As éticas filosóficas incluem duas preocupações básicas: (1)
determinar que seres são merecedores de consideração moral;
(2) que princípios ou regras de comportamento devem orientar as nossas relações com esses seres.
No primeiro caso, trata-se de saber perante quem temos
obrigações morais; no segundo, trata-se de determinar que obrigações morais são essas. As mais recentes discussões em ética filosófica têm contribuído para alargar este debate a temas como os direitos dos animais ou a ética ambiental.
Em ambos os casos, a ideia de que apenas os seres humanos
merecem consideração moral tem sido posta em causa. Se assim for, estamos perante uma mudança de perspetiva com consequências práticas significativas. Reconhecer que as pessoas têm dignidade ou valor impede-nos de as tratarmos de qualquer maneira.
Admitir que os animais têm dignidade e
valor impede-nos de os tratarmos apenas como recursos destinados a satisfazer necessidades humanas.
Pelo menos algumas vezes, teremos de
sacrificar os interesses humanos em nome do respeito pela natureza ou dos direitos dos animais.
Seremos capazes de fazê-lo?
Um pouco de história A ideia de que os animais têm direitos que é nossa obrigação proteger, deu origem a vários movimentos sociais que se opõem ao uso de peles no fabrico de vestuário e artigos similares (malas, sapatos, etc.), ao uso de animais em circos e touradas, em experiências científicas e militares, em testes de toxicidade na indústria química (detergentes, cosméticos, etc.). Alguns destes movimentos propõem também o fim do consumo de carne e peixe na alimentação humana ou o dos regimes de criação intensiva de animais em quintas industriais, onde são mantidos em condições extremas. Mas a ideia de que os animais têm direitos que devem ser respeitados ao relacionarmo-nos com eles enfrentou, no passado, diferentes tipos de oposição. Descartes pensava que os animais eram simples René Descartes (1596-1650) autómatos privados de consciência.
Nada do que quiséssemos fazer-lhes poderia causar-lhes
prejuízo. Sem consciência, não poderiam sentir dor ou prazer, e também não teriam interesse em viver ou em não serem molestados pela maneira como os tratássemos.
Descartes observou nos animais os mesmos
comportamentos de fome, medo, dor ou alegria que nós observamos. Mas enquanto nós explicamos estes comportamentos atribuindo aos animais estados mentais como desejos, sensações, etc. Descartes quis explicá-los de modo inteiramente mecânico. René Descartes (1596-1650) Se não duvido de que a Maria tem o mesmo tipo de experiência dolorosa que eu quando se queima, porquê duvidar que um cão sinta dor ao ser maltratado?
Descartes pensava que temos de admitir que as outras
pessoas não são apenas máquinas, e que, tal como nós próprios, têm consciência, porque usam a linguagem (palavras ou outros sinais) para expressar estados de espírito, pensamentos, etc. Descartes pensava que sem linguagem verbal não há consciência, o que indicaria que nos animais a vida mental está ausente.
Contudo, alguma reflexão é suficiente para indicar que
Descartes estava enganado. Como notou Tom Regan, se a consciência dependesse da linguagem uma criança seria incapaz de a adquirir, dado que sem consciência não poderia aprender:
As crianças humanas têm de estar conscientes das coisas antes
de aprenderem a usar a linguagem. Se não estivessem, se não pudessem ver, ouvir ou sentir antes de aprenderem a falar, nunca poderiam aprender a falar. Não valeria a pena — não René Descartes (1596-1650) poderia valer a pena — segurar num gato e dizer “gatinho” apontando para ele, se as crianças pré-verbais fossem incapazes de ver o gato ou de ouvir a nossa voz. As crianças humanas têm de estar pré-verbalmente (e assim não- verbalmente) conscientes do mundo para que se tornem proficientes linguisticamente. Animal Rights, Human Wrongs Tom Regan
Apesar de não haver experiência direta dos estados
mentais dos outros (não podemos sentir a alegria ou o sofrimento de outra pessoa), parece razoável concluir que a consciência existe não apenas nos seres humanos como nos outros animais – algo que a semelhança dos sistemas nervosos vem reforçar. Immanuel Kant admitiu que os animais são sencientes (podem sentir dor ou prazer) mas pensava que não têm consciência de si nem direitos. Os animais seriam meros instrumentos ao serviço dos seres humanos para satisfazer Immanuel Kant (1724-1804) as suas necessidades.
