quase toda em poder
de João Gonçalves Zarco, enquanto a restante área dominada pela costa norte ficou
para Tristão Vaz.
Se no caso do Porto Santo surgiram problemas, primeiro com os inúmeros coelhos,
depois com, as condições pouco propícias do meio, o mesmo não sucedeu na
Madeira, onde os primeiros colonos encontraram todos os meios necessários à
fixação. De acordo com Gaspar Frutuoso 39 a ilha do Porto Santo era "pequena, mas
fresca (...) não tem boas águas, por ser seca e de pouco arvoredo" enquanto a Madeira era o
inverso, sendo caracterizada pela "fertilidade e frescura (...) e das muitas ribeiras e fontes de
água". Deste modo o povoamento, iniciado nas áreas do Funchal e Machico, alastrou
rapidamente a toda a costa meridional, levando à criação de outros locais em Santa
Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta.
A orografia da ilha condicionou a forma de povoamento, enquanto a elevada
fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico implicaram a rapidez do
processo. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de
alguns homens livres e a necessidade de procurar escravos na costa africana.
De entre o grupo de povoadores merecem referência a trinta e seis homens da casa
do mesmo infante, na sua maioria escudeiros ou criados, que adquiriram uma
posição relevante na estrutura administrativa e fundiária. Eles pertenciam ao
numeroso grupo de filhos-segundos do reino ou à pequena aristocracia, todos à
procura de títulos e bens fundiários. Isto poderá estar na origem da atitude de João
Gonçalves Zarco ao solicitar ao rei quatro varves de qualidade para casarem com as
suas filhas. O rei acedeu com o envio de Garcia Homem de Sousa, Diogo Afonso de
Aguiar e Martim Mendes de Vasconcelos. Numa lista dos homens-bons da capitania
do Funchal, elaborada em 1471, surgem apenas 10% de cavaleiros e 5% como
fidalgos. Mas a partir de então o número aumentou mercê dos títulos, conquistados
com a participação na defesa das praças marroquinas e de reconhecimento da costa
africana, e do enobrecimento pela intervenção na estrutura administrativa e na
economia açucareira.
42 . Gaspar FRUTUOSO, Saudades da Terra, livro quarto, vol. II, (1924), 302.
43 . Arquivo dos Açores, IV, 55.
A outro nível podemos falar de S. Jorge, uma pequena e acidentada ilha, onde a
estrutura administrativa e religiosa foi empolada devido às dificuldades de contacto
entre os vários núcleos de povoamento. Para apenas 2269 vizinhos temos três
municípios e sete freguesias, número excessivo quando comparado com o Faial, S.
Miguel e Terceira. Nesta ilha o povoamento, mercê da configuração do solo, teve
lugar a partir de três núcleos do litoral, as fajãs (primeiro Velas, depois Topo e
Calheta), que assumiram a categoria de vilas. Aqui os colonos dispunham de uma
pequena baía de acesso ao mar, água, terra e vegetação adequada por entre as
falésias 44 .
Nas demais ilhas o povoamento foi lento e as mesmas também não foram alvo de
um idêntico progresso social e institucional tão evidente. Enquanto a ilha do Faial
permaneceu com uma vila, nas de Graciosa e Pico viram surgir duas novas vilas na
década de quarenta do século dezasseis: S. Roque no Pico (1542) e Praia na Graciosa
(1546). A criação regeu-se única e exclusivamente pela dispersão geográfica dos
núcleos de povoamento, que fazia aumentar a distância à sede do concelho.
Nas ilhas mais ocidentais, de Flores e Corvo, a presença de colonos é tardia,
processando-se apenas no século dezasseis. E no caso do Corvo só a partir de meados
do século com escravos do capitão das Flores, Gonçalo de Sousa.
As dificuldades no recrutamento da população açoriana surgiram apenas no século
quinze pois que no seguinte foi fácil encontrar colonos e rápido o incremento da
população, sendo testemunho disso o texto de Gaspar Frutuoso e os alvarás de
acrescentamento das côngruas nos séculos XVI e XVII. Contra isso se apresentavam
as epidemias e as calamidades. A peste de 1523 a 1531 em Ribeira Grande e Ponta
Delgada e por fim o dilúvio sobre a Vila Franca do Campo (1522) que terá
vitimado mais de 5000 micaelenses. Note-se que a peste foi sentida também no Faial,
Pico, S. Jorge e Terceira em 1599, de que resultaram cerca de mil mortos só na última
ilha.
Pior foi o que sucedeu em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, onde a fixação de
colonos foi prejudicada pelas condições difíceis do clima. Na realidade o clima
apresentou-se como o principal entrave à fixação de colonos europeus, atrasando o
processo de povoamento e valorização económica. São inúmeros os testemunhos que
denunciam as dificuldades aí sentidas pelos europeus.
De acordo com Valentim Fernandes "estas ylhas (Cabo Verde) erä de primeyro tä
sadias que quantos gaffos alli vinham saravam. Mas agora (em 1506) som tam
doentias que a gente saä adoece. Creo que depois que os negros trouveram a ellas
corromperam ho ar como em sua terra que he doentia" 45 . Opiniäo diferente era a de
Gaspar Frutuoso, em finais do século dezasseis, que afirma peremptoriamente: "todas
as ilhas são muito sadias e têm muitos ares frescos nortes e nordestes (...) e pera
concluir toda a infâmia que há destes serem doentes e muito enfermas é falsa, porque
os homens regrados de comer e no beber, tendo castidade, vivem muito nelas e,
44 Cf. António dos Santos Pereira,A ilha de S.Jorge(séculos XV-XVII).Contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada, 1987.
45 . Monumenta Missionária Africana, I, 119.
sendo luxuriosos, morrem a poder de câmaras e de sangue" 46 . Mas os que lá viviam
testemunhavam as palavras de Valentim Fernandes e, por infinitas vezes, deram do
facto conhecimento ao rei. São prova disso os testemunhos de D. João de Castro em
1545 e os Jesuítas para aí enviados entre 1607-1609. Por outro lado os factos que
ilustram esta realidade reflectem-se na elevada mortalidade dos funcionários régios
para lá enviados. Daí resultou, em certa medida, a anarquia reinante na do
arquipélago, com a necessidade de substituição, quase permanente dos funcionários,
por abandono do cargo ou morte. Pêro de Guimarães, ao ser enviado para Santiago
como corregedor socorreu-se da protecção de Santo António, construindo em sua
memória uma ermida para afugentar "os maus ares da dita terra" 47 . Mesmo assim ele
não ficou imune, pelo que após as primeiras febres acabou por solicitar a sua retirada
em 1517, pois como afirma ela "não perdoa ninguém" 48 .
Para cativar a presença de novos povoadores a coroa acenava com um soldo
dobrado em relação ao do reino e as possibilidades de comércio na costa africana. Os
privilégios concedidos em 1466, para o comércio nas costas da Guiné, exceptuando as
mercadorias defesas e o trato de Arguim, foram o principal chamariz para os novos
colonos esquecerem as agruras do clima. Mas estas situações só se manteve até 1472,
sucedendo-se a partir de então restrições a esta situação privilegiada dos moradores
de Santiago e obriga-los a apostar nas culturas locais, as únicas a que estavam
autorizados a comerciar com a costa africana. A inércia inicial ao povoamento da ilha
havia sido ultrapassada.
Mais abaixo, em plena região equatorial, estava o arquipélago de S. Tomé e aí as
condições de sobrevivência eram extremamente limitadas. A situação está descrita no
testamento de Álvaro Caminha (1499), numa carta do corregedor da ilha em 1517 e
numa consulta da Mesa da Consciência e Ordens de 1597. Na última atribui-se a
dificuldade de manutenção do clero na ilha ao facto "de a terra ser muito enferma e
sogeita à praga de mosquitos, que são muitos e mui nocivos 49 ". Mais tarde em 1571 o bispo
aludia às condições de insalubridade da terra como a principal causa da ausência dos
predecessores no cargo 50 .
Foram inúmeros os portugueses que pereceram sob o calor tórrido, sendo de citar
o caso dos dois mil jovens judeus para aí enviados em companhia de Álvaro
Caminha em 1493, de que só existiam seiscentos, passados apenas seis anos. Nas
mesmas condições estiveram juntar os funcionários régios, os padres da Companhia
de Jesus e os mercadores que aí morreram no exercício de funções, ficando os bens a
saque dos que sobreviveram. Deste modo a partir de 1497 a coroa procurou moralizar
essa situação. Primeiro em Santiago criou-se o cargo de administrador e recebedor
dos bens dos defuntos 51 . Depois em 1519 deu um regimento ao tesoureiro-geral dos
defuntos. Aí se determinava, entre outras coisas, que os capitães e oficiais régios não
56 .Arquivo General de Simancas, Guerra Antigua, legajo 122 doc. 180, publ. Monumenta Mssonária Aricana, 2ª série, II,104.
OS INCENTIVOS DO POVOAMENTO
O REGIME DE PROPRIEDADE
58. J. José de SOUSA, "O Convento de Santa Clara do Funchal. Contratos agrícolas (séc.XV a XIX)", in Atlântico, nº 16, 1988, 295- 303.
Jorge de Freitas BRANCO, Camponeses da Madeira, Lisboa, 1987, 154-186.
era considerável nos finais do século XVI, consistindo a sua riqueza nas rendas
acumuladas em moios de trigo, tal como se poderá verificar pelo texto de Gaspar
Frutuoso. A casa de Jacome Dias Correia, que no entender deste autor parecia uma
corte, recebia anualmente 300 moios de trigo. Deste modo as medidas para a extinção
dos morgados, levadas a cabo a partir do Marquês de Pombal que culminaram em
1863 com a total abolição, tiveram reflexos evidentes na estrutura fundiária.
Durante o período em análise dois produtos materializaram a safra agrícola
madeirense: o açúcar e o vinho. Cada um por si define uma diversa forma de
aproveitamento do solo e de investimentos: os canaviais requerem áreas especiais
abastecidas de água e a principal benfeitoria se resume praticamente ao engenho, que
não é apanágio de todos os lavradores de canaviais; os vinhedos exigem constantes
cuidados, ainda que menos onerosos, com levantamento de latadas e a construção do
lagar.
Construir e pôr a funcionar um engenho não era tarefa fácil, pois implicava um
elevado investimento, que não estava ao nível de todos os proprietários de canaviais.
No estimo de 1494 para 221 proprietários produzindo 80.451 arrobas temos apenas 14
engenhos, o que dará uma média de 5.746 arrobas por safra, em cada um dos
engenhos. Todavia em 1493 refere-se a existência de 80 mestres de açúcar para uma
produção de cerca de 80.000 arrobas o que poderá indicar maior número de
infraestruturais na ilha.
Em S. Tomé o engenho e os canaviais assumiram outra dimensão, sendo também
diferente a estrutura produtiva. Para uma produção avaliada entre as 150.000 e
450.000 arrobas de açúcar o número de engenhos ia de 60 a 450, o que equivaleria a
uma média mais baixa por unidade. Mas o número de fazendas é muito mais
reduzido (em 1615 fala-se em apenas 62 fazendas), denotando-se uma tendência para
a concentração da propriedade fundiária.
Por aqui se conclui que a estrutura fundiária madeirense que corporizou a safra
açucareira estava muito aquém das congéneres säotomense e brasileira. Aliás os
canaviais madeirenses nunca atingiram a dimensão dos do Brasil, sendo evidente
uma tendência para o parcelamento com o recurso ao sistema de arrendamento. As
condições da orografia e o sistema de distribuição das terras assim o haviam
determinado. Se compararmos os canaviais referenciados no estimo de 1494 e os
valores da arrecadação dos quartos e quintos entre 1500 e 1537, conclui-se que a
cultura se processou na ilha em regime de pequena e média propriedade. A grande
propriedade, logicamente à dimensão da ilha, surge com maior evidência nas
comarcas da Ribeira Brava e Calheta. No século XVI apenas vinte e dois
proprietários, que produzem mais de 2.000 arrobas, somam 37% do total de açúcar
produzido na ilha. Este valor é duas vezes superior ao dos seus congéneres de 1494.
Perante esta evidência parece-nos ponto assente que a primeira metade do século
XVI foi pautada pela afirmação da grande propriedade, que se consolidou em pleno
nas "Partes do Fundo", isto é, nas comarcas da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava.
Na do Funchal e na capitania de Machico afirmou-se, respectivamente, a média e
pequena propriedade. O número de proprietários com menos de 100 arrobas é
reduzido na capitania do Funchal (5%) e, nomeadamente, nas comarcas das Partes do
Fundo (com valores entre 1% e 5%), enquanto na capitania de Machico atinge mais de
metade, ou seja 53%. Deste modo podemos também concluir que, desde finais do
século XV, é dominante a tendência concentracionista dos canaviais.
A crise no cultivo dos canaviais, a partir da década de trinta, contribui também
para isso, expressando-se na redução do número de canaviais e número de arrobas
arrecadadas por cada proprietário. O endividamento e a consequente penhora
conduziram à transferência de muitos canaviais para o grande proprietário: o
aristocrata, funcionário ou mercador. Tal conjuntura conduziu, as comarcas da
Ribeira Brava e Calheta, ao reforço da grande propriedade, enquanto no Funchal e na
Ponta do Sol teve um efeito contrário.
59 .Ob.cit.,59
O DEGREDO COMO POLÍTICA DE POVOAMENTO
AS ISENÇÖES FISCAIS
67Vejam-se as aportações de Alberto IRIA(O Algarve e a ilha da Madeira no século XV(documentos inéditos), Lisboa, 1974) e a crítica de
Fernando Jasmins PEREIRA ("O Algarve e a ilha da Madeira. Críticas e aditamentos a Alberto Iria", in Estudos sobre História da
Madeira, Funchal, 1991, pp. 283-296). O tema foi retomado por Artur Teodoro de MATOS("Do contributo algarvio no povoamento
da Madeira e dos Açores", in Actas das I Jornadas de História medieval do Algarve e Andaluzia, Loulé, 1987), que releva a importância das
gentes algarvias no povoamento da Madeira e Açores.
Douro-e-Minho, nomeadamente dos portos costeiros de Ponte Lima, Vila Real e Vila
do Conde.
Em S. Miguel a listagem dos primeiros povoadores fornecida por Gaspar Frutuoso
leva-nos a concluir por uma idêntica afirmação das gentes do Norte de Portugal: em
137 famílias aí referenciadas 59% eram do reino e 24% da Madeira. Das primeiras a
maior percentagem situa-se na região de Entre-Douro-e-Minho. A mesma ideia
poderá ser expressa para as demais ilhas do arquipélago, não obstante algumas
especificidades evidenciadas pela Historiografia.
Os dados fornecidos pela Genealogia, Antroponímia, Linguística e Etnologia
referem uma origem variada para os primeiros colonos que actuaram como o
fermento da nova sociedade açoriana: minhotos, alentejanos, algarvios, madeirenses
e flamengos corporizam o começo da sociedade. É compreensível que, a exemplo do
que sucedeu na Madeira, no grupo de povoadores das ilhas de Santa Maria e S.
Miguel surgisse um grupo de gentes algarvias ou aí residentes, que corporizaram a
oligarquia local. Mas depois a principal força-mo triz da sociedade e economia
açorianas deveria ser, necessariamente, do norte de Portugal. E se no início os
contactos eram, preferencialmente, com o Algarve diversificaram-se depois a
exemplo da Madeira manteve-se uma forte vinculação às terras nortenhas.
Partindo do princípio de que o povoamento das ilhas foi um processo faseado, que
atraiu a totalidade das regiões peninsulares e até mesmo mediterrânicas, é de prever
a confluência de gentes de várias proveniências, em especial nos espaços ribeirinhos
de maior concentração dos aglomerados populacionais. Se é certo que o litoral
algarvio exerceu uma posição de relevo nas primeiras expedições henriquinas no
Atlântico, também não é menos certo que esta era uma área de recente ocupação e
carenciada de gentes. Assim
o grosso dos cabouqueiros do mundo insular português deveria ser de origem
nortenha, sendo em muitos casos os portos do litoral algarvio o local de partida.
Do Algarve vieram, sem dúvida, os criados ou servidores da Casa do Infante, cuja
origem geográfica está ainda por esclarecer. Eles tiveram uma função de relevo no
lançamento das bases institucionais do senhorio das ilhas.
Também em Cabo Verde é referenciado para as ilhas de Santiago e Fogo, uma
incidência inicial de algarvios na criação da nova sociedade, a que depois se juntaram
os negros, como livres ou escravos. Mas será de manter esta filiação dos primeiros
povoadores com o litoral algarvio, quando o processo teve lugar após a morte do
infante D. Henrique?
De S.Tomé sabe-se apenas da presença de uma forte comunidade judaica,
resultado da segunda leva de povoadores ordenada por Álvaro Caminha,
desconhecendo-se a origem dos primeiros aí conduzidos por João de Paiva.
Cedo se reconheceram os efeitos nefastos da presença dos judeus nestas paragens,
responsabilizados pela quebra do comércio e das receitas do erário régio. Deste modo
em 1516 D. Manuel ordenou que eles só poderiam residir em Cabo Verde mediante
ordem régia, o mesmo sucedendo em 1569 para S. Tomé.
O processo de formação das sociedades insulares da Guiné foi diferente do da
Madeira e Açores. Aqui, a distância do reino e as dificuldades de recrutamento de
colonos europeus devido à insalubridade do clima condicionaram, de modo evidente,
a forma da sua expressão étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito
em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, vieram juntar-se os
africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. Mas a presença de negros,
sob a condição de escravos, incentivada no início, foi depois alvo de restrições. O seu
espírito insubmisso, de que resultaram algumas e sérias revoltas em S. Tomé, foi a
principal razão destas medidas.
OS ESTRANGEIROS
Confrontadas as Canárias com as ilhas portuguesas conclui-se que o processo de
ocupação e agentes que o corporizaram foram diversos, sendo também diferente a
conjuntura em que tal se desenrolou. Nas Canárias a iniciativa da conquista partiu de
um estrangeiro e o processo de povoamento foi marcado pela presença genovesa,
enquanto nas ilhas portuguesas todo ele foi um fenómeno nacional sob a orientação
da coroa.
A presença estrangeira nas ilhas portuguesas é evidente desde o início do
povoamento. Primeiro a curiosidade de novas terras, depois a possibilidade de uma
troca comercial vantajosa: eis os principais móbeis para a sua fixação nas ilhas. A sua
permanência está já documentada na Madeira a partir de meados do século XV,
integrados nas segundas levas de povoadores. E mais não entraram porque estavam,
até 1493, condicionados à concessão de carta de vizinhança. Aliás a Madeira foi a
primeira ilha a despertar a atenção dos mercadores estrangeiros, que encontraram
nela um bom mercado para as suas operações comerciais. Note-se que o rincão
madeirense foi a primeira de todas as ilhas atlânticas a merecer uma ocupação
efectiva imediata e de apresentar um conjunto variado de produtos com valor
mercantil, o que despertou a cobiça dos mercadores nacionais e estrangeiros. Nos
demais arquipélagos este processo foi moroso e tardou em aparecer produtos capazes
de gerarem as trocas externas. No caso das Canárias e dos Açores isso só foi possível
a partir de princípios do século XVI, com a oferta de novos produtos, como o açúcar,
o pastel e cereais. Depois no último arquipélago a sua afirmação como importante
entreposto do comércio oceano fez convergir para aí os interesses de algumas casas
comerciais empenhadas no contrabando dos produtos de passagem.
Na Madeira, ultrapassadas a partir de 1489 todas as barreiras à presença de
estrangeiros, a comunidade forasteira amplia-se e ganha uma nova dimensão na
sociedade e economia. A presença de agentes habilitados para a dimensão assumida
pelas transacções comerciais e a injecção de capital no sector produtivo e comercial
favoreceram a evolução do sistema de trocas. Neste contexto destaca-se a
comunidade italiana, que veio em busca do açúcar. A importância assumida pela
cultura na ilha e comércio do seu produto no mercado europeu foi resultado da
intervenção desta comunidade. Florentinos e genoveses foram os principais obreiros
disso. Os primeiros evidenciaram-se nas transacções comerciais e financeiras do
açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa controlam à distância,
por meio de uma rede de feitores, o comércio do açúcar madeirense. Para isso
conseguiram da fazenda real o quase exclusivo do comércio do açúcar resultante dos
direitos cobrados pela coroa na ilha, bem como o monopólio dos contingentes de
exportação estabelecidos pela coroa em 1498. Nomes como Benedito Morelli,
Marchioni, João Francisco Affaitati, Jerónimo Sernigi, têm interesses na ilha onde
actuam por iniciativa própria ou por intermédio dos seus agentes, madeirenses e
compatrícios seus.
A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense é por demais
evidente. O usufruto de privilégios reais e o relacionamento matrimonial
favoreceram a sua integração na aristocracia madeirense. Eles, na sua maioria
apresentam-se como proprietários e mercadores de açúcar. São exemplo disso Rafael
Cattano, Luís Doria, João e Jorge Lomelino, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, Simão
Acciaiolli e Benoco Amatori. Convém referenciar que os estrangeiros tiveram aqui
uma presença forte na agricultura, pois o conjunto destes produtores de açúcar
alcançou os 20% da produção.
Também os flamengos e franceses surgiram na ilha, desde finais do século XV
atraídos pelo comércio do açúcar. Todavia destes são poucos os que criam raízes na
sociedade madeirense - João Esmeraldo é uma excepção -, o seu único e exclusivo
interesse é o comércio do açúcar.
Nos Açores a situação foi diferente pois os flamengos surgem desde o início como
importantes povoadores. Eles foram imprescindíveis para o povoamento das ilhas do
Faial, Terceira, Pico e Flores. O primeiro a desembarcar nos Açores terá sido Jácome
de Bruges, apresentado em documento de 1450 como capitão da ilha Terceira. Da sua
acção pouco se sabe e há quem duvide da autenticidade do título de posse da
capitania da ilha. Mais importante foi, sem dúvida, a vinda de Josse Huerter em 1468
como capitão das ilhas do Pico e Faial. Acompanharam-no inúmeros flamengos que
contribuíram parta o arranque do povoamento das ilhas do grupo central e ocidental.
Martim Behaim 68 refere para 1466 a presença de dois mil flamengos no Faial,
enquanto Jerónimo Munzer 69 , vinte e oito anos depois, refere serem apenas mil e
quinhentos os que residiam aqui e no Pico.
Na ilha de são Miguel fala-se da existência de uma comunidade bretã no lugar da
Bretanha. Segundo alguns ela deriva do inicial fluxo de povoadores mas para outros
deverá ser tardia, situada entre 1515 e 1527, pois só na última data o local surge com
tal nome. Todavia é de estranhar que Gaspar Frutuoso não faça qualquer comentário
sobre ela e os registos paroquiais sejam omissos. Mas isto não invalida a presença
desta comunidade, talvez em data posterior, comprovada aliás em alguns apelidos,
topónimos, características físicas da população, das casas e dos moinhos de vento.
A esta leva inicial de estrangeiros como povoadores sucederam-se outras com
objectivos distintos. O progresso económico do arquipélago despertara a atenção da
burguesia europeia, que surge aí à procura dos seus produtos. O pastel atraiu,
ESTRATIFICAÇÄO SOCIAL
OS ESCRAVOS
Sem dúvida, o aspecto mais peculiar e relevante desta estrutura social foram a
posição assumida pela escravatura. Para certa historiografia torna-se paradigmático o
caso madeirense, que se assume como revelador da forma de passagem da sociedade
mediterrânica para a atlântica, através da vinculação ao açúcar.
