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ÉTICA A NICÔMACO

Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim


da versão inglesa de W. D. Ross
LIVRO I
49

1094. Admite-se geralmente que toda arte economia é a riqueza. Mas quando tais
e toda investigação, assim como toda artes se subordinam a uma única facul-
ação e toda escolha, têm em mira um dade - assim como a selaria e as ou- 10
bem qualquer; e por isso foi dito, com tras artes que se ocupam com os apres-
muito acerto, que o bem é aquilo a que tos dos cavalos se incluem na arte da
todas as coisas tendem. Mas observa- equitação, e esta, juntamente com
se entre os fins uma certa diferença: al- todas as ações militares, na estratégia,
guns são atividades, outros são produ- há outras artes que também se incluem
tos distintos das atividades que os em terceiras - , em todas elas os fms
produzem. Onde existem fms distintos das artes fundamentais devem ser pre-
das açôes, são eles por natureza mais feridos a todos os fms subordinados,
excelentes do que estas. porque estes últimos são procurados a 15
Ora, como são muitas as açôes, bem dos primeiros. Não faz diferença
artes e ciências, muitos são também os que os fms das ações sejam as próprias
seus fms: o fim da arte médica é a atividades ou algo distinto destas,
saúde, o da construção naval é um como ocorre com as ciências que aca-
navio, o da estratégia é a vitória e o da bamos de mencionar.

2
Se, pois, para as coisas que fazemos apenas, o que seja ele e de qual das
existe um fim que desejamos por ele ciências ou faculdades constitui o obje-
mesmo e tudo o mais é desejado no to. Ninguém duvidará de que o seu es-
interesse desse fim; e se é verdade que tudo pertença à arte mais prestigiosa e
nem toda coisa desejamos com vistas que mais verdadeiramente se pode cha-
20 em outra (porque, então, o processo se mar a arte mestra. Ora, a política mos-
repetiria ao infmito, e inútil e vão seria tra ser dessa natureza, pois é ela que
o nosso desejar), evidentemente tal fim determina quais as ciências que devem
será o bem, ou antes, o sumo bem.
Mas não terá o seu conhecimento, ser estudadas num Estado, quais são lO94b

porventura, grande influência sobre a as que cada cidadão deve aprender, e


nossa vida? Semelhantes a arqueiros até que ponto; e vemos que até as
que têm um alvo certo para a sua pon- faculdades tidas em maior apreço,
25 taria, não alcançaremos mais facil- como a estratégia, a economia e a retó-
mente aquilo que nos cumpre alcan- rica, estão sujeitas a ela. como a
çar? Se assim é, esforcemo-nos por política utiliza as demais ciências e,
determinar, ainda que em linhas gerais por outro lado, legisla sobre o que 5
50 ARISTÓTELES

devemos e o que não devemos fazer, a preservar. Embora valha bem a pena
finalidade dessa ciência deve abranger atingir esse fim para um indivíduo só, é
as das outras, de modo que essa finali- mais belo e mais divino alcançá-lo
dade será o bem humano. Com efeito, para uma nação ou para as cidades-Es- lO
ainda que tal fim seja o mesmo tanto tados. Tais são, por conseguinte, os
para o indivíduo como para o Estado, fins visados pela nossa investigação,
o deste último parece ser algo maior e pois que isso pertence à ciência polí-
mais completo, quer a atingir, quer a tica numa das acepções do termo.

Nossa discussão será adequada se raciocínio da parte de um


tiver tanta clareza quanto comportá o matemático do que exigir provas cien-
assunto, pois não se deve exigir a pre- tíficas de um retórico.
cisão em todos os raciocínios Ora, cada qual julga bem as coisas
igual, assim como não se deve buscá-la que conhece, e dessas coisas é ele bom
nos produtos de todas as artes juiz. Assim, o homem que foi instruído
cas. Ora, as açôes belas e justas, que a a respeito de um assunto é bom juiz 1095.

15 ciência política .Investiga, admitem nesse assunto, e o homem que recebeu


instrução sobre todas as coisas é bom
'grande variedade e flutuações de opi-
juiz em geral. Por isso, um jovem não é
nião, de forma que se pode considerá-
bom ouvinte de preleções sobre a ciên-
las como existindo por convenção ape- cia política. Com efeito, ele não tem
nas, e não por natureza. E em tomo experiência dos fatos da vida, e é em
dos bens há uma flutuação semelhante, torno destes que giram as nossas
pelo fato de serem prejudiciais a mui- discussões; além disso, como tende a
tos: houve, por exemplo, quem pere- seguir as suas paixões, tal estudo lhe 5
cesse devido à sua riqueza, e outros será vão e improfícuo, pois o fim que
por causa da sua coragem. se tem em.vista não é o conhecimento,
Ao tratar, pois, de tais assuntos, e mas a ação. 'E não faz diferença que
partindo de tais premissas, devemos seja jovem em anos ou no caráter; o
contentar-nos em indicar a verdade defeito não depende da idade, mas do
20 aproximadamente e em linhas gerais; e modo de viver e de seguir um após
ao falar de coisas que são verdadeiras outro cada objetivo que lhe depara a
apenas em sua maior parte e com base paixão. A tais pessoas, como aos lO

em premissas da mesma espécie, só incontinentes, a ciência não traz pro-


poderemos tirar conclusões da mesma veito algum; mas aos que desejam e
natureza. E é dentro do mesmo espírito agem de acordo com um princípio
que cada proposição deverá ser recebi- racional o conhecimento desses assun-
da, pois é próprio do homem culto bus- tos fará grande vantagem.
25 car a precisão, em cada gênero de coi- Sirvam, pois, de prefácio estas ob-
sas, apenas na medida que a admite servações sobre o estudante, a espécie
a natureza do assunto. Evidentemente, de tratamento a ser esperado e o pro-
não seria menos insensato aceitar um pósito da investigação.
ÉTICA A NICÔMACO - I 51

4
Retomemos a nossa investigação e Platão havia levantado esta questão,
J5 procuremos determinar, à luz deste perguntando, como costumava fazer:
fato de que todo conhecimento e todo "Nosso caminho parte dos primeiros
trabalho visa a algum bem, quais afir- princípios ou se dirige para eles?" Há
mamos ser os objetivos da ciência polí- aí uma diferença, como há, num está-
tica e qual é o mais alto de todos os dio, entre a reta que vai dos juízes ao
bens que se podem alcançar pela ação. ponto de retomo e o caminho de volta.
Verbalmente, quase todos estão de Com efeito, embora devamos começar I095b
acordo, pois tanto o vulgo como os ho- pelo que é conhecido, os objetos de
mens de cultura superior dizem ser conhecimento o são em dois sentidos
esse fim a felicidade e identificam o diferentes: alguns para nós, outros na
bem viver e o bem agir como o ser acepção absoluta da palavra. É de pre-
20 feliz. Diferem, porém, quanto ao que sumir, pois, que devamos começar
seja a felicidade, e o vulgo não o con- pelas coisas que nos são conhecidas, a
cebe do mesmo modo que os sábios. nós. Eis aí por que, a fim de ouvir
Os primeiros pensam que seja alguma inteligentemente as preleções sobre o
coisa simples e óbvia, como o prazer, a que é nobre e justo, e em geral sobre 5
riqueza ou as honras, muito embora temas de ciência política, é preciso ter
discordem entre si; e não raro o sido educado nos bons hábitos. Por-
mesmo homem a identifica com dife- quanto o fato é o ponto de partida, e se
rentes coisas, com a saúde quando está for suficientemente claro para o ouvin-
doente, e com a riqueza quando é te, não haverá necessidade de explicar
25 pobre. Cônscios da sua própria igno- por que é assim; e o homem que foi
rância, não obstante, admiram aqueles bem educado já possui esses pontos de
que proclamam algum grande ideal partida ou pode adquiri-los com facili-
inacessível à sua compreensão. Ora, dade. Quanto àquele que nem os pos-
alguns têm pensado que, à parte esses sui, nem é capaz de adquiri-los, que
numerosos bens, existe um outro que é ouça as palavras de Hesíodo:
auto-subsistente e também é causa da
bondade de todos os demais. Seria tal- Õtimo é aquele que de si mesmo lO
vez infrutífero examinar todas as opi- [conhece todas as coisas;
niões que têm sido sustentadas a esse Bom, o que escuta os conselhos
respeito; basta considerar as mais [dos homens judiciosos.
difundidas ou aquelas que parecem ser Mas o que por si não pensa, nem
defensáveis. [acolhe a sabedoria alheia,
30 Não percamos de vista, porém, que Esse é, em verdade, uma criatura
há uma diferença entre os argumentos [inútil' .
que procedem dos primeiros princípios
e os que se voltam para eles. O próprio , Trabalhos e Dias. 293 ss. (N. do E.)

5
Voltemos, porém, ao ponto em que A julgar pela vida que os homens
havia começado esta digressão. levam em geral, a maioria deles, e os
52 ARISTÓTELES

homens de tipo mais vulgar, parecem sua virtude. Está claro, pois, que para 30
15 (não sem um çerto fundamento) identi- eles, ao menos, a virtude é mais exce-
ficar o bem ou a felicidade com o pra- lente. Poder-se-ia mesmo supor que a
zer, e por isso amam a vida dos gozos. virtude, e não a honra, é a fmalidade
Pode-se dizer, com efeito, que existem da vida política. Mas também ela pare-
três tipos principais de vida: a que aca- ce ser de certo modo incompleta, por-
que pode acontecer que seja virtuoso
bamos de mencionar, a vida política e
quem está dormindo, quem leva uma
a contemplativa. A grande maioria dos
vida inteira de inatividade, e, mais
homens se mostram em tudo iguais a ainda, é ela compatível com os maiores 1096 a
20 escravos, preferindo uma vida bestial; sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo
mas encontram certa justificação para quem queira sustentar a tese a todo
pensar assim no fato de muitas pessoas custo, ninguém jamais considerará
altamente colocadas partilharem os feliz um homem que vive de tal
gostos de Sardanapalo". maneira.
A consideração dos tipos principais Quanto a isto, basta, pois o assunto
de vida mostra que as pessoas de gran- tem sido suficientemente tratado 5
de refinamento e índole ativa identi- mesmo nas discussões correntes. A ter-
ficam a felicidade com a honra; pois a ceira vida é a contemplativa, que
honra é, em suma, a fmalidade da vida examinaremos mais tarde 3 •
política. No entanto, afigura-se dema- Quanto à vida consagrada ao
siado superficial para ser aquela que ganho, é uma vida forçada, e a riqueza
buscamos, visto que depende mais de não é evidentemente o bem que procu
quem a confere que de quem a recebe, ramos: é algo de útil, nada mais, e
25 enquanto o bem nos parece ser algo ambicionado no interesse de outra
próprio de um homem e que dificil- coisa. E assim, antes deveriam ser
mente lhe poderia ser arrebatado. incluídos entre os fins os que mencio-
Dir-se-ia, além disso, que os homens namos acima, porquanto são amados
buscam a honra para convencerem-se por si mesmos. Mas é evidente que
a si mesmos de que são bons. Como nem mesmo esses são fins; e contudo,
quer que seja, é pelos indivíduos de muitos argumentos têm sido desperdi- 10
grande sabedoria prática que procu- çados em favor deles. Deixamos, pois,
ram ser honrados, e entre os que os este assunto.
conhecem e, ainda mais, em razão da
3 1177a 12-1178a8; 1178a22-1179a32.(N.
2 Era um rei mítico da Assíria. (N. do E.) doT.)

6
Seria melhor, talvez, considerar o mais ajuizados dirão que é preferível e
bem universal e discutir a fundo o que que é mesmo nosso dever destruir o
se entende por isso, embora tal investi- que mais de perto nos toca a fim de
gação nos seja dificultada pela amiza- salvaguardar a verdade, especialmente J5
de que nos une àqueles que introdu- . por sermos filósofos ou amantes da
ziram as Formas 4. No entanto, os sabedoria; porque, embora ambos nos
sejam caros, a piedade exige que hon-
4 Outros traduzem por: Teoria das Idéias. (N. do remos a verdade acima de nossos
E.) amigos.
ÉTICA A NICÔMACO 53

Os defensores dessa doutrina não ticular a definição homem é a


postularam Formas 5 de classes dentro mesma? na medida em que 1096 b
das quais reconhecessem prioridade e forem "homem", não diferirão em
posterioridade (e por essa razão não coisa alguma. E, assim sendo, tam-
sustentaram a existência de uma pouco diferirão o "bem em si" e os
Forma 6 a abranger todos os números). bens particulares na medida em que
Ora, o termo "bem" é usado tanto na forem "bem". E, por outro lado, o
categoria de substância como na de "bem em si" não será mais "bem" pelo
qualidade e na de relação, e o que exis- fato de ser eterno, assim como aquilo
20 te por si mesmo, isto é, a substância, é que dura muito tempo não é mais'
anterior por natureza ao relativo (este, branco do que aquilo que perece no es- 5
de fato, é como uma derivação e um paço de um dia.
acidente do ser); de modo que não Os pitagóricos parecem fazer uma
pode haver uma Idéia comum por cima concepção mais plausível do bem
de todos esses bens. quando colocam o "um" na coluna dos
Além disso, como a palavra "bem" bens; e esta opinião, se não nos enga-.
tem tantos sentidos quantos "ser" namos, foi adotada por Espeusipo.
(visto que é predicada tanto na catego- Mas deixemos esses assuntos para
ria de substância, como de Deus e da serem discutidos noutra ocasião 7. Po-
25 razão, quanto na de qualidade, isto é, der-se-â objetar ao que acabamos de
das virtudes; na de quantidade, isto é, dizer apontando que (os platónicos)
daquilo que é moderado; na de rela- não falam de todos os bens, e que os
ção, isto é, do útil; na de tempo, isto é, bens buscados e amados por si mes- /0

da oportunidade apropriada; na de mos são chamados bons em referência


espaço, isto é, do lugar apropriado, a uma Formaúnica, enquanto os que
etc.), está claro que o bem não pode ser de certo modo tendem a produzir ou a
algo único e universalmente presente, preservar estes, ou a afastar os seus
pois se assim fosse não poderia ser pre- opostos, são chamados bons em refe-
dicado em todas as categorias, mas rência a estes e num sentido subsidiá-
somente numa. rio. É evidente, pois, que falamos dos
Ainda mais: como das coisas que bens em dois sentidos: uns devem ser
correspondem a uma Idéia a ciência é bens em si mesmos; e os outros, em
30 uma SÓ, haveria uma única ciência de relação aos primeiros.
todos os bens. Mas o fato é que as , pois, as coisas bo-as em
ciências são muitas, mesmo das coisas si mesmas das coisas úteis, e vejamos /5
que se incluem numa só categoria: da se as primeiras são chamadas boas em
oportunidade, por exemplo, pois que a referência a uma Idéia única. Que
oportunidade na guerra é estudada espécie de bens chamaríamos bens em
pela estratégia e na saúde pela medici- si mesmos? Serão aqueles que busca-
na, enquanto a moderação nos alimen- mos mesmo quando isolados dos ou-
tos é estudada por' esta última, e nos tros, como a inteligência, a visão e cer-
exercícios pela ciência da ginástica. E tos prazeres e honras? Estes, embora
alguém poderia fazer esta pergunta: também possamos procurá-los tendo
que entendem eles, afinal, por esse "em em vista outra coisa, seriam colocados
35 si" de cada coisa, já que para o entre os bens em si mesmos.
"homem em si" e um homem par-

7 Cf. Metofisica, 986 a 22-26; 1028 b 21-24;


5 Ou Idéias. (N. do E.) b 30 1073 a 3; 1091 a 29 1091 b 3; 1091 b 13
6 Ou Idéia. (N. do E.) 1092 a 17. (N. do T.)
54 ARISTÓTELES

20 Ou não haverá nada de bom em si claro que ele não poderia ser realizado
mesmo senão a Idéia do bem? Nesse nem alcançado pelo homem; mas o
caso, a se esvaziará de todo que nós buscamos aqui é algo de
sentido. Mas, se as coisas que indica- atingível.
mos também são boas em si mesmas, o Alguém, no entanto, poderá pensar 35
conceito do bem terá de ser idêntico que seja vantajoso reconhecê-lo com a
em todas elas, assim como o da bran- mira nos bens que são atingíveis e
cura é idêntico na neve e no alvaiade. realizáveis; porquanto, dispondo dele 1097 a
Mas quanto à honra, à sabedoria e ao como de uma espécie de padrão,
prazer, no que se refere à sua bondade, conheceremos melhor os bens que real-
25 os conceitos são diversos e distintos. O mente nos aproveitam; e, conhecendo-
bem, por conseguinte, não é uma espé- os, estaremos em condições de alcan-
cie de elemento comum que corres- çá-los. Este argumento tem um certo ar
ponda a uma só Idéia. de plausibilidade, mas parece entrar
Mas que entendemos, então, pelo em choque com o procedimento adota-
bem? Não será, por certo, como uma do nas ciências; porque todas elas, em- 5
dessas coisas que só por casualidade bora visem a algum bem e procurem
têm o mesmo nome. Serão os bens uma suprir a sua falta, deixam de lado o
só coisa por derivarem de um só bem, conhecimento do bem. Entretanto, não
ou para ele contribuírem, ou antes é provável que todos os expoentes das
serão um só por analogia? Inegavel- artes ignorem e nem sequer desejem
mente, o que a visão é para o corpo a conhecer auxílio tão valioso. Não se
razão é para a alma, e da mesma compreende, por outro lado, a vanta-
forma em outros casos. Mas talvez seja gem que possa trazer a um tecelão ou a
preferível, por ora, deixarmos de lado um carpinteiro esse conhecimento do
30 esses assuntos, visto que a precisão "bem em si" no que toca à sua arte,ou /0
perfeita no tocante a eles compete mais. que o homem que tenha a
propriamente a um outro ramo da Idéia em si venha a ser, por isso
filosofia 8 • mesmo, melhor médico ou general.
O mesmo se poderia dizer no que se Porque o médico nem sequer parece
refere à Idéia: mesmo ainda que exista estudar a saúde desse ponto de vista,
algum bem único que seja universal- mas sim a saúde do homem, ou talvez
mente predicável dos bens ou capaz de seja mais exato dizer a saúde de um
existência separada e independente, é indivíduo particular, pois é aos indiví-
duos que ele cura. Mas quanto a isso,
8 Cf. Metoflsica, IV, 2. (N. do T.) basta.

7
/5 Voltemos novamente ao bem que resse se fazem todas as outras coisas.
estamos procurando e indaguemos o Na medicina é a saúde, na estratégia a
que é ele, pois não se afigura igual nas vitória, na arquitetura uma casa, em 20
distintas ações e artes; é diferente na qualquer outra esfera uma coisa dife-
medicina, na estratégia, e em todas rente, e em todas as ações e propósitos
demais artes do mesmo modo. Que é, é ele a finalidade; pois é tendo-o em
pois, o bem de cada uma delas? vista que os homens realizam o resto.
Evidentemente, aquilo em cujo inte- Por conseguinte, se existe uma finali-
ÉTICA A NICÔMACO - I 55

dade para tudo que fazemos, essa será Considerado sob o ângulo da auto-
o bem realizável mediante a açâo; e, se suficiência, o raciocínio parece chegar
há mais de uma, serão os bens realizá- ao mesmo resultado, porque o bem
veis através dela. absoluto é considerado como auto-su-
Vemos agora que o argumento, ficiente. Ora, por auto-suficiente não
tomando por um atalho diferente, che- entendemos aquilo que é suficiente
gou ao mesmo ponto. Mas procuremos para um homem só, para aquele que
expressar isto com mais clareza ainda. leva uma vida solitária, mas também /0
25 Já que, evidentemente, os fins são vá- para os pais, os filhos, a esposa, e em
rios e nós escolhemos alguns dentre geral para os amigos e concidadãos,
eles (como a riqueza, as flautas'' e os visto que o homem nasceu para a cida-
instrumentos em geral), segue-se que dania. Mas é necessário traçar aqui um
nem todos os fins são absolutos; mas o limite, porque, estendermos os nos-
sumo bem é claramente algo de abso- sos requisitos aos antepassados, aos
luto. Portanto, se só existe um fim descendentes e aos amigos dos amigos,
absoluto, será o que estamos procu- teremos uma série infinita.
rando; e, se existe mais de um, o mais Examinaremos esta questão, porém,
30 absoluto de todos será o que busca- cm outro lugar' o; por ora definimos a
mos. auto-suficiência como sendo aquilo
Ora, nós chamamos aquilo que que, em si mesmo, toma a vida desejá- /5

rece ser buscado por si mesmo mais vel e carente de nada. E como tal
absoluto do que aquilo que merece ser entendemós a felicidade, consideran-
buscado com vistas em outra coisa, e do-a, além disso, a mais desejável de
aquilo que nunca é desejável no inte- todas as coisas, sem contá-la como um
resse de outra coisa mais absoluto do bem entre outros. Se assim fizéssemos,
que as coisas desejáveis tanto em si é evidente que ela se tomaria mais
mesmas como no interesse de uma ter- desejável pela adição do menor bem
ceira; por isso chamamos de absoluto que fosse, pois o que é acrescentado se
e incondicional aquilo que é sempre torna um excesso de bens, e dos bens é 20

desejável em si mesmo e nunca no inte- sempre o maior o mais desejável. A


resse de outra coisa. felicidade é, portanto, algo absoluto e
Ora, esse é o conceito que preemi- auto-suficiente, sendo também a finali-
1097 b nentemente fazemos da felicidade. É dade da ação,
ela procurada sempre por si mesma e Mas dizer que a felicidade é o sumo
·nunca com vistas em outra coisa, ao bem talvez pareça banalidade, e
passo que à honra, ao prazer, à razão e falta ainda explicar mais claramente o
a todas as virtudes nós de fato escolhe- que ela seja. Tal explicação não ofere-
mos por si mesmos (pois, ainda que ceria grande dificuldade seipudéssemos
nada resultasse daí, continuaríamos a determinar primeiro a função do
escolher cada um deles); mas também homem. Pois, assim como para um
os escolhemos no interesse da felici- flautista, um escultor ou um pintor, e
5 dade, pensando que a posse deles nos em geral para todas as coisas que têm
tomará felizes. A felicidade, todavia, uma função ou atividade, considera-se
ninguém a escolhe tendo em vista que o bem e o "bem feito" residem na
algum destes, nem, em geral, qualquer função, o mesmo ocorreria com o
coisa que não seja ela própria. homem se ele tivesse uma função.

9 Cf. Platão, Eutidemo, 289. (N. do T.) , o I, 10-11; IX, 10. (N. do T.)
56 ARISTÓTELES

Dar-se-à o caso, então, de que o bom homem é uma boa e nobre reali-
carpinteiro e o curtidor tenham certas zação das mesmas; e se qualquer ação 15

funções e atividades, e o homem não é bem realizada quando está de acordo


30 tenha nenhuma? Terá ele nascido sem com a excelência que lhe é própria; se
função? Ou, assim como o tolho, a realmente assim é], o bem do homem
mão, o pé e em geral cada parte do nos aparece como uma atividade da
corpo têm evidentemente uma função alma em consonância com a virtude, e,
própria, poderemos que o se há mais de uma virtude, com a me-
homem, do mesmo modo, tem uma lhor e mais completa.
função à parte de todas essas? Qual Mas é preciso ajuntar "numa vida
poderá ser ela? completa". Porquanto uma andorinha
A vida parece ser comum até às pró- não faz verão, nem um dia tampouco;
prias plantas, mas agora estamos pro- e da mesma forma um dia, ou um
curando o que é peculiar ao homem. breve espaço de tempo, não faz um
Excluamos, portanto, a vida de nutri- homem feliz e venturoso.
1098 a ção e crescimento. A seguir há uma Que isto sirva um delinea- 20
vida de percepção, mas essa também mento geral do bem, pois presumivel-
parece ser comum ao cavalo, ao boi e a mente é necessário esboçá-lo primeiro
todos os animais. Resta, pois, a vida de maneira tosca, para mais tarde pre-
ativa do elemento que tem um princí- cisar os detalhes. Mas, a bem dizer,
pio racional; desta, uma parte tem tal qualquer um é capaz de preencher e
princípio no sentido de ser-lhe obedien- articular o que em princípio foi bem
te, e a outra no sentido de possuí-lo e delineado; e também o tempo parece
5 de exercer o pensamento. E, como a ser um bom descobridor e colaborador
"vida do elemento racional" também nessa espécie de trabalho. A tal fato se
tem dois significados, devemos esclare- devem os progressos das artes, pois 25
cer aqui que nos referimos a vida no qualquer um pode acrescentar o que
sentido de atividade; pois esta parece falta.
ser a acepção própria do termo.
Ora, se a-função do homem é uma Devemos igualmente recordar o que
atividade da alma que segue ou que se disse antes" e não buscar a preci-
implica um princípio racional, e se são em todas as coisas por igual, mas,
dizemos que "um tal-e-tal" e "um bom em cada classe de coisas, apenas a pre-
tal-e-tal" têm uma função que é a cisão que o assunto comportar e que
mesma em espécie (por exemplo, um for apropriada à investigação. Porque
tocador de lira e um bom tocador um carpinteiro e um geômetra investi-
10 lira, e assim em todos os casos, sem gam de diferentes modos o ângulo reto.
maiores discriminações, sendo acres- O primeiro o faz na medida em que o
centada ao da função a eminên- ângulo reto é útil ao seu trabalho, 30

cia com respeito à bondade pois a enquanto o segundo indaga o que ou


função de um tocador de lira é tocar que espécie de coisa ele é; pois o geô-
lira, e a de um bom tocador de lira é metra é como que um espectador da
fazê-lo bem); se realmente assim é [e verdade. Nós outros devemos proceder
afirmamos ser a função do homem do modo em todos os outros
uma certa espécie de vida, e esta vida assuntos, para que a nossa tarefa prin-
uma atividade ações da alma que cipal não fique subordinada a questões
implicam um princípio racional; e
acrescentamos que a função de um 11 1094 b ))-27. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔMACO - I 57

1098b de menor monta. E tampouco devemos hábito, e outros ainda de diferentes


reclamar a causa em todos os assuntos maneiras. Mas a cada conjunto de
por igual. Em alguns casos basta que o princípios devemos investigar da ma- 5
fato esteja bem estabelecido, como su- neira natural e esforçar-nos para ex-
cede com os primeiros princípios: o pressá-los com precisão, pois que eles
fato é a coisa primária ou' primeiro têm grande influência sobre o que se
princípio. segue. Diz-se, com efeito, que o come-
Ora, dos primeiros princípios desco- ço é mais que metade do todo, e muitas
brimos alguns pela indução, outros das questões que formulamos são acla-
pela percepção, outros como que por radas por ele.

8
/0 Devemos considerá-lo, no entanto, car na felicidade também parecem per-
não só à luz da nossa conclusão e das tencer todas à definiçâo que
nossas premissas, mas também do que dela. Com efeito, alguns identificam a
a seu respeito se costuma dizer; pois felicidade com a virtude, outros com a
com uma opinião verdadeira todos os sabedoria prática, outros com uma
dados se harmonizam, mas com uma espécie de sabedoria filosófica, outros
opinião falsa os fatos não tardam a en- com estas, ou uma destas, acornpa- 25
trar em conflito. nhadas ou não de prazer; e outros
Ora, os bens têm sido divididos em ainda também incluem a prosperidade
três classes 1 2, e alguns foram descritos exterior. Ora, algumas destas opiniões
como exteriores, outros como relativos têm tido muitos e antigos defensores,
à alma ou ao corpo. Nós outros consi- enquanto outras foram sustentadas por
deramos .como mais propriamente e poucas, mas eminentes pessoas. E não
15 verdadeiramente bens os que se rela- é provável que qualquer delas esteja
cionam com a alma, e como tais classi- inteiramente equivocada, mas sim que
ficamos as açôes e atividades psíqui- tenham razão pelo menos a algum res-
cas. Logo, o nosso ponto de vista deve peito, ou mesmo a quase todos os
ser correto, pelo menos de acordo com respeitos.
esta antiga opinião, com a qual con- Também se ajusta à nossa concep- 30
cordam muitos filósofos. É também ção a dos que identificam a felicidade
correto pelo fato de identificarmos o com a virtude em geral ou com alguma
fim com certas ações e atividades, pois virtude particular, pois que à virtude
desse modo ele vem incluir-se entre os pertence a atividade virtuosa. Mas há,
bens da alma, e não entre os bens talvez, uma diferença não pequena em
exteriores. colocarmos o sumo bem na posse ou
20 Outra crença que se harmoniza com no uso, no estado de ânimo ou no ato.
a nossa concepção é a de que o homem Porque pode existir o estado de ânimo
feliz vive bem e age bem; pois defini- sem nenhum bom resultado, 1099 a

mos praticamente a felicidade como como no homem que dorme ou que


uma espécie de boa vida e boa ação. permanece inativo; mas a atividade
As características que se costuma bus- virtuosa, não: essa devenecessaria-
mente agir, e agir bem. E, assim como
12 Platão, Eutidemo, 279; Filebo, 48; Leis. 743. nos Jogos Olímpicos não são os mais
(N. do T.) belos e os mais fortes que conquistam
58 ARISTÓTELES

a coroa, mas os que competem (pois é cidade de julgar é tal como a descreve-
dentre estes que hão de surgir os vence- mos. A felicidade é, pois, a melhor, a
5 dores), também as coisas nobres e boas mais nobre e a mais aprazível coisa do
da vida só são alcançadas pelos que mundo, e esses atributos não se acham 25
agem retamente. separados como na inscrição de Delos:
Sua própria vida é aprazível por si I

Das coisas a mais nobre é a mais justa,


mesma. Com efeito, o prazer é um es-
e a melhor é a saúde;
tado da e para cada homem é Mas a mais doce é alcançar o que
agradável aquilo que ele ama: não só
amamos.
um cavalo ao amigo de cavalos e um
espetáculo ao amador de espetáculos, Com efeito, todos eles pertencem às
10 mas também os atos justos ao amante mais excelentes atividadesj e estas, ou
da justiça e, em geral, os atos virtuosos então, uma delas a melhor - , nós a 30
aos amantes da virtude. Ora, na maio- identificamos com a felicidade.
ria dos homens os prazeres estão em E no entanto, dissemos' 3, ela
conflito uns com os outros porque não necessita igualmente dos bens exterio-
são aprazíveis por natureza, mas os res; pois é impossível, ou pelo menos
amantes do que é nobre se comprazem não é facil, realizar atos nobres sem os
em coisas que têm aquela qualidade; devidos meios. Em muitas ações utili- 1099 b

tal é o caso dos atos virtuosos, que não zamos como instrumentos os amigos, a
apenas são aprazíveis a esses homens, riqueza e o poder político; e há coisas
mas em si mesmos e por sua própria cuja ausência empana a felicidade,
15 natureza. Em conseqüência, a vida como a nobreza de nascimento, uma
deles não necessita do prazer como boa descendência, a beleza. Com efei-
uma espécie de encanto adventício, to, o homem de muito feia aparência,
mas possui o prazer em si mesma. Pois ou mal-nascido, ou solitário e sem
que, além do que já dissemos, o filhos, não tem muitas probabilidades
homem que não se regozija com as de ser feliz, e talvez tivesse 5
açôes nobres não é sequer bom; e nin- ainda se seus filhos ou amigos fossem
guém chamaria de justo o que não se visceralmente maus e se a morte lhe
compraz em agir com justiça, nem houvesse roubado bons filhos ou bons
liberal o que não experimenta prazer amigos.
20 nas ações liberais; e do mesmo modo Como dissemos, pois, o homem feliz
em todos os outros casos. parece necessitar também dessa espé-
Sendo assim, as ações virtuosas cie de prosperidade; e por essa razão
devem ser aprazíveis em mesmas. alguns identificam a felicidade com a
Mas são, além disso, boas e nobres, e boa fortuna, embora outros a identifi-
possuem no mais alto grau cada um quem com a virtude.
destes atributos, porquanto o homem
bom sabe aquilatá-los bem; sua capa- 13 1098 b 26-29. (N. do T.)

9
Por este motivo, também se per- alguma outra espécie de adestramento, 10

gunta se a felicidade deve ser adquirida ou se ela nos é conferida por alguma
pela aprendizagem, pelo hábito ou por providência divina, ou ainda pelo
ÉTICA A NICÔMACO - I 59

acaso. Ora, se alguma dádiva os ho- mos 1 4 que ela é uma atividade vir-
mens recebem dos deuses, é razoável tuosa da alma, de certa espécie. Dos
supor que a felicidade seja uma delas, demais bens, alguns devem necessaria-
e, dentre todas as coisas humanas, a mente estar presentes como condições
que mais seguramente é dádiva prévias da felicidade, e oútros são
divina, por ser a melhor. Esta questão naturalmente cooperantes e úteis como
talvez caiba melhor em outro estudo; instrumentos. E isto, como é de ver,
no entanto, mesmo que a felicidade concorda com o que dissemos no prin-
/5 não seja dada pelos deuses, mas, ao cípio 1 5, isto é, que o objetivo da vida
contrário, venha como um resultado política é o melhor dos fins, e essa 30
da virtude e de alguma espécie de ciência dedica o melhor de seus esfor-
aprendizagem ou adestramento, ela pa- ços a fazer com que os cidadãos sejam
rece contar-se entre as coisas mais bons e capazes de nobres ações.
divinas; pois aquilo que constitui o É natural, portanto, que chame-
prêmio e a finalidade da virtude se nos mos feliz nem ao boi, nem ao cavalo,
afigura o que melhor existe no nem a qualquer outro animal, visto que
mundo, algo de divino e abençoado. nenhum deles pode participar de tal
Dentro desta concepção, também atividade. Pelo mesmo motivo, um me- 1100"
deve ela ser partilhada por grande nú- nino tampouco é feliz, pois que, devido
mero de pessoas, pois quem quer que à sua idade, ainda não é capaz de tais
não esteja mutilado em sua capacidade atos; e os meninos a quem chamamos
para a virtude pode conquistá-la me- felizes estão simplesmente sendo con-
diante uma certa espécie de estudo e gratulados por causa das esperanças
20 diligência. Mas, se é preferível ser feliz que neles depositamos. Porque, como
dessa maneira a sê-lo por acaso, é dissemos 1 6, há mister não só de uma
razoável que os fatos sejam assim, virtude completa mas também de uma
uma vez que tudo aquilo que depende vida completa, já que muitas mudan- 5
da ação natural é, por natureza, tão ças ocorrem na vida, e eventualidades
bom quanto poderia ser, e do mesmo de toda sorte: o mais próspero pode ser
modo o que depende da arte ou de vítima de grandes infortúnios na velhi-
qualquer causa racional, especialmente ce, como se conta de Príamo no Ciclo
se depende da melhor de todas as cau- Troiano; e a quem experimentou tais
sas. Confiar ao acaso o que há de me- vicissitudes e terminou miseravelmente
lhor e de mais nobre seria um arranjo ninguém chama feliz.
muito imperfeito.
25 A resposta à pergunta que estamos 14 1098 a 16. (N. do T.)
fazendo é também evidente pela defini-. 1 5 1094 a 27. (N. do T.)
ção da felicidade, porquando disse- 16' a.16-18. (N. do T.)

10

/0 Então ninguém deverá ser conside- Mesmo que esposemos essa doutrina,
rado feliz enquanto viver, e será preci- dar-se-â o caso de que um homem seja
so ver o fim, como diz Sólon 1 7? feliz depois de morto? Ou não será
perfeitamente absurda tal idéia, sobre-
1 7 Heródoto, I, 32. (N. do T.) tudo para nós, que dizemos ser a felici-
60 ARISTÓTELES

15 dade uma espécie de atividade? Mas, o passo de suas vicissitudes, deve-


se não consideramos felizes os mortos ríamos chamar o mesmo homem ora
e se Sólon não se refere a isso, mas de feliz, ora de desgraçado, o que faria
quer apenas dizer que só então se pode do homem feliz um "camaleão, sem
com segurança chamar um homem de base segura". Ou será um erro esse
venturoso porque fmalmente não mais acompanhar as vicissitudes da fortuna
o podem atingir males nem infortúnios, de um homem? O sucesso ou o fra-
isso também fornece· matéria para casso na vida não depende delas, mas,
discussão. Efetivamente, acredita-se como dissemos 1 B, a existência humana /O
que para um morto existem males e delas necessita como meros acrésci-
bens, tanto quanto para os vivos que mos, enquanto o que constitui a felici-
so não têm consciência deles: por exem- dade ou o seu contrário são as ativida-
plo, as honras e desonras, as boas e des virtuosas ou viciosas.
más fortunas dos filhos e dos descen- A questão que acabamos de discutir
.dentes em geral. confirma a nossa definiçâo, pois ne-
E isto também levanta um proble- nhuma função humana desfruta de
ma. Com efeito, embora um homem tanta permanência como as atividades
tenha vivido feliz até avançada idade e virtuosas, que são consideradas mais
tido uma morte digna de sua vida, mui- duráveis do que o próprio conheci-
tos reveses podem suceder aos seus mento das ciências. E as mais valiosas 15

descendentes. Alguns serão bons e dentre elas são mais duráveis, porque
25 terão a vida que merecem, ao passo os homens felizes de bom grado e com
que com outros sucederá o contrário; e muita constância lhes dedicam os dias
também é evidente que os graus de de sua vida; e esta parece ser a razão
parentesco entre eles e os seus antepas- pela qual sempre nos lembramos deles.
sados podem variar indefinidamente. O atributo em apreço pertencerá, pois,
Seria estranho, pois, se os mortos ao homem feliz, que o será durante'a
devessem participar dessas vicissitudes vida inteira; porque sempre, ou
e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, preferência a qualquer outra coisa,
.lO por outro lado, também seria estranho estará empenhado na ação ou na 20

se a sorte dos descendentes jamais pro- contemplação virtuosa, e suportará as


duzisse o menor efeito sobre a felici- vicissitudes da vida com a maior
dade de seus ancestrais. nobreza e decoro, se é "verdadei-
Voltemos, porém, à nossa primeira ramente bom" e "honesto acima de
dificuldade, cujo exame mais atento toda censura".
talvez nos dê a solução do presente Ora, muitas coisas acontecem por
problema. Ora, se é preciso ver o fim acaso, e coisas diferentes quanto à
para só então declarar um homem importância. É claro que os pequenos
feliz, temos aí um paradoxo flagrante: incidentes felizes ou infelizes não 25
35 quando ele é feliz, os atributos que lhe pesam muito na balança, mas uma
1100 pertencem não podem ser verdadeira- multidão de grandes acontecimentos,
mente predicados dele devido às mu- se nos forem favoráveis, tornará nossa
danças a que estão sujeitos, porque vida mais venturosa (pois não apenas
admitimos que a felicidade é algo de são, em si mesmos, de feitio a aumen-
permanente e que não muda com faci- tar a beleza da vida, mas a própria
lidade, ao passo que cada indivíduo maneira como um homem os recebe
pode sofrer muitas voltas da roda da
5 fortuna. É claro que, para acompanhar 18 1099 a 31 - 1099 b 7. do T.)
ÉTICA A NICÔMACO - I 61

pode ser nobre e boa); e, se se voltarem E tampouco será ele versátil e mutâ- la
contra nós, poderão esmagar e mutilar vel, pois nem se deixará desviar facil-
a felicidade, pois que, além de serem mente do seu venturoso estado por
30 acompanhados de dor, impedem mui- quaisquer desventuras comuns, mas
tas atividades. Todavia, mesmo nesses somente por muitas e grandes; nem, se
a nobreza de um homem se deixa ver, sofreu muitas e grandes desventuras,
quando aceita com resignação muitos recuperará em breve tempo a sua felici-
grandes infortúnios, não por insensibi- dade. Se a recuperar, será num tempo
lidade à dor, mas por nobreza e gran- longo e completo, em que houver
deza de alma. alcançado muitos e esplêndidos suces-
Se as atividades são, como disse- sos.
mos, o que dá caráter à vida, nenhum Quando diremos, então, que não é J5

homem feliz pode tornar-se desgra- feliz aquele que age conforme à virtude
çado, porquanto jamais praticará atos perfeita e está suficientemente provido
35 odiosos e vis. Com efeito, o homem de bens exteriores, não durante um
verdadeiramente bom e sábio suporta período qualquer, mas através de uma
110\ a com dignidade, pensamos nós, todas as vida completa? Ou devemos acrescen-
contingências da e sempre tira o tar: "E que está destinado a viver
maior proveito das circunstâncias, assim e a morrer de modo consentâneo
como um general que-faz o melhor uso com a sua vida"? Em verdade, o futuro
possível do exército sob o seu coman- nos é impenetrável, enquanto a felici-
do ou um bom sapateiro faz os melho- dade, afirmamos nós, é um fim e algo 20

res calçados com o couro que lhe dão; de final a todos os respeitos. Sendo
5 e do mesmo modo com todos os outros assim, chamaremos felizes àqueles
artífices. E, se assim é, o homem feliz dentre os seres humanos vivos em que
nunca pode tornar-se desgraçado, essas condições se realizem ou estejam
muito embora não alcance a beatitude destinadas a realizar-se - mas ho-
se tiver uma fortuna semelhante à de mens felizes. Sobre estas questões dis-
Príamo. semos o suficiente.

II
Que a sorte dos descendentes e de influência na vida, enquanto outros
todos os amigos de um homem não lhe são, por assim dizer, mais leves, tam- 30
afete de nenhum modo a felicidade pa- bém existem diferenças entre os infor-
rece ser uma doutrina cínica e contrá- túnios de nossos amigos tomados em
ria à opinião comum. Mas, visto serem conjunto, e não dá no mesmo que os
25 numerosos os acontecimentos que diversos sofrimentos sobrevenham aos
ocorrem, e admitirem toda espécie de vivos ou aos mortos (com efeito, a dife-
diferenças, e já que alguns nos tocam rença aqui é muito maior, até, do que
mais de perto e outros menos, anto- entre atos terríveis e iníquos pressu-
lha-se uma tarefa longa - mais do postos numa tragédia ou efetivamente
que longa, infmita - discutir cada um representados na. cena), essa diferença
em detalhe. Talvez possamos conten- também deve ser levada em conta -
tar-nos com um esboço geral. ou talvez, o fato de haver dúvida 35
Se, pois, alguns infortúnios pessoais sobre se os mortos participam de qual-
um homem têm certo peso e quer bem ou mal. Pois parece, de acor- 1101 b
62 ARISTÓTELES

do com tudo que acabamos de ponde- nem roubar a beatitude aos venturosos.
rar, que ainda que algo de bom ou mau Por conseguinte, a boa ou má fortu- 5
chegue até eles, devem ser influências na dos amigos parece ter certos efeitos
muito fracas e insignificantes, quer em sobre os mortos, mas efeitos de tal
si mesmas, quer para eles; ou, então, espécie e grau que não tornam desgra-
serão tais em grau e em espécie que çados os felizes nem produzem qual-
não possam tornar feliz quem não o é, quer outra alteração semelhante.

12

/0 Tendo dado uma resposta definida a felizes e bem-aventurados. E o mesmo 25


essas questões, vejamos agora se a feli- vale para as coisas: ninguém louva a
cidade pertence ao número das coisas felicidade como louva a justiça, mas
que são louvadas, ou, antes, das que antes a chama de bem-aventurada,
são estimadas; pois é evidente que não como algo mais divino e melhor.
podemos colocá-la entre as potenciali- Também parece que Eudoxo estava
dades. acertado em seu método de sustentar a
Tudo que é louvado parece merecer supremacia do prazer. Pensava ele .que
louvores por ser de certa espécie e rela- o fato de não ser louvado o prazer, em-
cionado de um modo qualquer com al- bora seja um bem, está a indicar que
guma outra coisa; porque louvamos o ele é melhor do que as coisas a que
justo o valoroso, e, em geral, tanto prodigalizamos louvores - e tais são
o homem bom como a própria virtude, Deus e o bem; pois é em relação a eles 30
J5 devido às ações e funções em jogo, e que todas as outras coisas são julga-
louvamos o homem forte, o bom corre- das.
dor, etc., porque são de uma determi- O louvor é apropriado à virtude,
nada 'espécie e se relacionam de certo pois graças a ela os homens tendem a
modo com algo de bom ou importante. praticar ações nobres, mas os encô-
Isso também é evidente quando consi- mios se dirigem aos atos, quer do
deramos os louvores dirigidos aos deu- corpo, quer da alma. No entanto, tal-
ses, pois parece absurdo que os deuses vez a sutileza nestes 'assuntos seja mais
sejam aferidos pelos nossos padrões; própria dos que fizeram. um estudo dos
20 no entanto assim se faz, porque o lou- encômios; para nós, o que se disse 35
vor envolve uma referência, como dis- acima deixa bastante claro que a felici- 1102 li

semos, a alguma outra coisa. dade pertence ao número das coisas


Entretanto, se o louvor se aplica a estimadas e perfeitas. E também pare-
coisas do gênero das que descrevemos, ce ser assim pelo fato de ser ela um pri-
evidentemente o que se aplica às meiro princípio; pois é tendo-a em
melhores coisas não é louvor, mas algo vista que fazemos tudo que fazemos, e
de melhor e de maior; porquanto aos o primeiro princípio e causa dos bens
deuses e aos mais divinos dentre os é, afirmamos nós, algo de estimado e
homens, o que fazemos é chamá-los de divino.
ÉTICA A NICÔMACO - I 63

13
Já que a felicidade é uma atividade A seu respeito são feitas algumas
da alma conforme à virtude perfeita, afirmações bastante exatas, mesmo nas
devemos considerar a natureza da vir- .discussões estranhas à nossa escola; e
tude: pois talvez possamos com- delas devemos utilizar-nos agora. Por
preender melhor, por esse meio, a natu- exemplo: que a alma tem uma parte
reza da felicidade. racional e outra parte privada de
O homem verdadeiramente político razão. Que elas sejam distintas como
também goza a reputação de haver as partes do corpo ou de qualquer 30
estudado a virtude acima de todas as coisa divisível, ou distintas por defini-
la coisas, pois que ele deseja fazer com ção mas inseparáveis por natureza,
que os seus concidadãos sejam bons e como o côncavo e o convexo .na
obedientes às leis. Temos um exemplo circunferência de um círculo, não inte-
·disso nos ,legisladores dos cretenses e ressa à questão com que nos ocupamos
dos espartanos, e em quaisquer outros de momento.
dessa espécie que possa ter havido Do elemento irracional, uma subdi-
alhures. E, se esta investigação per- visão parece estar largamente difun-
tence à ciência política, é evidente que dida e ser de natureza vegetativa. Refi-
ela estará de .acordo com o nosso ro-me à que é causa da nutrição e do
plano inicial.' crescimento; pois é essa espécie de
a virtude que devemos estudar faculdade da alma que devemos atri- 1102 b
é, fora de qualquer dúvida, a virtude buir a todos os lactantes e aos próprios
15 humana; porque humano era o bem e embriões, e que também está presente
humana' a felicidade que buscávamos. nos seres adultos: com efeito. é mais
Por virtude humana entendemos não a razoável pensar assim do que atribuir-
do corpo, mas a da alma; e também à lhes uma faculdade diferente. Ora, a
felicidade chamamos uma atividade de excelência desta faculdade parece ser
alma. Mas, assim sendo, é óbvio que o comum a todas as espécies, e não 5
político deve saber de algum modo o especificamente humana, Além disso,
que diz respeito à alma, exatamente tudo está a indicar que ela funciona
como deve conhecer os olhos ou a principalmente durante' o sono, ao
totalidade do corpo aquele que se pro- que é nesse estado que menos se
20 põe a curá-los; e com maior razão manifestam a bondade e a maldade.
ainda por ser a política mais estimada Daí vem o aforismo de que os felizes
e melhor do que a medicina. Mesmo não diferem dos infortunados durante
entre os médicos, os mais competentes metade de sua vida; o que é muito
dão-se grande trabalho para adquirir o natural, em vista de ser o sono uma
conhecimento do corpo. inatividade da alma em relação àquilo 10
O político, pois, deve estudar a alma que nos leva a chamá-la de boa ou má;
tendo em vista os objetivos que men- a menos, talvez, uma pequena
cionamos e quanto baste para o enten- parte do movimento dos sentidos pene-
dimento das questões que estamos tre de algum modo na alma. tomando
25 discutindo, já que os nossos propósitos os sonhos do homem bom melhores
não parecem exigir uma investigação que os da gente comum. Mas basta
mais precisa, que seria, aliás, muito quanto a esse assunto. Deixemos de
trabalhosa. lado a faculdade nutritiva, uma vez
1
64 ARISTÓTELES

que, por natureza, ela não participa da Por conseguinte, o elemento irracio-
excelência humana. nal também parece ser duplo. Com 30

Parece haver na alma ainda outro efeito, o elemento vegetativo não tem
elemento irracional, mas que, em certo nenhuma participação num princípio
sentido, participa da razão. Com efei- racional, mas o apetitivo e, em geral, o
to, louvamos o princípio racional do elemento desiderativo participa dele
15 homem continente e do incontinente, em certo sentido, na medida em que o
assim como a parte de alma que escuta e lhe obedece. É nesse sentido
possui tal princípio, porquanto ela os que falamos em "atender às razões" do
impele na direção certa e para os pai e dos o que é bem diverso
melhores objetivos; mas, ao mesmo de ponderar a razão de uma proprie-
tempo, encontra-se neles um outro dade matemática.
mento naturalmente oposto ao princí- Que, de certo modo, o elemento irra-
pio racional, lutando contra este a cional é persuadido pela razão, tam-
20 resistindo-lhe. Porque, exatamente bém estão a indicá-lo os conselhos que
como os membros paralisados se vol- se costuma dar, assim todas as 1I03a

tam para a esquerda quando procura- censuras e exortações. E, se convém


mos movê-los para a direita, a mesma afirmar que também esse elemento
coisa sucede na alma: os impulsos dos possui um princípio racional, o que
incontinentes movem-se em direções possui tal princípio (como também o
contrárias. Com uma diferença, que carece dele) será de dupla nature-
porém: no corpo, vemos za: uma parte possuindo-o em si
aquilo que se desvia da direção certa, mesma e no sentido rigoroso do termo,
na alma não podemos vê-lo. e a outra com a tendência de obede-
Apesar disso, devemos admitir que cer-lhe como um filho obedece ao pai.
também na alma existe qualquer coisa A virtude também se divide em espé
contrária ao princípio racional, qual- cies de acordo com esta diferença, por-
quer coisa que lhe resiste e se opõe a quanto dizemos que algumas virtudes
25 ele. Em que sentido esse elemento se são intelectuais e outras morais; entre 5

distingue dos outros, é uma questão as primeiras a sabedoria filosó-


que não nos interessa. Nem sequer pa- fica, a compreensão, a sabedoria práti-
rece ele participar de um princípio ca; e entre as segundas, por exemplo, a
racional, como dissemos. Seja como liberalidade e a temperança. Com efei-
for, no homem continente ele obedece to, ao falar do caráter de um homem
ao referido princípio; e é de presumir não dizemos que ele é sábio ou que pos-
que no temperante e no bravo seja sui entendimento, mas que calmo ou
mais obediente ainda, pois em tais temperante. No entanto, louvamos la
mens ele fala, a respeito de todas as também o sábio, referindo-nos ao hábi-
coisas, com a mesma voz que o princí- to; e aos hábitos dignos de louvor cha-
pio racional. mamos virtudes.
II
67

Sendo, pois, de duas espécies a vir- usá-las, e não entramos na posse delas
/5 tude, intelectual e moral, a primeira, uso. Com as virtudes dá-se exata-
por via de regra, gera-se. cresce gra- mente o oposto: adquirimo-las pelo
ças ao ensino - por isso requerexpe- exercício, como também sucede com
riência e tempo; enquanto a virtude as artes. Com efeito, as coisas que
moral é adquirida em resultado do há- temos de aprender antes de poder
bito, donde ter-se formado o seu nome fazê-las, aprendemo-las fazendo; por
( ) por uma pequena modifica- exemplo, os homens tomam-se arquite-
da palavra (hábito). Por tudo tos construindo e tocadores de lira tan-
isso, evidencia-se também que' nenhu- gendo esse instrumento. Da mesma II03b

ma das virtudes morais surge em nós forma, tornamo-nos justos praticando


por. natureza; com efeito, nada do que atos justos, e 'assim com a temperança,
20 existe naturalmente pode formar um a bravura, etc.
Isto é confirmado pelo que acontece
hábito contrário à sua natureza. Por
nos Estados: os legisladores tomam
exemplo, à pedra que por natureza se
bons os cidadãos por meio de hábitos
move para baixo não se pode imprimir
que lhes incutem. Esse é o propósito de 5
o hábito de ir para cima, ainda que ten- todo legislador, e quem não logra tal
temos adestrá-la jogando-a dez mil desiderato falha no desempenho da sua
vezes no ar; nem se pode habituar o missão. Nisso, precisamente, reside a
fogo a dirigir-se para baixo, nem qual- diferença entre as boas e as más
quer coisa que por natureza se' com- constituições.
porte de certa maneira a comportar-se Ainda mais: é das mesmas causas e
de outra. pelos mesmos meios que se gera e' se
Não é, pois, por natureza, nem destrói toda virtude, assim como tõda
contrariando a natureza que as virtu- arte: de tocara lira surgem os bons e
25 des se geram em nós. Diga-se, antes, os maus músicos. Isso também vale
que somos adaptados por natureza a para os arquitetos e todos os demais;
recebê-las' e nos tomamos perfeitos construindo bem, tomam-se bons ar- /0
pelo hábito. quitetos; construindo mal, maus. Se
Por outro lado, de todas as coisas não fosse assim não haveria necessi-
que nos vêm por natureza, primeiro dade de mestres, e todos os homens te-
adquirimos a potência e mais tarde riam nascido bons ou maus em seu
exteriorizamos os atos. Isso é evidente ofício.
no caso dos sentidos, pois não foi por Isso, pois, é o que também ocorre
30 ver ou ouvir freqüentemente que adqui- com as virtudes: pelos atos que prati-
rimos a visão e a audição, mas, pelo cámos em nossas relações com os ho-
contrário, nós as possuíamos antes de mens nos tomamos justos ou injustos;
68 ARISTÓTELES

15 pelo que fazemos em presença do peri- caráter nascem de atividades seme-


go e pelo hábito do medo ou da ousa- lhantes. É preciso, pois, atentar para a
dia, nos tomamos valentes ou covar- qualidade dos atos que praticamos,
des. O mesmo se pode dizer dos porquanto da sua diferença se pode
apetites e da emoção da ira: uns se tor- aquilatar a diferença de caracteres. E
nam temperantes e calmos, outros não é coisa de somenos que desde a
20 intemperantes e irascíveis, portando-se nossa juventude nos habituemos desta
de um modo ou de outro em igualdade ou daquela maneira. Tem, pelo contrá- 25
de circunstâncias. rio, imensa importância, ou melhor:
Numa palavra: as diferenças de tudo depende disso.

2
Uma vez que a presente investiga- atuantes devem considerar, em cada
ção não visa ao conhecimento teórico caso, o que é mais apropriado à oca-
como as outras - porque não investi- sião, como também sucede na arte da
gamos para saber o que é a virtude, navegação e na medicina.
mas a fim de nos tomarmos bons, do Mas, embora o nosso tratado seja
contrário o nosso estudo seria inútil desta natureza, devemos prestar tanto 10

30 - , devemos examinar agora a natu- serviço quanto for possível. Comece-


reza dos atos, isto é, como devemos mos, pois, por frisar que está na natu-
praticá-los; pois que, como dissemos, reza dessas coisas o serem destruídas
eles determinam a natureza dos esta- pela falta e pelo excesso, como se
dos de caráter que daí surgem. observa no referente à força e à saúde
Ora, que devemos agir de acordo (pois, a fim de obter alguma luz sobre
com a regra justa é um princípio coisas imperceptíveis, devemos recor-
comumente aceito, que nós encampa- rer à evidência das coisas sensíveis).
remos. Mais tardet havemos. de nos Tanto a deficiência como o excesso de 15
ocupar. dele, examinando o que seja a exercício destroem a força; e, da
Justa e como se relaciona com as mesma forma, o alimento ou a bebida
J 104 a outras virtudes. Uma coisa, porém, que ultrapassem determinados limites,
deve ser assentada de antemão, e é tanto para mais como para menos, des-
que todo esse tratamento de assuntos a saúde ao passo que, sendo
de conduta se fará em linhas gerais e "tomados nas devidas proporções, a
não de maneira precisa. Desde o produzem, aumentam e preservam.
princípios o fizemos ver que as explica- O mesmo acontece com a tempe-
ções que buscamos devem estar de rança, a coragem e as outras virtudes, 20
acordo com os respectivos assuntos. pois o homem que a tudo teme e de
Tal como se passa no que se refere à tudo foge, não fazendo frente a nada,
saúde, as questões de conduta e do que toma-se um covarde, e o homem que
é bom para nós não têm nenhuma fixi- não teme absolutamente nada, mas vai
5 dez. Sendo essa a natureza da explica- ao encontro de todos os perigos, tor-
ção geral, a dos casos particulares será na-se temerário; e, analogamente, o
"ainda mais carente de exatidâo, que se entrega -a todos os prazeres e
não há arte ou preceito que os abranja não se abstém de nenhum toma-se
a todos, mas as próprias pessoas intemperante, enquanto o que
I
19 Livro VI, cap, 13. (N. do T.)
todos os prazeres, fazem os rús-
20 1094 b 11-27. (N. do T.) ticos, se torna de certo modoinsensí vel.l
ÉTICA A NICÕMACO - II 69

25 A temperança e a coragem, pois, são quem mais está em condições de fazer


destruídas pelo excesso e pela falta, e isso é o homem forte. O mesmo ocorre
preservadas pela mediania. Mas não só com as virtudes: tomamo-nos tempe-
as causas e fontes de sua geração e rantes abstendo-nos de prazeres, e é
são as mesmas que as de depois de nos tomarmos tais que
seu perecimento, como também a somos mais capazes dessa abstenção. 35
mesma esfera de sua atualização. Isto E igualmente no que toca à coragem,
também é verdadeiro das coisas mais é habituando-nos a desprezar e 1104 b

30 evidentes aos sentidos, como a força, arrostar coisas terríveis que nos torna-
por exemplo; ela é produzida pela 'mos bravos, depois de nos tomarmos
ingestão de grande quantidade de ali- :tais, somos mais capazes de lhes fazer
mento e por um exercício intenso, e frente.

3
Devemos tomar como sinais indica- efetuarem-se contrários.
'tivos do carâter o prazer ou a dor Ainda mais: como dissemos não faz
5 os atos;.· o' muito- 2, todo estado da alma tem uma
homem que se abstém cor-' natureza relativa e concernente à espê- 20
porais e se deleita nessa própria abs- cie de coisas que tendem a tomá-la me-
tenção é temperante, enquanto o que se lhor ou pior; mas é em razão dos pra-
aborrece com ela intemperante; e zeres e dores que os homens se tomam
quem arrosta coisas terríveis' e sente maus, isto é, buscando-os ou evitan-
prazer em fazê-lo, ou, pelo menos, não do-os - quer prazeres e dores que não
sofre com é bravo, enquanto o' devem, na ocasião em que não devem
homem que sofre é covarde. Com efei- ou da maneira pela qual não devem
a excelência moral. relaciona-se buscar ou evitar, quer por errarem
10 com prazeres e dores; é por causa do numa das outras alternativas seme-
prazer que praticamos más ações, e lhantes que se podem distinguir. Por
por causa da dor que nos abstemos de isso, muitos chegam a definir as virtu-
ações nobres. Por isso deveríamos ser des como certos estados de impassivi- 25
educados de determinada maneira dade e repouso; não acertadamente,
desde a nossa juventude, como diz Pla- porém, porque se exprimem de modo
tâo? 1, a fim de nos deleitarmos e de' absoluto, sem dizer "como se deve",
sofrermos as coisas' que nos "como não se deve", "quando se deve
devem causar deleite ou sofrimento, ou não se deve", e as outras condições
pois essa é a educação certa. que se podem acrescentar, Admitimos,
Por outro lado, se as virtudes dizem : pois, que essa espécie de excelência
respeito a ações e paixões, "e cada ação tende a fazer o que é melhor com res-
e cada paixão é acompanhada de pra- peito aos prazeres e às dores, e que o'
15 zer ou de dor, também por este motivo vício faz o contrário.
a virtude se relacionará com prazeres e Os fatos seguintes nos
dores. Outra coisa que está a indicá-lo podem mostrar que a virtude e o vício
é o fato de ser infligido o castigo por se relacionam com essas mesmas coi- 30
esses meios; ora, o castigo é uma espé- sas. Como existem três objetos de
cie de cura, eé da natureza das curas o escolha e três de rejeição - o nobre, o

21 Leis, 653 55.; República, 401-402. (N. do T.) 22 1104 a 27 - 1104 b 3. (N. do T.)
70 ARISTÓTELES

vantajoso, o agradável e seus contrá- pequeno sobre as nossas ações.


o prejudicial e o doloroso Por outro lado, para usarmos a frase
- , a respeito de todos eles o homem de Heráclito; é mais difícil lutar contra
bom tende a agir certo e o homem mau o prazer do que contra 'a dor, mas
a agir errado, e especialmente no que tanto a virtude como a arte se orientam
35 toca ao prazer. Com efeito, além de ser para o mais difícil, que até toma
comum aos animais, este também melhores as coisas boas. Es.sa é tam- 10
acompanha todos os objetos de esco- bém a razão por que tanto a virtude
lha, pois até o nobre e o vantajoso se como a ciência política giram sempre
apresentam como agradáveis. em tomo de prazeres e dores, de vez
1105 a Acresce que o agradável e o dolo- que o que lhes der bom uso
roso cresceram conosco desde a nossa será bom e o que lhes der mau uso será
infância, e por isso é difícil conter mau.
essas paixões, enraizadas como estão Demos por assentado, pois, que a
na nossa vida. E, alguns mais e outros virtude tem que ver com prazeres e
5 menos, medimos nossas próprias ações dores; que, pelos mesmos atos de
pelo estalão do prazer e da dor. Por ela se origina, tanto é acrescida como, 15
esse motivo, toda a nossa inquirição se tais atossão praticados de modo
girará em tomo deles, já que, pelo fato diferente, destruída; e que os atos de
de serem legítimos ou ilegítimos, o pra- onde surgiu a virtude são os mesmos
zer e a dor que sentimos têm efeito não em que ela se atualiza.

Alguém poderia perguntar que en- entre as artes e as virtudes, porque os


tendemos nós ao declarar que devemos produtos das primeiras têm a sua.bon-
tomar-nos justos praticando atos jus- dade própria, bastando que possuam
tos e temperantes praticando atos determinado caráter; mas porque os
temperantes; porque, se um homem atos que estão de acordo com as virtu-
pratica tais atos, é que já possui essas des tenham determinado caráter, não 30
20 virtudes, exatamente como, se faz coi- se segue que sejam praticados de
sas concordes com as leis da gramática maneira justa ou temperante. Também
e da música, é que já é gramático e é mister que o agente se encontre em
músico. determinada condição ao praticá-los:
Ou não será isto verdadeiro nem se- em primeiro lugar deve' ter conheci-
quer das artes? Pode-se fazer uma mento do que faz; em segundo, deve
coisa que esteja concorde com as leis escolher os atos, e escolhê-los por eles
da gramática, quer por acaso, quer por mesmos; e em sua ação deve
sugestão de outrem. Um homem, por- proceder de um caráter firme e imutá-
25 tanto, só é gramático quando faz algo vel. Estas não são consideradas como
pertencente à gramática e o faz grama- condições para a posse das artes, salvo 1105 b
ticalmente; e isto significa fazê-lo de o simples conhecimento; mas como
acordo com os conhecimentos grama- condição para a posse das virtudes o
ticais que ele próprio possui. conhecimento pouco ou nenhum peso
Sucede, por outro lado, que neste ao passo que as outras condições
ponto não há similaridade de caso - isto é, aquelas mesmas que resul-
ÉTICA A NICÔMACO - II 71

tam da prática amiudada de atos justos teria sequer a possibilidade de tomar-


e temperantes - são, numa palavra, se bom.
tudo. Mas a maioria das pessoas não pro-
Por conseguinte, as ações são cha- cede assim. Refugiam-se na teoria e
rnadas justas e temperantes quando pensam estão sendo filósofos e se
são tais como as que praticaria o tornarão bons dessa maneira. Nisto se /5

homem justo ou temperante; mas não é portam, de certo modo, como enfermos
o homem que as pratica, e que escutassem atentamente os seus
o que as pratica tal como o fazem médicos, mas não fizessem nada do
os justos e temperantes. É acertado, que estes lhes prescrevessem. Assim
pois, dizer que pela prática'de atos jus- como a saúde destes últimos não pode
tos se gera o homem justo, e pela prá- restabelecer-se com tal tratamento, a
10 tica de atos itemperantes; o homem alma dos segundos não se tomará me-
temperante; sem essa prática, ninguém lhor com semelhante curso de filosofia.