Não temos deveres para com os animais excepto
indirectamente, quando a forma como os tratamos possa afetar as nossas obrigações para com outros seres humanos.
Ao tratar cruelmente os outros animais estaríamos a
fomentar a tolerância perante a crueldade e o desrespeito para com os seres humanos, algo que é inaceitável.
Como os animais são meros recursos de que dispomos
para a satisfação de necessidades humanas, é permissível usá-los, por exemplo, na investigação científica. A preocupação em evitar o sofrimento inútil aos animais é compatível com uma recusa em reconhecer-lhes um estatuto moral. Admite-se que temos obrigações para com eles (e. g., não os tratar cruelmente), mas considera-se que estas obrigações não resultam de direitos de que os Immanuel Kant (1724-1804) animais seriam os portadores.
Não se propõe o fim do uso de animais na investigação
científica (exige-se apenas que sejam anestesiados), na indústria alimentar e em atividades de outro tipo unicamente destinadas a satisfazer interesses e necessidades dos seres humanos.
Condena-se também o regime de produção intensiva de
animais em quintas industriais, onde as suas condições de vida estão muito longe das naturais, e promovem-se iniciativas que levem os governos a aprovar legislação que garanta aos animais (porcos, vacas, etc.) uma vida próxima do seu ambiente natural. Como outros recursos naturais (florestas, mares, terras cultiváveis, etc.), os animais foram quase sempre considerados, ao longo da história, como um recurso destinado a garantir a nossa sobrevivência e bem-estar enquanto espécie.
O filósofo Jeremy Bentham foi um dos primeiros a defender que a
forma como tratarmos os animais é uma violação dos seus direitos tão injustificada como o racismo:
Talvez chegue o dia em que a restante criação animal venha a
Jeremy Bentham (1748-1832) adquirir os direitos de que só puderam ser privados pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o negro da pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem remédio aos caprichos de um torcionário. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a pilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são razões também insuficientes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa poderia traçar uma linha insuperável? Seria a faculdade da razão ou, talvez, a faculdade do discurso? Mas um cavalo adulto é, para lá de toda a comparação, um animal mais racional e mais sociável que um recém-nascido de um dia, de uma semana ou mesmo de um mês. Mas suponhamos que não era assim; de que serviria? A questão não está em saber se eles podem pensar ou falar, mas sim se podem sofrer.
Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação
Jeremy Bentham como tratamos os animais A entrada de produtos no mercado destinados à limpeza doméstica, cosméticos, etc., envolve a realização de testes de toxicidade. Para avaliar o grau de toxicidade de uma substância – como um batom – é provocada a sua ingestão em animais através de tubos inseridos na garganta. O objetivo é saber a quantidade de substância necessária para matar 50% dos animais envolvidos na experiência. Antes de morrerem, os animais adoecem gravemente durante períodos mais ou menos longos. O grau de concentração das substâncias é tão elevado que torna irrelevante o resultado dos testes, pois não têm semelhança com as circunstâncias em que os produtos serão utilizados pelos seres humanos. O teste de Draize tem como objetivo determinar os efeitos nocivos de detergentes, champôs, cremes hidratantes e de limpeza, etc. O procedimento habitual consiste em colocar nos olhos de coelhos vivos e sem anestesia, gotas de concentrado das substâncias a testar e verificar o seu grau de irritabilidade. Os animais são colocados em dispositivos que os mantêm imobilizados apenas com a cabeça de fora. Os danos causados incluem a ulceração e destruição da córnea e da estrutura interna do olho. O sofrimento dos animais pode durar três semanas. Robert J. White conduziu várias experiências em cérebros vivos de macacos depois de separar as cabeças dos corpos com o objetivo de estudar o funcionamento do cérebro. Noutras experiências, os macacos eram mantidos vivos, sendo-lhes apenas removidos os ossos do crânio de forma a permitir o acesso ao cérebro. Os estudos prosseguiam com a introdução e ativação de eléctrodos nas áreas cerebrais cujo funcionamento os cientistas pretendiam