De facto as ilhas do Atlântico Oriental foram o filão do açúcar que catapultou a
mão-de-obra escrava para a uma afirmação nas referidas sociedades e economias. Daí
resultou que nos Açores, onde a safra açucareira foi diminuta, este grupo social não
adquiriu a mesma dimensão da Madeira e Canárias. Mas é difícil, em qualquer dos
arquipélagos, estabelecer uma contabilização exacta. No caso da Madeira refere-se,
com base em Gaspar Frutuoso, que os escravos representariam em 1552 cerca de 14%
do total dos habitantes do Funchal e 29 % de toda a ilha, mas os dados por nós
74Para a situação da Madeira nos séculos XV a XVII veja-se o nosso estudo Os escravos no arquipélago da Madeira.séculos XV a XVII,
Funchal, 1991.
situação propiciadora da revolta. Perante isto o escravo estava amarrado ao
quotidiano do senhor e só poderia desprender-se dele em condições especiais e
mediante o seu consentimento. Deste modo o escravo só existia perante a sociedade
associado ao seu senhor. A par disso a mulher escrava mantinha um estreita ligação
com o proprietário, seja ele do sexo feminino ou masculino, servindo-o em tudo o que
era necessário. As disposições testamentárias favorecem-nas precisamente por esta
situação.
É comum associar-se o escravo à cultura e fabrico do açúcar: o binómio
escravo/açúcar é considerado para muitos uma realidade insofismável. É-o sim em
S.Tomé Antilhas e Brasil, mas na Madeira e Canárias a situação é diversa. Na verdade
esta cultura foi a mola
propulsora da afirmação dos escravos nas ilhas, mas as condições específicas do
sistema de propriedade permitiram uma diversidade de relações sociais em torno da
produção.
Na Madeira, ao contrário do que sucedeu nas áreas supracitadas, a cultura dos
canaviais adquiriu expressão fundiária diversa. Neste caso deparamo-nos com um
excessivo parcelamento dos canaviais e a afirmação de uma nova forma de posse e
usufruto da terra -- o arrendamento -- que colocava em segundo plano a função do
escravo no processo produtivo. Depois a crise açucareira provocou a afirmação de
outra cultura -- a vinha -- que relegou para um plano secundário a presença do
escravo no sector produtivo. Acresce ainda que o binómio engenho/canaviais era
pouco frequente, sendo usual o recurso ao engenho de outrem para a moenda das
canas e fabrico do açúcar. Esta divisão de tarefas e a pequenez dos canaviais não
facilitaram a permanência de uma mão-de-obra fixa, antes possibilitando uma
afirmação da força de trabalho eventual. Perante isto só nos resta dizer que no caso
da Madeira e mesmo das Canárias as tarefas da cultura e fabrico do açúcar foram
executadas por uma mão-de-obra mista: escravos e livres trabalham a terra e animam
a vida do engenho, mas os últimos dominam, ao contrário do que sucedeu nas
Antilhas ou em S.Tomé.
Também nos Açores o escravo misturou-se com o criado e trabalhador na
prestação de serviços domésticos, agro-pecuários e artesanais. Mas aqui a escravatura
não adquiriu a dimensão que assumiu na sociedade madeirense. Para isso terão
contribuído a forma de organização da estrutura fundiária e o relativo afastamento
dos mercados abastecedores de escravos.
Em Cabo Verde e S. Tomé, porque próximos do mercado de resgate e funcionando
como feitorias para este tráfico, a situação era diversa. No primeiro arquipélago, por
exemplo, foi apenas a sua disponibilidade nos Rios da Guiné. A coroa havia
determinado em 1472 que os moradores de Santiago pudessem "haver escravos,
escravas, machos e fêmeas para seus serviços e sua melhor vivenda e povoação". Até
mesmo o clero não dispensava os seus serviços, como se depreende de uma carta de
1607 do padre Barreira, missionário na Serra Leoa. Dizia ele: "a experiência nos tem
demonstrado que nem a ilha (Santiago) nem cá podemos viver sem escravos".
Nas ilhas do Golfo da Guiné o processo foi diferente uma vez que a isso se deverá
juntar o facto de o açúcar ter aí vingado em larga escala, necessitado de enormes
excedentes de mão-de-obra africana, mais justificados pela reduzida dimensão dos
europeus. Aqui laboravam mais de trezentos engenhos, no século dezasseis, todos
eles alimentados pela força do trabalho escravo. De acordo com uma relação de 1554
cada engenho teria ao seu dispor entre cento e cinquenta a trezentos escravos. Álvaro
de Caminha declara no testamento, feito em finais do século XV, ter ao seu serviço
"nas obras, roças e sementeiras" mais de quinhentos escravos. A estrutura fundiária e
social, geradas pelo açúcar, ganham uma dimensão idêntica à que assumirá mais
tarde no Brasil e Antilhas. Esta situação é o prelúdio do que iria suceder, depois, aos
africanos escravizados e obrigados a fazer a travessia do oceano.
Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé o trabalho dos escravos era a força motriz
da economia agrícola. O seu dia à dia era estabelecido pela tradição africana de uma
forma peculiar. Seis dias era o tempo reservado para os escravos tornarem
produtivas as terras do amo e apenas um dia lhes era facultado para encontrarem os
meios de subsistência diária. Ao contrário do que sucedia na Madeira ou nos Açores
"o senhor não dá coisa alguma àqueles negros (...) nem mesmo faz despesa em dar-lhes
vestidos, nem de comer, nem em mandar-lhes construir choupanas porque eles por si mesmo
fazem todas as coisas" 75 . Contra isto reclamava o Padre Manuel de Barros em 1605,
dizendo que os escravos aos domingos e dias santificados não cumpriam o preceito
religioso, porque "tais dias dá Deus ao cativo para trabalhar para as suas necessidade (...) e
nada para o senhor". Note-se que isto não era novidade para os negros, que sendo
escravos no continente já estavam submetidos a tal regime de trabalho e foi de lá que
os portugueses o copiaram.
Os escravos assumiam aqui uma posição muito mais importante na composição da
sociedade, do que nas ilhas aquém do Bojador. Neste grupo devemos diferenciar,
quer em Santiago, quer em S. Tomé, os escravos residentes e os de resgate. Os
últimos, depois de alguns dias de permanência nos armazéns da feitoria, seguiam
rumo ao seu destino, para a América, a Europa ou as ilhas atlânticas. Eram
numerosos mas de permanência limitada. Valentim Fernandes dá-nos conta disso em
princípios do século XVI, referenciando para S. Tomé, entre os mil moradores livres,
o dobro de escravos residentes e entre cinco a seis mil de resgate. Com o decorrer dos
tempos a relação entre os livres e os escravos residentes aumentou, de modo que em
1546 existiam seiscentos brancos para igual número de mulatos e dois mil escravos.
Na ilha do Príncipe em 1607 nos cinco engenhos em funcionamento contavam-se dez
homens brancos casados, dezoito crioulos e quinhentos escravos 76 .
Em Cabo Verde os dados disponíveis sobre a presença dos escravos cobrem
apenas as ilhas povoadas desde o início (Santiago e Fogo) no período de 1513 e 1582.
Na primeira data referencia-se na Ribeira Grande a residência de cento e sessenta e
dois vizinhos, sendo destes trinta e dois escravos. Para o segundo surgem já 13.700
escravos (87%) e 1.008 vizinhos (13%), nas duas ilhas. Aqui é evidente a maior
A EMIGRAÇÄO INSULAR
. Rui RAMOS, "Rebelião e Sociedade colonial: alvoroço e levantamento em S. Tomé (1545-1555)", in Revista Internacional de Estudos
78
A MADEIRA E AS CANARIAS
Um dos aspectos reveladores das conexões madeirenses e açorianas foi o
relacionamento com as Canárias. Para Perez Vidal 79 a presença portuguesa no
arquipélago resultou da sua intervenção em dois momentos decisivos: um primeiro,
demarcado pelas acções da coroa e do infante D. Henrique, nos séculos XIV e XV que
terá o seu epílogo em 1497 com o tratado de Alcáçovas; o segundo, de iniciativa
particular, abrangendo os séculos XVI e XVIII, em que os impulsos individuais se
sobrepõem à iniciativa oficial. Este último foi o momento de expressão plena da
presença lusíada e do seu paulatino definhar em face da Restauração da monarquia
portuguesa e da guerra de fronteiras mantida até 1665.
A questão ou disputa pela posse das ilhas Canárias foi o prelúdio de novos
confrontos com o objectivo de monopólio das navegações atlânticas. O inicial
afrontamento foi entre Portugal e Castela, tendo como palco as ilhas Canárias. Esta
disputa começou em meados do século catorze mas só na centúria seguinte por
iniciativa do infante D. Henrique teve a sua maior expressão.
A expedição de Jean de Betencourt em 1402 marca o início da conquista das
Canárias enquanto a sua subordinação à soberania da coroa castelhana e o
reconhecimento em 1421 pelo papado desta nova situação fez reacender a polémica
do século XIV. Ao infante português restavam apenas duas possibilidades: a solução
diplomática, fazendo valer os seus direitos junto do papado e o recurso a uma
intervenção bélica, legitimada pelo espírito de cruzada que a ela se pretendia
associar. Desta última situação resultaram as expedições de D. Fernando de Castro
(1424 e 1440) e de António Gonçalves da Câmara (1427). Mas em todas as frentes as
conquistas foram efémeras e de pouco valeu, por exemplo, a compra em 1446 da ilha
de Lanzarote a Maciot de Bettencourt, por 20.000 reais brancos ao ano e regalias na
ilha da Madeira. Disso apenas resultou a ramificação desta importante família à
Madeira e, depois, aos Açores. O litígio encerra-se em 1480 com a assinatura de um
tratado em Toledo. Desde então a coroa portuguesa abandona a sua reivindicação
pela posse dessas ilhas com garantias de que a burguesia andaluza não se
intrometerá no trato da Guiné.
A conjuntura destas ilhas e do relacionamento das coroas peninsulares
acompanhou desde o início as conexões canário-madeirenses. No século XV a
vinculação da Madeira a Lanzarote filia-se na célebre na disputa das coroas
peninsulares pela posse das Canárias. Em finais do século seguinte a sua reafirmação
e alargamento a todo o arquipélago canário foram resultado da ocupação da ilha em
1582 por D. Agustin Herrera, acto que materializou na Madeira a unido das duas
coroas peninsulares. Entretanto nos Açores tivemos desde 1582 a presença de
importantes contingentes militares espanhóis, mas sendo reduzida a presença de
canários. Todavia o efeito social dos dois fenómenos em ambos os arquipélagos foi
diverso. O primeiro permitiu a afirmação madeirense em Lanzarote, enquanto o
segundo, para além do natural reforço da realidade condicionou a presença canária
79. "Aportación portuguesa a la población de canarias. Datos", in Anuario de Estudios Atlânticos, nº 14, 1968. Este e outros estudos
80 . Luis Francisco de Sousa Melo, "Imigração na Madeira. Paróquia da Sé 1539-1600, in História e Sociedades, nº 3, 1979, 52-53.
81 Cf J. Perez Vidal
continente americano. Assim num primeiro momento fomos confrontados com um
numeroso grupo de aventureiros dos quais se recrutaram os oficiais mecânicos e
agricultores e só depois surgiram os agentes de comércio e transporte, todos eles com
uma acção decisiva na economia do arquipélago nos séculos XV e XVII.
É fácil testemunhar a assiduidade dos contactos mas difícil se torna avaliar a
dimensão assumida pela presença portuguesa neste arquipélago, quanto à sua
origem geográfica. Nos diversos actos notariais, que compulsámos, ignora-se, muitas
vezes, a origem geográfica dos intervenientes portugueses. O facto de muitos
surgirem em diversos actos relacionados com outros da Madeira ou outorgando
poderes para a cobrança de dívidas e administração das heranças leva-nos a suspeitar
a sua origem madeirense.
Uma vez que os contactos entre a Madeira e as Canárias foram mais frequentes é
natural a presença de uma importante comunidade madeirense nesse arquipélago,
com principal relevo para as ilhas de Lanzarote, Tenerife e Gran Canária. Aí foram
agentes destacados do comércio e transporte entre os dois arquipélagos ou artífices,
nomeadamente sapateiros. Os açorianos, maioritariamente das ilhas Terceira e S.
Miguel, surgem em menor número e preferentemente ligados à faina agrícola.
A classe mercantil de origem madeirense nas Canárias segue um rumo peculiar.
Eles ao contrário dos flamengos e italianos não se avizinham de imediato, mantendo
o estatuto de estantes. A necessidade de fixação é quase sempre o corolário do
progresso das suas operações comerciais e dos investimentos fundiários.
As mudanças operadas na conjuntura política a partir dos acontecimentos do ano
de 1640 condicionaram a presença do madeirense. Ele que até então usufruía de um
estatuto preferencial na sociedade e economia lanzarotenha, por exemplo, desaparece
paulatinamente do palco de acção. E, facto insólito, os poucos que conseguimos
rastrear na documentação procuram ignorar ou apagar a sua origem, surgindo
apenas como vizinhos sem outra referência.
Esta situação coincide com o fim do relacionamento comercial incidindo sobre os
cereais de Canárias pois a partir de 1641 deixou de aparecer no Funchal, sendo
substituído pelo açoriano ou por novos mercados como a Berbéria e América do
Norte. Será ela resultado da crise da cultura cerealífera canária ou fruto da ambiência
de mútua represália peninsular? Note-se, ainda que a partir de então surgiram novos
e mais promissores destinos para a emigração, como o Brasil, que terão motivado esta
mudança.
Da presença da comunidade portuguesa em Canárias resultaram inúmeras
influências, hoje ainda visíveis nas aportações linguísticas e etnográficas. Neste caso
são evidentes os portuguesismos na nomenclatura dos ofícios, utensílios e produtos a
que estiveram ligados: açúcar, vinho, pesca, construção civil e fabrico de calçado. No
inverso também temos alguns testemunhos da presença dos aborígenes de Canárias
na Madeira e Açores. A sua presença como escravos ou os assíduos contactos entre as
ilhas favoreceram estas aportações. Na ilha de S. Miguel, não obstante estar
testemunhada apenas a presença de dois guanches -- um pastor e outro mestre de
engenho-- a sua presença deixou rastro na toponímia com o pico e lagoa do canário.
Na Madeira para além dessa referência toponímica persistem vestígios da sua
presença na construção de furnas para habitação (Ribeira Brava) e culto religioso (S.
Roque do Faial) e no Porto Santo o uso generalizado do gofio.
MADEIRA E AÇORES
AS ILHAS E A GUINÉ
83Confronte-se Frei Serafim de Freitas, Do Justo Império Asiático dos Portugueses,vol.I, Lisboa, 1960.
84Confronte-se -vitorino Magalhães Godinho, "As incidências da pirataria e da concorrência na economia marítima portuguesa no
século XVI", in Ensaios II, Lisboa, 1978, pp. 186-200.
A presença de corsários nos mares insulares deve ser articulada, por um lado, de
acordo com a importância que estas ilhas assumiram na navegação atlântica e, por
outro, pelas riquezas que as mesmas geraram, despertadoras da cobiça destes
estranhos. Mas se estas condições definem a incidência dos assaltos, os conflitos
políticos entre as coroas europeias justificam-nos à luz do direito da época. Deste
modo na segunda metade do século XVI o afrontamento entre as coroas peninsulares
definiu a presença dos castelhanos na Madeira ou em Cabo Verde, enquanto os
conflitos entre as famílias régias europeias atribuíam a legitimidade necessária a estas
iniciativas, fazendo-as passar de mero roubo a acção de represália: primeiro foi,
desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de França, depois os
problemas decorrentes da união ibérica a partir de 1580. Esta última situação é um
dado mais no afrontamento entre as coroas castelhano e inglesa despoletado a partir
de 1557.
O período que decorre nas duas décadas finais do século XVI é marcado por
inúmeros esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as
presas do corso. Para isso Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de
dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e
cartas de corso. Mas a sua existência não teve reflexos evidentes na acção dos
corsários. Note-se que é precisamente em 1566 que temos notícia do mais importante
assalto francês a um espaço português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao
comando de uma armada composta de três embarcações perpetrava um dos mais
terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal. Acontecimento parecido só o
dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos holandeses em S. Tomé.
A mui nobre e rica cidade do Funchal durante quinze dias ficou a mando destes
corsários, que roubaram os produtos agrícolas (vinho e açúcar), profanaram as igrejas
(a Sé do Funchal) e aprisionaram muitos escravos. Parte desta presa foi leiloada no
momento da partida com os residentes, ou então vendida na ilha de La Palma, onde
fizeram escala. Deste assalto ficaram alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o
mais pungente e pormenorizado foi o de Gaspar Frutuoso, que no livro das
"Saudades da Terra" dedicado à Madeira descreve de modo sucinto os
acontecimentos e condena o descuido das suas gentes. Tal como refere a cidade
estava " mui rica de muitos açúcares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas
alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que
não cuidavam" 85 .
Uma das principais consequências deste assalto foi o maior empenho da coroa e
autoridades locais nos problemas da defesa da ilha e, principalmente, da sua cidade,
que por estar cada vez mais rica e engalanada despertava a cobiça dos corsários. O
desleixo na arte de fortificar e organizar as hostes custou caro aos madeirenses e, por
isso, foi geral o desejo de defender a ilha. Reactivaram-se os planos e recomendações
anteriores no sentido de definir uma eficaz defesa da cidade a qualquer ameaça. O
regimento das ordenanças do reino (1549) teve aplicação na ilha a partir de 1559,
Está a cidade amurada, da ribeira de Nossa Senhora do Calhau, junto da qual está uma
fortaleza nova, onde tem o capitão sua morada, donde defende o mais da cidade que fica fora do
muro, da banda de loeste até São Lázaro, e, pela ribeira de Nossa Senhora do Calhau, vai o
muro em compridão perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais ásperas,
fortes e defensáveis que ele mesmo, o qual fabricado com cubelos e seteiras, da banda da ribeira
tem tres portas, em que estão suas vigias e guardas, pelas quais se serve a cidade, que fica da
banda de loeste deste muro para dentro e para fora. e no muro da banda do muro tem uma
porta de serventia, junto de Nossa Senhora do Calhau, e outra, mais no meio da cidade, junto
dos açougues, e outra, que é a mais principal, aos Varadouros, defronte da rua dos
Mercadores.
86 Arquivo Histórico da Madeira, vol.XVI, 1973, doc.169, pp. 284-288 (21 de Junho).
87 Rui Carita, O regimento de fortificação de D.Sebastião(1572)..., Funchal, 1984.
Meio tiro de besta desta porta principal está a casa da Alfandega, mais próspera e de
melhores oficinas que a da cidade de Lisboa, bem amurada de cantaria e fechada pela terra e
pelo mar, que está junto dela e nela bate muitas vezes, quando há aí maresias.
Adiante logo da Alfândega um tiro de besta está a Fortaleza Velha, que é a principal,
situada sobre uma rocha, e tem pela banda do mar seis grandes e formosos canos de água, que
dela sai e nela nasce, na mesma rocha sobre que é fundada, e de nenhuma maneira se pode
tomar nem tolher, pela banda da terra, de nenhuns imigos; a qual fortaleza tem, pela parte do
mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que guardam o mesmo mar e artilharia, de que estão
bem providos, e, pela banda da terra, outros dois, que guardam toda a cidade por cima, por
estarem mais altos que ela, em a qual parte tem também um muro muito alto e forte, com uma
fortíssima porta de alçapão;... 88 ".
Tal como tivemos oportunidade de afirmar, a definição dos espaços políticos fez-
se, primeiro de acordo com os paralelos e, depois, com o avanço dos descobrimentos
para Ocidente, no sentido dos meridianos. A expressão real resultava apenas da
conjuntura favorável e do acatamento pelos demais estados europeus. Mas o oceano
e terras circundantes podiam ainda ser subdivididos em novos espaços de acordo
com o seu protagonismo económico. Dum lado as ilhas orientais e ocidentais, do
outro o litoral dos continentes americano e africano.
A partilha não resultou dum pacto negocial, mas sim da confluência das reais
potencialidades económicas de cada uma das áreas em causa. Neste contexto
assumiram particular importância as condições internas e externas de cada área. As
primeiras foram resultado dos aspectos geo-climáticos, enquanto as últimas derivam
dos vectores definidos pela economia europeia. A partir da maior ou menor
intervenção de ambas as situações estaremos perante espaços agrícolas, vocacionados
para a produção de excedentes capazes de assegurar a subsistência dos que haviam
saído e dos que ficaram na Europa, de produtos adequados a um activo sistema de
trocas inter-continentais, que mantinha uma forte vinculação do velho ao novo
mundo. O açúcar e o pastel foram os principais produtos definidores da última
conjuntura.
De acordo com isso podemos definir múltiplos e variados espaços agro-mercantis:
áreas agrícolas orientadas para as trocas com o exterior e assegurar a subsistência dos
residentes; áreas de intensa actividade comercial, vocacionadas para a prestação de
serviços de apoio, como escalas ou mercados de troca. No primeiro caso incluem-se
as ilhas orientais e ocidentais e a franja costeira da América do sul, conhecida como
Brasil. No segundo merece referência as ilhas que, mercê da posição ribeirinha da
costa (Santiago e S.Tomé), ou do posicionamento estratégico no traçado das rotas
oceânicas (como sucede com as Canárias, Santa Helena e Açores), fizeram depender o
processo económico disso.
A estratégia de domínio e valorização económica do Atlântico passava
necessariamente pelos pequenos espaços que polvilham o oceano. Foi nos
arquipélagos (Canárias e Madeira) que se iniciou a expansão atlântica e foi neles que
a Europa assentou toda a estratégia de desenvolvimento económico em curso nos
séculos XV e XVI.
Ninguém melhor que os portugueses entendeu esta realidade que, por isso
mesmo, definiram para o empório lusíada um carácter anfíbio. Ilhas desertas ou
ocupadas, bem ou mal posicionadas para a navegação, foram os verdadeiros pilares
do empório português no Atlântico. Talvez, por isso mesmo, Frédéric Mauro tenha
sido levado a afirmar tão peremptoriamente: " iles sans doute, mais iles aussi importants
que des continents" 98 . Opiniões idênticas já haviam manifestado Fernand Braudel, e
Pierre Chaunu, sendo secundados por Charles Verlinden e Vitorino Magalhães
Godinho.
Foi precisamente F.Braudel quem pela primeira vez se apercebeu desta realidade,
atribuindo aos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias o nome de Mediterrâneo
Atlântico, isto é a finisterra da economia mediterrânica e o princípio da nova economia
atlântica. Entretanto Pierre Chaunu anotou esta realidade e confrontou-a com aquilo
a que chamou "Mediterrâneo Americano" (Antilhas). Desde então ficaram estabelecidas
duas áreas para o rosário de ilhas atlânticas. Em face disto a abordagem e
conhecimento das sociedades insulares é um dos domínios da pesquisa histórica
muito solicitado nas últimas décadas, como o demonstra a vasta produção
bibliográfica.
Os autores supracitados exerceram um papel decisivo na afirmação
historiográfica deste espaço ao permitirem a inserção no âmbito mais vasto da
vivência atlântica, valorizando o inter-relacionamento com o litoral africano,
americano e europeu.