5
Devemos considerar agora o que é a vados nem censurados por causa de
virtude. Visto que na alma se encon- nossas paixões (o homem que sente
20 tram três espécies de coisas - pai- medo ou cólera não é louvado, nem é
xões, faculdades e disposições de carâ- censurado o que simplesmente se enco-
ter - , a virtude pertencer a uma leriza, mas sim o que se encoleriza de
destas. certo modo); mas pelas nossas virtudes 1106.
Por paixões entendo os apetites, a e vícios somos efetivamente louvados e
cólera, o medo, a audácia, á inveja, a censurados. .
alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a Por outro lado, sentimos' cólera e
emulação, a compaixão, e em geral os medo sem nenhuma escolha de nossa
sentimentos que são acompanhados de parte, mas as virtudes são modalidades
prazer ou dor; por faculdades, as coi- de escolha, ou envolvem escolha. Além 5
sas em virtude das quais se diz que disso, com respeito às paixões se diz
somos capazes de sentir tudo isso, ou que somos movidos, mas com respeito
25 seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou às virtudes e aos vícios não se diz que
compadecer-nos; por disposições de somos movidos, e sim que temos talou
caráter, as coisas em virtude das quais tal disposição.
nossa posição com referência às pai- Por estas mesmas razões, também
xões é boa ou má. Por exemplo, com não são faculdades, porquanto nin-
referência à cólera, nossa posição é má guém nos chama bons ou maus, nem
se a sentimos de modo' violento ou nos louva ou censura pela simples
demasiado fraco, e boa se a sentimos capacidade de sentir as paixões; Acres-
moderadamente; e da mesma forma no ce que possuímos as faculdades por
que se relaciona com as outras pai- natureza, mas não nos tornamos bons
xões. ou maus por natureza. Já falamos disto
Ora, nem as virtudes nem os vícios acimas
são paixões, porque ninguém nos Por conseguinte, se as virtudes não /0
chama bons ou maus devido às nossas são paixões nem faculdades, só resta
30 paixões, e sim devido às nossas virtu-
des ou vícios, e porque não somos lou- 23 1103 a 18 - 1103 b 2. (N. do T.)
72 ARISTÓTELES

uma alternativa: a de que sejam dispo- Mostramos, assim, o que é a virtude


sições de caráter. com respeito ao seu gênero.

6
Não basta, contudo, definir a virtu- meio-termo, considerado em função do
de como uma disposição de caráter; objeto, porque excede e é excedido por 35
15 cumpre dizer que espécie de disposição uma quantidade igual; esse número é
é ela. intermediário de acordo uma pro-
Observemos, pois, que toda virtude porção aritmética. Mas o meio-termo
ou excelência não só coloca em boa relativamente a nós não deve ser consi-
condição a coisa de que é a excelência derado assim: se dez libras é demais 1106 b
como também faz com que a função para uma determinada pessoa comer e
dessa coisa seja bem desempenhada. duas libras é demasiadamente pouco,
Por exemplo, a excelência do olho não se segue daí que o treinador pres-
toma bons tanto o olho como a sua creverá seis libras; porque isso tam-
função, pois é graças à excelência do bém é, talvez, demasiado para a pessoa
20 olho que vemos bem. Analogamente, a que deve comê-lo, ou demasiadamente
excelência de um cavalo tanto o toma pouco - demasiadamente pouco para
bom em si mesmo como bom na corri- Milo e demasiado para o atleta princi-
da, em carregar o seu cavaleiro e em piante. O mesmo se aplica à corrida e 5
aguardar de pé firme o ataque do ini- à luta. Assim, um mestre em qualquer
Portanto, se isto vale para todos arte evita o excesso e a falta, buscando
os casos, a virtude do homem também o meio-termo e escolhendo-o - o
será a· disposição de caráter que o meio-termo não no objeto, mas relati-
toma bom e que o faz desempenhar vamente a nós.
bem a sua função. Se é assim, pois, que cada arte reali-
25 Como isso vem a suceder, já o expli- za bem o seu trabalho - tendo diante
camos atrás> 4, mas a seguinte conside- dos olhos o meio-termo e julgando
ração da natureza específica da virtude suas obras por esse padrão; e por isso /O
lançará nova luz sobre o assunto. Em dizemos muitas vezes que às boas
tudo que é contínuo e divisível pode-se obras de arte não é possível tirar nem
tomar mais, menos ou uma quantidade acrescentar nada, subentendendo que o
igual, e quer em termos da própria excesso e a falta destroem a excelência
coisa, quer relativamente a nós; e o dessas obras, enquanto o meio-termo a
iguàl é um meio-termo entre o excesso preserva; e para este, como dissemos,
e a falta. Por meio-termo no objeto se voltam os artistas no seu trabalho
entendo aquilo que é eqüidistante de - , e se, ademais disso, a virtude é
ambos os extremos, e que é um só e o mais exata e melhor que qualquer arte,
30 mesmo para todos os homens; e por como também o é a natureza, segue-se
meio-termo relativamente a nós, o que que a virtude deve ter o atributo de 15
não é nem demasiado nem demasiada- visar ao meio-termo. Refiro-me à virtu- .
mente pouco - e este não é um só e o de moral, pois é ela que diz respeito às
mesmo para todos. Por exemplo, se paixões e ações, nas quais existe exces-
é demais e dois é pouco, seis é o so, carência e um meio-termo.
Por exemplo, tanto o medo como a
24 1104 a 11-27. (N. do T.) confiança, o apetite, a ira, a compai-
ÉTICA A NICÔMACO - II 73

xão, e em geral o prazer e a dor, podem vícios, um por excesso e outro por
ser sentidos em excesso ou em grau falta; pois que, enquanto os vícios ou
insuficiente; e, num caso como no vão muito longe ou ficam aquém do
20 outro, isso é um mal. Mas senti-los na que é conveniente no tocante às ações 5
ocasião apropriada, com referência e paixões, a virtude encontra e escolhe
aos objetos apropriados, para com as o meio-termo. E assim, no que toca à
pessoas apropriadas, pelo motivo e da sua substância e à definição que lhe
maneira conveniente, nisso consistem estabelece a essência, a virtude é uma
o meio-termo e a excelência caracterís- mediania; com referência ao sumo bem
ticos da virtude. e ao mais justo, ê, porém, um extremo.
Analogamente, no que tange às Mas nem toda ação e paixão admite
ações também existe excesso, carência um meio-termo, pois algumas têm /0
25 e um meio-termo. Ora, a virtude diz nomes já de si mesmos implicam
respeito às paixões e açõés em que o maldade, como o despeito, o despudor,
excesso é uma forma de erro, assim a inveja, e, no campo das açôes., o
a carência, ao passo que o adultério, o furto, o assassínio. Todas
meio-termo é uma forma de acerto essas coisas e outras semelhantes im-
digna de louvor; e acertar e ser louva- plicam, nos próprios nomes, que são
da são características da virtude. Em más em si mesmas, e não o seu excesso
conclusão, a virtude é uma espécie de ou deficiência. Nelas jamais pode
mediania, já que, como vimos, ela põe haver retidão, mas unicamente o erro.
a sua mira no meio-termo. E, no que se refere a essas coisas, tam- /5
Por outro lado, é possível errar de pouco a bondade ou maldade depen-
muitos modos (pois o mal pertence à dem de cometer adultério com a mu-
30 classe do ilimitado e o bem à do limita- lher apropriada, na ocasião e da
do, como supuseram os pitagóricos), maneira convenientes, mas fazer sim-
mas só há um modo de acertar. Por plesmente qualquer delas é um mal.
isso, o primeiro é fácil e o segundo Igualmente absurdo seria buscar um
cil - fácil errar a mira, difícil atingir meio-termo, um excesso e uma falta
o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso em atos injustos, covardes ou libidino- 20
e a falta são característicos do vício, e sos; porque assim haveria um meio-
a mediania da virtude: termo do excesso e da carência, um
35 Pois os homens são bons de um modo excesso de excesso e uma carência de
só, e maus de muitos modos- 5. carência. Mas, do mesmo modo que
A virtude é, pois, uma disposição de não existe excesso nem carência de
caráter relacionada com a escolha e temperança e de coragem, pois o que é
1107. consistente numa mediania, isto é, a intermediário também é, noutro senti-
mediania relativa a nós, a qual é deter- do, um extremo, também das ações que
minada por um princípio racional pró- mencionamos não há meio-termo, nem
prio do homem dotado de sabedoria excesso, nem falta, porque, de qualquer
prática. E é um meio-termo entre dois forma que sejam praticadas, são más.
Em suma, do excesso ou da falta não 25

25 Ver Diehl, Elége,ia adéspota (Elegias Anôni- há meio-termo, como também não há
mas),16. excesso ou falta de meio-termo.
74 ARISTÓTELES

7
Não devemos, porém, contentar-nos ro, existem outras disposições: um
com esta exposição geral; é mister meio-termo, .a magnificência (pois o
aplicá-la tambêm aos fatos individuais. homem magnificente difere do liberal;
Com efeito, das proposições relativas à o primeiro lida com grandes quantias,
conduta, as universais são mais vazias, o segundo com quantias pequenas);
30 mas as particulares são mais verdadei- um excesso, a vulgaridade e o mau
porquanto a conduta versa sobre gosto; e uma deficiência, a mesqui-
casos individuais e nossas proposições nhez; estas diferem das disposições 20
devem harmonizar-se com os fatos contrárias à liberalidade, e mais tarde
nesses casos. diremos em quê- 7.
Podemos tomá-los no nosso quadro Com respeito à honra e à desonra, o
geral. Em relação aos sentimentos de meio-termo é o justo orgulho, o exces-
1107 b medo e de confiança, a coragem é o so é conhecido como uma espécie de
meio-termo; dos que excedem, o que o "vaidade oca" e a deficiência como
faz no destemor não tem nome (muitas uma humildade indébita; e a mesma
disposições não o têm), enquanto o que relação que apontamos entre a liberali-
excede na audácia é temerário, e o que dade e a magnificência, da qual a pri- 25
excede no medo e mostra falta de meira difere por lidar com pequenas
audácia é covarde. Com relação aos quantias, também se verifica aqui, pois
prazeres e dores - não todos, e menos há uma disposição que tem alguns
5 no que tange às dores - o meio-termo pontos em comum com o justo orgu-
é a temperança e o excesso é a intem- lho, mas ocupa-se com pequenas hon-
perança. Pessoas deficientes no tocante ras, enquanto a este só interessam as
aos prazeres não são muito encontra- grandes. Porque é possível desejar a
diças, e por este motivo não receberam honra como se deve, mais do que se
nome; chamemo-las, porém, "insensí- deve e menos do que se deve, e o
veis". homem que excede em tais desejos é
No que se refere a dar e receber chamado ambicioso, o que fica aquém
dinheiro o meio-termo é a liberalidade; é desambicioso, enquanto a pessoa
o excesso e a deficiência, respectiva- intermediária não tem nome.
mente, prodigalidade e avareza. Nesta As disposições também não recebe- 30
10 espécie de ações as pessoas excedem e ram nome, salvo a do ambicioso, que
são deficientes de maneiras opostas: o se chama ambição. Por isso, as pes-
no gastar e é deficiente soas que se encontram nos extremos
no receber, enquanto o avaro excede arrogam-se a posição intermediária; e
no receber e é deficiente no gastar. (De nós mesmos às vezes chamamos as
momento, tudo que fazemos é dar um pessoas intermediárias de ambiciosas e
esboço ou sumário, e com isso nos outras vezes de desambiciosas, e ora
15 contentamos; mais adiante essas dis- louvamos a primeira disposição, ora a
posições serão descritas com mais segunda.' A razão disso será dada mais 1108 a
exatídâos 6). adiante- 8; agora, porém, falemos
Ainda no que diz respeito ao dinhei-
27 1122 a 20-29; 1122 b 10-18. (N. do T.)
2 6 Ver Livro IV, cap. I. (N. do T.) 28 1108.b 11-26; 1125 b 14-18. (N. doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - II 75

sobre as demais disposições, de acordo pessoa que mostra deficiência é uma


com o método indicado. espécie de rústico e a sua disposição é
No tocante à cólera também há um a rusticidade.
excesso, uma falta e um meio-termo. Vejamos, finalmente, a terceira espé-
5 Embora praticamente não tenham cie de aprazibilidade, isto é, a que se
nomes, uma vez que chamamos calmo manifesta na vida em geral. O homem
ao homem intermediário, seja o meio- que sabe agradar a todos da maneira
termo também a calma; e dos que se devida é amável, e o meio-termo é a
encontram nos extremos, chamemos amabilidade, enquanto o que excede os
irascível ao que excede e irascibilidade limites é uma pessoa obsequiosa se não
ao seu vício; e ao que fica aquém da tem nenhum propósito determinado,
justa medida chamemos pacato, e um lisonjeiro se visa ao seu interesse
pacatez à sua deficiência. próprio, e o homem que peca por defi-
/O Há outros três meios-termos que ciência e se mostra sempre desagra-
diferem entre si, apesar de revelarem dável é uma pessoa mal-humorada e
uma certa semelhança comum. Todos rixenta.
eles dizem respeito ao intercâmbio em Também há meios-termos nas pai- 30
atos e palavras, mas diferem no seguin- xôes e relativamente a elas, pois que a
te: um se relaciona com a verdade nes- vergonha não é uma virtude, e não obs-
sas esferas e os outros dois com o que tante louvamos os modestos.
é aprazível; e destes, um se manifesta nesses assuntos, diz-se que um homem
em proporcionar divertimento e o é intermediário e um outro excede,
outro em todas as circunstâncias da como, por exemplo, o acanhado que se
vida. É preciso, portanto, falar destes envergonha de tudo; enquanto o que
dois, a fim de melhor compreendermos mostra deficiência e não se envergonha
I5 que em todas as coisas o meio-termo é de coisa alguma é um despudorado, e a
louvável e os extremos nem louváveis pessoa intermediária é modesta.
nem corretos, mas dignos de censura. A justa indignação é um meio-termo 35
Ora, a maioria dessas disposições tam- entre a inveja e o despeito, e estas
bém não receberam nomes, mas deve- disposições se referem à dor e ao pra- 1108b
mos esforçar-nos por inventá-los, para zer que nos inspiram a boa ou má for-
que a nossa exposição seja clara e fácil tuna de nossos semelhantes. O homem
de acompanhar. que se caracteriza pela justa indigna-
20 No que toca à verdade, o interme- ção confrange-se com a má fortuna
diário é pessoa verídica e ao meio- imerecida; o invejoso, que o ultra-
termo podemos chamar veracidade, passa, aflige-se com toda boa fortuna
enquanto a simulação que exagera é a alheia; e o despeitado, longe de se afli- 5
jactância e a pessoa que se caracteriza gir, chega ao ponto de rejubilar-se.
por esse hábito é jactanciosa; e a que Teremos oportunidade de descrever
subestima é a modéstia, a que alhures estas disposições- 9. Quanto à
corresponde a pessoa falsamente mo- justiça, como o significado deste termo
desta'. não é simples, após descrever as outras
Quanto à aprazibilidade no propor- dispÓsições distinguiremos nele duas
cionar divertimento, a pessoa interme-
diária é espirituosa e ao meio-termo
chamamos espírito; o excesso é a 29 o lugar é incerto; talvez Livro III, cap. 6 -
Livro IV, cap. 9, onde se trata das virtudes morais
chocarrice, e a pessoa caracterizada em conjunto, ou talvez Livro IV, cap. 9, onde se
25 por ele, um chocarreiro, enquanto a cute a vergonha. (N. do T.)
76 ARISTÓTELES

espécies e mostraremos em que sentido trataremos do mesmo modo as virtu- /0


cada uma delas é um meio-termo; e des racionais.

Existem, pois, três espécies de dispo- mostram certa semelhança com o


sições, sendo duas delas vícios que meio-termo, como a temeridade com a
envolvem excesso e carência respecti- coragem e a prodigalidade com a libe-
vamente, e a terceira uma virtude, isto ralidade. Os extremos, porém, mos-
é, o meio-termo. E em certo sentido tram a maior disparidade entre si; ora,
cada uma delas se opõe às outras duas, os contrários são defmidos como as
pois que cada disposição extrema é coisas que mais se afastam uma da
contrária tanto ao meio-termo como outra, de modo que as coisas mais
ao outro extremo, e o meio-termo é afastadas entre si são mais contrárias.
contrário a ambos os extremos: assim Ao meio-termo, o mais contrário às 1109.
como o igual é maior relativamente ao vezes é a deficiência, outras vezes o
menor e menor relativamente ao excesso. Por exemplo, não é a temeri-
maior, também os estados medianos dade, que representa um excesso, mas
são excessivos em confronto com as a covardia, uma deficiência, que mais
deficiências e deficientes quando com- se opõe à coragem; mas no caso da
parados com os excessos, tanto nas temperança, o que mais se lhe opõe é a
paixões como nas ações, Com efeito, o intemperança, um excesso.
bravo parece temerário em relação ao Isso se deve a dois motivos, um dos
20 covarde, e covarde em relação ao quais reside na própria coisa: pelo fato
temerário; e, da mesma forma, o tem- de um dos extremos estar mais pró-
perante parece um voluptuoso em rela- ximo do meio-termo e assemelhar-se
ção ao insensível e insensível em rela- mais a ele, não opomos ao meio-termo
ção ao voluptuoso, e o liberal parece esse extremo, e sim o seu contrário.
pródigo em confronto com o avaro e Por exemplo, como a temeridade é
avaro em confronto com o pródigo. considerada mais semelhante à cora-
Por isso as pessoas que se encontram gem e mais próxima desta, e a covar-
nos extremos empurram uma para a dia mais dessemelhante, é este último
outra a intermediária: o homem bravo extremo que costumamos opor ao
é chamado de temerário pelo covarde e meio-termo; porquanto as coisas que /0
covarde pelo temerário, e analoga- mais se afastam do meio-termo são
mente nos outros casos. consideradas como mais contrárias a
Opostas são umas às outras ele.
essas disposições, a maior contrarie- Esta é, pois, a causa inerente à pró-
dade é a que se observa entre os extre- pria coisa. A outra reside em nós mes-
mos, e não destes para com o meio- mos, pois aquilo para que mais tende-
termo; porquanto os extremos estão mos por natureza nos parece
mais longe um do outro que do meio- contrário ao meio-termo. Por exemplo,
termo, assim como o grande está mais nós próprios tendemos mais natural-
30 longe do pequeno e o pequeno do gran- mente para os prazeres, e por isso
de, do que ambos estão do igual. somos mais facilmente levados àin-
Por outro lado, alguns extremos temperança do que à contenção. Daí
ÉTICA A NICÔMACO - II 77

dizermos mais contrários ao meio- por isso a intemperança, que é um


termo aqueles extremos a que nos dei- excesso, é mais contrária à tempe-
xamos arrastar com mais freqüência; e rança.

9
20 Está, pois, suficientemente esclare- pende numa direção e outro em outra;
cido que a virtude moral é um meio- e isso se pode reconhecer pelo prazer e
termo, e em que sentido devemos pela dor que sentimos.
entender esta expressão; e que é um É preciso forçar-nos a na direção 5
meio-termo entre dois vícios, um dos do extremo contrário, porque chegare-
quais envolve excesso e o outro defi- mos ao estado intermediário afastan-
ciência, e isso porque a sua natureza é do-nos o mais que pudermos do erro,
visar à mediania nas paixões e nos como procedem aqueles que procuram
atos, endireitar varas tortas.
Do que acabamos de dizer segue-se Ora, em todas as coisas o agradável
que não é fácil ser bom, pois em todas e o prazer é aquilo de que mais deve-
as coisas é difícil encontrar o meio- mos defender-nos, pois não podemos
25 termo. Por exemplo, encontrar o meio julgá-lo com imparcialidade. A atitude
de um círculo não é para qualquer um, a tomar em face do prazer é, portanto,
mas só aquele que sabe fazê-lo; e, a dos anciãos do povo para com Hele- 10
do mesmo modo, qualquer um pode na, e em todas as circunstâncias cum-
encolerizar-se, dar ou gastar dinheiro pre-nos dizer o mesmo que eles; por-
- isso é fácil; mas fazê-lo à pessoa que, se não dermos ouvidos ao prazer,
que convém, na medida, na ocasião, correremos menos perigo de errar. Em
pelo motivo e da maneira que convém, resumo, é procedendo dessa forma que
eis o que não é para qualquer um e teremos mais probabilidades de acertar
tampouco fácil. Por isso a bondade o meio-termo.
tanto é rara como nobre e louvável. Não há negar, porém, que isso seja
30 Por conseguinte, quem visa ao difícil, especialmente nos casos parti-
meio-termo deve primeiro afastar-se do culares: pois quem poderá determinar 15
que lhe é mais contrário, como aconse- com precisão de que modo, com quem,
lha Calipso: resposta a que provocação e duran-
Passa largo de tal ressaca e de tal te quanto tempo devemos encolerizar-
surriadaêo. Com efeito, dos extremos, nos? E às vezes louvamos os que ficam
um mais errôneo e o outro menos; aquém da medida, qualificando-os de
portanto, como acertar no meio-termo calmos, e outras vezes louvamos os
é extraordinariamente difícil, devemos que se encolerizam, chamando-os de
contentar-nos com o menor dos males, varonis. Não se censura, contudo, o
35 como se costuma dizer; e a melhor homem que se desvia um pouco da
maneira de fazê-lo é a que descreve- bondade, quer no sentido do menos,
1109 b mos. Mas devemos considerar as coi- quer do mais; só merece reproche o
sas para as quais nós próprios somos homem cujo desvio é maior, pois esse 20
facilmente arrastados, porque um nunca passa despercebido.
Mas até que ponto um homem pode
30 Odisséia, XII, 219 55. (N. do T.) desviar-se sem merecer censura? Isso
78 ARISTÓTELES

não é fácil de determinar pelo raciocí- as coisas o meio-termo é digno de ser


nio, como tudo que seja percebido louvado, mas que às vezes devemos
pelos sentidos; tais coisas dependem de inclinar-nos para o excesso e outras
circunstâncias particulares, e quem de- vezes para a deficiência. Efetivamente,
cide é a percepção. essa é a maneira mais fácil de atingir o
Fica bem claro, pois, que em todas meio-termo e o que é certo.
LIVRO 111
81

30 Visto que a virtude se relaciona com Tais atos, pois, são mistos, mas
paixões e açôes, e é às paixões e ações assemelham-se mais a atos voluntários
voluntárias que se dispensa louvor e pela razão de serem escolhidos no
censura, enquanto as involuntárias me- momento em que se fazem e pelo fato
recem perdão e às vezes piedade, é tal- de ser a fmalidade de uma ação rela-
vez necessário a quem estuda a natu- tiva às circunstâncias. Ambos
reza da virtude distinguir o voluntário termos, "voluntário" e "involuntário",
do involuntário. Tal distinção terá devem portanto ser usados com refe- 15

também utilidade para o legislador no rência ao momento da ação. Ora, o


que tange à distribuição de honras e homem age voluntariamente, pois nele
castigos. se encontra o princípio que move as
35 São, pois, consideradas partes apropriadas do corpo em tais
tárias aquelas coisas que ocorrem sob açôes; e aquelas coisas cujo princípio
11100 compulsão ou ignorância; e é motor está em nós, em nós está igual-
compulsório ou forçado aquilo cujo mente o fazê-las ou não as fazer.
princípio motor se encontra fora de Ações de tal espécie são,·por conse-
nós e para o qual em nada contribui a guinte, voluntárias, mas em abstrato
pessoa que age e que sente a paixão - talvez sejam involuntárias, pois que
por exemplo, se tal pessoa fosse levada ninguém as escolheria por si mesmas.
a alguma parte pelo vento ou por ho- Por ações dessa espécie os homens 10
mens que dela se houvessem apodera- são até louvados algumas vezes, quan-
do. do suportam alguma coisa vil ou dolo-
Mas, quanto às coisas que se prati- rosa em troca de grandes e nobres
5 cam para evitar maiores males com objetivos alcançados; no caso contrá-
algum nobre propósito (por exemplo, rio são censurados, porque expor-se às
se um tirano ordenasse a alguém um maiores indignidades sem qualquer
ato vil e esse alguém, tendo os pais e os fmalidade nobre ou por um objetivo
filhos em poder daquele, praticasse o insignificante é próprio de um homem
ato para salvá-los de serem mortos), é inferior.
discutível se tais atos são voluntários Algumas ações, em verdade, não
ou involuntários. Algo de semelhante merecem louvor, mas perdão, quando 15
acontece quando se lançam cargas ao alguém faz o que não deve sem sofrer
/O mar durante uma tempestade; porque, uma pressão superior às forças huma-
em teoria, ninguém voluntariamente nas e que homem algum poderia supor-
joga fora bens valiosos, mas quando tar. Mas há talvez atos que ninguém
assim o exige a segurança própria e da nos pode forçar a praticar e a que
tripulação de um navio, qualquer devemos preferir a morte entre os mais
homem sensato o fará. horríveis sofrimentos; e os motivos que
82 ARISTÓTELES

"forçaram" o Alcmêon de Eurípides a mesmo, julgando-se facilmente arras-


matar a própria mãe nos parecem tado por tais atrativos, e declarar-se
absurdos. É por vezes difícil determi- responsável pelos atos nobres en-
nar o que se deveria escolher e a que quanto se lança a culpa dos atos vis
custo, e o que deveria ser suportado em sobre os objetos agradáveis.
30 troca de que vantagem; e ainda mais O compulsório parece, pois, ser 15
difícil é permanecer firme nas resolu- aquilo cujo princípio motor se encon-
ções tomadas, pois por via de regra o tra do lado de fora, para nada contri-
que se espera é doloroso e o que somos buindo quem é forçado.
forçados a fazer é vil; donde serem ob- Tudo o que se faz por ignorância é
jeto de louvor e censura aqueles que não-voluntário, e só o que produz dor e
foram ou que não foram compelidos a arrependimento é involuntário. Com
agir. efeito, o homem que fez alguma coisa
1110 Que espécie de ações se devem, pois, devido à ignorância e não se aflige em
chamar forçadas? Respondemos que, absoluto com o seu ato não agiu volun- 20
sem ressalvas de qualquer espécie, as tariamente, visto que não sabia o que
ações são forçadas quando à causa se fazia; mas tampouco agiu involunta-
encontra nas circunstâncias exteriores riamente, já que isso não lhe causa dor
e o agente em nada contribui. Quanto alguma. assim, das pessoas que
às coisas que em si mesmas são agem por ignorância, as que se arre-
'involuntárias, mas, no momento atual pendem são consideradas agentes invo-
e devido às vantagens que trazem con- luntários, e as que não se arrependem
sigo, merecem preferência, e cujo prin- podem ser chamadas agentes não-vo-
cípio motor se encontra no agente, luntários, visto diferirem das primei-
essas são, como dissemos, involun-
ras; em razão dessa própria diferença,
5 tárias em si mesmas, porém, no mo-
devem ter uma denominação distinta.
mento atual e emtroca dessas vanta-
gens, voluntârias.. E têm mais Agir por ignorância parece diferir 25

semelhança com as voluntárias, pois também de agir na ignorância, pois do


que as ações sucedem nos casos parti- homem embriagado ou enfurecido
culares e, nestes, são praticadas volun- diz-se que age não em resultado da
tariamente. Que espécies de coisas ignorância, mas de uma das causas
devem ser preferidas, e em troca de meacionadas, e contudo sem conheci-
quê? Não é fácil determiná-lo, pois mento do que faz, mas na ignorância.
existem muitas diferenças entre um Ora, todo homem perverso ignora o
caso particular e outro. que deve fazer e de que deve abster-se,
Se alguém afirmasse que as coisas e é em razão de um erro desta espécie
nobres e agradáveis têm um poder os homens se injustos e,
10 compulsório porque nos constrangem em geral, maus. Mas o termo "involun-
de fora, para ele todos os atos seriam tário" não é geralmente usado quando 30
compulsórios e forçados, pois tudo que o homem ignora o que lhe traz vanta-
fazemos tem essa motivação. E os que gem - pois não é o propósito equivo-
agem forçados e contra a sua vontade, cado que causa a ação involuntária
agem com dor, mas os que praticam (esse conduziria antes à maldade), nem
atos por sua satisfação própria ou pelo a ignorância do universal (pela qual os
que aqueles têm de nobre fazem-no homens são passíveis de censura), mas
com prazer. É absurdo responsabilizar ignorância dos particulares, isto é,
as circunstâncias exteriores e não a si das -circunstâncias do ato e dos objetos
I

ÉTICA A NICÔMACO - III 83

com que ele se relaciona. São justa- tos mais importantes, que, na opinião
mente esses que merecem piedade e geral, são as circunstâncias e a finali-
II11 a perdão, porquanto a pessoa que ignora dade do ato. Além disso, a prática de
qualquer dessas coisas age involunta- um ato considerado involuntário em
riamente. virtude de urna ignorância desta espé- 20

Talvez convenha determinar aqui a cie deve causar dor e trazer arrependi-
natureza e o número de tais atos. Um mento.
homem pode ignorar quem ele próprio Como tudo o que se faz constrangido
é, o que está fazendo, sobre que coisas ou por ignorância é involuntário, o
ou pessoas está agindo, e às vezes tam- voluntário parece aquilo cujo prin-
5 bém qual é o instrumento que usa, com cípio motor se encontra no próprio
que fim (pode pensar, por exemplo, que agente que tenha conhecimento das
está protegendo a segurança de circunstâncias particulares do ato. É
guém) e de que maneira age (se com de presumir que os atos praticados sob
brandura ou com violência, por exem- o impulso da cólera ou do apetite não
plo). mereçam a qualificação de involuntá-
Ora, nenhuma destas coisas um rios. Porque, em primeiro lugar, se fos- 25
homem pode ignorar, a não ser que es- sem tais, nenhum dos outros animais
teja louco, e também é claro que não agiria voluntariamente, e as crianças
pode ignorar o agente, pois como é tampouco; e, em segundo lugar, seria o
possível desconhecer a si mesmo? Mas caso de perguntar se o que se entende
é possível ignorar o que se está fazen- por isso é que não praticamos volunta-
do: costumamos dizer, com efeito, "ele riainente nenhum dos atos devidos ao
deixou escapar estas palavras que- apetite ou à cólera, ou se praticamos
rer", ou "não sabia que se tratava de voluntariamente os atos nobres e invo-
um segredo", se expressou És- luntariamente os vis. Não é absurdo
10 quilo a respeito dos mistérios, ou como isso, quando a causa é uma só e a
aquele homem que disparou a cata- mesma? Inegavelmente, seria estranho 30

pulta e desculpou-se alegando que só qualificar de involuntárias as coisas


queria mostrar o seu funcionamento e que devemos desejar; e é certo que
ela disparara por si. devemos encolerizar-nos diante de cer-
Também é possível confundir nosso tas coisas e apetecer outras: por exem-
filho com um inimigo, como ocorreu plo, a saúde e a instrução.
com Mérope, ou pensar que uma lança Por outro lado, o involuntário é
pontiaguda tem a ponta embotada, ou considerado doloroso, mas o que está
que uma pedra é pedra-pomes; e pode- de acordo com o apetite é agradável.
se dar a um homem uma poção para Ainda mais: qual a diferença, no que
curá-lo, e ao invés disso matá-lo; e tange à involuntariedade, entre os
também ferir um adversário quando se erros cometidos a frio e aqueles em que
15 pretende apenas tocá-lo, como acon- caímos sob a ação da cólera? Ambos 1111 b

tece no pugilato. devem ser evitados, mas as paixões


A ignorância pode relacionar-se, irracionais não são consideradas
portanto, com qualquer dessas coisas menos humanas do que a razão; por
- isto é, qualquer das circunstâncias conseguinte, também as ações que pro-
do ato; e do homem que ignorava uma cedem da cólera ou do apetite são
delas diz-se que agiu involuntaria- ações do homem. Seria estranho, pois,
mente, sobretudo se ignorava os pon- tratá-las como involuntárias.
r
84 ARISTÓTELES

2
Tendo sido delimitados desta forma nenhum efeito teriam os nossos esfor-
5 o voluntário e o involuntário, devemos ços pessoais, como, por exemplo, que
passar agora ao exame da escolha, .determinado ator ou atleta vença uma 25
que, para os espíritos discriminadores, competição; mas ninguém escolhe tais
parece estar mais estreitamente ligada coisas, e sim aquelas que julga pode-
à virtude do que as ações. . rem realizar-se graças aos esfor-
A escolha, pois, parece ser voluntá- ços.
ria, mas não se identifica com o volun- Além disso, o desejo relaciona-se
tário. O segundo conceito tem muito com o fim e a escolha com os meios.
mais extensão. Com efeito, tanto as Por exemplo: desejamos gozar saúde,
crianças como os animais inferiores mas escolhemos os atos que nos torna-
participam da ação voluntária, porém rão sadios; e desejamos ser felizes, e
não da escolha; e, embora chamemos confessamos tal desejo, mas não pode-
voluntários os atos praticados sob o mos dizer com acerto que "escolhe-
impulso do momento, não dizemos que mos" ser felizes, pois, de um modo
foram escolhidos. geral, a escolha parece relacionar-se
/O Os que a definem como sendo um com as coisas que estão em nosso
apetite, a cólera, um desejo ou uma poder.
espécie de opinião, não parecem ter Também por este motivo, não se 30
razão. Efetivamente,a escolha não é pode identificá-la com a opinião, uma
também comum às criaturas irracio- vez que esta se relaciona com toda a
nais, mas a cólera e o apetite, sim. Por sorte de coisas, não menos as eternas e
outro lado, o incontinente age com as impossíveis do' que as que estão em
apetite, porém não com escolha; o nosso poder; e, por outro lado, ela se
15 continente, pelo contrário, age com distingue pela verdade ou falsidade, e
escolha, porém não com apetite. Ainda não pela bondade ou maldade, en-
mais: há contrariedade entre apetite e quanto a escolha se caracteriza acima
escolha, mas entre apetite e apetite, de tudo por estas últimas.
não. E ainda: o apetite relaciona-se Ora, com a opinião em geral não há
com o agradável e o doloroso; a esco- ninguém que a identifique. Nós, 1112 a

lha, nem com um, nem com o outro. porém, acrescentamos que ela não é
Se assim acontece com o apetite, idêntica a nenhuma espécie de opinião.
tanto mais com a cólera; porquanto Com efeito, por escolher o que é bom
os atos inspirados por esta são consi- ou mau 801110S homens de um determi-
derados ainda menos objetos de esco- nado caráter, mas não o somos por
lha do que os outros. sustentar esta ou aquela opinião. E
20 Nem tampouco o é o desejo, embora escolhemos obter ou evitar algo bom
pareça estar mais próximo dela. Com ou mau, mas temos opiniões sobre o
efeito, a escolha não pode visar a coi- que seja uma coisa, para quem ela é
sas impossíveis, e quem declarasse boa e de que maneira é boa para ele; e
escolhê-las passaria por tolo e ridículo; não seria muito acertado dizer que
mas pode-se desejar o impossível - a "opinamos" obter ou evitar uma coisa 5
imortalidade, por exemplo. E o desejo qualquer.
pode relacionar-se com coisas em que Acresce que a escolha é louvada
ÉTICA A NICÔMACO III 85

pelo fato de relacionar-se com o objeto Não faz diferença que a opinião pre-
conveniente, e não de relacionar-se ceda a escolha ou a acompanhe, pois
convenientemente com ele, ao passo não é isso que estamos examinando,
que a opinião é louvada quando tem mas sim se a escolha é idêntica a algu-
uma relação verdadeira com o seu ma espécie de opinião.
objeto. E também escolhemos o que Que é ela, pois, e que espécie de.
sabemos ser melhor, tanto quanto nos coisa é, se não se identifica com nenhu- 15
é dado sabê-lo, mas opinamos sobre o ma daquelas que examinamos? Parece
que não sabemos exatamente; e não ser voluntária, mas nem tudo que é
são as mesmas pessoas que passam voluntário parece ser objeto de esco-
por fazer as melhores escolhas e sus- lha. Será, pois, aquilo que decidimos
10 tentar as melhores opiniões, mas de numa análise anterior? De qualquer
algumas se diz que têm excelentes opi- forma, a escolha envolve um princípio
niões, e no entanto padecem de um racional e o pensamento. Seu próprio
vício qualquer que as impede de esco- nome parece sugerir que ela é aquilo
lher bem. que colocamos diante de outras coisas.

3
Mas delibera-se acerca de toda citas. Com efeito, nenhuma dessas coi-
coisa, e toda coisa é um possível sas pode realizar-se pelos nossos esfor-
assunto de deliberação, ou esta é ços.
impossível a respeito de algumas? Deliberamos sobre as coisas que 30
20 É de presumir que devamos chamar estão ao nosso alcance e podem ser
objeto de deliberação não àquilo que realizadas; e essas são, efetivamente,
um néscio ou um louco deliberaria, as que restam. Porque como causas
mas àquilo sobre que pode deliberar admitimos a natureza, a necessidade, o
um homem sensato. Ora, sobre coisas acaso, e também a razão e tudo que
eternas ninguém delibera: por exem- depende do homem. Ora, cada classe
plo, sobre o universo material ou sobre de homem delibera sobre as coisas que
a incomensurabilidade da diagonal podem ser realizadas pelos seus esfor-
com o lado do quadrado. E tampouco ços. E no caso das ciências exatas e
deliberamos sobre as coisas que envol- auto-suficientes não há deliberação,
25 vem movimento, mas sempre aconte- como, por exemplo, a respeito das le- 1I12b

cem do mesmo modo, quer necessaria- tras do alfabeto (pois não temos dúvi-
mente, quer por natureza ou por das quanto à maneira de escrevê-las);
alguma outra causa, como os solstícios ao contrário as coisas que são realiza-
eo das estrelas; nem a res- das pelos nossos esforços, mas nem
peito de que acontecem ora de sempre do mesmo modo, essas sãq
um modo, ora de outro, como as secas objetos de deliberação: os problemas
e as chuvas; nem sobre acontecimentos de tratamento médico e de comércio,
fortuitos, como a descoberta de um por exemplo. E deliberamos mais no 5
tesouro.. E nem sequer deliberamos caso da navegação do que no da ginás-
sobre todos os assuntos humanos: por tica, porque aquela está mais longe de
exemplo, nenhum espartano delibera ser exata. E nas outras coisas igual-
sobre a melhor constituição para os mente; mais, porém, quanto às artes do
r
86 ARISTÓTELES

que quanto às ciências, pois que as pri- o objeto da investigação são por
meiras comportam maiores dúvidas. vezes os instrumentos e por vezes o
Delibera-se a respeito das coisas que uso a dar-lhes; e analogamente nos ou- 30'

comumente acontecem de certo modo, tros casos: por vezes o meio, outras
mas cujo resultado é obscuro, e daque- vezes a maneira de usá-lo ou de
10 las em que este é indeterminado. E nas produzi-lo.
coisas de grande monta tomamos Parece: pois, como já ficou dito, que
conselheiros, por não termos confiança o homem é um princípio motor de
em nossa capacidade de decidir. ações; ora, a deliberação gira em tomo
Não deliberamos acerca de fins, mas de coisas a serem feitas pelo próprio
a respeito de meios. Um médico, por agente, e as ações têm em vista outra
exemplo, não delibera se de curar coisa que não elas mesmas. Com efei-
ou não, nem um orador se de per- to, o fim não pode ser objeto de delibe-
suadir, nem um estadista se há de ração, mas apenas o meio. E tampouco
implantar a ordem pública, nem qual- podem sê-lo os fatos particulares: por 1113 a
quer outro delibera a respeito de sua 'exemplo, se isto é pão e se foi assado
15 fmalidade. Dão a fmalidade por esta-
como devia, pois tais coisas são obje-
belecida e consideram a maneira e os tos de percepção. Se quiséssemos deli-
meios de alcançá-la; e, se parece poder berar sempre, teríamos de continuar
ser alcançada por vários meios, procu- até o infinito,
ram o mais fácil e o mais eficaz; e se É a mesma coisa aquela sobre que
por um SÓ, examinam como será alcan- deliberamos e a que escolhemos, salvo
çada por ele, e por que outro meio estar o objeto de escolha já determi-
alcançar esse primeiro, até chegar ao nado, já que aquilo por que nos decidi-
primeiro princípio, que na ordem de ,mos em resultado da deliberação é o,
descobrimento é o último.
objeto da escolha. Efetivamente, todos 5
20 Com efeito, a pessoa que delibera
cessam de indagar como devem agir
parece investigar e analisar da maneira
depois que fizeram voltar o princípio
que descrevemos, como se 'analisasse
motor a si mesmos e à parte dirigente
uma construção geométrica (nem toda
investigação é deliberação: vejam-se, 'de si mesmos, pois é essa que escolhe:
por exemplo, as investigações matemá- Isto se, pode ver também nas antigas
ticas; mas toda deliberação é investiga- constituições tais como no-las mostra
ção); e o que vem em último lugar na Homero, onde os reis anunciavam ao
ordem da análise parece ser primeiro povo o que haviam escolhido.
25 na ordem da geração. E se chegamos a , Sendo, pois, o objeto de escolha' 10

uma impossibilidade, renunciamos à uma coisa que está ao nosso alcance e


busca: por exemplo, se precisamos de que é desejada após deliberação, a
dinheiro e não há maneira de conse- escolha é um desejo deliberado de coi-
gui-lo; mas se uma coisa parece possí-. sas que estão nosso alcance; por-
vel, tratamos de fazê-la. coisas que, após decidir em resultado de uma
"possíveis" entendo aquelas que se deliberação, desejamos de acordo com
podem realizar pelos nossos esforços;' o que deliberamos.
e, em certo sentido, inclui as que , Consideremos, pois, como descrita
podem ser postas em" prática pelos em linhas gerais a escolha, estabele-
esforços de nossos amigos, pois que o cida, a natureza dos seus objetos e o
, princípio motor está em nós mesmos. fato de que ela diz respeito aos meios.
ÉTICA A NICÕMACO - III 87

4
15 Já mostramos que o desejo tem por desejo para o homem bom, e que qual-
objeto o fim; alguns pensam que esse quer coisa pode sê-lo para o homem
fim é o bem, e outros que éo bem apa- mau, assim como, no caso dos corpos,
rente. Ora, os primeiros terão de admi- as coisas que em verdade são saudá-
tir, como conseqüência de sua premis- veis o são para os corpos em boas
sa, que a coisa desejada pelo homem condições, enquanto para os corpos
que não escolhe bem não é realmente enfermos outras coisas é que são
um objeto de desejo (porque, se o saudáveis, ou amargas, doces, quentes,
fosse, deveria ser boa também; mas no pesadas, e assim por diante? Com efei-
caso que consideramos é má). Por to, o homem bom aquilata toda classe 30
20 outro lado, os que afirmam ser objeto de coisas com acerto, e em cada uma
de desejo o bem aparente devem admi- delas a verdade lhe aparece com clare-
tir que não existe objeto natural de za; mas cada disposição de caráter tem
desejo, mas apenas o que parece bom a suas idéias próprias sobre o nobre e o
cada homem é desejado por ele. Ora, agradável, e a maior diferença entre o
coisas diferentes e até contrárias pare- homem bom e os outros consiste, tal-
cem boas a diferentes pessoas. vez, em perceber a verdade em cada
Se estas conseqüências desagradam, classe de coisas, como quem é a
deveremos dizer que em absoluto e em norma e a medida. Na maioria dos
verdade o bem é objeto de desejo, casos o engano deve-se ao prazer, que
25 mas para cada pessoa em particular o parece bom sem realmente sê-lo; e por
é o bem aparente; que aquilo que em isso escolhemos o agradável como um
verdade é objeto de desejo é objeto bem e evitamos a dor como um mal.

5
Sendo, pois, o fim aquilo que deseja- do isso Logo, depende de nós pra-
mos, e o meio aquilo acerca do. qual ticar atos nobres ou vis, e se é isso que
deliberamos e que escolhemos, as se entende por ser bom ou mau, então
5 ações relativas meio devem concor- depende de nós sermos virtuosos ou
dar com a escolha e ser voluntárias. viciosos.
Ora, o exercício da virtude diz respeito O aforismo "ninguém é voluntaria-
aos meios. Por conseguinte, a virtude mente mau, nem involuntariamente
também está em nosso poder, do feliz" parece ser em parte falso e em 15
mesmo modo que o vício, pois quando parte verdadeiro, porque ninguém é
depende de nós o agir, também depen- involuntariamente feliz, mas a malda-
de o não agir, e vice-versa; de de é voluntária. Do contrário, teremos
modo que quando temos o poder de de contestar o que se acabou de dizer,
agir quando isso é nobre, também e negar que o homem seja um princípio
10 temos o de não agir quando é vil; e se motor e pai de suas ações como o é de
está em nosso poder o não agir quando seus filhos. Mas, se esses fatos são evi-
isso é nobre, também está o agir quan- dentes e não podemos referir nossas
r
88 ARISTÓTELES

ações a outros princípios motores que responsáveis por serem injustos ou


20 não estejam em nós mesmos, os atos intemperantes, no primeiro caso bur-
cujos princípios motores se encontram lando o próximo e no segundo pas-
em nós devem também em nosso sando o seu tempo em orgias e coisas
poder e ser voluntários.. que tais; pois são as atividades exerci-
Isto parece ser confirmado tanto por das sobre objetos particulares que
indivíduos na sua vida particular como fazem o caráter correspondente. Bem o
pelos próprios legisladores, os quais mostram as pessoas que se treinam
punem e castigam os que cometeram para uma competição ou para
atos perversos, a não ser que tenham ação qualquer, praticando-a constante-
sido forçados a isso ou agido em resul- mente.
tado de uma ignorância qual eles Ora, ignorar que é pelo exercício de
25 próprios não fossem responsáveis; e, atividades sobre objetos particulares 10

por outro lado, honram os que pratica- que se formam as disposições de cará-
ram atos nobres, como se tencio- ter é de homem verdadeiramente insen-
.nassem os segundos e refrear sato. Não menos irracional é supor que
os primeiros. Mas ninguém é estimu- um homem que age injustamente não
lado a fazer coisas que não estejam em deseja ser injusto, ou aquele que corre
seu poder nem sejam voluntárias;' atrás de todos os prazeres não deseja
admite-se que não há vantagem nenhu- ser intemperante. Mas quando, sem ser
ma em sermos persuadidos a não sentir ignorante, um homem faz coisas que o
calor, fome, dor e outras sensações do tomarão injusto, ele será injusto volun-
mesmo gênero, já que não as senti- tariamente. Daí não se segue, porém,
30 ríamos menos por isso. E sucede até que, se assim o desejar, deixará de ser
que um homem seja punido pela sua injusto e se tomará justo. Porque tam- 15

própria ignorância quando o julgam pouco o que está enfermo se cura nes-
responsável por ela, como no caso das sas condições.
penas dobradas para os ébrios; pois o Podemos supor o caso de um
princípio motor está no próprio indiví- homem que seja enfermo voluntaria-
duo, visto que ele tinha o poder de não mente, por viver na incontinência e
se embriagar, e o fato de haver desobedecer aos' seus médicos. Nesse
embriagado foi causa da sua ignorân- caso, a princípio dependia dele o não
cia. E punimos igualmente aqueles que ser doente, mas agora não sucede
ignoram quaisquer prescrições das leis, assim, porquanto virou as costas à sua
11143 quando a todos cumpre conhecê-las e oportunidade - tal como para quem
isso não é difícil; e da. mesma forma arremessou uma pedra já não é possí-
em todos os casos em que a ignorância vel recuperá-la; e contudo estava em
seja atribuída" à negligência: presumi- seu poder não arremessar, visto que o
mos que dependa dos culpados o não princípio se encontrava nele. O
ignorar, visto que têm o poder de infor- mesmo sucede com o injusto e o intem- 20
mar-se diligentemente. perante: a princípio dependia deles não
Mas talvez um homem seja feito de se tomarem homens dessa espécie, de
tal modo que não possa ser diligente. modo que é por sua própria vontade
Sem embargo, tais homens são respon- são injustos e intemperantes; e
sáveis em razão da vida indolente que agora que se tomaram tais, não lhes é
5 levam, por se haverem tomado pessoas possível ser diferentes.
dessa espécie. Os homens tomam-se Mas só os vícios da alma são
ÉTICA A NICÔMACO - III 89

voluntários, senão que também os do Se isto é verdade, como será a virtu-


corpo o são para alguns homens, aos de mais voluntária do que o vício?
quais censuramos por isso mesmo: ao Tanto para o homem bom como para o
passo que ninguém censura os que são mau, o fim se apresenta tal e é fixado 15
25 feios por natureza, censuramos os que pela natureza ou pelo que quer que
o são por falta de exercício e de cuida- seja, e todos os homens agem referindo
do. O mesmo vale para a fraqueza e a cada coisa a ele.
invalidez: ninguém condenaria um Portanto, quer não seja por natureza
cego de nascença, por doença ou por que o fim se apresente a cada homem
efeito de algum golpe, mas todos tal como se apresenta, algo todavia
censurariam um homem que tivesse também depende dele; quer o fim seja
gado em conseqüência da embriaguez natural, uma vez que o homem bom
ou de alguma outra forma.de intempe- adota voluntariamente o meio, a virtu-
rança. de é voluntária - o vício não será 20
Dos vícios do corpo, pois, os que menos voluntário, pois no homem mau
dependem de nós são censurados e está igualmente presente aquilo que
30 que não dependem não o são. E, assim depende dele próprio em seus atos,
sendo, também nos outros casos os ví- bora não na sua escolha de fim. Se,
cios que são objetos de censura devem pois, como se afirma, as virtudes são
depender de nós. voluntárias (pois nós próprios somos
Alguém poderia objetar que todos em parte responsáveis por nossas dis-
os homens desejam o bem aparente, posições de caráter, e é por sermos pes-
mas não têm nenhum controle sobre a soas de certa espécie que concebemos
aparência, e que o fim se apresenta a o fim como sendo talou tal), os vícios 25
cada um sob uma forma correspon- também serão voluntários, porque o
1114 b dente ao seu caráter. A isso respon- mesmo se aplica a eles.
demos que, se cada homem é de certo
modo responsável pela sua disposição
, Quanto às virtudes em geral, esbo-
de ânimo, será também de certo modo çamos uma definição do seu gênero,
responsável pela aparência; do contrá- mostrando que são meios e também
rio, ninguém seria responsável pelos que são disposições de caráter; e, além
seus maus atos, mas todos os pratica- disso, que tendem por sua própria
5 riam pela ignorância do fim, julgando natureza para a prática dos atos que as
que com eles lograriam o melhor. Ora, produzem; que dependem de nós, são
visar ao não depende da nossa 'voluntárias e agem de acordo com
escolha, mas é preciso ter nascido com prescrições da regra justa. Mas as 30

um sexto sentido, por assim dizer, que ações e as disposições de caráter não
nos permita julgar com acerto e esco- são voluntárias do mesmo modo, por-
lher o que é verdadeiramente bom; e que de princípio a fim somos senhores
realmente bem dotado pela natureza é de nossos atos se conhecemos as
quem o possui. Com efeito, isso é o circunstâncias; mas, embora contro-
que há de mais nobre, e não podemos o despontar de nossas disposi- 1115,

adquiri-lo nem aprendê-lo de outrem, ções de caráter, o desenvolvimento


mas o possuímos sempre tal como nos gradual não é óbvio, como não o é tam-
foi dado ao nascer; e ser bem e nobre- bém na doença; no entanto, como esta-
/o mente dotado dessa qualidade é a per- va em nosso poder agir ou não agir de
feição e a cúpula de ouro dos dotes tal maneira, as disposições são volun-
naturais. tárias.
90 ARISTÓTELES

Tomemos, porém, as várias virtudes relacionam com elas; e ao mesmo


e digamos quais são, com que espécies tempo se verá quantas são. Em pri-
de coisas se relacionam, e como se meiro lugar falemos da coragem.

6
Que a coragem é um meio-termo em gem quando está para ser açoitado.
relação aos sentimentos de medo e .Com que espécie de coisas terríveis, 25
confiança já foi suficientemente escla- então, se relaciona a bravura?
recído> '; e, evidentemente, as coisas Seguramente, com as maiores, pois
que tememos são coisas terríveis, que ninguém como o homem bravo é capaz
qualificamos sem reservas de males; e de fazer frente ao que aterroriza o
PQr este motivo alguns chegam a defi- comum das pessoas. Ora, a morte é a
/0 nir o medo como uma expectação do mais terrível de todas as coisas, pois
mal. ela é o fim, e acredita-se que para os
Ora, nós tememos todos os males, mortos já não há nada de bom ou mau.
como o desprezo, a pobreza, a doença, Mas a bravura não parece relacionar-
a falta de amigos, a morte; mas, não se se sequer com a morte em todas as
pensa que a bravura se relacione com circunstâncias - como no mar ou nas
todos eles, pois que temer certas coisas doenças, por exemplo. Em que circuns-
é até justo e nobre, e vil o não se arre- tâncias, então?
cear delas. O desprezo, por exemplo: Sem a menor dúvida, nas mais 30
quem o teme é pessoa boa e recatada, e nobres. Ora, essas mortes são as que
desavergonhada quem não o teme. No ocorrem em batalha, pois é em face
entanto, alguns chamam bravo a um dos maiores e mais nobres perigos que
/5 tal homem, por uma transferência do se verificam. E por isso mesmo são
sentido da palavra, visto ter ele algo honradas nas cidades-Estados e nas
em comum com o homem bravo, que cortes dos monarcas. Propriamente
também é destemido. falando, pois, é chamado bravo quem
Quanto à pobreza e à doença, talvez se mostra destemido em face de uma
não devêssemos temê-las, nem, em morte honrosa e de todas as emergên-
geral, às coisas que não procedem do cias que envolvem o perigo de morte; e
vício e não dependem de nós próprios. as emergências da guerra são, em
Mas tampouco o homem que não as sumo grau, desta espécie. 35
receia é bravo. No entanto, aplica- Mas também no mar e na doença o
mos-lhe o termo, também em virtude homem bravoê destemido, se bem que 1115 b
10 de uma semelhança, pois alguns que não do mesmo modo que o mari-
são covardes diante dos perigos da nheiro; porque ele renunciou à espe-
guerra mostram-se liberais e corajosos rança de salvar-se e. detesta a idéia
em face da perda de dinheiro. dessa espêcie-de morte, enquanto aque-
Tampouco é covarde o homem que les se mantêm esperançosos devido à
teme os insultos à sua esposa e a seus sua experiência. Por outro lado, somos 5
filhos, a inveja ou qualquer coisa dessa corajosos em situações que nos permi-
espécie; nem é bravo se mostra cora- tem mostrar o nosso valor ou em que a
morte seja nobre; mas nas formas de
morte que acabamos de apontar ne-
3' 1107 1107 b4. (N.do T.) nhuma dessas condições se realiza.
ÉTICA A NICÔMACO - III 91

7
As coisas terríveis não são as mes- cede no destemor não tem nome (jâ 25

mas para todos os homens. Dizemos, dissemos anteriormente que muitas


contudo, que algumas o são além das disposições de caráter não o têm 3 2 ) ,
forças humanas. Essas,. pois, são terrí- mas seria uma espécie de louco ou de
veis para todos - ao menos para todo homem insensível se nada temesse,
homem no seu juízo normal; mas as nem os terremotos nem as ondas,
que não ultrapassam as forças huma- como dizem que são os celtas; en-
10 nas diferem em magnitude e grau, quanto o homem que excede na con-
assim como as coisas que inspiram fiança com respeito ao que é realmente
confiança. terrível é temerário. Considera-se, por
Ora, os bravos são tão indômitos isso, o homem temerário como um 30

quanto pode sê-lo um homem. Por jactancioso e um mero simulador de


isso, embora temam também as coisas coragem. Seja como for, o que o bravo
que não estão acima das forças huma- é com relação às coisas terríveis, o
nas, enfrentam-nas como devem e temerário deseja parecer; portanto,
como prescreve a regra, a bem da imita-o nas situações em que lhe é pos-
sível fazê-lo. Daí também o serem, a
honra; pois essa é a fmalidade da virtu-
maioria deles, uma mistura de temeri-
de. Mas é possível temê-las mais ou
dade e covardia; porque, embora mos-
menos, e também temer coisas que não
trem arrojo em tais situações, não se
15 são terríveis corrio se o fossem. Dos
mantêm firmes contra o que é real-
erros que se podem cometer, um .con-
mente terrível.
siste em temer o que não se-deve, outro
O homem que excede no medo é um
em temer como não se deve, outro
covarde, porque teme tanto o que deve 35
quando não se deve, e assim por dian- como o que não deve, e todas carac-
te; e da mesma forma quanto às coisas terísticas do mesmo gênero lhe são
que inspiram confiança. Por conse- aplicáveis.· Falta-lhe igualmente con- 11116 a
guinte, o homem que enfrenta e que fiança, mas faz-se notar principal-
teme as coisas que deve e pelo devido mente pelo excesso de medo em situa-
motivo, da maneira e na ocasião devi- ções difíceis. acovarde é, por isso, um
das, e que mostra confiança nas condi- homem dado ao desespero, pois teme
ções correspondentes, é bravo; porque todas as coisas. O bravo, por outro
o homem bravo sente e age conforme lado, tem a disposição contrária, pois a
20 os méritos do caso e do modo que a confiança é a marca característica de
regra prescreve. um natural esperançoso.
Ora, o fim de toda atividade é a Em suma, a covardia, a temeridade
conformidade com a correspondente e a bravura relacionam-se com os mes-
disposição de caráter. Ora, a coragem mos objetos, mas revelam disposições 5
é nobre; portanto, seu fim também é diferentes para com eles, pois as duas
nobre, pois cada coisa é definida pelo primeiras vão ao excesso ou ficam
seu fim. Donde se conclui que é com aquém da medida, ao passo que a ter-
uma finalidade nobre que o homem ceira mantém-se na posição mediana,
bravo age e suporta conforme lhe que é a posição correta. Os temerários
aponta a coragem.
Dos que vão aos excessos, o que ex- 32 l107b2;cf.l107b29,1108a5.(N.doT.)
92 ARISTÓTELES

são precipitados e desejam os perigos homem corajoso escolhe e suporta coi-


com antecipação, mas recuam quando sas porque é nobre fazê-lo, ou porque é
os têm pela frente, enquanto os bravos vil deixar de fazê-lo. Contudo, morrer
são ardentes no momento de agir, mas para escapar à pobreza, ao amor ou ao
fora disso são tranqüilos. que quer que seja de doloroso não é
/0 Como dissemos, pois, a coragem é próprio de um homem bravo, mas
um meio-termo no tocante às coisas antes de um covarde. Porquanto é mo-
que inspiram confiança ou medo, nas leza fugir do que nos atormenta, e um
circunstâncias que descrevemosê eo ; homem dessa espécie suporta a morte
não por ela ser nobre, mas para exi-
33 Cap. 6. (N. do T.) mir-se ao mal.

/5 A coragem é, pois, algo como o que gem estão a vergonha, o desejo de um


descrevemos, mas o nome também se nobre objeto (a honra) e o medo
aplica a cinco outras espécies. desonra, que é ignóbil. Poder-se-iam 30
(I) Em primeiro lugar vem a cora- incluir nesta classe mesmo aqueles que
gem do cidadão-soldado, que é a que são forçados pelos seus governantes;
mais se assemelha à verdadeira cora- mas esses são inferiores, pois o que
gem. Os cidadãos-soldados parecem fazem não é por sentimentos de honra,
enfrentar os perigos em virtude das mas por medo, e não para evitar o que
penas cominadas pelas leis e das cen- é vergonhoso, e sim o que é doloroso.
suras em que incorreriam se assim não Com efeito, os seus chefes os compe-
procedessem, e também por causa das lem como Heítors 7:
honras que lhes valerá a sua ação. Por Mas, se eu deparar com algum poltrão
20 isso afiguram-se mais bravos aqueles [a tremer longe da refrega,
povos entre os quais os covardes são Em vão esperará ele escapar aos cães. 35
expostos à desonra, e os bravos são E o mesmo fazem os que os colocam
honrados. Essa é a espécie de coragem .10S seus postos e os espancam quando 1116 b
retratada por Homero, por exemplo, recuams ou os que os dispõem em
em Diômedes e em Heitor: fileiras com fossos ou coisas seme-
Primeiro Polidamas amontoará censu- lhantes à retaguarda: todos esses usam
[ras sobre mim» 4 .. e a compulsão. Mas deve-se ser bravo
Pois um dia, entre os troianos, Heitor não sob coação, e sim porque isso é
25
[dirá com soberba: nobre.
Medroso foi Tidides, e fugiu da minha (2) A experiência com relação a
[frente3 5 • fatos particulares é também conside-
Esta espécie de coragem é a que rada como coragem; aí temos, em ver-
mais se assemelha à acima descrita» 6, dade, a razão pela qual Sócrates identi- 5
porque se deve à virtude; em sua ori-
3 7 A citação de Aristóteles assemelha-se mais à
34 Ilíada. XXII, 100. (N. do T.) Ilíada. II, 391-3, onde fala Agamênon, do que à XV,
35 Ibid.• 148-149. (N. do T.) 348-51, onde fala Heitor. (N. do T.)
3' Caps, 6 e 7. (N. do T.) 38 Cf. Heródoto, VII, 223. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔMACO - III 93

ficava a coragem com o conhecimento. xã0 3 9 ", "despertou-lhes - o - ânimo e a


Outras pessoas revelam essa qualidade paixão 4 o ", "respirava forte, ofegan-
diante de outros perigos, e os soldados do 41", e "seu sangue fervia". Todas
profissionais nos perigo da guerra; estas expressões parecem indicar o ím-
pois na guerra parece haver muitos peto e o tumulto da paixão.
alarmas infundados, dos quais esses Ora, os bravos agem com a mira na 30
homens têm a mais ampla experiência; honra, mas são auxiliados paixão,
e por isso parecem bravos, uma vez enquanto as feras agem sob a in-
que os outros ignoram a natureza dos fluência da dor: atacam porque foram
10 fatos. Por outro lado, sua experiência feridas ou porque têm medo, pois que
os toma capacíssimos no ataque e na nunca se aproximam de quem se extra-
defesa, porquanto sabem fazer bom numa floresta. E assim não são
uso das armas e dispõem das melhores bravas porque, impelidas dor e
tanto para atacar como pára defender- pela paixão, atiram-se aos perigos sem
se. Batem-se, por conseguinte, como prevê-los. Do contrário, até os asnçs 35
homens armados contra homens desar- seriam bravos quando têm fome, pois
mados, ou como atletas bem treinados não há força de golpes que os faça
contra amadores, pois também nesses afastar do seu pasto; e também a luxú- 1117

encontros não é o mais bravo que me- ria leva os adúlteros a cometer muitos
lhor luta, mas o mais forte e o que tem atos audaciosos. (Não são bravas,
15 o corpo em melhores condições. pois, aquelas criaturas que a dor ou a
Os soldados profissionais mostram- paixão impele para diante do perigo.)
se covardes, no entanto, quando a ten- A "coragem" devida à paixão parece
são do perigo é muito grande e quando ser a mais natural, tomando-se verda-
são inferiores em número e em equipa- deira coragem quando se lhe ajuntam a
mento. E são os primeiros .a fugir, ao escolha e o motivo.
passo que as milícias de cidadãos pere- Os homens, pois, assim como os 5
cem nos seus postos, como realmente animais, experimentam dor quando
sucedeu no templo de Hermes. Com estão irados e prazer quando se vin-
efeito, para estes últimos a fuga é gam: Os que lutam por esses motivos,
desonrosa, e morrer é preferível a sal- no entanto, são pugnazes, mas não são
20 var-se em tais condições; enquanto os bravos, porquanto não agem tendo em
primeiros desde o princípio enfren- vista a honra nem como prescreve a
taram o perigo na convicção que regra, mas levados pela força da emo-
eram os mais fortes, e ao terem conhe- ção. Sem embargo, existe neles algo
cimento da realidade fogem temendo que tem afinidade com a coragem.
mais a morte do que a desonra. O (4) as pessoas otimistas 10
bravo, porém, não procede assim. são bravas, pois essas mostram con-
(3) A paixão também é confundida fiança diante do perigo só porque ven-
às vezes com a coragem. Os que agem ceram muitas vezes e contra muitos
sob o impulso da paixão, como feras inimigos. E contudo assemelham-se de
que se arremessam sobre os que as feri- perto acs bravos, porque ambos são
25 ram, são considerados bravos, porque confiantes; mas os bravos são confian-
os homens bravos também são apaixo- tes pelas razões que expusemos
nados. Com efeito, a paixão, mais do . .
que qualquer outra coisa, anseia por 39 Isto é uma fusão de Iliada, XI. 11 ou XIV. 151.
e XVI. 529. (N. do T.)
atirar-se ao perigo; daí as frases de 40 Cf. Ilíada. V. 470; XV. 232. 594. (N. do T.)
Homero: "instilou força na sua pai- 41 Cf. Odisséia; XXIV. 318 ss. (N. do T.)
r
94 ARISTÓTELES

atrás 4 2 , enquanto estes o são porque regra, mas os atos imprevistos devem
supõem serem os mais fortes e incapa- estar de acordo com a disposição de
zes de sofrer o que quer que seja. (Os caráter do agente.
bêbedos também se portam dessa ma- (5) As pessoas que ignoram o peri-
15 neira: tornam-se otimistas.) Quando, go também parecem bravas, e não dis-
todavia, as suas aventuras terminam tam muito das de temperamento san-
mal, rodam sobre os calcanhares; mas guíneo e otimista, mas são inferiores
a marca distintiva do homem bravo por não terem confiança em si mes-
era enfrentar as coisas que são e pare- mas, como as segundas. Também por
cem terríveis, porque é nobre fazê-lo e isso, os otimistas se mantêm firmes
vergonhoso não o fazer. Também por durante algum tempo, mas os que 25

isso, considera-se como marca distin- foram enganados sobre a realidade dos
tiva de um homem mais bravo o mos- fatos fogem tão logo sabem ou suspei-
.trar-se destemido e imperturbável nos tam que estes são diferentes do que
alarmas repentinos do que nos perigos supunham, como sucedeu com os argi-
20 previstos; pois isso deve proceder mais vos quando travaram combate com os
de uma disposição de caráter e menos espartanos, tomando-os por siciônios.
da preparação: os atos previstos E com isto .fica completada a descri-
podem ser escolhidos por cálculo e ção do caráter tanto dos homens bra-
vos como dos que são considerados
42 1115 b 11-24. (N. do T.) bravos.