estudar. A prática da vivisseção – nome dado à operação praticada em animais vivos – por vezes não anestesiados, para estudar os vários aspetos da sua fisiologia, é ainda hoje muito frequente. A pasta de fígado (foie-gras) obtém-se através da alimentação forçada de gansos e de patos durante várias horas por dia ao longo de três semanas. Para isso, são usados tubos que descem pela garganta dos animais até ao estômago. Alguns acabam por morrer em consequência do aumento de tamanho do fígado, que inibe a respiração. Para limitar ao máximo o gasto de energia e permitir que a gordura se acumule, os animais são mantidos em condições de imobilidade quase total. Os que sobrevivem são abatidos para o fígado ser removido. Nas lides com touros de morte, o uso de picadores (cavaleiros munidos de uma lança comprida e afiada que é introduzida no dorso do animal) destina-se a produzir ferimentos e hemorragias internas que o debilitem e impeçam de levantar a cabeça devido à dor causada pelo retesar dos músculos do pescoço. O toureiro espeta as bandarilhas nas zonas do dorso já brutalizadas e, após a lide, o animal é morto por uma espada dirigida ao coração que lhe perfura os pulmões. A espinal-medula é cortada com um punhal que tem o resultado de imobilizar o touro de modo a permitir o corte das orelhas e da cauda. O corte é feito com o animal vivo. ? Peter Singer Uma teoria utilitarista acerca do estatuto moral dos animais É hoje admitido que a existência de obrigações morais para com os outros animais não tem como consequência reconhecer-lhes direitos.
Mas dizer que as vacas, os porcos, os golfinhos, as
zebras ou as baleias não são humanos não implica que careçam de dignidade moral.
Pertencer a uma espécie é um simples facto
biológico sem qualquer significado moral. Ser um ser humano, uma baleia ou uma zebra significa apenas estar na posse de um certo código genético. Quando se afirma que a dignidade moral de um ser depende de este possuir um código genético específico está-se a cair no mesmo tipo de preconceito que serve de base ao racismo e ao sexismo.
A pertença a raças ou a sexos diferentes é
determinada pelos genes, mas isso não significa que os indivíduos (caucasianos ou outros, mulheres ou homens) tenham um estatuto moral diferente ou devam ser discriminados, i. e. tratados de forma diferente.
O racismo transposto para a relação entre
espécies diferentes chama-se ESPECISMO. Não devemos tratar de forma diferente pessoas ou indivíduos que, do ponto de vista moral, são iguais. A avaliação imparcial dos seus interesses exclui discriminar entre pessoas de sexo ou raça diferentes.
As diferenças físicas e psicológicas entre homens
e mulheres não têm qualquer importância moral, não podendo servir de justificação para atribuir aos homens e às mulheres direitos diferentes.
Mas se é racionalmente injustificado discriminar
as pessoas com base no sexo ou na raça, qual a característica que faz de todas elas sujeitos morais, detentores dos mesmos direitos e deveres? Como justificar a pretensão de que os nossos interesses sejam respeitados da mesma forma que os interesses de todos os outros?
Uma resposta para este problema é a de Kant:
têm estatuto moral todos os indivíduos dotados de razão. A comunidade moral seria formada por agentes racionais, capazes de usarem e compreenderem conceitos morais (e os direitos e obrigações correspondentes), de estabelecerem contratos entre si e de os respeitarem.
Mas será que Immanuel Kant tem razão neste
ponto? Que lhe parece? Peter Singer pensa que não. Se a racionalidade fosse adotada como critério para o reconhecimento de direitos, seguir-se-ia que alguns dos membros da espécie Homo sapiens não teriam direitos.
Nem todos os seres humanos são racionais. Uma
criança com um ano de idade, por exemplo, uma pessoa com uma grande limitação cerebral (congénita ou resultante de uma lesão), os idosos vítimas de senilidade, etc., não passariam num teste da racionalidade.
Em coerência, teríamos de concluir que nenhum
deles, apenas por não ser racional, possui direitos. Mas esta conclusão não é aceitável. Outra resposta para esta dificuldade é apelar para a condição de membro da espécie Homo sapiens. Não seria moralmente aceitável sujeitar uma criança ou um idoso senil a experiências científicas capazes de lhes causarem sofrimento (ou a morte) porque, embora não sejam racionais, continuam a ser seres humanos.