O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos
veleiros, pelo que se definiu um intrincado liame de rotas de navegação e comércio
que ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta
multiplicidade de rotas resultou da complementaridade económica das áreas
insulares e continentais e surge como consequência das formas de aproveitamento
económico aí adoptadas. Mas a isso deverão juntar-se as condições geofísicas do
oceano, derivadas das correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os
rumos das viagens.
Neste contexto a mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida
aquela que ligava as Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Ela
galvanizou o empenho dos monarcas, populações ribeirinhas e acima de tudo os
piratas e corsários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que
polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: primeiro as Canárias e a
Madeira, depois Cabo Verde, Santa Helena e os Açores.
Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas
grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran
Canária, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e
Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago firmou-se uma ilha, servida por
um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular
português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira,
Santiago e Terceira como os principais eixos.
99 . Cobfronte-se o nosso estudo sibre O Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24.
valem como por serem o velhacoute e socorro muy principal das naos da Índia e os
franceses serem tão desarrozoados que justo vel injusto tomäo tudo que podem " 100 .
Era esta estrutura de apoio que faltava aos castelhanos nesta área considerada
crucial para a navegação atlântica que os levou, muitas vezes, a solicitarem o apoio
das autoridades açorianas. Mas a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa
mais actuante obrigou-os a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde
1521 as frotas passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e defensiva.
No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada.
Depois a partir de 1555 o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano:
Nueva Espana e Tierra Firme.
O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em especial, da ilha Terceira é
referenciado com certa frequência por roteiristas e marinheiros que nos deram conta
das viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da
importância do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era "a escala do
mar poente". Entretanto Pompeo Arditi havia já reafirmado em 1567 a importância da
terra terceirense para a navegação parecendo-lhe "que Deus põe milagrosamente a
ilha no meio de tão grande oceano para salvação dos míseros navegantes, que muitas
vezes lá chegam sem mastros nem velas, ou sem mantimentos e aí se fornecem de
tudo" 101 . O Pe Luís Maldonado valoriza a importância desta função do porto de
Angra na vida da população terceirense:
"Estava a ilha Terceira the este tempo a terra mais próspera em riquezas, e abundâncias
que encarecer se pode; porque como todos os annos fosse demandada de flotas das Índias de
Castella, e naos do Oriente, e outrosi de todos os navios que vinhão das conquistas do Brazil, e
Guiné, na qual se vinhão todos reforcejar, e nella achavão abundâncias de que dentro em vinte,
e coatro horas tomavão tudo o de que necessitavão, nadava verdadeiramente a ilha em rios de
prata e ouro. Apenas que chegava qualquer destas frotas, ou armadas quando imediatamente
concorrião à Ribeira do porto dAngra as gentes de toda a ilha, hus com as casas, outros com as
aves, outros com as frutas, outros com os gados, outros com panos de linho..." 102 .
103 .ANTT, Corpo Cronológico, I/12/23, 25 de Outubro, in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, Lisboa, 1988, nº 71, 213-214.
104 . Ob. cit., livro primeiro, 183.
III. A ECONOMIA INSULAR
A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e
económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das
condições internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes
quando estamos perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. Tal como nos
refere Carlos Alberto Medeiros "são fundamentalmente condições físicas que estão na base
do arranjo da paisagem: as climáticas que permitem compreender as diferenças entre elas, e
morfológicas que, dentro da conjuntura climática de cada um, assumem o papel essencial" 105 .
No conjunto estávamos perante ilhas com a mesma origem geológica, sem
quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com diferenças marcantes ao nível
climático. Os Açores apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como
uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram
manifestas as influências da posição geográfica, que estabelecia um clima tropical
seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização económica
e social.
Para os primeiros europeus que aí se fixaram a Madeira e os Açores ofereciam
melhores requisitos, pelas semelhanças do clima com o de Portugal, do que Cabo
Verde ou S. Tomé. Nestes dois últimos arquipélagos foram inúmeras as dificuldades
de adaptação do homem e das culturas europeio-mediterrânicas. Aí o europeu cedeu
lugar ao africano e as culturas mediterrânicas de subsistência foram substituídas
pelas trocas na vizinha costa africana. A preocupação pelo aproveitamento dos
recursos locais surge num segundo momento.
Por fim é necessário ter em conta as condições morfológicas, que estabelecem as
especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a sua forma
de aproveitamento económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A
possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor
importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da Madeira
definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento do norte. E nas
ilhas do Golfo da Guiné o facto de Fernando Pó ser preterida em favor de S. Tomé.
De um modo geral estávamos perante a plena dominância do litoral como área
privilegiada de fixação ainda que, por vezes, o não fosse em termos económicos. Nas
ilhas em que as condições orográficas propiciavam uma fácil penetrar no interior,
como sucedeu em S. Miguel, Terceira, Graciosa, Porto Santo, Santiago e S. Tomé, a
presença humana alastrou até aí e gerou os espaços arroteados. Para as demais a
. "Acerca da ocupação humana das ilhas portuguesas do Atlântico", in Finisterra. Revista Portuguesa de geografia, vol.IV, nº 7, Lisboa,
105
1969, 144-145. Sobre os aspectos geo-climáticos vejam-se os seguintes estudos: Ilídio do AMARAL, Santiago de Cabo Verde. A Terra e
os Homens, Lisboa, 1964; Raquel Soeiro de BRITO, A Ilha de São Miguel. Estudo geográfico, Lisboa, 1955; J. Medeiros CONSTANCIA,
Evolução da paisagem humanizada da ilha de São Miguel, Coimbra, 1963-64; António Brum FERREIRA, A Ilha da Graciosa, Lisboa, 1968;
Carlos Alberto Medeiros, A Ilha do Corvo, Lisboa, 1967: Orlando RIBEIRO, Líle de Madère, Étude géografique, Lisboa, 1949; Idem, A Ilha
do Fogo e as suas erupções, Lisboa, 1954; Francisco TENREIRO, A Ilha de São Tomé. Estudo Geográfico, Lisboa, 1961.
omnipresença do litoral é evidente e domina toda a vida dos insulares, sendo aí o
mar a via privilegiada. Os exemplos da Madeira e S. Jorge são paradigmáticos.
De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de
ocupação humana e agrícola das ilhas. Isto conduziu a uma variedade de funções
económicas, por vezes complementares. Deste modo nos arquipélagos constituídos
por maior número de ilhas a articulação dos vectores da subsistência com os da
economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes dificuldades. Os
Açores apresentam-se como a expressão mais perfeita da realidade, enquanto a
Madeira é o reverso da medalha.
O processo de povoamento das ilhas, já atrás abordado, definiu-lhes uma vocação
de áreas económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que
sucedeu nos séculos XV e XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como
ponto de referência as ilhas.
A mudança de centros de influência foi responsável porque os arquipélagos
atlânticos assumissem uma função importante. A tudo isso poderá juntar-se a
constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em
estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A constante premência do
Mediterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela
dominante mercantil das novas experiências de arroteamento aqui lançadas.
Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se
com o processo atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos
comerciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros
cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns
grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das
áreas atlânticas resultou deste transplante material e humana de que os peninsulares
foram os principais obreiros. Este processo foi a primeira experiência de ajustamento
das arroteias às directrizes da nova economia de mercado.
A aposta preferencial foi para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho
continente, quer os cereais, quer o pastel e açúcar, do que o usufruto das novidades
propiciadas pelo meio. Aqui estamos a lembrar-nos de Cabo Verde e são Tomé onde
a frustração de uma cultura subsistência europeia não foi facilmente compensada
com a oferta dos produtos africanos como o milho zaburro e inhames. Em Cabo
Verde, cedo se reconheceu a impossibilidade da rendosa cultura dos canaviais. Mas
tardou em valorizar-se o algodão como produto substitutivo, tal era a obsessão pelo
açúcar e pelas trocas da costa da Guiné.
A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos vectores externos
com as condições internas dos multifacetado mundo insular. A sua concretização não
foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios organizativos pelo facto de a
mesma resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro
lado a economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm
directamente na produção e comércio.
Não basta dispor de um solo fértil ou de um produto de permanente procura, pois
a isso deverá também associar-se os meios propiciadores do escoamento e a
existência de técnicas e meios de troca adequados ao nível mercantil atingido pelos
circuitos comerciais. Deste modo, para conhecermos os aspectos produtivos e de
troca das economias insulares torna-se necessária uma breve referência aos factores
que estão na sua origem.
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por
um lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das
culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os
solos mais ricos eram reservados para a cultura de maior rentabilidade económica (o
trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos
hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e área de apoio aos dois
primeiros.
A esta hierarquia definida pelas condições do solo e persistência do mercado
podemos adicionar para a Madeira outra de acordo com a geografia da ilha e os
microclimas que a mesma gera. A explicação foi dada por Orlando Ribeiro 106
podendo o leitor aperceber-se disso no século dezasseis, a partir da leitura da obra de
Gaspar Frutuoso. A realidade em causa é específica da Madeira e apenas encontra
algo parecido na ilha de S. Tomé 107 .
Para que tudo isto tivesse lugar de forma ordenada houve necessidade, por parte
do senhorio e da coroa, de definir normas para o aproveitamento dos recursos
agrícolas dos novos espaços. Daí resultaram inúmeras medidas regulamentadoras
das actividades produtivas. Esta política esboça-se já com a entrega de terras, onde se
estabelecem, muitas vezes, os produtos mais adequados para o seu cultivo. Na
Madeira em 1492 elas apontavam para a preservação das searas, mas em 1508 a
prioridade estava nos canaviais. O mesmo sucedia nos Açores, onde em S. Miguel se
estabeleceu em 1532 uma divisão equitativa do solo em searas e terras de pastel. No
caso de Cabo Verde a doação das ilhas pequenas tinha como finalidade a criação de
gado, mais pela riqueza das suas peles do que pelo valor alimentar.
Não se esgotava aqui a iniciativa das autoridades no ciclo produtivo uma vez que
a fase de transformação dos produtos era outro domínio a cativar o seu empenho.
Tudo isto é proporcional ao volume e especialização das tarefas. Assim no caso do
açúcar, cujo processo de era moroso, havia um apertado controlo e regulamentos
para as tarefas, por meio de regimentos e posturas específicos.
Maior e mais evidente era a actuação ao nível do sector comercial. Neste caso as
autoridades intervinham com o duplo objectivo de assegurar, por um lado, o
comércio monopolista da burguesia nacional, por outro, da normalização dos
circuitos. A par disso deverá referir-se as posturas municipais que defendem, única e
exclusivamente, interesses dos concidadãos. Isto é, garantir o abastecimento do
mercado local de produtos essenciais. As posturas, de que se conhecem as do
Funchal, Angra, Ponta Delgada, Ribeira Grande, Velas, Vila Franca do Campo, são
disso testemunho como teremos oportunidade de o afirmar 108 .
106. A Ilha da Madeira até meados do século XX, Lisboa, 1985 (1ª edição em 1949), 37/43 e 56/59.
107. Francisco TENREIRO, A Ilha de S. Tomé, Lisboa, 1969, 49-54.
108. Alberto VIEIRA, "As posturas municipais da Madeira e Açores nos séculos XV a XVII" in III Colóquio Internacional Os Açores e o
OS CEREAIS
111 . "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, 84.
de arroteamento. Na ilha de S. Miguel e Santa Maria, o ritmo acelerado das arroteias
e as elevadas possibilidades do solo para a expansão da cultura cerealífera,
conduziram à afirmação como principais produtores de trigo, relegando segundo
plano as restantes.
Santa Maria foi a primeira ilha a ser lavrada, mas o espaço de cultura reduzido
conduziu-a para uma posição secundária, dando lugar à de S. Miguel, com uma área
plana apropriada para o incentivo das arroteias, não obstante as dificuldades
derivadas das erupções vulcânicas e da sismicidade. Deste modo a ilha verde
afirmou-se, ao longo do século XVI e XVII, como a principal área produtora de trigo
do arquipélago.
A Terceira, onde o processo inicial foi conturbado, desfrutou, a partir de 1460, uma
posição privilegiada na cultura de cereais mantendo-se, até meados do século XVI,
como uma forte concorrente de S. Miguel. Mas os factores geográficos orientavam-na
para uma acção de apoio e provimento das naus, enquanto as constantes solicitações
do sector terciário atraiam cada vez mais gentes ao burgo angrense, colocando o
campo em semi-abandono. Deste modo a manutenção de contactos regulares com as
ilhas de S. Jorge, Graciosa e S. Miguel eram, cada vez mais, imprescindíveis para
poder-se assegurar o serviço de abastecimento das embarcações que demandavam o
porto.
A partir de finais do século XVI foi evidente a afirmação do arquipélago açoriano
como principal produtor de trigo no Atlântico. A economia cerealífera açoriana
estava organizada em torno de dois portos importantes (Angra e Ponta Delgada) que
tinham à sua volta um vasto hinterland, abrangendo as áreas agrícolas da ilha e das
vizinhas. Assim a ilha de Santa Maria estava colocada sob a alçada de S. Miguel e as
restantes adjacentes ou dominadas pelo porto de Angra. Note-se que até mesmo o
comércio de cereal das Flores e Corvo se fazia a partir de Angra, como sucedeu em
1602.
Em síntese: as arroteias do cereal no arquipélago distribuíam-se consoante as
possibilidades do solo e a existência de eixos de escoamento ou, mais propriamente,
da confluência de rotas capazes de escoarem os elevados excedentes das colheitas.
A ilha de S. Miguel, sendo a de maior extensão do arquipélago e a que oferecia
melhores condições às arroteias, afirma-se, desde o início, como a principal produtora
de cereal. Ele crescia, lado a lado, com o pastel. Todo o espaço em torno da cidade, a
área agrícola mais importante da ilha, estava ocupado com as duas culturas.
Frutuoso, em finais do século XVI, confirma isso. Em 1640, a ilha produzia 13.800
moios de trigo, sendo mais de metade (7.705 moios) das searas situadas entre a
Ribeira Grande e Ponta Delgada, situando-se em segundo lugar o litoral desde a
Bretanha às Feiteiras, com 2.360 moios, Vila Franca do Campo com 1.235 e o Nordeste
com apenas 1.220 moios. A área dominante da cultura situava-se próximo do porto
de Ponta Delgada, à data o principal porto do comércio micaelense.
A Terceira é referida em todas as fontes narrativas como uma das principais ilhas
de produção de cereal do arquipélago. Em 1527 Francisco Alvares atribuiu-lhe o
epíteto de mãe do trigo 112 . No mesmo sentido se refere António Cordeiro quando
afirma que ela em tempos recuados deram "quasi o mesmo que S. Miguel" 113 .
As restantes ilhas encontravam-se numa posição secundária, mas, mesmo assim,
com um excedente confortável, capaz de manter activo o comércio local e externo.
Assim sucedia com a ilha Graciosa, onde a colheita de trigo e cevada "excede ao das
mais ilhas" 114 . Para isso contribuíam as condições favoráveis propiciadas pela
orografia. Quanto às restantes ilhas Valentim Fernandes e Jean Alphonse referem a
abundância de cereais. Gaspar Frutuoso alude às de S. Jorge e Pico como terras de
pouco pão, ao Faial à colheita de muito trigo, às Flores como auto-suficiente, à
Graciosa e Corvo como terras de pão 115 .
A historiografia quinhentista é unânime em afirmar a elevada fertilidade do solo
açoriano. O texto mais modelar é de Frutuoso que nos dá conta, de modo exaustivo,
das diversas formas de actividade económica do arquipélago tendo em conta os
factores de produção. O autor traça-nos, de modo clarividente, a conjuntura da
economia açoriana na década de oitenta. O mesmo na descrição das ilhas salienta que
o solo açoriano, de um modo geral, se apresentava apto para a cultura do trigo, quer
pelas condições geográficas, quer pela fertilidade, se tornava desnecessário o uso de
arroteias de pousio. Assim conclui que as ilhas dos Açores "são tão abundantes de pão,
que logo no princípio do seu descobrimento dava cada moio de terra semeada de trigo ou
cevada quarenta ou cinquenta ou sessenta moios e, ainda muitas vezes, recolhem os lavradores
de um alqueire de semeadura vinte e trinta" 116 .
Na análise particular de cada ilha destaca a fertilidade das de Santa Maria e S.
Miguel, dizendo, quanto à primeira:
"Semeia-se um moio de terra com trinta e cinco até quarenta alqueires de trigo, e não sofre
tanta semente como as outras ilhas, porque é de muita criação, e acham-se pés de trigo de um
grão que dá cento e dez, cento e vinte espigas; e o comum daqueles que bem criam, são
cinquenta e sessenta, dez, quinze, vinte e trinta, quarenta" 117 .
. Maria Olímpia da Rocha GIL, O Arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos sócio-económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979,
123
284.
penúria, sendo demoradas, sucediam-se com um intervalo de 2 a 3 anos. Em S.
Miguel apenas se registaram duas crises espaçadas de 11 anos (1562, 1573).
Que factores conduziram a esta diferente evolução da conjuntura cerealífera em
ambas as ilhas? A divergência surge-nos como resultado de uma política de
desenvolvimento, diversificada e orientada por rumos, igualmente diversos, embora,
complementares. A Terceira passou, a partir da primeira metade do século XVI, a
apresentar-se como o principal entreposto do Atlântico.
A cidade e porto de Angra atraíram todo o esforço terceiras. A população
abandonou a dura labuta da terra para se dedicar ao comércio retalhista. Aliás
poucas soluções se deparavam a uma ilha como a Terceira, onde as arroteias não
eram abundantes (Angra, S. Sebastião, Praia). são Miguel, ao contrário oferecia uma
vasta área de terreno fértil e por desbravar.
No início do povoamento, o colono fixou-se nas zonas ricas (Ribeira Grande, Vila
Franca do Campo, Ponta Delgada), onde as colheitas eram abundantes, não
necessitando de alargá-las. Mais tarde, com o esgotamento de algumas das arroteias e
com o aumento da mão-de-obra campesina a área cultivada expandiu-se, sendo
incessante a procura de solo fértil. Assim teremos, desde os inícios do século XVI, o
alargamento das searas, de modo que em finais do século se havia atingido o máximo
de aproveitamento do solo, com 1/3 do total da área da ilha. Ela estava condenada a
ser o celeiro açoriano enquanto a Terceira seria o grande centro de comércio e tráfico
internacional atlântico. De um lado uma ilha extensa com vastas áreas propícias à
cultura do cereal, do outro uma área com fracas possibilidades agrícolas, mas
desfrutando de uma posição estratégica.
A economia açoriana estruturou-se a partir da primeira metade do século XVI, sob
o signo desta ambiência, dando origem a duas áreas de actividade económica
dominantes, em torno das quais se posicionam as demais como regiões periféricas.
É comum definir-se esta viragem na cultura cerealífera açoriana como resultado de
uma actuação do movimento demográfico insular. No entanto, se tivermos em conta
os dados demográficos para os anos de 1567 e 1578, podemos concluir que não houve
mudança significativa no natural movimento ascendente. Apenas há a salientar um
reajustamento da geografia populacional quinhentista, com a dominância das áreas
em franco desenvolvimento. Assim sucedeu em S. Miguel com o espaço agrícola em
torno do eixo de Ponta Delgada/Ribeira Grande e na Terceira com a cidade de
Angra.
A deficiência cerealífera de algumas áreas do arquipélago açoriano deve
fundamentalmente a uma mudança na estrutura económica, a que não foi alheio o
seu posicionamento na dinâmica económica do mundo colonial atlântico. As
alterações mais significativas ocorreram na Terceira com o sector de actividade
dominante: o primário deu lugar ao terciário. Em S. Miguel ele manteve a
supremacia, relegando para segundo plano os demais.
A partir de meados do século XVI, de acordo com o rumo definido por estas áreas,
a conjuntura cerealífera será assimétrica, demonstrativa desta viragem. Desde então a
Terceira manter-se-á como uma ilha carente, que busca o provimento na Graciosa, em
S. Jorge e, mesmo, em S. Miguel, enquanto o solo micaelense se afirmará como área
agrícola, por excelência, onde se cultivava o pastel e o cereal. A última estava
preparada para ser o potencial celeiro do Atlântico europeu, tendo apenas a impedi-
lo a cultura rendosa do pastel. Deste modo a conjuntura cerealífera definida por
Frédéric Mauro, entre 1570 e 1669 não põe em causa a teoria divulgada, de que os
Açores foram o celeiro de Portugal e das praças de África, antes confirma e reforça a
nossa ideia de que ele se situava em S. Miguel.
Esta ilha era a principal produtora de cereal do arquipélago e, igualmente, a que
oferecia melhores condições em termos de extensão e solo. A análise da conjuntura
cerealífera, pelo menos, o especifica. Na verdade, em S. Miguel as crises cerealíferas
são raras e espaçadas, sendo na maioria curtas e resultantes de factores ocasionais,
como as tempestades. Assim sucedeu em 1573, em que um forte temporal destruiu
todas as sementeiras. Ainda no século XVI tivemos outra conjuntura de crise em
1591-1592 que obrigou à importação de cereais. Ela foi descrita como resultado da
concorrência do pastel, que tendia a substituir o trigo. O que foi resolvido em favor
do cereal uma vez que ele, embora considerado uma cultura de inferior
rentabilidade, era necessário, sendo um dos imperativos da coroa a sua persistência.
De 1591 até 1640 manteve-se um hiato prolongado em que não é referenciada
qualquer crise. A falta no último ano foi resultado da incompatibilidade entre os
interesses da aristocracia citadina, proprietária e ligada ao comércio de exportação de
cereais e o necessário provimento do micaelense, de modo especial da cidade de
Ponta Delgada.
As medidas proteccionistas, com o estabelecimento de um contingente de reserva
ou proibição de saída de trigo, e o exame aos granéis, foram relegados para segundo
plano, ou esquecidos, de modo a facilitar-se o comércio. Somente em 1677 a falta de
cereal resultou de uma quebra das colheitas, que não teriam ultrapassado a metade
do ano anterior. O trigo "hera tam pouco que corria o risco de sustentar-se esta
ilha" 124 .
A conjuntura de extrema miséria e fome agravou-se a partir dos anos quarenta do
século XVII, conduzindo à amotinaçäo do povo faminto. Assim sucedeu em 1643,
1647 e 1695. Na primeira data o povo amotinado procurou evitar a pratica
especulativa dos vereadores comprometidos com o comércio do cereal, impedindo o
embarque de uma caravela com trigo, quando "o não achaväo na cidade à venda para
comer e semear" 125 .
Em 1590 os pobres de S. Miguel, oriundos das áreas rurais revoltam-se contra a
aristocracia e burguesia de Ponta Delgada, Ribeira Grande, Vila Franca do Campo,
forçando-as a pôr cobro ao comércio e preço especulativo do pão.
A falta de cereal em S. Miguel, a partir de meados do século XVII, surge como
consequência dos maus anos agrícolas e da acção especulativa da aristocracia e classe
mercantil micaelenses, empenhadas no comércio do cereal e com forte influência nas
124 . Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, nº 53, fls. 188vº-189vº
125 . Helder Lima, Os Açores na Economia Atlântica (subsídios) séculos XV, XVI e XVII, Angra do Heroismo, 1978, 353-354.
vereações das três edilidades, e nunca resultado de uma quebra nas colheitas. Os
poucos dados disponíveis comprovam esta tendência.
Diferente foi o que sucedeu aos colonos portugueses quando chegaram a Santiago
e S.Tomé. Aí não medravam as culturas que definiam a dieta alimentar europeia e foi
com redobrado desgosto que se defrontaram com as primeiras espigas mirradas.