Se bem que a coragem se relacione tâncias do caso, como também sucede


com sentimentos de medo e de confian- nas competições atléticas; porquanto é
ça, não se relaciona igualmente com agradável o fim visado pelos pugilis-
ambos, mas em grau maior com as coi- tas, isto é, a coroa e as honras; mas os
30 sas que inspiram medo. Com efeito, golpes que recebem são dolorosos e
aquele que permanece imperturbável e excruciantes para o corpo, como tam-
se porta como deve em face dessas coi-
bém o são os seus esforços; e, como os 5
sas é mais genuinamente bravo do que
golpes e os esforços são muitos, o fim,
o homem que faz o mesmo diante das
que é um só e pequeno, parece nada ter
coisas que inspiram confiança.
de agradável. E assim, se o mesmo se
Como dissemos 43, pois, é por fazer
frente ao que é doloroso que os ho- dá com a coragem, a morte e os feri-
mens são chamados bravos. Portanto, mentos serão dolorosos para o homem
também a coragem envolve dor e é jus- bravo e contrários à sua vontade, mas
tamente louvada por isso, pois mais ele os enfrentará porque é nobre fazê-
difícil é enfrentar o que é doloroso do lo e vil deixar de fazê-lo. E quanto lO

que abster-se do que é agradável. mais virtuoso e feliz for, mais lhe
35 Sem embargo, a fmalidade que a doerá o pensamento da morte; é
coragem se propõe dir-se-ia que é agra- para tal homem que mais valor tem a
1117 b dável, mas é encoberta pelas circuns- vida, e ele conscientemente renuncia
ao maior dos bens, o que é doloroso.
43 1115 b 7-13. (N. do T.) Mas nem por isso deixa de ser bravo, e
ÉTICA A NICÔMACO - III 95

talvez o seja ainda mais por escolher, a os que são menos bravos mas não pos-
esse custo, a prática de atos nobres na suem outros bens; pois esses estão
guerra. prontos para enfrentar o perigo e ven-
15 Nem de todas as virtudes, portanto, dem suas vidas por uma ninharia.
o exercício é agradável, salvo na medi- Quanto à coragem dissemos o sufi- 20

da em que alcançam o seu fim. Mas é ciente. Não é difícil compreender-lhe a


bem possível que os melhores soldados natureza em linhas gerais, pelo menos
não sejam homens dessa espécie e sim em face do que ficou exposto.

10

Depois da coragem, da rantes; e contudo, parece que é possí- 5


temperança; pois estas parecem ser as vel deleitar-se com essas coisas tanto
virtudes das partes irracionais. Disse- como se deve quanto em excesso ou
25 mos 4 4 que a temperança é um meio- grau insuficiente.
termo em relação aos prazeres (porque O mesmo se pode dizer dos objetos
diz menos respeito às dores, e não do da audição: ninguém chama de intem-
mesmo modo); e a intemperança tam- perantes os que se deleitam em dema-
bém se manifesta na mesma esfera. sia com a música ou as representações
Determinemos, pois, com que espécie teatrais, nem de temperantes os que o
de prazeres se relacionam ambas. fazem na medida justa.
Podemos admitir a distinção entre Também não aplicamos esses nomes
prazeres corporais e prazeres da alma aos que se deleitam com odores, a não 10
tais como o amor à honra e.o amor ao ser incidentalmente: não chamamos de
estudo; pois quem ama uma dessas intemperantes os q-ue se deliciam com
30 coisas deleita-se naquilo que ama, não o cheiro de maçãs, de rosas ou de
sendo o corpo de nenhum afeta- incenso, mas sim os que sentem prazer
do, e sim a mente; mas com relação a em cheirar . molhos e acepipes: com
tais prazeres os homens não cha- efeito, os intemperantes deleitam-se
mados temperantes nem intempe- com essas coisas porque lhes lembram
rantes. E tampouco em relação aos ou- os objetos de seu apetite. E até a outras
tros prazeres que não sejam do corpo: pessoas, quando têm fome, causa pra-
os que gostam de ouvir e de contar his- zer o cheiro de comida; mas compra- 15
tórias e passam o dia ocupados com zer-se nessa espécie de coisas é carac-
35 tudo que acontece são chamados me- terístico do homem intemperante, pois
xeriqueiros e não intemperantes; e da elas são objetos de apetite para ele.
mesma forma os que sofrem com a Fora do homem, não há nos outros
perda de dinheiro ou de amigos. animais nenhum prazer relacionado
1118 a A temperança deve relacionar-se com esses sentidos, a não ser inciden-
com os prazeres corporais; não, tal mente. Porquanto os cães não se
porém, com todos, pois os que se delei- deleitam com o cheiro das lebres, mas
tam com objetos da visão tais como as sim em comê-las; acontece, apenas, 20

cores, as formas e a pintura não são que o faro os avisou da presença de


chamados temperantes nem intempe- uma lebre. Nem o leão se deleita em
ouvir o mugido do boi, mas tão-so-
44 1107 b 4-6. (N. do T.) mente em comê-lo; percebeu, pelo
T
96 ARISTÓTELES

mugido, que o animal estava próximo, soas intemperantes. A essas só inte-


e por essa razão parece deleitar-se com ressa o gozo do objeto em si, que sem-
o mugido; do mesmo modo, não se pre é uma questão de tato, tanto no que
deleita em ver "um veado ou uma toca ao comer como ao beber e à união
cabra montês" 4 5, mas porque vai dos sexos. Por isso certo glutão rogou
devorá-los. aos deuses que sua garganta se tor-
Apesar disso, a temperança e a nasse mais longa que a de um grou, 1118 b

intemperança relacionam-se com a donde se infere que todo o seu prazer


25 espécie de prazeres que é comparti- vinha do contato.
lhada pelos outros animais, e que por E assim, o sentido com que se delei-
esse motivo parecem inferiores e bru- ta a intemperança é o mais largamente
tais; são eles os prazeres do tato e do difundido de todos; e ela parece ser
paladar. Mesmo destes últimos, no justamente motivo de censura porque
entanto, parecem fazer pouco ou ne- nos domina não como homens, mas
como animais. Deleitar-se com tais
nhum uso; porquanto a função do coisas, portanto, e amá-las sobre todas
paladar é a discriminação dos sabores, as outras, é próprio dos brutos. Porque
como
, fazem os provadores de vinho e mesmo dos prazeres do tato os mais
as pessoas que temperam iguarias. No liberais foram eliminados, como os que
entanto, mal se pode dizer que se com- a fricção e o resultante calor produzem 5
30 prazem em fazer tais discriminações; no ginásio; com efeito, o contato prefe-
pelo menos, tal não é o caso das pes- rido pelo homem intemperante não
afeta o corpo inteiro, mas apenas cer-
45 Ilíada, III, 24. (N. do T.) tas partes.

11

Dos apetites, alguns parecem co- jeto tomado ao acaso. Ora, nos apeti- 15
muns e outros, peculiares aos indiví- tes naturais poucos se enganam, e
duos e adquiridos. Por exemplo: o ape- numa só direção, a do excesso; e
IO tite do alimento é natural, já que todos comer ou beber tudo que se tenha à
os que o sentem anseiam comer e mão, até a saciedade, é exceder a medi-
beber, e às vezes ambas as coisas; e da natural, pois que o apetite natural
também pelo amor (como diz Home- se limita a preencher o que nos falta.
ro 46), quando são jovens e vigorosos; Por isso tais pessoas são chamadas
mas nem todos anseiam por esta ou "deuses do estômago", dando a enten-
aquela espécie de alimento ou de amor, der que enchem o estômago além da 20
nem pelas mesmas coisas. medida. E só pessoas de caráter intei-
Por isso, tal anseio parece ser uma ramente abjeto se tornam assim.
questão inteiramente pessoal. No en- Mas no que se refere aos prazeres
tanto, é muito natural que assim seja, peculiares a indivíduos, muitas pessoas
pois diferentes coisas agradam a dife- erram, e de muitas maneiras. Pois,
rentes indivíduos, e algumas são mais enquanto as pessoas que "gostam disto
agradáveis a todos do que qualquer ob- ou daquilo" são assim chamadas ou·

I. Ilíada. XXIV, 130. (N. do T.)


porque se deleitam nas coisas que não
devem, ou mais do que o comum dos
ÉTICA A NICÔMACO - III 97

homens, ou de maneira indébita os são raras e quase inexistentes, pois


intemperantes excedem de todos os uma tal insensibilidade não é humana.
25 três modos; tanto se comprazem em Até os outros animais distinguem dife-
coisas com as quais não deveriam rentes espécies de alimentos e apre-
comprazer-se (porquanto são odiosas), ciam uns mais do que outros. E, se há
como, se é lícito comprazer-se em alguém que não se agrade de nada e
algumas coisas de sua predileção, eles não ache nenhuma coisa mais atraente
o fazem mais do que se deve e do que o do que qualquer, esse alguém /0

faz a maioria dos homens. deve ser algo muito diferente de um


homem; tal espécie de pessoa não rece-
Está claro, pois, que o excesso em
beu nome porque dificilmente é encon-
relação aos prazeres é intemperança, e
trada.
é culpável. Com respeito às dores nin-
O temperante ocupa uma posição
guém é, como no caso da coragem, mediana em relação a esses objetos.
30 chamado temperante por arrostá-las Com efeito, nem aprecia as coisas que
nem intemperante por deixar de fazê- são preferidas pelo intemperante - as
lo, mas o homem intemperante é assim quais chegam até a desagradar-lhe -
chamado porque sofre mais do que nem, em geral, as coisas que não deve,
deve quando não obtém as coisas que nem nada disso em excesso; por outro
lhe apetecem (sendo, pois, a sua pró- lado, não sofre nem anseia por elas
pria dor um efeito do prazer), e o quando estão ausentes ou só o faz em
homem temperante leva esse nome grau moderado e não mais do que
porque não sofre com a ausência do deve, e nunca quando não deve, e
que é agradável nem com o fato de assim por diante. Mas as coisas que, /5
abster-se. sendo agradáveis, contribuem para a
1119 O intemperante, pois, almeja todas saúde ou a boa condição do corpo, ele
as coisas agradáveis ou as que mais o as deseja moderadamente e como deve,
são, e é levado pelo seu apetite a esco- assim como também as outras coisas
lhê-las a qualquer custo; por isso sofre agradáveis que não constituam empe-
não apenas quando não as consegue, cilho a esses fins, nem sejam contrárias
mas também quando simplesmente an- ao que é nobre, nem estejam acima dos
seia por elas (pois o apetite é doloro- seus meios. Pois aquele que não atende
5 so). No entanto, parece absurdo sofrer a essas condições ama tais prazeres
por causa do prazer. mais do que eles merecem, mas o 20
As pessoas que ficam aquém da me- homem temperante não é uma pessoa
dida em relação aos prazeres e se delei- dessa espécie, e sim da espécie pres-
tam com eles menos do que deviam crita pela regra justa.

12

A intemperança assemelha-se mais destrói a natureza da pessoa que a


a uma disposição voluntária do que a sente, ao passo que o prazer não tem 25
covardia, pois a primeira é atuada pelo tais efeitos. Logo, a intemperança é
prazer e a segunda pela dor; ora, a um mais voluntária.
nós procuramos e à outra evitamos; E por isso mesmo é ela mais passí-
acresce ainda que a dor transtorna e vel de censura, pois é mais fácil acos-
98 ARISTÓTELES

tumar-se aos seus objetos, já que a de tudo ao apetite e à criança, já que


vida tem muitas coisas dessa espécie na realidade as crianças vivem à mercê
para oferecer, a elas nos acostu- dos apetites, e nelas- tem mais força o 5
mamos sem perigo para nós, ao passo desejo das coisas agradáveis. Se não
que com os objetos terríveis dá-se exa- forem obedientes e submissas ao prin-
tamente o contrário. Mas a covardia cípio racional, irão a grandes extre-
parece ser voluntária em grau diferente mos, pois num ser irracional o desejo
de suas manifestações particulares. do prazer é insaciável, embora experi-
Com efeito, ela própria é indolor, mas mente todas as fontes de satisfação.
nestas últimas somos avassalados pela Acresce que o exercício do apetite 10

dor, que nos leva a abandonar nossas aumenta-lhe a força inata, e quando os
armas e a desonrar-nos de outras apetites são fortes e violentos, chegam
30 maneiras; e por isso, alguns chegam a ao ponto de excluir a faculdade de
pensar que os nossos atos em tais oca- raciocinar.
siões são forçados. Para o intempe- Portanto, os apetites devem ser pou-
rante, ao contrário, os atos particu- cos e moderados, e não se oporem de
lares são voluntários (já que ele os modo algum ao princípio racional - e
pratica sob o impulso do apetite e do isso é o que -chamamos obediência e
desejo), mas a disposição em sua tota- disciplina. E, assim como a criança
lidade o é menos, uma vez que nin- deve submeter-se à direção do seu pre-
guém deseja ser intemperante. ceptor, também o elemento apetitivo
O termo "intemperante" também se deve subordinar-se ao princípio racio- 15
aplica a faltas infantis, por mostrarem naI.
certa semelhança com o que estivemos Em conclusão: no homem tempe-
1119 b considerando. Ao nosso propósito rante o elemento apetitivo deve harmo-
atual não interessa indagar qual das . nizar-se com o princípio racional, pois
duas acepções deriva da outra, mas é o que ambos têm em mira é o nobre, e
evidente que esta segunda é derivada. o homem temperante apetece as coisas
A transferência de sentido parece bas- que deve, da maneira e na ocasião
tante plausível, pois quem deseja aqui- devidas; e isso é o que prescreve o
lo que é vil e que se desenvolve rapida- princípio racional.
mente deve ser refreado a tempo; ora, Aqui termina a nossa análise da 20
essas características pertencem acima temperança.
LIVRO IV
101

Falemos agora da liberalidade, que ra pelo homem que possui a virtude


parece ser o meio-termo em relação à relacionada com ela. Quem melhor
riqueza. O homem liberal, com efeito, usará a riqueza, por conseguinte, é o
é louvado não pelos seus feitos milita- homem que possui a virtude relacio-
res, nem pelas coisas que se costuma nada com a riqueza; e esse é o homem
louvar no temperante, nem por decidir liberal. '
com justiça num tribunal, mas no Ora, dar e gastar parece ser o uso da
tocante ao dar e receber riquezas - e riqueza, ao passo que adquirir e con-
especialmente ao dar. servar é antes a sua posse. Por isso é
Ora, por "riquezas" entendemos mais próprio do homem liberal dar às /0
todas as coisas cujo valor se mede pelo pessoas que convêm do que adquirir
dinheiro. A prodigalidade e a avareza, das fontes que convêm e não das indé-
por sua vez, são um excesso e uma bitas. Com efeito, é mais característico
deficiência no tocante à riqueza. Sem- da virtude fazer o bem do que recebê-
pre imputamos a avareza aos que lo outrem, e praticar ações nobres
amam a riqueza mais do que devem, do que abster-se de ações vis; e facil-
mas também usamos o termo "prodi- mente se compreende que dar implica
galidade" num sentido complexo, cha- fazer o bem e praticar uma ação nobre,
'mando pródigos aos homens inconti- enquanto receber implica, ser o benefi- /5
nentes que malbaratam dinheiro com ciário de uma boa ação ou não agir de
os seus prazeres. Daí o serem eles maneira vil. E somos gratos a quem
considerados os caracteres mais fra- dá, porém não ao que não recebe, e o
cos, pois combinam em si mais de um primeiro é mais louvado do -que o
vício. Contudo, a aplicação do termo a segundo. Também é mais fácil não
tais pessoas não é apropriada, por- receber do que dar, pois os homens
quanto um "pródigo" é um homem que preferem desfazer-se do pouco que têm
possui uma só má qualidade, a de mal- a tomar o alheio.
baratar os seus bens. Pródigo é aquele Os que dão também são chamados
que se arruína por sua própria culpa, e liberais, mas os que se abstêm de
o malbaratar seus bens é considerado tomar não são louvados pela liberali- zo
uma forma de arruinar a si mesmo, dade e sim pela justiça, enquanto os
pois é opinião de muitos que a vida que tomam dificilmente são louvados.
depende da posse de riquezas. E os liberais são quase que os mais
Esse é, por conseguinte, o sentido louvados de todos os caracteres virtuo-
em que tomamos a palavra "prodigali- sos, porquanto são úteis; e isso por
dade". Ora, as coisas úteis podem ser causa de suas dádivas.
bem ou mal usadas, e a riqueza útil; Ora, as ações virtuosas são pratica-
5 e cada coisa é usada da melhor manei- das tendo em vista o que é nobre. Por
102 ARISTÓTELES

isso o homem liberal, como as outras São considerados mais liberais os


r
25 pessoas virtuosas, dá ten'do em vista o que não fizeram a sua fortuna, mas
que é nobre, e como deve; pois dá, às herdaram-na. Porque, em primeiro
pessoas que convêm, as quantias que lugar, esses não têm experiência da
convêm e na ocasião que convém, com necessidade; e, em segundo, todos os
todas as demais condições que acom- homens têm mais amor ao que eles
panham a reta ação de dar. E isso com próprios produziram, como os pais e
prazer e sem dor, pois o ato virtuoso é os poetas. Não é fácil a um homem
agradável e isento de dor. O que menos liberal ser rico, pois não é inclinado 15
pode ser é doloroso. nem a tomar nem a conservar, mas a
O que dá às pessoas a quem não dar, e não estima a riqueza por si
deve dar, porém, ou tendo em vista não mesma, e sim como instrumento de sua
o que é nobre e sim alguma outra liberalidade. Daí a acusação que se faz
30 coisa, não é chamado de liberal, mas à fortuna: que os que mais a merecem
recebe algum outro nome. Tampouco é são os que menos a alcançam. Mas é
liberal quem dá com dor, pois esse pre- natural que seja assim, pois com a
feriria a riqueza à ação nobre, o que riqueza sucede o mesmo que com
não é próprio de um homem liberal. todas as outras coisas: ninguém pode
Mas tampouco o homem liberal alcançá-la não se esforça por isso.
receberá de fontes que não deve, pois Todavia, o homem liberal não dará 20
isso não é próprio de quem não dá às pessoas nem na ocasião que não
valor à riqueza. Nem será ele muito convém, porque nesse caso já não esta-
afeito a pedir, porquanto o homem que ria agindo de acordo com a liberali-
confere benefícios não os aceita facil- dade, e se gastasse com esses objetos já
mente. Mas tomará das fontes que con- não teria o que gastar com os que con-
vêm das suas próprias posses, por vêm. Porque, como dissemos, é liberal
exemplo - , não como um ato nobre, aquele que gasta de acordo com as
1120 b mas como uma necessidade, a fim de suas posses, e com os objetos que con- 25
ter algo que dar. vêm; e quem excede a medida é pródi-
Por lado, não descurará ele os go. Por isso não chamamos os déspo-
seus bens, com os quais deseja auxiliar tas de pródigos: no caso deles não nos
a outrem. E se absterá de dar a todos e parece fácil dar e gastar além de suas
a qualquer um, a fim de ter o que dar posses.
às pessoas que convêm, nas ocasiões Sendo, pois, a liberalidade um
que convêm e em que é nobre fazê-lo. meio-termo no tocante ao dar e ao
É também muito característico de tomar riquezas, o homem liberal dará e
um homem liberal exceder-se nas suas gastará as quantias que convêm com
dádivas, de maneira a ficar com muito os objetos que convêm, tanto nas coi-
pouco para si; pois está na sua natu- sas. pequenas como nas grandes, e isso 30
reza o não olhar a si mesmo. com prazer; e tomará as quan-
O termo "liberalidade" se usa relati- tias que convêm das fontes que con-
vamente às posses de umhomem, pois vêm. Porque, sendo a virtude um
essa virtude não consiste na multidão meio-termo em relação a ambos, ele
das dádivas, e sim na disposição de fará ambas as coisas como deve; por-
caráter de quem dá, e esta é relativa às quanto essa espécie de receber acom-
suas posses. Nada impede, pois, que o panha a reta ação de dar, e o que não é
/O homem que dá menos seja mais liberal, dessa espécie opõe-se ela; daí o dar e
se tem menos para dar. o receber que acompanham um ao
ÉTICA A NICÔMACO IV 103

outro estarem simultaneamente presen- digo possui as características do


11210 tes no mesmo homem, o que evidente- homem liberal, visto que dá e se abs-
mente não acontece com as espécies tém de tomar, conquanto não faça
contrárias. Mas se, por acaso, ele gas- nenhuma dessas coisas bem ou da
tar de maneira contrária .ao que é reto maneira apropriada. E, se fosse levado
e nobre, sofrerá com isso, mas modera- a proceder assim pelo hábito ou por
damente e conforme deve; pois é pró- algum outro meio, seria liberal; porque
prio da virtude sentir tanto prazer então daria às pessoas que convêm e
como dor em face dos objetos apro- não receberia de fontes indébitas. Por 25
priados e da maneira apropriada. isso não é julgado um mau caráter:
Além disso, é fácil tratar com o não é próprio de um homem malvado
homem liberal em assuntos de dinhei- ou ignóbil exceder-se no dar e no não
5 ro; não dá trabalho persuadi-lo, pois receber, mas apenas de um tolo. O
não tem grande estima ao dinheiro, e homem que é pródigo neste sentido é
fica mais aborrecido se deixou de gas- considerado muito melhor do que o
tar alguma coisa que devia do que se avaro, tanto pelas razões acima apon-
gastou algo que não devia, discor- tadas como porque beneficia a muitos,
dando nisso do aforismo de Simônides. enquanto o outro não beneficia sequer
O pródigo erra também a esses res- a si mesmo.
peitos, pois não sente prazer e dor Mas a maioria dos pródigos, como 30

diante das coisas que convêm e da já se disse 4 B, também tomam de fontes


10 maneira que convém; isto se tornará indébitas, e a esse respeito são avaros.
mais evidente à proporção que .avan- Adquirem o hábito de tomar porque
çarmos em nossa investigação. Disse- desejam gastar, e isso não lhes é fácil
mos 4 7 que a prodigalidade e a avareza em razão de não tardarem a minguar
são excessos e deficiências, e em duas as .suas posses. São, por isso, forçados
coisas: no dar e no receber;.pois incluí- a buscar meios em outras fontes. Ao
mos o gastar no gênero dar. Ora, a mesmo tempo, como não dão nenhum
prodigalidade excede no dar e no não valor à honra, tomam indiferentemente
receber, mostrando-se deficiente no de qualquer fonte: pois têm o apetite de
receber, enquanto a avareza se mostra dar e não lhes importa a maneira nem
15 deficiente no dar e excede no receber, a fonte de onde procede o que dão. Por
salvo em pequenas coisas. isso não dão com liberalidade: não o
As características da prodigalidade fazem com nobreza, nem tendo esta em
não se encontram sempre combinadas, vista, nem da maneira que devem. Às 5
pois não é fácil dar a todos se não se vezes enriquecem os que deveriam ser
recebe de ninguém. As pessoas pródi- pobres, não dão nada às pessoas dig-
gas, que dão em excesso, não tardam a nas de estima, e muito aos aduladores
exaurir as suas posses. E é justamente ou aos que lhes proporcionam algum
a esses que se aplica o nome de pródi- outro prazer. Por isso a maioria deles
20 gos, se bem que tal homem pareça ser são também intemperantes; com efeito,
bastante superior a um avaro, por- gastam sem refletir e desperdiçam
quanto é curado de seu vício tanto dinheiro com os seus prazeres, inclina-
pelos anos como pela pobreza, e des- dos que são para estes porque sua exis-
tarte poderá aproximar-se da disposi- tência não tem em mira o que é nobre.
ção intermediária. Com efeito, o pró- O homem pródigo, portanto, con-

47 1119 b 27. (N. do T.) 48 Linhas 16-19. (N. do T.)


104 ARISTÓTELES

verte-se no que acabamos de descrever Outros, por sua vez, excedem-se no


quando não lhe é imposta nenhuma tocante ao receber, tomando tudo que
disciplina, mas se for tratado com cui- lhes aparece e de qualquer fonte que
dado chegará à disposição interme- venha, como os que se dedicam a
diária e justa. A avareza, porém, é ao' profissões sórdidas, alcaiotes e demais
mesmo tempo incurável (pois a velhice gente dessa laia, e os que emprestam
15 e toda incapacidade passam por tornar pequenas quantias a juros elevados.
homens avaros), e mais inata aos' Com efeito, todos esses tomam mais 1122 a

homens do que a prodigalidade. Com do que devem, e de fontes indébitas.


efeito, a maioria gosta mais de ganhar Evidentemente, o que há de comum
dinheiro que de dá-lo. Este vício é tam- entre eles é o sórdido amor ao lucro;
bém muito difundido e multiforme, todos se conformam com uma má
pois parece haver muitas espécies de fama em troca do ganho, e minguado
avareza. ganho ainda por cima. Com efeito, aos
Consiste ela em duas coisas, a defi- que auferem ganhos vultosos c injustos
ciência no dar e o excesso no tomar, e de fontes indébitas, como os déspotas 5

não se encontra completa em todos os que saqueiam cidades e despojam tem-


20 homens, mas às vezes aparece dividi- plos, não chamamos avaros e sim mal-
da: alguns vão ao excesso no tomar, vados, ímpios e injustos.
Mas quanto ao jogador e ao saltea-
enquanto outros ficam aquém no dar.'
dor, esses pertencem à classe do avaro,
Todos aqueles a quem se aplicam
por terem um amor sórdido ao ganho.
nomes como "forreta", "sovina",
É, efetivamente, pelo ganho que ambos
"pão-duro" dão com relutância, mas se dedicam às suas práticas e suportam
'não cobiçam as posses alheias nem' a vergonha de que ela se cerca; e um
desejam tomá-las para si. Em alguns, enfrenta os maiores perigos por amor à
isso se deve a uma espécie de honesti- presa, enquanto o outro subtrai di- lO
dade e aversão ao que é vergonhoso nheiro aos seus amigos, a quem devia
(pois alguns parecem, ou pelo menos antes dá-lo. Ambos, pois, como de
,
dizem, amontoar dinheiro - por esta
' bom grado auferem ganhos de fontes
25 razão: para que um dia não sejam for- indébitas, são sórdidos amantes do
çados a cometer algum ato vergo- ganho. Por conseguinte, todas essas
nhoso; a esta classe pertencem o miga- formas de tomar incluem-se no vício
lheiro e todos os outros da mesma da avareza.
espécie, que são assim chamados pela E é natural que a avareza seja defi-
relutância com que abrem mão das mí- nida como o contrário da liberalidade,
nimas coisas); enquanto outros se abs- pois não só é ela um maior mal do que
têm de tocar no alheio por medo, jul- a prodigalidade, mas os homens erram 15
gando que não é fácil, quando nos mais amiúde nesse sentido do que no
apropriamos dos bens dos outros, evi- da prodigalidade tal como a descreve-
tar que eles se apropriem dos nossos. mos.
30 Contentam-se, por isso, em não dar Basta, pois, o que dissemos sobre a
nem tomar. liberalidade e os vícios contrários.
ÉTICA A NICÔMACO - IV 105

2
Talvez convenha discutir agora a caráter é determinada pelas suas ativi-
magnificência, que também parece ser dades e pelos seus objetos. Ora, os gas-
uma virtude relacionada com a rique- tos do homem magnificente são vulto-
20 za. Não se estende, porém, como a sos e apropriados. Por conseguinte,
liberalidade, a todas as ações que têm tais serão também os seus resultados; e
que ver com a riqueza, mas apenas às assim, haverá um grande dispêndio em
que envolvem gasto; e nestas, ultra- perfeita consonância com o seu resul-
passa a liberalidade em escala. Porque, tado. Donde se segue que o resultado 5
como o próprio nome sugere, é um deve corresponder ao dispêndio e este
gasto apropriado que envolve grandes deve ser digno do resultado, ou mesmo
quantias. Mas a escala é relativa, pois excedê-lo.
a despesa de quem uma trir- O homem magnificente, além disso,
25 reme não se compara à de quem chefia gastará dinheiro tendo em mira a
uma embaixada sagrada. A magnifi- honra, pois essa finalidade é comum a
cência, portanto, deve ser adequada todas as virtudes. Mais ainda: ele o
tanto ao agente como ao objeto e às farâ com prazer e com largueza, visto
circunstâncias. O homem que em. coi- que os cálculos precisos são próprios
sas pequenas e medianas gasta de dos avarentos. E considerará os meios
acordo com os méritos do caso não é de tomar o resultado o mais belo pos-
chamado de magnificente (por exem- sível e o mais apropriado ao seu obje-
plo, aquele que pode dizer. "muitas to, ao invés de pensar nos custos e nos
foram minhas dádivas ao peregri- meios mais baratos de obtê-lo. É 10
no"49), mas unicamente aquele que o necessário, pois, que o homem magni-
faz em grandes coisas. Porquanto o ficente seja também liberal. Com efei-
magnificente é liberal, mas o liberal to, este também gasta o que deve e
30 nem sempre é magnificente. como deve, e é em tais assuntos que se
A deficiência desta disposição de manifesta a grandeza implicada pelo
caráter é chamada mesquinhez e o nome "magnificente", já que a liberali-
excesso vulgaridade, mau gosto, etc., o dade diz respeito a essas coisas; e, com
qual não se excede nas quantias des- despesa igual, ele produzirá uma obra
pendidas com os objetos que convêm, de arte mais magnificente. Porquanto
mas pelos gastos ostentosos em cir- uma posse e uma obra de arte não têm
cunstâncias indébitas e de maneira a mesma excelência. A posse mais 15
indébita. Mais adiante falaremos des- valiosa é aquela que vale mais, como
ses vícios 5 o. por exemplo o ouro, mas a mais valio-
O homem magnificente assemelha- sa obra de arte é a que é grande e bela
35 se a um artista, pois percebe o que é (pois a contemplação de uma tal obra
apropriado e sabe gastar grandes inspira admiração, e o mesmo faz a
1122 b quantias com bom gosto. No princí- magnificência); e uma obra possui
pio 51 dissemos que uma disposição de uma espécie de excelência - isto é,
uma magnificência - que envolve
49 Odtsséia, XVII, 420. (N. do T.) grandeza.
50 1123 a 19-33. (N. do T.) A magnificência é um atributo dos
51 Cf. 1103 b 21-23, 1104 a 27-29. (N. do T.) gastos que chamamos honrosos, como
20
106 ARISTÓTELES

os que se relacionam com os deuses - despedida de hóspedes estrangeiros,


ofertas votivas, construções, sacrifícios assim como à troca de presentes; pois
I
- , e do mesmo modo no que tange a o homem magnificente não gasta con- 5
todas as formas de culto religioso e sigo mesmo e sim com objetos públi-
todas aquelas coisas que são objetos cos, e os presentes têm certa seme-
apropriados de ambição cívica, como lhança com as ofertas votivas.
a dos que se consideram no dever de O homem magnificente também
organizar um coro, guarnecer uma trir- apresta sua casa de maneira condigna
reme ou oferecer espetáculos públicos com a sua riqueza (pois até uma casa é
com grande brilhantismo. Em todos os uma espécie de ornamento público), e
casos, porém, como já foi dito 52, não gastará .de preferência em obras dura-
deixamos de levar em conta o agente e douras (pois são essas as mais belas), e
25 de indagar quem é ele e que recursos em toda classe de coisas gastará o que
possui; pois os gastos devem ser dig- for decoroso; pois as mesmas coisas
nos dos seus recursos e adequar-se não não são adequadas aos deuses e aos
só aos resultados, mas também a quem homens, nem a um templo e a um tú- lO

os produz. Por isso um homem pobre mulo. E, visto que todo gasto pode ser
não pode ser magnificente, visto não grande em sua espécie e o que, em
ter os meios de gastar apropriada- absoluto, há de mais magnificente é
mente grandes quantias; e quem tenta um generoso gasto com um objeto
fazê-lo é um tolo, porquanto gasta grandioso, mas o magnificente em
além do que se pode esperar dele e do cada caso é o que é grande nas circuns-
que é apropriado; ora, a despesa justa tâncias deste, e a grandeza na obra di-
30 é que é virtuosa. Mas em geral os gran- fere da grandeza no dispêndio (por-
des gastos ficam bem aos que, para quanto a mais bela de todas as bolas
começar, possuem os recursos adequa- ou de todos os brinquedos é um magní-
dos, adquiridos por seus próprios fico presente para uma criança, embo-
forços ou provenientes de seus ante- ra custe pouco dinheiro) - , segue-se 15
passados ou de seus amigos; e também que a característica do homem magni-
às pessoas de nascimento nobre ou de ficente, seja qual for o resultado do que
grande reputação, e assim por diante; faz, é fazê-lo com magnificência (de
pois todas essas coisas trazem consigo modo que não seja fácil superar tal
a grandeza e o prestígio. resultado) e torná-lo digno do dispên-
Basicamente, pois, o homem magni- dio.
ficente é uma pessoa dessa espécie, e a Tal é, pois, o homem magnificente.
magnificência se revela nos gastos que O vulgar e extravagante excede, como
35 descrevemos acima 53; pois esses são já dissemos 5 4, gastando além do que é 20

os maiores e os mais honrosos. Das justo. Com efeito, em pequenos objetos


ocasiões privadas de mostrar magnifi- de dispêndio gasta muito e revela
cência as mais adequadas são as que uma ostentação de mau gosto. Dá, por
acontecem uma vez na vida, como as exemplo, um jantar de amigos na esca-
bodas e outras coisas do mesmo gêne- la de um banquete de núpcias, e quan-
ro, ou tudo aquilo que interessa à cida- do fornece o coro para uma comédia
de inteira ou às pessoas de posição que coloca-o em cena vestido de púrpura,
nela vivem, e também à recepção e à como se costuma fazer em Mégara. E
todas essas coisas, ele não as faz tendo 25

52 1122 a 24-26. (N. do T.)


53 Linhas 19-23. (N. do T.) 54 1122a31-33.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - IV 107

em vista a honra, mas para ostentar a tuda a maneira de gastar menos, 30


sua riqueza e porque pensa ser admi- lamenta até o pouco que despende e
rado por isso; e gasta pouco quando julga estar fazendo tudo em maior es-
deveria gastar muito, e vice-versa. cala do que devia.
O homem mesquinho, por outro Estas disposições de caráter são, por
lado, fica aquém da medida em tudo, e conseguinte, vícios; entretanto, não
depois de gastar as maiores quantias desonram ninguém, porque não são
estraga a beleza do resultado por uma nocivas aos demais, nem muito indeco-
bagatela; e em tudo que faz hesita, es- rosas.

3
Pelo seu nome, a magnanimidade tos são grandes parece ser o mais inde-
parece relacionar-se com grandes coi- bitamente humilde; pois que faria ele
sas. Que espécie de grandes coisas? Eis se merecesse menos?
35 a primeira pergunta que cumpre res- O magnânimo, portanto, é um extre-
ponder. mo com respeito à grandeza de suas
Não faz diferença que consideremos pretensões, mas um meio-termo no que
a disposição de caráter ou o homem tange à justeza das mesmas; porque se
Il23b que a exibe. Ora, diz-se que é magnâ- arroga o que corresponde aos seus mé-
nimo o homem que com razão se ritos, enquanto os outros excedem ou
considera digno de grandes coisas; ficam aquém da medida.
pois aquele que se arroga. uma digni- Se, pois, ele merece e pretende gran- /5

dade a que não faz jus é um tolo, e ne- des coisas, e essas acima de todas as
nhum homem virtuoso é tolo ou ridícu- outras, há de ambicionar uma coisa em
lo. O magnânimo, pois, é o homem que particular. O mérito é relativo aos bens
5 acabamos de definir. Com efeito, aque- exteriores; e o maior destes, acredi-
le que de pouco é merecedor e assim se tamos nós, é aquele que prestamos aos
considera é temperante e não magnâ- deuses e que as pessoas de posição
nimo; a magnanimidade implica gran- mais ambicionam, e que é o prêmio
deza do mesmo modo que a conferido às mais nobres açôes, Refi- 20
implica uma boa estatura, e as pessoas ro-me à honra, que é, por certo, o
pequenas podem ser bonitas e bem maior de todos os bens exteriores.
proporcionadas, porém não belas. Por Honras e desonras, por conseguinte,
outro lado, o que se julga digno de são os objetos com respeito aos quais o
grandes coisas sem possuir tais quali- homem magnânimo é tal como deve
dades é vaidoso, se bem que nem todos ser. E, mesmo deixando de lado o
os que se consideram mais merece- nosso argumento, é a honra que os
dores do que realmente são possam ser magnânimos parecem ter em mente;
chamados de vaidosos. pois é ela que se arrogam acima de
O homem que se considera menos tudo, mas de acordo com os seus méri-
10 merecedor do que realmente é, é inde- tos. O homem indevidamente humilde
vidamente humilde, quer os seus méri- revela-se deficiente não só em con- 25
tos sejam grandes ou moderados, quer fronto com os seus méritos próprios,
sejam pequenos, mas suas pretensões mas também com as pretensões do
ainda menores. E o homem cujos méri- magnânimo. O vaidoso excede em
108 ARISTÓTELES

relação aos seus méritos próprios, mas Em primeiro lugar, pois, como dis-
não excede as pretensões do magnâ- semos 5 5, o homem magnânimo inte-
nimo. ressa pelas honras. Apesar disso, con-
Ora, o magnânimo, visto merecer duzir-se-â com moderação no que
mais do que os outros, deve ser bom no respeita ao poder, à riqueza e a toda
mais alto grau; pois o homem melhor boa ou má fortuna que lhe advenha, e
sempre merece mais, e o melhor de não exultará excessivamente com a 15
30 todos é o que mais merece. Logo, o boa fortuna nem se abaterá com a má.
homem verdadeiramente magnânimo Com efeito, nem para com a própria
deve ser bom. Além disso, a grandeza honra ele se conduz como se fosse uma
em todas as virtudes deve ser caracte- coisa extraordinária. O poder e a
rística do homem magnânimo. E nada riqueza são desejáveis a bem da honra
haveria mais indecoroso para o (pelo menos, os que os possuem dese-
homem altivo do que fugir ao perigo, jam servir-se deles para obtê-la); e,
abanando as mãos, ou fazer injustiça a para os que têm a própria honra em
um outro; pois com que fim praticaria pouca conta, eles também devem ser
atos vergonhosos aquele para quem coisa de somenos. Por isso os homens
nada é grande? Se o considerarmos magnânimos' são considerados desde-
ponto por ponto, veremos o perfeito nhosos.
absurdo de um homem magnânimo É opinião comum que os bens de 20

35 que não seja bom. E tampouco merece- fortuna também contribuem para a
ria ele ser honrado se fosse mau; pois a magnanimidade. Com efeito, os ho-
1124 a honra é o prêmio da virtude, e só é ren- mens bem-nascidos são considerados
dida aos bons. merecedores de honra, e da mesma
A magnanimidade parece, pois, ser forma os que desfrutam de poder e
uma espécie de coroa das virtudes, riqueza; pois eles se encontram numa
porquanto as torna maiores e não é posição superior, e tudo que se mostra
encontrada sem elas. Por isso é difícil superior em algo de bom é tido em
ser verdadeiramente magnânimo, pois grande honra. Daí que até essas coisas
sem possuir um caráter bom e nobre tornem os homens mais magnânimos,
não se pode sê-lo. pois alguns os honram pelo fato de
De modo que é sobretudo por hon- possuí-las. Mas, em verdade, só merece 25

ras e desonras que o magnânimo se ser honrado o homem bom; aquele,


5 interessa; e as honras que forem gran- porém, que goza de ambas as vanta-
des e conferidas por homens bons, ele gens é considerado mais merecedor de
as receberá com moderado prazer, honra.
pensando receber o que merece ou até No entanto, os homens que, sem
menos do que- merece, pois não pode serem virtuosos, possuem tais bens
haver honra que esteja à altura da vir- nem têm por que alimentar grandes
tude perfeita; no entanto, ele a aceita- pretensões, nem fazem jus ao nome de
rá, já que os outros nada têm de maior "magnânimos"; porquanto essas coi-
/O para lhe oferecer. Mas as honras que sas implicam virtude perfeita. Isso não
procedem de pessoas quaisquer e por impede, porém, que se tornem desde-
motivos insignificantes, ele as despre- nhosos e insolentes, pois sem virtude 30
zará, visto não ser isso o que merece; e não é fácil carregar com elegância os
do mesmo modo no tocante à desonra, 'I
que, aplicada a ele, não pode ser justa. 55 1123 b 15-22, (N, do T,)
ÉTICA A NICÔMACO - IV 109

bens da fortuna. Incapazes que coisa difícil e grande marca de altivez


disso, e julgando-se superiores aos mostrar-se superior aos primeiros, em-
1124b demais, desprezam-nos e fazem o que bora seja fácil com os segundos, e uma
bem lhes apraz. Imitam o homem mag- conduta altiva no primeiro caso não é
nânimo sem serem semelhantes a ele, e sinal de má educação, mas entre pes-
o fazem naquilo que podem; proceder soas humildes é tão vulgar quanto uma
como homens virtuosos está fora do exibição de força contra os fracos.
5 seu alcance, mas desprezar outros, Igualmente próprio do homem mag-
não. Com efeito, o homem magnânimo nânimo é não ambicionar as coisas que
despreza com justiça (visto que pensa são vulgarmente acatadas, nem aque-
acertadamente), mas o vulgo o faz sem las em que os outros se distinguem;
causa nem motivo sério. mostrar-se desinteressado e abster-se 25
O magnânimo não se expõe a peri- de agir, salvo quando se trate de uma
gos insignificantes, nem tem amor ao grande honra ou de uma grande obra, e
perigo, pois estima poucas coisas; mas ser homem de poucas açôes, mas gran-
enfrentará os grandes perigos, e nesses des e notáveis.
casos não poupará a sua vida, sabendo Deve também ser franco nos seus
que há condições em que não vale a ódios e amores (porquanto ocultar os
pena viver. É também muito capaz de seus sentimentos, isto é, olhar menos à
10 conferir benefícios, mas envergonha-se verdade do que à opinião dos outros, é
de recebê-los, pois aquilo é caracte- próprio de um covarde); e deve falar e
rístico do homem superior e isto do agir abertamente. Com efeito, o mag-
inferior. E costuma retribuir com gran- nânimo expressa-se com franqueza por
des benefícios, pois assim o primeiro desdém e é afeito a dizer a verdade, 30
benfeitor, além de ser pago, incorrerá quando fala com ironia às pes-
dívida para com ele e' sairá lu- soas vulgares.
crando na transação. Parece também Deve ser incapaz de fazer com que
lembrar-se de todos os serviços que sua vida gire em torno de um outro, a 1125 a
prestou, mas não dos que recebeu (pois não ser de um amigo; pois isso é pró-
quem recebe um serviço é inferior a prio de um escravo, e daí o serem ser-
quem o presta, mas o magnânimo de- vis todos os aduladores, e aduladores
15 seja ser superior). E ouve mencionar os todos aqueles que não respeitam a si
primeiros com prazer, e os segundos mesmos. Tampouco é dado à admira-
com desagrado; foi talvez por isso que ção, pois, para ele, nada é grande. Nem
Tétis não falou a Zeus dos serviços que guarda rancor por ofensas que lhe
lhe havia prestado, nem os espartanos façam, já que não é próprio de um
enumeraram os seus serviços aos ate- homem magnânimo ter a memória
nienses, mas apenas os que haviam longa, particularmente no que toca a
recebido. ofensas, mas antes relevá-las. Tam- 5
É também característico do homem pouco é dado a conversas fúteis, pois
magnânimo não pedir nada ou quase não fala nem sobre si mesmo nem
nada, mas prestar auxílio de bom sobre os outros, porquanto não lhe
grado e adotar uma' atitude digna em interessam os elogios que lhe façam
face das pessoas que desfrutam de alta nem censuras dirigidas aos outros.
posição e são favorecidas pela fortuna, outro lado, não é amigo de elogiar
20 enquanto se mostram despretensiosos nem maledicente, mesmo no que se re-
para com os de classe mediana; pois é fere aos seus inimigos, salvo por alti-
110 ARISTÓTELES

vez. Quanto às coisas que ocorrem que elas são boas. E contudo, tais pes-
10 necessariamente ou que são de pouca soas não são consideradas tolas, mas
monta, é de todos os homens o menos antes excessivamente modestas. Dir-
dado a lamentar-se ou a solicitar favo- se-ia, contudo, que semelhante reputa- 25
res; pois só os que levam tais coisas a ção até as toma piores, porque cada
sério se portam dessa maneira com res- classe de pessoa ambiciona o que
peito a elas. É ele o homem que prefere corresponde aos seus méritos, en-
possuir coisas belas e improfícuas às quanto esses se abstêm mesmo de no-
úteis e proveitosas, pois isso é mais bres açôes e empreendimentos, consi-
próprio de um caráter que basta a si derando-se indignos, e dos bens
mesmo. exteriores por igual forma.
Além disso, um andar lento é consi- Os por outro lado, são
derado próprio do homem magnânimo, tolos que ignoram a si mesmos, e isso
uma voz profunda e uma entonação de modo manifesto. Porquanto, sem
uniforme; pois aquele que leva poucas serem dignos de tais coisas, aventu-
coisas a sério não costuma apressar-se, ram-se a honrosos empreendimentos
15 nem o homem para quem nada é gran-
de se excita facilmente, ao passo que a que nao tardam a denunciá-los pelo
voz estridente e o andar célere são fru- que são. E adornam-se com belas rou- 30

tos da pressa e da excitação. pas, ares afetados e coisas que tais, e


Tal é, pois, o homem magnânimo; o desejam que suas boas fortunas se tor-
que lhe fica aquém é indevidamente nem públicas, tomando-as para assun-
humilde e o que o ultrapassa é vaidoso. to de conversa, como se desejassem ser
Ora, nem mesmo esses são conside- honrados por causa delas. Mas a
rados maus (pois não são maldosos), humildade indébita se opõe mais à
mas apenas equivocados. Com efeito, magnanimidade do que a vaidade,
o homem indevidamente humilde, que tanto por ser mais comum como por
é digno de boas coisas, rouba a si ser ainda pior do que esta.
mesmo daquilo que merece, e parece O magnânimo relaciona-se, pois,
20 ter algo de censurável porque não se com a honra em grande escala, como
julga digno de boas coisas e também já se disse 56. 35

parece não se conhecer; do contrário


desejaria as coisas que merece, visto 56 II07b26,1123a34-1123b22.(N.doT.)

4
1125b Também parece haver na esfera da grande escala, ambas nos dispõem
honra, como dissemos em nossas pri- corretamente em relação a objetos de
meiras observações sobre o assunto 5 7, pouca ou mediana importância. Assim
uma virtude que guarda para com a como no receber e dar riquezas existe
magnanimidade a mesma relação que um meio-termo, um excesso e uma
a líberalidade para com a magnifi- deficiência, também a honra pode ser
cência. Com efeito, nenhuma das duas desejada mais ou menos do que con-
tem nada que ver com as coisas em vém, ou da maneira e das fontes que
convêm. Censuramos tanto o homem 10
57 Ibid., 24-27. (N. do T.) ambicioso por desejar a honra mais do
ÉTICA A NICÔMACO - IV 111

que convém e de fontes indébitas, Como não existe palavra para designar
como o desambicioso por não querer o meio-termo, os extremos parecem
ser honrado mesmo por motivos no- disputar o seu lugar como se estivesse
bres. Mas às vezes louvamos o ambi- vago por abandono. Mas onde há
cioso por ser varonil e do que é excesso e falta, há também um meio-
nobre, e o desambicioso por ser mode- termo. Ora, os homens desejam a
rado e auto-suficiente, como dissemos honra não só mais como também
na primeira vez que tocamos neste menos do que devem; logo, é possível 20

assunto 58. desejá-la também como se deve. Em


todo caso, é essa a disposição de cará-
Evidentemente, como "gostar de tal ter que se louva e que é um meio-termo
ou tal objeto" tem mais de um signifi- sem nome no tocante à honra. Em con-
cado, não aplicamos sempre à mesma fronto com a ambição parece ser
J5 coisa o termo "ambição" ou "amor à desambição, e vice-versa; e, em con-
honra", mas ao louvar a qualidade fronto com as duas conjuntamente,
pensamos no homem que tem mais parece, em certo sentido, ser ambas.
amor à honra do que a maioria das Isto afigura verdadeiro também das
pessoas, e ao censurá-la temos em outras virtudes, mas no caso que aca-
mente aquele que a ama em demasia. bamos de examinar os extremos se
apresentam como contraditórios por- 25
1107 b 33. (N. do T.) que o meio-termo não recebeu nome.

A calma é um meio-termo com res- calmo não é vingativo, mas inclina-se


peito à cólera.. Não haverido nomes antes a relevar faltas.
nem para a posição intermediária nem A deficiência, seja ela uma espécie
para os extremos, colocamos a calma de "pacatez" ou do que quer que for, é
nessa posição, se bem que ela seincli- censurada. Com efeito, os que não se
ne para a deficiência, que tampouco encolerizam com as coisas que deve- 5
tem nome. O excesso poderia ser cha- riam excitar sua ira são considerados
30 rnado uma espécie de "irascibilidade", tolos, e da mesma forma os que não o
pois que a paixão é a cólera, ao passo fazem da maneira apropriada, na oca-
que suas causas são muitas e diversas. sião apropriada e com as pessoas que
Louva-se o homem que se encoleriza deveriam encolerizá-los. Porquanto
justificadamente com coisas ou pes- tais homens passam por ser insensí-
soas e, além disso, como deve, na devi- veis, e, como não se encolerizam, jul-
da ocasião e durante o tempo devido. gam-nos incapazes de se defender; e
Esse será, pois, o homem calmo, já que suportar insultos tanto pessoais como
a calma é louvada. Um tal homem dirigidos aos nossos amigos é próprio
35 tende a não se deixar perturbar nem de escravos.
guiar pela paixão, mas a irar-se da O excesso pode manifestar-se em
1126 a maneira, com as coisas e durante o todos os pontos que indicamos (pois é 10
tempo que a regra prescreve. Pensa-se, possível irar-se com pessoas ou coisas
todavia, que ele erra de certo modo no indébitas, mais do que convém, com
sentido da deficiência, pois o homem demasiada presteza ou por um tempo
112 ARISTÓTELES

excessivamente longo). Sem embargo, humano), mas as pessoas de mau gênio


todos esses excessos não são encon- são as piores com as quais se pode
trados na mesma pessoa. Nem tal conviver.
coisa seria possível, visto que o mal O que dissemos atrás sobre este
destrói até a si próprio, e quando com- assunto 59 toma-se claro pela presente
pleto toma-se insuportável. exposição, isto é, que não é fácil defmir
Ora, os irascíveis encolerizam-se como, com quem, com que coisa e por
depressa, com pessoas e coisas indébi- quanto tempo devemos irar-nos, e em
tas e mais do que convém, mas sua có- que ponto termina a ação justa e come- 35
15 lera não tarda a passar, e isso é o que ça a injusta. Porquanto o homem que
há de melhor em tais pessoas. São se desvia um pouco do caminho certo,
assim porque não refreiam a sua ira, quer para mais, quer para menos, não
mas a natureza ardente as leva a revi- é censurado; e às vezes louvamos os'
dar logo, feito o quê, dissipa-se a que revelam deficiência, chamando-os
cólera. bem-humorados, ao passo que outras 1126b
Em razão de um excesso, as pessoas vezes louvamos as pessoas coléricas
coléricas são assomadiças e prontas a como sendo varonis e capazes de diri-
encolerizar-se com tudo e por qualquer gir as outras. Até que ponto, pois, e de
motivo; daí o seu nome. que. modo um homem pode desviar-se
20 As pessoas birrentas são difíceis de 'do caminho sem se tomar merecedor'
apaziguar e conservam por mais tempo
de censura é coisa difícil de determi-
a sua cólera, porque a refreiam. Cessa, nar, porque a decisão depende das
porém, quando revidam, pois a vin-
gança as alivia da cólera, substituin- circunstâncias particulares do caso e
do-lhes a dor pelo prazer. Se isso não da percepção. Mas uma coisa pelo
acontecer, guardarão a sua carga, pois, 'menos é certa: o meio-termo (isto é, 5

como esta não é visível, ninguém pensa aquilo em virtude de que nos encoleri-
sequer em apaziguá-las, e digerir sozi- zamos com as pessoas e coisas devi-
nho a sua cólera é coisa demorada. das, da maneira devida, e assim por
25 Tais pessoas causam grandes incómo- diante) merece ser louvado, enquanto
dos a si mesmas e aos seus amigos os excessos, e deficiências são dignos
mais chegados. de censura censura leve se estão
Chamamos mal-humorados os que presente em modesto grau, e franca e
se encolerizam com o que não devem, enérgica se grau elevado.
mais do que devem e por mais tempo, e Toma-se assim evidente que devemos
não podem ser apaziguados enquanto ater-nos ao meio-termo.
não se vingam ou castigam. Isto basta quanto às disposições lO
À calma antes o excesso do relativas à cólera.
30 que a deficiência, pois não só ele é
mais comum (já que vingar-se é mais 59 1109 b 14-26. (N. do T.)

Nas reuniões de homens, na vida so- quiosos, isto é, aqueles que para serem
cial e no intercâmbio de palavras e agradáveis louvam todas as coisas e ja-
atos, alguns são considerados obse- mais se opõem a quem quer que seja, 15
I
ÉTICA A NICÔMACO - IV 113

julgando que é seu dever "não magoar Com efeito, ele parece interessar-se
as pessoas que encontram"; enquanto pelos prazeres e dores da vida social; e
os que, pelo contrário, se opõem a tudo sempre que não for honroso ou que for
e não têm o menor escrúpulo de ma- nocivo proporcionar tal. prazer, ele se
goar são chamados grosseiros e alter- recusará a fazê-lo, preferindo antes
cadores. causar dor. Do mesmo modo, se sua
Que as disposições que acabamos de aquiescência ao ato de um outro trou-
nomear são censuráveis, é evidente, xesse grande desonra ou dano a esse
assim como é digna de louvor a dispo- outro, enquanto sua oposição lhe
sição intermediária - isto é, aquela causa um pouco de dor, ele se oporá ao 35
em virtude da qual um homem se con- invés de aquiescer.
forma e se rebela ante as coisas que Tal homem se relacionará diferente-
deve e da maneira devida. Nenhum mente com pessoas de alta posição e
10 nome, porém, lhe foi dado, embora se com pessoas comuns, com conhecidos 1127 a
assemelhe acima de tudo à amizade. íntimos e outros mais distantes, e do
Com efeito, o homem que corresponde mesmo modo no que diz respeito a
a essa disposição intermediária aproxi- todas as demais diferenças, tratando
ma-se muito daquele que, com o acrés- cada classe como for apropriado; e
cimo da afeição, chamamos um bom embora, de um modo geral, prefira
amigo. Mas a disposição em apreço proporcionar prazer e evite causar dor,
fere da amizade pelo fato de não impli- guiar-se-â pelas conseqüências se estas 5
car paixão nem afeição para com as forem mais importantes - em outras
pessoas com quem tratamos, visto que palavras, pela honra e pela conve-
não é por amor nem por ódio que um niência. E também infligirá pequenas
homem acolhe todas as coisas como dores tendo em vista um grande prazer
deve, e sim por ser um indivíduo de futuro.
15 determinada espécie. Com efeito, ele se O homem que alcança o meio-termo
conduzirá do mesmo modo com co- é, pois, tal como descrevemos, embora
nhecidos e desconhecidos, com íntimos não tenha recebido um nome. Dos que
e com os que não o são, muito embora proporcionam prazer, o que procura
se conduza em cada um desses casos ser agradável sem nenhum objetivo
como convém; pois não é certo interes- ulterior é obsequioso, mas aquele que o
sar-se igualmente por pessoas íntimas faz com o fim de obter alguma vanta-
e por estranhos, nem tampouco são as gem em dinheiro ou nas coisas que o /O
mesmas condições que tornam justo dinheiro pode comprar é um adulador;
magoá-los. enquanto o que se opõe a tudo é, como
Ora, nós dissemos de um modo dissemos 60, grosseiro e altercador. E
geral que esse homem se relaciona com extremos parecem ser contraditórios
as outras pessoas do modo que con- um ao outro porque o meio-termo não
vém; mas é com referência ao que é tem
honroso e conveniente que procura não
30 causar dor ou proporcionar prazer: 60 1125 b 14-16. (N. do T.)
114 ARISTÓTELES

7
o meio-termo oposto à jactância é Examinemos a ambos, mas antes de
encontrado quase na mesma esfera; e tudo ao homem veraz. Não estamos
tampouco ele tem nome. Não será fora falando daquele que cumpre a sua
de propósito descrever também estas palavra nas coisas que dizem respeito
15 disposições, porque examinando-as em à justiça ou à injustiça (pois isso per-
detalhe teremos uma idéia mais exata tence a outra virtude), mas do homem Il27b

dos caracteres e, por outro lado, nos que, em assuntos onde nada disso está
convenceremos de que as virtudes são em jogo, é veraz tanto em palavras
meios-termos se verificarmos que isso como na vida que leva, porque tal é o
ocorre em todos os casos. seu caráter. Sem embargo, uma pessoa
No campo da vida social, já des- dessa espécie será naturalmente eqüita-
crevemos 61 aqueles que se propõem tiva, porquanto o homem que é veraz e
como finalidade proporcionar prazer ama a verdade quando não há nada em
em suas relações com os outros. Fale- jogo deve sê-lo ainda mais quando vai
mos agora dos que buscam a verdade nisso uma questão de justiça. Evitará a 5
ou a falsidade tanto em atos como em falsidade em tais casos como algo de
20 palavras, e das suas pretensões. O ignóbil, visto que a evitava por si
homem jactancioso, pois, é conside- mesma; e tal homem é digno de louvor.
rado como afeito a arrogar-se coisas E inclina-se mais a atenuar a verdade:
que trazem glória, quando não as pos- isso lhe parece de mais bom gosto, por-
sui, ou arrogar-se mais do que possui; quanto os exageros são tediosos.
e o homem falsamente modesto, pelo Aquele que se arroga mais do que
contrário, a negar ou a amesquinhar o possui sem qualquer objetivo ulterior é
que possui, enquanto o que observa o um indivíduo desprezível (pois do con- /0
meio-termo não exagera nem subes- trário não se comprazeria na falsida-
tima e é veraz tanto em seu modo de de), mas parece ser antes fútil do que
viver como em suas palavras, decla- mau. Se, porém, o faz com um fim
25 rando o que possui, porém não mais qualquer, aquele que o faz visando à
nem menos. boa reputação ou à honra não é (para
Ora, cada uma dessas linhas de con- um jactancioso) digno de grande cen-
duta pode ser adotada com ou sem um sura; mas o que o faz por dinheiro, ou
objetivo, mas cada homem fala, age e pelas coisas que levam à aquisição de
vive de acordo com o seu caráter, se dinheiro, é um caráter mais detestável.
não está agindo com um fim ulterior. E Com efeito, não é a capacidade faz
a falsidade é em si mesma vil e culpá- o jactancioso, mas o propósito, pois é
vel; e a verdade, nobre e digna de lou- em virtude dessa disposição de caráter
30 vor. Portanto, o homem veraz é mais e por ser um homem de determinada
um exemplo daqueles conservan- espécie que ele é jactancioso; assim /5
do-se no meio-termo, merecem louvor; como homem é mentiroso porque
e ambas as formas de homem inverí- se deleita com a mentira em si mesma,
dico são censuráveis, mas particular- e não porque deseje a reputação ou o
mente o jactancioso. lucro. Ora, os que se vangloriam para
ser bem conceituados arrogam-se qua-
61 Cap. 6. (N. do T.) lidades que lhes possam valer louvores
ÉTICA A NICÔMAC.O - IV 115

ou congratulações, enquanto os que aqui as qualidades que negam possuir,


visam ao proveito se atribuem qualida- como fazia Sócrates, são aquelas que
des valiosas para os outros, mas cuja trazem boa reputação. Os que se dizem
inexistência não é fácil descobrir, destituídos de qualidades evidentes e
como as de um vidente, de um sábio ou de pouca monta são considerados
20 de um médico. Eis aí por que é essa impostores e são mais desprezíveis; e
espécie de coisas que a maioria dos às vezes isso parece ser jactância,
jactanciosos se arrogam ou de que se como o modo de trajar dos espartanos,
vangloriam; pois nelas se encontram pois tanto o excesso como uma grande
as qualidades que mencionamos deficiência são jactanciosos. Mas os 30
acima. que são modestos com moderação e
As pessoas falsamente modestas, subestimam qualidades não muito ma-
que subestimam os seus méritos, pare- nifestas parecem simpáticos. E é o
cem mais simpáticas porque se pensa jactancioso que se afigura contrário ao
que não falam com a mira no proveito, homem veraz, porque das duas dispo-
25 mas para fugir à ostentação; e também sições extremas a sua é a pior.

Como a vida é feita não só de ativi- com efeito, tais agudezas são conside-
dade, mas também de repouso, e este radas movimentos do caráter, e aos
inclui os lazeres e a recreação, parece caracteres, assim como aos corpos,
haver aqui também uma espécie de costumamos distinguir pelos seus mo-
intercâmbio que se relaciona com o vimentos.
bom gosto. Pode-se dizer - e também Não é, porém, difícil descobrir o
1128a escutar - o que se deve e o que não se lado ridículo das coisas, e a maioria
deve. A espécie de pessoa a quem fala- das pessoas deleitam-se mais do que
mos ou escutamos influi igualmente no devem com gracejos e caçoadas; daí
caso. serem os próprios chocarreiros chama-
Evidentemente, também neste dos espirituosos, pelo agrado que cau-
campo existe uma demasia e uma.defi- sam; mas o que dissemos acima torna /5
ciência em confronto com o meio- evidente que eles diferem em não
termo. Os que levam a jocosidade ao pequeno grau dos espirituosos.
5 excesso são considerados farsantes A disposição intermediária também
vulgares que procuram ser espirituosos pertence o tato. É característico de um
a qualquer custo e, na sua ânsia de homem de tato dizer e escutar aquilo
fazer rir, não se preocupam com a que fica bem a uma pessoa digna e
propriedade do que dizem nem em bem-educada; pois há coisas que fica
poupar as suscetibilidades daqueles bem a um tal homem dizer e escutar a
que tomam para objeto de seus chistes; título de gracejo; e os chistes de um 20
enquanto os que não sabem gracejar, homem bem-educado diferem dos de
nem suportam os que o fazem, são rús- um homem vulgar, assim como os de
ticos e impolidos. Mas os que grace- uma pessoa instruída diferem dos de
jam com bom gosto chamam-se espiri- um ignorante. Isto se pode ver até nas
tuosos, o que implica um espírito vivo comédias antigas e modernas: para os
/0 em se voltar para um lado e outro; autores das primeiras a linguagem
116 ARISTÓTELES

indecente era divertida, enquanto os Esse é o homem que observa o


das segundas preferem insinuar; e meio-termo, quer o chamemos homem
25 ambos diferem bastante no que tange à de tato, quer espirituoso. O chocar-
propriedade do que dizem. 'reiro, por outro lado, é o escravo da
Mas devemos definir o homem que sua dicacidade, e para provocar o riso 35
sabe gracejar bem pelo fato de ele dizer não poupa nem a si nem aos outros,
apenas aquilo que não fica mal a um dizendo coisas que um homem fino ja-
homem bem-educado, ou por não ma- 'mais diria, e algumas das quais nem
goar o ouvinte e até por deleitá-lo? Ou ele próprio desejaria escutar. O rústi- 1128 b
não será esta segunda definição, pelo co, por seu lado, é inútil para essa
menos, ela própria indefinida, uma vez ,espécie de intercâmbio social, pois em
que diferentes coisas são aprazíveis ou
nada contribui e em tudo acha o que
odiosas a diferentes pessoas? A espécie
censurar. Mas os lazeres e a recreação
de gracejos que ele se disporá a escutar
são considerados um elemento neces-
será a mesma, pois aqueles que pode
sário à vida.
tolerar são também os que gosta de
fazer. Há, por conseguinte, gracejos Os meios-termos que descrevemos
30 que esse homem nunca fará, pois o acima com respeito à vida são, pois,
gracejo é uma espécie de insulto, e há em número de três, e relacionam-se 5

coisas que os legisladores nos proíbem todos com alguma espécie de inter-
insultar, e talvez devessem também câmbio de palavras e atos. Diferem,
proibir-nos de gracejar em tomo delas. porém, pelo fato de um se relacionar
O homem fino e bem-educado será, com a verdade e os outros dois com o
pois, tal como o descrevemos, e ele 'prazer. Dos que dizem respeito pra-'
mesmo ditará, por assim dizer, a sua zer, um se manifesta nos gracejos e o
lei. outro no trato social comum.