Mas defender que uma pessoa tem direitos
apenas porque é membro da espécie Homo sapiens faz-nos cair no preconceito a que Peter Singer chamou especismo. Estar na posse de um determinado código genético, como a raça ou o sexo, não tem importância moral.
O ESPECISMO faz tanto sentido – i. e. nenhum –
como o racismo ou o sexismo. A teoria de Peter Singer defende que é moralmente errado tratar os outros animais apenas tendo em conta os nossos interesses.
Enquanto utilitarista, a regra moral básica é o
princípio da utilidade: a ação moralmente obrigatória é aquela que, considerados imparcialmente os interesses de todos os envolvidos, mais probabilidade tem de trazer as melhores consequências.
Dado que consumir carne implica matar os
animais, uma consideração dos interesses de todos os envolvidos – nós incluídos – tem como consequência a rejeição completa da carne na alimentação (excepto quando necessário para a sobrevivência).
Peter Singer defende uma dieta vegetariana por
razões de ordem moral. Para um utilitarista, causar intencionalmente um prejuízo pode ser uma ação moralmente justificada, na condição de a soma dos seus benefícios ser superior aos prejuízos causados.
Aplicando esta ideia ao uso de animais em
experiências científicas (ou outras), a sua proibição não é absoluta, embora fique restringida aos casos em que os benefícios (no campo da saúde, embora não apenas) suplantem os prejuízos.
Embora não absoluta, se esta proibição fosse
aplicada pelos governos, uma imensa quantidade de sofrimento inútil seria eliminada: todas as experiências realizadas na indústria cosmética (os testes de Draize) seriam abolidas, e até na indústria farmacêutica, quando realizadas para testar novos produtos em áreas onde existem outros em abundância. Tom Regan Uma teoria deontológica sobre o estatuto moral dos animais A teoria utilitarista justifica a atribuição de estatuto moral aos animais não-humanos tendo como premissas duas ideias essenciais: uma conceção do bem e o princípio da utilidade.
Em primeiro lugar, defende-se que o bem-estar é
o nosso maior bem – por outras palavras, a única coisa com valor intrínseco.
Em segundo lugar, a nossa obrigação moral básica
seria a de optar pelas ações que previsivelmente tragam mais benefícios que prejuízos a todos os que por elas possam ser afetados.
O ponto de partida da teoria deontológica de Tom
Regan é que reconhecer direitos aos animais não- humanos não depende de aceitarmos estas ideias. Regan, aliás, rejeita ambas. A ideia básica de Tom Regan é que são os indivíduos em si mesmos, e não a satisfação dos seus interesses, quem tem valor.
É importante saciar a fome e a sede ou evitar o
sofrimento desnecessário. Mas o que conta, em última análise, são as próprias pessoas.
Damos valor à satisfação dos interesses porque as
pessoas enquanto tal são importantes. Na base do respeito pelos direitos de cada um está o respeito pelo valor e dignidade das pessoas.
O reconhecimento da dignidade moral das
pessoas obriga a tratá-las com respeito. Segundo Tom Regan, menosprezar o facto de as pessoas possuírem valor em si mesmas pode ter consequências indesejáveis.
A principal consequência indesejável é que um
objetivo louvável pode em certas circunstâncias justificar o uso de métodos reprováveis, que contrariam o nosso sentido de justiça.
Para um utilitarista, um objetivo louvável é aquele
em que o balanço entre benefícios e prejuízos, considerados imparcialmente os interesses de todos os envolvidos, é positivo.
Sacrificar a vida de um inocente para usar os seus
órgãos de modo a salvar a vida a cinco pessoas que precisam de transplantes com urgência, seria não só legítimo como até obrigatório. Para Tom Regan os indivíduos contam. E isto fá-lo rejeitar o princípio da utilidade:
Se os indivíduos têm valor em si mesmos, nem
sempre é permissível – e ainda menos constitui uma obrigação – optar pelas ações que melhores consequências tenham, especialmente quando fazê-lo implicar a violação de um direito.
Considerando imparcialmente os interesses de
todos os envolvidos, tirar a vida a uma pessoa inocente pode ser, em certas circunstâncias, um prejuízo menor comparado com as vantagens que essa morte traga. Mas isto parece inaceitável.
O princípio da utilidade colide, diz Regan, com o
sentido da justiça. O problema do utilitarismo decorre do facto de basear os princípios da moral nos interesses das pessoas e não nas próprias pessoas.