Valentim Fernandes (1506-1508) refere que Santiago "não dá trigo nem cevada",
enquanto o Pe. Baltasar Barreira em 1606 tem opinião contrária. Deste modo houve
necessidade de estruturar de forma diversa o povoamento das ilhas e as culturas a
implantar. O recurso aos africanos, como escravos ou não, foi a solução mais acertada
para transpor o primeiro obstáculo. Eles tinham uma alimentação diferente dos
europeus, baseada no milho zaburro, no arroz e inhame, culturas que aí, nas ilhas ou
vizinha costa africana, medravam com facilidade. Perante isto os poucos europeus
que aí se fixaram estiveram sempre dependentes do trigo, biscoito ou farinha,
enviados das ilhas ou do reino, ou tiveram que se adaptar à dieta africana.
O padre Baltazar Barreira retrata em 1606, de forma clara, a situação nas ilhas de
Cabo Verde:
"a principal sementeira que fazem é de milho zaburro deste comem ordinariamente os
crioulos e pretos, e fazem muita quantidade de tuém e cuscuz (...) vem muita farinha de fora
de que se amassa cada dia todo o pão que comem os portugueses" 126 .
A VINHA E O VINHO
130 . A.T.MOTA, Dois escritores quinhentistas de Cabo Verde, Lisboa, 1971, 27.
131 . Estabelecimentos e Resgates Portugueses (...), Lisboa, 1881, 16.
Vila Franca do Campo, Angra, Ponta Delgada e Funchal, as posturas surgem com
alguma assiduidade a atestar a importância do sector na vida local.
Em Cabo Verde, excepto nas ilhas de Santiago e Fogo, ao contrário do que sucedia
na Madeira e Açores, não existiu qualquer ligação entre a pecuária e a agricultura,
sendo diferente a forma de aproveitamento. Aqui há uma evidente especialização das
demais ilhas numa pecuária extensiva, assente em gado bovino e caprino. As ilhas
eram arrendadas a particulares, que por sua iniciativa se encarregava de explorar
estes proventos. No fundamental pretendia-se apenas explorar aquilo que dava
maior rentabilidade, isto é os couros e sebo. Por isso nas doações aludia-se quase
sempre à tributação destes e muito raramente da carne. Todavia dela se servia, sob a
forma de chacina para fornecer as armadas e conduzir ao reino e à ilha da Madeira.
Este foi um produto mais a activar as trocas externas da ilha, a partir de meados do
século XVI.
A carne salgada, sob a forma de chacina, foi por muito tempo uma importante
fonte de riqueza destas ilhas, servindo para abastecer as naus e a saída com destino
ao Brasil, a Madeira e reino. Mais importante do que isso eram as peles e o sebo
foram também uma importante fonte de rendimento, activadoras das trocas com os
portos europeus, a partir de Santiago. Numa relação dos jesuítas (1603-1604) é
testemunhada a riqueza do arquipélago cabo-verdiano, dizendo-se que "há grande
cópia de criação de gado" e que as ilhas estavam "todas habitadas de caçadores que daqui
com muita courama se levam para diversas partes" 132 .
Um facto de particular significado foi a criação, nomeadamente na ilha de
Santiago, de gado equídeo para exportação à costa africana. Cadamosto, Valentim
Fernandes e Duarte Pacheco Pereira atestam a importância do cavalo no quotidiano
das populações africanas, por questão de honra e ostentação, o que foi motivo para os
cabo-verdianos conseguirem uma nova contrapartida para as suas relações
comerciais com esta região. Com um cavalo podia-se adquirir em troca até 14
escravos. Todavia nos princípios do século dezasseis a paulatina desvalorização do
escravo nesta troca por escravos levou à diminuição da sua importância na economia
cabo-verdiana.
OS PRODUTOS DE EXPORTAÇÄO
132 . Pe. Fernão GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os padres da companhia de Jesus..., T.I., livro IV, Coimbra, 1930, 401.
cana-de-açúcar e o pastel.Os incentivos da coroa e município, aliados à elevada
valorização pelos agentes europeus, actuaram como mecanismos propiciadores do
desenvolvimento das culturas.
A CANA-DE-AÇÚCAR
A ESTRUTURA FUNDIÁRIA
134 . "Descrição da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, 84-85.
135 . V. Rau e Jorge Macedo, O Açúcar da Madeira nos fins do século XV. Problemas e produção e comércio, Funchal, 1962.
lavradores da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava. Mesmo assim são escassos os
engenhos e, por vezes, insuficientes para os canaviais cultivados. Note-se que a partir
de meados do século XVIII só persistiu apenas um engenho em laboração na Ribeira
dos Socorridos.
O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da
bolsa de todos os proprietários. De acordo com o estimo feito para o engenho de
António Teixeira no Porto da Cruz em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em
duzentos mil reais 136 . Noutro documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho
e sua água de servidão orçavam os 461.000 reais 137 . Mas em 1600 João Berte de
Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor
de 700.000 reais 138 .
Criadas as condições ao nível interno, por meio do incentivo ao investimento de
capitais estrangeiros na cultura da cana e comércio dos derivados, do apoio do
senhorio, coroa e administração, a cana estava apta para prosperar e se afirmar, ainda
que só por algum tempo, como o produto dominante da economia madeirense.
O incentivo externo provocado pelos mercados nórdico e mediterrânico
condicionou o processo expansionista nesta e nas demais áreas atlânticas. A esta
aposta, acompanhada do incessante pedido do mercado externo, sucedeu um período
de crise resultante não só da concorrência de novos mercados produtores, mas acima
de tudo de factores internos, como a carência de adubagem dos terrenos, a desafeiçäo
do solo à cultura, as mudanças climáticas, que entretanto se sucederam, e, por fim, o
aparecimento do bicho da cana.
A primeira metade do século dezasseis é definida como o momento de apogeu da
cultura açucareira insular e pelo avolumar das dificuldades que entravaram a
promoção em algumas áreas como a Madeira onde o cultivo era oneroso e os níveis
de produtividade desciam em flecha. Nesta época as ilhas de Gran Canária, La
Palma, Tenerife e S. Tomé estavam melhor posicionadas para produzir açúcar a
preços mais competitivos. Isto sucedeu na década de vinte do século dezasseis e
avançou à medida que os novos mercados produtores de açúcar atingiam o máximo
de produção.
Mais tarde, com o controlo holandês do nordeste brasileiro, a cultura foi
reabilitada como forma de responder à sua procura na Europa e pela necessidade
resultante das indústrias de conserva e casquinha. Até 1640 o movimento
descendente havia-se agravado com a presença, cada vez mais assídua de açúcar
brasileiro no porto do Funchal.
Em 1616, para garantir o escoamento da produção madeirense, fora determinado
que primeiro se vendesse o açúcar local e que à saída se fizesse uma distribuição
equitativa de ambos os açúcares. Mas a partir desta data, com o domínio holandês
das terras brasileiras a cultura renasceu na ilha. Em 1648 o número de engenhos
existentes era insuficiente para dar vazão ao açúcar produzido. No entanto, tratou-se
136. Alberto Artur, "Apontamentos Históricos de Machico", in Das Artes e Da História da Madeira, vol. I, 8-9.
137. Arquivo regional da Madeira, Capelas, Cxa. 8, nº 9, Inventário de bens de João de ornelas e Vasconcelos de 19 de Janeiro de 1547.
138. Arquivo Regional da Madeira, Misericórdia do Funchal, nº 40 fls. 49-58, 11 de Setembro de 1600.
de uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do
brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior conjuntura.
O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da
concorrência. Em 1658 ainda se procurou apoiar o seu cultivo ao serem reduzidos os
direitos sobre a cultura para um oitavo, mas a crise era inevitável.
O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a
necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus. A conjuntura era
favorável ao aparecimento de novas áreas. O consumo ia em constante crescimento e
as rotas de canalização do produto oriental eram cada vez mais difíceis. Foi esta
conjuntura que impôs a nova cultura no espaço atlântico e ditou as regras do seu
mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada
por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. Neste
último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e
casca. Parte significativa do açúcar madeirense e, mais tarde, do Brasil era usado
nisso.
O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia dele disponível
para distribuir às conserveiras. A partir daqui eram mais trinta e poucos dias de
árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para exportação.
Um dos principais factores de promoção da indústria das conservas foi a
importância do Funchal como porto de escala e abastecimento para a navegação
atlântica. Muitas embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de
conservas de citrinos. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e
doçaria madeirense foi, o início, a casa real e, depois, as cidades do Norte da Europa:
Rochela, S.Malo Bordéus, Amesterdão. Hamburgo.
No fabrico das conservas e doces merecem a nossa atenção as freiras do convento
de Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás, em 1687 Hans Sloane referia-se de
forma elogiosa aos doces e compotas que comeu em Santa Clara, rematando que
"nunca vi coisas tão boas"
Os confeitos, alfenim e casquinha da Madeira tiveram fama em toda a Europa,
pois por muito tempo foram a delícia das cortes europeias e o principal presente:
Vasco da Gama presenteou o xeque de Moçambique com conservas da ilha, enquanto
Simão Gonçalves da Câmara fez o mesmo ao papa Leão X. É de referir que o
comércio da casquinha foi um dos animadores do comércio da ilha na segunda
metade do século XVII.
A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso
à Madeira, como meio para reabilitar a economia que se encontrava profundamente
debilitada com a crise do comércio e produção do vinho. Esta situação, que se
manteve até à actualidade, não veio atribuir ao produto a mesma pujança económica
de outrora.
A EXPANSÄO DA Cana-de-açúcar
Como já se disse, as socas de cana madeirense foram levadas para os Açores pelos
primitivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel,
Terceira e Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos
desejados. As condições geofísicas aliadas à inexistência ou reduzida dimensão dos
capitais estrangeiros travaram o seu desenvolvimento.
Foram inúmeras as regalias e privilégios para o seu lançamento nas ilhas
açorianas, que mesmo assim não conseguiram suplantar as dificuldades do meio. No
primeiro quartel do século dezasseis a cultura adquiriu alguma importância em S.
Miguel, Santa Maria e Faial. Neste momento a produção representava um terço da
que se colhia nos canaviais madeirenses. Fala-se, mais tarde, de uma nova fase de
retorno da cultura a partir da década de quarenta, mas faltam-nos dados seguros
para avaliar a dimensão que terá assumido. Certamente a tendência foi, mais uma
vez, coarctada pela aposta definitiva na cultura do pastel e de cereais, pois o açúcar
começava a surgir de forma mais vantajosa no Brasil.
Aos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé os canaviais chegaram muito mais
tarde e como noutras áreas a experiência madeirense foi importante. No primeiro só
nas ilhas de Santiago e S. Nicolau, mas sem nunca ter sido uma cultura rentável e
concorrencial do açúcar madeirense. As condições morfológicas e orográficas foram-
lhe adversas. A introdução deverá ter sido feita, no início do povoamento na década
de sessenta, não obstante a primeira referência datar de 1490. Por outro lado o açúcar
produzido no arquipélago, a exemplo do que sucederá em S. Tomé, não apresentava
a qualidade do madeirense, pois como nos refere Gaspar Frutuoso "nada deste chega ao
da ilha da Madeira" 139 . Apenas é conhecido o engenho do morgado de Fernão Fiel de
Lugo, o qual nas suas fazendas de Trindade e Santa Cruz cultivava canaviais, tendo
ao seu serviço um escravo Sebastião, como mestre de engenho. Também o morgado,
fundado em 1531 por André Rodrigues, com o nome de "o engenho", deverá ser
indicativo da presença doutro engenho de açúcar. Mais tarde, no século dezanove, a
cultura estava de volta ao arquipélago, sendo utilizada, principalmente, para o
fabrico de aguardente que se consumia no arquipélago e exportava para os Rios de
Guiné.
Diferente foi o que sucedeu em S. Tomé onde a abundância de águas e lenhas
associada às condições do solo foram de molde a propiciar os meios indispensáveis
ao cultivo da cana. O açúcar aí produzido tornou-se, por isso mesmo, concorrencial
do madeirense, embora sem nunca atingir a sua qualidade. Em Lisboa os confeiteiros
reclamavam com frequência contra a má qualidade do açúcar de S. Tomé, havendo
mesmo quem o refinasse segunda vez, o que foi proibido pelo município devido à
despesa elevada de lenhas.
Em S. Tomé os canaviais estendiam-se pelo norte e nordeste da ilha, fazendo
lembrar, segundo um testemunho de 1580, os campos alentejanos 140 . Um dos factos
que contribuiu para que ele se tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada
A mais antiga referência aos engenhos de água na ilha data de 1517, altura em que
a produção da ilha rondaria as cem mil arrobas. Estes valores provam que em pouco
tempo S. Tomé suplantou a Madeira, que produzia noventa e três mil arrobas e
nunca haveria de ultrapassar a barreira dos cento e quarenta e quatro mil,
conseguidas em 1510. Em S. Tomé os canaviais produziam muito mais que os
madeirenses de modo que em 1528 a safra ultrapassava as cento e vinte mil para
alcançar nas décadas de quarenta a sessenta as cento e cinquenta mil. Neste período o
número de engenhos terá chegado aos quatrocentos.
Precisamente em 1529, ano em que coroa estipulou os necessários incentivos à
construção de engenhos, surgem as primeiras queixas dos madeirenses contra a
concorrência do açúcar säotomense. Para isso terá contribuído o facto dele ser
vendido em Lisboa como sendo da Madeira, para o fabrico de conservas.
A partir da década de sessenta começaram a surgir as primeiras dificuldades na
safra açucareira de S. Tomé. Primeiro o assalto dos corsários franceses em 1567 e
141. Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20.
142. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 128.
143. Navegação de Lisboa à ilha de São Tomé escrita por um piloto anónimo, Lisboa, 1989, 25-29.
depois a revolta dos angolares em 1574 atingiram particularmente os engenhos.
Passados alguns anos redobraram as dificuldades com os assaltos dos holandeses
(1595-1596 e 1641) e a revolta dos Mocambos (1595-1596). A isto se poderá juntar a
presença do bicho da cana (1621) e, a partir de 1635, a falta de escravos para a safra
devido à presença dos corsários holandeses nos principais mercados negreiros. Note-
se que só em 1641, quando da ocupação holandesa, foram abandonados mais de
sessenta engenhos, sendo os restantes queimados por estes ou pelos angolares. Desta
forma os invasores impediam a sua concorrência com o pernambucano, que
pretendiam controlar. A conjuntura teve reflexos evidentes na safra da segunda
metade do século, conduzindo a cultura para um estado de crise de que nunca se
reabilitou.
Se nos preocuparmos em comparar o ciclo evolutivo da cultura da cana nos
diversos espaços do Atlântico onde foi cultivada concluiremos pela existência de
afinidades entre a sua afirmação numa área e a decadência noutras. Assim sucedeu
na Madeira com S.Tomé e desta para com o Brasil. O cultivo dos canaviais surge em
S. Tomé em finais do século XV, isto é no momento de apogeu da produção
madeirense, que atinge em 1510 o valor mais elevado, entrando depois num
movimento descendente. Esta fase depressionária, que se acentua a partir de 1525,
coincide com o momento de afirmação do açúcar säotomense. É precisamente nas
décadas decorrentes até meados do século que se atingem os valores mais elevados.
A partir do último quartel do século dezasseis foi a concorrência desenfreada do
açúcar brasileiro que definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A
esta conjuntura deverá juntar-se a revolta dos escravos (1595), agravada pela
destruição dos engenhos provocada pelo saque holandês. Na verdade este momento
coincide com a plena afirmação do açúcar brasileiro, cuja colheita continuava a subir
em flecha, nas décadas posteriores.
O domínio holandês de Recife, ao contrário do que habitualmente se pensa, não
provocou uma quebra deste ritmo mas apenas quebras pontuais, que se reflectiram
nos valores dos anos de 1618 e 1645. Este período, de menor oferta do açúcar
brasileiro nos portos peninsulares, não deverá ser entendido como uma quebra da
produção mas apenas um desvio dos circuitos comerciais. Esta conjuntura coincide
com o retorno da cultura na Madeira e em S. Tomé, atingindo-se na última, entre
1641-1645 as cem mil arrobas. Tal ritmo de reabilitação da economia açucareira
insular teve que enfrentar as dificuldades levantadas pelos holandeses, interessados
em manter o exclusivo do açúcar pernambucano.
A partir daí o arquipélago de são Tomé ficou a depender apenas do comércio de
escravos e da pouca colheita de mandioca e milho. Mas a crise do comércio de
escravos a partir de princípios do século dezanove fez com que se operasse uma
mudança radical na economia. Surgiram, então, novas culturas (cacau, café, gengibre
e azeite de palma) que proporcionaram uma nova aposta agrícola.
O PASTEL
O pastel aparece na economia insular em condições idênticas ao açúcar. Foi uma
cultura introduzida pelos europeus para satisfazer as carências do mercado de
têxteis. Até ao século XVII com a introdução do anil na Europa ele foi a principal
planta da tinturaria europeia, donde se extraía as cores preta e azul. A par disso a
disponibilidade de outras plantas tintureiras, como a urzela (donde se tirava um tom
castanho-avermelhado) e o sangue-de-drago, levaram ao aparecimento de italianos e
flamengos, interessados no comércio, que por sua vez nos legaram a nova planta
tintureira: o pastel.
O pastel foi primeiro cultivado na Madeira, e depois nos Açores e nas Canárias.
Mas só no arquipélago açoriano, nas ilhas de S. Miguel, Terceira, S. Jorge e Faial,
atingiu maior dimensão económica. A toponímia regista-se a sua presença e define os
espaços do seu cultivo.
Na Madeira refere-se a cultura e comércio no século XV. Os italianos teriam sido
os principais interessados no comércio o que os levou a considerarem a Madeira
como a ilha do pastel. No século XVI está documentada a sua saída para Flandres. Mas
os dados documentais são escassas as referências denunciadoras da sua presença, o
que poderá resultar da secundarizaçäo na economia madeirense em favor de outros
produtos, como o vinho e o açúcar, dominantes e granjeadores de elevados
proventos.
Foi no arquipélago açoriano que o pastel alcançou um lugar de grande relevo. A
sua importância poderá ser comparável à que assumiu o açúcar na Madeira, Canárias
e S. Tomé. Foi a cultura do pastel que activou as trocas com o exterior e despertou o
interesse dos mercadores italianos, flamengos e ingleses. A sua promoção nas ilhas
resultou da presença dos flamengos, mas foram os ingleses nos séculos dezasseis e
dezassete que tiveram dele consumo preferencial. Eles participaram no povoamento
da Terceira e do Faial. Todavia foi na ilha de S. Miguel que se produziu a maior parte
do pastel exportado dos Açores, sendo ele responsável pelo aparecimento de várias
fortunas, como sucedeu com Jorge Botelho e Francisco Arruda da Costa.
A exemplo do sucedido com o açúcar na Madeira, a coroa concedeu vários
incentivos para a promoção da cultura, que com a incessante procura por parte dos
mercados nórdicos, fizeram avançar rapidamente o seu cultivo. Em 1589 Linschoten
referia que "o negócio mais frequente destas ilhas é o pastel" de que os camponeses faziam
o " principal mister", sendo o comércio "o principal proveito dos insulares 144 ", enquanto
em 1592 o governador de S. Miguel atribuía a falta de pão à domínio quase exclusivo
do solo pelo cultivo do pastel 145 .
Os açorianos também procediam à preparação do pastel para exportação. As
folhas eram apanhadas e depois moídas num engenho para se retirar todo o sumo.
Depois faziam-se bolos redondos que eram vendidos aos mercadores. Eram estes que
procediam à granagem das referidas bolas em tanques de água. A operação era
morosa e requeria a presença diária dos granadores, cujas funções eram fiscalizadas
pelos lealdadores. Os regimentos régios e municipais davam maior atenção a esta
A economia das ilhas não se resumiu apenas aos produtos trazidos pelos colonos
europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao
primeiro aspecto é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de
assentamento ribeirinha, assumiram-se como exímios marinheiros e pescadores,
tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor
alimentar. A actividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a
atenção, pela abundância de peixe e mariscos.
A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a
entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos
vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e
andaluzes 149 . Todavia o balanço das capturas dos madeirenses e açorianos não foi
suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de
importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. Em Cabo Verde para além da
pesca existiu a indústria do sal da ilha com o mesmo nome, Maio e Boavista,
consumido, preferencialmente, no mercado da costa da Guiné.
No solo das ilhas abundavam recursos com valor mercantil imediato que
mereceram também o interesse dos insulares. A urzela surgia com abundância nas
ilhas da Madeira, Porto Santo, Desertas, Selvagens, S. Jorge, Corvo, Flores, Santa
Maria, La Gomera e nas de Cabo Verde. Nas últimas a exploração foi concedida em
1468 a João e Pedro de Lugo, passando em 1527 para Vasco de Foios. Em 1513 ela foi
148 .ANTT, Leis e Regimentos de D. Manuel, fls. 121vº-126, 13 de Janeiro, publ. in História Geral de Cabo Verde. corpo documental, I, 297.
149 . António RUMEU DE ARMAS, "Pesquerias espanolas en Africa (siglos XV e XVI", in Anuário de Estudos Atlânticos, nº 23, 371.
arrendada em S. Nicolau e Santa Luzia por 55.500 reais 150 . Na primeira metade do
século dezanove teve grande incremento o comércio da urzela, que esteve entregue a
rendeiros estrangeiros, passando em 1844 para o exclusivo do estado e passados
cinco anos passou a ser livre. Ela exportava-se para Inglaterra, Holanda e França. O
mesmo sucederá na Madeira e Açores.
É de salientar igualmente a importância que assumiu a extracção do sangue-de-
drago na ilha de Porto Santo: foi também um importante ingrediente da tinturaria.
Valentim Fernandes e Gaspar Frutuoso referem-nos a abundância de dragoeiros na
ilha, que por muito tempo foram o principal suporte económico. No âmbito da
silvicultura sobressaem, ainda, o aproveitamento das madeiras, necessárias à
construção de barcos, casas, engenhos e meios de transporte e das lenhas, usadas
como combustível caseiro e industrial (nos engenhos e forjas), do pez para a
calafetagem de navios.
A insistente solicitação de madeiras e lenhas, nomeadamente, nas ilhas onde a
cultura dos canaviais adquiriu alguma importância, foi desastrosa para o equilíbrio
ecológico, não poupando mesmo a Madeira, que mereceu tal nome pela abundância e
esplendor do arvoredo. Isto levou os municípios a tomarem medidas de controlo no
desbaste florestal, que surgiram com maior evidência na Madeira, onde o parque
florestal foi desgastado pela safra açucareira. Em Cabo Verde e S. Tomé é de referir,
por último, a importância que assumiu o comércio de madeiras da Guiné com
destino ao reino.
Valentim Fernandes, em princípios do século dezasseis, e mais tarde Gaspar
Frutuoso, celebram a riqueza do arquipélago madeirense neste recurso. As madeiras
de pau-branco, barbuzano, teixo, cedro, til e aderno serviam as necessidades da
indústria local e exportavam-se para o reino e praças mediterrânicas. Dizia-se até, no
século XV, que as madeiras da ilha revolucionaram a construção civil de Lisboa,
permitindo o aparecimento de construções com mais de um piso.