9
10 A vergonha não deveria ser incluída sujeitos a envergonhar-se porque
entre as virtudes, porquanto se asseme- vivem pelos sentimentos e por isso
lha mais a um sentimento do que a cometem muitos erros, servindo a ver-
uma disposição de caráter. É definida, gonha para refreá-los; e louvamos os
em todo caso, como uma espécie de jovens que mostram essa propensão,
medo da desonra, e produz um efeito mas a uma pessoa mais velha ninguém
semelhante ao do medo causado pelo louvaria pelo mesmo motivo, visto
perigo. Com efeito, as pessoas enver- pensarmos ela não deve fazer nada 20
gonhadas coram e as que temem a de que tenha de envergonhar-se. Com
morte empalidecem; ambos, portanto, efeito, o sentimento de vergonha não é
parecem ser em certo sentido estados sequer característico de um homem
corporais, o que seria mais caracte- bom, uma vez que acompanha as más
rístico de um sentimento que de uma ações. Ora, tais ações não devem ser
disposição de caráter. praticadas; e não faz diferença que
J5 O sentimento de vergonha não fica algumas sejam vergonhosas em si mes-
bem a todas as idades, mas apenas à mas e outras o sejam apenas de acordo
juventude. Pensamos que os moços são com a opinião comum, pois nem as
ÉTICA A NICÔMACO - IV 117

primeiras, nem as segundas devemos ação dessas, sentirá vergonha. As


praticar, a fim de não sentirmos vergo- tudes, porém, não estão sujeitas a tais
nha. E é característico de 'um homem condições. E se o despudor - o não se
mau o ser capaz de cometer qualquer envergonhar de praticar ações vis - é
ação vergonhosa. mau, não se segue que seja bom enver-
É absurdo julgar-se alguém um gonhar-se de praticá-las.
homem bom porque sente vergonha A continência também não é uma
quando comete uma tal ação, visto que virtude, mas uma espécie de disposição
nos envergonhamos de nossas ações mista. É o que mostraremos mais 35
voluntárias, e o homem bom jamais adiante 62. Agora, porém, tratemos da
cometerá más ações voluntariamente. justiça.
Mas a vergonha pode ser considerada
uma boa coisa dentro de 'certas condi-
30 ções: se um homem bom cometer uma 62 Livro VII, caps. 1-10. (N. do T.)
LIVRO V
121

1129 a No que toca à justiça e à injustiça também se nos toma conhecida; e (b) a
devemos considerar: (1) com que espé- boa condição é conhecida pelas coisas
cie de ações se relacionam elas; (2) que que se acham em boa condição, e as
espécie de meio-termo é a justiça; e (3) segundas pela primeira. Se a boacon-
entre que extremos o ato justo é inter- _ dição for a rijeza de carnes, é neces-
.\ mediário. Nossa investigação se pro- sário não só que a má condição seja a
cessará dentro das mesmas linhas que carne flácida, como que o saudável
as anteriores. seja aquilo que toma rijas as carnes. E
Vemos que todos os homens enten- segue-se, de modo geral, que, se um
dem por justiça aquela disposição de dos contrários for ambíguo, o outro
caráter que torna"as pessoas propensas também o será; por exemplo, se o
a fazer o que é justo, que as faz agir "justo" o é, também o será o "injusto". 25
justamente e desejar o que é justo; e do Ora, "justiça" e "injustiça" parecem
mesmo modo, por injustiça se entende ser termos ambíguos, mas, como os
a disposição que as leva a agir injusta- seus diferentes significados se aproxi-
lO mente e a desejar o que é injusto. Tam- uns dos outros, a ambigüidade
bém nós, portanto, assentaremos isso escapa à atenção e não é evidente
como base geral. Porque as mesmas como, por comparação, nos casos em
coisas não são verdadeiras tanto das que os significados se afastam muito
ciências e faculdades como das dispo- um do outro por exemplo (pois aqui
sições de caráter. Considera-se que é grande a diferença de forma exterior),
uma faculdade ou ciência, que é uma como a ambigüidade no emprego de
só e a mesma coisa, se relaciona com para designar a clavícula de um 30

objetos contrários, mas uma disposi- animal e o ferrolho com que trancamos
ção de caráter, que é um de dois uma porta. Tomemos, pois, como
contrários, não produz resultados ponto de partida os vários significados
15 opostos. Por exemplo: em razão da de "um 'homem injusto". Mas o
saúde não fazemos o que é contrário à homem sem lei, assim como o ganan-
saúde, mas só o que é saudável, pois cioso e ímprobo, são considerados
dizemos que um homem caminha de injustos, de forma que tanto o respei-
modo saudável quando caminha como tador da lei como o honesto serão
o faria um homem que gozasse saúde. evidentemente justos. O justo é, por-
Ora, muitas vezes um estado é reco- tanto, o respeitador da lei e o probo, e o
nhecido pelo seu contrário, e não injusto é o homem sem lei e ímprobo.
menos freqüentemente os estados são Visto que o homem injusto é ganan- 1129 b
reconhecidos pelos sujeitos que os cioso, deve ter algo que ver com bens
manifestam; porque, (a) quando conhe- não todos os bens, mas aqueles a
20 cemos a boa condição, a má condição que dizem respeito a prosperidade e a
122 ARISTÓTELES

adversidade, e que tomados em abso- tras virtudes e formas de maldade,


luto são sempre bons, mas nem sempre prescrevendo certos atos e condenando
o são para uma pessoa determinada. outros; e a lei bem elaborada essas
5 Ora, os homens almejam tais coisas e coisas retamente, enquanto as leis con-
as buscam diligentemente; e isso é o cebidas às pressas as menos
contrário do que deveria ser. Deviam bem.
antes pedir aos deuses que as coisas Essa forma de justiça é, portanto, 25
que são boas em absoluto o fossem uma virtude completa, porém não em
também para eles, e escolher essas. absoluto e sim em relação ao nosso
O homem injusto nem sempre esco- próximo. Por isso a justiça é muitas
lhe o maior, mas também o menor - vezes considerada a maior das virtu-
no caso das coisas que são más em des, e "nem Vésper, nem a estrela-d'al-
absoluto. Mas, como o mal menor é, va 6 4" são tão admiráveis; e prover-
em certo sentido, considerado bom, e a "na justiça estão
10 ganância se dirige para o bom, pensa- compreendidas todas as virtudes 6 5". E
se que esse homem é ganancioso. E é ela é a virtude completa no pleno senti-
igualmente iníquo, pois essa caracte- do do termo, por ser o exercício atual
rística contém ambas as outras e é da virtude completa. É completa por-
comum a elas. que aquele que a possui pode exercer
Como vimos 63 que o homem sem sua virtude .não só sobre si mesmo,
lei é injusto e o respeitador da lei é mas também sobre o seu próximo, já
justo, evidentemente todos os atos legí- que muitos homens são de
timos são, em certo sentido, atos jus- exercer virtude em seus assuntos priva-
tos; porque os atos prescritos pela arte dos, porém não em suas relações com
do legislador são legítimos, e cada um os outros. Por isso é considerado ver- 1130.
15 deles, dizemos nós, é justo. Ora, nas dadeiro o dito de Dias, "que o mando
disposições que tomam sobre todos os revela o homem", pois necessaria-
assuntos, as leis têm em mira a vanta- mente quem governa está em relação
gem comum, quer de todos, quer dos com outros homens e é um membro da
melhores ou daqueles que detêm o sociedade.
poder ou algo nesse gênero; de modo Por mesma se diz que
que, em certo sentido, chamamos jus- somente a justiça, entre todas as virtu-
tos aqueles atos que tendem a produzir des, é o "bem de um outro 6 6", visto que
e a preservar, para a sociedade políti- se relaciona com o nosso próximo,
ca, a felicidade e os elementos que a fazendo o que é vantajoso a um outro, 5
compõem. E a lei nos ordena praticar seja governante, seja um associado.
20 tanto os atos :de um homem bravo Ora, o pior dos homens é aquele que
(por exemplo, .nâo desertar de nosso exerce sua maldade tanto para consi-
posto, nem fugir, nem abandonar nos- go mesmo comopara com os seus ami-
sas armas) quanto os de um homem gos, e o melhor não o que exerce a
temperante (por exemplo, não cometer sua virtude para consigo mesmo, mas
adultério nem entregar-se à luxúria) e para com um outro; pois que difícil ta-
os de um homem calmo (por exemplo refa é essa. .
não bater em ninguém, nem caluniar);
e do mesmo modo com respeito às ou-
8 4 Eurípides, fragmento 486 de Melanipa ..
Nauck), (No do To)
88 Teógnis, 1470 (No do To)
83 1129a32-1129b J. (No doT.) 88 Platão, República. 3430 (No do To)
ÉTICA A NICÔMACO - V 123

Portanto, a justiça neste sentido não justiça neste sentido: são elas a mesma
é uma parte da virtude, mas a virtude coisa, mas não o é a sua essência.
lO inteira; nem é seu contrário, a injusti- Aquilo que, em relação ao nosso próxi-
ça, uma parte do vício, mas o vício mo, é justiça, como uma determinada
inteiro. O que dissemos põe a desco- disposição de caráter e em si mesmo, é
berto a diferença entre a virtude e a virtude.

Seja, porém, como for, objeto de pela razão de lucrar com o seu ato.
nossa investigação é aquela justiça que Ainda mais: todos os outros atos injus-
constitui uma parte da virtude; por- tos são invariavelmente atribuídos a
quanto sustentamos que tal espécie de alguma espécie particular de- maldade;
justiça existe. E analogamente, é com a por exemplo, o adultério à internpe- 30
J5 injustiça no sentido particular que nos rança, o abandono de um companheiro
ocupamos. em combate à covardia, a violência fí-
Que tal coisa existe, é indicado pelo sica à cólera; mas, quando um homem
fato de que o homem que mostra em tira proveito de sua ação, esta não é
seus atos as outras formas de maldade atribuída a nenhuma outra forma de
age realmente mal, porém não ganan- maldade que não a injustiça. É eviden-
ciosamente (por exemplo, o homem te, pois, que além da injustiça no senti-
que atira ao chão o seu escudo por do lato existe uma injustiça "particu-
covardia, que fala duramente por mau lar" que participa do nome e da
humor ou deixa de assistir com di- natureza da primeira, porque sua defi-
20 nheiro ao seu amigo, por avareza); e, nição se inclui no mesmo gênero. Com 1130 b
'por outro lado, o ganancioso muitas efeito, o significado de ambas consiste
vezes não exibe nenhum vícios,
nem todos juntos, mas indubitavel- numa relação para com o próximo,
mente revela uma certa espécie de mal- mas uma delas diz respeito à honra, ao
dade (pois nós o censuramos) e de dinheiro ou à segurança - ou àquilo
injustiça. Existe, pois, uma outra espé- que inclui todas essas coisas, se hou-
cie de injustiça que é parte da injustiça vesse um nome para designá-lo - e
no sentido lato, e um dos empregos da seu motivo é o prazer proporcionado
palavra "injusto" que corresponde a pelo lucro; enquanto a outra diz res-
uma parte do que é injusto no sentido peito a todos os objetos com que se 5

amplo de "contrário à lei". relaciona o homem bom.


Por outro lado, se um homem come- Está bem claro, pois, que existe mais
te adultério tendo em vista o lucro e de uma espécie de justiça, e uma delas
25 ganha dinheiro com isso, enquanto um se distingue da virtude no pleno senti-
outro o faz levado pelo apetite, embora do da palavra. Cumpre-nos determinar
perca dinheiro e sofra com seu ato, o o seu gênero e a sua diferença especí-
segundo será considerado intempe- fica.
rante e não ganancioso, enquanto o O injusto foi dividido em ilegítimo e
primeiro é injusto, mas não intempe- ímprobo e o justo em legítimo e probo.
rante. Está claro, pois, que ele é injusto Ao ilegítimo corresponde o sentido de
124 ARISTÓTELES

10 injustiça que examinamos acima. Mas, essa que torna um homem bom em si,
como ilegítimo e ímprobo não são a fica para ser determinado posterior-
mesma coisa, mas diferem entre si mente 67; se isso compete à arte polí-
como uma parte do seu todo (pois tudo tica ou a alguma outra; pois talvez não
que é ímprobo é ilegítimo, mas nem haja identidade entre ser um homem
tudo que é ilegítimo é ímprobo), o bom e ser um bom cidadão de qual-
injusto e a injutiça no sentido de quer Estado escolhido ao caso.
improbidade não se identificam com a Da justiça particular e do que é . 30
primeira espécie citada, mas diferem justo no sentido correspondente, (A)
dela como a parte do todo. Com efeito, uma espécie é a que se manifesta nas
a injustiça neste sentido é uma parte da distribuições de honras, de dinheiro ou
injustiça no sentido amplo, e, do das outras coisas que são divididas
mesmo modo, a justiça num sentido o entre aqueles que têm parte na consti-
15 é da justiça do outro. Portanto, deve- tuição (pois aí é possível receber um
mos também falar da justiça e da injus- quinhão igualou desigual ao de um
tiça particulares, e da mesma forma a outro); e (B) outra espécie é aquela que
respeito do justo e do injusto. desempenha um papel corretivo nas
Quanto à justiça, pois, que corres- transações entre indivíduos. Desta últi- 1131 a
ponde à virtude total, e à correspon- ma há duas divisões: dentre as transa-
dente injustiça, sendo uma delas o çôes, (I) algumas são voluntárias, e (2)
exercício da virtude em sua inteireza e outras são involuntárias - voluntá-
a outra, o do vício completo, ambos • rias, por exemplo, as compras e ven-
em relação ao nosso próximo, pode- das, os empréstimos para consumo, as
mos deixá-las de parte. E é evidente o arras, o empréstimo para uso, os depó-
modo como devem ser distinguidos os sitos, as locações (todos estes são cha-
20 significados de "justo" e de "injusto" mados voluntários porque a origem
que lhes correspondem, pois, a bem das transações é voluntária); ao passo 5
dizer, a maioria dos atos ordenados que das involuntárias, (a) algumas são
pela lei são aqueles que são prescritos clandestinas, como o furto, o adultério,
do ponto de vista da virtude conside- o envenenamento, o lenocínio, o engo-
rada como um todo. Efetivamente, a do a fim de escravizar, o falso testemu-
lei nos manda praticar todas as virtu- nho, e (b) outras são violentas, como a .
des e nos proíbe de praticar qualquer agressão, o seqüestro, o homicídio, o
25 vício. E as coisas que tendem a produ- roubo a mão armada, a mutilação, as
zir a virtude considerada como um invectivas e os insultos.
todo são aqueles atos prescritos pela
lei tendo em vista a educação para o 1179 b 20 - 1181 b 12. Política. 1267 b 16-
bem comum. Mas no que tange à edu-
67
1277 b 32; 1278 a 40 - 1278 b 5; 1288 a 32-
cação do indivíduo como tal, educação 1288b2; 1333a 1337a 11-14.(N.doT.)

3
10 (A) Mostramos que tanto o homem entre as duas iniqüidades compreen-
como o ato injustos são ímprobos ou didas em cada caso. E esse ponto a
iníquos. Agora se torna claro que exis- eqüidade, pois em toda espécie de ação
te também um. ponto intermediário em que há o mais e o menos também
ÉTICA A NICÔMACO - V 125

há o igual. Se, pois, o injusto é iníquo, abstratas, mas do número em geral).


o justo é eqüitativo, como, aliás, pen- Com efeito, a proporção é uma igual-
sam todos mesmo sem discussão. E, dade de razões, e envolve quatro ter-
como o igual é um ponto interme- mos pelo menos (que a proporção
J5 diário, o justo será um meio-termo. descontínua envolve quatro termos é
Ora, igualdade implica pelo menos evidente, mas o mesmo sucede com a
duas coisas. O justo, por conseguinte, contínua, pois ela usa termo em
deve ser ao mesmo tempo interme- duas posições e o menciona duas
diário, igual e relativo (isto é, para cer- vezes; por exemplo "a linha A está 1131 b

tas pessoas). E, como intermediário, para a linha B assim como a linha B


deve encontrar-se entre certas coisas está para a linha C": a linha B, pois,
foi mencionada duas vezes e, sendo ela
(as quais são, respectivamente, maio-
usada em duas posições, os termos
res e menores); como envolve
proporcionais são quatro). O justo
duas coisas; e, como justo, o é para também envolve pelo menos quatro
certas pessoas. O justo, pois, envolve,
termos, e a razão entre dois deles é a
pelo menos quatro termos, porquanto mesma que entre os outros dois, por-
duas são as pessoas para quem ele é de quanto há uma distinção semelhante
fato justo, e duas são as coisas em que entre as pessoas e entre as coisas.
se manifesta - os objetos distri- Assim como o termo A está para B, o
buídos. termo C está para D; ou, alternando,
20 E a mesma igualdade se observará assim como A está para C, B está para
entre as pessoas e entre as coisas D. Logo, também o todo guarda a
envolvidas; pois à mesma relação que mesma relação para com o todo; e esse
existe as segundas (as coisas, acoplamento é efetuado pela distribui-
envolvidas) também existe entre as pri- ção e, sendo combinados os termos da
meiras. Se não são iguais, não recebe- forma que indicamos, efetuado justa-
rão coisas iguais; mas isso é origem de mente. Donde se segue que a conjun-
disputas e queixas: ou quando iguais ção do termo A com C e de B com D é
têm e recebem partes desiguais, ou o que é justo na distribuição; e esta 10

quando desiguais recebem partes espécie do justo é intermediária, e o


25 iguais. Isso, aliás, é evidente pelo fato injusto é o que viola a proporção; por-
de que as distribuições devem ser feitas que o proporcional é intermediário, e o
"de acordo com o mérito"; pois todos justo é proporcional. (Os matemáticos
admitem que a distribuição justa deve chamam "geométrica" a esta espécie
concordar com o mérito num sentido de proporção, pois só na proporção
qualquer, se bem que nem todos espe- geométrica o todo está para o todo
cifiquem a mesma espécie de mérito, assim como cada parte está para a
mas os democratas o identificam com parte correspondente.) Esta proporção J5
a condição de homem livre, os partidá- não é contínua, pois não podemos
rios da oligarquia com a riqueza (ou um termo único que represente
com a nobreza de nascimento), e os uma pessoa e uma coisa.
partidários da aristocracia com a exce- Eis aí, pois, o que é o justo: o
lência. proporcional; e o injusto é o que viola
30 O justo é, pois, uma espécie de a proporção. Desse modo, um dos ter-
termo proporcional (sendo a propor- mos torna-se grande demais e o outro
ção uma propriedade não só da espécie demasiado pequeno, como realmente
de número que consiste em unidades acontece na prática; porque o homem
126 ARISTÓTELES

que age injustamente tem excesso e o primeiro é escolhido de preferência ao


que é injustamente tratado tem dema- segundo, e o que é digno de escolha é
20 siado pouco do que é bom. No caso do bom, e de duas coisas a mais digna de
mal verifica-se o inverso, pois o menor escolha é um bem maior.
mal é considerado um bem em compa- Essa é, por conseguinte, uma das
ração com o mal maior, visto que o espécies do justo.

25 (B) A outra é a corretiva que surge em procura igualá-los por meio da pena,
relação com transações tanto voluntá- tomando uma parte do ganho do acu-
rias como involuntárias. Esta forma do sado. Porque o termo "ganho" aplica- /0
justo tem um caráter específico dife- se geralmente a tais casos, embora não
rente da primeira. Com efeito, a justiça seja apropriado a alguns deles, como,
que distribui posses comuns está sem- por exemplo, à pessoa que inflige um
pre de acordo com a proporção men- ferimento - ' e "perda" à vítima. Seja
cionada acima (e mesmo quando se como for, uma vez estimado o dano,
trata de distribuir os fundos comuns de um é chamado perda e o outro, ganho.
30 uma sociedade, ela se fará segundo a Logo, o igual é intermediário entre o /5
mesma razão que guardam entre si os maior e o menor, mas o ganho e a
fundos empregados no negócio pelos perda são respectivamente menores e
diferentes sócios); e a injustiça contrá- maiores em sentidos contrários; maior
ria a esta espécie de injustiça é a que quantidade do bem e menor quanti-
viola a proporção. Mas a justiça nas dade do mal representam ganho, e o
transações entre um homem e outro é contrário é perda; e intermediário entre
1132 a efetivamente uma espécie de igualdade, os dois é, como vimos, o igual, que
e a injustiça uma espécie de desigual- dizemos ser justo. Por conseguinte, a
dade; não de acordo com essa espécie justiça corretiva será o intermediário
de proporção, todavia, mas de acordo entre a perda e o ganho.
com uma proporção aritmética. Por- Eis aí por que as pessoas em disputa
quanto não faz diferença que um recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é 20
homem bom tenha defraudado um recorrer à justiça, pois a natureza do
homem mau ou vice-versa, nem se foi juiz é ser uma espécie de justiça anima-
um homem bom ou mau que cometeu da; e procuram o juiz como um inter-
adultério; a lei considera apenas o mediário, e em alguns Estados os juí-
5 caráter distintivo do delito e trata as zes são chamados mediadores, na
partes como iguais, se uma comete e a convicção de que, se os litigantes
outra sofre injustiça, se uma é autora e conseguirem o meio-termo, consegui-
a outra é vítima do delito. rão o que é justo. O justo, pois, é um
Portanto, sendo esta espécie de meio-termo já que o juiz o é. . 25
injustiça uma desigualdade, o juiz pro- Ora, o juiz restabelece a igualdade.
cura igualá-la; porque também no caso É como se houvesse uma linha divi-
em que um recebeu e o outro infligiu dida em partes desiguais e ele retirasse
um ferimento, ou um matou e o outro a diferença pela qual o segmento maior
foi morto, o sofrimento e a ação foram a metade para acrescentá-la ao
desigualmente destribuídos; mas o juiz menor. E quando o todo foi igualmente
ÉTICA A NICÔMACO - V 127

dividido, os litigantes dizem que rece- linha AA' o segmento AE, e acrescen-
beram "o que lhes pertence" - isto é, te-se à linha CC' o segmento CD, de
receberam o que é igual. modo que toda a linha DCC' exceda a
O igual é intermediário entre a linha linha EA' pelo segmento CD e pelo
maior e a menor de acordo com uma segmento CF; por conseguinte, ela ex-
30 proporção aritmética. Por esta mesma cede a linha BB' pelo segmento CD.
razão é ele chamado justo A E A'
devido a ser uma divisão em duas par- I I I
tes iguais ), como quem dissesse B B'
; e-o juiz ( ) é aquele I I

que divide em dois ( Com D C F C'


I I I I
efeito, quando alguma coisa é sub-
traída de um de dois iguais e acres- Estes nomes, perda e ganho, procedem
centada ao outro, este supera o pri- das trocas voluntárias, pois ter mais do
meiro pelo dobro dela, visto que, se o que aquilo que é nosso chama-se
que foi tomado a um não fosse acres- ganhar, e ter menos do que a nossa
centado ao outro, a diferença seria de parte inicial chama-se perder, como,
1132 b um SÓ. Portanto, o maior excede o por exemplo, nas compras e vendas e
intermediário de um, e o intermediário em todas as outras transações em que 15
excede de um aquele de que foi sub- a -lei dá liberdade aos indivíduos para
traída alguma coisa. Por aí se vê que estabelecerem suas próprias condições;
devemos tanto subtrair do que tem quando, todavia, não recebem mais
mais como acrescentar ao tem nem menos, mas exatamente o que lhes
menos; e a este acrescentaremos a pertence, dizem que têm o que é seu e
5 quantidade pela qual o excede o inter- que nem ganharam nem perderam.
mediário, e do maior subtrairemos o Logo, o justo é intermediário entre
seu excesso em relação ao interme- uma espécie de ganho e uma espécie de
diário. perda, saber, os que são involuntá-
Sejam as linhas AA', BB' e CC' rios. Consiste em ter uma quantidade 20
iguais umas às outras. Subtraia-se da igual antes e depois da transação.

Alguns pensam a reciprocidade não se coaduna com a justiça correti-


é justa sem qualquer reserva, como di- va: por exemplo (1), se uma autoridade
ziam os pitagóricos; pois assim defi- infligiu um ferimento, não deve ser fe-
niam eles a justiça. Ora, "reciproci- rida em represália, e se alguém feriu
dade" não se enquadra nem na justiça uma autoridade, não apenas deve ser 30
25 distributiva, nem na corretiva, e no também ferido, mas castigado além
entanto querem que a justiça do pró- disso. Acresce que (2) há grande dife-
prio Radamarito isso: rença entre um ato voluntário e um ato
Se um o que fez, a devi- involuntário. Mas nas transações de
seráfeita 68. troca essa espécie de justiça não pro-
Ora, em muitos casos a reciprocidade duz a união dos homens: a reciproci-
dade deve fazer-se de acordo com uma
68 Hesíodo, fragmento 174 Rzach. (N. do T.) proporção e não na base de uma retri-
128 ARISTÓTELES

buição exatamente igual. Porquanto é pares de sapatos são iguais a uma casa
pela retribuição proporcional que a ci- ou a uma determinada quantidade de
dade se mantém unida. Os homens alimento.
procuram pagar o mal com o mal e, se O número de sapatos trocados por
não podem fazê-lo, julgam-se reduzi- uma casa (ou por uma determinada
dos à condição de simples escravos - quantidade de alimento) deve, portan-
1133 a e o bem com o bem, e se não podem to, corresponder à razão entre o arqui-
fazê-lo há troca, e é pela troca que teto e o sapateiro. Porque, assim
eles se mantêm unidos. Por esse não for, não haverá troca nem inter-
mesmo motivo dão uma posição proe- câmbio. E essa proporção não se veri- 25
minente ao templo das Graças: promo- ficará, a menos que os bens sejam
ver a retribuição dos serviços é carac- iguais de um modo. Todos os bens
terístico da graça, e deveríamos servir devem, portanto, ser medidos por uma
em troca aquele nos dispensou só e a mesma coisa, como dissemos
uma graça, tomando noutra ocasião a acima. Ora, essa unidade é na reali-
iniciativa de lhe fazer o mesmo. dade a procura, que mantém unidas
Ora, a retribuição proporcional é todas as coisas (porque, se os homens
garantida pela conjunção cruzada. não necessitassem em absoluto dos
Seja A um arquiteto, B um sapateiro, bens uns dos outros, ou não necessi-
C uma casa e D um par de sapatos. O tassem deles igualmente, ou não have-
arquiteto, pois, deve receber do sapa- ria troca, ou não a mesma troca); mas
teiro o produto do trabalho deste últi- o dinheiro tomou-se, por convenção,
10· mo, e dar-lhe o seu em troca. Se, pois, uma espécie de representante da procu-
há uma igualdade proporcional de ra; e por isso se chama dinheiro
bens e ocorre a ação recíproca, o resul- ), já que existe não por natureza,
tado que mencionamos será efetuado. mas por lei ), e está em nosso
Senão, a permuta não é igual, nem vá- poder mudá-lo e tomá-lo sem valor.
lida, pois nada impede que o trabalho Haverá, pois, reciprocidade quando
de um seja superior ao do outro. os termos forem igualados de modo
Devem, portanto, ser igualados. que, assim como o agricultor está para
E isto é verdadeiro também das ou- o sapateiro, a quantidade de produtos
tras artes, porquanto elas não subsisti- do sapateiro esteja para a de produtos
15 riam se o que o paciente sofre não de agricultor pela qual é trocada. Mas
fosse exatamente o mesmo que o agen- não devemos. colocá-los em proporção b
te faz, e da mesma quantidade e espé- depois de haverem realizado a troca
cie. Com efeito, não são dois médicos (do contrário ambos os excessos' se
que se associam para troca, mas um juntarão num dos extremos), e sim
médico e um agricultor, e, de modo quando cada um possui ainda os seus
geral, pessoas diferentes e desiguais; bens. Desse modo são iguais e associa-
mas essas pessoas devem ser iguala- dos justamente porque essa igualdade
das. Eis aí por que todas as coisas que se pode efetivar no seu caso.
são objetos de troca devem ser compa- Seja A um agricultor, C uma deter-
ráveis um modo ou de outro. Foi minada quantidade de alimento, B um
para esse fim que se introduziu o sapateiro e D o seu produto, que equi-
20 dinheiro, o qual se toma, em certo sen- paramos a C. Se não fosse possível efe-
tido, um meio-termo, visto que mede tuar dessa forma a reciprocidade, não
todas as coisas e, por conseguinte, haveria associação das partes. Que a
também o excesso e a falta - quantos procura engloba as coisas numa unida-
ÉTICA A NICÔMACO - V 129

de só é evidenciado pelo fato de que, uma casa, a saber: cinco. Não há dúvi-
quando os homens não necessitam um da que a troca se realizava desse modo
do outro - isto é, quando não há antes de existir dinheiro, pois nenhuma
necessidade recíproca ou quando um diferença faz que cinco camas sejam
deles não necessita do segundo - , não trocadas por uma casa ou pelo valor
realizam a troca, como acontece quan- monetário de cinco camas.
do alguém deseja o que temos: por Temos, pois, definido o justo e o 311
/0 exemplo, quando se permite a exporta- injusto. Após distingui-los assim um
ção de trigo em troca de vinho. É pre- do outro, é evidente que a ação justa é
ciso, pois, estabelecer essa equação. intermediária entre o agir injustamente
E quanto às trocas futuras - a fim e o ser vítima de injustiça; pois um
de que, se não necessitamos de uma deles é ter demais e o outro é ter dema-
coisa agora, possamos tê-la quando ela siado pouco. A justiça é uma espécie
venha a fazer-se necessária - , o de meio-termo, porém não no mesmo
dinheiro é, de certo modo, a nossa sentido que as outras virtudes, e sim
garantia, pois devemos ter a possibili- porque se relaciona com uma
dade de obter o que queremos em troca ou quantidade intermediária, enquanto
do dinheiro. Ora, com o dinheiro suce- a injustiça se relaciona com os extre-
de a mesma coisa que com os bens: mos. E justiça é aquilo em virtude do
nem sempre tem ele o mesmo valor; qual se diz que o homem justo pratica,
apesar disso, tende a ser mais estável. escolha própria, o que é justo, e
Daí a necessidade de que todos os bens que distribui, seja entre si mesmo e um
tenham um preço marcado; pois assim outro, seja entre dois outros, não de
/5' haverá sempre troca e, por conse- maneira a dar mais do que convém a si
guinte, associação de homem com e menos ao seu próximo (e
homem. inversamente no relativo ao que não
Deste modo, agindo o dinheiro convém), mas de maneira a dar o que é
como uma 'medida, torna ele os bens igual de acordo com a proporção; e da
comensuráveis e os equipara entre si; mesma forma quando se trata de distri-
pois nem haveria associação se não buir entre duas outras pessoas. A
houvesse troca, nem troca se não hou- injustiça, por outro lado, guarda uma
vesse igualdade, nem igualdade se não relação semelhante para com o injusto,
houvesse comensurabilidade. Ora, na que é excesso e deficiência, contrários
realidade é impossível que coisas tão à proporção, do útil ou do nocivo. Por
diferentes entre si se tornem comensu- esta razão a injustiça é excesso e defi-
20 ráveis, mas com referência à procura ciência, isto é, porque produz tais coi-
podem tornar-se tais em grau sufi- sas - no nosso caso pessoal, excesso
ciente. Deve haver, pois, uma unidade, do que é útil por natureza e deficiência· /0
e unidade estabelecida por comum do que é nocivo, enquanto o caso de
acordo (por isso se chama ela dinhei- outras pessoas é equiparável de modo
ro); pois é ela que torna todas as coisas geral ao nosso, com a diferença de que
comensuráveis, já que todas são medi- a proporção pode ser violada num e
das pelo dinheiro. noutro sentido. Na ação injusta, ter
Seja A uma casa, B dez minas, C demasiado pouco é ser vítima de injus-
uma cama. A é a metade de B, se a tiça, e ter demais é agir injustamente.
casa vale cinco minas ou é igual a elas; Seja esta a nossa exposição da natu-
25 a cama, C, é um décimo de B; torna-se reza da justiça e da injustiça e, igual-
assim evidente quantas camas igualam mente, do justo e do injusto em geral. /5
130 ARISTÓTELES

Visto que agir mjustamente não nem sempre se pode inferir que haja
implica necessariamente ser injusto, injustiça), e estas consistem em atri- 35
devemos indagar que espécies de atos buir demasiado a si próprio das coisas
injustos implicam que o autor é injusto boas em si, e demasiado pouco das coi-
com respeito a cada tipo de injustiça: sas más em si.
por exemplo, um ladrão, um adúltero Aí está por que não permitimos que
ou um bandido. Evidentemente, a res- um homem governe, mas o princípio
posta não gira em torno da diferença racional, pois que um homem o faz no
entre esses tipos, pois um homem seu próprio interesse e converte-se num 1134 b

poderia até deitar-se com uma mulher, tirano. O magistrado, por outro lado, é
20 sabendo quem ela é, sem que no entan- um protetor da justiça e, por conse-
to o motivo de seu ato fosse uma esco- guinte, também da igualdade. E, visto
lha deliberada, mas a paixão. Esse supor-se que ele não possua mais do
homem age injustamente, por conse- que a sua parte, se é justo (porque não
guinte, mas não é injusto; e um homem atribui a si mesmo mais daquilo que é
pode não ser ladrão apesar de ter rou- bom em si, a menos que tal quinhão
bado, nem adúltero apesar de ter seja proporcional aos seus méritos - 5
cometido adultério; e analogamente de modo que é para outros que traba-
em todos os outros casos. lha, e por essa razão os homens, como
Ora, já mostramos anteriormente mencionamos anteriormente 7 o, dizem
como o recíproco se relaciona com o ser a justiça "o bem de um outro"), ele
justo 69; mas não devemos esquecer deve, portanto, ser recompensado, e
que o que estamos procurando não é sua recompensa é a honra e o privilé-
apenas aquilo que é justo incondicio- gio; mas aqueles que não' se contentam
nalmente, mas também a justiça políti- com essas coisas tornam-se tiranos.
ca. Esta é encontrada entre homens A justiça de um amo e a de um pai
que vivem em comum tendo em vista a não são a mesma que a justiça dos
auto-suficiência, homens que são livres cidadãos, embora se assemelhem a ela,
e iguais, quer proporcionalmente, quer pois não pode haver justiça no sentido
aritmeticamente, de modo que entre os incondicional em relação a coisas que
que não preenchem esta condição não nos pertencem, mas o servo de um /0
existe justiça política, mas justiça num homem e o seu filho, até atingir certa
sentido especial e por analogia. idade e tornar-se independente, são,
30 Com efeito, a justiça existe apenas por assim dizer, uma parte dele. Ora,
entre homens cujas relações mútuas ninguém fere voluntariamente a si
são governadas pela lei; e a lei existe mesmo, razão pela qual também não
para os homens entre os quais há injus- pode haver injustiça contra si próprio.
tiça, pois a justiça legal é a discrimi- Portanto, não é em relações dessa
nação do justo e do injusto. E, havendo espécie que se manifesta a justiça ou
injustiça entre homens, também há injustiça dos cidadãos; pois, como
açôes injustas (se bem que do fato de vimos 71, ela se relaciona com a lei e
ocorrerem açôes injustas entre eles
70 1130 a 3. (N. do T.)
691132b21-1133b28.(N.doT.) 711134a30.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - V 131

se verifica entre pessoas-naturalmente Pôr isso é mais fácil manifestar verda-


sujeitas à lei; e estas, como também deira justiça para com nossa esposa do /5

vimos 72, são pessoas que têm partes que para com nossos filhos e servos.
iguais em governar e ser governadas. Trata-se, nesse caso, de justiça domés-
tica, a qual, sem embargo, .também di-
72 1134 a 2ó-28. (N. do T.) fere da justiça política.

7
Da justiça política, uma parte é ambas sejam igualmente mutáveis. E
natural e outra parte legal: natural, em todas as outras coisas a mesma dis-
aquela que tem a mesma força onde tinção será aplicável: por natureza, a
20 quer que seja e não existe em razão de mão direita é mais forte; eno entanto é
pensarem os homens deste ou daquele possível que todos os homens venham
modo; legal, a que de início é indife- a tornar-se ambidestros.
rente, mas deixa de sê-lo depois que foi As coisas que são justas em virtude
estabelecida: por exemplo, que o resga- da convenção e da conveniência asse-
te de um prisioneiro seja de uma mina, melham-se a medidas, pois que as 1135 a
ou que deve ser sacrificado um bode e medidas para o vinho e para o trigo
não duas ovelhas, e também todas as não são iguais 'em toda parte, porém
leis promulgadas casos particula- maiores nos mercados por atacado e
res, como a que mandava oferecer menores nos retalhistas. Da mesma
sacrifícios em honra de Brásidas 73, e forma, as coisas que são justas não por
as prescrições dos decretos. natureza, mas por decisão humana,
Ora, alguns pensam que toda justiça não são as mesmas em toda parte. E as
é desta espécie, porque as coisas que próprias constituições não são as mes-
25· são por natureza, são imutáveis e em mas, conquanto só haja uma que é, por
toda parte têm a mesma força (como o natureza, a melhor em toda parte.
fogo, que arde tanto aqui como na Pér- Das coisas justas e legítimas, cada 5
sia), ao passo que eles observam alte- uma se relaciona como o universal
rações nas coisas reconhecidas como para com o seus casos particulares;
justas. Isso, porém, não é verdadeirõ pois as coisas praticadas são muitas,
de modo absoluto mas verdadeiro em mas dessas cada uma é uma só, visto-
certo sentido; ou melhor, para os deu- que é universal.
ses talvez não seja verdadeiro de modo Há uma diferença entre o ato de
algum, enquanto para nós existe algo injustiça e o que é injusto, assim como
que é justo mesmo por natureza, embo- entre o ato de justiça e o que é justo.
ra seja mutável. Isso não obstante, Como efeito, uma coisa é injusta por
algumas coisas o são por natureza e natureza ou por lei; e essa mesma
outras, não. coisa, depois que alguém a faz', é um /0
Com toda a evidência percebe-se ato de injustiça; antes disso, porém, é
JO que espécie de coisas, entre as que são apenas injusta. E do mesmo modo
capazes de ser de outro modo, é por quanto ao ato de justiça (se bem que a
natureza e que espécie não o é, mas expressão geralmente usada seja "ação
por lei e convenção, admitindo-se que justa", e "ato de justiça" se aplique à
correção do ato de injustiça).
73 Tucídides. II. (N. do T.) Cada uma destas coisas deve ser
132 ARISTÓTELES

examinada separadamente mais tarde, suas especies, bem como à natureza


no tocante à natureza ao número de das coisas com que se relaciona.

8
/5 Sendo os atos justos e injustos tais dade. Por conseguinte, aquilo que se
como os descrevemos, um homem age faz na ignorância, ou embora feito com
de maneira justa ou injusta sempre que conhecimento de causa, não depende
pratica tais atos voluntariamente. do agente, ou que é feito sob coação, é
Quando os pratica involuntariamente,' involuntário (pois há, até, muitos pro-
seus atos não são justos nem injustos, cessos naturais que nós cientemente
salvo por acidente, isto é, porque ele realizamos e experimentamos, e ne-
fez coisas que redundam em justiças nhum dos quais, no entanto, se pode 1135 b
ou injustiças. É o caráter voluntário ou qualificar de voluntário ou involun-
involuntário do ato que determina se tário, como, por exemplo, envelhecer
. ele é justo ou injusto, pois, quando é ou morrer).
voluntário, é censurado, e pela mesma Mas tanto no caso dos atos justos
razão se torna um ato de injustiça; de como dos injustos, a injustiça ou justi-
forma que existem coisas que são ça pode ser apenas acidental; pois
injustas, sem que no entanto sejam pode acontecer que um homem restitua·
atos de injustiça, se não estiver pre- involuntariamente ou por medo um 5
sente também a voluntariedade. valor depositado em suas mãos, e
nesse caso não se deve dizer que ele
Por voluntário entendo, como já praticou um ato de justiça ou que agiu
disse antes 7 4, tudo aquilo que um
justamente, a não ser de modo aciden-
homem tem o poder de fazer e que faz tal. Da mesma forma, aquele que sob
com conhecimento de causa, isto é, coação e contra a sua vontade deixa de
sem ignorar nem a pessoa atingida restituir o valor depositado, agiu injus-
pelo ato, nem o instrumento usado, tamente e cometeu um ato de injustiça,
nem o fim que há de alcançar (por mas apenas por acidente.
exemplo, em quem bate, com que e
Dos atos voluntários, praticamos al- /0
com que fim); além disso, cada um guns por escolha e outros não; por
desses atos 'não deve ser acidental nem escolha, os que praticamos após deli-
forçado (se, por exemplo, A toma a
berar, e por não escolha os que prati-
de B e com ela bate em C, B não camos sem deliberação prévia.
agiu voluntariamente, pois o ato não Há, por conseguinte, três espécies de
dependia dele).
dano nas transações entre um homem e
A pessoa atingida pode ser o pai do outro. Os que são infligidos por igno-
agressor, e este pode saber que bateu rância são enganos quando a pessoa
num homem ou numa das pessoas pre- atingida pelo ato, o próprio ato, o
30 sentes, ignorando, no entanto, que se instrumento ou o fim a ser alcançado
trata de seu pai. Uma distinção do são diferentes do que o agente supõe:
mesmo gênero se deve fazer quanto ao ou o agente pensou que não ia atingir
fim da ação e à ação em sua totali- ninguém, ou que não ia atingir com
determinado objeto, ou a determinada
74 1109 b 35 - 1II1 a 24. (N. do T.) pessoa, ou com o resultado que lhe
ÉTICA A NICÔMACO - V 133

J5 parecia provável (por exemplo, se ati- não; pois foi a sua aparente injustiça
rou algo não com o propósito de ferir, que provocou a ira. Com efeito, eles
mas de incitar, ou se a pessoa atingida não disputam sobre a ocorrência do
ou o objeto atirado não eram os que ato (como nas transações comerciais
ele supunha). Ora, (1) quando o dano em que uma das duas partes forçosa-
ocorre contrariando o que era razoa- mente agiu de má fé), a menos que o
velmente de esperar, é um infortúnio. façam por esquecimento; mas, estando
(2) Quando não é contrário a uma concordes a respeito fato, disputam
expectativa razoável, mas tampouco sobre qual deles está com a justiça (ao
implica vício, é um engano (pois o passo que um homem que deliberada-
agente comete um engano quando a mente prejudicou a outro não pode
falta procede dele, mas é vítima de um ignorar tal coisa); de forma que um
acidente quando a causa lhe é exte- pensa estar sendo injustamente tratado
rior). (3) Quando age com o conheci- e o outro discorda dessa opinião.
mento do que faz, mas sem deliberação Mas, se um homem prejudica a 1136a

20 prévia, é um ato de injustiça: por outro por escolha, age injustamente; e


exemplo, os que se originam da cólera são estes os atos de injustiça que
ou de outras paixões necessárias ou caracterizam os seus perpetradores
naturais ao homem. Com efeito,quan- como homens injustos, contanto que o
do os homens praticam atos nocivos e. ato viole a proporção ou a igualdade.
errôneos desta espécie, agem injusta- Do mesmo modo, um homem é justo
mente, e seus atos são atos de injustiça, quando age justamente por escolha;
mas isso não quer dizer que os agentes mas age justamente se sua ação é ape-
sejam injustos ou malvados, pois que o nas voluntária.
25 dano não se deve ao vício. Mas (4) Dos atos voluntários, alguns são
quando um homem age por escolha, é desculpáveis e outros não. Com efeito,
ele um homem injusto e vicioso. os erros que os homens cometem não
Por isso, é com razão que se consi- apenas na ignorância mas também por
deram os atos originados da cólera ignorância são desculpáveis, enquanto
como impremeditados, pois a causa do os que não se devem à ignorância (em-
mal não foi o homem que agiu sob o bora sejam cometidos na ignorância);
impulso da cólera, mas aquele que o mas a uma paixão que nem é natural,
provocou. Além disso, o objeto da nem se conta entre aquelas a que o gê-
disputa não é se a coisa aconteceu ou humano está sujeito - esses são
deixou de acontecer, mas se é justa ou indesculpáveis.

9
10 Dando como suficientemente defini- Fizeste-lo por vosso querer, ou
dos o que sejam cometer injustiça e ser [com pesar de ambos? 7 5
vítima dela, pode-se perguntar (l) se a
verdade está expressa nas palavras Será mesmo possível sermos tratados 15

paradoxais de Eurípedes: injustamente por nosso querer, ou, pelo


contrário, será involuntária toda injus-
Matei minha mãe; eis o meu caso,
[em suma. 7 5 Fragmento 68 de Alcmêon, Nauck. (N. do T.)
134 ARISTÓTELES

tiça sofrida, como toda ação injusta é voluntariamente, devido à inconti-


voluntária? E será toda injustiça sofri- nência, sofrer algum mal da parte de
da da segunda espécie ou da primeira, outro que age voluntariamente, de
ou às vezes voluntária e outras vezes modo que seria possível ser injusta-
involuntária? E do mesmo modo no mente tratado por seu próprio querer.
que se refere ao ser tratado com justi- Ou porventura é incorreta a nossa defi-
ça: como toda ação justa é voluntária, nição, e a "fazer mal a um outro, com
20 seria razoável que houvesse uma opo- conhecimento da pessoa atingida pela
sição semelhante em cada um dos dois açâo, do instrumento e da maneira"
casos: que tanto o ser tratado com jus- faz-se mister acrescentar "contra a
tiça como com injustiça fossem igual- vontade da pessoa atingida pela 5
mente voluntários ou involuntários. razão"? Assim, um homem poderia ser
Mas pareceria paradoxal, mesmo no voluntariamente prejudicado e volun-
caso de ser tratado com justiça, que tariamente sofrer injustiça, mas nin-
isso fosse sempre voluntário, pois é guém seria injustamente tratado por
contra a sua vontade que alguns são seu querer; pois ninguém deseja ser
justamente tratados. injustamente tratado, nem mesmo o
(2) Poder-se-ia levantar esta outra homem incontinente.
questão: todos os que sofrem injustiça Esse homem age contrariamente ao
estão sendo injustamente tratados, ou seu desejo, pois ninguém deseja o que
ocorrerá com a passividade ao mesma julga não ser bom, mas o homem
25 coisa que com a ação? Tanto numa incontinente de fato faz coisas que
como na outra é possível participar pensa não dever fazer. E, por outro
acidentalmente da justiça, e, do mesmo lado, quem dá -o que lhe pertence,
modo (como é evidente), da injustiça. como Homero diz que Glauco a
Com efeito, praticar um ato injusto Diômedesa rmadura de ouro por 10

não é o mesmo que agir injustamente, armadura de bronze e o preço de cem


nem sofrer injustiça é o mesmo que ser bois por nove 7 6, não é injustamente
injustamente tratado; e o mesmo ocor- tratado; porque, se o dar depende dele,
re quanto ao agir injustamente e ao ser o ser injustamente tratado não depen-
30 justamente tratado, pois é impossível de: para isso é preciso haver alguém
ser injustamente tratado se o outro não que o trate injustamente. Toma-se
age injustamente, ou ser justamente claro, pois, que o ser injustamente tra-
tratado a não ser que ele aja com justi- tado não é voluntário.
ça. Ora, se agir injustamente não é Das questões que tencionávamos 15

mais que prejudicar voluntariamente a discutir restam ainda duas: (3) se quem
alguém, e "voluntariamente" significa age injustamente é o que confe-
"com conhecimento da pessoa atingida re a um outro um quinhão superior ao
pela ação, do instrumento e da manei- que lhe cabe ou o que ficou com o qui-
ra pela-qual se age", e o homem incon- nhão excessivo, e (4) se é possível tra-
tinente prejudica voluntariamente a si tar injustamente a si mesmo. Estas
mesmo, não só ele será injustamente questões são mutuamente conexas,
tratado por seu querer como também porquanto se a primeira alternativa é
será possível tratar si mesmo injusta- possível e quem age injustamente é o
mente. (Esta possibilidade de tratar aquinhoador e não o homem que ficou
1136 b injustamente a si mesmo é uma das com a parte excessiva, então, se um
questões a serem debatidas.)
Por outro lado, um homem pode 7 6 Ilíada. V], 2360 (No do To)
ÉTICA A NICÔMACO - V 135

homem voluntariamente e com conhe- recebeu, por conseguinte, um quinhão


cimento de causa atribui a um outro excessivo,tal qual como se houvesse
20 mais do que a si mesmo, esse homem participado na pilhagem; o fato de
trata a si mesmo injustamente; e é o receber algo diferente daquilo que dis-
que parecem fazer as pessoas modes- tribui não vem ao caso, pois também
tas, já que o homem virtuoso tende a quando concede terras com vistas em
tomar menos que a sua parte justa. Ou participar da pilhagem, o que Tecebe
será também preciso pôr restrições ao não é terra, mas dinheiro.
que acabamos de dizer? Com efeito Os homens pensam que, como o agir 5
(a), ele talvez obtenha um quinhão injustamente depende deles, é fácil ser
maior de algum outro bem, como, por justo. Enganam-se, contudo: ir para a
exemplo, de honra ou de nobreza cama com a mulher do vizinho, ferir
intrínseca. (b) A questão é resolvida ou subornar alguém é fácil e depende
aplicando-se a distinção que fizemos de nós, mas fazer essas coisas em
no tocante à ação injusta, pois que ele resultado de uma disposição de caráter
não sofre nada contrário ao seu desejo, nem é fácil nem está em nosso poder.
e assim não é a rigor injustamente tra- Do mesmo modo, conhecer o que é
tado, mas, no máximo, sofre um dano. justo e o que é injusto não exige grande 10

25 É evidente, por outro lado, que o sabedoria, segundo pensam os homens,


aquinhoador age injustamente, mas porque não é difícil compreender os
isso nem sempre é verdadeiro do assuntos sobre que versa a lei (embora
homem que recebeu a parte excessiva; não sejam essas as coisas justas, salvo
porque não é aquele a quem cabe o acidentalmente). Mas saber como se
injusto que age injustamente, mas deve agir e como efetuar distribuições
aquele a quem coube praticar volunta- a fim de ser justo é mais difícil do que
riamente o ato injusto, isto é, a pessoa saber o que faz bem à saúde; se bem
na qual reside a origem da ação; e esta que mesmo neste terreno, embora não
reside no aquinhoador, e não no aqui- dê grande trabalho aprender que o mel,
nhoado. Por outro lado, como a pala- o vinho, o heléboro, o cautério e o uso 15
30 vra "fazer" é ambígua, e de coisas da faca têm tal efeito, o saber como, a
inanimadas, de uma mão ou de um quem e em que ocasião essas coisas
escravo que executa uma ordem se devem ser aplicadas com vistas em
pode dizer em certo sentido que mata- produzir a saúde não é menos difícil do
ram, aquele que recebeu um quinhão que ser médico.
excessivo não age injustamente, embo- Ainda mais: por esta mesma razão
ra "faça" o que é injusto. julgam os homens que agir injusta-
Ainda mais: se o aquinhoador deci- mente é tão próprio do homem justo
diu na ignorância, age injusta- como do injusto, pois aquele não seria
mente com respeito à justiça legal e menos, senão até mais capaz de come-
sua decisão não é injusta neste sentido, ter cada um desses atos injustos; com
mas em outro sentido é realmente efeito, o homem justo poderia deitar-se 20
injusta (pois a justiça legal e a justiça com uma mulher ou ferir o seu vizinho,
1137 a primordial diferem entre si); mas se, e o valente poderia jogar fora o seu es-
com conhecimento de causa, julgou cudo e pôr-se em fuga. Mas fazer papel
injustamente, ele próprio tem em vista de covarde ou agir injustamente não
um quinhão excessivo, quer de grati- consiste em praticar essas coisas, salvo
dão, quer de vingança. O homem que por acidente, e sim em praticá-las
julgou injustamente por estas razões como resultado de uma certa disposi-
136 ARISTÓTELES

ção de caráter, do mesmo modo que a alguns seres (como aos deuses, presu-
exercer a medicina e curar não consiste mivelmente) não é possível ter uma
em aplicar ou deixar de aplicar a faca, parte excessiva de tais coisas, e a
nem em usar ou deixar de usar medica- outros, isto é, os incuravelmente maus,
mentos, mas em fazer essas coisas de nem a mais mínima parte seria benéfi-
certa maneira. ca, mas todos os bens dessa espécie
Os atos justos ocorrem entre pes- são nocivos, enquanto para outros são
soas que participam de coisas boas em benéficos dentro de certos limites.
si e podem ter uma parte excessiva ou Donde se conclui que a justiça é algo 30
excessivamente pequena delas; porque essencialmente humano.

10

a assunto que se segue é a eqüidade justiça legal. A razão disto é que toda
e o eqüitativo e respec- lei é universal, mas a respeito de certas
tivas relações com a justiça e o justo. coisas não é possível fazer uma afirma-
Porquanto essas coisas não parecem ção universal que seja correta. Nos
ser absolutamente idênticas nem diferir casos, pois, em que é necessário
genericamente entre si; e, embora lou- de modo universal, mas não é possível 15
35 vemos por vezes o eqüitativo e o 'fazê-lo corretamente, a lei considera o
homem eqüitativo (e até aplicamos caso mais usual, se bem que não ignore
esse termo como expressão laudatória a possibilidade de erro. E nem por isso
a exemplo de outras virtudes, signifi- tal modo de proceder deixa de ser cor-
cando por que uma coisa reto, pois o erro não está na lei, nem no
é melhor), em outras ocasiões, pen- legislador, mas na natureza da própria
sando bem, nos parece estranho que o coisa, já que os assuntos práticos são
eqüitativo, embora não se identifique dessa espécie por natureza..
com o justo, seja digno de louvor; por- Portanto, quando a lei se expressa
que, o justo e o eqüitativo são dife- universalmente e surge um caso que
rentes, um deles não é bom; e, se são não é abrangido pela declaração uni- 20

ambos bons, têm de ser a mesma coisa. versaI, é justo, uma vez que o legisla-
São estas, pois, aproximadamente, dor falhou e errou por excesso de
as considerações que dão origem ao simplicidade, corrigir a omissão - em
problema em torno do eqüitativo. Em outras palavras, dizer o que o próprio
certo sentido, todas elas são corretas e legislador teria dito se estivesse presen-
não se opõem umas às outras; porque te, e que teria incluído na lei se tivesse
o eqüitativo, embora superior a uma conhecimento do caso.
espécie de justiça, é justo, e não é Por isso o eqüitativo é justo, supe- 25
como coisa de classe diferente que é rior a uma espécie de justiça - não à
melhor do que o justo. A mesma coisa, justiça absoluta, mas ao erro prove-
pois, é justa e eqüitativa, e, embora niente do caráter absoluto da disposi-
to ambos sejam bons, o eqüitativo é ção legal. E essa é a natureza do eqüí-
superior. tativo: uma correção da lei quando ela
a que faz surgir o problema é que o é deficiente em razão da sua universali-
eqüitativo é justo, porém não o legal- dade. E, mesmo, é esse o motivo por
mente justo, e sim uma correção da que nem todas as coisas são determi-
ÉTICA NICÔMACO - V 137

nadas pela lei: em torno de algumas é do que uma espécie de justiça. Eviden-
impossível legislar, de modo que se faz cia-se também, pelo que dissemos, 35
necessário um decreto. Com efeito, quem seja o homem eqüitativo: o
quando a coisa é indefinida, a regra homem que escolhe e pratica tais atos,
30 também é indefinida, como a régua de que não se aferra aos seus direitos em
chumbo usada para ajustar as moldu- mau sentido, mas tende a tomar menos 1138"
ras lésbicas: a régua adapta-se à forma do que seu quinhão embora tenha a lei
da pedra e não é rígida, exatamente por si, é eqüitativo; e essa disposição
como o decreto se adapta aos fatos. de caráter é a eqüidade, que é uma
Torna-se assim bem claro o que seja espécie de justiça e não uma diferente
o eqüitativo, que ele é justo e é melhor disposição de caráter.

11

Se um homem pode ou não tratar que ele trata o Estado injustamente.


injustamente a si mesmo, fica suficien- Além disso (b), naquele sentido de
5 temente claro pelo que ficou dito "agir injustamente" em que o homem
atrás 7 7. Com efeito (a), uma classe de que assim procede é apenas injusto e
atos justos são os atos que estão em não completamente mau, não é possí- /5
consonância com alguma virtude e que vel tratar injustamente a si mesmo.
são prescritos pela lei: por exemplo, a Com efeito, este sentido difere do ante-
lei não permite expressamente o suicí- rior; o homem injusto, numa das acep-
dio, e o que a lei não permite expressa- ções do termo, é mau de uma maneira
mente, ela o proíbe. Por outro lado, particularizada, tal qual como o covar-
quando um homem, violando a lei, de, e não no sentido de ser completa-
causa dano a um outro voluntaria- mente mau, de forma que o seu "ato
mente (excetuados os casos de retalia- injusto" não manifesta maldade em
ção), esse homem age injustamente; e geral. Porque (I) isso implicaria a
um agente voluntário é aquele que possibilidade de ter sido a mesma
conhece tanto a pessoa a quem atinge coisa simultaneamente subtraída de
com o seu ato como o instrumento que outra e acrescentada a ela; mas isso é
usa; e quem, levado pela cólera, volun- impossível, pois que o justo e o injusto
tariamente se apunhala, pratica esse sempre envolvem mais de uma pessoa.
/0 ato contrariando a reta razão da vida, Por outro lado (2), a ação injusta é 20
e isso a lei não permite; portanto, ele voluntária e praticada por escolha,
age injustamente. Mas para com além de a ela pertencer a iniciativa
quem? Certamente que para com o (porque não se diz que agiu injusta-
Estado, e não para consigo mesmo. mente o homem que, tendo sofrido um
Por que ele sofre voluntariamente, e mal, retribui com o mesmo mal); mas
ninguém é voluntariamente tratado aquele que faz dano a si mesmo sofre e
com injustiça. Por essa mesma razão, pratica as mesmas coisas ao mesmo
o Estado pune o suicida, infligindo-lhe tempo. Além disso (3), se um homem
uma certa perda de direitos civis, pois pudesse tratar injustamente a si
mesmo, poderia ser tratado injusta-
77 Cf. 1129a32- 1129b I; 1136 a 10-1137
mente por seu querer. E, por fim (4),
a 40 (No do To) ninguém age injustamente sem cometer 25
138 ARISTÓTELES

atos específicos de injustiça; mas nin- conseguinte, ser injustamente tratado é 1138 b

guém pode cometer adultério com sua menos mau, porém nada impede que
própria esposa, nem assaltar a sua pró- seja acidentalmente um mal maior.
pria casa ou furtar os seus próprios Isso, contudo, não interessa à teoria,
bens. que considera a pleuris um mal maior
De um modo geral, a questão: "pode do que um tropeção, muito embora
um homem tratar injustamente a si este último possa tomar-se acidental-
mesmo?" é também respondida pela mente mais grave, se a conseqüente
distinção que aplicamos a outra per- queda é causa de ser o homem captu-
gunta: "pode um homem ser injusta- rado ou morto pelo inimigo.
mente tratado por seu querer? 78" Metaforicamente e em virtude de 5
É também evidente que são más uma certa analogia, há uma justiça
ambas as coisas: ser injustamente não entre um homem e ele mesmo, mas
tado e agir injustamente; porque uma entre certas partes suas. Não se trata,
significa ter menos e a outra ter mais no entanto, de uma justiça de qualquer
30 do que a quantidade mediana, que espécie, mas daquela que prevalece
desempenha aqui o mesmo papel que o entre amo e escravo ou entre marido e
saudável na arte médica e a boa condi- mulher. Pois tais são as relações que a
ção na arte do treinamento físico. Não parte racional da alma guarda para
obstante, agir injustamente é pior, pois com a parte irracional; e é levando em
envolve vício e merece censura. E tal conta essas partes que muitos pensam 10
. vício ou é da espécie completa e irres- que um homem pode ser injusto para
trita, ou pouco menos (devemos admi- consigo mesmo, a saber: porque as
tir esta segunda alternativa, porque partes em apreço podem sofrer alguma
nem toda ação injusta, voluntária im- coisa contrária aos seus desejos. Pen-
plica a injustiça como disposição de sa-se, por isso, que existe uma justiça
caráter), enquanto ser injustamente mútua entre elas, como entre gover-
tratado não envolve vício e injustiça na nante e governado.
35 própria pessoa. Em si mesmo, por E aqui termina a nossa exposição da 15
justiça e das outras virtudes - isto é,
18 Cf.1136a31-1136b5.(N.dol.) das outras virtudes morais.
LIVRO VI
141

Como dissemos anteriormente que que se defina o que sejam a justa regra
se deve preferir o meio-termo e não o e o padrão que a determina.
excesso ou a falta, e que o meio-termo Dividimos as virtudes da alma, 35
é determinado pelos ditames da reta dizendo que algumas são virtudes do
20 razão, vamos discutir agora a natureza caráter e outras do intelecto. Agora
desses ditames. que acabamos de discutir em detalhe 1139

Em todas as disposições de caráter as virtudes morais, exponhamos nosso


que mencionamos, assim como em ponto de vista relativo às outras da
todos os demais assuntos, há uma maneira que segue, começando por
meta a que visa o homem orientado fazer algumas observações a respeito
pela razão, ora intensificando, ora da alma.
relaxando a sua atividade; e há um Dissemos anteriormente que esta
padrão que determina os estados me- tem duas partes: a que concebe uma
dianos que dizemos serem os meios- regra ou princípio racional, e a privada 5

termos entre o excesso e a falta, e que de razão. Façamos uma distinção sim-
estão em consonância com a reta ples no interior da primeira, admitindo
25 razão. Mas, assim dita a coisa, embora que sejam duas as partes que concebe-
verdadeira, não é de modo algum evi- ram um princípio racional: uma pela
qual contemplamos as coisas cujas
dente; pois não só aqui como em todas
causas determinantes são invariáveis, e
as outras ocupações que são objetos de
outra pela qual contemplamos as coi-
conhecimento é correto afirmar que
sas variáveis; porque, quando dois
não devemos esforçar-nos nem relaxar
objetos diferem em espécie, as partes /0
nossos esforços em demasia nem de- da alma que correspondem a cada um
masiadamente pouco, mas em grau deles também diferem em espécie, visto
mediano e conforme dita a reta razão. ser por uma certa semelhança e afini-
Entretanto, se um homem possuísse dade com os seus objetos que elas os
apenas esse conhecimento, não saberia conhecem. Chamemos científica a uma
mais nada: por exemplo, não sabe- dessas partes e calculativa à outra,
30 ríamos que espécies de medicamento pois o mesmo são deliberar e calcular,
aplicar ao seu corpo se alguém disses- mas ninguém delibera sobre o invariá-
se: "todos aqueles que a arte médica vel. Por conseguinte, a calculativa é
prescreve e que estão de acordo com a uma parte da faculdade que concebe
prática de quem possui a arte". É um princípio racional. Devemos, 15
necessário, pois, com respeito às dispo- assim, investigar qual seja o melhor es-
sições da alma, não só que se faça essa tado de cada uma dessas duas partes,
declaração verdadeira, mas também pois nele reside a virtude de cada uma.
142 ARISTÓTELES

2
A virtude de uma coisa é relativa ao nação de intelecto e de caráter. O inte- 35
seu funcionamento apropriado. Ora, lecto em si mesmo, porém, não move
na alma existem três coisas que contro- . coisa alguma; só pode fazê-lo o inte-
lam a ação e a verdade: sensação, lecto prático que visa a um fim qual-
razão e desejo. quer. E isto vale também para o inte- 1139b
Destas três, a sensação não é princí- lecto produtivo, já que todo aquele que
20 pio de nenhuma ação: bem o mostra o produz alguma coisa o faz com um fim
fato de os animais inferiores possuírem em vista; e a coisa produzida não é um
sensação, mas não participarem da fim no sentido absoluto, mas apenas
ação. um fim dentro de uma relação particu-
A afirmação e a negação no racio- lar, e o fim de uma operação particu-
cínio correspondem, no desejo, ao bus- lar. Só o que se pratica é um fim irres-
car e ao fugir; de modo que, sendo a trito; pois a boa ação é um fim ao qual
virtude moral uma disposição de carâ- visa o desejo.
ter relacionada com a escolha, e sendo Portanto, a escolha ou é raciocínio
a escolha um desejo deliberado, tanto desiderativo ou desejo raciocinativo, e 5
25 deve ser verdadeiro o raciocínio como a origem de uma ação dessa espécie é
reto o desejo para que a escolha seja um homem. (Deve-se observar que
acertada, e o segundo deve buscar exa- nenhuma coisa passada é objeto de
tamente o que afirma o primeiro. escolha; por exemplo, ninguém escolhe
Ora, esta espécie de intelecto e de ter saqueado Tróia, porque ninguém
verdade é prática. Quanto ao intelecto delibera a respeito do passado, mas só
contemplativo, e não prático nem pro- a respeito do que está para acontecer e
dutivo, o bom e o mau estado são, pode ser de outra forma, enquanto o
respectivamente, a verdade e a falsi- que é passado não pode deixar de
dade (pois essa é a obra de toda a parte haver ocorrido; por isso Agatão tinha
30 racional); mas da parte prática e inte- razão em dizer:
lectual o bom estado é a concordância Pois somente isto é ao próprio Deus lO
da verdade com o reto desejo. [vedado:
A origem da ação - sua causa efi- O fazer não sucedido o que uma vez
ciente, não final - é a escolha, e a da [aconteceu.
escolha é o desejo e o raciocínio com Como acabamos de ver, a obra de
um fim em vista. Eis aí por que a esco- ambas as partes intelectuais é a verda-
lha não pode existir nem sem razão e de. Logo, as virtudes de ambas serão
intelecto, nem sem uma disposição aquelas disposições segundo as quais
moral; pois a boa ação e o seu contrá- cada uma delas alcançará a verdade
rio não podem existir sem uma combi- em sumo

3
Comecemos, pois, pelo princípio, ções. Dê-se por estabelecido que as 15

discutindo mais uma vez essas disposi- disposições em virtude das quais a
ÉTICA A NICÕMACO - VI 143

alma possui a verdade, quer afirman- bém nos Analíticos 79. Com efeito, o
do, quer negando, são em número de ensino procede às vezes por indução e
cinco: a arte, o conhecimento cientí- outras vezes por silogismo. Ora, a
fico, a sabedoria prática, a sabedoria indução é o ponto de partida que o
filosófica e a razão intuitiva (não próprio conhecimento do universal
incluímos o juízo e a opinião porque pressupõe, enquanto o silogismo pro-
estes podem enganar-se). cede dos universais. Existem, assim,
Ora, o que seja o conhecimento pontos de partida de onde procede o
ctenufico, se quisermos exprimir-nos silogismo e que não são alcançados 30
com exatidão e não nos guiar por por este. Logo, é por indução que são
meras analogias, evidencia-se pelo que adquiridos.
segue. Todos nós supomos que aquilo Em suma, o conhecimento científico
20 que sabemos não é capaz de ser de é um estado que nos toma capazes de
outra forma. Quanto às coisas que demonstrar, e possui as outras caracte-
podem ser de outra forma, não sabe- rísticas limitativas que especificamos
mos, quando estão fora do nosso nos Analiticosw, pois é quando um
campo de observação, se existem ou homem tem certa espécie de convic-
não existem. Por conseguinte, o objeto ção, alêm de conhecer os pontos de
de conhecimento científico existe ne- partida, que possui conhecimento cien-
cessariamente; donde se segue que é tífico. E, se estes não lhe forem mais
eterno, pois todas as coisas que exis- bem conhecidos do que a conclusão,
tem por necessidade no sentido abso- sua ciência será puramente acidental.
luto do termo são eternas, e as coisas Com isto damos por terminada 35
eternas são ingênitas e imperecíveis. nossa exposição do conhecimento
25 Por outro lado, julga-se que toda científico.
ciência pode ser ensinada e seu objeto,
aprendido. E todo ensino parte do que 79 Segundos Analíticos. 71 a 1. (N. do T.)
já se conhece, como sustentamos tam- 80 Ibid., 71 b 9-23. (N. do T.)

