1. A noção de monarquia clássica comanda o devir político dos países
franceses entre 1450 e 1789: ela corresponde a um Antigo Regime muito "alongado” que se escoa, e depois se esboroa, em paz ou furor, desde o fim das Guerras dos Cem Anos até o declínio do reinado de Luís XVI. Um primeiro traço “central” põe em relevo o caráter sagrado da instituição monárquica As cerimônias ria sagração (exaltarias desde a Idade Média para fazer oposição ao Império) e o toque régio das escrófulas, com seu efeito curativo ou miraculoso, são-lhe a expressão conhecida. A monarquia clássica, na França e alhures, é, portanto (ao menos em princípio), intolerante no plano religioso, mesmo se se impõe, vez por outra e por uma duração bastante longa, tal fenômeno de coexistência limitada com a heterodoxia O Estado estabelece com esse fim a unidade religiosa; conclui um pacto de ordem social em todos os sentidos do termo* com a Igreja estabelecida. A essência sagrada da monarquia se inscreve, por outro lado, no interior d e um sistema de entidades simbólicas e de funções. A Renascença as aclara: elas incluem as noções de dignidade real e de justiça. Essa justiça e essa dignidade são imortais ou, pelo menos, sobrevivem à pessoa efêmera dos reis sucessivos. Sejamos precisos: o rei permanece semipresbiteral e reivindica uma eleição divina ou, pelo menos, uma delegação do Altíssimo; mas a ideia de um laço da instituição monárquica com o povo, a “nação” , com o reino, em todo caso , permanece viva. Sem adotar tais extremos, os juristas franceses mais oficiais sempre lembraram que a legitimidade real acompanha-se inevitavelmente de uma legalidade das instituições e dos costumes, na qual o monarca não pode tocar. No que concerne à França, a despeito da fachada absolutista, que vai progressivamente se fender no século XVIII, o Antigo Regime continua a ser (entre outras coisas) sociedade de ordens ou de Estados. Ao longo da grande cadeia dos seres, o rei e os Estados Gerais ou provinciais são as porções manifestas de um conglomerado muito mais vasto; ele é feito de comunidades, corporações, instituições representativas. Na falta de reunião efetiva dos Estados Gerais, desde Richelieu até Luís XVI, os Parlamentos, e especialmente o de Paris, erigem-se em instâncias com vocação nacional. 2. A monarquia, sob sua forma clássica, liga-se ao funcionamento de uma Corte, centrada em torno do soberano. Itinerante no tempo dos Valois. Fixada em Paris, Fontainebleau, e sobretudo Versalhes, sob os Bourbon. Na França, Luís XIV prende a si os grandes senhores e os torna dóceis por uma outorga de pensões que implica a residência em Versalhes, em tempo parcial pelo menos. Sistema caro, mas rentável em termos de paz interna do reino. Na França, mas também na Espanha e em Viena, a Corte erige-se em lugar geométrico das hierarquias. Elas sustentam o sistema monárquico ou são subentendidas por ele . Nunca foram tão aparentes como na antevéspera de sua extinção revolucionária. O espírito hierárquico fixa-se em alguns aspectos: subdivisão cada vez mais extensa das posições, ao longo de um eixo vertical, que desce da família real aos simples fidalgos, passando pelos duques e pares. Em uma escala considerável para a época, mas ainda modesta segundo os critérios contemporâneos, esses intendentes de generalidades ou comissários regionais aparecem como os ancestrais dos prefeitos e sub-prefeitos. Por certo, esse monarca e mesmo seus sucessores ou subordinados tiveram a pretensão, por momentos, à onipotência! Mas, apesar do culto da personalidade que cerca os soberanos e compensa de facto as reais fraquezas de seu poder, a monarquia clássica permanece objetiva e subjetivamente descentralizada, em todo caso nitidamente menos centralizada que os sistemas políticos que a ela sucederão no século XIX; e a fortiori menos tentacular do que o são inúmeros regimes do século XX e XXI; eles se intrometem, em muitos casos, na esfera dos interesses privados e nos domínios específicos da sociedade civil. Para tratar a respeito de algumas subestruturas profundas da monarquia clássica, o autor explora então a demografia e a família. A monarquia clássica é inseparável, em primeiro lugar, de certo tipo de demografia, resumido em uma conjuntura longa. Digamos que ela diz respeito essencialmente a um período aproximativo de três séculos e meio (1450-1789), no decorrer do qual as catástrofes são, por certo, abundantes; mas já não têm o caráter desintegrador ou ultratraumatizante de que se tinham revestido ao longo dos períodos anteriores. A monarquia clássica acompanha-se, através dos séculos que a veem florescer, da manutenção contínua de um mínimo de integridade demográfica. Ela implica mesmo diversas fases de crescimento da povoação nos territórios que controla. Com relação à família, o autor começa por indicar que estas não são indiferentes à instituição monárquica. A casa real em qualquer tempo, e também na época clássica, comporta-se como “família ampliada” no sentido mais vasto do termo. Abriga sob o teto de um grande palácio o monarca, sua esposa, sua eventual amante, seus filhos e netos; assim como os cônjuges de uns e de outros e sua respectiva progenitura. Há, então, efeito de espelho: a monarquia forma sistema patrimonial e patriarcal; ele s e funda especialmente na vasta ampliação do lar soberano. Reflete à sua maneira o arranjo mais simples, mas ainda complexo, de centenas de milhares de “famílias amplas” (um lar em dez, na França) em que o chefe de família reina não apenas sobre mulher e filhos, mas também sobre colaterais, ascendentes, netos, domésticos etc. A legitimidade do poder monárquico vem também do fato de que os súditos o identificam facilmente com os laços hierárquicos que experimentam a cada dia em seu quadro familiar e privado. Poder do costume... 