No sentido de defender este rico património estabeleceram-se regimentos em que
se regulamentava o corte de madeiras e lenhas, sendo os mais importantes de 151 e
1562. A ilha que no início da ocupação havia atemorizado os povoadores pelo denso
arvoredo era agora na vertente sul uma escarpa em vias de desertificação. Não foi o
inicial incêndio, que a tradição diz ter durado quinze anos, o motivo desta situação,
mas sim a incessante procura de lenhas para o fabrico de açúcar.
O COMÉRCIO
O COMÉRCIO DE CABOTAGEM
152 . Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, Câmara Municipal de Ponta Delgada, nº 54, fl. 12.
153 . J.H. LINSCHOOT, art.cit.,154.
para controlo do comércio africano. A este movimento interno de cada ilha temos de
juntar, necessariamente, em Cabo Verde, S. Tomé e Açores, aquele que se fazia entre
as ilhas de um mesmo arquipélago. No caso açoriano esta via foi importante, devido
às condições específicas de cada uma das ilhas. A isto deverá juntar-se a política de
desenvolvimento traçada pela coroa portuguesa, que conduziu a uma
compartimentação, ainda que imperfeita, dos espaços agrícolas e de serviços.
O afluxo de embarcações das rotas oceânicas a Angra fez da cidade o principal
centro de serviços de apoio à navegação atlântica e por isso mesmo criou-se à sua
volta uma diversificada rede de cabotagem de apoio, que abrangia toda a ilha e as
vizinhas (S. Jorge, Graciosa). Mais uma vez Gaspar Frutuoso, perfeito conhecedor das
ilhas, expressa isso, de forma clara, ao afirmar que "todas as outras ilhas são suas
escravas, pois quanto nela se cria vem pera ela", concluindo que eram "quintas" da
Terceira. Era o porto de Angra que fornecia as ilhas do grupo central e ocidental de
manufacturas europeias, vinho, açúcar e derivados da ilha da Madeira, a troco dos
cereais, gado, legumes, madeiras, lenha, fruta e barro. Depois o processo económico a
que as ilhas estiveram sujeitas conduziu-as para uma situação de cada vez maior
interdependência. Nos Açores a Terceira passou a manter o domínio sobre a Graciosa
e parte da costa a ela virada da de S. Jorge. O Faial ligar-se-ia ao Pico e S. Jorge, as
Flores ao Corvo e S. Miguel a Santa Maria.
A partir daqui estabeleceu-se uma especialização nos serviços prestados por cada
área ou porto. Angra foi a cidade do apoio à navegação inter-continental, Horta o
centro de comércio de vinho e Ponta Delgada o porto de comércio do cereal e pastel.
O facto de na primeira ter existido porto importante nos contactos intercontinentais
levou ao estabelecimento de serviços consulares para apoio das actividades legais e
ilegais. Primeiro foram os franceses (1609) depois os holandeses (1655) e, finalmente,
os alemães, suecos, dinamarqueses, noruegueses, castelhanos, todos na década de
oitenta do século dezassete. Pelos mesmos motivos os castelhanos, quando da união
dinástica, preocuparam-se com a ocupação do arquipélago. Para eles isso seria a
principal garantia para a segurança das suas frotas que por aí passavam. Mas só o
conseguiram, a muito custo depois de terem enfrentado a resistência terceirense
apoiada pelos ingleses e franceses, ambos interessados em manter um porto de apoio
para as incursões no Atlântico.
Mais a sul as feitorias de Santiago, Príncipe e S.Tomé, para além de centralizarem
o tráfico comercial em cada arquipélago, firmaram-se, por algum tempo, como os
principais entrepostos de comércio com o litoral africano. Santiago manteve, até
meados do século dezasseis, o controlo sobre o trato da costa da Guiné e das ilhas do
arquipélago com o exterior. E foi também o centro de redistribuição dos artefactos e
mantimentos europeus e de escoamento do sal, chacinas, courama, panos e algodão.
Enquanto a primeira situação, com o evoluir da conjuntura económica, foi perdendo
importância, a segunda manteve-se por muito tempo, definindo uma trama
complicada de rotas entre as ilhas do arquipélago.
O COMÉRCIO INTER-INSULAR
O comércio entre as ilhas dos três arquipélagos atlânticos resultava não só da
complementaridade económica, definida pelas assimetrias propiciadas pela orografia
e clima, mas também da proximidade e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de
homens, produto e técnicas, dominou o sistema de contactos entre os arquipélagos.
A Madeira, mercê da posição privilegiada entre os Açores e as Canárias e do
parcial alheamento das rotas indica e americana, apresentava melhores
possibilidades para o estabelecimento e manutenção deste tipo de intercâmbio. Os
contactos com os Açores resultaram da forte presença madeirense na ocupação e da
necessidade de abastecimento em cereais, que o arquipélago dos Açores era um dos
principais produtores. Com as Canária as imediatas ligações foram resultado da
presença de madeirenses, ao serviço do infante D.Henrique, na disputa pela posse do
arquipélago e da atracção que elas exerceram sobre os madeirenses. Tudo isto
contrastava com as hostilidades açorianas à rota de abastecimento de cereais à
Madeira. Acresce, ainda, que o Funchal foi por muito tempo um porto de apoio aos
contactos entre as Canárias e o velho continente.
Os contactos assíduos entre os arquipélagos, evidenciados pela permanente
corrente emigratória, definem-se como uma constante do processo histórico dos
arquipélagos, até ao momento que o afrontamento político ou económico os veio
separar. A última situação emerge na segunda metade do século dezassete como
resultado da concorrência do vinho produzido, em simultâneo, nos três arquipélagos.
O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil das conexões inter-insulares. Segundo
os testemunhos de Giulio Landi (1530) e Pompeo Arditi (1567) os cereais foram os
principais activadores e suportes do sistema de trocas entre a Madeira e os
arquipélagos vizinhos, que, por isso mesmo, foram considerados o celeiro
madeirense. A rota de abastecimento de cereais teve a sua máxima expressão em
princípios do século dezasseis. A referência mais antiga ao envio de trigo de Canárias
para a Madeira data de 1504 para La Palma e 1506 para Tenerife, enquanto a presença
do açoriano só está documentada a partir de 1508, ano em que a coroa definiu a
obrigatoriedade do fornecimento à Madeira.
O comércio do cereal a partir das Canárias firmou-se através da regularidade dos
contactos com a Madeira, sendo apenas prejudicado pelos embargos temporários,
enquanto dos Açores foi imposto pela coroa, uma vez que a burguesia e aristocracia
açorianas, nomeadamente de S. Miguel, não se mostravam interessadas em manter
esta via. Todo o empenho dos açorianos estava canalizado para o comércio
especulativo com o reino ou dos contratos de fornecimento das praças africanas.
Desde 1521 o preço e a forma de transporte do cereal açoriano na Madeira estavam
sob o controlo do município. Deste modo era difícil a especulação por parte dos
rendeiros e mercadores micaelenses.
A garantia do abastecimento interno de cereais, que havia sido uma palavra de
ordem no início do povoamento da Madeira, não
resistiu ao assalto das culturas europeias para exportação, que em pouco tempo
invadiram quase todo o território arável. O arquipélago composto apenas por duas
ilhas, sendo uma delas de fracos recursos, tinha que assegurar, necessariamente, o
abastecimento fora, socorrendo-se para isso das ilhas vizinhas. Em 1546 dos doze mil
moios consumidos apenas 1/3 foi produzido localmente, sendo o restante importado
das ilhas próximas ou da Europa.
Nos séculos dezasseis e dezassete a oferta de cereal insular, das Canárias e dos
Açores, representou cerca de metade das entradas. Para o caso açoriano ele era quase
todo proveniente de S. Miguel e do Faial, enquanto nas Canárias se evidenciaram as
ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e Tenerife.
A permanência desta rota de abastecimento de cereais implicou o alargamento das
trocas comerciais entre os três arquipélagos, uma vez que ao comércio do cereal se
associaram outros produtos, como contrapartida favorável às trocas. Aos Açores os
madeirenses tinham para oferecer o vinho, o açúcar, conservas, madeiras, eixos e
aduelas de pipa, reexportação de artefactos e outros produtos de menor importância.
Para as Canárias a oferta alargava-se à fruta verde, liaças de vime, sumagre e panos
de estopa, burel ou liteiro.
As ilhas açorianas foram no começo um consumidor preferencial do vinho
madeirense e canário. Tudo isto pela necessidade de encontrar uma contrapartida
rentável ao comércio de cereais e pelo facto de o vinho que produziam ser de fraca
qualidade. Pois o afamado vinho do Pico afirmou-se apenas a partir da segunda
metade do século dezassete. Para o ano de 1574 o vinho da Madeira desembarcado
no porto de Ponta Delgada representava 42% das importações vinícolas, sendo o mais
cotado no mercado micaelense. O mesmo sucedia em Angra na segunda metade do
século. No século dezassete o maior incremento da viticultura das ilhas do grupo
central e a crescente melhoria de qualidade contribuíram para a subalternização do
produto no sistema de trocas com a Madeira e as Canárias. Em finais da centúria o
produto continuava ainda a ser referenciado nas entradas da alfândega de Ponta
Delgada.
O comércio entre a Madeira e as Canárias era muito anterior ao estabelecimento
dos primeiros contactos com os Açores. O relacionamento iniciara-se em meados do
século quinze, activado pela disponibilidade no arquipélago de escravos, carne,
queijo e sebo. Mas a insistência dos madeirenses nos contactos com as Canárias não
terá sido do agrado ao infante D. Fernando, senhor da ilha, interessado em promover
os contactos com os Açores. Apesar disso eles continuaram e a rota adquiriu um
lugar relevante nas relações externas da ilha, valendo-lhe para isso a disponibilidade
de cereal e carne, que eram trocados por artefactos, sumagre e escravos negros. Esta
última e peculiar situação surge na primeira metade do século dezassete, com certa
evidência nos contactos entre a Madeira, Lanzarote e Fuerteventura.
Algo diferente sucedeu nos contactos comerciais entre os Açores e as Canárias,
que nunca assumiram a mesma importância das madeirenses. A pouca facilidade nas
comunicações, a distância entre os dois arquipélagos e a dificuldade em encontrar os
produtos justificativos de intercâmbio fizeram com que estas trocas fossem sazonais.
Só as crises cerealíferas do arquipélago de Canárias fizeram com que o trigo açoriano
aí chegasse em 1563 e 1582. Por vezes a permuta fazia-se a partir da Madeira, como
sucedeu em 1521 e 1573. A contrapartida de Canárias para este comércio baseava-se
no vinho, tecidos europeus e o breu. Para o século dezassete, os registos da alfândega
de Ponta Delgada, entre 1620 e 1694, atestam um incentivo dos contactos comerciais
com este destino, pois o número de entradas e saídas encontrava-se em segundo
lugar, seguido pela Madeira.
A outro nível estavam as relações inter-insulares com os arquipélagos além do
Bojador. Primeiro as dificuldades na ocupação só conduziram ao imediato e pleno
povoamento de uma ilha em cada área -- Santiago e S.Tomé --, que passou a actuar
como principal eixo do trato interno e externo. Depois o aproveitamento económico
não foi uniforme e de acordo com as solicitações do mercado insular aquém do
Bojador, assumindo, por vezes, como sucede com S. Tomé uma posição
concorrencial. Por fim registe-se que estes espaços existiam mais para satisfazer as
necessidades do vizinho litoral africano do que pela sua importância económica
interna.
Do relacionamento dos dois arquipélagos com os do Mediterrâneo Atlântico é
evidente o empenho dos últimos no tráfico negreiro, com maior evidência para os
madeirenses e canarios. Os madeirenses que aí aparecem foram favorecidos pelo
comprometimento com as viagens de exploração e comércio ao longo da costa
africana e da presença, ainda que temporária, do porto do Funchal no traçado das
rotas. Ao invés, os Açores mantiveram-se por muito tempo como portos receptores
das caravelas que faziam a rota de retorno ao velho continente.
A posição privilegiada da Madeira e Canárias, a insistente procura de mão-de-obra
para o arroteamento das diversas clareiras entretanto abertas, geraram um desvio da
rota do comércio dos escravos, surgindo o Funchal e Las Palmas como dois
importantes eixos do tráfico E assim se mantiveram até à plena afirmação das rotas
americanas. Por outro lado o relacionamento das ilhas africanas com o Mediterrâneo
Atlântico foi facilitado pelos benefícios fiscais atribuídos pela coroa em 1507. E
sabemos, por pedido dos moradores de Santiago, que a contrapartida comercial se
baseava no fornecimento de cereal: primeiro da Madeira, depois dos Açores.
Entretanto no que se refere à Madeira a coroa concedeu em 1562 e 1567 facilidades
aos madeirenses para o comércio de escravos de Cabo Verde e Rios de Guiné, como
forma de suprir a crise açucareira, o que deverá ter contribuído para um aumento dos
contactos.
A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa a atestar
pelos testamentos que chegaram à nossa mão. Destes merece referência especial
Francisco Dias, morador na Ribeira Grande que, pelo testamento de 1599 154 , é
apresentando como um dos mais importante mercadores de escravos, empenhados
no tráfico com a Madeira e Antilhas. O mesmo se poderá dizer quanto aos açorianos,
embora referenciados em menor escala. A permuta baseava-se pelo lado africano em
escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz,
chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos.
O COMÉRCIO ATLÅNTICO
155.Manuel Lobo Cabrera," Relaciones entre Gran Canaria Africa y América a través de la trata de negros", in II Colóquio de Historia
Canario Americana, Las Palmas, 1977, 77-91; idem, La esclavitud en las Canarias orientales en el siglo XVI. negros, moros y moriscos, Las
Palmas, 1979, 104-110; Elisa TORRES SANTANA, "El comércio de Gran Canaria con Cabo Verde a principios del siglo XVII", in II
Coloquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990, 761-778.
156. V. RAU, Estudos sobre a história do sal português,Lisboa, 1989, 217.
proximidade ao continente africano, bem como o posicionamento correcto nas rotas
atlânticas, permitiram-lhe a intervir no tráfico inter-continental.
Para os Açores, o facto de as ilhas estarem situados na recta final das grandes
rotas oceânicas possibilitou-lhes algum proveito com a prestação de inúmeros
serviços de apoio e do eventual contrabando. Fora disso encontrava-se a Madeira, a
partir de finais do século XV. Por muito tempo este comércio foi apenas uma
miragem. E só se tornou uma realidade quando o vinho começou a ser o preferido
das gentes que embarcaram na aventura indicam ou americana. Perante isto o vinho
madeirense afirmar-se-á em pleno a partir da segunda metade do século dezassete.
Rumos diferentes tiveram os arquipélagos de S.Tomé e Príncipe e Cabo Verde: a
proximidade da costa africana e a permanente actividade comercial definiram a
inegável vinculação ao continente africano. Por muito tempo os dois arquipélagos
pouco mais foram do que portos de ligação entre a América ou a Europa e as feitorias
da costa africana. Num e noutro caso o avanço do povoamento ficou dependente das
facilidades concedidas ao comércio: em 1466 para Cabo Verde se dizia que estes só
iam viver "com mui grandes liberdades e franquezas e despesa sua" 157 ; no foral dado em
1485 a S. Tomé o privilégio do comércio com a área costeira surgia como recompensa
"do trabalho a que se despoem, em haverem de hyr viver em a dita ylha" 158 ; em 1500 na
doação da alcaidaria da ilha de Príncipe a António Carneiro é referido o resgate na
Guiné a sul do rio Real. Note-se que noutra carta de privilégios do mesmo ano o
mesmo António Carneiro, secretário do rei, recebe a mercê do resgate da malagueta,
pimenta e outras especiarias "dos nossos rios e tratos de Guiné" por dez anos 159 .
As facilidades concedidas ao comércio com a costa africana degeneraram em
problemas para a Fazenda Real, pelo que a coroa se viu forçada a tomar medidas
restritivas ao comércio dos naturais, com reflexos evidentes na evolução económica
das ilhas que dele dependiam. As primeiras dificuldades começaram com o contrato
de Fernão Gomes de 1469, que retirava aos cabo-verdianos o usufruto de uma
importante fatia da costa. Três anos depois surgiram as primeiras dificuldades a esta
actividade comercial, que tiveram continuidade no século seguinte. A resposta não se
fez esperar. Os cabo-verdianos primeiro questionaram as limitações impostas,
referindo que era a partir do comércio de escravos que se abasteciam de bens
alimentares e artefactos de outras ilhas ou da Europa. Depois acusaram os rendeiros
da coroa de serem os principais responsáveis da situação a que se havia chegado 160
(50). A coroa, no entanto, insistiu com as mesmas ordens e só em 1521 acedeu,
consignando no regimento do feitor do trato de Santiago os privilégios de 1472 161 .
A conturbada conjuntura política, que se seguiu nos finais da centúria
quinhentista e princípios da seguinte, teve o condão de conduzir a uma mudança
deste cenário. A crise dinástica e a consequente união das coroas peninsulares
levaram ao seu desagravamento da permitindo uma abertura total da área ao
157. História Geral de cabo Verde - corpo documental, nº 4, 19/22, 12 de Junho de 1466.
158. Monumenta Missionaria Africana, XIV, 3/7.
159.ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, lº.21, fl.18vº, 22 de Março.
160. Ibidem, nº 76, 209-211, 24 de Outubro de 1512; nº 77, 213-214, 25 de Outubro de 1522.
161. Ibidem, nº 6, 25/28, 8 de Fevereiro de 1472.
comércio dos insulares, seus vizinhos e aos demais europeus, nomeadamente, os
holandeses. Perante isto Santiago deixou de ser o principal entreposto dos Rios de
Guiné, pelo que foram evidentes os reflexos na economia da ilha. Em 1622 exclamava
já D. Francisco de Moura que "está aquela ilha em tanta pobreza e necessidade que em
poucos anos se acabará..." 162 .
Com a Restauração o comércio foi sujeito a várias mudanças: em 1642 foi
franqueado a todos os vizinhos de Santiago e vassalos do reino, acompanhado por
facilidades de acesso dos estrangeiros às ilhas, depois optou-se pelo regime de
companhias, tendo-se criado as da Costa da Guiné (1664), depois de Cacheu, Rios e
Comércio de Guiné (1676), do Estanco do Maranhäo e Pará e, finalmente, do Cacheu
e Cabo Verde (1690).
A EUROPA E AS ILHAS
162 . C. J. Senna BARCELOS, História de Cabo Verde e Guiné, parte I, Lisboa, 1899, 223.
reino foi estabelecida como uma necessidade decorrente da promoção da cultura em
solo insular, enquanto o segundo rumo foi traçado pela política económica traçada
para o espaço insular. O último destino foi imposto pela coroa.
O mercado do reino foi o primeiro consumidor de trigo açoriano mas não o único
nem o principal destino do trigo ilhéu, pois que em lugar cimeiro e reservado
estavam as praças portuguesas do Norte de África. O movimento de trigo açoriano
para elas fazia-se sob o controlo régio por meio de assentistas que em Lisboa
recebiam o contrato de fornecimento e daí enviavam os respectivos navios a carregar
o trigo arrecadado.
Este comércio beneficiava de privilégios estabelecidos por ordens régias, sendo
considerado como prioritário nas transacções cerealíferas açorianas: todo o trato de
trigo no arquipélago, nomeadamente, em S. Miguel e Terceira, deveria fazer-se "sem
prejuízo dos lugares de África". Deste modo no início da colheita procedia-se à
arrecadação do referido trigo, avaliado entre 2.000 e 3.000 moios. Além disso o
contratador ou o procurador tinha a prioridade na compra do cereal, pelo que a livre
saída de trigo só teria lugar após o acautelamento do "saco para África". Mas esta
ordem causava prejuízo aos agricultores, caso tardasse o envio da remessa. A câmara
de Ponta Delgada recomendava em 1644 aos contratadores do dito trigo que fizessem
a compra até Agosto, caso contrário ela não se responsabilizava por quaisquer
dificuldades no cumprimento do contrato. Estas medidas eram o corolário de um
sucedâneo de situações que impossibilitavam o arquipélago de atender aos seus
compromissos e de assegurar o abastecimento interno.
A violência com que a coroa impunha a rota, coibindo o merca dor de executar as
trocas comerciais correntes ou retardando-as; o tom discricionário dos regimentos e
recomendações tendo a desfaçatez de afrontar a requisição dos navios e carros
necessários ao transporte e carregamento do referido trigo. E, por fim, a constante
presença do administrador para o provimento das praças, criaram dificuldades nas
relações de troca no mercado cerealífero açoriano.
O arquipélago estava condenado a manter o cereal sob rigoroso controlo, que
abrangia a produção e comércio. O senhorio (rei, capitão, donatário, terra tenente), o
contratador desde Lisboa controlava todos os circuitos do mercado insular, ditando
as normas que regiam as trocas. Se tivermos em conta as necessidades do consumo
local, o "saco de trigo" para as praças de África e a Madeira, pouco trigo sobejava para
o comércio.
O grande mercador de cereal criou fortuna no provimento das praças norte-
africanas, como contratador, intermediário dos senhorios (como sucede com o Conde
de Vila Franca) ou o recurso ao contrabando e especulação possíveis. Os mais
importantes mercadores locais surgem como representantes dos assentistas. tenha-se
em conta o caso de Manuel Alvares Senra, que foi procurador de Álvaro Fernandes
de Elvas, contratador do fornecimento de Tânger (1636), enquanto Guilherme
Chamberlin representou Pedro Alves Cabral e Manuel da Costa Braga.
De um modo geral os assentistas eram originários do reino e aí recebiam o
regimento régio para concretizar o referido contrato, fretando as caravelas
necessárias ao carregamento do cereal em Ponta Delgada ou em Angra. No século
XVI não há qualquer referência a procuradores ou administradores do dito
provimento. Eles só aparecem a partir de meados do século XVII. Em alguns
momentos o abastecimento fez-se de modo diverso, quer sob a responsabilidade do
feitor régio nos Açores, o provedor e contador da fazenda, quer por iniciativa de
particulares, fora deste sistema.
164. V. RAU, ob.cit., 210-221; Fernando Castelo BRANCO, "O comércio externo de São Tomé no século XVII", in Studia, nº 24, Lisboa,
1960, 83-98.
165.Confronte-se Fernando CASTELO BRANCO,Fontes para a história do antigo ultramar português-II: São Tomé e Príncipe, Lisboa,
1982;Isabel Bettencourt de SÁ-NOGUEIRA e Bernardo de SÁ-NOGUEIRA, " ilha do Príncipe no 1º quartel do século XVI:
administração e comércio", in Congresso Internacional Bartolomeu Dias e sua época. actas, vol.III, Porto, 1989,81-115.
166.Virgínia Rau,Estudos sobre a História do sal português, Lisboa,1984,210-221.
Verde, Madeira e S.Tomé no comércio internacional. A S. Tomé surge com maior
número de navios, isto é 126(88 de açúcar e 38 de carga mista), seguindo-se a Madeira
com 56 embarcações(28 de açúcar e 28 de carga mista) e Cabo Verde(1 de açúcar e 7
de carga mista). O facto mais saliente é a posição assumida pela ilha de S. Tomé com
o comércio de açúcar, distanciando-se da Madeira, que neste momento se encontra
numa fase de decadência. No conjunto da mercadoria mista saída de Cabo Verde
destaque para o algodão e marfim, enquanto em S. Tomé surge o marfim, o algodão,
as madeiras e as especiarias. Note-se ainda que era comum as embarcações
conduziram em simultâneo açúcar ou outras mercadorias dos três arquipélagos, o
que demonstra existir uma rota de ligação entre eles, na ida e no regresso. Por outro
lado assinala-se que muita da mercadoria dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé
chegava ao porto de Antuérpia a partir de Lisboa, o que demonstra a tendência para
este porto centralizar os negócios com as possessões atlânticas. No caso do açúcar de
S. Tomé temos 21 navios com partida de Lisboa.
Ao invés do que sucedia com as Canárias, Cabo Verde e S. Tomé, as ilhas dos
arquipélagos da Madeira e Açores estiveram até ao século dezassete afastadas do
comércio com o continente americano. Restava-lhes aguardar pela chegada das
embarcações daí oriundas e aspirar pelo contrabando ou trocas ocasionais. Note-se
que ao porto do Funchal chegaram também algumas destas. O desvio era
considerado pela coroa como intencional, para aí se fazer o contrabando, pelo que
foram determinadas medidas proibitivas, de pouca aplicação prática.