11400 Na classe do variável incluem-se raciocinada de produzir, e nem existe


tanto coisas produzidas como coisas arte alguma que não seja uma capaci-
praticadas. Há uma diferença entre dade espécie, nem capacidade
produzir e agir (quanto à natureza de desta espécie que não seja uma arte,
ambos, consideramos como assente o segue-se a arte é idêntica a uma
que temos dito mesmo fora de nossa capacidade de produzir que envolve o /0

escola); de sorte que a capacidade reto raciocínio.


Toda arte visa à geração e se ocupa
5 raciocinada de agir difere da capaci- em inventar e em considerar as manei-
dade raciocinada de produzir. Daí, ras de produzir alguma coisa que tanto
também, o não se incluírem uma na pode ser como não ser, e cuja origem
outra, porque nem agir é produzir, nem está no que produz, e não no que é pro-
produzir é agir. duzido. Com efeito, a arte não se
Ora, como a arquitetura é uma arte, ocupa nem com as coisas que são ou
sendo essencialmente uma capacidade que se geram por necessidade, nem 15
144 ARISTÓTELES

com as que o fazem de acordo com a o acaso, e o acaso ama a arte". Logo, 20

natureza (pois essas têm sua origem como já dissemos, a arte é uma dispo-
em si mesmas). sição que se ocupa de produzir, envol-
Diferindo, pois, o produzir e o agir, vendo o reto raciocínio; e a carência de
a arte deve ser uma questão de produ- arte, pelo contrário, é tal disposição
zir e não de agir; e em certo sentido, o acompanhada de falso raciocínio. E
acaso e a arte versam sobre as mesmas ambas dizem respeito às coisas que
coisas. Como diz Agatão: "A arte ama podem ser diferentemente.

5
No que tange à sabedoria prática, que se pode fazer é capaz de ser
25 podemos dar-nos conta do que seja diferentemente, nem arte, porque o agir
considerando as pessoas a quem a e o produzir são duas espécies diferen-
atribuímos. tes de coisa. Resta, pois, a alternativa
Ora, julga-se que é cunho caracte- de ser ela uma capacidade verdadeira e
rístico de um homem dotado de sabe- raciocinada de agir com respeito às 5

doria prática o poder deliberar bem coisas que são boas ou más para o
sobre o que é bom e conveniente para homem.
ele, não sob um aspecto particular, Com efeito, ao passo que o produzir
como por exemplo sobre as espécies de tem uma finalidade diferente de si
coisas que contribuem para a saúde e o mesmo, isso não acontece com o agir,
pois que a boa ação é o seu próprio
vigor, mas sobre aquelas que contri-
fim. Daí o atribuirmos sabedoria prá-
buem para a vida boa em geral. Bem o
tica a Péricles e homens como ele, por-
mostra o fato de atribuirmos sabedoria
que percebem o que é bom para si mes-
prática a um homem, sob um aspecto
mos e para os homens em geral: 10
particular. quando ele calculou bem
pensamos que os homens dotados de
com vistas em alguma finalidade boa tal capacidade são bons administra-
30 que não se inclui entre aquelas que são dores de casas e de Estados. (E por
objeto de alguma arte. isso mesmo damos à temperança o
Segue-se daí que, num sentido geral, nome de subentendendo que
também o homem que é capaz de deli- ela preserva a nossa sabedoria
berar possui sabedoria prática. Ora,
ninguém delibera sobre coisas que não Ora, o que a temperança preserva é
podem ser de outro modo, nem sobre um juízo da espécie que descrevemos.
as que lhe é impossível fazer. Por Porquanto nem todo e qualquer juízo é
conseguinte, como o conhecimento destruído e pervertido pelos objetos
científico envolve demonstração, mas agradáveis ou dolorosos: não o é, por
não há demonstração de coisas cujos exemplo, o juízo a respeito de ter ou
primeiros princípios são variáveis não ter o triângulo seus ângulos iguais
(pois todas elas poderiam ser diferente- a dois ângulos retos, mas apenas os 15
35 mente), e como é impossível deliberar juízos em tomo do que se há de fazer.
sobre coisas que são por necessidade, a Com efeito, as causas de onde se origi-
b sabedoria prática não pode ser ciência, na o 'que se faz consistem nos fins visa-
nem arte: nem ciência, porque aquilo dos; mas o homem que foi pervertido
ÉTICA A NICÔMACO - VI 145

pelo prazer ou pela dor perde imediata- assim como nas outras virtudes, é exa-
mente de vista essas causas: não perce- tamente o contrário que acontece.
be mais que é a bem de tal coisa ou de- Torna-se evidente, pois, que a sabe-
vido a tal coisa que deve escolher e doria prática é uma virtude e não uma
fazer aquilo que escolhe, porque o arte. E, corno são duas as partes da 25
vício anula a causa originadora da alma que se guiam pelo raciocínio, ela
ação.) deve ser a virtude de uma dessas duas,
20 A sabedoria prática deve, pois, ser isto é, daquela parte que forma opi-
uma capacidade verdadeira e racioci- niões; porque a opinião versa sobre o
nada de agir com respeito aos bens variável, e da mesma forma a sabedo-
humanos. Mas, por outro lado, embora ria prática. Sem embargo, ela é mais
na arte possa haver uma excelência, na do que uma simples disposição racio-
sabedoria prática ela não existe; e em nal: mostra-o o fato de que tais dispo- 30
arte é preferível quem erra voluntaria- sições podem ser esquecidas, mas a
mente, enquanto na sabedoria prática, sabedoria prática, não.

6
o conhecimento científico é um princípios objetos de sabedoria filosó-
juízo sobre coisas universais e necessá- fica, pois é característico do filósofo
rias, e tanto as conclusões da demons- buscar a demonstração de certas coi-
tração como o conhecimento científico sas. Se, por conseguinte, as disposições
decorrem de primeiros princípios (pois da mente pelas quais possuímos a ver-
ciência subentende apreensão de uma dade e jamais nos enganamos a res-
base racional). Assim sendo, o pri- peito de coisas invariáveis ou mesmo
variáveis - se tais disposições, digo,
meiro princípio de que decorre o que é são o conhecimento científico, a sabe-
cientificamente conhecido não pode doria prática, a sabedoria filosófica e a
ser objeto de ciência, nem de arte, nem razão intuitiva, e não pode tratar-se de
35 de sabedoria prática; pois o que pode nenhuma das três (isto é, da sabedoria
ser cientificamente conhecido é passí- prática, do conhecimento científico ou
vel de demonstração, enquanto a arte e da sabedoria filosófica), só resta uma
1141 a a sabedoria prática versam sobre coi- alternativa: que seja a razão intuitiva
sas variáveis. Nem são esses primeiros que apreende os primeiros princípios.

7
A sabedoria, nas artes, é atribuída campo particular ou sob qualquer
/0 aos seus mais perfeitos expoentes, por outro aspecto limitado, como diz Ho-
exemplo, a Fídias como escultor e a mero no Margites:
Policleto como retratista em pedra; e Nem lavrador, nem mesmo cavador 15
por sabedoria, aqui, não entendemos
fizeram os deuses este homem,
outra coisa senão a excelência na arte. Nem sábio em outra coisa qualquer.
Mas a certas pessoas consideramos sá-
bias de modo geral e não em algum É pois evidente que a sabedoria deve
146 ARISTÓTELES

ser de todas as formas de conheci- não faz diferença, porque há outras


mento a mais perfeita. Donde se segue coisas muito mais divinas por sua
que o homem sábio não apenas conhe- natureza do que o homem: o exemplo 1141 b

cerá o que decorre dos primeiros prin- mais conspícuo são os corpos de que
cípios, senão que também possuirá a foram povoados os céus ..De quanto se
verdade a respeito desses princípios. disse resulta claramente que a sabedo-
Logo, a sabedoria deve ser a razão ria filosófica é um conhecimento cien-
intuitiva combinada com o conheci- tífico combinado com a razão intuitiva
mento científico - uma ciência dos daquelas coisas que são as mais eleva-
mais elevados objetos que recebeu, por das por natureza. Por isso dizemos que
assim dizer, a perfeição que lhe é Anaxágoras, Tales e os homens seme-
própria. lhantes a eles possuem sabedoria filo-
Dos mais elevados objetos, dizemos sófica, mas não prática, quando os 5
nós, porque seria estranho se a arte vemos ignorar o que lhes é vantajoso; e
política ou a sabedoria prática fosse o
melhor dos conhecimentos, uma vez também dizemos que eles conhecem
que o homem não é a melhor coisa do coisas notáveis, admiráveis, difíceis e
mundo. Ora, se o que é saudável ou divinas, mas improfícuas. Isso, porque
bom difere para os homens e os peixes, não são os bens humanos que eles
mas o que é branco ou reto é sempre o procuram.
mesmo, qualquer um diria que o que é A sabedoria prática, pelo contrário,
sábio é o mesmo, mas o que é pratica- versa sobre coisas humanas, e coisas
mente sábio varia; pois é àquele que que podem ser objeto de deliberação;
observa bem as diversas que lhe pois dizemos que essa é acima de tudo
dizem respeito que atribuímos sabedo- a obra do homem dotado de sabedoria
ria prática, e é a ele que confiaremos prática: deliberar bem. Mas ninguém /0

tais assuntos. Por isso dizemos que até delibera a respeito de coisas invariá-
alguns animais inferiores possuem sa- veis, nem sobre coisas que não tenham
bedoria prática, isto é, aqueles que uma fmalidade, e essa finalidade, um
mostram possuir um certo poder de bem que se possa alcançar pela ação.
previsão no que toca à sua própria De modo que delibera bem no sentido
vida. irrestrito da palavra aquele que, ba-
É evidente, por outro lado, que a seando-se no cálculo, é capaz de visar
sabedoria prática e a arte política não à melhor, para o homem, das coisas
podem ser a mesma coisa; porque, se alcançáveis pela ação.
devemos chamar sabedoria filosófica à Tampouco a sabedoria prática se
disposição mental que se ocupa com os apenas com universais. Deve /5
30' interesses pessoais de um homem, também reconhecer os particulares,
haverá muitas sabedorias filosóficas. pois ela é prática, e a ação versa sobre
Não existirá uma relativa ao bem de os particulares. É por isso que alguns
todos os animais (assim como não que não sabem, e especialmente os que
existe uma arte médica para todas as possuem experiência, são mais. práti-
coisas existentes), mas uma sabedoria cos do que outros que sabem; porque,
filosófica diferente sobre o bem de se um homem soubesse que as carnes
cada espécie. leves são digestíveis e saudáveis, mas
E se argumentarem dizendo que o ignorasse que espécies de carnes são
homem é o melhor dos animais, isso leves, esse homem não seria capaz de
ÉTICA A NICÔMACO - VI 147

produzir a saúde; poderia, pelo ambas espécies de sabedoria, ou a


rio, produzi-la o que sabe saudavel segunda de preferência à primeira.
a carne de galinha. Mas tanto da sabedoria prática como
Ora, a sabedoria prática diz respeito da filosófica deve haver uma espécie
à acão. Portanto, deveríamos possuir controladora.

8
A sabedoria política e a prática são Se como parte do numeroso exército
a mesma disposição mental, mas sua [obteria sem esforço
essência não é a mesma. Da sabedoria Um quinhão igual? . . 5

que diz respeito à cidade, a sabedoria Pois os que alto demais e


prática que um. [fazem muitas coisas . . . 8 1
25 controlador é a sabedona legislativa,
enquanto a que se relaciona os Os que assim pensam buscam o seu
assuntos da cidade como particulares próprio bem e acham que todos deve-
dentro do seu universal é conhecida riam fazer o mesmo. Daí vem a opi-
pela denominação geral de nião de que tais homens possuem sabe-
política" e se ocupa com a e a doria prática; e no entanto, o bem
deliberação, pois um decreto e algo a pessoal de cada um talvez não possa
ser executado sob a forma de um ato existir sem administração doméstica e
individual. Eis aí por que só dos sem alguma forma de governo. Além lO
expoentes dessa arte se diz que disso, a maneira de pôr em ordem os
"tomam parte na política"; porque só seus negócios não é clara e precisa ser
eles "produzem coisas", como as pro- estudada.
duzem os trabalhadores manuais. O que se disse acima é confirmado
A sabedoria prática também é iden- pelo fato de que, embora os moços
tificada especialmente com aquela de possam tornar-se geômetras, matemá-
suas formas que diz respeito ao ticos e sábios em matérias que tais,
30 prio homem, ao e essa e não se acredita que exista um jovem
conhecida pela denommaçao geral dotado de sabedoria prática. O motivo
"sabedoria prática". D as outras espe- é que essa espécie de sabedoria diz res-
cies, uma é chamada administração peito não só aos universais mas tam-
doméstica, outra, legislaçao, e a tercei- bém aos particulares, que se tornam
ra, política, e desta última se conhecidos pela experiência. Ora, um
chama deliberativa e a outra, JUdICIal. jovem carece de experiência, que só o 15
Ora, saber o que é bom para si .é tempo pode dar.
1142 a uma espécie de conhecimen,to.' mas di- Caberia aqui também esta outra per-
fere muito das outras espectes; e ao gunta: por que um menino pode tor-
homem que conhece os seus interesses nar-se matemático, poréin não filósofo,
e com eles se ocupa atribui-se sabedo- nem tisico? É porque os objetos da
ria prática, ao passo que os matemática existem por abstração,
são considerados metediços. Daí as enquanto os primeiros princípios das
palavras de Eurípides:
para que ao 81 Prólogo de Filoctetes, fragmentos 787 e 782.2
[ser sábio, Nauck. (N. do T.)
148 ARISTÓTELES

outras matérias mencionadas provêm



diato, visto que a coisa..a fazer é dessa
da experiência; e também porque os jo- natureza.
vens não têm convicção sobre estes úl- Ela opõe-se, por outro lado, à razão 25
timos, mas contentam-se em usar a lin- intuitiva, que versa sobre as premissas
guagem apropriada, ao passo que a limitadoras das quais não se pode dar
essência dos objetos da matemática a razão, enquanto a sabedoria prática
lhes é bastante clara. se ocupa com o particular imediato,
20 Além disso, o erro na deliberação que é objeto não de conhecimento cien-
pode versar tanto sobre o universal tífico mas de percepção - e não da
como sobre o particular, isto é: tanto é percepção de qualidades peculiares a
possível ignorar que toda água pesada um determinado sentido, mas de uma
percepção semelhante àquela pela qual
é má como que esta água aqui presente
é pesada. sabemos que a figura particular que
temos diante dos olhos é um triângulo;
Que a sabedoria prática não se iden- porque tanto nessa direção como na da
tifica com o conhecimento científico, é premissa maior existe um limite. Mas 30
evidente; porque ela se ocupa, como já isso é antes percepção do que sabedo-
se disse" 2, com o fato particular ime- ria prática, embora seja uma percep-
ção de outra espécie que não a das
82 1141 b 14-22. (N. do T.) qualidades peculiares a cada sentido.

9
Há uma diferença entre investigação lenta. Do mesmo modo, a vivacidade
e deliberação, pois esta última é a intelectual também difere da exce-
investigação de uma espécie particular lência na deliberação; é ela uma espé-
de coisa. Devemos apreender igual- cie de habilidade em conjeturar.
mente a natureza da excelência na deli- Não se pode, por outro lado, identi-
beração: se ela é uma forma de ficar a excelência na deliberação com
cimento científico, uma opinião, a uma opinião de qualquer espécie que
habilidade de fazer conjeturas ou algu- seja. Mas, como o homem que delibera
ma outra espécie de coisa. mal comete um erro, enquanto o que
1142 b Não se trata de conhecimento cientí- delibera bem o faz corretamente, claro
fico. porque os homens não investigam está que a excelência no deliberar é
as coisas que conhecem, ao passo que uma espécie de correção não, /0

a boa deliberação é uma espécie de porém, de conhecimento ou de opinião.


investigação, e quem delibera investiga Com efeito, conhecimento correto é
e calcula. coisa que não existe, assim como não
Tampouco é habilidade em fazer existe conhecimento errado; e a opi-
conjeturas, pois, além de implicar nião correta é a verdade. Ao mesmo
ausência de raciocínio, esta é uma qua- tempo, tudo que é objeto de opinião já
lidade que opera com rapidez, ao se acha determinado.
passo que os homens deliberam longa- Mas, por outro lado, a excelência da
mente, e diz-se que a conclusão do que deliberação envolve raciocínio. Resta,
se deliberou deve ser posta logo em pois,' a de que ela seja a
5 prática, mas a deliberação deve ser correção do raciocínio. Com efeito,
ÉTICA A NICÔMACO - VI 149

esta ainda não é asserção, mas a opi- tampouco isso é a excelência no delibe-
nião o é, tendo já ultrapassado a fase rar - essa disposição em virtude da
da investigação; e o homem que delibe- qual atingimos o que devemos, se bem
15 ra, quer o faça bem, quer mal, busca que não pelo meio correto.
alguma coisa e calcula. Por outro lado (3), é possível alcan- 25

Mas a excelência da deliberação é çâ-lo por uma longa deliberação en-


certamente a deliberação correta. Por quanto um outro homem chega a ele
isso devemos indagar primeiro o que rapidamente. Por conseguinte, no pri-
seja a deliberação e qual o seu objeto. meiro caso não possuímos ainda a
E, uma vez que existe mais de uma excelência no deliberar, que é a corre-
espécie de correção, evidentemente a ção no que diz respeito ao conveniente
excelência no deliberar não é uma - a correção tanto no que toca ao fim
espécie qualquer; porque (I) o homem como ao meio e ao tempo.
incontinente e o homem mau, se forem (4) Além disso, é possível ter delibe-
hábeis, alcançarão como resultado do rado bem, quer no sentido absoluto,
seu cálculo o que propuseram a si mes- quer com referência a um fim particu-
mos, de forma que terão deliberado lar. A excelência da deliberação no
corretamente, mas o que terão alcan- sentido absoluto é, pois, aquilo que
20 çado é um grande mal para eles. Ora, logra êxito com referência ao que é o
ter deliberado bem é considerado uma fim no sentido absoluto, e a excelência
boa coisa, pois é essa espécie de delibe- da deliberação num sentido particular 30

ração correta que constitui a exce- é o que logra um fim particular.


lência da deliberação - isto é, aquela Se, pois, é característico dos homens
que tende a alcançar um bem. dotados de sabedoria prática o ter deli-
Entretanto (2), é até possível alcan- berado bem, a excelência da delibera-
,çar o bem e chegar ao que se deve ção será a' correção no que diz respeito
fazer mediante um silogismo falso -- àquilo que conduz ao fim de que a
não, todavia, pelo meio correto, sendo sabedoria prática é a apreensão verda-
falsa a premissa menor; de forma que deira.

10
A inteligência, da mesma torma, e a nas sobre aquelas que podem tomar-se
perspicácia, em virtude das quais se assunto de dúvidas e deliberação. Por-
diz que os homens são inteligentes ou tanto, os seus objetos são os mesmos
1143 a perspicazes, nem se identificam de que os da sabedoria prática; mas inteli-
todo com a opinião ou conhecimento gência e sabedoria prática não são a
científico (pois nesse caso todos seriam mesma coisa. Esta última emite or-
homens inteligentes), nem são elas uma dens, visto que o seu fim é o 'que se
das ciências particulares, como a me- deve ou não se deve fazer; a inteli- 10
dicina, que é a ciência da saúde, ou a gência, pelo contrário, limita-se a
geometria, que é a ciência das grande- gar. (Inteligência é o mesmo que pers-
5 zas espaciais. Com efeito, a inteli- picácia, e homens inteligentes, o
gência nem versa sobre as coisas eter- mesmo que homens perspicazes.)
nas e imutáveis, nem sobre toda e Ora, ela não é nem a posse, nem a
. qualquer coisa que vem a ser, mas ape- aquisição da sabedoria prática; mas,
150 ARISTÓTELES

assim como o aprender é chamado aquilatar corretamente, pois "bem" e


entendimento quando significa o exer- "corretamente" são a mesma coisa.
cício da faculdade de conhecer, tam- E daí provém o uso do nome "inteli-
bém o termo "entendimento" é aplicá- gência", em virtude do qual se diz que
vel ao exercício da faculdade de opinar os homens são "perspicazes", a saber:
com o fim de aquilatar o que outra pes- da aplicação do termo à apreensão da
soa diz sobre assuntos que constituem verdade científica, pois muitas vezes
/5 o objeto da sabedoria prática - e de chamamos a isso entendimento.

11

o que se chama discernimento, e em ou imediatos; pois não só deve o


virtude do qual se diz que os homens homem dotado de sabedoria prática ter
20 são "juízes humanos" e que "possuem conhecimento dos fatos particulares,
discernimento", é a reta discriminação mas também a inteligência e o discer-
do eqüitativo. Mostra-o o fato de dizer- nimento versam sobre coisas a serem
mos que o homem eqüitativo é acima feitas, e estas são coisas imediatas. A 35
de tudo um homem de discernimento razão intuitiva, por sua vez, ocupa-se
humano, e de identificarmos a eqüi- com coisas imediatas em ambos os
dade com o discernimento humano a sentidos, pois tanto os primeiros ter-
respeito de certos fatos. E esse discer- mos como os últimos são objetos da 1143b
nimento é aquele que discrimina corre- razão intuitiva e não do raciocínio, e a
tamente o que é eqüitativo, sendo o razão intuitiva pressuposta pelas de-
discernimento correto aquele que julga monstrações apreende os termos pri-
com verdade. meiros e imutáveis, enquanto a razão
25 Ora, todas as disposições que temos intuitiva requerida pelo raciocínio prá-
considerado convergem, como era de tico apreende o fato último e variável,
esperar, para o mesmo ponto, pois, isto é, a premissa menor. E esses fatos
quando falamos de discernimento, de variáveis servem como pontos de parti-
inteligência, de sabedoria prática e de
razão intuitiva, atribuímos às mesmas da para a apreensão do fim, visto que
pessoas a posse do discernimento, o chegamos aos universais pelos particu-
terem alcançado a idade da razão, e o lares; é mister, por conseguinte, que 5

serem dotadas de inteligência e de tenhamos percepção destes últimos, e


sabedoria prática. Com efeito, todas tal percepção é a razão intuitiva.
essas faculdades giram em tomo de Eis aí por que tais disposições são
coisas imediatas, isto é, de particula- consideradas como dotes naturais, e
res; e ser um homem inteligente ou de enquanto de ninguém se diz que é filó-
30 bom ou humano discernimento con- sofo por natureza, a muitos se atribui
siste em ser capaz de julgar as coisas um discernimento, inteligência e uma
com que se ocupa a sabedoria prática, razão intuitiva inatos. Mostra-o a
porquanto as eqüidades são comuns a correspondência que estabelecemos
todos os homens bons em relação aos entre os nossos poderes e a nossa
outros homens. idade, dizendo que uma determinada
Ora, todas as coisas que cumpre idade traz consigo a razão intuitiva e o
fazer incluem-se entre os particulares discernimento; isto implica que a /0
ÉTICA A NICÔMACO - VI 151

causa é natural. [Donde se segue que a tica. Com efeito, essas pessoas enxer-
razão intuitiva é tanto um começo gam bem por que a experiência lhes
como um fim, pois as demonstrações deu um terceiro olho.
partem destes e sobre estes versam.] Acabamos de mostrar, portanto, que 15
Por isso devemos acatar, não menos coisas são a sabedoria prática e a sabe-
que as demonstrações, os aforismos e doria filosófica, em que consistem uma
opiniões não demonstradas de pessoas e outra, e acrescentamos que cada uma
experientes e mais velhas, assim como é a virtude de uma parte diferente da
das pessoas dotadas de sabedoria prâ- alma.

12
Mas alguém poderia perguntar de outros que a têm, e seria suficiente
que servem essas faculdades da mente, fazer o que costumamos fazer com res-
já que (I) a sabedoria filosófica não peito à saúde: embora desejemos gozar
considera nenhuma das coisas que tor- saúde, não nos dispomos por isso a
nam um homem feliz (pois não diz res- aprender a arte da medicina.
20 peito às coisas que se geram); e quanto (3) Por outro lado, pareceria estra-
à sabedoria prática, embora trate des- nho que a sabedoria prática, sendo
sas coisas, para que necessitamos inferior à filosófica, tivesse autoridade
dela? A sabedoria prática é a disposi- sobre ela, como parece implicar o fato
ção da mente que se ocupa com as coi- de que a arte que produz uma coisa
sas justas, nobres e boas para o qualquer exerce o mando e o governo
homem, mas essas são as coisas cuja relativamente a essa coisa.
prática é característica de um homem São estas, pois, as questões que 35
bom, e não nos tomamos mais capazes cumpre discutir, pois até agora nos
25 de agir pelo fato de conhecê-las se as limitamos a expor as dificuldades.
virtudes são disposições de carâter, do (I) Antes de tudo, diremos que 11440
mesmo modo que não somos mais essas disposições de caráter. devem ser
capazes de agir pelo fato de conhecer dignas de escolha porque são as virtu-
as coisas sãs e saudáveis não no senti- des das duas partes da alma respecti-
do de produzirem a saúde, mas no de vamente, e o seriam ainda que nenhu-
serem conseqüência dela. Efetiva- ma delas produzisse o que quer que
mente, a simples posse da arte médica fosse.
ou da ginástica não nos' toma mais (2) Em segundo lugar, elas de fato
capazes de agir. produzem alguma coisa - não,
Mas (2) se dissermos que um porém, como a arte médica produz
homem deve possuir sabedoria prática, saúde, mas como a saúde produz
não para conhecer as verdades morais, saúde. É assim que a sabedoria filosó-
mas para tomar-se bom, a sabedoria fica produz felicidade; porque, sendo 5
prática nenhuma utilidade terá para os ela uma parte da virtude inteira, toma
30 que já são bons; e, por outro lado, de um homem feliz pelo fato de estar na
nada serve ela para os que não pos- sua posse e de atualizar-se.
suem virtude. Com efeito, nenhuma (3) Por outro lado, a obra de um
diferença faz que eles próprios tenham homem só é perfeita quando está de
sabedoria prática ou que obedeçam a acordo com a sabedoria e com
152 ARISTÓTELES

a virtude moral; esta faz com que seja não as aprendemos da virtude e sim de
reto o nosso propósito; aquela, com outra faculdade. Devemos deter-nos
/0 que escolhamos os devidos meios. (Da um pouco nestes assuntos e falar deles·
quarta parte da alma, a nutritiva, não mais claramente.
existe nenhuma virtude dessa espécie, Existe uma faculdade que se chama
pois não depende dela fazer ou deixar habilidade, e tal é a sua natureza que 25
de fazer o que quer que seja.) tem o poder de fazer as coisas que con-
(4) Quanto a não sermos mais ca- duzem ao fim proposto e a alcançá-lo.
pazes de operar coisas nobres e justas Ora, se o fim nobre, a habilidade é
devido à sabedoria prática, devemos digna de louvor, mas se o fim for mau,
voltar um pouco atrás e partir do a habilidade será simples astúcia; por
seguinte princípio: isso chamamos de hábeis ou astutos os
Assim como dizemos que algumas próprios homens dotados de sabedoria
pessoas que praticam atos justos não prática. Esta não é a faculdade, porém
são necessariamente justas por isso - não existe sem ela, e esse olho da alma
referimo-nos às que praticam os atos não atinge o seu perfeito desenvolvi-
prescritos pela lei, quer involuntaria- mento sem o auxílio da virtude, como 30
/5 mente, quer devido à ignorância ou por já dissemoss> e como, aliás, é evidente.
alguma outra razão, mas não no inte- E a razão disto é que os silogismos em
resse dos próprios atos, embora seja torno do que se deve fazer começam
certo que tais pessoas fazem o que assim: "visto que o fim, isto é, o que é
devem e todas as coisas que o homem melhor, é de tal e tal natureza ... "
bem deve fazer - , parece que, do Admitamos, no interesse do argumen-
mesmo modo, para alguém ser bom é to, que ela seja qual for, mas só o
preciso encontrar-se em determinada homem bom a conhece verdadeira-
disposição quando pratica cada um mente, porquanto a maldade nos per- 35
20 desses atos: numa palavra, é preciso verte e nos leva a enganar-nos a res-
praticá-los em resultado de uma esco- peito dos princípios da ação. Donde
lha e no interesse dos próprios atos. está claro que não é possível possuir
Ora, a virtude torna reta a escolha, sabedoria prática quem não seja bom.
mas que coisas sejam aptas por natu-
reza a pôr em prática a nossa escolha 83 Linhas 6-26. (N. do T.)

13

b Devemos, por isso, voltar mais uma desde o momento de nascer somos JUS'
vez a considerar a virtude, pois nela se tos, ou capazes de nos dominar, ou
observa uma relação do mesmo gêne- bravos, ou possuímos qualquer outra
ro: assim como a sabedoria prática qualidade moral. Não obstante, anda-
está para a habilidade (nje sendo a mos em busca de outro bem que
mesma coisa, mas semelhante), a virtu- propriamente seja tal - queremos que
de natural está para a virtude na acep- essas qualidades existam em nós de
ção estrita do termo. Com efeito, todos outro modo. Pois que tanto as crianças
os homens pensam que, em certo senti- como os brutos têm as disposições
do, cada tipo de caráter pertence por naturais para essas qualidades, mas,
5 natureza aos que o manifestam, e que quando desacompanhadas da razão,
ÉTICA A NICÕMACO - VI

lO elas são evidentemente nocivas. Só nós Sócrates, por conseguinte, pensava


parecemos perceber que elas podem que as virtudes fossem regras ou prin-
conduzir-nos para o mau caminho, cípios racionais (pois a todas elas
como um corpo robusto mas privado considerava como formas de conheci-
de visão pode cair desastrosamente de- mento científico), enquanto nós pensa-
vido à sua cegueira; mas, depois de mos que elas envolvem um princípio
haver adquirido a razão, haverá uma racional.
diferença no seu modo de agir e sua Do que se disse fica bem claro que 30
disposição: embora continuando seme- não é possível ser bom na acepção
lhante ao que era, passará a ser virtude estrita do termo sem sabedoria prática,
no sentido estrito da palavra. nem possuir tal sabedoria sem virtude
Por conseguinte, assim como naque- moral. E desta forma podemos tam-
la parte de nós que forma opiniões bém refutar o argumento dialético de
/5 existem dois tipos, a habilidade e a que as virtudes existem .ieparadas
sabedoria prática, também na parte umas das outras, e o mesmo homem
moral existem dois tipos, a virtude não é perfeitamente dotado pela natu-
natural e a virtude no sentido estrito. E reza para todas as virtudes, de modo
destas, a segunda envolve sabedoria que poderá adquirir uma delas sem ter
prática. Daí o afirmarem alguns que ainda adquirido uma outra. Isso é pos- J5
todas as virtudes são formas de sabe- sível no tocante às virtudes naturais.
doria prática. E Sócrates tinha razão a porém não àquelas que nos levam a
certo respeito, mas outro respeito an- qualificar um homem incondicio-
dava errado em pensar que nalmente de bom; pois. com a presença 1145.
todas as virtudes fossem formas de de uma só qualidade, a sabedoria prá-
20 sabedoria prática, mas certo em dizer tica, lhe serão dadas as virtudes.
que elas implicam tal modalidade de E, evidentemente, ainda que ela não
sabedoria. Temos uma confirmação tivesse valor prático. nos seria neces-
disto no fato de que ainda hoje todos sária por ser a virtude daquela parte da
os homens, quando definem a virtude, alma de que falamos; e não é menos
após indicar a disposição de caráter e evidente que a escolha não será certa
os seus objetos, acrescentam: "aquilo sem sabedoria prática. como não o
(isto é, aquela disposição) que está de seria sem virtude. Com efeito. uma
acordo com a reta razão". Ora, a reta determina o fim e a outra nos leva a
razão é o que está de acordo com a fazer as coisas que conduzem ao fim.
sabedoria prática. Mas nem por isso domina ela a
De certo modo, pois, todos os ho- sabedoria filosófica. isto é, a parte
mens parecem adivinhar que essa espé- superior de nossa alma. assim como a
cie de disposição, a saber, a que está de arte médica não domina a saúde, pois
acordo com a sabedoria prática, é vir- não se serve dela. mas fornece os
25 tude. Nós, porém, devemos ir um meios de produzi-la; e faz prescrições /0

pouco mais longe, pois não é apenas a no seu interesse, porém não a ela.
disposição que concorda com a reta Além disso. sustentar a sua suprema-
razão, mas a que implica a presença da cia equivaleria a dizer que os deuses
reta razão, que é virtude: e a sabedoria são governados pela arte política por-
prática é a reta razão no tocante a tais que esta faz prescrições a respeito de
assuntos. todos os assuntos do Estado.
LIVRO VII
157

15 Recomeçaremos agora a nossa in- doença ou pela deformidade; e também


vestigação tomando outro ponto de damos esse mau nome àqueles cujo
partida e salientando que as disposi- vício vai além da medida comum.
ções morais a ser evitadas são de três Desta espécie de disposição tratare-
espécies: o vício, a incontinência e a mos rapidamente mais tardes 5. Quan-
bruteza. Os contrários de duas delas to ao vício, já o discutimos antes" 6. J5
são evidentes: a um chamamos virtude Agora devemos falar da incontinência
20 e ao outro continência. À bruteza, o e da moleza (ou efeminação), e de seus
mais apropriado seria opor uma virtu- contrários, a continência e a fortaleza;
de sobre-humana, uma espécie heróica pois cumpre tratar de ambas como não 1145 b
e divina de virtude como a que Príamo idênticas à virtude ou à maldade, nem
atribui a Heitor em Homero, dizendo: como um gênero diferente. A exemplo
do que fizemos em todos os outros
Pois ele não parecia o filho de um casos, passaremos em revista os fatos
[homem mortal, observados e, após discutir as dificul-
Mas alguém que viesse da semente dades, trataremos de provar, se possí-
[dos deuses» 4. vel, a verdade de todas as opiniões co-
muns a respeito desses afetos da mente
Portanto, se, como se costuma dizer, - ou, se não de todas, pelo menos do 5
os homens se tornaram deuses pelo maior número e das mais autorizadas;
excesso de virtude, dessa espécie' deve porque, se refutarmos as objeções e
ser evidentemente a disposição contrá- deixarmos intatas as opiniões comuns,
25 ria à bruteza. Com efeito, assim como teremos provado suficientemente a
um bruto não tem vício nem virtude, tese.
tampouco os tem um deus; seu estado Ora (I), tanto a continência como a
é superior à virtude, e o de um bruto fortaleza são incluídas entre as coisas
difere em espécie do vício. boas e dignas de louvor, e tanto a
Ora, como é raro encontrar um incontinência como a moleza entre as
homem divino - para usarmos o epí- coisas más e censuráveis; e o mesmo
teto dos espartanos, que chamam um homem é julgado continente e disposto 10
homem de "divino" quando lhe têm a sustentar o resultado de seus cálcu-
grande admiração - , também o tipo los, ou incontinente e pronto a abando-
brutal é raramente encontrado entre os ná-los. E (2) o homem incontinente,
30 homens. Existe principalmente entre os sabendo que o que faz é mau, o faz le-
bárbaros, mas algumas qualidades vado pela paixão, enquanto o homem
brutais são também produzidas pela
85 Capítulo 5. (N. do T.)
84 Ilíada. XXIV, 258 ss, (N. do T.). 86 Livros II-IV. (N. do T.)
158 ARISTÓTELES

continente, conhecendo como maus os outros distinguem entre eles. (4) Às


seus apetites, recusa-se a segui-los em vezes se diz que o homem dotado de
virtude do princípio racional. sabedoria prática não pode ser inconti-
(3) Ao temperante todos chamam nente e, outras vezes, que alguns ho-
15 continente e disposto à fortaleza, mas mens desse tipo, e hábeis ademais, são
no que se refere ao continente alguns incontinentes. E por fim (5), diz-se que 10
sustentam que ele é sempre tempe- os homens são incontinentes mesmo
rante, enquanto outros o negam; e al- com respeito à cólera, à honra e ao
guns chamam incontinente ao intempe- lucro.
rante e intemperante ao incontinente Estas são, pois, as coisas que se cos-
sem qualquer discriminação, enquanto tuma dizer.

2
Podemos perguntar agora (1) como alguém aja contrariando o que lhe
é possível que um homem que julga pareceu ser o melhor alvitre; e dizem,
com retidão se mostre incontinente na por isso, que o incontinente não possui
sua conduta. Alguns afirmam que tal conhecimento quando é dominado
conduta é incompatível com o conheci- pelos seus prazeres, mas só opinião.
mento; pois seria estranho assim Se, todavia, se trata de opinião e não 35
pensava Sócratesê 7, que, existindo de conhecimento, se não é uma convic-
o conhecimento num homem, alguma ção forte, mas fraca, que resiste, como
coisa pudesse avassalá-lo e arrastá-lo nos hesitantes, nós simpatizamos com 1146 a
após si como a um escravo. Com efei- a sua incapacidade de manter-se firme
to, Sócrates era inteiramente contrário em tais convicções contra apetites
15 à opinião em apreço, e segundo ele não poderosos; não simpatizamos, porém,
existia isso que se chama inconti- com a maldade nem com qualquer
nência. Ninguém, depois de julgar outra disposição que mereça
afirmava - , age contrariando o que Será, então, a resistência da sabedo-
julgou melhor; os homens só assim ria prática que cede? é a mais 5
procedem por efeito da ignorância. forte de todas as disposições. Mas a
Ora, esta opinião contradiz nitida- suposição é absurda: o mesmo homem
mente os fatos observados, e é preciso seria ao mesmo tempo dotado de sabe-
indagar o que acontece a um tal doria prática e incontinente, mas nin-
homem: se ele age em razão da igno- guém diria que seja próprio de tal
rância, de que espécie de ignorância se homem praticar voluntariamente os
30 trata? Porque é evidente que o homem atos mais vis. Além disso, já se mos-
que age com incontinência não pensa, trou anteriormente que os que possuem
antes de chegar a esse estado, que deva esta espécie de sabedoria são homens
agir assim. de ação (pois se ocupam com fatos
Mas alguns concedem certos pontos particulares) e possuem as demais
defendidos por Sócrates, e outros não. virtudes.
Admitem que nada seja mais forte do (2) Por outro lado, se a continência
que o conhecimento, porém não que implica ter fortes e maus apetites, o 10
homem temperante não será conti-
87 Cf. Platão, Protágoras. 352. (N. do T.) nente, nem este será temperante; pois
ÉTICA A NICÕMACO - VII 159

um homem temperante não tem apeti- rado quando não quer imobilizar-se,
tes excessivos nem maus. O homem porque a conclusão não o satisfaz; e
continente, porém, não pode deixar de não pode avançar porque é incapaz de
tê-los; porque, se os apetites são bons, refutar o argumento). Há um silogismo
a disposição de caráter que nos inibe do qual se conclui que a loucura conju-
de segui-los é má, de forma que nem gada com a incontinência é virtude,
15 toda continência será boa; e, se eles pois um homem faz o contrário do que
são fracos sem serem maus, não há julga devido à incontinência, mas por
nada de admirável em refreá-los; e, se outro lado, o que é bom lhe parece
são fracos e maus, tampouco é grande mau e algo a ser evitado; e, por conse- 30
proeza resistir-lhes. guinte, fará o bem e não o mal.
(3) Além disso, se a continência (5) E ainda: aquele que, por convic-
torna um homem propenso a sustentar ção, faz, busca e escolhe o que é agra-
tenazmente qualquer opinião, a conti- dável seria considerado melhor do que
nência é má - isto é, se o leva a sus- quem o faz não em resultado do cálcu-
tentar mesmo as opiniões falsas; e se a
lo, mas da incontinência; porque o pri-
incontinência faz com que um homem
meiro é mais fácil de curar, dada a
abandone facilmente qualquer opinião,
possiblidade de persuadi-lo a mudar de
haverá uma boa espécie de inconti-
idéia. Mas ao incontinente pode-se
nência, de que temos exemplo em
Neoptólemo tal como nos é apresen- aplicar o provérbio: "Quando a água 35

20 tado no Fi/oetetes de Sófocles. Com sufoca, com que a faremos descer?" Se


efeito, ele é digno de louvor por não ele tivesse sido persuadido da retidão
haver cumprido o que Ulisses o per- do que faz, desistiria quando o persua-
suadira a fazer, e isso porque lhe dissem a mudar de idéia; mas acontece 1146 b

repugnava mentir. que tal homem age, embora esteja per-


(4) Por outro lado, o argumento suadido de algo muito diferente.
sofistico apresenta uma dificuldade. O (6) E finalmente: se a continência e
silogismo inspirado no desejo de expor a incontinência dizem respeito a qual-
os resultados paradoxais decorrentes quer espécie de objeto, que vem a ser o
da opinião de um adversário, a fim de incontinente no sentido absoluto? Nin-
conquistar a admiração dos ouvintes guém possui todas as formas de incon-
para o refutador quando este logra o tinência, mas de algumas pessoas dize-
seu desiderato, nos coloca em grande mos que são incontinentes em 5
25 embaraço (pois o raciocínio fica amar- absoluto.

3
De uma das espécies enumeradas meiro se as pessoas incontinentes agem
são as dificuldades que surgem. Al- cientemente ou não - e cientemente
guns destes pontos podem ser refuta- que sentido; e (2) com que espécie
dos, enquanto outros ficarão senhores de objetos se pode dizer que têm rela-
do campo; porque a dificuldade encon- ção o homem incontinente e o conti-
tra sua solução quando se descobre a nente (se com todo e qualquer prazer 10
verdade. ou dor, ou se só com determinadas
(1) Devemos, pois, considerar pri- espécies), e se o homem continente e o
160 ARISTÓTELES
homem dotado de fortaleza são o que possui o conhecimento mas não o
mesmo ou diferentes; e de modo aná- usa como daquele que o possui e usa
logo no tocante aos outros assuntos dizemos que sabem), fará grande dife-
abrangidos pela nossa investigação. rença se o homem que pratica o que
Constituem o nosso ponto de parti- não deve possui o conhecimento mas
15 da (a) a questão de se o homem conti- não o exerce, ou se o exerce; porque a
nente e o incontinente são diferen- segunda hipótese parece estranha, mas
ciados pelos seus objetos ou pela sua não a primeira.
atitude, isto é, se o incontinente é tal (b) Além disso, como há duas espé- 35
apenas porque se relaciona com tais e cies de premissas, nada impede que um
tais objetos, ou, então, pela sua atitude, homem aja contrariando o seu próprio 1 147.
ou ainda por ambas as coisas; (b) a conhecimento embora possua ambas
segunda questão é se a continência e a as premissas, desde que use apenas a
incontinência se relacionam com todo universal, porém não a particular; por-
e qualquer objeto, ou não. que os atos a ser realizados são parti-
O homem que é incontinente no sen- culares. E há também duas espécies de
tido absoluto nem se relaciona com termo universal; um é predicável do 5

20 todo e qualquer objeto, mas sim preci- agente e o outro do objeto: por exem-
samente com aqueles que são os obje- plo, "a comida seca faz bem a todos os
tos do intemperante, nem se caracte- homens" e "eu sou um homem", ou
riza por essa simples relação (pois, a "tal comida é seca"; mas o homem
ser assim, a sua disposição se identifi- incontinente não possui ou não usa o
caria com a intemperança), mas por se conhecimento de que "esta comida é
relacionar com eles de certo modo. tal e tal". Haverá, pois, em primeiro
Com efeito, um é levado pela sua pró- lugar uma enorme diferença entre esses
pria escolha, pensando que deve bus- modos de saber, de forma que não
car sempre o prazer imediato, en- pareceria nada estranho saber de um
quanto o outro busca tais prazeres dos modos ao mesmo tempo que se age
embora não pense assim. com incontinência, enquanto fazê-lo,
(1) Sugere-se que é contra a reta sabendo do modo, seria extraor-
opinião e não contra o conhecimento dinário.
que agimos de modo incontinente, mas Além disso (c), acontece aos homens 10
25 isso não vem ao caso; porque certas possuírem conhecimento em outro sen-
pessoas não hesitam quando nutrem tido que não os acima mencionados;
uma opinião, mas pensam ter conheci- pois naqueles que possuem conheci-
mento exato. Se, pois, o que se pre- mento sem usá-lo percebemos uma
tende sustentar é que, devido a uma diferença de estado que comporta a
convicção fraca, os que têm opinião possibilidade de possuir conhecimento
são mais sujeitos a agir contrariando o em certo sentido e ao mesmo tempo
seu próprio julgamento do que aqueles não o possuir, como sucede com os
que sabem, responderemos que a este que dormem, com os loucos e os
respeito não há diferença entre conhe- embriagados. Ora, é justamente essa a
cimento e opinião, pois alguns homens condição dos que agem sob a in-
não estão menos convencidos do que fluência das paixões; pois é evidente 15
pensam que do que sabem, como bem que as explosões de cólera, de apetite
30 o mostra o caso de Heráclito. Mas (a), sexual e outras paixões que tais alte-
visto que usamos a palavra "saber" em ram materialmente a condição do
dois sentidos (pois tanto do homem corpo, e em alguns homens chegam a
ETICA A NICÔMACO - VII 161

produzir acessos de loucura. Claro cada uma das partes de nosso corpo); e
está, pois, que dos incontinentes se sucede, assim, que um homem age de
pode dizer que se encontram num esta- maneira incontinente sob a influência
do semelhante ao dos homens adorme- (em certo sentido) de uma razão e de
cidos, loucos ou embriagados. O fato uma opinião que não é contrária em si
de usarem uma linguagem própria do mesma, porém apenas acidentalmente, 1147 b
conhecimento não prova nada, pois os à reta razão (pois que o apetite lhe é
homens que se acham sob a influência contrário, mas não o é a opinião).
dessas paixões podem até articular Donde se segue que é esse também o
provas científicas e declamar versos de motivo de não serem incontinentes os
Empédocles, e os que apenas começa- animais inferiores: com efeito, eles não 5
ram a aprender uma ciência podem ali- possuem juízo universal, mas apenas
nhavar as suas proposições sem, toda- imaginação memória de particulares.
via, conhecê-la. Para ser realmente A explicação de como se dissolve a
conhecida, é preciso que se torne uma ignorância e o homem incontinente
parte deles, e isso requer tempo. Logo, recupera o conhecimento é a mesma '
é de supor que o uso da linguagem por que no caso dos embriagados e ador-
parte de homens em estado de inconti- mecidos e não tem nada de peculiar a
nência não signifique mais que as esta condição. Devemos pedi-la aos
declamações de atores em cena. estudiosos de ciência natural. Ora,
25 (d) Também podemos encarar o sendo a segunda premissa, ao mesmo
caso da maneira que segue, com refe-
tempo, uma opinião a respeito de um
rência às peculiaridades da natureza
objeto perceptível e aquilo que deter- lO
humana. Uma das opiniões é universal,
mina as nossas ações, ou um homem
a outra diz respeito a fatos particula-
não a possui quando se encontra no es-
res, e aqui nos deparamos com algo
que pertence à esfera da percepção. tado de paixão, ou a possui no sentido
Quando das duas opiniões resulta uma em que ter conhecimento não significa
SÓ, numa espécie de caso a alma afir- conhecer, mas apenas falar, como um
mará a conclusão, enquanto no caso bêbedo que declama versos de Empê-
de opiniões relativas à produção ela docles. E, como o. último termo não é
agirá imediatamente (por exemplo, se universal, nem tampouco um objeto de
"tudo o que é doce deve ser provado" e conhecimento científico a mesmo títu-
30 "isto é doce",. no sentido de ser uma lo que o termo universal, parece 15
das coisas doces particulares, o mesmo resultar daí a posição que Só-
homem que pode agir e não é impedido crates procurou estabelecer; pois não é
procederá imediatamente de acordo em presença daquilo que consideramos
com a conclusão). Quando, pois, está conhecimento propriamente dito que
presente em nós a opinião universal surge a afecção da incontinência (nem
que nos proíbe provar, mas também é verdade que ele seja "arrastado" pela
existe a opinião de que "tudo que é paixão), mas o que se acha presente é
doce é agradável" e de que "isto é apenas o conhecimento perceptual.
doce" (e é esta a opinião ativa), e quan- Que isto baste como resposta à
do sucede estar presente em nós o ape- questão ao ato acompanhado ou não
tite, uma das opiniões nos manda evi- de conhecimento e de como é possível
35 tar o objeto, mas o apetite nos conduz agir de maneira incontinente com
para ele (pois tem o poder de mover conhecimento de causa.
162 ARISTÓTELES

20 (2) Examinaremos agora se existe pria, mas no entanto diferia.) Prova-o


alguém que seja incontinente no senti- o fato de tanto a incontinência no sen-
do absoluto ou se todos os homens tido absoluto como a relativa a algum
incontinentes o são num sentido parti- prazer físico particular ser censurada
cular; e, se tal homem existe, com que não apenas como uma falta mas tam-
espécie de objeto ele se relaciona. bém como uma espécie de vício, ao
Que tanto as pessoas continentes e passo que nenhuma pessoas incon-
dotadas de fortaleza como as inconti- tinentes a estes outros respeitos é cen-
nentes e efeminadas se relacionam com surada a tal título. .
prazeres e dores, é evidente. Ora, das Mas (b) das pessoas que são inconti-
coisas que causam prazer algumas são nentes com respeito aos gozos fisicos 5
necessárias, enquanto outras merecem com que dizemos relacionar-se o
ser escolhidas por si mesmas e contudo homem temperante e o intemperante,
25 admitem excesso, havendo mister das aquele que busca o excesso de coisas
causas corporais de prazer (pelas quais agradáveis - e evita o das coisas
entendo não só as que se referem à dolorosas: fome, sede, calor, frio e
alimentação como também à conjun- todos os objetos do tato e do paladar
ção sexual, isto é, os estados corporais - não por escolha, mas contrariando
com os quais dissemosê" que se rela- a sua escolha e o seu julgamento, é lO
cionam a temperança e a intempe- chamado incontinente, não com a
rança), enquanto as outras não são especificação "com respeito a isto ou
necessárias, mas merecem ser escolhi- àquilo", como, por exemplo, à cólera,
das por si mesmas (como a vitória, a mas num sentido absoluto. Confirma-o
honra, a riqueza e outras coisas boas e o fato de serem os homens chamados
30 agradáveis desta espécie). "moles" ou "efeminados" com respeito
Assim sendo (a), aos que vão ao a esses prazeres, porém não a qualquer
excesso com referência às segundas, dos outros.
contrariando a reta razão que levam E por essa razão juntamos num só
em si, não chamamos simplesmente de o incontinente e o intemperante,
incontinentes, mas de incontinentes o continente e o temperante - ex-
com a especificação "no tocante ao cluindo, porém, qualquer destes outros
dinheiro, à honra, ao lucro ou à cóle- tipos - , porque se relacionam de 15
ra" - não simplesmente inconti- algum modo com os mesmos prazeres
nentes, porque diferem das pessoas e dores. Mas, embora digam respeito
incontinentes e são assim chamados aos mesmos objetos, sua relação para
devido a uma semelhança. (Confron- com eles não é semelhante, pois alguns
te-se a história de Anthropos - fazem uma escolha deliberada e outros
Homem - , que venceu uma competi- não.
1148. ção nos Jogos Olímpicos; no seu caso, Por esta razão, merece mais o quali-
a defmição geral de homem pouco ficativo de intemperante o homem que,
diferia da defmição que lhe era pró- sem apetite ou com escasso apetite,
busca os excessos de prazer e evita
88 Livro III, cap. lO. (N. do T.) dores moderadas, do que o homem que
ÉTICA A NICÔMACO - VII 163

faz o mesmo levado por apetites pode- cognominado "o filial", que foi consi-
20 rosos: pois que faria o primeiro se os derado um grande tolo por esse moti-
seus apetites fossem dessa sorte e se a vo.)
falta dos objetos "necessários" o fizes- Com respeito a esses objetos não há,
se sofrer violentamente? pois, maldade pela razão indicada, isto
Ora, dos apetites e prazeres, alguns é: cada um deles é por natureza algo
pertencem à classe das coisas generica- digno de escolha em si mesmo. Sem
mente nobres e boas - pois algumas embargo, o excesso em relação a eles é
coisas agradáveis são por natureza mau e deve ser evitado. Analogamente, 5
dignas de escolha, enquanto outras não há incontinência no que toca a
lhes são contrárias e outras ainda ocu- esses objetos, pois a incontinência não
pam uma posição intermédia, para só deve ser evitada como merece cen-
adotar a distinção que estabelecemos sura; mas, em razão de uma seme-
25 anteriormente. Exemplos da primeira lhança quanto ao sentimento, aplica-
classe são a riqueza, o lucro, a vitória,
a honra. E com referência a todos os se-lhes o nome de incontinência
objetos desta espécie ou da interme- precisando em cada caso o respectivo
diária não são censurados os homens objeto, assim como chamamos de mau
por desejá-los e amá-los, mas por faze- médico ou mau ator a um homem que
rem-no de certo modo - isto é, indo não qualificaríamos de mau em si.
ao excesso. Visto, pois, que neste caso não apli-
(Em face disto, não são maus todos o termo em sentido absoluto
os que, contrariando a reta razão, se porque cada uma dessas condições não
deixam avassalar por um dos objetos é maldade, mas apenas se assemelha à
na'turalmente nobres e bons e o bus- maldade, é claro que também no outro 10
cam em detrimento de tudo mais, caso só se deve considerar como conti-
como, por exemplo, os que se ocupam nência e incontinência o que se rela-
30 mais do que devem com a honra, ou ciona com os mesmoa.objetos que a
com os filhos e os pais. Com efeito, temperança e a intemperança. Aplica-
essas coisas são bens e os que delas se mos, porém, o termo à cólera em virtu-
ocupam são louvados. Mesmo aí, con- de de uma semelhança, precisando
tudo, pode haver um excesso: se, como desta forma: "incontinente no que se
Níobe, por exemplo, alguém lutasse refere à cólera", como também dize-
1148 b contra os próprios deuses, ou se fosse mos: "incontinente no que se refere à
tão devotado ao pai quanto Sâtiro, honra ou ao lucro".

15 (1) Certas coisas são agradáveis devido a hábitos adquiridos e outras


por natureza, e destas (a) algumas o ainda (c) em razão de uma natureza
são em sentido absoluto e (b) outras congenitamente má.
em relação a determinadas classes de Assim sendo, é possível descobrir
animais ou de homens; e (2) daquelas em cada uma das espécies do segundo
que não são agradáveis por natureza, grupo disposições de caráter seme-
(a) algumas se tomam tais por efeito lhantes às que reconhecemos em rela-
de distúrbios no organismo, outras (b) ção ao primeiro. Refiro-me (A) aos 20
164 ARISTÓTELES

estados brutais, como no caso da relação a esse sentimento, e não incon-


fêmea que, segundo se diz, rasga o ven- tinente no sentido absoluto.
tre das mulheres grávidas e devora os Com efeito, todo estado excessivo, 5
fetos, e das coisas com que passam por seja de loucura, de covardia, de intem-
deleitar-se algumas tribos que habitam perança ou de irascibilidade, ou é bru-
as margens do mar Negro e que caíram talou mórbido. O homem que por
no estado de selvageria - carne crua, natureza receia todas as coisas, inclu-
carne humana, ou levarem filhos sive o guincho de um camundongo, pa-
uns aos outros para que se banque- dece uma covardia de bruto, enquanto
teiem com eles - e ainda a história aquele que temia uma fuinha estava
que se conta de Fálaris. simplesmente enfermo. E dos tolos, os
Estas disposições são brutais. Há, que por natureza são estouvados e
porém, outras (B) que resultam da vivem apenas pelos sentidos são como
25 doença (em certos casos também da brutos, a exemplo de certas raças de lO
loucura, como o homem que sacrificou bárbaros distantes, enquanto os que
e devorou sua própria mãe, ou o escra- são tais por efeito de uma doença (da
vo que co meu o fígado de um compa- epilepsia, por exemplo) ou da loucura
nheiro), e outras ainda (C) são estados são mórbidos.
mórbidos, como o hábito de arrancar Destas características, é possível
os pelos, de roer as unhas, e mesmo de possuir algumas apenas em certas oca-
comer carvão ou terra; a estes deve siões e não ser dominado por elas. Por
acrescentar-se a pederastia, e todos exemplo, Fálaris pode ter refreado o
eles surgem em alguns por natureza e desejo de comer carne de criança ou
30 em outros, como nos que desde a um apetite sexual contra a natureza; I5
infância foram vítimas da libidinagem mas também é possível ser dominado e
alheia, por hábito. não apenas ter tais sentimentos. Logo,
Ora, àqueles em quem a natureza é a assim como a maldade que se mantém
causa de tal disposição ninguém cha- no nível humano é chamada simples-
maria incontinentes, como ninguém mente maldade, enquanto a outra não
aplicaria o epíteto às mulheres por é simples maldade, porém maldade
causa do papel passivo que desempe- com a qualificação de "brutal" ou
nham na cópula. E tampouco seria ele "mórbida", também é evidente que há
aplicado aos que se encontram numa uma incontinência brutal e outra mór-
disposição mórbida por efeito do hábi- bida, mas só a que corresponde à 20
to. Possuir esses vários tipos de hábito intemperança humana é simples incon-
está para além das fronteiras do vício, tinência.
1149. como também o está a brutalidade. Torna-se claro, pois, que a inconti-
Para o homem que os possui, dominá- nência e a continência se relacionam
los ou ser dominado por eles não é com os mesmos objetos que a intempe-
simples continência ou incontinência, rança e a temperança, e o que se rela-
mas algo que é tal por analogia, assim ciona com outros objetos é um tipo
como o homem que tem tal disposição distinto da incontinência, que recebe
com respeito aos acessos de cólera este nome por metáfora e não é chama-
deve ser ch amado incontinente em do simples incontinência.
ÉTICA A NICÔMACO - VII 165

6
Veremos agora que a incontinência dizendo "sim, mas ele batia no seu, e
relativa à cólera é menos vergonhosa seu pai, por sua vez, batia no seu; e
do que aquela que diz respeito aos este menino (apontando para o seu 10
apetites. filho) baterá em mim quando for
25 (1) A cólera parece ouvir o racio- homem; isso é de família"; ou o
cínio até certo ponto, mas ouvi-lo mal, homem que estava sendo levado de
como os servos apressados que partem rastos pelo filho e lhe pediu que paras-
correndo antes de havermos acabado se à porta, ele próprio só havia
de dizer o que queremos e cumprem a arrastado seu pai até ali.
ordem às avessas, ou os cães que la- (3) Por outro lado, os mais afeitos a
dram apenas ouvem bater à porta, sem conspirar contra outros são mais cri-
procurar ver primeiro se se trata de minosos. Ora, um homem colérico não
uma pessoa amiga; e da mesma forma se inclina a conspirar, nem o faz a pró-
30 a cólera, devido à sua natureza ardente pria cólera, que é aberta e franca; mas
e impetuosa, embora ouvindo, não a natureza do apetite é elucidada pelo
cuta as ordens e precipita-se para a que os poetas chamam Afrodite, "insi-
vingança. Porque o raciocínio ou a diosa filha de Chipre", e pelos versos
imaginação nos informa de que fomos de Homero sobre o seu "cinto borda-
desprezados ou desconsiderados, e a do":
cólera, como que chegando à conclu- E ali estão os sussurros de amor,
são de que é preciso reagir contra qual- Tão sutis que roubam a razão aos
quer coisa dessa espécie, ferve imedia- [sábios, por prudentes que sejams»,
tamente; enquanto o apetite, mal o
raciocínio ou a percepção lhe dizem Logo, se esta forma de incontinência é
35 que determinado objeto é agradável, mais criminosa e vergonhosa que a da
1149 b corre a desfrutá-lo. Por conseguinte, a cólera, ela é ao mesmo tempo inconti-
cólera obedece em certo sentido ao nência no sentido absoluto e também
raciocínio, mas o apetite não. Por isso vício.
é ele mais censurável, pois o homem (4) Ainda mais: ninguém comete 20

incontinente com respeito à cólera é desregramentos com um sentimento de


vencido em certo sentido pelo raciocí- dor, mas a cólera é sempre acompa-
nio, ao passo que o outro o é pelo ape- nhada de dor, enquanto o que comete
tite e não pelo raciocínio. desregramentos age com prazer. Se,
(2) Além disso, perdoamos mais pois, os atos que mais justamente inci-
facilmente às pessoas que seguem dese- tam à cólera são mais criminosos do
jos naturais, ou seja, os apetites co- que os outros, mais criminosa é a
muns a todos os homens, na medida incontinência que se deve ao apetite;
em que são comuns. Ora, a cólera e a porquanto na cólera não há desregra-
irritabilidade são mais naturais do que mento.
o apetite pelos excessos, isto é, por Fica bem claro, pois, que a inconti-
objetos desnecessários. Sirva de exem- nência causada pelo apetite é mais ver-
plo o homem que se defendeu da acu-
sação de haver batido no próprio pai 89 Iliada; XIV, 214, 217. (N. doT.)
166 ARISTÓTELES

gonhosa do que aquela que se rela- Esses não têm a faculdade de escolher
25 ciona com a cólera; e tanto nem de calcular, mas são realmente 35
continência como incontinência dizem desvios da norma natural, como os
respeito aos apetites e prazeres do loucos entre nós.
corpo. Mas é preciso distinguir entre Ora, a bruteza é um mal menor do IIS08
estes últimos, porque, como dissemos que o vício, se bem que mais assusta-
no começov", alguns são humanos e dor, pois que a parte pervertida não foi
naturais tanto em espécie como em a melhor, como no homem: os brutos
grandeza, outros são brutais, e outros simplesmente não têm uma parte me-
ainda se devem a lesões e doenças lhor. É, pois, como se comparássemos
30 orgânicas. Só com os primeiros têm uma coisa inanimada com um ser vivo
que ver a temperança e a intempe- quanto à maldade; porque a maldade
rança, e esse é o motivo por que não daquilo que não possui uma fonte
chamamos temperantes nem intempe- originadora de movimento é sempre
rantes aos animais inferiores, a não ser menos daninha, e a"razão é uma fonte 5
em linguagem figurada e só quando al- originadora dessa espécie. E é também
guma raça de animais supera uma o mesmo que comparar a injustiça em
outra na libidinosidade, nos instintos abstrato com um homem injusto. Cada
de destruição e na avidez onívora. um dos dois é em certo sentido pior,
pois um homem mau causará dez
90 1148 b 15-3 I. (N. do T.) vezes mais dano do que um bruto.