O utilitarismo parece não considerar que as
pessoas têm valor em si mesmas independentemente da utilidade que possam representar para a satisfação dos interesses de outros.
Como o utilitarismo só dá importância ao bem-
estar ou à satisfação dos interesses, e não às pessoas em si mesmas, é legítimo concluir que tirar a vida a uma pessoa inocente é permissível – e até imperativo – em qualquer versão de utilitarismo que defenda a obrigatoriedade de praticar as ações que maximizem a satisfação dos interesses ou do bem-estar geral.
E isto, segundo Tom Regan, errado.
Para Tom Regan, uma boa teoria moral deve partir do princípio de que o valor de cada pessoa não depende da utilidade que essa pessoa tenha para os outros. Todas as pessoas possuem valor intrínseco.
Este ponto de partida obriga-nos a responder a
duas questões suplementares:
(1)em resultado de que característica têm as
pessoas valor intrínseco?
(2)todos os indivíduos que possuem valor
intrínseco têm-no em igual medida?
O essencial da teoria de Regan está na resposta a
estas duas perguntas. 1. Por que têm as pessoas valor intrínseco?
As pessoas possuem valor intrínseco não por serem
racionais ou membros da espécie Homo sapiens, mas por serem sujeitos de uma vida:
Os indivíduos são sujeitos de uma vida quando possuem crenças
e desejos; perceção, memória e um sentido do futuro, incluindo do seu próprio; uma vida emocional associada a sentimentos de prazer e de dor; interesses, preferências e um interesse no seu bem-estar; a capacidade para iniciar ações com o objetivo de atingir os seus fins e de satisfazer os seus desejos; uma identidade psicofísica que se prolonga no tempo; um bem-estar individual no sentido em que as suas experiências de vida os tratam bem ou mal de uma forma que é logicamente independente da sua utilidade para os outros e de serem objeto dos interesses dos outros. Os que satisfazem o critério de serem sujeitos de uma vida têm um tipo característico de valor – valor intrínseco – e não devem ser tratados como simples recetáculos. Tom Regan Em Defesa dos Direitos dos Animais Os sujeitos de uma vida estão conscientes do mundo que os rodeia e do que se passa no seu interior. A nossa experiência é acompanhada quase em permanência pela sensação de estar ligada a um EU, pela sensação de que ela nos pertence intimamente.
A nossa experiência pertence-nos, tem um centro
focal – é a experiência de um EU.
Se o que confere dignidade moral às pessoas for o
facto de as pessoas serem sujeitos de uma vida, é preciso reconhecer que existem espécies animais além da nossa, constituídas por indivíduos que também são sujeitos de uma vida – e que nos obrigam a tratá-los com o respeito com que tratamos as pessoas. 2. Todos os sujeitos de uma vida têm igual valor?
Defender que um ser tem mais dignidade moral que
outro ser significa que ter valor intrínseco é uma questão de grau, e que alguns indivíduos podem tê-lo em maior grau do que outros.
Esta é uma ideia que pode ser atraente. Não são os
Homo sapiens membros da espécie mais evoluída e sofisticada de que temos conhecimento? Poderemos comparar as nossas capacidades às de qualquer outro animal? Não somos mais inteligentes, capazes de erguer civilizações e conhecer as leis da natureza, de desenvolver tecnologias e formas de arte com que os outros animais não podem sequer sonhar? Não será isto suficiente para nos conferir um valor (tanto quanto sabemos) sem igual?
Apesar de estas diferenças serem inegáveis, a resposta
de Regan é negativa. A tese de Regan é que todos os sujeitos de uma vida (um urso, um cavalo, um ser humano, etc.) têm idêntico valor intrínseco.
A ideia de que o valor intrínseco de um sujeito de
uma vida possa variar em função da sua maior ou menor inteligência, embora pareça atraente, tem algumas implicações bastante perigosas.
Supor que o valor intrínseco dos indivíduos varie
em função das capacidades intelectuais (ou outras) dos seus detentores, abriria a porta não apenas à discriminação entre diferentes espécies mas entre seres humanos. Estaríamos a abrir a porta a uma justificação do racismo e do sexismo, bem como da escravatura.