Os contactos entre a Madeira e o litoral americano desenvolveram-se, após a
quebra da cultura da cana-de-açúcar, com o incremento do comércio do vinho
madeirense. Ambos os produtos estavam, de facto, ligados. A pouca oferta de açúcar
na Madeira e a incessante procura levaram os madeirenses a especular com o açúcar
brasileiro, fazendo-o passar como da Madeira. Conhecida a fraude o monarca exarou
a sua proibição em 1591, alheando-se das reclamações dos munícipes. Mais tarde,
com o abandono definitivo da cultura da cana-de-açúcar, não havia motivo para
impedir este comércio. Somente o sistema de comboios marítimos condicionou, por
algum tempo, a presença madeirense.
A criação em 1649 da Companhia Geral do Estado do Brasil, detentora do
exclusivo comércio para esta área, motivou protestos dos funchalenses e angrenses,
os principais prejudicados com isso, o que levou a coroa a atribuir em 1650 ordem
especial para o envio de duas embarcações do Funchal e três dos Açores com
capacidade para 300 pipas de produtos da terra que seriam depois trocados por
tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde ficou estabelecido que os mesmos não podiam
suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações madeirenses
fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda,
mediante as licenças e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os
mercadores da ilha. Para estes navios havia uma escrituração à parte na alfândega.
Mas o açúcar brasileiro tinha destino diverso. Na Madeira ele era utilizado na
indústria de conservas e casquinha, enquanto nos Açores era reexportado depois
pelos mercadores estrangeiros, nomeadamente franceses, para os portos europeus.
Neste comércio assumiu uma posição privilegiada Diogo Fernandes Branco. Ele
foi em 1676 administrador dos direitos de comboio dos navios que iam ao Brasil, mas
também, activo participante nesse negócio. O mesmo havia estabelecido um
verdadeiro circuito de triangulação para os seus negócios: da Madeira levava vinho
para Angola que trocava por escravos negros, que, por sua vez servia de moda de
troca para adquirir o açúcar. Com o açúcar fabricava-se as conservas que o mesmo
exportava para os portos da Europa do Norte. Ninguém como ele se comprometeu de
corpo inteiro com este liame de circuitos comerciais do Atlântico do século XVII.
Esta situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de
modo algum episódica, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda
metade do século dezassete, pois ela comprova uma das dominantes deste processo:
a ilha como intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho
Mundo. Um dos componentes base deste puzzle é constituído pelo porto do Funchal.
Entretanto novos mercados foram surgindo no espaço americano, nomeadamente
as colónias inglesas das Antilhas e da costa do norte, que se afirmaram como
potenciais espaços consumidores do vinho madeirense e açoriano. O vinho, que até
então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os
novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria.
Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro, Baía vieram juntar-se os de New England,
New York, Pensylvania, Virginia, Maryland, Bermuda, Barbados, Jamaica, Antigua e
Curaçau. No período de 1686 a 1688 das seiscentos e oitenta e oito pipas entradas em
Boston temos duzentos e sessenta e seis da Madeira e quatrocentos e vinte e uma do
Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias
seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do
norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os
seus contactos nas Antilhas inglesas e francesas.
Para a Madeira a correspondência comercial de William Boltom para o período de
1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no
século XVIII.Aqui é evidente a definição de um circuito comercial dominante,
delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. _
As ilhas de Santiago e S. Tomé, mercê da proximidade da costa africana,
afirmaram-se como importantes entrepostos do trato negreiro africano nos séculos
XV a XVII, tendo como principal destino, a partir do século dezasseis, o novo
continente americano. A primeira feitoria dominava a vasta área, conhecida como os
Rios de Guiné, enquanto a segunda estendia-se desde S. Jorge da Mina até Angola,
passando por Axem e Benim. Tal como o referimos o povoamento só foi possível à
custa de facilidades concedidas aos moradores para o comércio nesta costa.
A evolução do trato não foi linear e esteve por muito tempo sujeita às mudanças
conjuntura atlântica. Assim S. Tomé assumiu um lugar relevante no comércio do
Golfo da Guiné até o último quartel do século dezasseis, sendo a crise, a partir de
1578, resultado do desvio das rotas para o litoral africano. No período que decorre até
1650 entraram em S. Tomé 94900 escravos, sendo maior a incidência nos anos de 1501
a 1575. Entretanto na época da união das duas coroas peninsulares o número de
escravos conduzidos a partir de S. Tomé para as Índias de Castela (Cartagena, Vera
Cruz e Margarita) atingiu os 4.828, isto é 20% do total. Os problemas com a economia
açucareira haviam colocado a ilha na dependência do comércio deste produto,
referenciando o escrivão da feitoria em 1551 167 que ele era o principal rendimento da
coroa, pelo que o desvio das rotas contrariava a política de fixação de colonos.
Em Santiago, principal ilha do arquipélago de Cabo Verde e feitoria do comércio
dos escravos dos Rios de Guiné, o comércio foi definido por outro rumo. No começo
ele resultou da oferta das produções locais mas depois, com a abertura de novos
mercados os escravos, foram solicitações externas que o motivaram. Eles passaram a
ser conduzidos, primeiro à Europa e ilhas atlânticas e depois ao Brasil e Antilhas 168 .
Para este último destino o comércio fazia-se sob a forma de contratos entre a coroa e
os mercadores. No período de 1551 a 1640 esta feitoria conduziu às índias de Castela
mais de 5.729 (=23%) de escravos em 146 barcos (=10%), sendo 4.439 apenas nos anos
de 1609 e 1610.
Durante muito tempo o trato, entregue a arrendatários, foi o principal motivo das
trocas comerciais na ilha. Era com ele, trocado por algodão e panos, que se adquiriam
as manufacturas europeias. Todavia os inúmeros entraves postos à circulação dos
produtos deste tráfico, os desvios de mercadores estrangeiros, nacionais e, em
especial dos lançados, vieram a prejudicá-lo em Santiago 169 .
A importância destes mercados no comércio de escravos para o continente
americano ficou demonstrada em finais do século dezasseis, altura em que os povos
estrangeiros se lançaram ao ataque dos principais entrepostos do tráfico negreiro,
com particular relevo para os castelhanos. No caso dos holandeses, que em 1630
ocuparam Pernambuco. Esta atitude era inevitável, pois só assim poderiam conseguir
os escravos necessários para a manutenção da economia açucareira. Daí resultou a
ocupação de S. Jorge da Mina (1622), Angola (1641), os constantes assaltos a S. Tomé,
que levaram à sua invasão de 1641, tendo aí permanecido até 1648.
O senhorio português das ilhas iniciou-se em 1433 com a entrega por D. Duarte ao
infante D. Henrique, na qualidade de administrador da Ordem de Cristo, do governo
temporal e religioso das ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas. De acordo com a
carta de doação o infante recebia o poder de administrar e distribuir as terras, de
forma a torná-las rentáveis. Num segundo momento o infante, na qualidade de
donatário, procedeu à subdelegação de poderes nos três primeiros povoadores --
João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo -- procedendo à partilha
do arquipélago em três capitanias: Machico (1440), Porto Santo (1446) e Funchal
(1450). As datas da não coincidem, havendo quem especule sobre isso. Estamos de
novo perante mais um problema académico que pouco interessa ao debate do tema.
Os primeiros povoadores a quem foi concedida a posse das capitanias, passaram a
chamar-se capitães do donatário. Eles, de acordo com as cartas de doação, eram os
representantes do infante na alçada que lhes foi acometida, exercendo em seu nome a
justiça e administração do património. Como recompensa tinham direito à posse de
terras de sesmarias, privilégios exclusivos -- como a venda do sal e fabrico de sabão,
moinhos, fornos, serras de água -- e ao usufruto da redízima sobre as rendas
estabelecidas no foral henriquino.
A alçada dos capitães estava limitada apenas ao nível da justiça, pois eles não
poderiam suplantar as competências exaradas na carta do senhorio, que lhe
retiravam o direito de apelo e sentença no caso de morte ou "talhamento" de membro.
Todavia o infante ao conceder em 1440 a capitania da parte de Machico a Tristão Vaz
declarava que este lhe pertencia, o que levou D.Afonso V a rectificar na carta de
confirmação da capitania do Funchal a João Gonçalves Zargo, em 25 de Novembro de
1451. Aí o monarca é peremptório: "honde diz na carta do dicto meu tyo que a apelaçom de
morte e talhamento de menbro venha perante elle, queremos que venham perante nos segundo
he conteudo na carta [1433] del Rei meu senhor e padre susso escrito".
Para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe os capitães usufruíram de amplas
prerrogativas nas doações. As condições específicas do povoamento, a distância do
reino assim o exigiam no sentido de uma maior operacionalidade. Note-se que estas
surgem em momentos posteriores, o que prova ser uma exigência da nova realidade,
desfasada do modelo madeirense. São elas ao nível da justiça e prende-se certamente
com a rebeldia de alguns dos vizinhos e, nomeadamente dos escravos. Esta
alargamento dos poderes nos feitos cíveis e crimes deu-se por cartas de 1511 e 1520.
Os atropelos do capitão eram punidos. Neste último caso todas as suas funções eram
delegadas no corregedor, que era em simultâneo como capitão e corregedor. Assim
sucedeu em 1550 a Jorge Pimentel com a presença de um corregedor e da suspensão
do cargo.
A intervenção dos capitães do donatário é, muitas vezes, plenipotenciária,
esquecendo-se que os seus poderes estavam limitados ao estabelecido nas cartas e às
inúmeras restrições que se sucederam noutros diplomas régios. O facto de no início
eles terem sido os principais representantes da soberania nestes espaços criou hábitos
plenipotenciários, que teimaram em deter mesmo quando passaram a estar
confrontados com a presença de novas instituições e funcionários. No caso
madeirense sabe-se que até à morte do infante D. Henrique a figura e presença do
capitão era dominante nos vários aspectos administrativos. Deste modo os
funchalenses, à morte do infante D.Henrique, em 1461 apresentaram ao novo senhor
um rol de reclamações em que clamavam por medidas capazes de frenar o livre-
arbítrio do capitão do Funchal. A afirmação da estrutura de poder municipal foi uma
das respostas mais adequadas à omnipresença do capitão. Mas, esta comunhão de
interesses nem sempre vingou junto do senhorio e, depois, da coroa.
são inúmeras as ocasiões em que o monarca, correspondendo ao apelo dos
capitães ou com o fim de agraciar os seus serviços, estabelece prerrogativas de
reforço da sua alçada. No caso do Funchal vimos a jurisdição ser ampliada em finais
do século XV e princípios do seguinte, momento em que a tendência ia no sentido
inverso: em 1487 o poder de julgar os feitos cíveis foi alargado para os 15.000 reais e
no caso dos escravos foi-lhes atribuída a faculdade de justiçar no corte de orelha
(1509). A primeira medida tornou-se extensiva a todas as capitanias por ordem régia
de 1520. Entretanto em 1509 o capitão do Funchal acumulava o cargo de vedor da
fazenda. E foi precisamente neste período que a coroa interveio no sentido de reforçar
o seu poder, retirando aos capitães algumas faculdades governativas, que passaram a
ser exercidas por novos funcionários: o almoxarife e o corregedor.
Em simultâneo com isto assistiu-se à plena afirmação do município. Ele que
estivera, por muito tempo, subjugado aos interesses do capitão passou a usufruir de
ampla autonomia: ele perdeu a faculdade de presidir às eleições e de confirmar os
funcionários eleitos, revertendo para a coroa e funcionários régios. Durante muito
tempo foi evidente o conflito entre os seus interesses e do município, tendo como
pano de fundo a perda de prerrogativas governamentais. Na ilha de são Miguel os
conflitos foram mais evidentes e perpetuaram-se por mais de dois séculos, sendo
exemplo disso os municípios de Vila Franca do Campo e Ponta Delgada.
A ilha de S. Tomé apresenta uma situação singular. Primeiro os povoadores não
estiveram sujeitos à forma de soberania intermédia, sendo os fruidores das doações,
em simultâneo donatários e capitães. Por outro lado com a presença de um
corregedor, a partir de 1514, o capitäo-donatário (designa-se assim por estar
acometido das funções do donatário e do capitão) viu a jurisdição suspensa, sendo as
suas funções depois exercidas por um capitão, nomeado pela coroa. Isto sucedeu a
partir de 1541. Neste último centralizaram-se todos os poderes judiciais e militares,
sendo apoiado por um ouvidor e um letrado.
O período de união das coroas peninsulares teve reflexos evidentes na figura
institucional dos capitães, sendo exemplo disso as posições assumidas por Rui
Gonçalves da Câmara e Tristão Vaz da Veiga, respectivamente capitães de S. Miguel
e Machico, que foram cometidos de amplos poderes ao serem nomeados
governadores de S. Miguel e Madeira. Esta foi a última expressão plenipotenciária
dos capitães: a sua alçada foi, paulatinamente, reduzida até se manter no usufruto
das rendas e títulos. Perante isto poder-se-á afirmar que a iniciativa do Marquês de
Pombal foi apenas para confirmar uma situação de facto. Desde 1766 as capitanias
deram lugar às alcaidarias-mores, extintas por decreto-lei de 13 de Agosto de 1832.
Esta mudança é justificada no alvará em causa como resultado absentismo de todos
os capitães.
A carta de doação da capitania, para além de regulamentar as regalias e alçadas,
estabelecia o tipo de relações entre senhorio e a capitania. O primeiro era vitalício,
mas devendo ser confirmado pela coroa todas vezes que mudasse de mãos, enquanto
as capitanias eram hereditárias, regendo-se a sucessão pela Lei Mental. O texto das
cartas é taxativo ao enunciar que ela deveria ter lugar "de descendente em
descendente por linha direita masculina". Todavia esta entrega era precária uma vez
que havia necessidade da confirmação régia todas vezes que a coroa e a capitania
mudassem de posse. A 1 de Novembro de 1450 João Gonçalves Zarco recebeu do
infante o domínio da capitania, mas só em 25 de Novembro de 1451 a coroa
confirmou o acto.
As capitanias poderiam ser vendidas, sujeitando-se o comprador a uma
confirmação do senhorio e da coroa: Pedro Correia da Cunha, capitão da ilha
Graciosa, casado com Iseu Perestrelo, filha de Bartolomeu Perestrelo, comprou à
sogra o direito de posse da capitania do Porto Santo, tendo obtido a anuência do
infante em 17 de Maio de 1458; no entanto esta foi depois considerada nula pela coroa
a pedido do herdeiro, Bartolomeu Perestrelo. A compra da capitania da ilha de S.
Miguel por Rui Gonçalves da Câmara foi confirmada pela infanta D. Beatriz em 10 de
Março de 1474, sendo a anuência régia dada em 20 de Maio e 13 de Julho do mesmo
ano.
Tal como o referimos a norma estabelecida para a sucessão determinava a maior
idade e a linha masculina do herdeiro. A prática admitiu algumas excepções,
surgindo mulheres à frente das capitanias. É o caso de D. Branca de Aguiar, filha de
António da Noli, que veio a receber em 8 de Abril de 1497 a posse da capitania da
Ribeira Grande (Santiago), sucedendo ao seu pai, que fora capitão de toda a ilha.
Algo semelhante teve lugar em S. Tomé onde o rei concedeu em 14 de Março de 1486
parte da ilha a Mécia de Paiva. Mas o monarca não violava as normas em vigor, pois
estabelecia que o cargo de capitão deveria ser exercido por aquele que casasse com
ela. A carta régia de confirmação é clara ao afirmar que ele deveria ser de "escolha e
vontade régia". Diferente foi o que sucedeu no Funchal em 1660 em que a morte do
oitavo capitão deixou a capitania sem herdeiro, ficando em poder da sua irmã, D.
Mariana Alencastre. Daqui resultou uma demanda entre vários pretendentes do sexo
masculino, que durou até 1676.
Casos houveram em que a doação era limitada: vitalícia ou por uma e mais vidas.
Por duas vidas poder-se-á testemunhar em 1477 com a entrega do ilhéu do Bugio ao
capitão do Funchal. Por três é conhecido o caso ilha de Maio doada em 1672 a D.
Maria de Menezes, enquanto que a vitalícia aconteceu em 3 de Janeiro de 1505 com a
concessão do gado bravo da ilha de Boavista a Pedro Correia. As duas últimas,
expressas num momento em que havia sido extinto o senhorio e por isso mesmo os
capitães dependiam directamente da coroa, testemunham uma nova fase, definida
por uma maior versatilidade dos usufrutuários.
A evolução do senhorio e capitanias nos Açores, Cabo Verde e S. Tomé atesta o
comportamento seguido pela coroa, que procurou articula-los de acordo com as
especificidades de cada capitania. Deste modo nos Açores estamos perante outra
forma da sua expressão, sendo o prelúdio de uma nova etapa. Aqui ao contrário do
que sucedeu no arquipélago madeirense nem todos as ilhas ficaram sob a alçada do
mesmo donatário. A omnipresença do infante D. Henrique não era tão dominante
como por vezes se pretende afirmar.
A ilha de S. Miguel esteve até 1449 entregue ao infante D. Pedro, permanecendo as
outras, à excepção de Flores e Corvo, em poder do infante D. Henrique. As duas ilhas
mais ocidentais, descobertas por Diogo de Teive e Fernão Teles em 1452, foram
doadas em 1453 a D. Afonso, duque de Barcelos.
O senhorio do infante D.Henrique foi alargado depois a cinco ilhas de Cabo Verde,
que teriam sido descobertas em 1460 por António da Noli, como o postula a doação
régia de 3 de Dezembro. Foi este vasto património que o infante concedeu em 22 de
Agosto de 1460 a D. Fernando, confirmado por alvará régio de 2 de Setembro e 3 de
Dezembro de 1460. As demais ilhas, posteriormente encontradas, mas ainda em vida
do infante D. Henrique, foram integradas no senhorio por carta régia de 19 de
Setembro de 1462.
O descobrimento e ocupação das ilhas do arquipélago de S.Tomé e Príncipe foram
tardios e surgiu numa época em que o senhorio estava já decadente. Deste modo as
ilhas não ficaram associadas ao património da Ordem de Cristo, sendo doadas por
iniciativa régia a particulares. A 24 de Setembro de 1485 a ilha de S. Tomé foi
concedida a João da Paiva, sendo esta limitada a 11 de Janeiro do ano imediato
apenas a metade, ficando a outra em posse da coroa.
João da Paiva, como detentor de S. Tomé, encontra-se numa posição semelhante à
de um donatário um vez que não foi residir nela, mandando em seu lugar João
Pereira, que surge como virtual capitão da ilha. Mas a efectiva ocupação só teve lugar
em 1493 por iniciativa de Álvaro Caminha, nomeado alcaide-mor, com amplos
poderes nas alçadas do cível e crime. As particularidades do processo de ocupação da
ilha levaram a que a coroa concedesse, por cartas de 8 de Dezembro de 1493 e 15 de
Dezembro de 1499, os poderes de sentenciar a pena de morte e mutilação de membro
aos escravos. Estas prerrogativas caducaram por carta de 4 de Janeiro de 1500. Note-
se que a posse da capitania, das terras que Vasco Anes Corte Real ia descobrir, foi
concedida em 17 de Setembro em idênticas condições.
Está ainda por definir a política seguida pelo senhorio e coroa na distribuição das
capitanias criadas nos quatro arquipélagos. Insiste-se no facto de que elas foram
concedidas aos usufrutuários como recompensa pelos serviços prestados ao senhorio
ou rei. Todavia isto não esclarece o porquê de uns receberem uma, duas ilhas ou
apenas parte delas. Se na Madeira isto ficou plenamente esclarecido com a divisão do
território das duas ilhas pelos três iniciais povoadores, o mesmo não se poderá dizer,
por exemplo, dos Açores onde é difícil encontrar explicação para a forma como foram
estabelecidas as capitanias. Primeiro foi Gonçalo Velho a surgir como capitão das
ilhas ou de apenas duas (S. Miguel e Santa Maria), sendo uma delas com a superfície
superior à da Madeira. Depois foi o seu parcelamento, iniciado com a Terceira em
1474 dividida em duas capitanias, entre Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte
Real. O último foi também capitão de S. Jorge (1483). Esta derradeira situação
consideramo-la estranha, uma vez que tem lugar no momento em que S. Miguel, a
maior ilha de todo o arquipélago, é confirmada apenas a um capitão, enquanto esta,
que no início abrangia apenas uma capitania, teve que ser dividida em duas partes,
quando ainda existiam ilhas para entrega, como o Pico, Graciosa, S. Jorge.
Caso idêntico sucedeu em Cabo Verde onde em Santiago foram estabelecidas duas
capitanias, permanecendo as demais por ocupar e sem capitão. Aqui, a exemplo da
Terceira, surgem capitães em idênticas circunstâncias de João Vaz Corte Real:
Rodrigo Afonso foi detentor da capitania de Alcatrazes (1490) e da ilha de Maio,
enquanto Pedro Correia teve a parte de Santiago (1522) e toda a de Boavista (1505).
Como explicar esta diferente atitude na distribuição das capitanias insulares?
Dos quatro arquipélagos em análise sobressai a Madeira, não só pelo facto de ter sido
o primeiro ocupado mas também por esta ter sido efectiva e ordenada: as três
capitanias foram a solução que perdurou. Ao invés nos demais, embora no princípio
a tendência fosse para fazer corresponder a cada ilha um capitão, num segundo
momento a conjuntura foi diversa.
O impacto deste processo nos reinóis favoreceu uma maior presença de criados da
casa do infante D. Henrique ou da coroa. Além disso era cada vez mais numerosa a
multidão de cavaleiros e marinheiros da gesta africana que clamava por uma
recompensa. Perante isto houve necessidade de redefinir a política de entrega das
terras descobertas, de modo a que se pudesse contemplar todos os interessados. Esta
conjuntura ganhou forma a partir da década de sessenta com o governo do infante D.
Fernando. Na Terceira de uma única capitania de Jácome de Bruges fez-se duas, o
que também sucedeu em Santiago e são Tomé. Mesmo assim subsiste uma dúvida:
haveria algum motivo para que a maior ilha do arquipélago açoriano (S.Miguel), com
uma superfície superior à Madeira, continuasse na posse de apenas um capitão?
A única explicação possível deverá estar, segundo o nosso entender, no facto de
ela no princípio ter sido desfavorável à fixação de colonos. Os sismos e os
permanentes fenómenos vulcânicos afugentaram os primeiros colonos, como nos
testemunha Gaspar Frutuoso, pelo que foram poucos os que disputaram a sua posse.