Com respeito aos prazeres, dores, o são os seus excessos e deficiências


.apetites e aversões que nos vêm do tato - e como isto é tão verdadeiro das
/0 e do paladar, e aos quais havíamos dores como dos apetites - , o homem
reduzido anteriorrnentev" a tempe- que busca o excesso das coisas agradá-
rança e a intemperança, é possível ter veis ou busca em demasia as coisas
tal disposição que se seja vencido necessárias, fazendo-o deliberada-
mesmo por aqueles que a maioria das mente, por elas próprias e nunca tendo 20
pessoas dominam, ou dominar mesmo em vista algum outro fim, é intempe-
aqueles a que a maiona é incapaz de rante. Tal homem será necessaria-
resistir. Entre essas possibilidades, as mente inacessível ao arrependimento e,
que se relacionam com os prazeres são por conseguinte, incurável, pois quem
a incontinência e a continência, e as não pode arrepender-se não pode ser
que se relacionam com as dores são a curado.
/5 moleza e a fortaleza. disposição da O homem que se mostra deficiente
maioria das pessoas é intermediária, na busca dessas coisas é o contrário do
embora se incline mais para as disposi- intemperante; e o que ocupa a posição
ções piores. mediana é temperante.
Ora, como alguns prazeres são Existe, igualmente, o homem que
necessários e outros não, e os primei- evita as dores corporais, não porque
ros o são até um certo ponto, mas não estas o levem de vencida, mas por
escolha deliberada. (Dos que não esco- 25

91 Livro III, cap, 10. (N. do T.) lhem tais atos, uma espécie é condu-
ÉTICA A NICÔMACO - VII 167

zida a eles pela promessa de prazer e a quando picado pela serpente, ou o Cer-
outra por fugir à dor nascida do apeti- cíon de Cárcino na Âlope, e como as
te, de modo que esses tipos diferem pessoas que procuram conter o riso e
entre si. Ora, todos fariam pior opinião irrompem numa gargalhada,
de um homem que, sem apetite ou com ocorreu a Xenofanto. Mas causa sur-
um apetite fraco, cometesse algum ato presa que um homem não possa resis-
vergonhoso, do que se o fizesse sob a tir e seja derrotado por prazeres e
influência de um forte apetite, e pior do dores que a maioria arrosta sem gran-
homem que ferisse um outro sem cóle- de dificuldade, quando isso não se deve
ra do que se o fizesse levado pela cóle- à hereditariedade 011 à doença, como a 15
ra; pois que faria ele então se a sua ira moleza que é hereditária entre os reis
30 fosse grande? Eis aí por que o homem dos citas ou aquela que distingue o
intemperante é pior do que o inconti- sexo feminino do masculino.
nente.)
Das disposições indicadas, pois, a O amigo de diversões é também
segunda é antes uma espécie de mole- considerado intemperante, mas na rea-
za, enquanto a primeira é intempe- lidade é mole. Porque a diversão é um
rança. Ao passo que ao homem incon- relaxamento da alma, um descanso do
tinente se opõe o continente, ao mole trabalho; e o amigo de diversões é uma
opõe-se o homem dotado de fortaleza; pessoa que vai ao excesso em tais
pois a fortaleza consiste em resistir, coisas.
enquanto a continência consiste em Da incontinência, uma espécie é
35 vencer, e resistir e vencer diferem um impetuosidade e outra é fraqueza. Com
do outro assim como não perder difere efeito, alguns homens, após terem deli- 20
de ganhar; e por isso mesmo a conti- berado, não sabem manter, devido à
nência é também mais digna de esco- emoção, as conclusões a que chega-
lha do que a fortaleza. ram, enquanto outros, por não terem
IISOb Ora, o homem deficiente no tocante deliberado, são levados pela sua emo-
às coisas a que a maioria resiste, e o ção. E outros (assim como os que
faz com êxito, é mole e efeminado; tomam a iniciativa de fazer cócegas
pois a efeminação também é uma espé- eles próprios), quando percebem com
cie de moleza. Um tal homem deixa antecedência e vêem o que vai aconte-
arrastar o seu manto para evitar o cer, despertam a tempo e fazem funcio-
esforço de erguê-lo e simula doença nar a sua faculdade calculadora, não
sem se considerar infeliz, ao passo que sendo vencidos pela emoção, quer esta
o a quem ele imita é realmente seja agradável, quer dolorosa. São as 25
infeliz. pessoas de humor vivaz e de tempera-
O caso é análogo no que tange à mento excitável as mais sujeitas à
continência e incontinência. Com forma impetuosa de incontinência;
efeito, não é coisa de causar admiração porque as primeiras, devido à vivaci-
que um homem seja derrotado por pra- dade, e as segundas, por motivo da vio-
zeres ou dores violentos e excessivos, e lência das paixões, não esperam pelo
até nos dispomos a perdoar se ele resis- raciocínio e tendem a seguir a sua
10 tiu como faz o Filoctetes de Teodectes imaginação.
168 ARISTÓTELES

8
o homem intemperante, como disse- sos, mas praticam atos criminosos.
mos, não costuma arrepender-se por- Ora, como o homem incontinente
que se atém ao que escolheu; mas qual- tende a buscar, não por convicção,
homem incontinente pode prazeres corporais que são excessivos
30 arrepender-se. Por isso, a posição não e contrários à reta razão, enquanto o
é tal como a expressamos ao formular intemperante está convencido por ser a
o problema, mas o intemperante é espécie de homem feita para buscá-los,
incurável e o incontinente, curável. é o primeiro que facilmente se deixa
Porquanto a maldade se assemelha a dissuadir, ao passo que com o segundo
uma doença como a hidropisia ou a tí- acontece assim. Com efeito, a vir- 15
sica, enquanto a incontinência é como tude e o vício preservam e destroem,
a epilepsia: a primeira é permanente e respectivamente, o primeiro princípio,
a segunda, intermitente. E, de um e na ação a causa final é o primeiro
35 modo geral, a incontinência e o vício princípio, como as hipóteses o são na
diferem em espécie: o vício não tem matemática. Nem naquele caso, nem
consciência de si mesmo, a inconti- neste é o raciocínio que ensina os pri-
nência tem (dos homens incontinentes, meiros princípios - o que ensina a
os que temporariamente perdem o reta opinião a seu respeito é a virtude,
domínio próprio são melhores do que quer natural, quer produzida pelo hábi-
os que possuem o princípio racional to. Um homem assim é, pois, tempe-
mas não se atêm a ele, visto que os rante, e o seu contrário é o intempe-
segundos são derrotados por uma pai- rante.
xão mais fraca e não agem sem prévia Mas há uma espécie de homem que 20
deliberação, como os outros); porque o é arrastado pela paixão contrariando a
homem incontinente é como os que se regra justa - um homem a quem a
embriagam depressa e com pouco paixão domina por tal que é
vinho - isto é, com menos do que a incapaz de agir de acordo com a reta
maioria das pessoas. razão, mas não ao ponto de fazê-lo
Vê-se pois, que a incon- acreditar que deva buscar tais prazeres
tinência não é vício (se bem que talvez sem reservas. Esse é o incontinente,
o seja num sentido particularizado). que é superior ao intemperante e não é
Com efeito, a incontinência é contrária mau no sentido absoluto, pois nele se 25
à escolha, enquanto o vício segue o que conserva o que tem de melhor, o pri-
escolheu. Isso, porém, não impede que meiro princípio. E contrária a ele é
se assemelhem nas ações a que condu- outra espécie de homem, que se man-
zem. Como disse Dernódoco dos milé- tém firme nas suas convicções e não se
sios, "que não eram privados de razão, deixa arrastar, ao menos pela paixão.
mas faziam as mesmas coisas que Toma-se claro, pelo que acabamos
fazem os insensatos", também os de dizer, que a segunda é uma boa
10 incontinentes não são crimino - disposição e a primeira é má.
ÉTICA A NICÔMACO - VII 169

É continente o homem que se atém a ciadas pelo prazer e pela dor, pois
toda e qualquer regra, a toda e qual- deleitam-se com a sua vitória quando
quer escolha, ou aquele que se atém à não se deixam persuadir a mudar e so- 15
30 reta escolha? E é incontinente o que frem quando as suas decisões se tor-
abandona toda e qualquer escolha, nam nulas, como sucede às vezes com
assim como toda e qualquer regra, ou os decretos: de modo que se asseme-
o que abandona a regra e a escolha jus- lham mais ao homem incontinente do
tas? Foi assim que colocamos ante- que ao seu contrário.
riormentev-' o problema. Ou será aci- Mas há alguns que abandonam as
dentalmente a toda e qualquer escolha, suas resoluções não por efeito da
mas, em si, à regra e à escolha justas incontinência, como o Neoptólemo de
que um se atém e o outro não? Quando Sófocles. Sem embargo, foi sob a
alguém escolhe ou busca isto no inte- influência do prazer que ele tergiversou
1151 b resse daquilo, em si busca e escolhe o - mas de um prazer nobre; pois, para 20
segundo, mas acidentalmente o primei- ele, dizer a verdade era e contu-
ro. Mas quando falamos em absoluto, do Ulisses o persuadira a mentir. Com
entendemos o que é buscado em si. efeito, nem todos os que fazem alguma
Logo, em certo sentido um sustenta e o coisa tendo em vista o prazer são
outro abandona toda e qualquer opi- intemperantes, maus ou incontinentes,
nião; mas, em sentido absoluto, só a mas só os que a fazem por um prazer
reta opinião. vergonhoso.
Há alguns que tendem a sustentar a Como também existe uma espécie
sua opinião e que são chamados teimo- de homem que se deleita menos do que
5 sos, a saber: os que de um modo geral deve com as coisas do corpo e não
são difíceis de persuadir e, em particu- olha à reta razão, o intermediário entre 25
lar, que não se deixam persuadir facil- ele e o incontinente é o homem conti-
mente a mudar de idéia. Esses têm algo nente. Com efeito, o incontinente não
de semelhante ao homem continente, se atém à reta razão porque se deleita
assim como o pródigo se assemelha de em excesso com tais coisas, e este
certo modo ao liberal e o temerário ao homem porque se deleita demasiada-
confiante; mas diferem a muitos res- mente pouco com elas; ao passo que o
peitos. Com efeito, é à paixão e ao ape- homem continente se atém à razão e
IO tite que um não quer ceder, já que ou- não muda por nada deste mundo. Ora,:
tras vezes o homem continente se se a continência é boa, ambas as dispo-
mostra de persuadir; mas é ao sições contrárias devem ser más, como
raciocínio que os outros resistem, por- realmente parecem ser; mas, como o 30
que cultivam seus apetites e muitos outro extremo é observado em muito
deles são conduzidos pelos prazeres. poucos e raramente, pensa-se que a
Ora, as pessoas teimosas são as continência só tem um contrário, a
opiniáticas, as ignorantes e as rústicas incontinência, do mesmo modo que a
- as opiniáticas, porque são influen- temperança só tem um contrário, que é
a intemperança.
92 1146 a 16-3 I. (N.do T.) Como muitos nomes são aplicados
170 ARISTÓTELES

por analogia, é também por analogia trário à reta razão, enquanto o pri-
que viemos a falar da "continência" do meiro é tal que sente prazer mas não se
homem temperante; pois tanto o conti- deixa conduzir por ele. E o inconti-
nente como o temperante são de tal ín- nente e o intemperante também se
dole que jamais contrariam a regra assemelham num ponto: ambos bus-
11S2a justa levados pelos prazeres corporais; cam os prazeres corporais; diferem,
mas o primeiro possui e o segundo não contudo, pelo fato de o segundo pensar
possui apetites maus. Além disso, o que deve proceder assim, enquanto o
segundo é tal que não sente prazer con- primeiro pensa de modo contrário.

10

5 Tampouco é possível que o mesmo noso, pois não age premeditadamente.


homem possua sabedoria prática e seja Dos dois tipos de homem inconti-
incontinente. Com efeito, já mostra- nente, um não se atém às conclusões
mos 9 3 que o homem dotado de sabe- do que deliberou, enquanto o outro
doria prática é também um homem de não delibera em absoluto. E assim o
bom caráter. Além disso, a sabedoria incontinente se assemelha a uma cida-
prática não nos vem apenas do conhe- de que aprova todos os decretos apro-
cimento, mas também da capacidade priados e tem boas leis, mas não as põe 20
de agir. Ora, o incontinente é incapaz em prática, como na observação gra-
de agir. ciosa de Anaxândridess 5:
10 Nada impede, porém, que um Assim o quis a cidade que não faz caso
homem hábil seja incontinente. Por algum das leis.
este motivo, alguns chegam a pensar
que certas pessoas dotadas de sabedo- O homem mau, pelo contrário, é como
ria prática são incontinentes; com efei- uma cidade que faz uso de suas leis,
to, a habilidade e a sabedoria prática mas em que estas são más.
diferem da maneira que descrevemos Ora, a incontinência e a continência 25

em nossas primeiras discussôes'' 4, e relacionam-se com o que excede a


estão próximas uma da outra no tocan- disposição característica da maioria
te ao modo de raciocinar, mas distin- dos homens; porque o homem conti-
guem-se quanto ao seu propósito. nente se atém mais às suas resoluções e
E tampouco o incontinente se parece o incontinente menos do que a maioria
com o homem que sabe e contempla pode fazer.
15 uma verdade, mas com o adormecido Das formas de incontinência, a pró-
ou o embriagado. E age voluntaria- pria das pessoas excitáveis é mais
mente (pois age, em certo com curável que a das que deliberam mas
conhecimento não só do que faz como não se atêm às suas conclusões, e os
do fim visado); não é, porém, mau, que são incontinentes por hábito são
visto que o seu propósito é bom; de mais curáveis do. que aqueles em que a
modo que o incontinente é apenas incontinência é inata; pois é mais fácil
meio mau. Por outro lado, não é crimi- mudar um hábito do que alterar a
nossa natureza; e o próprio hábito 30
.3 1144 a II - I 144 b 32. (N. do T.)
1144a23-1144b4.(N.doT.I • 5 Fragmento 67, Kock. (N. do T.)
ÉTICA A NICÕMACO - VII 171

muda dificilmente porque se assemelha Que acaba porjazer-se natureza.


à natureza, como diz Eveno 9 6: Terminamos de mostrar o que são a
O hábito, meu caro, não é senão continência e a incontinência, a for-
[uma longa prática taleza e a moleza, e como essas
disposições se relacionam umas 35
96 Fragmento 9, DiehI. (N. do T.) com as outras.

11

1152 b O estudo do prazer e da dor per- tível a uma disposição natural, e ne-
tence ao campo do filósofo político, nhum processo é da mesma espécie
pois ele é o arquiteto do fim com vistas que o seu fim, por exemplo: o processo
no qual dizemos que uma coisa é má e da construção não é da mesma espécie
outra é boa em absoluto. Além disso, que a casa. (b) O homem temperante /5

considerá-los é uma de nossas tarefas evita os prazeres. (c) O homem dotado


necessárias, pois não apenas assenta- de sabedoria prática busca o que é
mos que a virtude e o vício morais isento de dor e não o que é agradável.
5 dizem respeito a dores e prazeres, mas (ti) Os prazeres são um obstáculo ao
pensamento, e quanto mais o são, mais
a maioria pensa que a felicidade envol- nos deleitamos neles, como, por exem-
ve prazer; e por isso se deu ao homem plo, o prazer sexual, pois ninguém é
feliz um nome derivado de uma pala- capaz de pensar no que querque seja
vra que significa prazer.
quando está absorvido nele. ( e ) Não
Ora (I), para algumas pessoas ne- existe arte do prazer, ao passo que
nhum prazer é um bem, quer em si todo bem é produto de alguma arte. (j)
mesmo, quer acidentalmente, visto que As crianças e os brutos buscam os
o bem e o prazer não são a mesma prazeres.
/0 coisa; (2) outros pensam que alguns (2) A opinião de que nem todos os 20
prazeres são bons, mas a maioria deles prazeres são bons baseia-se em dois
são maus. (3) Há ainda uma terceira argumentos: (a) existem prazeres que
opinião, segundo a qual, mesmo que são realmente vis e objetos de censura,
todos os prazeres sejam bons, a melhor e (b) existem prazeres nocivos, pois
coisa do mundo não pode ser o prazer. algumas coisas agradáveis são malsãs.
(I) Estes são os argumentos em (3) O argumento em favor da opi-
favor da opinião dos que negam abso- nião segundo a qual a melhor coisa do
lutamente que o prazer seja um bem: mundo não o prazer é que este não é
ê

(a) Todo prazer é um processo percep- um fim, mas um processo.

12
25 Estas são mais ou menos as coisas como mostram as seguintes considera-
que se costuma dizer. De tais premis- ções:
sas não se segue que o prazer não seja (A) (a) Primeiro, visto que aquilo
um bem, ou mesmo o maior dos bens, que é bom pode sê-lo num de dois sen-
172 ARISTÓTELES

tidos (uma coisa é simplesmente boa, rem entre si, também diferem os praze-
enquanto outra é boa para determi- res que elas proporcionam.
nada pessoa), as constituições e dispo- (c) Por outro lado, não é necessário
sições naturais do ser, com os corres- que exista algo melhor do que o prazer
pondentes movimentos e processos, simplesmente por dizerem alguns que o
serão divisíveis da mesma forma. fim é melhor do que o processo. Com
Dos que são considerados maus, al- efeito, os prazeres não são processos,
30 guns o serão em absoluto, porém não nem todos eles envolvem processos: /0
para uma pessoa determinada, mas são atividades e fins, E tampouco os
merecedores da sua escolha; e alguns experimentamos quando nos estamos
não merecerão sequer a escolha de tornando alguma coisa, mas quando
uma pessoa determinada, a não ser exercemos alguma faculdade; e nem
numa ocasião particular e por breve todos os prazeres têm um fim diferente
período, e assim mesmo com restri- deles mesmos, mas só os prazeres das
ções; outros, enfim, não chegam a ser pessoas que estão sendo conduzidas ao
prazeres, mas apenas parecem tais. aperfeiçoamento de sua natureza. Eis
Refiro-me aos que envolvem dor e cujo por que não é certo dizer que o prazer
fim é curativo, como os processos que seja um processo perceptível, mas
ocorrem nas pessoas doentes. antes deveríamos chamá-lo atividade
(b) Além disso, sendo uma espécie do estado natural e, em vez de "percep-
de bem atividade e outra espécie, esta- tível", "desimpedida". Alguns o consi- 15
do, os processos que nos restituem ao deram um processo simplesmente por-
nosso estado natural só são agradáveis que pensam que ele é bom no sentido
35 acidentalmente. Aliás, a atividade ca- estrito do termo; pois julgam, equivo-
nalizada para os apetites que têm esses cadamente, que a atividade seja um
bens por objeto é a atividade daquela processo.
parte de nosso estado e natureza que (B) A opinião de que os prazeres são
permaneceu incólume; pois em verda- maus porque algumas coisas agradá-
de há prazeres que não envolvem dor veis são malsãs equivale a dizer que as
a nem apetite (como os da contempla- coisas saudáveis são más porque algu-
ção, por exemplo), estando a natureza mas coisas saudáveis nos impedem de
intata nesses casos. Que os outros são ganhar dinheiro. Ambas são más nos
acidentais, indica-o o fato de algumas casos particulares mencionados, mas
pessoas não se deleitarem, quando sua não são más em si mesmas por essa
natureza se encontra no estado normal, razão; e até pode suceder, às vezes, que 20
com os mesmos objetos agradáveis que pensar faça mal à saúde.
lhes causam prazer quando ela está Nem a sabedoria prática, nem qual-
sendo refeita; mas no primeiro caso quer estado do ser é impedido pelo pra-
deleitam-se com coisas que são agra- zer que ele proporciona. São os praze-
dáveis no sentido absoluto, e nosegun- res estranhos que têm um efeito
do, também com os contrários destas, impeditivo, visto que os prazeres ad-
5 inclusive com coisas acres e amargas, vindos do pensar e do aprender nos
nenhuma das quais é agradável quer fazem pensar e aprender ainda mais.
por natureza, quer em sentido absolu- (C) Nada mais natural do que o fato
to. Os estados que elas produzem, por de nenhum prazer ser o produto de
conseguinte, não são prazeres natural- uma arte qualquer. Não existe arte de
mente nem no sentido absoluto; pois, nenhuma outra atividade tampouco,
assim como as coisas agradáveis dife- mas apenas da faculdade correspon- 25
ÉTICA A NICÔMACO - VII 173

dente, embora seja certo que as artes que sentido outros não são bons. Ora, 30
do perfumista e do cozinheiro são tanto os brutos como as crianças bus-
consideradas artes de prazer. cam prazeres da segunda espécie (e o
(D) Os argumentos baseados nas homem de sabedoria prática busca
premissas de que o homem temperante uma tranqüila isenção dos prazeres
evita os prazeres, e de que o homem dessa espécie): referimo-nos aos que
dotado de sabedoria prática busca a implicam apetite e dor; isto é, os praze-
vida sem dor e de que as crianças e os res corporais (pois estes é que são de
brutos buscam o prazer são todos refu- tal natureza), e aos excessos dos mes-
tados pela mesma consideração. Já mos, em virtude dos quais se diz que
mostramoss 7 em que sentido alguns um homem é intemperante. Eis aí por
prazeres são bons em absoluto e em que o homem- temperante evita esses
prazeres; porquanto ele também tem 35
'7 1152 b 26 1153 a 7. (N. do T.) os seus prazeres próprios.

13

b Mas, além disso (E), todos concor- mais digna de nossa escolha; e essa ati-
dam em que a dor é má e deve ser evi- vidade é prazer. E assim, o sumo bem
tada; porquanto algumas dores são seria alguma espécie de prazer, embora
más em sentido absoluto, e outras são a maioria dos prazeres fossem talvez
más porque de algum modo nos ser- maus em sentido absoluto.
vem de impedimento. Ora, o contrário Por essa mesma razão todos os ho-
do que deve ser evitado, enquanto mens pensam que a vida feliz é agradá-
coisa vitanda e má, é bom. O prazer, vel e entremeiam o prazer no seu ideal 15
por conseguinte, é necessariamente um da felicidade - o que, aliás, é bastante
bem. E a resposta de Espeusipo, dizen- sensato, já que nenhuma atividade é
do que o prazer é contrário tanto à dor perfeita quando impedida, e a felici-
5 como ao bem, assim como o maior é dade é uma coisa perfeita. Eis aí por
contrário tanto ao menor como ao que o homem feliz necessita dos bens
igual, não consegue convencer, pois corporais e exteriores, isto é, os da for-
que o próprio Espeusipo não diria que tuna, a fim de não ser impedido nesses
o prazer é, essencialmente, uma sim- campos. Os que dizem que o homem
ples espécie de mal. torturado no cavalete ou aquele que
E (F), se certos prazeres são maus, sofre grandes infortúnios é feliz se for 20
isso não impede que o sumo bem seja bom estão disparatando, quer falem a
algum prazer, assim como o sumo bem sério, quer não.
pode ser alguma espécie de conheci- E pelo fato de necessitarmos da for-
mento, não obstante certas espécies de tuna como de outras coisas, alguns
lO conhecimento serem más. seja identificam a boa fortuna com a felici-
até necessário, se a cada disposição dade; mas sucede que a própria boa
pode corresponder uma atividade de- fortuna, quando em excesso, é um
simpedida, que, não sendo a felicidade obstáculo, e talvez já não mereça o
outra coisa senão a atividade desimpe- nome de boa fortuna, pois que o seu li-
dida de todas as nossas disposições ou mite é fixado com referênçia à felici-
de algumas delas, seja essa a coisa dade ..
174 ARISTÓTELES

25 E em verdade o fato de todos· os rais apropriaram-se do nome tanto


seres, tanto os brutos como os homens, porque os buscamos com mais fre-
buscarem o prazer é um indício de que qüência do que aos outros, como por-
ele seja, de certo modo, o sumo bem: que todos os homens participam deles; 35
e assim, por não conhecerem outros, os
Nunca se perde de todo a voz que mui- homens pensam que eles não existem.
[tos povos . . . 98
É evidente, por outro lado, que se o
Mas, assim como nenhuma natureza e prazer, isto é, a atividade de nossas
nenhum estado são considerados os faculdades, não é um bem, ninguém
melhores para todos, também nem poderá dizer que o homem feliz tenha
todos buscam o mesmo prazer; não uma vida agradável; pois com que fim
30 obstante, todos buscam o prazer. E tal- necessitaria ele do prazer se este não
vez na realidade busquem, não o pra- um bem e o homem feliz pode até levar
zer que julgam ou que dizem buscar, uma vida de sofrimentos? E a dor não
mas o mesmo prazer; pois todas as é nem um mal, nem um bem, se o pra-
coisas contêm em si, por natureza, zer não o é: por que, então, evitá-la?
algo de divino. Mas os prazeres corpo- Por conseguinte, também a vida do 5
homem bom não será mais agradável
que a de qualquer outro, se as suas ati-
98 Hesíodo, Trabalhos e Dias. 763. (N. do T.) vidades não forem mais agradáveis.

14
(G) Com respeito aos prazeres cor- rosos, com vinhos e com a união
porais, os que dizem que alguns praze- sexual, mas nem todos o fazem como
res são muito dignos de escolha, a devem). Com a dor dá-se o contrário,
saber, os nobre, porém não os corpo- pois ele não evita o seu excesso: evita-a 20
rais, isto é, aqueles a que se dedica o de todo; e isso lhe é peculiar, já que o
homem intemperante, devem examinar excesso de prazer não tem como alter-
10 por que, nesse caso, as dores contrá- nativa a dor, salvo para o homem que
rias são más. Porquanto o contrário do busca esse excesso.
mau é bom. Serão bons os prazeres Como devemos expor não somente a
necessários no sentido em que mesmo verdade, mas também a causa do erro
aquilo que não é mau é bom? Ou serão - pois isso contribui para convencer,
bons até certo ponto? Dar-se-â o caso uma vez que quando se dá uma expli-
que, se de alguns estados e processos cação razoável de por que o falso pare-
não pode haver demasia, tampouco a ce verdadeiro, isso tende a fortalecer a
pode haver do prazer correspondente, e crença na opinião verdadeira - , cum- 25
quando aqueles excesso, pre-nos mostrar agora a razão de os
15 também o comportam estes? prazeres corporais parecerem mais
Ora, é certo que pode haver excesso dignos de escolha.
de bens corporais, e o homem mau é (a) Em primeiro lugar, pois, é por-
mau por buscar o excesso e não por que eles expulsam a dor: devido aos
buscar os prazeres necessários (pois excessos de dor que experimentam, os
todos os homens deleitam-se de um homens buscam prazeres excessivos e,
ou de outro com acepipes sabo- em geral, de natureza corporal como
ÉTICA A NICÕMACO - VII 175

30 remédio para a dor. Ora, os meios a dor é expulsada não só pelo prazer
curativos provocam intenso senti- contrário como por qualquer prazer,
mento (eé este o motivo de serem bus- contanto que seja forte; e por esta 15

cados), pelo contraste entre eles e a dor razão elas se tornam intemperantes e
contrária. (E, em verdade, considera-se más.
que o prazer não é bom por estas duas Os prazeres que não envolvem dor,
razões, como já dissemoss 9, a saber: pelo contrário, não admitem excesso; e
que alguns deles são atividades esses se contam entre as coisas agradá-
pertinentes a uma natureza má - quer veis por natureza e não por acidente.
congênita no caso de um bruto, quer Por coisas acidentalmente agradáveis
devida ao hábito, isto é, a dos homens entendo as que agem como meios cura-
maus: ao passo que outros se desti- tivos (pelo motivo de serem as pessoas
nam a curar uma natureza deficiente; curadas por elas, mediante alguma
ora, é melhor gozar saúde do que ação da parte que permanece sadia, o
b estar-se curando, mas esses prazeres processo é considerado agradável); e
surgem durante o processo de cura e, por coisas naturalmente agradáveis
por conseguinte, são bons apenas aci- entendo as que estimulam a ação da
dentalmente.) natureza sã.
(b) Além disso, eles são buscados Não existe coisa alguma que seja 20
devido à sua violência pelos que não sempre agradável, já que nossa natu-
podem desfrutar outros prazeres. (Em reza não é simples, mas existe em nós
todo caso, dão-se ao trabalho de fabri- também um outro elemento por sermos
car sedes, por assim dizer, para si mes- criaturas mortais; de modo que, se um
mos; quando estas são inofensivas, a elemento produz determinado efeito,
prática é inocente, e quando são preju- este é antagônico à outra natureza; e
diciais, é mâ.) Tais pessoas não têm quando os dois elementos estão equili-
nada mais que gozar e, além disso, brados o efeito não parece agradável
para a natureza de muitas pessoas um nem desagradável; porquanto, se a
estado neutro é doloroso. Com efeito, a natureza de um ser fosse simples, a
natureza animal está em constante mesma coisa lhe seria sempre agradá- 25
labuta, e isto é também confirmado vel no mais alto grau. É por isso que
pelos estudiosos de ciência natural Deus sempre goza um prazer único e
quando dizem serem dolorosas a visão simples: com efeito, não existe apenas
e a audição, sucedendo apenas que nos uma atividade do movimento, mas
acostumamos a elas. também uma atividade do repouso, e
Do mesmo modo, as pessoas jovens, experimenta-se mais prazer no repouso
devido ao processo de crescimento, do que no movimento. Mas "a mudan-
encontram-se numa condição seme- ça é aprazível em todas as coisas",
lhante à dos embriagados, e a moei- como diz o poeta 1 o o, em razão de
10 dade é um estado agradável. As pes- algum vício; pois, assim como o
soas de natureza excitável, por outro homem vicioso se caracteriza pela
lado, necessitam constantemente de mutabilidade, a natureza que necessita 30
alívio; o seu próprio corpo vive ator- de mudar é viciosa, por não ser simples
mentado por efeito de seu tempera- nem boa.
mento, e elas estão sempre sob a Aqui termina a nossa discussão da
influência de um desejo violento; mas continência e da incontinência, do pra-

99 1152 b 26-33. (N. do T.) 100 Eurípides, Orestes, 234. (N. do T.)
176 ARISTÓTELES

zer e da dor. Mostramos tanto o que alguns são bons e outros maus. Resta
cada um é em si como em que sentido agora falar da amizade.
LIVRO VIII
179

1155. Depois do que dissemos segue-se os homens; por isso louvamos os arm-
naturalmente uma discussão da amiza- gos de seu semelhante. Até em nossas
de, visto que ela é uma virtude ou viagens podemos ver quanto cada
implica virtude, sendo, além disso, homem é chegado e caro a todos os
5 sumamente necessária à vida. Porque outros. A amizade também parece
sem amigos ninguém escolheria viver, manter unidos os Estados, e dir-se-ia
ainda que possuísse todos os outros que os legisladores têm mais amor à
bens. E acredita-se, mesmo, que os amizade do que à justiça, pois aquilo a
ricos e aqueles que exercem autoridade que visam acima de tudo é à unanimi-
e poder são os que mais precisam de dade, que tem pontos de semelhança 15
amigos; pois de que serve tanta prospe- com a amizade; e repelem o faccio-
ridade sem um ensejo de fazer bem, se sismo como se fosse o seu maior inimi-
este se faz principalmente e sob a go. E quando os homens são amigos
forma mais louvável aos amigos? Ou não necessitam de justiça, ao passo
como se pode manter e salvaguardar a que os justos necessitam também da
prosperidade sem amigos? Quanto amizade; e considera-se que a mais
10 maior é ela, mais perigos corre. genuína forma de justiça é uma espécie
Por outro lado, na pobreza e nos de- de amizade.
mais infortúnios os homens pensam Não é ela, contudo, apenas necessá-
que os amigos são o seu único refúgio. ria, mas também nobre, porquanto lou-
A amizade também ajuda os jovens a vamos os que amam os seus amigos e
afastar-se do erro, e aos mais velhos, considera-se uma bela coisa ter muitos
atendendo-lhes às necessidades e su- deles. E pensamos, por outro lado, que 30
prindo as atividades que declinam por as mesmas pessoas são homens bons e
.efeito dos anos. Aos que estão no vigor amigos.
da idade ela estimula à prática de no- Ora, certos pontos atinentes à ami-
15 bres açôes, pois na companhia de ami- zade são matéria de debate. Alguns a
gos - "dois que andam juntos 1 01" - definem como uma espécie de afini-
os homens são mais capazes tanto de dade e dizem que as pessoas seme-
agir como de pensar. lhantes são amigas, donde os aforis-
E também os pais parecem senti-la mos "igual com igual", "cada ovelha 35
naturalmente pelos filhos' e os filhos com sua parelha", etc.; outros, pelo
pelos pais, não só entre os homens, contrário, dizem que "dois do mesmo 1155 b
mas entre as aves e a maioria dos ani- ofício nunca estão de acordo". E inves-
zo mais. Membros da mesma raça a sen- tigam esta questão buscando causas
tem uns pelos outros, e especialmente mais profundas e mais físicas, dizendo
Eurípedes que "a terra resseca ama a
, o 1 Odisséía, XVII, 218. (N. do T.) chuva, e o majestoso céu, quando pre-
180 ARISTÓTELES

nhe de chuva, adora cair sobre a mos deixá-los de parte, pois não per-
5 terra' 02", e Heráclito: "o que se opõe tencem à presente investigação. Exa-
é que ajuda", e "de notas diferentes minemos os que são humanos e
nasce a melodia mais bela", e ainda: envolvem caráter e sentimento, por 10

"todas as coisas são geradas pela exemplo: se a amizade pode nascer


luta" 03; ao passo que Empêdocles, entre duas pessoas quaisquer, se
juntamente com outros, exprime a opi- podem ser amigos os maus, e se existe
nião contrária de que o semelhante uma só espécie de amizade, ou mais.
busca o semelhante. Os que pensam que só existe uma por-
Quanto aos problemas físicos, pode- que a amizade admite graus baseiam-
se num indício inadequado, visto que
mesmo as coisas que diferem em espé-
102 Fragmento 898, 7-10, Nauck. (N. do To) cie admitem graus. Este assunto já foi 15
103 Fragmento 8, Diels, (No do To) discutido por nós anteriormente.

Talvez possamos deslindar as espé- mados não usamos a palavra "amiza-


cies de amizade se começarmos por de", pois não se trata de amor mútuo,
tomar conhecimento do objeto do nem um deseja bem ao outro (seria,
amor. Ora, nem tudo parece ser com efeito, ridículo se desejássemos
amado, mas apenas o estimável, e este bem ao vinho; se algo lhe desejamos é 30
é bom, agradável ou útil. Mas o útil, que se conserve, para que continuemos
em suma, é aquilo que produz algo de dispondo dele); no tocante aos amigos,
20 bom ou agradável, de modo que são o porém, diz-se que devemos desejar-lhes
bom e o útil que são estimáveis como o bem no interesse deles próprios. Mas
fins, aos que desejam bem dessa forma só
Os homens amam, então, o que é atribuímos benevolência, se o desejo
bom em si ou o que é bom para eles? não é recíproco; a benevolência, quan-
Os dois entram por vezes em conflito. do recíproca, torna-se amizade. Ou
E o mesmo pode-se dizer no tocante ao será preciso acrescentar. "quando co-
agradável. Ora, pensa-se que cada um nhecida"? Pois muita gente deseja bem
ama o que é bom para ele, e o que é a pessoas que nunca viu, e as julga
bom é estimável em si mesmo, en- boas e úteis; e uma delas poderia retri- 35
quanto o que é para cada um é buir-lhe esse sentimento. Tais -pessoas
estimável para ele; mas cada homem parecem desejar bem umas às outras; uss
ama não o que é bom para ele, e sim o mas como chamá-las de amigos se
25 que parece bom. Isso, contudo, não ignoram os seus mútuos sentimentos?
vem ao caso; limitar-nos-emos a dizer A fim de serem amigas, pois, devem
que ele é "o que parece estimável". conhecer uma à outra como desejan-
Ora, as pessoas amam por três do-se bem reciprocamente por uma das 5
razões. Para o amor dos objetos inani- razões mencionadas acima.
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 181

3
Ora, essas razões diferem umas das pessoas buscam não o agradável, mas
outras em espécie; portanto, é em espé- o útil) e, dos jovens e dos que estão no
cie que diferem também as correspon- vigor dos anos, entre os que buscam a
dentes formas de amor e de amizade. utilidade. E tampouco tais pessoas
Há, assim, três espécies de amizade, convivem muito umas com as outras,
iguais em número às coisas que são pois às vezes nem sequer se vêem com
estimáveis; pois com respeito a cada agrado, e por isso não sentem necessi-
uma delas existe um amor mútuo e dade de tal companhia, a menos que
conhecido, e os que se amam desejam- sejam mutuamente úteis: o convívio só
se bem a respeito daquilo por que se lhes é agradável na medida em que
amam. despertam uma na outra a esperança 30
10 Ora, os que se amam por causa de de algum bem futuro.
sua utilidade não se amam por si mes- Entre essas amizades alguns classi-
mos, mas em virtude de algum bem ficam também a que se observa entre
que recebem um do outro. Idêntica hospedeiro e hóspede. A amizade dos
coisa se pode dizer dos que se amam jovens, por outro lado, parece visar ao
por causa do prazer; não é devido ao prazer, pois eles são guiados pela emo-
caráter que os homens amam as pessoas ção e buscam acima de tudo o que lhes
espirituosas, mas porque as acham é agradável e o que têm imediatamente
agradáveis. Logo, os que amam por diante dos olhos; mas com o correr dos
causa da utilidade, amam pelo que é anos os seus prazeres tomam-se dife-
bom para eles mesmos, e os que amam rentes. É por isso que fazem e desfa-
por causa do prazer, amam em virtude zem amizades rapidamente: sua ami- 35
15 do que é agradável a eles, e não na me- zade muda com o objeto que lhes
dida em que o outro é a pessoa amada, parece agradável, e tal prazer se altera
mas na medida em que é util ou bem depressa.
agradável. Os jovens são também amorosos, 1156b
De forma que essas amizades são pois, em sua maior parte, a amizade
apenas acidentais, pois a pessoa amada que existe no amor depende da emoção
não é amada por ser o homem que é, e visa ao prazer; é por isso que tão
mas porque proporciona algum bem depressa se apaixonam como esque-
ou prazer. Eis por que tais amizades se cem a sua paixão, muitas vezes mu-
10 dissolvem facilmente, se as partes não dando no espaço de um dia. Mas é
permanecem iguais a si mesmas: com certo que tais pessoas desejam passar
efeito, se uma das partes cessa de ser juntas os seus dias e a sua vida inteira,
agradável ou útil, a outra deixa de pois só assim alcançam o propósito da
amá-la. sua amizade.
Ora, o útil não é permanente; mas A amizade perfeita é a dos homens
muda constantemente. E assim, quan- que são bons e afms na virtude, pois
do desaparece o motivo da amizade, esses desejam igualmente bem um ao
esta se dissolve, pois que existia apenas outro enquanto bons, e são bons em si
para os fins de que falamos. Essa espé- mesmos. Ora, os que desejam bem aos
15 cie de amizade parece existir principal- seus amigos por eles mesmos são os
mente entre velhos (pois na velhice as mais verdadeiramente amigos, porque
182 ARISTÓTELES

o fazem em razão da sua própria natu- zade desta espécie as outras qualidades
10 reza e não acidentalmente. Por isso sua também são semelhantes em ambos; e
amizade dura enquanto são bons - e o que é irrestritamente bom também é
a bondade é uma coisa muito durável. agradável no sentido absoluto. do
E cada um é bom em si mesmo e para termo, e essas são as qualidades mais
o seu amigo, pois os bons são bons em estimáveis que existem. O amor e a
absoluto e úteis um ao outro. E da amizade são, portanto, encontrados
15 mesma forma são agradáveis, por- principalmente e em sua melhor forma
quanto os bons o são tanto em si mes- . entre homens desta espécie.
mos como um para o outro, visto que a Mas é natural que tais amizades não 25
cada um agradam as suas próprias ati- sejam muito freqüentes, pois que tais
vidades e outras que lhes sejam seme- homens são raros. Acresce que uma
lhantes, e as ações dos bons são as amizade dessa espécie exige tempo e
mesmas ou semelhantes. familiaridade. Como diz o provérbio,
Uma tal amizade é, como seria de os homens não podem conhecer-se
esperar, permanente, já que eles encon- mutuamente enquanto não houverem
tram um no outro todas as qualidades "provado sal juntos"; e tampouco
que os amigos devem possuir. Com podem aceitar um ao outro como ami-
efeito, toda a amizade tem em vista o gos enquanto cada um não parecer
20 bem ou o prazer - bem ou prazer, estimável ao outro e este não
quer em abstrato, quer tais que possam confiança nele. Os que não tardam a 30
ser desfrutados por aquele que sente a mostrar mutuamente sinais de amizade
amizade - , e baseia-se numa certa desejam ser amigos, mas não o são a
semelhança. E à amizade entre homens menos que ambos sejam estimáveis e o
bons pertencem todas as qualidades saibam; porque o desejo da amizade
que mencionamos, devido à natureza pode surgir depressa, mas a amizade
dos próprios amigos, pois numa ami- não.

4
Essa espécie de amizade, pois, é per- gos recebem a mesma coisa um do
feita tanto no que se refere à duração outro (o prazer, por exemplo) - e não 5
como a outros respeitos, e nela cada só a mesma coisa, mas também da
um recebe de cada um a todos os res- mesma fonte, como ocorre entre pes-
peitos o mesmo que dá, ou algo de soas espirituosas, e não como sucede
semelhante; e é exatamente isso o que entre amante e amado. Porquanto estes
35 deve acontecer entre amigos. não recebem prazer das mesmas fon-
A amizade que visa ao prazer tem tes, mas o amante compraz-se em ver o
certa parecença com espécie, por- amado e este em receber atenções do
1157. quanto as pessoas boas são de fato seu amante; e quando começa a passar
agradáveis umas às outras. O mesmo o viço da mocidade a amizade também
se pode dizer da amizade que busca a se desvanece (porque um não experi-
utilidade, pois os bons também são menta prazer em ver o outro, e o
úteis uns aos outros. Entre os homens segundo não mais recebe atenções do
destas espécies inferiores as amizades primeiro). Muitos amantes, porém, são .10
são mais permanentes quando os ami- constantes, quando a familiaridade os
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 183

leva a amar o caráter um do outro pela Com efeito, os homens aplicam o 25


afinidade que existe entre eles. Mas nome de amigos mesmo àqueles cujo
aqueles cujo amor consiste numa troca motivo é a utilidade, e nesse sentido se
de utilidades e não de prazeres são, ao diz que as disposições são amigáveis
mesmo tempo, menos verdadeiramente (pois as alianças de disposições pare-
amigos e menos constantes. Os que são cem visar à vantagem), e também aos
amigos por causa da utilidade sepa- que se amam com vistas no prazer - e
ram-se quando cessa a vantagem, por- é neste sentido que se diz serem amigas
15 que não amavam um ao outro, mas as crianças. Portanto,. nós também
apenas o proveito. deveríamos talvez chamar amigas a 30

Por conseguinte, quando o que se, tais pessoas e dizer que existem diver-
leva em mira é o prazer ou a utilidade, sas espécies de amizade - primeiro, e
até os maus podem ser amigos uns dos no sentido próprio, a dos homens bons
outros, ou os bons podem ser amigos enquanto bons, e por analogia as ou-
dos maus, ou aquele que não é bom nem tras espécies; pois é em virtude de algo
mau pode ser amigo de qualquer espé- bom e algo semelhante ao que é encon-
cie de pessoa; mas por si mesmos, só trado na verdadeira amizade que eles
os homens bons podem ser amigos. são amigos, já que até o agradável é
Com efeito, os maus não se deleitam bom para os que amam o prazer. Mas
com o convívio uns dos outros, a não essas duas espécies de amizade não se
ser que essa relação lhes traga alguma juntam com frequência, nem as mes-
vantagem. mas pessoas se tomam amigas tendo
20 A amizade entre os bons, e só ela, em vista a utilidade e o prazer; por- 35
também é à calúnia, pois quanto as coisas que só acidentalmente
não damos ouvidos facilmente às pala- se relacionam umas com as outras não
vras de qualquer um a respeito de um andam muitas vezes juntas.
homem que durante muito tempo sub- Dividindo-se, pois, a amizade nestas 1157 b

metemos à prova; e é entre os bons que espécies, os maus serão amigos com
são encontradas a confiança, o senti- vistas na utilidade ou no prazer, e a
mento expresso pelas palavras "ele esse respeito se assemelharão um ao
nunca me faria uma deslealdade", e outro; mas os bons serão amigos por
todas as outras coisas que se requerem eles mesmos, isto é, em razão da sua
numa verdadeira amizade. Nas outras bondade. Esses, pois, são amigos no
espécies de amizade, porém, nada im- sentido absoluto do termo, e os outros
pede que tais males venham a manifes- o são acidentalmente e por uma seme-
tar-se. lhança com os primeiros.

5
5 Assim como, no tocante às virtudes, um com o outro e conferem-se mútuos
alguns homens são chamados bons benefícios, mas os que dormem ou que
com referência a uma disposição de se acham separados no espaço não rea-
caráter e outros com referência a uma lizam, mas estão dispostos a realizar
atividade, também o mesmo sucede no os atos da amizade. A distância não 10
que diz respeito à amizade. Efetiva- rompe a amizade em absoluto, mas
mente, os que vivem juntos deleitam-se apenas a sua atividade. Todavia, se a
184 ARISTÓTELES

ausência dura muito tempo, parece A verdadeira amizade é, pois, a dos 25


realmente fazer com que os homens bons, como tantas vezes dissemos.
esqueçam a sua amizade; daí o provér- Efetivamente, o que é bom ou agradá-
bio "longe dos olhos, longe do cora- vel no sentido absoluto do termo pare-
ção". ce estimável e desejável, e a cada um se
Nem os velhos, nem as pessoas acri- afigura ser o que é bom e agradável
moniosas parecem fazer amigos com para ele; e por ambas essas razões o
15 facilidade. Com efeito, tais pessoas homem bom é estimável e desejável
pouco têm de agradável, e ninguém de- para o homem bom. Ora, dir-se-ia que
seja passar seus dias com alguém cuja o amor é um sentimento e a amizade é
companhia é dolorosa ou não é agra- uma disposição de caráter, porque se 30
dável, visto que a natureza parece pode sentir amor mesmo pelas coisas
acima de tudo evitar o doloroso e bus- inanimadas, mas o amor mútuo envol-
car o agradável. Aqueles, porém, que ve escolha, e a escolha procede de uma
aprovam um ao outro mas não convi- disposição de caráter. E os homens
vem, parecem antes olhar-se com sim- desejam bem àqueles a quem amam
patia do que ser verdadeiros amigos. por eles mesmos, não por efeito de um
Porquanto nada é mais característico sentimento, mas de uma disposição de
dos amigos do que o convívio; e, em- caráter. E finalmente, os que amam um
20 hora sejam os que sofrem necessidade amigo amam o que é bom para eles
que desejam beneficios, mesmo os que mesmos; porque o homem bom, ao tor-
são sumamente felizes desejam passar nar-se amigo, passa a ser um bem para
os dias juntos; e é justamente a esses o seu amigo. Cada qual, portanto, ao 35
que menos agrada a solidão. Mas as mesmo tempo que ama o que é bom
pessoas não podem conviver se não para ele, retribui com benevolência e
são agradáveis umas às outras e não se aprazibilidade igualdade de ter-
deleitam com as mesmas coisas, como mos; porque se diz que amizade é
parecem fazer os amigos que são tam- igualdade, e ambas são encontradas
bém companheiros. mais comumente na amizade dos bons.

1158. Entre pessoas idosas e acrimoniosas se tomam amigas facilmente. Mas tais
é menos fácil formar-se amizade, por- homens podem sentir benevolência uns
quanto tais pessoas são menos bem- pelos outros, desejando-se bem e aju-
humoradas e se comprazem menos na dando-se quando um precisa do outro.
companhia umas das outras; e estas Mal se pode dizer, no entanto, que
são consideradas as maiores marcas de sejam amigos, porque não passam os
amizade e as que mais contribuem dias juntos nem se deleitam na compa-
para produzi-la. É por isso que, en- nhia um do outro; e estas são conside-
quanto os jovens são rápidos em fazer radas as maiores marcas da amizade.
5 amizades, o mesmo não se dá com os Não se pode ser amigo de muitas 10
velhos: os homens não se tomam ami- pessoas no sentido de ter com elas uma
gos daqueles em cuja companhia não amizade perfeita, assim como não se
se comprazem. E, da mesma forma, pode amar muitas pessoas ao mesmo
também as pessoas acrimoniosas não tempo (pois o amor é, de certo modo,
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 185

um excesso de sentimento e está na sua de agradáveis, sejam virtuosos, nem


natureza dirigir-se a uma pessoa só); e aqueles cuja utilidade vise a objetos
não sucede facilmente que muitas pes- nobres, mas, levados pelo desejo de
soas, ao mesmo tempo, agradem muito prazer, buscam a companhia de pes-
a um indivíduo só, ou mesmo, talvez, soas espirituosas e, quanto aos seus
que pareçam boas aos seus olhos. É outros amigos, escolhem-nos entre os
15 preciso, por outro lado, adquirir algu- que são hábeis em fazer o que lhes
ma experiência da outra pessoa e mandam; ora, tais características rara-
familiarizar-se com ela, e isso custa mente se encontram combinadas numa
muito trabalho. Mas com vistas na uti- só pessoa. Já dissemos que o homem
lidade ou no prazer, é possível que bom é ao mesmo tempo útil e agradá-
muitas pessoas agradem a uma só, pois vel' o 4; mas um tal homem não se
muitas pessoas são úteis ou agradá- torna amigo de quem lhe é superior em
veis, e tais serviços não exigem muito posição, a menos que lhe seja superior
tempo. também pela virtude; e, mesmo assim, 35
Dessas duas espécies, a que tem em não poderia estabelecer-se uma igual-
mira o prazer parece-se mais com a dade por ser ele ultrapassado em
amizade, quando ambas as partes rece- ambos os respeitos. Entretanto, pes-
bem as mesmas coisas uma da outra e soas que o ultrapassem em ambos os
deleitam-se uma com a outra ou com respeitos não são fáceis de encontrar.
20 as mesmas coisas, como acontece nas Seja como for, as amizades supra-
amizades dos jovens; pois é em tais mencionadas envolvem igualdade, pois
amizades que se observa com mais os amigos recebem as mesmas coisas
freqüência a generosidade. A amizade um do outro e desejam-se mutuamente
que se baseia na utilidade é própria das as mesmas coisas, ou trocam coisas
pessoas de espírito mercantil. entre si, como por exemplo, o prazer
Também as pessoas sumamente feli- pela utilidade. Dissemos' o 5, contudo,
zes não necessitam de amigos úteis, que essas amizades não apenas são
mas sim de amigos agradáveis; porque menos verdadeiras como menos per-
desejam viver com alguém e, embora manentes. Mas é por sua semelhança e 5
possam suportar durante um curto sua dessemelhança em relação à
paço de tempo o que é doloroso, nin- mesma coisa que as consideramos ou
guém o toleraria constantemente, não amizades. É por sua semelhança
25 mesmo que se tratasse do próprio Bem, com a amizade da virtude que parecem
se este lhe fosse doloroso. É por isso ser amizades (pois uma delas envolve
que buscam amigos agradáveis; mas prazer e a outra utilidade, e estas
talvez devessem buscar aqueles que, características pertencem também à
sendo agradáveis, fossem também amizade dos virtuosos); e é por ser per-
bons, inclusive para eles; pois assim manente e invulnerável à calúnia a
possuiriam todas as características que amizade dos virtuosos, enquanto estas
devem possuir os amigos. mudam rapidamente (além de diferi-
Os homens que ocupam posição de rem em muitos respeitos da primeira),
autoridade parecem ter amigos de dife- que parecem não ser amizades - isto 10
rentes classes. Alguns lhes são úteis e é, em razão de sua dessemelhança com
outros são agradáveis, mas raramente a amizade dos virtuosos.
os mesmos indivíduos reúnem em si as
30 duas qualidade; pois que tais pessoas 104 1156 b 13-15, 1157 a 1-3. (N. do T.)
não procuram nem aqueles que, além 105 1156 a 16-24, 1157 a (N. do T.)
186 ARISTÓTELES

7
Mas existe outra espécie de amiza- está em proporção com o mérito, ao
de, a saber, a que envolve uma desi- passo que a igualdade quantitativa é
gualdade entre as partes, como a de pai secundária; mas na amizade a igual-
para filho e, em geral, de mais velho dade quantitativa é primária, e a pro-
para mais jovem, a de marido para porção ao mérito, secundária. Isso se
mulher e, em geral, de governante para torna claro quando há uma grande dis-
súdito. E essas amizades diferem tam- tância entre as partes no que se refere à
15 bém umas das outras, pois a que existe virtude, ao vício, à riqueza ou outra
entre pais e filhos não é a mesma que coisa qualquer; pois nesse caso já não 35
entre governantes e súditos, nem a são amigos e nem sequer esperam sê-
amizade de pai para filho é a mesma lo. E a situação é manifesta acima de
que a de filho para pai, como a de ma- tudo quando se trata dos deuses, que
rido para mulher não é a mesma que a nos ultrapassam imensamente em tudo
de mulher para marido. Com efeito, a o que é bom. Mas é também clara no 1159 a

virtude e a função de cada uma dessas tocante aos reis, pois os homens que
pessoas são diferentes, e por isso tam- lhes são muito inferiores tampouco
bém diferem as suas razões para amar; esperam tornar-se seus amigos, nem
e outra conseqüência do mesmo fato é indivíduos de pouca valia esperam ser
que amor e amizade diferem igual- amigos dos melhores ou mais sábios
mente um do outro. dentre os homens.
20 Cada parte, pois, nem recebe a Em tais casos não é possível definir
mesma coisa da outra nem deveria com exatidão até que ponto os amigos
buscá-la; mas quando os filhos pres- podem permanecer amigos. Com efei-
tam aos pais aquilo que devem prestar to, a amizade pode sobreviver ao
aos que os puseram no mundo, e os desaparecimento de muitos elementos
pais aquilo que devem prestar aos que a compunham, mas quando uma
filhos, a amizade entre tais pessoas é das partes é afastada para muito longe,
duradoura e excelente. como sucede com Deus, cessa a possi-
Em todas as amizades que envolvem bilidade de amizade. Essa é, aliás, a 5
desigualdade, o amor também deve ser origem da questão sobre se os amigos
25 proporcional, isto é, o melhor deve realmente desejam aos seus amigos os
receber mais amor do que dá, assim maiores bens, como o de serem deuses,
como deve ser mais útil, e analoga- visto que em tal caso seus amigos dei-
mente em cada um dos outros casos; xarão de sê-lo e, por conseguinte, já
pois quando o amor é proporcional ao não representarão bens para eles (por-
mérito das partes estabelece-se, em que os amigos são realmente um gran-
certo sentido, a igualdade, que é de bem). A resposta é que, se tínhamos
indubitavelmente considerada uma ca- razão em afirmar que o amigo deseja
racterística da amizade. bem ao seu amigo por ele mesmo, este
Mas a igualdade não parece assumir deve continuar sendo a espécie de ser /0

a mesma forma nos atos de justiça e na que é; portanto, é a ele, na medida em


30 amizade. Com efeito, nos primeiros o que continua sendo um homem, que o
que é igual no sentido primário é o que outro deseja os maiores bens. Mas tal-
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 187

vez não lhe deseje todos os maiores quer outro, que cada homem deseja o
bens, pois é a si mesmo, antes de qual- bem.

A maioria das pessoas parecem, de- perar; e amam os seus filhos mesmo
vido à ambição, preferir ser amada a quando estes, por ignorância, não lhes
amar. E é por isso que os homens, em dão nada do que se deve a uma mãe.
geral, amam a Com efeito, o E assim, como a amizade depende
lisonjeiro é um amigo em posição infe- mais do amar que do ser amado, e são
J5 rior, ou finge ser tal ao mesmo tempo os que amam os seus amigos que são
que simula amar mais do que é amado; louvados, o amar parece ser a virtude 35
e ser amado parece ter bastante seme- característica dos amigos, de modo
lhança com ser honrado, e isso é o que que só aqueles que amam na medida
a maioria das pessoas ambicionam. justa são amigos duradouros, e só a
Entretanto, dir-se-ia que elas não amizade desses resiste ao tempo.
preferem a honra em si, mas apenas É deste modo, mais que de qualquer 1159 b
acidentalmente; porquanto a maioria outro, que até os desiguais podem ser
gosta de ser honrada pelos que ocupam amigos, pois é possível estabelecer-se
20 posição de autoridade, em razão de uma igualdade entre eles. Ora, igual-
suas esperanças (pois pensam que, se dade e semelhança são amizade, e
necessitarem de alguma coisa, conse- especialmente a semelhança dos que
gui-las-âo com eles, e por isso se com- são afins pela virtude. Com efeito, 5
prazem na honra como prenúncio de sendo constantes por natureza, eles
favores futuros). Os que desejam ser mantêm-se fiéis um ao outro e não soli-
honrados por homens bons e sábios, citam nem prestam serviços baixos,
por seu lado, querem confirmar a boa mas pode-se dizer que até previnem
opinião que fazem de si mesmos; e, por tais ocorrências, pois é característico
conseguinte, deleitam-se em ser honra- dos homens bons não fazer o mal eles
dos porque acreditam na sua própria próprios, nem permitir que seus ami-
bondade estribados no julgamento dos gos o façam. Os maus, porém, não têm
que falam a seu respeito. constância, visto que nem sequer a si
O ser amado, por outra parte, é mesmos se mantêm semelhantes, mas
25 deleitável em si mesmo, e por isso afi- são amigos durante breve tempo, por
gura-se preferível ao ser honrado; e a se deleitarem na maldade um do outro. 10
amizade parece digna de ser desejada As amizades úteis ou agradáveis
por si mesma. Mas dir-se-ia que ela re- duram mais, isto é, subsistem enquanto
side antes em amar do que em ser QS amigos proporcionam prazeres ou
amado, como mostra o deleite que as vantagens um ao outro.
mães sentem em amar; pois algumas A amizade com vistas na utilidade
mães entregam os filhos a outros para parece ser a que mais facilmente se
serem educados, e, enquanto conhecem forma entre contrários, como, por
30 o destino deles, amam-nos sem procu- exemplo, entre pobre e rico, entre igno-
rar ser amadas em troca (se não lhes rante e letrado; porque um homem
são possíveis ambas as coisas), mas ambiciona" aquilo que lhe falta e dá
parecem contentar-se em vê-los pros- algo em troca. Mas nesta classe tam- J5
188 ARISTÓTELES

bém se poderia incluir amante e própria natureza, mas apenas aciden-


amado, belo e feio. É por isso que os talmente, sendo o intermediário o obje- 20
amantes parecem às vezes ridículos, to real do desejo; pois este é que é real-
quando pretendem ser amados em mente bom, por exemplo: para o seco,
troca; quando ambos são igualmente o bom não é ficar úmido, mas passar
dignos de amor a pretensão talvez se ao estado intermediário, e da mesma
justifique, mas é ridícula quando não forma no que se refere ao quente e em
têm nenhuma qualidade própria para todos os outros casos. Podemos deixar
despertar o amor. de parte estes assuntos, que em verda-
A verdade, talvez, é que o contrário de são um pouco estranhos à nossa
nem sequer busca o contrário por sua investigação.

25 Como dissemos no começo de nossa e os dos irmãos entre si, nem os dos
discussão 1 o 6, a amizade e a justiça camaradas ou dos concidadãos; e o
parecem dizer respeito aos mesmos mesmo no que toca às outras espécies
objetos e manifestar-se entre as mes- de amizade.
mas pessoas. Com efeito, em toda Há também uma diferença, por
comunidade pensa-se que existe algu- conseguinte, entre os atos que são
ma forma de justiça, e igualmente de injustos para com cada uma dessas
amizade; pelo menos, os homens diri- classes de associados, e a injustiça
gem-se como amigos aos seus compa- cresce de ponto quando se manifesta
nheiros de viagem ou camaradas de para com os que são amigos num sen-
armas, e da mesma forma aos que se tido mais pleno; por exemplo, é mais
lhes associam em qualquer outra espé- detestável defraudar um camarada do
cie de comunidade. E até onde vai a que um concidadão, mais odioso dei- 5
xar de ajudar um irmão do que um
30 sua associação vai a sua amizade, estranho, e mais abominável ferir o
como também a justiça que entre eles próprio pai do que a qualquer outro. E
existe. E o provérbio segundo o qual as imposições da justiça também pare-
"os amigos têm tudo em comum" é a cem aumentar com a intensidade da
expressão da verdade, pois a amizade amizade, o que implica que a amizade
depende da comunhão de bens. e a justiça existem entre as mesmas
Ora, os irmãos e os camaradas pos- pessoas e são coextensivas.
suem todas as coisas em comum, mas Ora, todas as formas de comunidade
esses outros a quem nos referimos pos- são como partes da comunidade políti-
suem em comum certas coisas - al- ca. Por exemplo: é tendo em vista algu-
guns mais e outros menos: porque das ma vantagem particular que os homens
35 amizades, também algumas são verda- viajam juntos, e a fim de proverem al- 10
deiras amizades em maior e outras em guma coisa necessária à vida; e é por
menor grau. E as imposições da justiça causa da vantagem que a comunidade
também diferem: não são os mesmos política parece ter-se formado e perdu-
I 160a os deveres dos pais para com os filhos rar, pois esse é o objetivo que os legis-
ladores se propõem, e chamam justo o
106 I 155 a 22-28. (N. do T.) que concorre para a vantagem comum.
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 189

Mas as outras comunidades têm em incluir-se na comunidade política, que


mira aspectos particulares dessa vanta- não visa à vantagem imediata, mas ao
/5 gem comum: os marinheiros, por que é vantajoso para a no seu
exemplo, visam ao que é vantajoso todo], oferecendo sacrifícios e progra-
numa travessia para o propósito de ga- mando reuniões para esse fim, hon-
nhar dinheiro ou alguma fmalidade rando os deuses e provendo aprazíveis
dessa espécie; e os soldados, ao que é recreações pãra si mesma. Com efeito,
vantajoso na guerra, quer busquem tudo indica que os antigos sacrifícios e
riqueza, quer a vitória ou a posse de reuniões ocorriam após as colheitas
uma cidade; e os membros de tribos ou como uma espécie de festa das primí-
demos procedem do mesmo modo. cias, pois era nessa época que os ho-
[Algumas comunidades parecem mens tinham mais lazeres.
originar-se da necessidade de prazer, Todas as comunidades, por conse-
como as corporações religiosas e os guinte, parecem fazer parte da comuni-
grêmios sociais; pois esses existem a dade política; e as espécies particulares 30
fim de oferecer sacrifícios e propor- de amizade devem corresponder às
cionar o convívio. Mas todos parecem espécies particulares de comunidade.