Poder-se-ia alegar que um escravo tem menos
valor que o seu proprietário, que um sexo vale menos que o outro, uma raça que outra raça. A recusa em discriminar pessoas em função das capacidades intelectuais (ou outras) impede, em coerência, de usar esse critério para atribuir aos Homo sapiens mais valor que aos ursos ou cavalos, etc. Maiores capacidades intelectuais não implicam maior valor intrínseco. Não podem implicar maior dignidade moral:
Os animais carecem de muitas das capacidades que os seres
humanos possuem. Não podem ler, fazer matemática avançada, construir uma estante ou fazer baba ghanoush. Mas muitos seres humanos também não, e mesmo assim não dizemos (nem devemos fazê-lo) que esses seres humanos possuem menos valor intrínseco, ou menos direito a serem tratados com respeito do que os outros. Tom Regan Em Defesa dos Direitos dos Animais
Newton ou Einstein não têm um estatuto moral
diferente do nosso pelo facto de serem pessoas muito inteligentes. Se diferentes talentos não justificam uma diferença de estatuto moral entre humanos, a sua ausência noutros animais não justifica atribuir-lhes um estatuto moral inferior ao que nós possuímos. A teoria de Tom Regan implica que é moralmente errado tratar os outros animais apenas em função dos nossos interesses.
Todos os seres com valor intrínseco merecem ser
tratados com igual respeito.
Enquanto Peter Singer admite que a avaliação
imparcial dos interesses é compatível com a utilização de animais em testes médicos (para a descoberta de novas vacinas, por exemplo), a perspetiva de Tom Regan é radicalmente abolicionista.
Os animais terem direitos significa que não é
permissível tratá-los como recursos destinados a satisfazer as nossas necessidades. Defender que no caso da investigação médica os nossos direitos suplantam os direitos que os animais possam ter não é solução.
Não temos o direito de descobrir uma vacina
contra o SIDA, embora tenhamos todo o interesse em fazê-lo. Mas os nossos interesses podem colidir com os direitos dos outros. Não é legítimo ignorar direitos apenas porque nos convém.
Temos interesse em descobrir vacinas para
doenças que afetam milhares de seres humanos (malária, etc.) mas não temos o direito de o fazer à custa de um tratamento desrespeitoso de outrem.
Não temos o direito de usar uma pessoa como
cobaia em experiências. Dado que as pessoas têm o mesmo valor intrínseco que qualquer outro sujeito de uma vida, se não é permissível usar uma pessoa em experiências médicas, também não é permissível recorrer a outros animais para esse efeito. O uso de animais na alimentação humana está sujeito ao mesmo tipo de restrições. O consumo de carne não é uma necessidade: podemos viver de forma saudável com uma dieta vegetariana.
O vegetarianismo é, segundo Tom Regan, uma
obrigação moral:
Quanto à pecuária, o mal fundamental não é os animais
estarem presos ou isolados em condições angustiantes, nem o facto de a sua dor e sofrimento, as suas necessidades e preferências, serem ignoradas ou desprezadas. Todas estas coisas são más, obviamente, mas não são o mal fundamental. São sintomas e efeitos de um mal mais profundo e sistemático que permite que esses animais sejam vistos e tratados como se não tivessem um valor independente da sua utilidade, como se fossem um dos nossos recursos – na verdade, um recurso renovável. Tom Regan Em Defesa dos Direitos dos Animais Carl Cohen Uma teoria deontológica contra os direitos dos animais Carl Cohen é famoso defensor atual de que os animais não têm direitos.
Embora tenhamos a obrigação de não tratar um
rato ou um coelho de forma cruel, isso não significa que seja imoral usar ratos ou coelhos em experiências científicas (para descobrir novas vacinas que permitam salvar a vida a milhões de seres humanos, etc.).
Segundo Carl Cohen, não é imoral fazê-lo porque
ao testarmos uma vacina num rato ou num coelho não estamos a violar os seus direitos.
Usar animais em experiências científicas (ou
outras capazes de causar morte ou sofrimento) seria tão inaceitável como usar um ser humano com um objetivo idêntico. O facto de alguém (humano ou não) ter direitos obriga a que seja tratado com respeito. Faz sentido falar em direitos a propósito dos seres humanos porque os seres humanos agem com base em preocupações morais.