Apenas Rui Gonçalves da Câmara, filho segundo do capitão do Funchal anteviu aí o
seu futuro como capitão. Deste modo poder-se-á concluir que a forma de entrega das
capitanias estava de acordo com as possibilidades que elas ofereciam, capazes de
despertarem a cobiça do numeroso grupo de interessados. Só assim se poderá
compreender a diversidade de opções na distribuição das capitanias: em vinte e
quatro ilhas apenas quatro (Madeira, Terceira, Santiago e S.Tomé) foram
subdivididas, ficando as outras a definir isoladamente (Porto Santo, Santa Maria,
S.Miguel, Flores, Corvo. Graciosa, Fogo, Santo Antão, Príncipe e Ano Bom), em grupo
(Santa Maria/S.Miguel, Flores/Corvo, Faial/Pico, S.Nicolau, S.Vicente, Brava, Sal e
Santa Luzia) ou em parte (Angra/S.Jorge,Alcatrazes /Maio e Boavista).
Em síntese poderemos afirmar que a estrutura institucional que deu forma à
sociedade implantada pelos portugueses nas ilhas, definida como senhorio,
abrangendo a quase totalidade das pertencentes aos arquipélagos da Madeira,
Açores, Cabo Verde, manteve-se até o governo de D. Manuel. Ele foi, em simultâneo,
senhorio e rei o que contribuiu para acabar com a última situação em 1498. A partir
desta data desapareceu o senhorio, forma intermédia de governo, mas mantiveram-se
os capitães, que passaram a responder junto da coroa. Também ficou demonstrado,
quanto ao aspecto formal das capitanias, que não há uniformidade, havendo ilhas na
posse de um capitão que dependiam directamente da coroa e outras subordinadas a
um senhorio. Por outro lado os capitães poderiam ser detentores de uma ou mais
ilhas ou apenas duma parcela delas, como sucedeu na Madeira, Terceira, Graciosa,
Santiago e S.Tomé.
Tal como tivemos oportunidade de afirmar o título de posse da capitania estava
sujeito a inúmeros impedimentos. Em primeiro lugar, era precário devendo ser
confirmado sempre que mudasse o rei. Além disso a sucessão fazia-se
obrigatoriamente pela linha varonil, pelo que a inexistência de tais condições
implicava a sua perda, revertendo a sua posse para a coroa. Foi pela última situação
que muitas capitanias foram extintas ou mudaram de mios. Deste modo torna-se
difícil, sendo impossível, traçar o quadro dos capitães dos donatários das ilhas, a data
das doações e confirmações bem como o período de governo. Apenas as capitanias
do Funchal e da ilha de S.Miguel se mantiveram na posse da mesma família até à sua
extinção com o Marquês de Pombal.
A família dos Câmaras em ambos os casos foi persistente na preservação deste
direito, não obstante os inúmeros contratempos que se sucederam. Em 1656 a do
Funchal esteve em vias de ser extinta pelo facto de João Gonçalves da Câmara morrer
sem deixar filho varão, ficando, excepcionalmente, na posse de D. Mariana de
Lencastre Vasconcelos e Câmara.
O MUNICÍPIO
171 . Fernando Castelo BRANCO, Actas da Câmara de Santo Antonio da ilha de princípe. 1672.1677,Lisboa, 1970.
Na Madeira e Açores este ritmo de actividade era apenas quebrado com o
redobrar da faina dos campos em tempo das colheitas -- cana, cereais, pastel e uvas --,
passando as reuniões a realizarem-se quinzenalmente ou fazia-se uma pausa, por um
período determinado, nos meses de Verão. Por outro lado a leitura das actas revela
que os três primeiros meses do ano eram aqueles de mais intensa actividade.
A ALÇADA
172. Referenciado no foral manuelino de 1515, Monumenta Henricina, XV, 1974, 150-151.
173. Monumenta Missionaria Africana,XIV, 3-7 e 65-73, cartas de 16 de Dezembro e 19 de Maio.
174. Ibidem, II, nº 7, 14-15, regimentos de 2 de Agosto.
175. História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 101, 281-283, 16 de Dezembro de 1517; nº 107, 295-301, 13 Janeiro de 1520.
institucional que fosse porta-voz dos anseios das populações. Deste modo é legítimo
de concluir que os interesses locais estavam à frente dos outros e que a sua acção
incidiu, principalmente, neste âmbito. A isto deverá juntar-se a limitada capacidade
judicial.
De um modo geral podemos considerar que o município nos séculos XVI e XVII
desfrutava de ampla autonomia e de elevada participação das gentes na governança.
Todavia a prática municipal veio a revelar alguns atropelos que levaram a coroa a
limitar a alçada por meio de funcionários régios, como o corregedor. Tendo em conta
a situação criada pelos monarcas filipinos, quando da união das coroas peninsulares
(1580-1640), procuraram cercear os poderes dos municípios portugueses procedendo
a algumas mudanças na estrutura na orgânica.
A intervenção e a alçada dos cargos municipais, porque já definidas nas
ordenações e regimentos régios, não aparecem no código de posturas. Aqui apenas se
estabeleceram normas para serviço dos funcionários municipais, como sucede com os
rendeiros do verde e os almotacéis.
Pelos acórdãos e posturas, insistentemente divulgados em praça pública, sabe-se
do empenho dos vereadores sobre os aspectos do quotidiano das gentes: defesa dos
usos e costumes, da salubridade pública e a manutenção do equilíbrio entre as
actividades económicas. Eis alguns dos domínios preferenciais.
Dos aspectos da justiça, cuja actuação está expressa no número variado de
funcionários -- juiz de fora, juízes pedâneos, alcaide, carcereiro, quadrilheiro,
meirinho da serra e cidade, guardas mores --, é necessário referir a limitada alçada,
resumindo-se apenas aos feitos cíveis, referidos nas posturas.
AS POSTURAS MUNICIPAIS
Definida que foi a estrutura de poder municipal importa agora saber como
intervinham na sociedade em que se inserem. Mas isto só se torna possível quando se
encontrem disponíveis os livros dos acordos . No caso das ilhas persistem inúmeras
lacunas que impossibilitam um estudo exaustivo. As mais antigas de vereações que
se conhece, ainda que incompleta, são a da Câmara do Funchal, que se inicia em 1472.
Por isso, e tendo em conta que a maioria das deliberações são conjunturais e de que
só as posturas, porque perdulárias, poderiam expressar melhor a situação, optamos
por analisar as últimas disponíveis apenas para o Funchal, Angra, Ponta Delgada,
Ribeira Grande e Vila Franca do Campo 176 .
As posturas, que surgiram como normas reguladoras dos múltiplos aspectos do
quotidiano do burgo, são o testemunho mais evidente da mundividência do
município. De acordo com as ordens e regimentos concedidos ao burgo, o município
estava incumbido de atribuições legislativas particulares, resultantes, nomeadamente,
da necessidade de adaptar as ordens gerais do reino às particularidades do espaço a
que seriam aplicadas: por um lado existiam as ordens gerais, estabelecidas pela
. Alberto VIEIRA, "As posturas municipais da Madeira e Açores nos séculos XV a XVII", in III Colóquio Internacional sobre os Açores
176
AS INSTITUIÇÕES RÉGIAS
177 . Damião PERES, O Problema dos governadores gerais da ilha da Madeira, Porto, 1925.
situações perpetuaram-se após a restauração da independência em 1640, ficando nos
Açores como governador do Castelo de S. Filipe e das ilhas dos Açores 178 .
Também em Cabo Verde e S. Tomé a presença da autoridade régia teve início com
a intervenção do corregedor: em 1514 no segundo e 1517 no primeiro. Em S. Tomé ele
surgiu desde o início como o funcionário supremo, retirando alçada aos donatários.
Em Cabo Verde a mudança foi paulatina: no começo adquiriu a função de
funcionário supremo, sendo conhecido em 1558 como o ouvidor letrado. Em 1569 no
arquipélago de Cabo Verde a tendência era para a concentração de poderes num só
funcionário, surgindo aí o desembargador António Velho Tinoco acumulando as
funções de provedor da fazenda, dos defuntos e resíduos, corregedor e capitão da
cidade da Ribeira Grande 179 . Finalmente em 1587 surge o cargo de capitäo-general,
governador e provedor da fazenda Real, a quem competia a superintência de toda a
actividade governativa das ilhas e Rios de Guiné.
A presença de uma figura com alçada absoluta foi uma necessidade sentida desde
o primeiro momento do povoamento das ilhas. No caso de S. Tomé a mesma tornou-
se mais evidente mercê do reduzido número de europeus e dos permanentes
conflitos que subsistiram entre as autoridades locais. A actividade dos donatários,
corregedores e capitães foi pautada por inúmeros atropelos. A falta de um poder
central e forte terá condicionado alguns dos alvoroços que tiveram lugar em Cabo
Verde entre 1545 e 1555.
. A.T. MOTA, " A primeira visita de um governador de Cabo Verde à Guiné (António Velho Tinoco c. 1575)", in Ultramar, VII, nº 4,
179
1969.
direitos, o segundo foi vocacionado para arrecadar os direitos lançados sobre a
colheita de açúcar, o quarto, que depois passou a um quinto. E finalmente em 1508
deu-se uma nova forma ao sistema fiscal na Madeira com o estabelecimento da
Provedoria da Fazenda.
Dos direitos arrecadados, de início pelo senhorio, depois pela coroa, temos o
dízimo sobre os rendimentos fixos ou qualquer valia, sendo uns de usufruto do
donatário e outros da Ordem de Cristo. A esta primeira fiscalidade sobrepõe-se outra
assente nas principais produções com valor comercial. Dos cereais era o dízimo das
colheitas, enquanto do vinho era uma determinada quantidade daquele que fosse
posto à venda nas tabernas, que ficou conhecido como a imposição do vinho(1485),
cujo valor ia na totalidade para as obras de enobrecimento da vila do Funchal.
Os direitos sobre a produção do açúcar, a fatia mais avultada da fiscalidade,
sofreram várias alterações. No início, uma vez que só o infante D. Henrique tinha
direito a fabrica-lo todos os produtores deixavam no seu engenho metade do açúcar.
depois com a autorização para o uso de engenhos particulares este direito passou
para um terço e depois em 1467 para um quarto sobre a colheita.
A arrecadação deste direito fazia-se a partir da avaliação antecipada da colheita.
Esta estava a cargo do almoxarife e dois estimadores escolhidos pela vereação. Mas
este sistema gerou inúmeras críticas dos produtores pelo que em 1507 se procedeu a
um estudo sobre a melhor forma de lançar e arrecadar o referido direito. Como
corolário disso tivemos uma nova estrutura fiscal, com a criação da Provedoria da
Fazenda(1508) e um novo imposto a vigorarem a partir de 1516. O imposto passou
para um quinto da produção e a sua recolha a ser feita por uma nova estrutura
institucional, o almoxarifado do açúcar, subdividido em diversas comarcas. Assim
tivemos dois almoxarifados (Funchal e Machico) e quatro comarcas (Funchal, Ribeira
Brava, Ponta de Sol e Calheta). Esta situação perdurou até 1522 altura em que este
almoxarifado se juntou ao da alfândega formando uma estrutura única.
Nos séculos XV e XVI os direitos lançados sobre o açúcar foram a principal fonte
de rendimento da coroa na ilha, utilizados para o custear das despesas com a
manutenção das praças africanas e da casa real. Este elevado quantitativo de açúcar
era comercializado pela coroa por meio de contratos específicos com os mercadores,
na sua maioria genoveses.
Nos Açores sucedeu algo semelhante à Madeira, tendo-se por isso copiado os
alvarás e regimentos régios que corporizavam a estrutura institucional. Os forais do
almoxarifado do Funchal de 1499 e 1515, foram aplicados sem reservas nas ilhas de S.
Miguel, Terceira e certamente nas demais. O traslado em Ponta Delgada foi lavrado,
respectivamente em 1526 e 1557. Deste modo o sistema tributário implantado pelo
senhorio e coroa nos Açores foi idêntico ao madeirense, variando apenas a incidência
sobre os produtos disponíveis.
Aqui foi maior a atenção atribuída ao cereal, gado e pastel, os componentes mais
destacados da economia do arquipélago. Por informação de Gaspar Frutuoso, sabe-se
que na ilha de S.Miguel na década de oitenta do século XVI a coroa arrecadava 76500
cruzados, sendo 52% dos direitos do pastel e 26% do dízimo do trigo.
Em Cabo Verde o apuramento da estrutura institucional esboçou-se já em finais do
século XV, ficando a vila da Ribeira Grande em Santiago como principal centro
administrativo onde ficou instalado, desde 1471, o almoxarifado das ilhas. Depois o
progresso sócio-económico do arquipélago levou à criação de um almoxarifado para
cada capitania, sendo o da ilha do Fogo de 1507. Por outro lado a importância que o
arquipélago assumia em face do comércio de escravos da vizinha costa dos Rios da
Guiné conduziu a coroa a estabelecer uma feitoria, com sede em Santiago, com o
objectivo de superintender este trato. Aqui, ao contrário do que havia sucedido com
as ilhas da Madeira e Açores, optou-se pela necessária centralização das estruturas
institucionais, instaladas na capital da ilha de Santiago.
Tudo isto resultou da experiência descentralizadora madeirense e açoriana, que
ficou como a solução mais adequada aos objectivos da coroa. É de salientar que
também na Madeira e Açores a tendência para a macrocefalia foi um facto.
Enquanto na Madeira o principal centro administrativo se localizou no Funchal, nos
Açores hesitou-se várias vezes entre Ponta Delgada e Angra. A concretização desta
medida em Cabo Verde foi fácil, pois estávamos perante uma ilha dominante em
termos sócio-económicos, uma vez que as demais ficaram pelo aproveitamento do
gado. O mesmo não se poderá dizer da Madeira e, mais propriamente, dos Açores.
Idêntica foi a política levada a cabo em terras cabo-verdianas quanto à justiça,
fazendo-se assentar morada para o contador dos feitos e inquiridor e corregedor na
mesma ilha. O regimento que regulava a alçada do corregedor, datado de 1520 180 , era
igual para todo o espaço insular e a única diferença surgiu nos Açores onde se
criaram dois lugares, um em Angra e outro em Ponta Delgada.
Para Sul em S. Tomé e Príncipe, deparamo-nos com uma estrutura fiscal e judicial
de acordo com a que foi implantada em Cabo Verde. No primeiro domínio é de
salientar a existência em S. Tomé de uma feitoria, idêntica à de Santiago, com a
superintendência do trato da costa africana vizinha. Para regulamentar as iniciativas
e privilégios dos moradores foram concedidas duas cartas de foral, uma em 1485 e
outra em 1524.
AS RECEITAS
180 . História Geral de Cabo Verde - corpo documental, nº 109, 305, 306.
tributo madeirense: em 1518 as receitas madeirenses decrescem em 64% enquanto as
açorianas e das ilhas da Guiné sobem em flecha. O movimento ascendente do
arquipélago açoriano continuará nos anos imediatos. A aproximação da Madeira dos
valores dos réditos açorianos só terá lugar na década de oitenta do século XVI e,
depois, a partir de 1619. No caso de S. Tomé e Cabo Verde, somente em 1526
suplantaram a Madeira e os Açores e só C.Verde volta a recuperar em 1620.
Como complemento disto temos para o século dezassete a avaliação global dos
rendimentos portuários. Os quatro arquipélagos juntos representavam 67% desta
receita sendo os valores divididos do seguinte modo:
Estes dados permitem-nos afirmar o mesmo que o escritor seiscentista, Luís Mendes
de Vasconcelos:
"As ilhas povoaram-se de uma vez, e não estão, como a Índia, consumindo homens
continuadamente, e delas nos provemos de trigo, por onde antes benefício que dano nos faz
a sua povoação, acrescentando-nos terras fertilíssimas e lavradores que as cultivam;
dão-nos pastel tinta boa para tingir panos, açúcar e outras cousas necessárias para a
vida, ainda que de todas nos aproveitamos mal 181 ".
181 . "Diálogo do sítio de Lisboa" in Antologia dos Economistas Portugueses, ed. António Sérgio, 1924, 87-88.
A IGREJA NAS ILHAS
OS BISPADOS
182. Pe. Fernão GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os padres da companhia de Jesus (...), 3 volumes, Coimbra/Lisboa, 1930-
1942.
faziam parte, a costa africana vizinha. Da de S. Tomé foi desmembrada a última área,
que deu origem em 1596 ao novo bispado de S. Salvador do Congo.
Entretanto em 31 de Janeiro de 1533 a diocese do Funchal foi elevada à categoria
de metropolitana e primaz, englobando "a Madeira e Porto Santo, as ilhas Desertas e
Selvagens, aquela parte continental de África, que entesta com a diocese de Safi[m] e
bem assim as terras do Brasil, tanto as já descobertas, como as que se vierem a
descobrir". Mas esta foi uma situação passageira. Além disso a bula papal não foi
expedida do Vaticano, por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da existência
real do arcebispado do Funchal. Em 1551 o papa Júlio III revoga esta situação
passando o Funchal para simples bispado sufragâneo de Lisboa, que passará a
assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto a de Goa preencherá
idênticas funções para as terras orientais. A justificação apresentada pelo papa é
expressiva da mudança operada na geografia económica do espaço atlântico:
183 . Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, 84.
subordinação portuguesa à coroa de Castela. Primeiro tivemos em S. Tomé nessas
funções o bispo D.Frei Francisco de Vilanova(1590-1602), secundado por D. Frei
Jerónimo de Quintanilha (1611-1614) e D.Frei Pedro da Cunha Lobos (1614-1621).
Depois foi na Madeira D. Frei Lourenço de Távora, que exerceu o cargo de
governador general no período de 8 de Abril de 1614 a 17 de Dezembro do ano
seguinte. E, finalmente, D.Frei Lourenço da Gama(1627-1646) em Cabo Verde.
MISSIONAÇÃO
A REFORMA E A CONTRA-REFORMA
. Ibidem, nº 159, 459-461, 20 de fevereiro de 1560; nº 39, 94-95, 6 de Abril de 1604; Fernão Guerreiro, ob. cit., III, 415.
187
. Monumenta Missionária Aficana, III, nº 142, 492-495, 11 de Novembro de 1595; nº 163, 548-556, 16 de Julho de 1597; vol. V, nº 208,
188
AS CONSTITUIÇÕES SINODAIS
. Maria Fernanda ENES, As visitas pastorais da matriz de São Sebastião de Ponta Delgada (1614-1739), Angra do heroísmo, 1983;
189
Eugénio dos SANTOS, "A sociedade madeirense na época moderna. Alguns "indicadores", in Actas do I Colóquio Internacional de
História da Madeira, vol. II, Funchal, 1989, 1212-1225.
As consequências do concílio de Trento são evidentes na estrutura religiosa das
ilhas. Quanto ao património do clero criaram-se as condições necessárias ao seu
magistério com o acrescentamento das côngruas e ordinárias. Para os Açores elas
ficaram estabelecidas pelos alvarás de 1563, 1569 e 1591, enquanto na Madeira
tivemos os de 1572 e 1598 190 . Tendo em conta a importância das constituições
sinodais para a definição da religiosidade apresentaremos uma breve análise das
existentes, apenas para as dioceses de Angra (1559) e Funchal (1578, 1602).
Numa análise de conteúdo verificam-se inúmeras semelhanças, o que prova haver
uma origem comum. Na realidade os textos baseavam-se num formulário comum: as
de Lisboa, aprovadas no sínodo de 25 de Agosto de 1536. Facto peculiar sucede com o
vicariato de Tomar, que após a criação da diocese do Funchal se manteve como
"nullius diocesis", mas regendo-se por um texto próprio aprovado no sínodo de 18 a
22 de Junho de 1554. No preâmbulo é referido, a exemplo das constituições de Angra
de 1559, a origem num texto anterior do Funchal. Deste modo poder-se-á afirmar que
as de D. Jerónimo Barreto (1578) não foram as primeiras estabelecidas para o bispado,
havendo umas anteriores que se perderam. Fernando Augusto da Silva 191 refere-nos,
a propósito, que o arcebispo D. Martinho de Portugal fez umas que serviram de regra
ao governo do bispado do Funchal. Para António de Vasconcellos 192 elas foram
estabelecidas por D. Diogo Pinheiro, que serviu simultaneamente de bispo do
Funchal e vigário de Tomar.
Confrontadas as sinodais de Angra (1559) com as do Funchal (1578) verifica-se que
a intervenção das normativas tridentinas foi pouco significativa, incidindo apenas
nos aspectos doutrinários, mas com pouco valor para o seu articulado. Facto evidente
de que nas ilhas a prática cultual do clero e leigo, ainda que a nível teórico, não estava
fora do bom caminho.
A doutrina expressa nas constituições pode ser dividida em cinco domínios: os
sacramentos, o ritual religioso, o clero, a administração do património e da justiça,
pecados e desvios. Enquanto os dois primeiros se manteve quase sem mudança, de
acordo com as contingências da conjuntura e das novas dúvidas que ela gera, os
demais adaptaram-se a novas conjunturas. E a fundamental mudança teve lugar após
o Concílio de Trento, como forma de o adequar às referidas normativas.
O concílio intervinha no sentido de manter uma certa uniformidade no ritual
religioso, quer ao nível da Santa Missa, quer da administração dos sacramentos.
Antes reinava a indisciplina o que gerava por vezes escândalos, particularmente no
caso do casamento: eram inúmeros os casamentos clandestinos e consanguíneos. Os
aspectos doutrinários incidem, preferencialmente, sobre o baptismo, a confissão, a
comunhão e o matrimónio.
As normativas tridentinas estabeleciam a necessidade de uniformizar do ritual dos
sacramentos e por isso encontramos as mesmas ordens nas constituições, ainda que
expressas de forma diferente. Mas aqui e acolá subsistem algumas peculiaridades.
190. Arquivo dos Açores, vol. IV, 184-192; Álvaro Rodrigues de Azevedo, "Anotações", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 536-566.
191. Subsídios para a História da diocese do Funchal, Funchal, 1946, 98.
192. "Nota Cronolígoco-bibliographica das constituições diocesanas portuguesas até hoje impressas", in O instituto, Coimbra, Vol. 58,
1911, 494.
Por exemplo: nos Açores insiste-se no ensino da doutrina e no baptismo e casamento
dos infiéis vindos da Guiné, Índias e Brasil, enquanto na Madeira, D. Luís Figueiredo
de Lemos estabelecia um capítulo especial sobre os escravos. Isto demonstra o
empenho da Igreja na evangelização dos infiéis e a importância assumida pela
população escrava em ambos os arquipélagos. Depois de estabelecidas estas normas
para a administração dos sacramentos o empenho passou para o clero, procurando
definir-se condutas de vida "honesta" e exemplar. Confrontadas as constituições post-
tridentinas com as anteriores nota-se uma maior incidência nas primeiras quanto ao
sacramento da ordem. Aqui recomendava-se a maior formação do clero, que derivou
na necessidade de criar os seminários.
A par disso as constituições e o próprio concílio insistem na vida regrada do clero,
de modo a evitarem-se escândalos. Para isso recomendavam-se certos preceitos no
modo de vestir e normas de sociabilidade, coibindo-os de actividades indecorosas e
do convívio e coabitação com concubinas. O último foi também motivo de alguns
capítulos das ordenações régias. Mesmo assim a vida desregrada de algum clero
continuou a ser manifesta, pelo que em 1608 o papa Paulo IV ordenou uma maior
intervenção do Santo Ofício junto dos prevaricadores. Uma consequência disto foi a
prisão em 1618 do padre Bento de Lira, vigário de S. Vicente (Madeira). Nas visitas
feitas por inquisidores do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa à Madeira e Açores
surgem outros membros da igreja, condenados por solicitação, blasfémias,
desobediência, sodomia e crítica dos dogmas do catolicismo.