10
Existem três espécies de constitui- pois o contrário do melhor é que é o
ção e igual número de desvios - pior.
perversões daquelas, por assim dizer. A monarquia degenera em tirania, lO
As constituições são a monarquia, a que é a forma pervertida do governo de
aristocracia, e em terceiro lugar a que um só homem, e o mau rei converte-se
se baseia na posse de bens e que seria em tirano. A aristocracia, por seu lado,
talvez apropriado chamar timocracia, degenera em oligarquia pela ruindade
embora a maioria lhe chame governo dos governantes, que distribuem sem
35 do povo. A melhor delas é a monar- equidade o que pertence ao Estado -
quia, e a pior é a timocracia. todas ou a maior parte das coisas boas
O desvio da monarquia é a tirania, para si mesmos, e os cargos públicos
pois que ambas são formadas de sempre para as mesmas pessoas,
1160 b governo de um só homem, mas há olhando acima de tudo a riqueza; e /5
entre elas a maior diferença possível. O destarte os governantes são poucos e
tirano visa à sua própria vantagem, o maus, em lugar de serem os mais
rei à vantagem de seus súditos. Com dignos.
efeito, um homem não é rei a menos A timocracia, por seu lado, dege-
que baste a si mesmo e supere os seus nera em democracia. Ambas são coex-
súditos em todas as boas coisas. Ora, tensivas, já que a própria timocracia
um homem em tais condições de mais tem como ideal o governo da maioria,
nada precisa, e por isso não olhará aos e os que não têm posses são contados
5 seus interesses, mas aos de seus súdi- como iguais aos outros. A democracia
tos; pois o rei que assim não for terá é a menos má das três espécies de
da realeza apenas o título. Ora, a tira- perversão, pois no seu caso a forma de
nia é o contrário exato de tudo isso: o constituição não apresenta mais que
tirano visa ao seu próprio bem. E é evi- um ligeiro desvio.
dente ser esta a pior forma de desvio, São estas pois as mudanças a que
190 ARISTÓTELES

estão mais sujeitas as constituições, e parece ser aristocrática, já que o


estas as transições menores e mais homem governa como convém ao seu
fáceis. valor, mas deixa a cargo da esposa os
Podem ser encontradas analogias assuntos que pertencem a uma mulher. 35
das constituições e, por assim dizer, Se o homem governa em tudo, a rela-
modelos delas nas próprias famílias. ção degenera em oligarquia, pois ao
Com efeito, a associação de um pai proceder assim ele não age de acordo
com seus filhos tem a forma da monar- com o valor respectivo de cada sexo,
quia, visto que o pai zela pelos filhos. nem governa em virtude da sua supe-
25 Aí está por que Homero chama a Zeus rioridade. Às vezes, no entanto, são as 11618
de "pai" 1 o 7; e o ideal da monarquia é mulheres que governam, por serem
ser uma forma paternal de governo. herdeiras; e assim o seu governo não se
Entre os persas, no entanto, o governo baseia na excelência, mas na riqueza e
dos pais é tirânico, pois ali os pais no poder, como acontece nas oligar-
usam os filhos como escravos. Tirâni- quias.
30 co, igualmente, é o governo dos amos A associação de irmãos asseme-
sobre os escravos, em que a única lha-se à timocracia, porquanto eles são
coisa que se tem em vista é a vantagem iguais, salvo na medida em que haja 5
dos primeiros. Ora, esta parece ser diferença de idades; e por isso, quando
uma forma correta de governo, mas o diferem muito em idade, a amizade já
tipo persa é pervertido, uma vez que não é do tipo fraternal. A democracia é
diferentes são as modalidades de go- encontrada sobretudo nas famílias acé-
verno apropriadas a relações diferen- falas (onde, por conseguinte, todos se
tes. encontram num nível de igualdade), e
A associação entre marido e mulher naquelas em que o chefe é fraco e
todos têm licença de agir como enten-
10 7 Por exemplo, Ilíada I, 503. (N. do T.) derem.

11
/0 Mostra a observação que cada uma filhos, a qual todos consideram o
das constituições comporta amizade maior dos bens, assim como provê à
na exata medida em que comporta a sua alimentação e educação. Tudo isso
justiça. A amizade entre um rei e seus se costuma atribuir também aos avós.
súditos depende de um excesso de E acresce que, por natureza, um pai
benefícios conferidos, porquanto o rei tende a governar seus filhos, os avós
os confere aos seus súditos quando, aos descendentes e os reis aos seus sú-
sendo ele um homem bom, zela pelo ditos. Estas amizades implicam supe- 20
bem-estar destes, como faz o pastor rioridade de uma parte sobre a outra,
com as suas ovelhas (e por isso Home- sendo essa a razão das honras que se
ro chamou a Agamenon "pastor dos prestam aos antepassados.
15 povos 1 OS"). E tal é também a amizade Portanto, a justiça que existe entre
de um pai, embora este exceda o outro pessoas assim relacionadas não é a
na grandeza dos benefícios dispensa- mesma de parte a parte, mas sempre
dos, pois é a causa da existência dos proporcional ao mérito; porquanto
isso é verdadeiro também da própria
1o8 Por exemplo, Ilíada II, 243. (N. do T.) amizade.
ÉTICA A NICÔMACO VIII 191

A amizade entre marido e mulher, uma vez que não há justiça. Por exem- 35
por outro lado, é a mesma que se plo, entre artífice e ferramenta, alma e
observa na aristocracia, já que está de corpo, amo e escravo, os segundos ter-
acordo com a virtude: o melhor recebe mos de cada uma dessas dualidades
maior quinhão de bens e cada um rece- são beneficiados por aqueles que os 1161 b

be o que lhe compete; e o mesmo se utilizam, mas não existe amizade nem
pode dizer da justiça nessas relações. justiça para com coisas inanimadas.
25 A amizade de irmãos é como a de Mas tampouco existe amizade para
camaradas, porquanto são iguais e com um cavalo, um boi ou um escravo
próximos uns dos outros pela idade; e enquanto escravo, pois não há nada de
comum entre as duas partes: o escravo 5
tais pessoas, em geral, assemelham-se
é uma ferramenta viva e a ferramenta é
nos sentimentos e no caráter. E tam-
um escravo inanimado. Enquanto es-
bém é semelhante a esta a amizade
cravo, pois, não se pode ser seu amigo,
apropriada ao governo timocrático; mas enquanto homem isso é possível,
pois numa tal constituição o ideal é pois parece haver uma certa justiça
serem os cidadãos iguais e eqüitativos, entre um homem qualquer e outro
e por isso o governo é assumido homem qualquer que tenham condi-
turnos numa base de igualdade. E a ções para participar de um sistema
amizade apropriada a esta constituição jurídico ou ser partes num ajuste: logo,
corresponde à que descrevemos. pode haver amizade com ele na medida
30 Nas formas de desvio, porém, como em que é um homem.
mal existe justiça, também é rara a Por conseguinte, embora nas tira-
amizade. E onde menos existe é na pior nias mal existam a amizade e a justiça, /O

das formas: na tirania há pouca ou nas democracias elas têm uma exis-
nenhuma amizade. Com efeito, onde tência mais plena, pois onde há igual-
nada aproxima o governante dos go- dade entre os cidadãos estes possuem
vernados não pode haver amizade, muito em comum.

12

Como dissemos 1 09, pois, toda a for- depender em todos os casos da amiza-
ma de amizade envolve associação. Po- de paterno-filial; porquanto os pais
der-se-ia, no entanto, distinguir das ou- amam os filhos como partes de si mes-
tras a amizade dos familiares e a dos mos, e os filhos amam os pais por
camaradas. As dos concidadãos, contri- serem algo que se originou deles. Ora
15 bais, companheiros de viagem, etc., se (1), os pais conhecem os filhos melhor
assemelham mais às amizades de asso- do que estes se conhecem como seus
ciação, pois parecem repousar sobre filhos, e (2) o procriador sente os filhos 20
uma espécie de pacto. Nesta classe po- como seus mais do que os filhos sen-
deríamos incluir a amizade entre hóspe- tem os pais como seus, pois o produto
de e hospedeiro. pertence a quem o produziu (como, por
A própria amizade dos familiares, exemplo, um dente, um fio de cabelo
embora seja de várias espécies, parece ou qualquer outra coisa pertence ao
seu dono), mas o produtor não per-
109 1159 b 29-32. (N. do T.) tence ao seu produto, ou pertence em
192 ARISTÓTELES

25 menor grau. E finalmente (3), o tempo A amizade de irmãos tem as carac- lO


decorrido contribui para o mesmo terísticas observadas na amizade entre
resultado: os pais amam os filhos camaradas (especialmente quando
desde que estes nascem, mas os filhos estes são bons) e, de modo geral, entre
começam a amar os pais só depois de pessoas semelhantes umas às outras,
algum tempo, quando adquiram enten- porquanto eles vivem em comum e se
dimento ou o poder de discriminação amam desde que nasceram, e já que os
pelos sentidos. Por isso tudo se eviden- filhos dos mesmos pais, tendo crescido
cia também a razão de ser o amor das juntos e recebido a mesma educação,
mães maior que o dos pais. têm maior semelhança de caráter; e, no
Pai e mãe amam, portanto, os seus seu caso, a prova do tempo foi apli-
filhos como a si mesmos (pois estes, cada de maneira mais completa e
em virtude de sua existência separada, concludente.
são como que outros "eus"), enquanto Entre outros graus de parentesco as 15
os filhos amam os pais por terem nas- relações amigáveis são encontradas
30 cido deles, e os irmãos amam uns aos nas proporções correspondentes. Entre
outros por se originarem dos mesmos marido e mulher a amizade parece
pais, já que a sua identidade com estes existir por natureza, pois a espécie hu-
os torna idênticos entre si (e por isso se mana se inclina naturalmente a formar
fala em ser "do mesmo sangue", "do casais - mais do que a formar cida-
mesmo tronco" e assim por diante). des, já que a família é anterior à cidade
Em certo sentido, pois, são a mesma e mais necessária do que esta, e a
coisa, embora existam como indiví- reprodução é comum ao homem e aos
duos separados. animais. Entre os outros animais a
Duas coisas que muito contribuem união vai apenas até esse ponto, mas
para a amizade são a educação em os seres humanos vivem juntos não só 20
comum e a semelhança de idade; pois para reproduzir-se, senão também para
"pessoas da mesma idade se dão bem", os vários propósitos da vida. E desde o
e os que se criaram juntos tendem a começo são divididas as funções, dife-
35 viver em camaradagem; e é por isso rindo entre si as do homem e as da
que a amizade dos irmãos se asseme- mulher, e ajudam eles um ao outro
1162 a lha à dos camaradas. E entre primos e fazendo capital comum de seus dotes
outros parentes existe um laço deri- individuais. Por tais motivos, tanto a
vado do fraterno, isto é, de provirem utilidade como o prazer parecem ser
dos mesmos pais. Aproximam-se e encontrados nessa espécie de amizade.
distanciam-se uns dos outros propor- Pode ela, no entanto, basear-se tam- 25
cionalmente à proximidade ou distân- bém na virtude, se as partes são boas;
cia do progenitor comum. pois cada uma possui a sua virtude
5 A amizade dos filhos pelos pais e própria, e ambas se deleitam nisso. E
dos homens pelos deuses é a que se tem os filhos constituem um laço de união
para com algo de bom-e superior, pois (motivo pelo qual os casais sem filhos
eles lhes dispensaram os maiores bene- separam-se mais facilmente); por-
fícios, dando-lhes o ser, a alimentação quanto os filhos são um bem comum a
e a educação desde que nasceram. E ambos, e o que ambos possuem em
essa espécie de amizade também é comum os conserva unidos.
aprazível e útil, mais do que a amizade Como devem portar-se um para com
entre estranhos, uma vez que tais pes- o outro marido e mulher, e, de um
soas convivem mais entre si. modo geral, amigo com amigo, parece 30
ÉTICA NICÔMACO - VIII 193

ser a mesma questão que a de determi- mos deveres para com um amigo, um
nar qual seja a sua conduta justa, por- estranho, um camarada e um condiscí-
Que um homem não parece ter os mes- pulo.

13
Existem três espécies de amizade, baseadas no prazer surgem muitas
como dissemos no começo de nossa queixas, porque ambos recebem simul-
35 investigação 1 1 o, e com respeito a cada taneamente o que desejam, se se com-
uma delas alguns são amigos em ter- prazem em passar o tempo juntos; e
mos de igualdade e outros em virtude mesmo o homem que se queixasse de 15
de uma superioridade (pois não só ho- outro por não lhe proporcionar prazer
mens igualmente bons podem tornar-se seria ridículo, uma vez que depende
1162 b amigos, mas um homem melhor pode dele não passar seus dias em compa-
fazer amizade com outro pior, e tam- nhia desse outro.
bém nas amizades que se baseiam no Mas a amizade que se baseia na uti-
prazer ou na utilidade os amigos lidade é repleta de queixas; porquanto,
podem ser iguais ou desiguais quanto como cada um se utiliza do outro em
aos benefícios que conferem). Assim seu próprio beneficio, sempre querem
sendo, os iguais devem ser amigos lucrar na transação, e pensam que saí-
numa base de igualdade quanto ao ram prejudicados e censuram seus
amor e a todos os outros respeitos, ao amigos porque não recebem tudo o que
passo que os desiguais devem benefi- "necessitam e merecem"; e os que
ciar-se proporcionalmente à sua supe- fazem bem a outros não podem ajudá-
rioridade ou inferioridade. los tanto quanto eles querem. 20
5 As queixas e censuras surgem unica-
mente ou principalmente nas amizades Ora, é de supor que, sendo a justiça
que se baseiam na utilidade, e isso está de duas espécies, uma não escrita e a
conforme ao que seria de esperar. Com outra legal, haja também uma espécie
efeito, os que são amigos com base na moral e outra legal de amizade basea-
virtude anseiam por fazer bem um ao da na utilidade. E assim, as queixas
outro (pois que isso é' uma marca de surgem principalmente quando os ho-
virtude e de amizade), e entre homens mens não dissolvem a relação dentro
que emulam entre si nessas coisas não do espírito do mesmo tipo de amizade
pode haver queixas nem disputas. Nin- em que a contraíram.
guém é ofendido por um homem que o O tipo legal é aquele que assenta 25

lO ama e lhe faz bem - e, se é uma pes- sobre termos defmidos. Sua variedade
soa de nobres sentimentos, vinga-se puramente comercial baseia-se no pa-
fazendo bem ao outro. E o homem que gamento imediato, enquanto a varie-
supera o outro nos serviços prestados dade mais liberal dá uma certa mar-
não se queixará do seu amigo, visto gem de tempo, mas estipula uma troca
que obtém aquilo que tinha em vista: definida. Nesta variedade a dívida é
com efeito, cada um deles deseja o que clara e não ambígua, mas a sua prote-
é bom. E tampouco nas amizades lação contém um elemento de amiza-
de; e por isso alguns Estados não 30
11 o 1156 a 7. (N, do T.) admitem ações judiciais em torno de
194 ARISTÓTELES

tais acordos, mas pensam que os ho- nos é possível. Mas de início devemos
mens que transacionaram numa base considerar o homem por quem estamos
de crédito devem aceitar as conseqüên- sendo beneficiados e em que termos ele
cias. procede, a fim de aceitar o benefício
O tipo moral não assenta em termos nesses termos, ou então recusá-lo.
fixos. Faz uma dádiva, ou o que quer É discutível se medir um la
que seja, como se fosse a um amigo; serviço pela sua utilidade para o bene-
mas espera receber outro tanto ou ficiado e retribuí-lo nessa base, ou pela
mais, como se não tivesse dado e sim benevolência do benfeitor. Com efeito,
emprestado; e, se a situação de um os que recebem dizem ter recebido de
deles é pior após dissolver-se a relação seus benfeitores o que custou pouco a
do que antes de havê-la contraído, esse estes e que eles poderiam ter obtido de
35 homem se queixará. Isso acontece por- outros - subestimando dessa forma o
que todos os homens ou a maioria serviço; ao passo que os benfeitores,
deles desejam o que é nobre mas esco- pelo contrário, afirmam ter feito o má-
lhem o que é vantajoso; ora, é nobre ximo que podiam e o que não poderia 15
fazer bem a um outro sem visar a qual- ter sido obtido de outros, e que o servi-
quer compensação, mas receber benefí- ço foi prestado em ocasião de perigo
cios é que é vantajoso. ou de necessidade.
1163. Portanto, cabe-nos retribuir, se pos- Ora, se a amizade é do tipo que visa
sível, com o equivalente do que tecebe- à utilidade, certamente a vantagem
mos (porque não devemos fazer de um para o beneficiado é a medida, por-
homem nosso amigo contra a sua von- quanto é ele quem solicita o serviço e o
tade; é preciso reconhecer que nos outro o ajuda na suposição de que
enganamos de começo, aceitando um receberá o equivalente. Destarte, a
benefício de uma pessoa de quem não ajuda foi exatamente igual à vantagem
devíamos aceitá-lo, já que não era do beneficiado, o qual, por conse- 20
nosso amigo, nem de alguém que o fez guinte, deve retribuir com o equiva-
simplesmente por fazer; e cumpre-nos lente do que recebeu, ou mais (pois
saldar as contas exatamente como se isso seria mais nobre).
tivéssemos sido beneficiados com base Nas amizades que se baseiam na
5 em termos fixos). Em verdade, tería- virtude, por outro lado, não surgem
mos concordado em retribuir se pudés- queixas, mas o propósito do benfeitor é
semos (do contrário, o próprio benfei- uma espécie de medida; pois no propó-
tor não contaria com isso); e, por sito reside o elemento essencial da vir-
I conseguinte, devemos retribuir, se isso tude e do caráter.

14
Também nas amizades que se ba- espera a mesma coisa. E dizem que um
25 seiam na superioridade surgem dissen- homem inútil não deve receber tanto
sões, pois cada qual espera obter mais quanto eles, visto que nesse caso a
proveito delas, mas, quando isso acon- amizade deixa de ser amizade para
tece, a amizade se dissolve. Não só o converter-se num serviço público 30
homem melhor pensa que lhe cabe quando os seus proveitos não corres-
receber mais, de vez que um homem pondem ao valor dos benefícios confe-
bom faz jus a mais, como o mais útil ridos. Porque tais pessoas pensam que,
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 195

assim como numa sociedade comercial É também essa, portanto, a maneira


os que entram com devem ganhar pela qual nos deveríamos associar
mais, o mesmo deve suceder na amiza- desiguais: o homem que é beneficiado
de. Mas o homem que se encontra em com respeito à riqueza à virtude
estado dê necessidade e inferioridade deve retribuir com honra, compen-
faz a reivindicação contrária: pensa sando o outro na medida de suas capa-
que é próprio de um bom amigo ajudar cidades. Porquanto a amizade pede a
35 os necessitados. De que serviria, diz um homem que faça o que pode e não 15
ele, ser amigo de um homem bom ou o que é proporcional aos méritos do
poderoso se não se tirasse nenhum pro- caso, já que isso nem sempre é possí-
veito disso? vel, como, por exemplo, nas honras
1163b Seja como for, parece que cada
prestadas aos deuses ou aos pais. Com
parte é justificada na sua asserção e
efeito, ninguém jamais lhes
que cada um deveria tirar mais vanta-
pagar o equivalente do que recebe, mas
gem da amizade do que o outro - não
o homem que os serve na medida de
maior quantidade da mesma coisa,
suas capacidades é considerado um
porém, mas o superior em honra e o
homem bom.
inferior em ganho; porquanto a honra
é o prêmio da virtude e da benefi- Eis aí por que não parece lícito a um
cência, enquanto o ganho é a ajuda de homem repudiar seu pai (embora o pai 20

que necessita a inferioridade. possa repudiar o filho). Como devedor


5 O mesmo parece suceder nas dispo- que é, deve pagar, mas nada do que um
sições constitucionais: o homem que filho possa fazer equivalerá ao que
não contribui com nada para o bem recebeu, de modo que ele continua
comum não é honrado, pois o que per- sempre em dívida. Mas, assim como os
tence ao público é dado a quem o bene- credores podem perdoar uma dívida,
ficia, e a honra pertence ao público. também um pai pode fazê-lo. E, por
Não é possível receber ao mesmo outro lado, pensa-se que ninguém repu-
tempo riqueza e honra do patrimônio diaria um filho que não fosse profun-
comum. Com efeito, ninguém se con- damente perverso; porque, além da 25
forma em receber a parte menor em amizade natural entre pai e filho, é
10 todas as coisas; destarte, ao homem próprio da natureza humana não enjei-
que perde a riqueza confere-se honra, e tar a ajuda de um filho. Mas este, se de
riqueza ao que consente em ser pago, fato é perverso, evitará ajudar o pai ou
já que a proporção ao mérito iguala as não fará muita questão disso; por-
partes e preserva a amizade, como quanto a maioria deseja receber benefi-
dissemos 1 1 1 • cios mas evita fazê-los, como coisa que
não compensa.
111 1 162 a 34 - 1162 b 4; cf. 1158 b 27. 1159 a Sobre estas questões dissemos o 30
35 - 1159 b 3. (N. do T.) suficiente.
XI oa-n
199

Em todas as amizades entre desse- res, como dissemos" 3, perdura por-


melhantes é, como dissemost a pro- que só depende de si mesmo.
porção que iguala as partes e preserva Surgem desentendimentos quando o
a amizade. Por exemplo, na forma que as pessoas obtêm é algo diferente
35 política de amizade, o sapateiro recebe daquilo que desejam, pois é, então,
1164 a uma compensação pelos seus produtos como se nada tivessem obtido. Veja-se /5
na proporção do que eles valem, e o a história do homem que fez trato com
mesmo sucede com o tecelão e outros um citarista, prometendo dar-lhe tanto
artífices. Ora, aqui foi estabelecida mais quanto melhor cantasse; mas pela
uma medida comum sob a forma de manhã, quando o outro reclamou o
dinheiro, à qual tudo é referido e pela cumprimento da promessa, ele respon-
qual tudo se mede. Mas na amizade deu que havia retribuído prazer com
entre amantes, por vezes o amante se prazer. Ora, se fosse prazer o que
queixa de que o seu excesso de amor ambos queriam, tudo estaria bem; mas
não é recompensado com amor (embo- se um queria prazer enquanto o
ra não tenha nada, talvez, que o faça queria ganho, e um recebeu o que que-
5 digno de ser amado), enquanto o ria, mas o outro não, os termos da
amado se queixa com freqüência de transação não foram devidamente
que o amante, que outrora lhe prome- cumpridos; pois o que cada um neces- 20

tia tudo, agora não cumpre nada. Tais sita é aquilo a que se aplica, e é em
incidentes acontecem quando o amante troca disso que dá o que tem.
ama o amado com vistas no prazer, Mas quem fixará o valor do serviço:
enquantooamado ama o amante com o que se sacrifica ou o que alcança a
vistas na utilidade, e nenhum dos dois vantagem? Seja como for, o outro pa-
possui as qualidades que deles se espe- rece deixar a decisão com ele. Era
ram. Se tais são os objetivos da amiza- assim, segundo se conta, que Protá-
de, esta se dissolve quando os dois não goras costumava proceder: toda vez 25
/0 obtêm as coisas que constituíam os que ensinava uma coisa qualquer,
motivos de seu amor; porquanto ne- mandava o· aluno estimar o valor do
nhum deles amava o outro por si conhecimento e aceitava a quantia que
mesmo, mas apenas as suas qualida- ele tivesse fixado. Mas em tais assun-
des, e estas não eram duradouras. Eis tos alguns aprovam o aforismo: "Que
aí por que essas amizades também são cada um tenha a sua recompensa
passageiras. Mas o amor dos caracte- fixat t s".

112 Cf. 1132 b 31-33, 1158 b 27 1159 a 35 - 113 1156b9-12.(N doT.)


1159 b 3, II62 a 34 - II62 b 4, 1 16J b 1 I. (N. do 11 4 Hesíodo, Trabalhos e Dias. 370, Rzach. (N. do
T.) T.)
200 . ARISTÓTELES

Os que, tendo recebido o dinheiro mas foi feita com a mira na retribui-
com antecipação, não fazem nada do ção, é certamente preferível que se
que haviam prometido por causa da retribua de maneira que pareça justa a
extravagância de suas promessas são ambas as partes; mas, se isso não for
30 naturalmente objetos de queixa porque possível, não apenas será necessário
não cumprem o que pactuaram fazer. mas também justo que o primeiro
Os sofistas são talvez forçados a agir beneficiado fixe a recompensa. Com 10
assim porque ninguém lhes daria efeito, se o outro receber em troca o
dinheiro em troca das coisas que eles equivalente da vantagem auferida por
realmente sabem. Essas pessoas, por ele, ou o preço que teria pago pelo pra-
conseguinte, se não fazem aquilo para zer, terá recebido o que é justo da parte
que foram pagas, são naturalmente do primeiro beneficiado.
objetos de queixa. Vemos acontecer o mesmo com as
Mas quando não há contrato de ser- coisas que são postas à venda, e em al-
viço, aqueles que renunciam a alguma guns lugares a lei proscreve as deman-
coisa no interesse da outra parte não das originadas de contratos voluntá-
podem, como dissemos 1 1 5, ser acusa- rios, partindo do princípio de que cada
35 dos, porquanto essa é a natureza da um deve ajustar suas contas com aque- 15
I 164 b amizade baseada na virtude; e a retri- les a quem deu crédito, dentro do
buição lhes deve ser feita de acordo mesmo espírito em que transacionou
com o seu propósito (pois o propósito com eles. A lei considera mais justo
é o que caracteriza tanto um amigo as condições sejam fixadas pelo
como a virtude). E da mesma forma, rrnem a quem se concedeu crédito do
segundo parece, deveriam ser retri- que pelo outro, pois que a maioria das
buídos aqueles com quem estudamos coisas não são estimadas no mesmo
filosofia, pois o seu valor não pode ser valor pelos que as possuem e pelos que
medido pelo dinheiro, nem há honra necessitam delas. Cada classe dá gran-
que esteja à altura de seus serviços; de valor ao que é seu e que ela oferece;
5 entretanto, é talvez suficiente, como no não obstante, a retribuição é feita nos
caso dos deuses e de nossos pais, dar- termos fixados pelo que recebe. Mas, 20
lhes aquilo que podemos. sem dúvida, este deve avaliar uma
Se a dádiva não era dessa espécie coisa não pelo que lhe parece valer
quando a possui e sim pelo valor que
11·1l62b6-13.(N.doT.) lhe atribuía antes de possuí-la.

Outro problema é levantado por per- preferência a um amigo ou a um


guntas do gênero das seguintes: Deve- homem bom, e mostrar-nos gratos a
mos dar preferência em todas as coisas um benfeitor ou obsequiar um amigo,
a nosso pai e obedecer-lhe, ou deposi- se não for possível fazer ambas as
tar nossa confiança num médico quan- coisas?
do estamos doentes e escolher um Não é verdade que todas essas ques-
homem de tirocínio militar quando nos tões difíceis de resolver com preci-
25 compete eleger um general? E, analo- são? Porquanto elas admitem varia-
gamente, devemos prestar serviço de ções de toda sorte, tanto com respeito
ÉTICA A NICÕMACO - IX 201

à magnitude do serviço como à sua retribuição a cada um, nem dar a um


30 nobreza e à sua necessidade. Mas que pai a preferência em todas as coisas, 15
não devemos dar preferência em todas assim como não oferecemos todos os
as coisas à mesma pessoa é bastante sacrifícios a Zeus, é suficientemente
claro; e, em geral, é mais certo retri- claro. Mas, como devemos prestar coi-
buir benefícios do que obsequiar ami- sas diferentes aos pais, aos irmãos, aos
gos, e antes de fazer um empréstimo a camaradas e aos benfeitores, a cada
um amigo devemos pagar o nosso classe devemos prestar o que for apro-
credor. priado e decoroso. E isso é o que as
Mas talvez nem isto seja sempre pessoas parecem realmente fazer. Para
verdadeiro: por exemplo, deve um as bodas convidam os parentes, pois
homem que foi resgatado das mãos de estes fazem parte da família e, por
bandidos resgatar em troca o que o conseguinte, participam também dos
35 libertou, seja ele quem for (ou pagar- acontecimentos que a afetam; e por 20
lhe, se ele não foi capturado, mas exige ocasião dos enterros também conside-
1165 8 pagamento), ou, em vez disso, deve ram apropriado que se reúnam os
resgatar o seu pai? Dir-se-ia que o parentes antes de mais ninguém, pela
certo é resgatar o pai mesmo de prefe- mesma razão.
rência a si próprio. No que toca aos alimentos, pensa-se
Como dissemos 1 1 6, pois, em geral a que devemos ajudar nossos pais antes
dívida deve ser paga, mas se a dádiva é de qualquer outro, pois que deles rece-
extremamente nobre ou necessária bemos outrora o nosso sustento e é
cumpre atender também a estas consi- mais honroso ajudar a esse respeito
5 derações. Porque às vezes nem sequer autores de nosso ser, mesmo de.prefe-
é justo retribuir com o equivalente do rência a nós próprios. E também deve-
que recebemos, quando uma das partes mos honrar nossos pais como honra-
prestou serviço a um homem que sabe mos os deuses, porém não lhes prestar 25
ser bom, enquanto a outra retribui a toda e qualquer honra; acresce que as
10 alguém que acredita ser mau. E, às mesmas honras não convêm ao pai e à
vezes, não devemos emprestar a quem mãe, nem se lhes deve dar as que se
nos fez empréstimo, pois o pri- costuma conferir a um filósofo ou um
meiro emprestou a um homem bom, general, e sim as que são devidas a um
esperando reaver o seu empréstimo, pai ou a uma mãe.
enquanto o outro não tem esperança de A todas as pessoas mais velhas,
ser pago por alguém que passa por ser igualmente, devem ser prestadas as
mau. Portanto, se isto é a verdade, honras que convêm à sua idade, er-
exigência não é justa; e se não é, mas guendo-nos para recebê-las, procu-
acredita-se que seja, ninguém conside- rando lugares para elas, etc.; ao passo
raria estranha a recusa. Como acen- que aos camaradas e amigos devemos
tuamos muitas vezes 1 1 7, as discussões dar a liberdade de expressar-se e o uso
a respeito de sentimentos e ações são de todas as coisas em comum. 30
tão defmidas ou indefinidas quanto os E também aos parentes, aos contri-
seus objetos. bais, aos concidadãos e a cada uma
Que não devemos fazer a mesma das outras classes deve-se sempre pro-
curar prestar o que for apropriado e
"6 1164b31- tJ65 a 2. (N.do T.) comparar os direitos cada classe
11 7 1094 b 11-27, 1098 a 26-29. 1103 b 34 com respeito à proximidade de relação,
1104 a 5.,(N. do T.) e à virtude ou necessidade. A compara-
202 ARISTÓTELES

ção é mais fácil quando as pessoas per- isso devemos furtar-nos à tarefa, mas
tencem à mesma classe, e mais traba- cumpre-nos decidir a questão como
35 lhosa quando são diferentes. Nem por melhor pudermos.

Outra .questão que se apresenta é nem pode nem deve ser amado, pois
sobre se convém ou não romper a ami- ninguém tem o dever de amar o mau,
zade quando a outra parte não perma- nem de tomar-se semelhante a ele; e já
11Mb nece a mesma. Talvez se possa dizer temos dito 1 1 9 que o semelhante é caro
que não há nada de estranho em rom- ao semelhante.
per uma amizade baseada na utilidade Deve, então, ser a amizade imedia-
ou no prazer quando nossos amigos já tamente rompida? Ou não será assim
não possuem tais atributos. Pois foi em todos os casos, mas apenas quando
por causa destes que nos tomamos nossos amigos são incuráveis em sua
amigos; e quando eles deixam de exis- maldade? Se são passíveis de reforma,
tir, é razoável que não se sinta mais deveríamos antes procurar ajudá-los
5 amor. Mas poderíamos queixar-nos de no que toca ao seu caráter ou aos seus
um outro se, tendo-nos amado pela bens materiais, tanto mais que isso é
nossa utilidade ou aprazibilidade, si- melhor e mais característico da amiza- 20
mulou amar-nos pelo nosso caráter. de. Mas ninguém acharia estranho que
Porque, como dissemos no começo 1 1 8, alguém rompesse semelhante amizade,
as mais das vezes surgem os desenten- pois não era amigo de um homem
dimentos entre amigos quando não são dessa espécie; uma vez que seu amigo
amigos .dentro do espírito em que pen- mudou e ele não pode salvá-lo, é justo
sam sê-lo. E assim, quando um homem que o abandone.
iludiu a si mesmo julgando que era Mas se um dos amigos permane-
amado pelo seu caráter e isso não cesse o mesmo e o outro se tomasse
correspondia em absoluto à verdade, melhor e o ultrapassasse grandemente
não pode ele censurar a ninguém senão em virtude, deveria o segundo tratar o
a si próprio; mas quando foi iludido primeiro como amigo? Seguramente,
10 pelas simulações da outra pessoa, é isso não é possível. A verdade do que 25
justo que se queixe de quem o enganou dizemos se evidencia sobretudo quan-
- mais justo, até, do que quando nos
do o intervalo é grande, como no caso
queixamos de falsificadores de moe-
das amizades de infância: se um dos
das, porquanto o mal diz respeito a
amigos permaneceu uma criança quan-
uma coisa mais valiosa.
Mas quando aceitamos um homem to ao intelecto, ao passo que o outro se
como bom e ele .se revela e patenteia tomou um homem na inteira acepção
mau, devemos continuar a amá-lo? da palavra, como podem continuar
Isso é certamente impossível, visto que amigos se não aprovam as mesmas
não se podem amar todas as coisas, coisas, nem se deleitam ou contristam
15 mas apenas o que é bom. O que é mau com. as mesmas coisas? Porquanto

118 1162 b 23-25. (No To) 119 1156 b 19-21, 1159 b lo (No do To)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 203

nem mesmo com respeito um ao outro com ele como se nunca tivéssemos sido
haverá concordância entre os seus gos- seu amigo? Certamente nos recorda-
tos, e sem isso (como já vimos 120) , não remos de nossa antiga intimidade, e
pode haver amizade, pois impossível é como somos de opinião que convém
30 viverem dois juntos. Já discutimos, obsequiar nossos amigos de prefe-
porém, estes assuntos 12 1 • rência a estranhos, também no caso 35
Devemos, então, conduzir-nos para dos que foram nossos amigos devemos
levar em consideração a amizade de
120 1157 b 22-24. (N. do T.) outrora, se o rompimento não se deveu
, 2 1 Ibid. 17-24, 1158 b 33-35. (N. do a um excesso de maldade.

11668 As relações amigáveis com seu toda a sua alma as mesmas coisas; por
semelhante e as marcas pelas quais são conseguinte, deseja para si o que é bom
defmidas as amizades parecem proce- e o que parece sê-lo, e o faz (pois é 15
der das relações de um homem para característico do homem bom pôr em
consigo mesmo. Com efeito (I), defini- prática o bem), e assim procede no seu
mos um amigo como aquele que deseja próprio interesse (isto é, no interesse
e faz, ou parece desejar e fazer o bem do elemento intelectual que possui em
no interesse de seu amigo, ou (2) como si e que. é considerado como sendo o
aquele que deseja que seu amigo exista próprio homem); e a si mesmo deseja a
5 e viva, por ele mesmo; e é o que as vida e a preservação, em especial do
mães fazem aos seus filhos e o que elemento em virtude do qual ele pensa.
fazem os amigos que entraram em Porquanto a existência é boa para o
conflito 122. E (3) outros o definem homem virtuoso, e cada um deseja
como aquele que vive na companhia de para si o que é bom, ao passo que nin- 20

um outro e (4) tem os mesmos gostos guém desejaria possuir o mundo intei-
que ele, ou (5) o que compartilha os ro se para tanto lhe fosse preciso tor-
pesares e alegrias de seu amigo; e isso [lar-se uma outra pessoa (quanto a
também é encontrado principalmente isso, Deus é quem tem a posse atual do
nas mães. É por. alguma destas carac- bem). Tal homem só deseja essas coi-
terísticas que a amizade é definida. sas com a condição de continuar sendo
10 Ora, cada uma delas é verdadeira do o que é; e o elemento pensante parece
homem bom em relação a si mesmo (e ser o próprio indivíduo, ou sê-lo mais
de todos os outros homens na medida do que qualquer outro dos elementos
em que se consideram bons; a virtude e que o formam. E ele deseja viver consi-
o homem bom parecem, como disse- go mesmo, e o faz com prazer, já que
mos 1 2 3 , ser a medida de todas as clas- se compraz na recordação de seus atos
ses de coisas). Com efeito, as suas opi- passados e suas esperanças para o fu- 25
niões são harmônicas e ele deseja de turo são boas, e portanto agradáveis.
Tem, do mesmo modo, a mente bem
122 Alguns editores eliminam esta parte final, Mas provida de objetos de contemplação. E
o sentido deve ser: Houve uma controvérsia que sofre e se alegra, mais do qualquer
lhes prejudica a união, mas ainda os deixa com boa
disposição de um para com o outro. do E.) outro, consigo mesmo; porquanto a
123 1113 a 22-33, cf. 1099 a 13. (N. do T.) mesma coisa é sempre dolorosa, e a
204 ARISTÓTELES

mesma coisa, sempre agradável, e não esquivam de fazer o que consideram


uma coisa agora e outra depois. Ele melhor para elas próprias. E os que
não tem, por assim dizer, nada de que cometeram muitos atos abomináveis e
possa arrepender-se. são odiados pela sua maldade esqui-
30 Logo, como cada uma destas carac- vam-se à própria vida e destroem a si
terísticas pertence ao homem bom em mesmos. E os maus buscam outras
relação a si mesmo, e ele se relaciona pessoas com quem passar os seus dias
para com o seu amigo como para con- e fugir de si mesmos; pois lembram-se /5

sigo mesmo (pois.o amigo é um outro de muitos crimes e prevêem outros


"eu"), pensa-se que a amizade é tam- semelhantes quando estão sozinhos,
bém um destes atributos, e que aqueles mas esquecem-nos quando têm compa-
que possuem estes atributos são ami- nhia. E, não possuindo em si nada de
gos. Se há ou não amizade entre um louvável, não sentem nenhum amor
homem e ele mesmo, é uma questão por si mesmos. Por isso, tais homens
35 que podemos deixar de lado por ora. tampouco se alegram ou sofrem consi-
Parece haver amizade na medida em go próprios; porquanto a sua alma é
1166b que ele é dois ou mais, a julgar pelos dilacerada por forças contrárias, e um 20
atributos da amizade que mencio- dos elementos que a constituem, em
namos acima e pelo fato de que. o razão da sua maldade, sofre quando se
extremo da amizade é comparado ao abstém de certos atos, enquanto a
amor que sentimos por nós mesmos. outra parte se rejubila, e uma delas o
Entretanto, os atributos mencio- arrasta numa direção e a outra na dire-
nados parecem pertencer à maioria dos ção contrária, como se o quisessem
homens, por deploráveis criaturas que esquartejar. Se um homem não pode
eles sejam. Devemos então dizer que, sentir dor e prazer ao mesmo tempo,
na medida em que estão satisfeitos pelo menos ao cabo de alguns instantes
consigo e se consideram bons, eles par- sofre porque sentiu prazer e desejaria
ticipam desses atributos? O certo é que que tais coisas não lhe fossem agradá-
5 nenhum homem radicalmente mau e veis; porque os maus têm a alma peja-
ímpio os possui ou sequer parece da de arrependimento.
possuí-los. Não se pode dizer, tampou- Por esses motivos o homem mau 25
co, que as pessoas inferiores os pos- não parece amigavelmente disposto se-
suam, pois tais pessoas não se harmo- quer para consigo mesmo, uma vez
nizam consigo mesmas, e apetecem que nele não existe nada digno de
certas coisas, mas racionalmente dese- amor. De modo que, se ter semelhante
jam outras. índole é ser a mais desgraçada
Isto é verdadeiro, por exemplo, dos criaturas, devemos envidar todos os
incontinentes, que escolhem, em lugar esforços para evitar a maldade e pro-
das coisas que eles mesmos julgam curar ser bons, porque só assim pode-
boas, outras que são agradáveis mas remos ser amigos de nós mesmos e dos
/0 perniciosas; enquanto outras pessoas outros.
ainda, por covardia e indolência, se

5
30 A benevolência é uma especie de com a amizade, pois que tanto pode-
relação amigável, não se identifica mos senti-la para com pessoas a quem
ÉTICA A NICÕMACO - IX 205

não conhecemos como sem que elas antes não sentiram benevolência uma
próprias o saibam, ao passo que com a para com a outra, mas pelo simples
amizade não sucede assim. Isto, aliás, fato de sentirem benevolência não se
já ficou atrás"> 4. Mas a benevo- pode dizer que sejam amigas, por-
lência não é sequer um sentimento quanto apenas desejam bem ao outro,
amistoso, já que não envolve intensi- mas não cooperariam em nada com ele
dade ou desejo, enquanto o sentimento nem se dariam ao trabalho de ajudá-lo.
de amizade é acompanhado desses ele- E assim, por uma extensão do termo /O

35 mentos. Além disso, amizade implica amizade, poder-se-ia dizer que a bene-
intimidade, enquanto benevolência volência é uma amizade inativa, se
pode surgir repentinamente, como bem que passe a ser amizade verda-
acontece para com os adversários deira quando se prolonga e chega ao
11678 numa competição: sentimos benevo- ponto da intimidade. Não se trata aqui,
lência para com eles e compartilhamos porém, da amizade baseada na utili-
os seus desejos, mas não coopera- dade nem da que tem por objeto o pra-
ríamos em nada com eles; porque, zer, pois tampouco a benevolência
como dizíamos, esse sentimento nos surge em tais condições.
vem de súbito e nós só os amamos O homem que recebeu um benefício
superficialmente. retribui com benevolência, e nisso não 15
faz senão o que é justo, enquanto o que
A benevolência parece, pois, ser um deseja a prosperidade de alguém por-
começo de amizade, como o prazer que espera enriquecer através dele não
dos olhos é o começo do amor. Porque parece sentir benevolência para com
5 ninguém ama se não se deleitou iní- tal pessoa, mas antes para consigo
cio com a forma do ser amado; mas mesmo, assim como um homem não é
nem por isso o que se deleita com a amigo de outro se o estima apenas por
forma de um outro o ama: é causa de algum proveito que possa
preciso que sinta a sua falta quando tirar dele. Em geral, a benevolência
está ausente e que anseie pela sua pre- surge em virtude de alguma excelência
sença. Do mesmo modo, não é possível ou mérito, quando um homem parece a
que duas pessoas sejam amigas se outro belo, bravo ou algo de seme-
lhante, como fizemos ver no caso dos 20
124 1155 b 32 - 1156 a5. (N.do T.) adversários numa competição.

6
A unanimidade também parece ser mas dizemos que cidade é unâ-
uma r.elação amigável. Por este motivo nime quando os homens têm a mesma
não é ela identidade de opinião, a qual opinião sobre o que é de seu interesse,
poderia ocorrer mesmo entre pessoas escolhem as mesmas ações e fazem em
que não se conhecem. E tampouco comum o que resolveram.
dizemos que os que têm a mesma opi- É, portanto, a respeito das coisas a
nião sobre todo e qualquer assunto fazer que se diz que as pessoas são
sejam unânimes, como por exemplo os unânimes; e, entre elas, dos assuntos
que concordam no tocante aos corpos importantes em que é possível a ambas
15 celestes (pois a unanimidade esse res- ou a todas as partes obterem o que pre- 30
peito não é uma relação amigável); tendem; por exemplo, uma cidade é
206 ARISTÓTELES

unânime' quando todos os cidadãos Ora, uma tal unanimidadeêencon- 5


pensam que os seus cargos públicos trada entre os homens bons, pois estes
devem ser eletivos, ou que convém são unânimes tanto consigo mesmos
fazer aliança com Esparta, ou que Pí- como uns com os outros e têm, por
taco deve governá-la numa ocasião assim dizer, um só pensamento (já que
em que o próprio Pítaco também dese- os desejos de tais homens são constan-
je governar. Mas quando cada uma de tes e não estão à mercê de correntes
duas pessoas deseja para si a posse da contrárias como um estreito de mar); e
coisa em questão, como os capitães desejam o que é justo e vantajoso, e
nas Fenícias' 9 5, -elas entram em cho- esses são os objetos de seus esforços
I • que; porquanto não há unanimidade comuns. Mas os homens maus não
quando cada uma das partes pensa na podem ser unânimes a não ser dentro
35 mesma coisa, seja ela qual for, mas de limites muito reduzidos, como tam- 10
apenas quando pensam na mesma pouco podem ser amigos, visto que
coisa nas mesmas mãos, por exemplo, ambicionam mais do que o seu qui-
quando tanto o povo como os da clas- nhão justo de vantagens, enquanto, no
se superior desejam que os melhores trabalho e no serviço público, ficam
1167b homens governem; porque assim, e só muito aquém da parte que lhes compe-
assim, todos alcançarão o que preten- te. E cada homem, desejando vanta--
dem. gens para si mesmo, critica o seu vizi-
A unanimidade parece, pois, ser a nho e lhe faz obstáculo; porque, se as
amizade política, como, de fato, é pessoas não forem vigilantes, o patri-
geralmente considerada; pois ela versa mônio comum não tardará a
sobre coisas que são de nosso interesse completamente demolido. Daí resulta
e que têm influência em nossa vida. encontrarem-se em estado de luta" pro- 15
curando coagir uns aos outros sem que
, 2 5 Eurípides, As Virgens Fenícias. 588 ss. (N. do ninguém se disponha a fazer o que é
T.) justo.

Os benfeitores, segundo pensa, modo poderão contar com a gratidão


amam aqueles a quem fizeram bem deles, enquanto os beneficiários não se
mais do que estes os amam, e discute- interessam em lhes retribuir dessa
se este ponto como se fosse paradoxal. forma.
A maioria julga que isso acontece por- Epicamo acharia talvez que eles 25
que os segundos se encontram na posi- falam assim porque "olham as coisas
ção de devedores e os primeiros, de pelo lado mau' 2 6", mas isso é muito
20 credores; e por conseguinte, assim próprio da natureza humana; porque a
como os que tornaram em- maioria das pessoas têm a memória
prestado desejam que os seus credores curta e antes desejam ser bem tratadas
não existissem, ao passo que estes che- do que tratar bem ao próximo. Mas a
gam a zelar pela segurança de seus causa parece ter raízes mais profundas
devedores, também se pensa que os na aatureza das coisas, e o caso dos
benfeitores desejam longa vida aos
objetos de suas boas ações, pois desse 12 6 Fragmento 146, Kaibel. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 207

que emprestaram dinheiro nem sequer ação, enquanto o paciente não vê nada
30 apresenta analogia com este. Com efei- de nobre no agente, mas no máximo
to, os credores não têm nenhum senti- algo de vantajoso; e isso é menos agra-
mento amistoso para com os seus dável e estimável. O que é agradável é
devedores, mas apenas desejam vê-los a atividade do presente, a esperança do
em segurança por causa do que têm a futuro e a memória do passado; mais
receber deles; enquanto os que presta- agradável que tudo, porém, e também
ram um serviço a outrem sentem ami- mais estimável, é o que depende da ati-
zade e amor por aqueles a quem servi- vidade. Ora, para o homem que fez al- 15
ram, mesmo que estes não lhes sejam guma coisa a sua obra permanece (pois
de nenhuma utilidade nem jamais pos- o nobre é duradouro), mas para aquele
sam vir a sê-lo. É o que acontece tam- que foi objeto da ação a utilidade não
bém com os artífices, por exemplo: tarda a passar. E a lembrança das coi-
35 cada um ama o trabalho saído de suas sas nobres é agradável, enquanto a das
mãos muito mais do que o amaria este coisas úteis não costuma sê-lo, ou o é
se pudesse adquirir vida. E mais que menos. No caso da expectação, contu-
1168 a ninguém, talvez, os poetas, que devo- do, o contrário disso é que parece ser
tam excessivo amor aos seus poemas, verdadeiro.
idolatrando-os como se fossem seus Acresce que o amor é como a ativi-
filhos. dade, e ser amado assemelha-se à
A posição dos benfeitores é seme- passividade; e o amor e os seus conco- 20
lhante: a pessoa a quem fizeram bem é mitantes são os atributos dos mais ati-
como se fosse sua obra, que eles amam vos dentre os homens.
5 mais do que a obra ama o seu artífice. E finalmente, todos os homens têm
Isso, porque a existência é para todos maior amor ao que ganharam como
os homens uma coisa digna de ser fruto do seu trabalho. Por exemplo, os
escolhida e amada; ora, nós existimos que fizeram a sua fortuna amam-na
em virtude da atividade (isto é, vivendo mais do que aqueles a quem ela veio
e agindo), e a obra é, em certo sentido, por herança; e ser bem tratado não pa-
uma produtora de atividade; portanto, rece envolver trabalho, enquanto fazer
o artífice ama a sua obra porque ama a bem a outrem é tarefa laboriosa. São
existência. E isso tem raízes profundas estas também as razões por que as
na natureza das coisas, pois o que ele é mães têm mais amor a seus filhos do
em potência, sua obra o manifesta em os pais; pô-los no mundo lhes 25
ato. custou mais dores e elas sentem mais
10 Ao mesmo tempo, para o benfeitor é profundamente que os filhos lhes per-
nobre aquilo que depende da sua ação. tencem. Este último ponto parece apli-
E assim se deleita com o objeto da sua car-se igualmente aos benfeitores.

Também se discute a questão de se quer outra e dá-se-lhes o nome de


um homem deveria amar acima de ególatras, que é considerado um epí-
tudo a si mesmo ou a alguma outra teto pejorativo; e um homem mau pa- 30
pessoa. São criticados aqueles que rece fazer tudo no seu próprio interes-
amam a si mesmos mais do que a qual- se, e isso tanto mais quanto pior ele
208 ARISTÓTELES

for. É acusado, por exemplo, de não nhão maior de riquezas, honras e pra-
fazer nada espontaneamente, enquanto zeres corporais, pois essas são as coi-
o homem bom age tendo em vista a sas que a maioria deseja e pelas quais
honra, sacrificando os seus interesses se esforça como se fossem as melhores
pessoais, e isso tanto mais quanto me- de todas; e também por esse motivo se
lhor ele for. tomam objetos de competição. E os 20

35 Mas os fatos estão em conflito com que são cúpidos com respeito a elas
estes argumentos, o que aliás não é de satisfazem os seus apetites e, de modo
surpreender. Com efeito, dizem os ho- geral, os seus sentimentos e o elemento
mens que deveríamos amar acima de irracional de sua alma.
1168 b tudo o nosso melhor amigo, e o melhor Ora, a maioria dos homens são
amigo de um homem é aquele que lhe dessa natureza, e esse é o motivo de ser
deseja bem por ele mesmo, ainda que usado o epíteto em tal acepção: ele re-
ninguém venha a ter conhecimento cebe o seu significado do tipo predomi-
disso; e esses atributos são encon- nante de autofilia, que é mau. É justo,
trados principalmente na atitude de um por conseguinte, que os homens que
homem para consigo mesmo, como amam a si mesmos desse modo sejam
todos os outros atributos pelos quais é objetos de censura.
5 definído um amigo; porque, corno E é evidente que a maioria das pes-
dissemos 1 2 7, foi a partir desta relação soas costumam chamar amigos de si
que todas as características da amiza- mesmos aqueles que se dão preferência
de se estenderam aos nossos semelhan- com respeito a objetos dessa espécie; 25
tes. E isto é confirmado pelos provér- porque, se um homem fizesse sempre
bios, como "uma só alma 1 28", "os questão de que ele mesmo, acima de
amigos possuem todas as coisas em todas as coisas, agisse com justiça e
comum", "amizade é igualdade" e "a temperança ou de acordo com qual-
caridade começa por casa", pois todas quer outra virtude, e em geral procu-
essas características são encontradas rasse sempre assumir para si a conduta
principalmente na relação de um mais nobre, ninguém chamaria amigo
homem para consigo mesmo. Ele pró- de si mesmo a um tal homem e nin-
prio é o seu melhor amigo, e por isso guém o censuraria.
deveria amar a si mesmo acima de No entanto, ele parece ser mais
JÓ tudo. É, pois, razoável indagar qual amigo de si mesmo do que o outro.
das duas opiniões seguiremos, porque Pelo menos, atribui a si as coisas mais
ambas são plausíveis. nobres e melhores, satisfaz o elemento JO
Talvez convenha distinguir esses mais valioso de sua natureza e obede-
argumentos uns dos outros e determi- ce-lhe em todas as coisas. E, assim
nar em que medida e a que respeito como uma cidade ou qualquer outro
cada uma das opiniões é verdadeira. todo sistemático é, com toda a justiça,
Ora, a verdade poderá tomar-se evi- identiflcada com o seu elemento mais
dente se apreendermos o sentido em valioso, o mesmo sucede com o indiví-
que cada escola usa a expressão duo humano; e, por conseguinte, o
J5 "amigo de si mesmo". Os que a usam homem que ama esse elemento e o
como termo de censura atribuem a satisfaz é mais amigo de si mesmo que
autofilia aos que abocanham um qui- qualquer outro.
Ainda mais: diz-se que um homem
12 7 Capo 40 (N. do T.) ou não tem domínio próprio con-
12 Eurípides, Orestes, 1046. (No do To) forme a razão domine ou deixe de
ÉTICA A NICÔMACO - IX 209

dominar nele, o que implica que ela é o Do homem bom também é verda-
35 próprio homem; e as coisas que os ho- deiro dizer que pratica muitos atos no
1169 a mens fazem de acordo com um princí- interesse de seus amigos e de sua pá-
pio racional são consideradas mais tria, e, se necessário, dá a vida por eles.
legitimamente atos seus, e atos volun- Com efeito, um tal homem de bom 20
tários. grado renuncia à riqueza, às honras e
É evidente, pois, que esse é o próprio em geral aos bens que são objetos de
homem, ou que o é mais do que qual- competição, ganhando para si a nobre-
quer outra coisa; e também que o za, visto que prefere um breve período
bom ama acima de tudo essa de intenso prazer a uma longa tempo-
sua parte. Donde se segue que ele é no
rada de plácido contentamento, doze
mais legítimo sentido da palavra um meses de vida nobre a longos anos de
amigo de si mesmo, e de um tipo dife-
existência prosaica, e uma só ação
rente daquele que é alvo de censura,
grande e nobre a muitas ações triviais. 25
tanto quanto o viver de acordo com Ora, os que morrem por outrem certa-
um princípio racional difere do viver
mente alcançam esse resultado; é ele,
5 segundo os ditames da paixão, e dese-
pois, um grande prêmio que escolhem
jar o que é nobre de desejar o que pare-
para si mesmos.
ce vantajoso.
Os homens bons também se desfa-
Por isso, todos os homens aprovam
zem de suas riquezas para que os seus
e louvam os que se ocupam em grau
amigos possam ganhar mais, pois,
excepcional com ações nobres; e se
enquanto o amigo de um homem
todos ambicionassem o que é nobre e
adquire riqueza, ele próprio alcança
dedicassem o melhor de seus esforços
à prática das mais nobres ações, todas nobreza: é a ele, portanto, que cabe o
as coisas concorreriam para o bem maior bem. O mesmo se pode dizer das
comum e cada um obteria para si os honras e cargos públicos: tudo isso ele 30

10 maiores bens, já que a virtude é o bem sacrificará ao seu amigo, porque tais
maior que existe. atos são nobres e louváveis nele.
Portanto, o homem bom deve ser Com razão, pois, é um homem
amigo de si mesmo (pois ele próprio assim considerado bom, visto que
escolhe a nobreza acima de tudo. E
lucrará com a prática de atos nobres,
ao mesmo tempo que beneficiará os pode ele, inclusive, deixar a ação ao
seu amigo: em certas ocasiões é mais
seus semelhantes); mas o homem mau
não o é, porque, com o abandono às nobre sermos a causa da ação de um
suas más paixões, ofende tanto a si amigo do que agirmos nós mesmos.
15 mesmo como aos outros. Para o Ye-se, pois, que em todos os atos 35

homem mau, o que ele faz está em con- que atraem louvores aos homens, o
flito com o que deve fazer, enquanto o homem bom reserva para si o maior
homem bom faz o que deve; porque a quinhão do que é nobre. E neste senti-
razão, em cada um dos que a possuem, do, como já dissemos, um homem deve
escolhe o que é melhor para si mesma, ser amigo de si mesmo, porém não no 1169b

e o homem bom obedece à razão. sentido em que a maiora o é.


210 ARISTÓTELES

9
Também se discute sobre se o primeira pessoa que apareça. Logo, o
homem feliz necessita ou não de ami- homem feliz necessita de amigos.
5 gos, Diz-se que os que são sumamente Que significa, então, a asserção da
felizes e auto-suficientes não precisam primeira escola, e em que sentido
deles, pois tais pessoas possuem tudo corresponde ela à verdade? Dar-se-á o
que é bom e, auto-suficientes como caso de que a maioria dos homens
são, dispensam o resto; enquanto um identifiquem os amigos com as pessoas
amigo, que é um outro "eu", provê o úteis? De tais amigos, é certo que o
que um homem não pode conseguir homem sumamente feliz não tem ne-
pelos seus próprios esforços. Daí as cessidade, visto já possuir todas as coi- 25
palavras: "quando a fortuna nos sorri, sas boas; e tampouco necessitará da-
para que precisamos de amigos? 1 2 9" queles com quem fazemos amizade por
Mas parece estranho, quando se causa do prazer que nos proporcio-
atribui tudo o que é bom ao homem nam, ou só precisará deles em grau
/0 feliz, recusar-lhe amigos, que são con- muito restrito (pois, sendo aprazível a
siderados os maiores exteriores. sua vida, ele dispensa prazeres adventí-
E, se é mais próprio de um amigo fazer cios); e, como não necessita de tais
bem a outrem do que ser beneficiado, e amigos, julga-se que não necessita de
se dispensar beneficios é característico amígos em absoluto.
do homem bom e da virtude, e é mais Mas isto, seguramente, não é verda-
nobre fazer bem a amigos do que a deiro, porquanto no começo 1 3 o disse-
estranhos, o homem bom necessitará mos que a felicidade é uma atividade; e
de pessoas a quem possa fazer bem. E a atividade, evidentemente, é algo que
por esta razão se pergunta se necessi- se faz e que não está presente desde o
tamos mais de amigos na prosperidade princípio, como uma coisa que nos
/5 ou na adversidade, subentendendo que pertencesse. Se (I) a felicidade consiste
não só um homem na adversidade pre- em viver e em ser ativo, e a atividade 30
cisa de quem lhe confira beneficios, do homem bom é virtuosa e aprazível
mas também os prósperos necessitam em si mesma, como dissemos no
ter a quem fazer bem. ço 131, e (2) o fato de uma nos
Não menos estranho seria fazer do pertencer é um dos atributos que a tor-
homem sumamente feliz um solitário, nam aprazível, e (3) podemos contem-
pois ninguém escolheria a posse do plar o nosso próximo melhor do que a
mundo inteiro sob a condição de viver nós mesmos e suas ações melhor do 35
SÓ, já que o homem é um ser político e que as nossas, e se as ações dos ho-
está em sua natureza o viver em socie- mens virtuosos que são seus amigos
dade. Por isso, mesmo o homem bom são aprazíveis aos bons (visto possuí- 11708
viverá em companhia de outros, visto rem ambos os atributos· que são natu-
possuir ele as coisas que são boas por ralmente aprazíveis) - se assim é, o
20 natureza. E, evidentemente, é melhor homem sumamente feliz necessitará de
passar os seus dias com amigos e ho- amigos dessa espécie, já que o seu pro-
mens bons do que com estranhos ou a
130 16, 1098b31 1099a7.(N.doT.)
129 Eurípides, Orestes. 667. (N. do T.) 131 1099 a 14,2I.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 211

pósito é contemplar ações dignas e contudo, aplicar este princípio a uma


ações que sejam suas, e as de um vida má e corrupta, nem a uma vida
homem bom que seja seu amigo pos- passada entre sofrimentos, pois uma
suem ambas essas qualidades. tal vida é indeterminada, tal qual
Além disso, pensa-se que o homem seus atributos.
feliz deve ter uma vida aprazível. Ora, A natureza da dor se tornará mais 25
se ele vivesse como um solitário a exis- clara nas páginas que seguem 133.
5 tência lhe seria dura, pois não é fácil a Mas, se a vida em si mesma é boa e
quem está sozinho desenvolver uma aprazível (o que parece ser verdadeiro
atividade contínua; mas com outros e pelo próprio fato de a desejarem todos
visando aos outros, isso é mais fácil. os homens, e particularmente os que
Em companhia de outras pessoas, por são bons e sumamente felizes: para tais
conseguinte, sua atividade será mais homens, a vida é desejável mais que
contínua e aprazível em si mesma, para quaisquer outros, e sua existência
como deve ser para o homem suma- é feliz no mais alto grau); e se quem vê
mente feliz; pois um homem bom, percebe que vê, e quem ouve percebe
enquanto bom, deleita-se com as açôes que ouve, e quem caminha percebe que
10 virtuosas e se entristece com as más, caminha, e em todas as outras ativida- 30
assim como o amante da música sente des há também alguma coisa que per-
prazer em ouvir belas melodias e se cebe que estamos agindo, de modo
aborrece com as más. A companhia que, se percebemos, percebemos que
dos bons também nos oferece um certo percebemos, e, se pensamos, percebe-
adestramento na virtude, como disse' mos que pensamos; e se perceber que
Teógnis antes de nós. percebemos ou pensamos é perceber
Se aprofundarmos um pouco mais a que existimos (pois que a existência foi
natureza das coisas, um amigo vir- defmida como percepção ou pensa-
tuoso parece ser naturalmente desejá- mento); e se perceber que vivemos é, 1170b
15 vel a um homem virtuoso. Com efeito, em si mesmo, uma das coisas aprazí-
o que é bom por natureza, como disse- veis (pois a vida é boa por natureza, e
mos 1 32 , é, para o homem virtuoso, é aprazível perceber em si mesmo a
bom e agradável em si mesmo. Ora, a presença do que é bom); e se a vida é
vida é defmida, quanto aos animais, desejável, e particularmente desejável
pelo poder de percepção, e quanto ao para os homens bons, porque para eles
homem, pelo poder de percepção ou de a existência é boa e aprazível (visto
pensamento; e um poder é definido que se comprazem em sentir presente
com referência à correspondente ativi- neles o que é bom em si mesmo); e, se 5
dade, que é a coisa essencial; logo, a o homem virtuoso é para o seu amigo
vida parece ser essencialmente o ato de tal como é para si próprio (porquanto
perceber ou de pensar. Ora, a vida faz o amigo é um outro "eu") - se tudo
parte das coisas que são boas e aprazí- isso é verdadeiro, assim como o seu
20 veis em si mesmas, visto que ela é próprio ser é desejável para cada
determinada, e o determinado é da homem, igualmente (ou quase igual-
natureza do bom; e o que é bom por mente) o é o de seu amigo. Ora, já
natureza também é bom para o homem vimos que o seu ser é desejável porque
virtuoso (por isso a vida parece aprazí- ele percebe a sua própria bondade, e
vel a todos os homens). Não devemos, uma tal percepção é agradável em si

132 1099 a 7-11,1113 a 25-33.(N. doT.) , 33 Livro X, caps. 1-5.(N. do T.)


212 ARISTÓTELES

10 mesma. Ele necessita, por conseguinte, mesmo para o homem sumamente feliz /5

ter consciência também da existência (visto que é bom e agradável por natu-
de seu amigo, e isso se verificará se reza), e o ser de seu amigo é mais ou
viverem em comum e compartilharem menos idêntico ao seu, um amigo será
suas discussões e pensamentos; pois uma das coisas desejáveis. Ora, o que é
isso é o que o convívio parece signifi- desejável para ele, é necessário que o
car no caso do homem, e não, como possua sob pena de ser deficiente a
para o gado, o pastar juntos no mesmo esse respeito. Para ser feliz o homem
lugar. necessita, portanto, de amigos virtuo-
Se, portanto, o ser é desejável em si sos.