3. Outra subestrutura, indispensável às bases monárquicas: a comunidade camponesa ou de aldeia. Ela é infinitamente mais antiga que nossas realezas. Precedeu-as. Sobreviverá a elas. A comunidade camponesa se transformou, chegado o momento, em instrumento precioso, dentre os poderes nos quais se apoiam o rei e os seus. Para receber o imposto, os soberanos estão, com efeito, mal servidos, se podem contar apenas com as senhorias territoriais que constelam aos milhares a superfície do reino. Os senhores que as dirigem são tentados a conservar para si mesmos o dinheiro que deveríam normalmente depositar no Tesouro real. Em suma, trava-se uma relação de amor/ódio entre Estado monárquico e comunidades; ela se traduz por alguns slogans famosos das revoltas antifiscais: “viva o rei sem talha e sem gabela’, ou ‘viva o rei apesar de tudo’ ’. De qualquer maneira, e pelo próprio fato dessa relação privilegiada com a aldeia, os representantes do poder, e sobretudo, em fim de percurso, os intendentes, farão questão de imiscuir-se nos negócios internos, e principalmente contábeis, do “povo” rural. Assim, impedirão os aldeões de despender demais com seus pequenos assuntos municipais ou com o pagamento rios juros-da s dívidas da com una. Depois das aldeias, as cidades. Depois dos peões, as peças grandes, no tabuleiro de xadrez monárquico. No plano político, a boa cidade ou simplesmente a cidade clássica é um misto de poder real e de poder comunal, “uma sociedade mista”. Compromisso lógico. Duas entidades coexistem, estatal e citadina: o rei, nessas condições, não poderia sufocar nem mesmo enfraquecer completamente os notáveis das cidades. Te m necessidade deles, tanto quanto eles do rei. Para que tais laços e tantos outros possam estabelecer-se, um mínimo de população u rbana é indispensável: o bom funcionamento da monarquia clássica e das outras instituições dirigentes (Igreja etc.) a partir do século XV requer objetivamente que pelo menos 10% da população do reino esteja concentrada nas cidades, onde estão situados os principais organismos de poder, de negócio, de dominação religiosa etc. 4. Uma outra espécie de comunidade funciona igualmente perante o Estado real como exploradora do domínio agrícola e mesmo como parte beneficiária. É a guilda, negociante ou artesanal; a corporação, comunidade ou juranda, ou mesmo confraria de ofício: a consideração dos diversos agrupamentos profissionais permite ir além do simples truísmo segundo o qual a monarquia clássica só pode desenvolver-se convenientemente em um meio social em que grandes comerciantes e pequenos artesãos sejam numerosos. Em suma, a monarquia não se concebe sem um mastro trípode e comunitário no topo do qual se empoleira: ela confedera em feixe as comunidades de aldeia, de cidade, de ofício. Para fazer funcionar essa estrutura, o rei precisava de posições/cargos, arrendamentos e funcionários assalariados. São esses funcionários que fazem rodar o moinho de arrecadação, sem o qual a própria estrutura da monarquia ruiria. Depois desses funcionários, arrendatários e financistas, mencionemos um terceiro tipo, e de grande futuro, o dos servidores da monarquia. Ela compreende basicamente os comissários e os comissionados. Os comissários reais, como seu nome indica, receberam do soberano, por cartas patentes, ò poder de desempenhar certas tarefas funcionais, em virtude de uma “comissão”. Entre eles figuram os embaixadores, os conselheiros de Estado, os governadores das províncias, seus lugar-tenentes gerais e os intendentes das generalidades regionais. Os comissionados geralmente têm um teto salarial de um nível nitidamente inferior a estes. 5. Armas de fogo e militarização de uma parte da sociedade', os novos métodos do tiro para matar como para destruir, e as massas de homens especialmente treinados que os utilizam, constituem poderosos trunfos para a monarquia clássica a partir dos séculos XV e XVI. 6, Antigas e novas mídias. Outra série de inovações tecnológicas, e cuja incidência é forte na monarquia clássica: os sistemas das mídias. Eles aparecem, não sem defasagens, no fim da época medieval: trata- se do papel e da imprensa, em suma, a “galáxia Gutenberg”. Escrevinhadora, a realeza francesa o era desde o século XIV, pouco depois da introdução do papel. 1. Por que os “abusos da Igreja” constituem uma explicação insuficiente para a Reforma? (124-126) 2. Por que as duas reformas – a protestante e a católica – constituíram aspectos de um mesmo movimento, na visão de Jean Delumeau? (128-131) 3. De que maneira o movimento reformador do Século XVI se liga ao aumento da importância (ascensão) dos leigos? (138-140)