O combate ao absentismo do clero foi outra preocupação: o pároco e cura
passaram a residir obrigatoriamente na sede da paróquia e a cumprir as obrigações.
Estas surgem apenas nas sinodais post-tridentinas : Funchal (1585, 1597). Mas para
que isso acontecesse era necessário garantir ao clero meios de subsistência adequados
e capazes de o manter afastado das tarefas mundanas e residente nas paróquias.
As múltiplas recomendações quanto ao ritual religioso revelavam-se idênticas nos
diversos bispados a partir do Concílio de Trento. Desde então ficou determinada a
existência de um único missal, breviário e catecismo. A par disso definiram-se regras
sobre aspectos formais das missas, ofícios, horas e procissões. Quanto às últimas
estabelecia-se, no caso da Madeira, a obrigatoriedade do Corpus Christi, Visitaçäo de
Nossa Senhora, Ladainhas, Sexta-Feira Santa e Santiago Menor, padroeiro da cidade;
nos Açores mantinham-se as duas primeiras e adicionava-se a do Anjo Custódio.
Ao nível da estrutura institucional sobressaem os oficiais de justiça eclesiástica
(promotor, notário, ouvidor e chanceler) com as respectivas competências. O encargo
fora cometido ao ouvidor, exigindo nos Açores um para cada ilha, exceptuando-se a
Terceira com dois, uma para cada capitania, enquanto na Madeira era de quatro,
sendo um para Arguim, outro para o Porto Santo e os restantes para a Madeira, um
em cada capitania.
A sobrevivência do clero dependia dos dízimos arrecadados, dos benefícios e da
administração dos bens que pertenciam à igreja e que, de um modo geral, lhe haviam
sido dados por disposições testamentárias. Em todas as constituições existem normas
sobre isso.
A arrecadação dos dízimos eclesiásticos estava tutelada pelas instituições régias.
De acordo com as sinodais de Angra este direito da igreja deveria ser entendido como
uma forma de retribuir a Deus por lhes ter facultado estes produtos, pelo que a
sonegação era "pecado muito grave e perigoso". Na década de oitenta do século dezasseis
o valor das rendas arrecadadas nos Açores era de 76500 cruzados, sendo metade
apenas da ilha de S. Miguel. Pela mesma sabe-se também que o dízimo dava para
pagar todas as despesas das ordinárias do clero e fábricas das diversas paróquias.
A justiça eclesiástica era um domínio importante na vida da diocese. Ela tem lugar
de relevo na vida do bispado e paróquias dele dependentes. Para isso a igreja criou
uma estrutura judiciária, definindo a alçada do ouvidor eclesiástico, do bispo e do
papa. O clero, o visitador em serviço faziam parte da estrutura, estando todos
obrigados a declarar os pecados públicos e a clamar por justiça.
A igreja dispunha de estrutura judiciária própria em cada bispado . não obstante
tal alçada abranger alguns domínios da sociedade era junto do clero que se definia
com maior rigor a sua intervenção, uma vez que a imunidade eclesiástica não
permitia a presença nos tribunais seculares.
não foi fácil delimitar a área jurisdicional da justiça ao nível secular e religioso, pois
inúmeras normas estatuídas pela igreja repetem-se no articulado das leis e
ordenações régias, confrontando-se uma alçada comum. O "código das Siete Partidas",
um dos principais fundamentos das leis peninsulares, define logo na primeira partida
isto ao dedica-la por inteiro ao estado "eclesiástico". Aí ficaram lavradas inúmeras
regras que depois passaram para as ordenações régias portuguesas e constituições
sinodais. Na compilação das leis, feita no reinado D. Afonso V, um capítulo do livro
segundo é sobre o "trautar das leix, que fallam acerca das igrejas, e mosteiros e clerigos
sagraes, e religiosos" 193 , foram nele incorporadas todas as determinações acordadas
entre a Santa Sé e os monarcas antecedentes.
Todos os que incorriam em "pecados" graves, a pena mais severa, que lhes podia ser
aplicada, era a excomunhão. A respectiva carta era passada pelo bispo, havendo no
entanto penas que só poderiam ser atribuídas pelo papa, conforme o estabelecido no
final. A excomunhão foi a arma mais poderosa da justiça eclesiástica, sendo definida
nas constituições como "a mayor que ha na igreja de Deos", privando os réus "da
participação dos sacramentos, dos sufrágios della, e da comunicação dos fiéis christäos" 194 .
Deste modo a Igreja apostou nas consequências disso para fazer cumprir as normas
de conduta estabelecidas e reprimir os refractários.
A excomunhão em si representava apenas a exclusão do réu do convívio dos
cristãos na igreja e do acesso aos actos litúrgicos. Mas na realidade as suas
consequências sociais eram muito mais funestas, pois conduziam a uma coacção
social violenta e era nisso que a igreja apostava, divulgando publicamente todos os
excomungados por meio de editais à porta da igreja. As penas mais brandas eram
estabelecidas em dinheiro ou em penitências.
OS JUDEUS E A INQUISIÇÄO
Os aferidores mais importantes da religiosidade dos leigos e clero são sem dúvida
os testemunhos exarados, primeiro nos diversos livros das visitações e depois nos
processos perante o Santo Ofício. Ele exercia a sua actividade através do tribunal de
Lisboa, a quem pertencia todo o espaço atlântico. A acção do tribunal nestas paragens
não era permanente e fazia-se através de visitadores aí enviados. Na Madeira e nos
Açores realizaram-se três visitas: em 1575 por Marcos Teixeira, em 1591-93 por
Jerónimo Teixeira Cabral e em 1618-19 por Francisco Cardoso Tornéo. Para Cabo
Verde e S. Tomé estabeleceu-se idêntica missão em 1591, 1618 e 1626 mas os
visitadores nunca pisaram as ilhas, detendo-se apenas no Brasil ou em Angola 195 .
Nas ilhas é manifesta uma certa conivência das autoridades com a presença da
comunidade judaica, o que poderá resultar das facilidades iniciais à sua fixação.
Lembremo-nos que o povoamento de S. Tomé se fez com crianças de origem
hebraica. Deste modo o tribunal interveio apenas nas primeiras ilhas levando a
tribunal alguns judeus, mas poucos, a avaliar pela comunidade aí existentes e pela
sua permanência. No primeiro quartel do século dezassete do rol de judeus fintados
temos 58 na Madeira e 61 nos Açores. Entretanto no intervalo de tempo entre as
visitas o tribunal fazia-se representar pelo bispo, clero, reitores do Colégio dos
Jesuítas, "familiares" e comissários do Santo Ofício.
Nos quatro arquipélagos a presença da comunidade judaica era evidente. Os
judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados, desde o início, ao sistema de
trocas nas ilhas, sendo eles os principais animadores do relacionamento e comércio a
longa distância: na Madeira e Açores foi a via da Europa do Norte, enquanto em
Cabo Verde e S.Tomé a América.
A criação do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que avançassem no
Atlântico: primeiro nas ilhas e depois no Brasil. Tal diáspora fez-se de acordo com os
vectores da economia atlântica pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua
rede de negócios. O açúcar foi sem dúvida um dos principais móbeis da sua
actividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. A par disso o relacionamento destes
espaços com os portos nórdicos conduziu a uma maior permeabilidade às ideias
protestantes, o que gerou inúmeras cuidados por parte do clero e do Santo Ofício. A
incidência do comércio dos Açores e da Madeira no açúcar, pastel e vinho conduziu
ao estabelecimento de contactos assíduos com os portos da Flandres e Inglaterra, que
195. José António SALVADOR, Os Cristãos-Novos e o comércio no atlântico meridional, S. Paulo, 1978; idem, Os magnatas do tráfico
196. Francisco Pereira DRUMOND, Apontamentos Topográficos, Políticos Civis e eclesiásticos para a História das nove ilhas dos Açores,
ASSISTÊNCIA
Outra das vertentes que pautou a intervenção da Igreja nas ilhas foi a prestação de
serviços de assistência aos cristãos e cativos. Para isso existia um conjunto variado de
instituições, que foram criadas de acordo com as necessidades dos diversos núcleos
populacionais. As cidades portuárias ficaram servidas de hospitais, que davam o
necessário apoio aos marinheiros e demais gentes de passagem. A par disso os
problemas resultantes da fome, mendicidade e a peste levaram à criação de inúmeras
instituições de beneficência, por iniciativa de particulares, que depois passaram à
alçada da igreja.
Na Madeira refere-se o empenho de Zargo em fazer construir em 1454 um
hospital junto à capela de S. Paulo, mas não sabemos se o seu desejo foi por diante. A
isto juntam-se referências a outros dois hospitais de iniciativa de particulares, sendo
um na Rua de Boa Viagem. Entretanto tivemos também as mercearias, sendo a do
Funchal fundada por Constança Rodrigues, mulher de João Gonçalves Zarco, em
1484. A partir de 1485 com a bula de Inocêncio VIII in iunctum nobis a estrutura
assistencial ganha uma nova forma. De acordo com esse espírito a coroa criou em
1498 o hospital de Lisboa maior que veio a congregar todos os menores aí existentes.
O mesmo espírito foi seguido para todas as vilas do reino, por autorização papal de
23 de Outubro de 1501, expresso na carta régia de 4 de Maio de 1507. De acordo com
as ordenações régias cabia aos bispos a sua superintência. É neste contexto que
surgem idênticas instituições nas ilhas. Na Madeira tivemos, primeiro, no Funchal
(1507) e, depois, em Machico, Calheta, Santa Cruz e Porto Santo o hospital da
Misericórdia (28). Nos Açores o hospital criou-se nas principais cidades (Ponta
Delgada e Angra) e vilas. Facto singular sucede na Terceira e em S. Miguel onde
tivemos a referida confraria nas localidades de Vila Nova e Maia, respectivamente.
Ainda a cidade de Angra pela importância do seu porto nas relações transatlânticas
viu reforçada a importância do seu hospital e da rede de assistência social aos
marinheiros e náufragos, com especial relevo para a acção dos jesuítas. Aqui, a
exemplo do sucedido em Santa Cruz na Madeira, a presença de importantes famílias
e avultados legados permitiram a sua criação. Função idêntica ao angrense era
atribuída ao hospital da Ribeira Grande em Santiago.
Das ilhas, dos seus habitantes e forasteiros deixámos aqui alguns indícios do
quotidiano exaurido através do rastro deixado na documentação disponível. Deste
passado, feito de duras canseiras, sabe-se da existência de uma identidade própria,
não obstante a excessiva vinculação à Europa ou ao litoral africano. Esta
mundividência insular ganhou a primeira expressão na Madeira e, depois, avançou
com processo expansionista ao longo do oceano onde os portugueses encontraram
novas ilhas. Por isso a Madeira foi o ponto de partida e em certas ocasiões o único
testemunho de tão fulgurante processo histórico, mercê das inúmeras lacunas
documentais que persistem nos demais arquipélagos. Também a compreensão deste
fenómeno não seria possível sem a inevitável referência e aprofundamento da
situação madeirense. Foi isso que fizemos nas páginas anteriores.
O confronto do devir histórico nos arquipélagos em questão levou-nos a concluir
por uma unidade arquipelágica, constituída na diversidade dos espaços. As soluções
para os problemas surgem em cadeia e têm como referência os casos anteriores. Deste
modo o conhecimento do passado histórico das ilhas deve suplantar o espaço dela ou
do arquipélago a que pertence e enquadrar-se no Mundo Insular, em particular, e
Atlântico, em geral.
Nas páginas anteriores procuramos levar o leitor por essa via, definindo um
périplo insular onde fosse possível reencontrar os aventureiros e marinheiros que
revelaram ao Ocidente estas paragens paradisíacas ou infernais, e testemunhar os
primeiros passos da sociedade, economia e instituições insulares. Desta última
caracterização emergem os aspectos comuns e divergentes que definem a função de
cada arquipélago ou ilha. não houve unicidade neste caso, mas um fio condutor que
definiu para os três arquipélagos uma aproximação do devir histórico. Em todos foi
evidente a dependência dos espaços continentais europeu, africano e americano. Por
outro lado a maior ou menor proximidade deles definiu a dimensão de dependência,
sendo prova disso as ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S.Tomé em relação ao
continente africano.
Acresce ainda que as similitudes e conexões são definidas pelo posicionamento
geográfico dos arquipélagos. Deste modo elas são mais evidentes entre a Madeira e
os Açores e entre Cabo Verde e S. Tomé, do que entre os dois grupos. Perante isto,
que espelha por vezes um evoluir divergente do processo histórico, as aproximações
poderão ser falaciosas e causadoras de erros. Foi contra isso que lutámos,
estabelecendo uma análise cautelar em termos de forma e conteúdo. E esperámos que
o leitor tenha sido conduzido por esta via de conhecimento desta unidade construída
na diversidade.
BIBLIOGRAFIA
O estudo das ilhas atlânticas tem merecido neste século uma atenção
preferencial no âmbito da História do Atlântico. Primeiro foram os
investigadores europeus ou americanos como Fernand Braudel (1949), Pierre
Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro (1960) e Charles Verlinden (1960) e T. B.
Duncan (1970) a referenciar a importância do espaço insular no contexto da
expansão europeia. Depois surgiu a Historiografia nacional a reforçar este
interesse e a equacioná-lo nas dinâmicas da expansão peninsular. são de maior
importância os textos de Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino Magalhâes
Godinho (1963).
Tudo isto condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas décadas,
concorrendo para a necessária abertura às novas teorias e orientações do
conhecimento histórico. Neste contexto, as décadas de setenta e oitenta,
demarcam-se como momentos importantes no progresso da investigação e saber
históricos. Para isso terá contribuindo o aparecimento de estruturas institucionais
e de iniciativas afins, activadoras de um verdadeiro salto qualitativo.
O movimento editorial da Historiografia insular é desigual, dependendo da
existência de historiadores e de instituições capazes de incentivar a produção e
divulgação dos estudos. A similitude do processo vivencial das ilhas atlânticas,
aliada à sua permeabilidade às perspectivas históricas peninsulares definiram
uma certa unidade na forma e conteúdo da Historiografia insular. Gaspar
Frutuoso, em finais do século XVI, com as Saudades da Terra expressa, de forma
modelar, a visão de conjunto do mundo insular, aproximando os arquipélagos da
Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde. Esta situação, ímpar na historiografia,
só será retomada a partir da década de quarenta da presente centúria pelos
historiadores europeus e só agora pelos insulares. A consciência histórica da
unidade desta múltipla realidade arquipelágica foi definida de modo preciso
pela expressão braudeliana de Mediterrâneo Atlântico, que abrange os três
arquipélagos postados à entrada do oceano.
No culminar deste processo, as exigências académicas com a expansão das
universidades e do saber histórico, condicionaram um avanço qualitativo da
historiografia, a partir da década de quarenta do presente século. Todavia ela é
desigual, o que provoca também uma diversidade de níveis de conhecimento da
realidade para cada um dos arquipélagos. Deste modo foi mais assídua e
volumosa a produção histórica nos arquipélagos dos Açores e Canárias do que
na Madeira, S. Tomé e Cabo Verde. Isso a deve-se, fundamentalmente, à falta de
instituições culturais e universitárias para tal vocacionadas. Por outro lado
importa salientar o valor assumido pelas publicações periódicas e a possibilidade
de encontro dos investigadores, através de colóquios, que a década de oitenta foi
fértil.
A historiografia insulana, permeável às origens europeias, surge na alvorada
da revolução do conhecimento geográfico como a expressão pioneira desta
novidade e, ao mesmo tempo, como uma necessidade institucional de
justificativa de um processo de afirmação da soberania peninsular. Deste modo o
período que medeia entre os séculos iniciais do reconhecimento do oceano é
marcado por uma escrita mais europeia do que insular, próxima da crónica e da
literatura de viagens, onde as ideias se espraiam.
Os factos históricos e as impressões de viagem são perpetuados na escrita com
um uso posterior, de acordo com as exigências de cada geração e época. Esta
prosa histórica está impregnada de um ideal romântico e serve-se de
perspectivas e formas positivistas para justificar e fundamentar certos objectivos
políticos imanentes da conjuntura política em que emergiram.
As publicações periódicas assumem particular importância na pesquisa
histórica uma vez que é a partir delas que o público interessado toma
conhecimento dos progressos que se vão conseguindo. Para a Madeira todo o
mérito vai para duas: o Arquivo Histórico da Madeira (19 volumes editados de
1931-1990), iniciada por Cabral do Nascimento e que José Pereira da Costa
transformou em boletim do então Arquivo Distrital do Funchal; Das Artes e Da
História da Madeira (1948-1977), órgão da Sociedade de Concertos da Madeira,
revista publicada por iniciativa de Luís Peter Clode. Na actualidade merecem
referência as revistas Atlântico (1985-1989) e Islenha (desde 1987).
Nos Açores, ontem como hoje, proliferam as publicações periódicas, muitas
delas de índole geral mas com forte incidência na temática histórica. são elas a
Insulana (1944), do Instituto Cultural de Ponta Delgada; Boletim do Núcleo
Cultural da Horta (1950) e o Boletim da Comissão Reguladora do Comércio de Cereais
dos Açores (1945-1960). Uma referência especial para as publicações que apostam
no conhecimento histórico: Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (1944) e
Arquipélago -ciências humanas, revista da Universidade dos Açores (1977), que
desde 1985 publica números em separado sobre a História.
Para as ilhas de Cabo Verde e S. Tomé o panorama não é idêntico, resumindo-
se muitas vezes a sua valorização às publicações periódicas nacionais com
incidência colonial, como sejam: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (desde
1875), Studia (1958) e Ultramar (1961); com carácter específico merece ser
referenciado o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e para Cabo Verde as
Revistas Claridade (S. Vicente-1957), Cabo Verde (1950) e, mais recentemente,
Raízes (Praia-1978). Uma referência especial para os estudos publicados por
António Carreira e A. Teixeira da Mota que muito contribuíram para revelar a
parte recôndita da História destas ilhas.
Também os colóquios foram importantes na valorização e incentivo ao
conhecimento histórico. Esta é uma nova dimensão que emergiu no final da
centúria. Primeiro foram os colóquios realizados em Las Palmas desde 1977, que
ficaram conhecidos como Colóquio de História Canário-Americana, que terá em
1992 a sua décima realização, depois idêntica iniciativa nos Açores (1983, 1987 e
1990) e Madeira (1986, 1989). Das três realizações açorianas e das duas
madeirenses ficaram algumas centenas de comunicações reunidas em vários
volumes e a certeza de que a investigação histórica iniciou uma nova era.
10. DIAS, Urbano de Mendonça, A vida de nossos avós, 8 volumes, Vila Franca do
Campo, 1944-1948. Tentativa de recriação da vida dos antepassados com o
recurso a documentos que o autor também publica. Esta obra e outras publicadas
do mesmo autor são indispensáveis para a compreensão e estudo da história
micaelense.
11. DUNCAN, T.B., Atlantic islands. Madeira, the Azores, and the Cape Verdes in
seventeenth - century. Commerce and navigation, Chicago, 1972. O primeiro estudo,
feito de forma compartimentada, sobre os arquipélagos portugueses (Madeira,
Açores e Cabo Verde) no século dezassete.
14. GIL, Maria Olímpia da Rocha, O arquipélago dos Açores no século XVII. Aspectos
sócio económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979. Uma das primeiras tentativas
de sistematização da sociedade e economia açorianas num período crucial da
história deste arquipélago. Peca apenas pelo facto de privilegiar os núcleos
documentais terceirenses em detrimento das outras ilhas.
17. MACEDO, António L. da Silveira, História das quatro ilhas que formam distrito
da Horta, Horta, 3 volumes, 1871 (reedição em 1981). Estudo monográfico sobre
as ilhas do Faial e Pico.
20. SANTOS, João Marinho, Os Açores nos séculos XV e XVI, 2 volumes, Ponta
Delgada, 1989. A primeira tentativa de análise global do processo histórico
açoriano peca porque a sua abordagem se restringir apenas à documentação
publicada e às fontes narrativas.
21. SILVA, Fernando Augusto da, Elucidário Madeirense, 4 volumes, Funchal, 1984
(4ª edição). Dicionário histórico-enciclopédico sobre o arquipélago da Madeira: a
sua leitura deverá ser feita com algumas reservas, pois enferma de certos erros
na cronologia.
4. DUTRA, Jos (-/1495). Flamengo que veio para Portugal no tempo de D. João II
tendo sido moço da Casa Real, casou com Beatriz de Macedo, dama do Paço,
filha de Fernão de Macedo de Évora. Em 1466 recebeu o encargo de povoar a ilha
do Faial, confirmada por carta de 5 de Março de 1491 a capitania desta e da do
Pico. Na viagem de ocupação fez-se acompanhar de com patrícios seus,
residentes em Lisboa, ou que, no entender de Gaspar Frutuoso, foi buscar à
Flandres. Foi da iniciativa desse primeiro grupo de povoadores que se procedeu
ao arranque definitivo do povoamento e valorização económica das ilhas do
grupo central, sendo a cultura do pastel o principal incentivo.
13. VAZ, Tristão. Primeiro escudeiro, depois cavaleiro da casa do infante. Foram
as suas façanhas no Norte de África que lhe valeram esse último título e o
simples nome de Tristão ou Tristão da ilha. Por sua iniciativa armou uma
caravela para o reconhecimento e povoamento da Madeira, tendo depois
recebido em recompensa a posse da capitania de metade da ilha, conhecida
como de Machico, por carta de 4 de Maio de 1440.
Casou no reino com D. Branca Teixeira, de que resultaram quatro filhos e oito
filhas: o varão, Tristão Teixeira ficou conhecido pela sua arte de galantear as
damas, o que lhe valeu o epíteto de Tristão das Damas.
Pai e filho atribuíram pouca importância à administração da capitania,
empenhando-se mais nas façanhas bélicas e nas diversões de carácter militar. Um
e outro ficaram conhecidos pela prepotência do seu governo, sendo célebre o
caso do castigo infligido a Tristão Barradas, que o levou à perda da capitania e ao
degredo, perdoado por carta de 17 de Fevereiro de 1452. Depois disto abandonou
a capitania e passou a viver no Algarve, onde viria a morrer em Silves, com mais
de oitenta anos.
14. VELHO, Gonçalo. Cavaleiro, navegador da casa do infante D. Henrique,
freire professo da Ordem de Cristo e comendador de Almourol. De acordo com
os cronistas foi ele quem descobriu as ilhas açorianas a partir de 1431, e quem
iniciou a sua ocupação a partir de Santa Maria. não se lhe conhece qualquer carta
de doação feita pelo infante, apenas se sabe por alguns documentos que foi
capitão das ilhas açorianas (em carta do infante de 1460). Por outro lado numa
carta de 1443 é referenciado que estas ilhas haviam sido cedidas de prestamo ao
mesmo, para numa carta de perdão de 1455 referir-se as "ilhas de q[ue] Gonçalo
Velho tem a cargo". Perante isto será legítimo de concluir que a inicial tarefa de
ocupar as ilhas, com o lançamento de gado em Santa Maria e S. Miguel, desde
1439, foi feita por sua iniciativa, que nunca terá pisado o solo açoriano. A sua
morte a posse das capitanias de Santa Maria e S. Miguel ficou em poder do
sobrinho, João Soares de Albergaria e Sousa.