10

20 Devemos, então, fazer o maior nú- Entretanto, o número apropriado não é


mero possível de amizades, ou, assim provavelmente uma quantidade fixa
como no tocante à hospitalidade é mas qualquer que se situe entre dois
considerado de bom alvitre "não ser pontos fixos. De modo que para os 1171 a
homem de muitos convidados, nem amigos também existe um número fixo
homem de nenhumts s", a regra se - talvez o maior número com que se
aplica também à amizade e um homem pode conviver (pois essa, segundo
não deve viver sem amigos nem ter um verificamos 1 3 5, é considerada como a
número excessivo deles? própria característica da amizade); e é
A máxima parece perfeitamente evidente que não se pode conviver com
aplicável às amizades que fazemos muitas pessoas e dividir-se entre elas.
25 com vistas na utilidade. porque retri- Acresce que essas pessoas também
buir os serviços de muita gente é coisa devem ser amigas umas das outras, se
trabalhosa e uma vida humana não têm de passar a vida juntas; e dificil- 5
basta para tanto. Logo, o excesso de mente tal condição será preenchida
amigos sobre o número suficiente para com um número elevado de indivíduos.
a nossa existência é supérfluo e consti- E tampouco é fácil compartilhar as
tui um obstáculo à vida nobre; de alegrias e os pesares íntimos de muita
forma que não necessitamos deles. Das gente, pois isso importaria em sentir-se
amizades feitas com vistas no prazer feliz com um amigo e em contristar-se
também bastam umas poucas, assim com outro, simultaneamente.
como um pouco de tempero na comida Parece, pois, que convém não procu-
é suficiente. rar ter o maior número possível de
30 Mas no que toca aos bons amigos, amigos, mas apenas tantos quantos
devemos tê-los tanto quanto possível, forem suficientes para os fins do conví-
ou há um limite para o seu número vio, pois ser um grande amigo de mui- /0

como há para o tamanho de uma cida- tas pessoas é coisa que se afigura
de? Não se pode fazer uma cidade com impossível. Por essa mesma razão, não
dez homens, e se estes forem cem mil, podemos amar várias pessoas ao
nem por isso ela será uma cidade. mesmo tempo. O ideal do amor é ser
que um excesso de amizade, e
13 4 Hesíodo, Trabalhos e Dias. 750, Rzach. (N. do
T.) 135 1157b, 1158a3, IO.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 213

isso só se pode sentir por uma pessoa, ninguém, salvo dentro dos limites
donde se segue que também só pode- apropriados a concidàdãos; e tais pes-
mos sentir uma grande amizade por soas são também chamadas obsequio-
poucas pessoas. sas. Dentro dos limites apropriados a
Isto parece encontrar confirmação concidadãos, em verdade, é possível
na prática, pois são muito raros os- ser amigo de muitos sem contudo ser
casos de um grande número de pessoas obsequioso, mas um homem genuina-
que sejam amigas umas das outras no mente bom. Por outro lado, não se
ts sentido da amizade-camaradagem, e as pode manter com muitas pessoas a
amizades famosas dessa espécie são espécie de amizade que se 'baseia na
sempre entre duas pessoas. Os que têm virtude e no caráter de nossos amigos,
muitos amigos e mantêm intimidade e devemos dar-nos por felizes se encon-
com eles passam por não ser amigos de trarmos uns poucos dessa espécie. 20

11

Necessitamos mais de amigos na for, o que descrevemos parece real-


prosperidade ou na adversidade? mente ocorrer.
Tanto numa como na outra situação Mas a presença dos amigos parece
eles são procurados, porque, se na encerrar uma mistura de vários.fatores. 35
adversidade os homens precisam de O simples fato de vê-los é agradável,
ajuda, na prosperidade necessitam pes- especialmente se nos encontramos
soas com quem conviver e às quais numa quadra adversa, e torna-se uma 1171 b
fazer objetos de sua beneficência, já salvaguarda contra o pesar (pois um
que desejam fazer bem a outrem. amigo tende a confortar-nos tanto pela
A amizade é, pois, mais necessária sua presença como pelas suas pala-
na adversidade, e por esse motivo são vras, se é uma pessoa de tato, visto
os amigos úteis que buscamos em tal conhecer o nosso caráter e as coisas 5
25 caso; na prosperidade, pelo contrário,
ela é mais nobre, e então buscamos que nos agradam ou nos contristam).
também homens bons para serem nos- Mas vê-los sofrer com nossos infortú-
sos amigos, visto que é mais desejável nios é doloroso, pois todos evitam cau-
fazer bem a eles e com eles conviver. sar dor a seus amigos. Por esse motivo
Com efeito, a própria presença dos os homens de natureza varonil abs-
amigos é aprazível tanto na boa como têm-se de fazer seus amigos sofrer com
na má fortuna, já que nossa dor é eles e, a não ser que tenha uma
menor quando eles a compartilham extraordinária insensibilidade à dor,
30 conosco. E assim, poder-se-ia pergun- um tal homem não pode suportar a dor
tar se eles tomam sobre os seus ombros que causa a seus amigos, e em geral
uma parte do nosso fardo, ou se é a não admite companheiros de aflição /0

presença dos amigos, que tem de porque ele próprio não é dado a afli-
aprazível, e o pensamento de eles se gir-se. Mas as mulheres e os homens
condoerem conosco que aligeiram a mulheris gostam de ter pessoas condoí-
nossa dor. Quer os motivos sejam das ao seu redor e amam-nas como
esses, quer algum outro, é uma questão amigos e companheiros de pesar. Con-
que podemos pôr de lado; seja como tudo, é evidente que em todas as coisas
214 ARISTÓTELES

deveríamos procurar imitar o melhor Inversamente, é decoroso acorrer 20


tipo de pessoa. sem ser convidado em auxílio dos que
Por outro lado, a presença de ami- foram colhidos pela adversidade (pois
gos na prosperidade tanto implica um é característico de um amigo prestar
modo aprazível de passar o tempo serviços, e especialmente aos que deles
como o prazer de vê-los felizes com a necessitam e que não os solicitaram;
nossa boa fortuna. Segundo parece, uma tal ação é mais nobre e mais apra-
pois, deveríamos convocar sem demo- zível a ambos); mas quando nossos
ra os nossos amigos a compartilhar a amigos são prósperos não devemos
nossa ventura (pois as pessoas de carâ- hesitar em compartilhar de suas ativi-
ter benfazejo são nobres), mas hesitar dades (porquanto eles precisam de
em chamá-los nos dias de infortúnio, amigos também para isso), nem nos
pois que de nossos males devemos apressurarmos quando se trata de ser
dar-lhes uma parte tão pequena quanto beneficiados por eles: porque não é
possível - donde a frase: "já basta o· nobre mostrar-se ávido de receber
meu infortúnio Acima de tudo, beneficios. Ainda assim, convém evitar 25
devemos chamar nossos amigos quan- a reputação de desmancha-prazeres a
do eles podem, sem grande trabalho, que nos exporemos se os repelirmos,
prestar-nos um grande serviço. pois isso algumas vezes acontece.
Em conclusão, a presença de amigos
parece ser desejável em todas as
'3. Fragmentos Anónimos, 76, Nauck. (N. do T.) circunstâncias.

12

Não se segue daí que, assim como que, para eles, dá valor à vida, disso
para os amantes a vista do ser amado é mesmo desejam ocupar-se em compa-
30 a coisa que maior deleite lhes causa, e nhia de seus amigos. Por ISSO alguns
preferem esse sentido aos outros por- bebem juntos, outros jogam dados jun-
que é dele que mais depende tanto a tos, outros associam-se nos exercícios
existência como a origem do amor, atléticos, na caça ou no estudo da filo-
também para os amigos a mais desejá- sofia, cada classe de homens passando 5
vel de todas as coisas é o convívio? os dias entregue, em mútua compa-
Porque a amizade é uma parceria, e tal nhia, às ocupações que mais ama na
é um homem para si mesmo, tal é para vida; porque, visto como desejam viver
o seu amigo; ora, para ele a cons- com seus amigos, fazem e comparti-
ciência do seu ser é desejável, e tam- lham aquelas coisas Que lhes dão o
bém o é, por conseguinte, a cons- sentimento de viverem juntos. E assim
35 ciência do ser de seu amigo; e essa a amizade dos maus mostra ser uma
consciência toma-se ativa quando eles péssima coisa (porque, em razão da 10
1172. convivem. Por isso, é natural que bus- sua instabilidade, coligam-se em ocu-
quem o convívio. pações más, além de piorar cada um
E daquilo que a existência significa pelo fato de se tomar semelhante aos
para cada classe de homens, daquilo outros), enquanto a amizade dos ho-
ÉTICA A NICÕMACO - 215

mens bons é boa porque cresce com o "(aprender) ações nobres de homens
companheirismo. E pensa-se que eles nobrest ?"
se tornam também melhores graças às Basta, pois, quanto à amizade. 15
suas atividades e à boa influência que Nossa próxima tarefa será discutir o
uns têm sobre os outros; pois cada um prazer.
recebe dos demais o modelo das carac-
terísticas que aprova - e daí a frase: 13 7 Te6gnis, 35. (N. do T.)
LIVRO X
219

Depois destes assuntos devemos tal- quanto a maioria das pessoas (pensam
vez passar à discussão do prazer. Com eles) se inclinam para o prazer e são
efeito, julga-se que ele está intima- suas escravas, e por isso deveriam ser
mente relacionado com a nossa natu- conduzidas na direção contrária, a fim
20 reza humana, e por essa razão, ao edu- de alcançarem o estado intermediário.
car os jovens, nós os governamos com Mas isso, seguramente, não é corre-
os lemes do prazer e da dor. E também to. Com efeito, os argumentos em
se pensa que comprazer-se com as coi- torno de sentimentos e ações merecem
sas apropriadas e detestar as que se menos confiança do que os fatos e
deve tem a maior influência possível assim quando entram em conflito com
sobre o caráter virtuoso. Porque essas os fatos da percepção, eles são despre-
coisas nos acompanham durante a zados, ao mesmo tempo que desacre-
vida inteira, com um peso e um poder ditam a própria verdade: se um homem
próprios tanto no que toca à virtude que difama o prazer é surpreendido
25 como à vida feliz, já que os homens uma vez a buscá-lo, isso parece provar
escolhem o que é agradável e evitam o que ele merece ser preferido a todas as
que é doloroso; e são elas, segundo coisas, porque a maioria' das pessoas
parece, as que menos conviria omitir não sabe fazer distinções.
em nossa investigação, especialmente Os argumentos verdadeiros afigu-
por serem objeto de muitas controvêr-' ram-se, pois, extremamente úteis, não
sias. só para a ciência mas para a própria
Alguns, com efeito, dizem que o pra- vida; porque, como se harmonizam
zer é o bem, enquanto outros afirmam, com os fatos, nós lhes damos crédito, e
pelo contrário, que ele é absolutamente destarte estimulam os que os com-
mau - uns, sem dúvida, na convicção preendem a viver de acordo com eles.
de que essa é a verdade, e outros jul- Quanto a essas questões, basta. Pas-
gando que terá melhor efeito em nossa semos agora em revista as opiniões que
vida denunciar o prazer como coisa têm sido expressas a respeito do
30 má, ainda que ele não o seja. Por- prazer.

/0 Eudoxo pensava que o prazer é o aquilo para que se dirige a escolha é


bem porque via todos os seres, tanto excelente, e o mais visado pela escolha
racionais como irracionais, tender é o maior dos bens. E assim, o fato de
para ele, e porque em todas as coisas todas as coisas se moverem para o
220 ARISTÓTELES

mesmo objeto indicava que para todas bedoria do que sem ela, e que, se a mis- 30
era esse o maior dos bens (porque cada tura é melhor, o prazer não é o bem;
coisa, argumentava Eudoxo, encontra porque o bem não pode tomar-se mais
o seu bem próprio, da mesma forma desejável pela adição do que quer que
que encontra o seu alimento adequa- seja. Ora, é claro que não só o prazer,
/5 do); e aquilo que é bom para todas as mas nenhuma outra Coisa pode ser o
coisas e a que todas elas visam é o bem bem se a adição de uma das coisas que
por excelência. são boas em si mesmas a toma mais
Seus argumentos foram aceitos não desejável. Que é, então, que satisfaz
tanto por si mesmos como pela exce- este critério, e em que, ao mesmo
lência do seu caráter. Passava por ser tempo, podemos participar? É alguma
um homem de notável autodomínio, e coisa dessa espécie que estamos procu-
por isso se julgava que ele não afir- rando.
masse tais coisas como amigo do pra- Há quem objete a isso dizendo que o 35

zer, mas porque essa era a verdade. fim visado por todas as coisas não é
Acreditava Eudoxo um estudo do necessariamente bom, mas podemos
estar certos de que tais pessoas não
contrário do prazer não conduzia com
fazem mais do que disparatar. Por-
menos evidência à mesma conclusão:
quanto nós dizemos que aquilo que
assim como a dor é em si mesma um
todos pensam a verdade; e o homem 11738
objeto de aversão para todas as coisas,
que atacar essa crença não terá outra
o seu contrário deve ser um objeto de coisa mais digna de crédito para sus-
20 preferência. Ora, o mais genuíno obje- tentar em lugar dela. Se fossem criatu-
to de preferência é aquilo que escolhe- ras irracionais que desejassem as coi-
mos por si mesmo e não por causa de sas de que falamos, talvez houvesse
outra coisa ou com vistas nela; e o pra- alguma verdade no que eles dizem;
zer é reconhecidamente dessa nature- mas, se seres inteligentes também as
za, pois que ninguém indaga com que desejam, que sentido pode ter tal opi-
fim o sente, implicando destarte que nião? Sem embargo, tàlvez mesmo nas
ele é em si mesmo um objeto de esco- criaturas inferiores exista algum bem
lha. Além disso, Eudoxo argumentava natural mais forte do que elas e que as
que o prazer, quando acrescentado a oriente para o bem que lhes é próprio.
um bem qualquer, como, por exemplo, Tampouco parece correto o argu- 5
à ação justa ou temperante, o toma mento sobre o contrário do prazer.
25 mais digno de escolha, e que o bem só Dizem que, se a dor é um mal, não se
pode ser acrescido por si mesmo. segue daí que o prazer seja um bem;
Este argumento parece mostrar que porque um mal se opõe a outro e
ele é um dos bens, mas que não o é ambos ao mesmo tempo se opõem ao
mais do que um outro qualquer; pois estado neutro. Ora, isto é bastante
qualquer bem é mais digno de escolha certo, mas não se aplica às coisas de
quando acompanhado de um outro do que estamos tratando. Porque, se tanto
que quando sozinho. E é mesmo por o prazer como a dor pertencessem à
um argumento desta espécie que Pla- classe dos males, ambos deviam ser /0
tão 1 38 demonstra não ser o bem o pra- objetos de aversão, ao passo que, se
zer. Diz ele que a vida aprazível é mais pertencessem à classe das coisas neu-
desejável quando de sa- tras, nenhum seria objeto de aversão
ou o seriam em igual grau. Mas
138 Filebo. 60. (N. do T.) a verdade evidente é que os homens
ÉTICA A NICÔMACO - X 221

evitam uma como um mal e escolhem portanto, a natureza da oposição entre


o outro como um bem. Essa deve ser, os dois.

3
E, por outro lado, se o prazer não é movimento e geração. Mas nem
uma qualidade, também não se conclui mesmo isso parece ser verdade. Com
daí que ele não seja um bem; porque efeito, pensa-se que a rapidez e a lenti-
tampouco são qualidades a atividade dão são características de todo e qual-
/5 virtuosa, nem a felicidade. Dizem, no quer movimento, e se um movimento
entanto, que o bem é determinado, como o dos céus não tem rapidez nem
enquanto o prazer é indeterminado, lentidão em si mesmo, tem-nas em rela-
visto admitir graus. Ora, se é pela ção a outra coisa; mas do prazer nada
observação do sentimento de prazer disso é verdadeiro. Porquanto, se é
que pensam assim, o mesmo será ver- certo que podemos comprazer-nos de-
dadeiro da justiça e das outras virtu- pressa assim como podemos encoleri-
des, no tocante às quais dizemos sem zar-nos depressa, não é possível sentir 1173 b

hesitar que as pessoas de um certo prazer depressa, embora se possa


caráter o são mais ou menos e proce- andar, crescer, etc., rapidamente. Em
dem mais ou menos de acordo com outras palavras: podemos passar de-
20 essas virtudes; porquanto uma pessoa pressa ou lentamente a um estado de
pode ser mais ou menos corajosa, e prazer, porém não mostrar rapida-
também é possível agir de maneira mente a atividade do prazer, isto é,
mais ou menos justa ou temperante. sentir prazer.
Mas, se o juízo desses pensadores se Ainda mais: em que sentido pode ele
baseia nos diversos prazeres, segura- ser uma geração? Não se crê que uma
mente eles não estão apontando a coisa qualquer possa provir de outra
causa verdadeira, se de fato alguns coisa qualquer, mas que uma coisa se 5
prazeres são estremes e outros, mescla- encontra como que dissolvida naquela
dos. E, por outro lado, se a saúde ad- de que provém; e a dor seria a destrui-
25 mite graus sem ser indeterminada, por ção dessa coisa cuja geração seria o
que não sucederia o mesmo com o pra- prazer.
zer? A mesma proporção não é encon- Dizem, também' 40, que a dor é a
trada em todas as coisas, nem uma ausência daquilo que é conforme à
determinada proporção sempre na natureza, e que o prazer é o preenchi-
mesma coisa: pode ela afrouxar e, sem mento dessa Mas tais sensações
embargo, persistir até um certo ponto; são corporais. Se, pois, o prazer é o
e pode também diferir em grau. Por preenchimento daquilo que está de
conseguinte, o caso do prazer também acordo com a natureza, o que sente
pode ser dessa espécie. prazer será aquilo em que ocorre o
Por outro lado, eles alegam' 39 que preenchimento da falta, a saber, o
o bem é perfeito, ao passo que o movi- corpo. Mas não se acredita que seja /0
30 mento e as gerações são imperfeitos, e assim; portanto, o preenchimento não
procuram mostrar que o prazer é um é prazer, embora possamos sentir pra-

139 Platão, Füebo, 53-54. (N. do T.) 140 Ibid.• 31-32,42.(N.doT.)


222 ARISTÓTELES

zer quando ele ocorre, assim como sentir o prazer do homem justo sem ser
sentiríamos dor ao ser operados. justo, nem os prazeres do músico sem 30
Esta doutrina parece basear-se nas ser músico, e assim por diante.
dores e prazeres associados à nutrição, E também o fato de um amigo ser
e no fato de que as pessoas que previa- diferente de um adulador parece mos-
mente sofreram míngua de alimentos e trar com toda a evidência que o prazer
15 esta lhes foi dolorosa sentem prazer ao não é um bem ou que os prazeres dife-
ser preenchida a falta. Mas isso não rem em espécie; porque se acredita que
acontece com todos os prazeres: os um busca o nosso convívio com a mira
prazeres do aprender e, entre os que no bem e o outro visando ao nosso
nos proporcionam os sentidos, os do prazer, e um é censurado pela sua con-
olfato, e também muitos sons e sensa- duta, enquanto o outro é louvado,
ções visuais, além das recordações e partindo-se do princípio de que os dois
das esperanças, não pressupõem dor. buscam o nosso convívio com finali-
De onde, pois, se gerariam estes? Não dades diferentes. Além disso, ninguém 1174 a
havia, no seu caso, nenhuma falta a preferiria viver a vida inteira com o
preencher. intelecto de uma criança, por mais pra-
Em resposta aos que argumentam zer que lhe proporcionassem as coisas
com os prazeres vergonhosos, pode- que agradam às crianças, nem compra-
mos dizer que esses não são agradá- zer-se na prática de algum ato profun-
veis. Pelo fato de certas coisas agrada- damente vergonhoso, ainda que jamais
rem a pessoas de constituição viciosa, tivesse de sofrer em conseqüência.
não devemos supor que elas também Por outro lado, há muitas coisas que
sejam agradáveis a outros, assim como devemos desejar com todas as veras, 5
não raciocinamos dessa forma a res- ainda que não nos tragam nenhum pra-
peito das coisas que são saudáveis, zer, como a vista, a memória, a ciên-
doces ou amargas para os doentes, cia, a posse das virtudes. Não faz dife-
nem atribuímos a brancura às que rença que essas coisas sejam
parecem brancas aos que sofrem dos necessariamente acompanhadas de
25 olhos. Ou, então, poder-se-ia responder prazer: deveríamos escolhê-las mesmo
que os prazeres são desejáveis, porém que nenhum prazer resultasse daí.
não os provindos dessas fontes, assim Parece claro, portanto, que nem o
como a riqueza é desejável, porém não prazer é o bem, nem todo prazer é
como recompensa da traição, e como a desejável, e que alguns prazeres são
saúde não o é à custa de comer toda e realmente desejáveis por si mesmos, 10
qualquer coisa. Ou talvez os prazeres diferindo eles dos outros em espécie ou
difiram em espécie, pois os que provêm quanto às suas fontes. Quanto às opi-
de fontes nobres são diferentes daque- niões correntes a respeito do prazer e
les cujas fontes são vis, e não se pode da dor, é suficiente o que dissemos.

Ver-se-à com mais clareza o que A sensação visual parece ser com- 15
seja o prazer, ou que espécie de coisa pleta em todos os momentos, pois não
seja, se tomarmos a examinar a ques- lhê falta nada que, surgindo posterior-
tão partindo do começo. mente, venha completar-lhe a forma; e
ÉTICA A NICÔMACO X 223

o prazer também parece ser dessa lugar desta é diferente do lugar daque-
natureza. Porque ele é um todo, e ja- la.
mais se encontra um prazer cuja forma Em outra obra 1 41 discutimos o
seja completada pelo seu prolonga- movimento com precisão, mas parece
mento. Pela mesma razão, não é ele que ele não é completo em todo e qual-
um movimento, pois todo movimento quer momento, e os numerosos movi-
(o de construir, por exemplo) requer mentos são incompletos e diferentes
tempo, faz-se com vistas num fim, e em espécie, já que o "donde" e o "para 5

fica completo quando realizou a coisa onde" dão a cada um a sua forma pró-
20 visada. Só fica completo, por conse- pria. Mas quanto ao prazer, sua forma
guinte, quando se encara o tempo na é completa em todo e qualquer mo-
sua totalidade ou no momento final. mento. É evidente, pois, que o prazer e
Em suas partes e durante o tempo que o movimento diferem um do outro, e o
estas ocupam, todos os movimentos prazer deve ser uma das coisas que são
são incompletos e diferem em espécie inteiras e completas. Isso também é
do movimento inteiro e uns dos outros. indicado pelo fato de não ser possível
Com efeito, o ajustamento das pedras mover-se senão dentro do tempo, mas
umas às outras difere da caneladura da sentir prazer, sim; porquanto aquilo
coluna, e ambas as coisas diferem da que ocorre num momento é um todo.
construção do templo. E a construção Estas considerações deixam bem
25 é completa (pois nada lhe falta com claro, pois, que não têm razão os pen-
relação ao fim que se tinha em vista), sadores segundo os quais há um movi-
mento ou uma geração de prazer, pois 10
mas o preparo da base e do tríglifo é
que movimento e geração não podem
incompleto, por ser a produção de uma
ser atribuídos a todas as coisas, mas
parte apenas. Diferem eles, portanto,
apenas às que são divisíveis e não
em espécie, e em nenhum momento
constituem "todos". Não há geração
dado é possível encontrar um movi-
da sensação visual, nem de um ponto,
mento completo quanto à forma, mas
de uma unidade, nem qualquer
só no tempo encarado em sua totali- destas coisas é um movimento ou uma
dade.
geração. Logo, tampouco há movi-
O mesmo se pode dizer no tocante mento ou geração no prazer, visto que
ao andar e a todos os outros movimen- ele é um todo.
tos. Porque, se a locomoção é um Já que cada sentido é ativo em rela- 15
30 movimento de um lugar para outro, ção ao seu objeto, e um sentido em
também nela existem diferenças de condições de higidez age de maneira
espécie voar, caminhar, saltar, etc. perfeita em relação aos mais belos den-
E não é só isso, senão que no próprio tre os seus objetos (pois o ideal da ati-
caminhar existem diferenças de espé- vidade perfeita parece ser desta nature-
cie; porque o "donde" e o "para onde" za, e tanto faz dizer que ela própria é
não são os mesmos na pista de corri- ativa como o órgão em que reside),
das considerada como um todo e em segue-se que, no tocante a cada senti-
cada uma de suas partes, nem nas do, a melhor atividade é a do órgão em
1174 b diversas partes; e tampouco é a mesma melhores condições com relação aos
coisa percorrer esta linha e aquela, mais belos de seus objetos.
pois o que se percorre não é apenas E essa atividade será a mais com- 20
uma linha, mas uma linha que se
encontra em determinado lugar, e o 141 Física. VI-VIII. (N. do T.)
224 ARISTÓTELES

pleta e a mais aprazível, porque, exis- Como explicar, então, que ninguém
tindo embora prazer para cada sentido, esteja sempre contente? Dar-se-à o
e não menos para o pensamento e a caso de que nos enfastiemos? A verda-
contemplação, o mais completo é o de é que todos os seres humanos são
mais aprazível, e o de um órgão em incapazes de uma atividade contínua, e 5
boas condições com relação aos mais essa é a razão de não ser contínuo tam-
nobres de seus objetos é o mais com- bém o prazer, pois ele acompanha a
pleto; e o prazer completa a atividade. atividade. Certas coisas nos deleitam
Entretanto, ele não a completa da quando são novas, porém menos quan-
mesma maneira que a combinação de do deixam de sê-lo, e por esse mesmo
25 .objeto e sentido, ambos bons, assim motivo: a princípio a mente é estimu-
como a saúde e o médico não são na lada e desenvolve intensa atividade em
mesma acepção as causas de um relação a elas, como fazemos com o
homem ser sadio. evidente que o sentido da vista quando olhamos algu-
prazer pode acompanhar qualquer sen- ma coisa com atenção. Mas depois a
tido, pois falamos de espetáculos e de nossa atividade se relaxa, e por isso
sons como sendo agradáveis. Não também o prazer é embotado.
menos evidente é que ele é experimen- Dir-se-ia que todos os homens dese- 10
tado acima de tudo quando o sentido jam o prazer porque todos aspiram à
se encontra nas melhores condições e vida. A vida é uma atividade, e cada
em atividade com referência a um um é ativo em relação às coisas e com
jeto apropriado; quando tanto o perci- as faculdades que mais ama: por exem-
piente como o objeto são os melhores plo, o músico é ativo com o ouvido em
30 possíveis, haverá sempre prazer, por referência às melodias, o estudioso
estarem presentes o agente e o paciente com o intelecto em referência a ques-
requeridos.) O prazer completa a ativi- tões teóricas, e da mesma forma nos
dade, não como o faz o estado perma- outros casos Ora, o prazer completa 15
nente que lhe corresponde, pela ima- as atividades, e portanto a vida que
nência, mas como um fim que eles desejam. É muito justo, pois, que
sobrevém como o viço da juventude aspirem também ao prazer, visto que
para os que se encontram na flor da para cada um este completa a vida que
idade. Na medida, pois, em que tanto o lhe é desejável. Mas quanto a saber se
objeto inteligível ou sensível como a escolhemos a vida com vistas no pra-
faculdade discriminadora ou contem- zer ou o prazer com vistas na vida, é
plativa forem tais como convém, a ati- uma questão que podemos deixar de
vidade será acompanhada de prazer; parte por ora. Com efeito, os pare-
11758 pois quando o fator ativo e o passivo cem estar intimamente ligados entre si
se mantêm inalterados e guardam a e não admitir separação, já que sem 20

mesma relação um para com outro, o atividade não surge o prazer, e cada
mesmo resultado segue-se natural- atividade é completada pelo prazer que
mente. a acompanha.

Por esta razão, os prazeres as coisas que diferem em espécie são,


parecem diferir em espécie. Porquanto pensamos nós, completadas por coisas
ÉTICA A NICÔMACO - X 225

diferentes (vemos que isto é verdadeiro simultaneamente; a atividade mais


tanto dos objetos naturais como das aprazível desaloja a outra, e isso tanto
coisas criadas pela arte: animais, árvo- mais quanto mais aprazível for, de tal .
res, uma pintura, uma estátua, uma modo que chegamos a abandonar a
casa, um utensílio); e pensamos, da outra. É por isso que quando nos delei- 10
mesma forma, que atividades diferen- tamos extraordinariamente com algu-
tes em espécie são completadas por ma coisa não nos dedicamos a nada
coisas diferentes em espécie. Ora, as mais, e fazemos uma coisa só quando
atividades do pensamento diferem em a outra não nos causa grande prazer:
espécie das dos sentidos, e dentro de por exemplo, no teatro as pessoas que
cada uma dessas classes existem, por gostam de doces os comem em maior
sua vez, diferenças específicas; logo, os quantidade quando os atores são me-
prazeres que as completam também díocres. Ora, como as atividades se
diferem do mesmo modo entre si. tomam mais precisas, mais duradou-
Isto é confirmado pelo fato de estar ras e melhores por efeito do prazer que
cada prazer estreitamente ligado à ati- lhes é próprio e são prejudicadas pelos
30 vidade que ele completa. Com efeito, prazeres estranhos, é evidente que 15
cada atividade é intensificada pelo pra- essas duas espécies de prazer são bem
zer que lhe é próprio, visto que cada distintas uma da outra. Porquanto os
classe de coisas é mais bem julgada e prazeres estranhos têm mais ou menos
levada à precisão por aqueles que se o mesmo efeito que as dores próprias,
entregam com prazer à correspondente visto que estas também destroem as
atividade: exemplo, são os que se atividades correspondentes: por exem-
comprazem no raciocínio geométrico plo, se um homem acha desagradável
que se tomam geômetras e com- ou penoso escrever ou fazer contas, ele
preendem melhor os diversos teore- não escreve nem faz contas, porque a
mas, e analogamente os que gostam de atividade lhe é penosa.
35 música, de arquitetura, etc., fazem pro- Destarte, uma atividade sofre efeitos
gressos nos respectivos campos porque contrários por parte de seus prazeres e
se comprazem neles. E assim os praze- dores próprios, isto é, daqueles que
res intensificam as atividades, e o que sobrevêm em virtude de sua própria
intensifica uma coisa lhe é congênere, natureza. E dissemos que os prazeres
mas coisas diferentes em espécie têm estranhos têm mais ou menos o mesmo
propriedades diferentes em espécie. efeito que a dor: eles também destroem
1175 b Mais evidente se toma isto quando a atividade, só que não no mesmo
consideramos que as atividades são grau.
impedidas pelos prazeres provenientes Ora, assim como as atividades dife-
de outras fontes. Com efeito, as pes- rem com respeito à bondade ou malda-
soas que gostam de tocar flauta são de, e umas são dignas de escolha, ou-
incapazes de acompanhar um argu- tras devem ser evitadas e outras ainda
mento quando ouvem um flautista, são neutras, o mesmo sucede com os
porquanto o som desse instrumento prazeres, pois cada atividade tem o seu
lhes dá mais prazer do que a outra ati- prazer próprio. O prazer próprio a
5 vidade; e assim, o prazer que acompa- uma atividade digna é bom, e o próprio
nha a música anula a atividade racioci- a uma atividadeindigna é mau, assim
nativa. Isso acontece da mesma forma como os apetites que têm objetos no-
em todos os outros casos, quando esta- bres são louváveis e os que têm objetos
mos ativos em relação a duas coisas vis são culpáveis; Mas os prazeres que 30
226

acompanham as atividades são mais grau, pelo menos no caso dos homens;
próprios destas do que os desejos, pois as mesmas coisas deleitam algumas
os segundos estão separados delas pessoas e causam dor a outras, e são
tanto pelo tempo como pela natureza, penosas e odiosas a estes, mas agradá-
enquanto os primeiros estão intima- veis e estimáveis àqueles. Isso também
mente unidos às atividades e é tão difí- sucede com as coisas doces: as mes-
cil distinguir os primeiros das segun- mas coisas não parecem doces a um
das que se poderia até discutir a febricitante e a um homem com saúde
hipótese de ser a atividade a mesma - nem quentes a um homem fraco e a
coisa que o prazer. (No entanto, o pra- um homem robusto. O mesmo se dá
zer não parece ser o pensamento ou a em outros casos. Mas em todas as coi- is
35 percepção. Isso seria estranho; mas, sas, o que parece a um homem bom é
como nunca andam um sem o outro, considerado como sendo realmente tal.
alguns julgam que sejam a mesma Se isto é correto como se afigura ser, e
coisa.) a virtude e o homem bom como tais
Assim, pois, como diferem entre si são a medida de todas as coisas, serão
as atividades, também diferem os pra- verdadeiros prazeres os que lhe parece-
11768 zeres correspondentes. Ora, a vista é rem tais, e verdadeiramente agradáveis
superior ao tato em pureza, e o ouvido as coisas em que ele se deleitar. Se as
e o olfato ao gosto; portanto, os praze- coisas que ele acha enfadonhas parecem
res correspondentes também são supe- agradáveis a outros, não há nada de
riores, e os do pensamento estão acima surpreendente nisso, pois os homens 20
de todos estes. E dentro de cada uma podem ser pervertidos e estragados de
das duas espécies alguns são superio- muitos modos; e tais coisas não são
res a outros. realmente agradáveis, mas só o são
Pensa-se que cada animal tem um para essas pessoas e outras nas mes-
prazer próprio, assim como tem. uma mas condições. Das que reconhecida-
função própria, a saber, o que corres- mente são vergonhosas, evidentemente
5 ponde à sua atividade. Isto se toma não se deveria dizer que são prazeres,
evidente quando observamos as espé- salvo para um gosto pervertido; mas
cies uma por uma. C ão, e das que são consideradas boas, que
homem têm prazeres diferentes e, espécie de prazer ou que prazer parti-
como diz Heráclito, "os asnos preferi- cular deveríamos dizer que são pro-
riam as varreduras ao ouro' 42"; por- prios do homem? resposta não é 25
que o alimento é mais agradável do clara pela consideração das correspon-
que o ouro para eles. dentes atividades? O prazeres seguem
Destarte, os prazeres dos animais a estas. Quer, pois, o homem perfeito e
diferentes em espécie também diferem supramente feliz tenha uma, quer mais
especificamente, e é de supor que os de atividades, diremos que os prazeres
uma determinada espécie não difiram que completam essas atividades são,
10 entre si. Mas variam em não pequeno strieto sensu, os prazeres próprios do
homem; e o resto só o será de maneira
secundária e parcial, como o são as
9, Diels. (N. do T.) atividades.
ÉTICA A NICÔMACO - X 227

6
Agora que terminamos de falar das materiais. Mas a maioria das pessoas
virtudes, das formas de amizade e das que consideramos felizes buscam refú-
variedades de prazer, resta discutir em gio nesses passatempos, e por isso as
linhas gerais a natureza da felicidade, pessoas hábeis em proporcioná-los são
visto afirmarmos que ela é o fim da altamente estimadas nas cortes dos
natureza humana. Nossa discussão tiranos. Tomam-se agradáveis compa- 15
será mais concisa se começarmos por nheiros nas ocupações favoritas do
sumariar o que dissemos anterior- tirano, e essa é a espécie de homem que
mente. ele precisa ter ao seu lado.
Dissemos 1 43, pois, que ela não é Ora, acredita-se que essas coisas
uma disposição; porque, se o fosse, participem da natureza da felicidade
poderia pertencer a quem passasse a porque os déspotas entretêm com elas
vida inteira dormindo e vivesse como os seus lazeres, mas talvez essa espécie,
um vegetal, ou, também, a quem de gente não prove nada; porque a vir-
1176 b sofresse os maiores infortúnios. Se tude e a razão, das quais decorrem as
estas conseqüências são inaceitáveis e boas atividades, não dependem da
devemos antes classificar a felicidade posição despótica; nem os prazeres do zo
como uma atividade, como dissemos corpo deveriam ser considerados mais
atrás 1 4 4, e se atividades são desejáveis porque neles se refugiam
necessárias e desejáveis com vistas em tais pessoas, que nunca experimen-
outra coisa, enquanto outras o são em taram um prazer puro e generoso; e os
si mesmas, é evidente que a felicidade meninos também julgam que as coisas
deve ser incluída entre as desejáveis em que eles próprios prezam são as melho-
si mesmas, e não entre as o são res. É de crer, pois, que assim como
5 com vistas em algo mais. Porque à feli- diferentes coisas parecem valiosas aos
cidade nada falta: ela é auto-suficiente. meninos e aos homens feitos, também
Ora, são desejáveis em si mesmas se dê o mesmo com os homens maus e
aquelas atividades em que nada mais os bons. Ora, como muitas vezes
se procura além da própria atividade. sustentamos 1 4 5, realmente valiosas e
E pensa-se que as ações virtuosas são aprazíveis são aquelas coisas que são
desta natureza, porquanto praticar tais para o homem bom; e para cada
atos nobres e bons é algo desejável em homem a atividade que concorda com
si mesmo. a sua disposição de caráter é a mais
Também se acredita que as recrea- desejável, de modo que para o homem
10 ções agradáveis sejam dessa natureza. bom são essas as que concordam com
Não as escolhemos tendo em vista a virtude.
outra coisa, uma vez que antes somos A felicidade não reside, por conse-
prejudicados do que beneficiados por guinte, na recreação; e seria mesmo
elas: tais atividades nos levam a negli- estranho que a recreação fosse o fim, e
genciar nossos corpos e nossos bens um homem devesse passar trabalhos e
suportar agruras durante a vida inteira
1 1095 b 31 - 1096 a 2, 1098 b 31 - 1099 a 7.
(N.doT.) '45 1099 a 13, IIl3 a 22-33, 1166 a 12, Il70 a
1098a5-7.(N.doT.) 14-16, Il76 a 15-22.(N. do T.)
228 ARISTÓTELES

30 simplesmente para divertir-se. Porque, do que as risíveis e as relacionadas


numa palavra, tudo que escolhemos, com o divertimento, e que a atividade
escolhemo-lo com a mira em outra da melhor entre duas coisas - quer se
coisa - salvo a felicidade, que é um trate de dois elementos do nosso ser,
fim em si. Ora, esforçar-se e trabalhar quer de duas pessoas - é a mais séria.
com vistas na recreação parece coisa Mas a atividade na melhor é ipso facto 5
tola e absolutamente infantil. Mas superior e participa mais da natureza
divertir-nos a fim de poder esforçar- da felicidade. Além do que, uma pes-
nos, como se expressa Anacársis, pare- soa qualquer - até um escravo -
ce certo; porque o divertimento é uma pode fruir os prazeres do corpo não
espécie de relaxação, e necessitamos de menos que o melhor dos homens, mas
relaxação porque não podemos traba- ninguém considera o escravo partícipe
35 lhar constantemente. A relaxação, por da felicidade - a não ser que também
conseguinte, não é um fim, pois nós a o considere partícipe da vida humana.
cultivamos com vistas na atividade. Com efeito, a felicidade não reside em 10
1171 8 Pensa-se que a vida feliz é virtuosa. tais ocupações, mas, como já disse-
Ora, uma vida virtuosa exige esforço e mos 1 4 6, nas atividades virtuosas.
não consiste em divertimento. E dize-
mos que as coisas sérias são melhores 1 4' 1098 a 16, 1176 a 35 - 1176 b 9. (N. do T.)

Se a felicidade é atividade conforme verdade. Porque, em primeiro lugar, 20

à virtude, será razoável que ela esteja essa atividade é a melhor (pois não só
também em concordância com a mais é a razão a melhor coisa que existe em
alta virtude; e essa será a do que existe nós, como os objetos da razão são os
de melhor em nós. Quer seja a razão, melhores dentre os objetos cognoscí-
quer alguma outra coisa esse elemento veis); e, em segundo lugar, é a mais
que julgamos ser o nosso dirigente e contínua, já que a contemplação da
guia natural, tomando a seu cargo as verdade pode ser mais contínua do que
15 coisas nobres e divinas, e quer seja ele qualquer outra atividade. E pensamos
mesmo divino, quer apenas o elemento que a felicidade tem uma mistura de
mais divino que existe em nós, ati- prazer, mas a atividade da sabedoria
vidade conforme à virtude que lhe é filosófica é reconhecidamente a mais
própria será a perfeita felicidade. Que aprazível das atividades virtuosas; 25
essa atividade é contemplativa, já o pelo menos, julga-se que o seu cultivo
dissemos anteriormente 1 4 7. oferece prazeres maravilhosos pela pu-
Ora, isto parece estar de acordo não reza e pela durabilidade, e é de supor
só com o que muitas vezes assevera- que os que sabem passem o seu tempo
mos 1 48, mas também com a própria de maneira mais aprazível do que os
que indagam.
Além disso, a auto-suficiência de
1 47 cr. 1095 b 14 - 1096 a 5, 1141 a 18 - 1141 que falamos deve pertencer principal-
b 3, 1143 b 33 - 1144 a 6, 1145 a 6-11. (N. do T.)
mente à atividade contemplativa. Por-
1097 a 25 - 1097 b 21, 1099 a 7-21, 1173 b
15-19, 1174 b 20-23, 1175 b 36 - 1176 a 3. (N. do que: embora um filósofo, assim como
T.) um homem justo ou o que possui qual-
ÉTICA A NICÔMACO - X 229

quer outra virtude, necessite das coisas um fim diferente e não são desejáveis
30 indispensáveis à vida, quando está por si mesmas, enquanto a atividade
suficientemente provido de coisas da razão, que é contemplativa, tanto 20
dessa espécie o homem justo precisa parece ser superior e mais valiosa pela
ter com quem e para com quem agir sua seriedade como não visar a ne-
justamente, e o temperante, o corajoso nhum fim além de si mesma e possuir o
e cada um dos outros se encontram no seu prazer próprio (o qual, por sua vez,
mesmo caso; mas o filósofo, mesmo intensifica a atividade), e a auto-sufi-
quando sozinho, pode contemplar a ciência, os lazeres, a isenção de fadiga
verdade, e tanto melhor o fará quanto (na medida em que isso é possível ao
1177b mais sábio for. Talvez possa fazê-lo homem), e todas as demais qualidades
melhor se tiver colaboradores, mas que são atribuídas ao homem suma-
ainda assim é ele o mais auto-sufi- mente feliz são, evidentemente, as que
ciente de todos. se relacionam com essa atividade,
E essa atividade parece ser a única segue-se que essa será a felicidade
que é amada por si mesma, pois dela completa do homem, se ele tiver uma 25
nada decorre além da própria contem- existência completa quanto à duração
plação, ao passo que das atividades (pois nenhum dos atributos da felici-
práticas sempre tiramos maior ou dade é incompleto).
menor proveito, à parte da ação. Mas uma tal vida é inacessível ao
Além disso, pensa-se que a felici- homem, pois não será na medida em
5 dade depende dos lazeres; porquanto que é homem que ele viverá assim, mas
trabalhamos para poder ter momentos na medida em que possui em si algo de
de ócio, e fazemos guerra para poder divino; e tanto quanto esse elemento é
viver em paz. Ora, a atividade das vir- superior à nossa natureza composta, o
tudes práticas exerce-se nos assuntos é também a sua atividade ao exercício
políticos ou militares, mas as ações da outra espécie de virtude.
relativas a esses assuntos não parecem
encerrar lazeres. Principalmente as Se, portanto, a razão é divina em 30
ações guerreiras, pois ninguém escolhe comparação com o homem, a vida
fazer guerra, nem tampouco a provoca, conforme à razão é divina em compa-
10 pelo gosto de estar em guerra; e um ração com a vida humana. Mas não
homem teria a têmpera do maior dos devemos seguir os que nos aconselham
assassinos se convertesse os seus ami- a ocupar-nos com coisas humanas,
gos em inimigos a fim de provocar visto que somos homens, e com coisas
batalhas e matanças. Mas a ação do mortais, visto que somos mortais; mas,
estadista também não encerra lazeres, na medida em que isso for possível,
e - além da ação política em si procuremos tomar-nos imortais e envi-
mesma - visa ao poder e às honras dar todos os esforços para viver de
despóticas, ou pelo menos à felicidade acordo com o que há de melhor em
para ele próprio e para os seus conci- nós; porque, ainda que seja pequeno 11788
15 dadãos - uma felicidade diferente da quanto ao lugar que ocupa, supera a
ação política, e evidentemente buscada tudo o mais pelo poder e pelo valor.
como sendo diferente. E dir-se-ia, também, que esse ele-
Portanto, se entre as ações virtuosas mento é o próprio homem, já que é a
as de índole militar ou política se dis- sua parte dominante e a melhor dentre
tinguem pela nobreza e pela grandeza, as que o compõem. Seria estranho,
e estas não encerram lazeres, visam a pois, que não escolhesse a vida do seu
230 ARISTÓTELES

5 próprio ser, mas a de outra coisa. E o aprazível para ela; e assim, para o
que dissemos atrás 1 49 tem aplicação homem a vida conforme à razão é a
aqui: o que é próprio de cada coisa é, melhor e a mais aprazível, já que a
por natureza, o que há de melhor e de razão, mais que qualquer outra coisa, é
o homem. Donde se conclui que essa
, 1169 b 33, 1176 b 26. (N. do T.) vida é a mais feliz.

8
Mas, em grau secundário, a vida de trabalho do estadista se ocupe mais
acordo com a outra espécie de virtude com o corpo e coisas que tais, porque a
é feliz, porque as atividades que con- diferença quanto a isso será pequena;
cordam com esta condizem com a mas naquilo de que precisam para o
lO nossa condição humana. Os atos cora- exercício de suas atividades haverá
josos e justos, bem como outros atos grande diferença. O homem liberal
virtuosos, nós os praticamos em rela- necessita de dinheiro para a prática de
ção uns aos outros, observando nossos seus atos de liberalidade e o homem 30
respectivos deveres no tocante a con- justo para a retribuição de serviços
tratos, serviços e toda sorte de ações, (pois é dificil enxergar claro nos dese-
bem assim como às paixões; e todas jos, e mesmo os que não são justos
essas coisas parecem ser tipicamente aparentam o desejo de agir com justi-
humanas. Dir-se-ia até que algumas ça); e o homem corajoso necessita de
delas provêm do próprio corpo e que o poder para realizar qualquer dos atos
caráter virtuoso se prende por muitos que correspondem à sua virtude, e o
15 laços às paixões. temperante necessita de oportunidade:
A sabedoria prática também está li- pois de que outro modo poderíamos
gada ao caráter virtuoso e este à sabe- reconhecer tanto a ele como a qualquer
doria prática, já que os princípios de dos outros?
tal sabedoria concordam com as virtu- Também se discute sobre se é a von-
des morais e a retidão moral concorda tade ou o ato que é mais essencial à
com ela. virtude, pois supõe-se que esta envolve 35
Ligadas que são também às paixões, tanto uma como outro. E é evidente 1178 b
as virtudes morais devem pertencer à que sua perfeição envolve a ambos,
10 nossa natureza composta. Ora, tais vir- mas os atos exigem muitas coisas, e
tudes são humanas; por conseguinte, tanto mais quanto maiores e mais no-
humanas são também a vida e a felici- bres forem. O homem que contempla a
dade que lhes correspondem. A exce- verdade, porém, não necessita de tais
lência da razão é uma coisa à parte. coisas, ao menos para o exercício de
Dela devemos contentar-nos em dizer sua atividade; e pode-se dizer até que
isto, porquanto descrevê-la com preci- elas lhe servem de obstáculo, quando 5
são é tarefa maior do que exige o nosso mais não seja para a própria contem-
propósito. Sem embargo, ela também plação, Mas, enquanto homem que
15 parece necessitar de bens exteriores, vive no meio de outros homens, ele
porém pouco, ou, em todo caso, menos escolhe a prática de atos virtuosos: por
do que necessitam as virtudes morais. conseguinte, necessita também das coi-
Admitamos que ambas necessitem sas que facilitam a vida humana.
de tais coisas em grau igual, embora o Mas que a felicidade perfeita é uma
ÉTICA A NICÔMACO - X 231

atividade contemplativa, confirma-o desta última são os mais genuinamente


também a seguinte consideração. Ad- felizes, não como simples concomi-
mitimos que os deuses sejam, acima de tante mas em virtude da própria
todos os outros seres, bem-aventurados contemplação, pois que esta é preciosa
e felizes: mas que espécie de ações lhes em si mesma. E assim, a felicidade
10 atribuiremos? Atos de justiça? Não deve ser alguma forma de contempla-
pareceria absurdo que os deuses fir- ção.
massem contratos, restituíssem depósi- Mas o homem feliz, como homem
tos e outras coisas do mesmo jaez? que é, também necessita de prosperi-
Atos de coragem, então, arrostando dade exterior, porquanto a nossa natu-
perigos e expondo-se a riscos, porque é reza não basta a si mesma para os fins
nobre proceder assim? Ou atos de libe- da contemplação: nosso corpo também
ralidade? A quem fariam eles dádivas? precisa de gozar saúde, de ser alimen- 35
Muito estranho seria se os deuses real- tado e cuidado. Não se pense, todavia, 1179.
mente tivessem dinheiro ou algo dessa que o homem para ser feliz necessite de
espécie. E em que consistiriam os seus muitas ou de grandes coisas, só porque
15 atos de temperança? Não será ridículo não pode ser supremamente feliz sem
louvá-los por uma vez que não bens exteriores. A auto-suficiência e a
têm maus apetites? ação não implicam excesso, e podemos
Se as analisássemos uma por uma, praticar atos nobres sem sermos donos
as circunstâncias da ação se nos mos- da terra e do mar. Mesmo desfrutando
trariam triviais e indignas dos deuses. vantagens bastante moderadas pode-se
Não obstante, todos supõem que eles proceder virtuosamente (isso, aliás, é 5
vivem e, portanto, são ativos; não manifesto, porquanto se pensa que um
podemos concebê-los a dormir como particular pode praticar atos dignos
20 Endimião. Ora, se a um ser vivente não menos do que um déspota -
retirarmos a ação, e ainda mais a ação mais, até). E é suficiente que tenhamos
produtiva, que lhe restará a não ser a o necessário para isso, pois a vida do
contemplação? Por conseguinte, a ati- . homem que age de acordo com a virtu-
vidade de Deus, que ultrapassa todas de será feliz.
as outras pela bem-aventurança, deve Sólon nos deu, talvez, um esboço
ser contemplativa; e das atividades fiel do homem feliz quando o descre-
humanas, a que mais afmidade tem veu 1 5 o como moderadamente provido
com esta é a que mais deve participar de bens exteriores, mas como tendo 10
da felicidade. praticado (na opinião de Sólon) as
Mostra-o também o fato de não mais nobres ações, e vivido conforme
participarem os animais da felicidade, os ditames da temperança. Anaxá-
completamente privados que são de goras também parece supor que o
25 uma atividade dessa sorte. Com efeito, homem feliz não seja rico nem um dés-
enquanto a vida inteira dos deuses é pota quando diz que não se admiraria
bem-aventurada e a dos homens o é na se ele parecesse à maioria uma pessoa
medida em que possui algo dessa ativi- estranha; pois a maioria julga pelas 15
dade, nenhum dos outros animais é exterioridades, uma vez que não perce-
feliz, uma vez que de nenhum modo be outra coisa.
participam eles da contemplação. A E assim, as opiniões dos sábios
felicidade tem, por conseguinte, as parecem harmonizar-se com os nossos
mesmas fronteiras que a contempla-
30 ção, e os que estão na mais plena posse , 60 Heródoto, I, 30. (N. do T.)
232 ARISTÓTELES

argumentos. Mas, embora essas coisas pelos assuntos humanos como nós
também tenham um certo poder de pensamos, tanto seria natural que se' 25
convencer, a verdade em assuntos prá- deleitassem naquilo que é melhor e
ticos percebe-se melhor pela observa- mais afmidade tem com eles (isto é, a
ção dos fatos da vida, pois estes são o razão), como que recompensassem os
20 fator decisivo. Devemos, portanto, que a amam e honram acima de todas
examinar o que já dissemos à luz des- as coisas, zelando por aquilo que lhes é
ses fatos, e se estiver em harmonia com caro e conduzindo-se com justiça e
eles aceitâ-lo-emos, mas se entrarem nobreza. Ora, é evidente que todos
em conflito admitiremos que não passa esses atributos pertencem mais que a
de simples teoria. ninguém ao filósofo. É ele, por conse- 30
Ora, quem exerce e cultiva a sua guinte, de todos os homens o mais caro
razão parece desfrutar ao mesmo aos deuses. E será, presumivelmente,
tempo a melhor disposição de espírito também o mais feliz. De sorte que tam-
e ser extremamente caro aos deuses. bém neste sentido o filósofo será o
Porque, se os deuses se interessam mais feliz dos homens.

9
Se estes assuntos, assim como a vir- não obedece por natureza ao senti-
tude e também a amizade e o prazer, mento de pudor, mas unicamente ao
foram suficientemente discutidos em li- medo, e não se abstém de praticar más
nhas gerais, devemos dar por termi- açôes porque elas são vis, mas pelo
35 nado o nosso programa? Sem dúvida, temor ao castigo. Vivendo pela paixão,
como se costuma dizer, onde há coisas andam no encalço de seus prazeres e
que realizar não alcançamos o fim de- dos meios de alcançá-los, evitando as
pois- de examinar e reconhecer cada dores que lhes são contrárias, e nem
uma delas, mas é preciso fazê-las. No sequer fazem idéia do que é nobre e
1179 b tocante à virtude, pois, não basta verdadeiramente agradâvel.. visto que
saber, devemos tentar possuí-la e usá- nunca lhe sentiram o gosto. Que argu-
la ou experimentar qualquer outro mento poderia remodelar essa sorte de
meio que se nos antepare de nos tor- gente? É difícil, senão impossível, erra-
narmos bons. dicar pelo raciocínio os traços de carâ-
Ora, se os argumentos bastassem em ter que se inveteraram na sua natureza;
si mesmos para tornar os homens e talvez nos devamos contentar se,
5 bons, eles teriam feito jus a grandes estando presentes todas as influências
recompensas, como diz Teógnis, e as capazes de nos melhorar, adquirimos
recompensas não faltariam. Mas a ver- alguns laivos de virtude.
dade é que, embora pareçam ter o Ora, alguns pensam que nos torna- 20
poder de encorajar e estimular os jo- mos bons por natureza, outros pelo há-
vens de espírito generoso, e preparar bito e outros ainda pelo ensino. A
um caráter bem-nascido e genuina- contribuição da natureza evidente-
mente amigo de tudo o que é nobre mente não depende de nós, mas, em
10 para receber a virtude, eles não conse- resultado de certas causas divinas, está
guem incutir nobreza e bondade na presente naqueles que são verdadeira-
multidão. Porquanto o homem comum mente afortunados. Quanto à argu-
ÉTICA A NICÔMACO - X 233

e ao ensino, suspeitamos de e que conviria impor castigos e penas


que não tenham uma influência pode- aos que fossem de natureza inferior,
rosa em todos os homens, mas é preci- enquanto os incuravelmente maus se-
so cultivar primeiro a alma do estu- riam banidos de todo. O homem bom
25 dioso por meio de ·hábitos, tomando-a (pensam eles), vivendo como vive com
capaz de nobres alegrias e nobres aver- o pensamento fixo no que é nobre, 10
sões, como se prepara a terra que deve submeter-se-á à argumentação, ao
nutrir a semente. Com efeito, o que se passo que o homem mau, que só deseja
deixa dirigir pela paixão não ouvirá o o prazer, será corrigido pela dor, como
argumento que o dissuade; e, se o uma besta de carga. E por isso dizem
ouvir, não o compreenderá. E como também que as dores infligidas devem
persuadir a mudar de vida uma pessoa ser as que forem mais contrárias aos
com tal disposição? Em geral, a pai- prazeres que esses homens amam.
xão não parece ceder ao argumento, De qualquer forma (como disse-
mas à força. É, portanto, uma condi- mos ' 51) o homem que queremos tor-
ção prévia indispensável a existência nar bom deve ser bem adestrado e
de um caráter que tenha certa afini- acostumado, passando depois o seu 15
JO dade com a virtude, amando o que é tempo em ocupações dignas e.não pra-
nobre e detestando o que é vil. ticando ações más nem voluntária,
Mas é difícil receber desde a juven- nem involuntariamente, e se isso se
tude um adestramento correto para a pode conseguir quando os homens
virtude quando não nos criamos debai- vivem de acordo com uma espécie de
xo das leis apropriadas; pois levar uma reta razão e ordem, contanto que esta
vida temperante e esforçada não seduz tenha força - se assim é, o governo
a maioria das pessoas, especialmente paterno em verdade não tem a força ou
JJ quando são jovens. Por essa razão, o poder coercitivo necessários (nem, 20
tanto a maneira de criá-los como as em geral, os tem o governo de um
suas ocupações deveriam ser fixadas homem só, a menos que se trate de um
pela lei; pois essas coisas deixam de rei algo semelhante); mas a lei tem
ser penosas quando se tomaram habi- esse poder coercitivo, ao mesmo tempo
1180. tuais. Mas não basta, certamente, que que é uma regra baseada numa espécie
recebam a criação e os cuidados ade- de sabedoria e razão prática. E, embo-
quados quando são jovens; já que ra o comum das pessoas detestem os
mesmo em adultos devem praticá-las e homens que contrariam os seus impul-
estar habituados a elas, precisamos de sos, ainda que com razão, a lei não
leis que cubram também essa idade e, lhes é pesada ao ordenar o que é bom.
de modo geral, a vida inteira; porque a Unicamente ou quase unicamente 25
maioria das pessoas obedece mais à no Estado espartano o legislador pare-
necessidade do que aos argumentos, e ce ter-se ocupado com questões de edu-
aos castigos mais do que ao senti- cação e de trabalho. Na maioria dos
mento nobre. Estados esses assuntos foram omitidos
5 Por isso pensam alguns que os legis- e cada qual vive como lhe apraz, à
ladores deveriam estimular os homens moda dos ciclopes, "ditando a lei à es-
à virtude e instigá-los com o motivo do posa e aos filhos" Ora, o mais
nobre, partindo do princípio de que certo seria que tais coisas se tomassem
aqueles que já fizeram consideráveis
progressos, mercê da formação de há- 151 1179b31-1180aS.(N.doT.)
bitos, serão sensíveis a tais influências; 1 52 Odisséia, IX, 11455. (N. do T.)
234 ARISTÓTELES

30 encargo público e que a comunidade espécie de pessoas (pois com razão se 15


provesse adequadamente a elas; mas, diz que as ciências versam sobre o
uma vez que a,s negligencia, convém universal). Isso não impede que algum
que cada homem auxilie seus filhos e detalhe particular possa ser bem aten-
amigos a seguirem os caminhos da vir- dido por uma pessoa sem ciência que
tude, e que tenham o poder ou pelo haja estudado cuidadosamente, à luz
menos a vontade de fazê-lo. da experiência, o que sucede em cada
Do que dito parece concluir-se caso, assim como certas pessoas pare-
que ele poderia fazê-lo melhor se se cem ser os melhores médicos de si
tornasse capaz de legislar. Porquanto o mesmas, embora não saibam tratar as
controle público é evidentemente exer- outras. Não obstante, hão de concor- 20
cido pelas leis, e o bom controle por dar que o homem que deseja tornar-se
35 boas leis. Que sejam escritas ou não, mestre numa arte ou ciência deve bus-
parece não vir ao caso, nem tampouco car o universal e procurar conhecê-lo
1180b que sejam leis provendo à educação de tão bem quanto possível; pois que,
indivíduos ou de grupos - assim como dissemos, é com ele que se ocu-
como isso também não importa no pam as ciências.
caso da música, da ginástica e outras E, se é pelas leis que nos podemos
ocupações semelhantes. Pois que, tornar bons, seguramente o que se
assim como nas cidades têm força as empenha em melhorar homens, sejam
leis e os tipos predominantes de carâ- estes muitos ou poucos, deve ser capaz 25
ter, nas famílias a têm ainda mais os de legislar. Porquanto reformar o cará-
5 preceitos e os hábitos do pai, devido ter de qualquer um - do primeiro que
aos laços de sangue e aos benefícios lhe colocam na frente - não é tarefa
que ele confere; porquanto os filhos para qualquer um; se alguém pode
têm desde o princípio uma afeição fazer isso, é o homem que sabe, exata-
natural e uma disposição para obede- mente como na medicina e em todos os
cer. Além disso, a educação privada outros assuntos que exigem cuidado e
leva vantagem à pública, como é tam- prudência.
bém o caso do tratamento médico pri- Não convém, pois, indagar agora de
vado; pois, embora de um modo geral quem e como se pode aprender a legis-
o repouso e a abstenção de alimento lar? Porventura será, como em todos
/0 façam bem às pessoas febris, pode não os outros casos, dos estadistas? A ver- 30
ser assim no caso de um doente parti- dade é que esse assunto foi conside-
cular; e é de supor que um pugilista rado como fazendo parte da estadís-
não prescreva o mesmo estilo de luta a tica. Ou haverá uma diferença
todos os seus alunos. Parece, pois, que manifesta entre a estadística e as ou-
os detalhes são observados com mais tras ciências e artes? Nas outras,
precisão quando o controle é privado, vemos que as mesmas pessoas as prati-
pois cada pessoa tem mais probabili- cam e se oferecem para ensiná-las, 35
dades de receber o que convém ao seu como, por exemplo, os médicos e os
caso. pintores. Mas, enquanto os sofistas
Mas quem melhor pode atender aos pretendem ensinar política, não são 1181.
detalhes é um médico, um instrutor de eles que a praticam, e sim os políticos,
ginástica ou qualquer outro que tenha que parecem fazê-lo graças a uma
o conhecimento geral do que é apro- espécie de habilidade ou experiência, e
priado a cada um ou a determinada não raciocínio. Com efeito, nin-
ÉTICA A NICÕMACO - X 235

guém os vê escrever ou falar sobre a feita, como no caso da pintura. Ora, as 1181 b

matéria (conquanto essa fosse, talvez, leis são, por assim dizer, as "obras" da
uma ocupação mais nobre do que pre- arte política: como é possível, então,
parar discursos para os tribunais e a aprender com elas a ser legislador ou
5 Assembléia); e também não consta que julgar quais sejam as melhores? Os
eles costumem fazer estadistas de seus próprios médicos não parecem for-
filhos ou de seus amigos. Mas seria de mar-se pelo estudo dos livros. Não
esperar que o fizessem, se isso lhes obstante, as pessoas procuram indicar
fosse possível, pois não poderiam legar não apenas os tratamentos, mas como
às suas cidades nada de melhor do que podem ser curados e devem ser trata-
uma habilidade dessa sorte, ou trans- dos certos tipos de gente, distinguindo
miti-la aos que lhes são caros se prefe- os vários hábitos do corpo; mas, 5

rissem guardá-la no seu meio. No bora isso pareça ser útil aos experi-
entanto, a contribuição da experiência mentados, para os inexperientes não
10 parece não ser pequena; de outra tem nenhum valor.
forma eles não poderiam tomar-se É certo, pois, que embora as compi-
políticos por participarem da vida polí- lações de leis e constituições possam
tica. Donde se conclui que os que prestar serviços às' pessoas capazes de
ambicionam conhecer a arte da polí- estudá-las, de distinguir o que é bom
necessitam também da experiên- do que é mau e a que circunstâncias
cia. melhor se adapta cada lei, os que per- /O
Mas aqueles sofistas que professam lustram essas compilações sem o so-
a arte parecem estar muito longe de corro da experiência não possuirão o
ensiná-la. Com efeito, para exprimir- reto discernimento (a menos que seja
nos em termos gerais, esses homens por um dom espontâneo da natureza),
nem sequer sabem que espécie de coisa embora talvez possam tomar-se mais
ela é, nem sobre o que versa. De outro inteligentes em tais assuntos.
modo, não a teriam classificado como Ora, os nossos antecessores nos
idêntica à retórica ou mesmo inferior a legaram sem exame este assunto da
15 esta, nem julgariam fácil legislar me- legislação. Por isso, talvez convenha
diante uma compilação das leis mais' estudá-lo nós mesmos, assim como a
bem reputadas. Dizem que é possível questão da constituição em geral, a fim
selecionar as melhores leis, como se de completar da melhor maneira possí-
esse próprio trabalho de seleção não vel a nossa filosofia da natureza huma- 15
requeresse inteligência como se o na. Em primeiro lugar, pois, se alguma
bom discernimento não fosse a mais coisa foi bem exposta em detalhe pelos
importante de todas as coisas, tal qual pensadores que nos antecederam, pas-
sucede na música.
Com efeito, embora as pessoas semo-la em revista; depois, à luz das
20 experimentadas em qualquer campo constituições que nós mesmos coligi-
julguem com acerto das obras que se mos, examinaremos que espécies de
produzem nele e compreendam por que influências preservam e destroem os
meios e de que modo essas obras são Estados, que outras têm os mesmos
realizadas, e que coisas se harmonizam efeitos sobre os tipos particulares de
com outras coisas, os inexperientes constituição, e a que causas se deve o
devem dar-se por muito felizes quando de serem umas bem e outras mal
podem julgar se a obra foi bem ou mal aplicadas. Após estudar essas coisas 20
236 ARISTÓTELES

teremos uma perspectiva mais ampla, como deve ser ordenada cada uma e
dentro da qual talvez possamos distin- que leis e costumes lhe convém utilizar
guir qual é a melhor constituição, a fim de ser a melhor possível.

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