Os leões ou as zebras não agem com base em
preocupações morais. Uma leoa, ao matar uma zebra para alimentar as suas crias, não comete uma injustiça. Não está a violar os direitos da zebra.
O seu comportamento é totalmente amoral.
Nada do que uma leoa possa fazer pode ser considerado moralmente certo ou moralmente errado. No mundo animal não há direitos nem deveres.
Os outros animais não têm qualquer intenção de
agir bem ou mal. Não formam, nas palavras de Cohen, uma comunidade moral. Ao atribuir direitos a um rato ou a um coelho estaríamos a cair num erro categorial.
Faz tanto sentido falar em direitos acerca de um
animal como um coelho ou um rato como dizer que Napoleão Bonaparte é um número primo.
Faz sentido dizer que um número tem a
propriedade de ser divisível apenas por si próprio e pela unidade. Faz sentido dizer que 4 é um número primo, embora seja falso que 4 é um número primo.
Mas não faz sentido atribuir a uma pessoa
características que só um número pode ter. Pessoas e números pertencem a tipos diferentes de coisas. Ao confundir tipos diferentes de coisas cometemos um erro categorial. O que dizemos não chega a ter sentido. Segundo Carl Cohen, só faz sentido falar em direitos a respeito de pessoas uma vez que as pessoas formam uma comunidade ética.
Falar em direitos acerca de seres que não fazem
parte de uma comunidade ética constitui um erro categorial porque estamos a confundir dois mundos [tipos ou categorias de seres] muito diferentes.
Os animais habitam um mundo amoral. Os
animais não têm intenções morais, não agem com o intuito de fazer o bem ou o mal. Os animais não orientam o seu comportamento com base em obrigações.
Num mundo amoral, falar em direitos
simplesmente não teria sentido. O argumento de Cohen é o seguinte: dado que os animais não compreendem conceitos morais nem têm intenções morais, não pertencem ao tipo de seres a quem o conceito de direitos seja aplicável.
(1)Os animais não vivem num mundo onde
vigorem conceitos morais. (2)Não pode haver direitos entre os que vivem num mundo sem moral. (3)Se não existem direitos entre os animais, não podem ter direitos perante nós.
Os animais não podem ter direitos.
O erro da terceira premissa
Os animais não podem ter direitos entre si nem,
pela mesma razão, deveres (não compreendem conceitos morais nem agem com base em intenções morais). Mas este facto não exclui que possam ter direitos perante nós – direitos que nos confiram obrigações para com eles. Afinal, as crianças muito novas não compreendem conceitos morais e, portanto, não têm deveres para com outras crianças também muito novas. Contudo, tal não significa que as crianças não tenham direitos perante nós. A resposta de Paul Cohen
Não defendo que a pertença de um indivíduo à
comunidade moral depende de este ter a capacidade para compreender conceitos morais. Defendo que para pertencer à comunidade moral é necessário fazer parte do mundo humano, o único em que existem direitos, independentemente das capacidades de cada pessoa.
O que habilita uma criança ou um idoso senil a
usufruir de direitos não depende das suas capacidades cognitivas atuais. Todos os seres humanos têm direitos porque são membros de uma comunidade moral onde os conceitos morais têm a sua origem. O segundo argumento de Paul Cohen
(1)Um indivíduo tem direitos se e apenas se fizer
parte de uma comunidade onde a ideia de direitos (e deveres) tem origem. (2)Os conceitos morais só surgiram no âmbito da comunidade humana. (3)Os animais pertencentes a outras espécies não fazem parte da comunidade humana.
Os animais não humanos não têm direitos.
Objeção
O problema do argumento reside no seguinte.
Do facto de a ideia de direitos ter origem apenas na comunidade humana, não se pode concluir que os direitos possam aplicar-se apenas aos seres humanos.
Como observou Tom Regan na resposta a Carl
Cohen, convém distinguir entre a origem de uma ideia e o âmbito da sua aplicação.
Uma ideia ter origem na comunidade humana
não implica que tenha aplicação apenas no âmbito humano. A ideia de gene, por exemplo, teve origem na comunidade humana – e apenas nela – não permite concluir que só os seres humanos possuam genes. Os animais têm direitos?Teorias René Descartes Immanuel Kant Jeremy Bentham Peter Singer Tom Regan Carl Cohen