A - Miolo - para Impressão

S e m p r e h á
Te mpo
p a r a s e r
fe li z
Liége Esteves
S e m p r e h á
Tempo
p a r a s e r
feliz
Copyright © 2021 por Liége Esteves
Sempre há tempo para ser feliz
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
Sumário
ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico,
fotocópia, gravação etc. Nem apropriada ou estocada em sistema de banco
de dados, sem a expressa autorização da autora.
Liége Esteves
1ª Edição
1ª tiragem - Dezembro de 2021
Edição
Editora Brilho Coletivo
Revisão:
Renata Rosa
Diagramação:
Danilo Barroso O COMEÇO��7
Capa:
Danilo Barroso O ROMANCE��15
ISBN: OPINIÃO��20
978-65-89417-50-7
AS AMIGAS��26
MARTA��29
MARTA E ROGÉRIO��39
CIP – (Cataloguing-in-Publication) – Brasil – Catalogação na Publicação A SEPARAÇÃO��46
Ficha Catalográfica feita na editora
A INDECISÃO ��61
Esteves, Liége
Sempre há Tempo para ser feliz / Liége Esteves – 1 ed. São Paulo, Editora Brilho
Coletivo, 2021. – 226 p.; 21cm (Brochura.);
LIDIANE��64
978-65-89417-50-7 A DECISÃO ��70
CDD B869.3 RELACIONAMENTOS��77
Índice para catálogo sistemático AUGUSTA ��80
1. Romance. 2.Ficção. 3.Literatura Brasileira. I. Título
JOVEM MARTA��87
O ENCONTRO��91
NA PRAIA��96
O CONVITE ��109
Brilho Coletivo
Av. Paulista, 1765 – 7ª Andar – Bela Vista – São Paulo-SP – CEP: 01.311-930 MARTA E O RUI��115
WhatsApp: 11 9-5078-1506 SÃO PAULO��125
contato@editorabrilhocoletivo.com.br
A SURPRESA��129
O CASAMENTO��153
O Começo
AUSÊNCIA DA AUGUSTA��157
A VISITA DO RUI��160
A VIAGEM��167
ISTAMBUL��169
O FÃ TURCO��177
ÚLTIMO DIA NA TURQUIA��181
O INESPERADO��184
MARTA E SEU DILEMA��202
E
MARTA DIANTE DA VERDADE��206 stamos no começo do mês de fevereiro, cidade de Porto Alegre.
A ESCRITORA��216 O relógio da sala acaba de anunciar, com suas badaladas, que
já são oito horas. Acabei perdendo a hora com a vinda do meu
SAUDADES��218 hóspede.
Chegou na tarde de ontem, mexeu em nossa rotina, vara-
mos noite adentro conversando, vinho e uma boa prosa são sem-
pre muito agradáveis. Só temos contato ultimamente com nossos
parentes, hábito adquirido com o Jaime, que não é dado a ter
amigos íntimos e vive dizendo: “Detesto pessoas fuçando a minha
casa, detesto fofocas. A minha casa é o meu templo e meu refúgio.
Só admito parentes próximos.”
No início estranhei, em muitas situações são os nossos fami-
liares as pessoas mais tóxicas em nossas vidas. Felizmente não é o
que acontece entre os meus. Com o tempo, fui me acostumando, até
que hoje acho ótimo, a minha profissão exige uma casa silenciosa.
A família já preenche demais as nossas vidas. Tenho sempre as tar-
des livres para trabalhar. Porém, no jantar e no almoço de domingo,
Jaime faz questão da presença de todos os filhos e netos. De vez em
quando, a ausência de alguns deixa meu marido chateado.
Já cansei de argumentar, querer obrigar a presença não adianta.
Hoje, por exemplo, é um desses raros dias em que ninguém foi obri-
gado a vir para o jantar e confesso ter conhecimento do quanto essa
decisão provocou um alívio nos filhos e agregados.
Sempre há Tempo para ser feliz 7

Rui veio ao meu pedido! Gentilmente cedeu umas horas do Ter sido recebido bem pelo meu marido foi um alívio, quebraram o
seu tempo para colaborar com o meu mais novo romance, por ser a gelo. Conversamos sobre vários assuntos após o jantar.
fonte mais fidedigna dos fatos não vividos por mim, junto às minhas Para o meu espanto, a copeira também me revelou: ambos
eternas amigas nestes últimos anos. Por sua teimosia, estou em falta tomaram o café, conversaram tranquilos e despediram-se amigavel-
com a editora. Por ser a fonte fidedigna dos fatos. Não foi fácil con- mente. Logo após, o senhor Rui foi caminhar, e o seu marido foi para
vencê-lo, finalmente, no começo deste ano, aceitou o convite. a cidade, vai permanecer na fábrica até a tarde.
Todas as manhãs, no verão, a primeira coisa que faço é dar um Terminei o meu desjejum, dirijo-me até a janela e lá estava ele,
mergulho na piscina, Depois deste ritual, tenho energia para enfren- conversando com o jardineiro. Apesar da idade avançada, era ainda
tar o dia, porém hoje o meu tempo será dedicado ao meu trabalho um homem atraente! O seu semblante despreocupado de quando
literário. Estranhei o fato de não o encontrar à minha espera. Estaria o conheci tinha desaparecido, mesmo assim continuava a ser um
dormindo, mas a copeira foi logo me avisando: “Os senhores Rui e homem de uma beleza simples aliada a um charme irresistível.
Jaime levantaram cedo e o hóspede foi caminhar. O Sr. Jaime foi para — Rui entra, já está na hora, vamos começar. Estou lhe espe-
a cidade, não virá para o almoço e passará o dia inteiro na fábrica.” rando na Biblioteca.
Jaime me emociona nestes momentos, desde a sua aposen- Passam trinta minutos, quando ele finalmente aparece na
tadoria, praticamente são os filhos os responsáveis pelos negócios. porta ofegante e chateado ao pedir desculpas pelo atraso, entrega-
Apesar de continuar supervisionando, são raros os dias em que se me uma rosa, não contive o riso, pois parecia um menino assustado,
dirige ao seu antigo local de trabalho. com medo de apanhar!
Tem o costume de exigir a minha presença, quando está em — O que tanto conversou com o Sr. Afonso?
casa, respeita o meu trabalho, sempre encontra com o que se ocupar — Gosta de falar esse seu jardineiro. Foi só eu elogiar o jardim,
na parte da tarde. Resolvi fazer uma ligação para o meu compa- começou explicar tudo sobre as rosas. Parece-me uma boa pessoa,
nheiro, em retribuição a tanta gentileza. mostrou gostar do seu oficio, parece ser muito competente, não foi
Ao sugerir que me esperasse na fábrica, propus que fôssemos fácil escapar do seu monólogo. O jardim está em boas mãos, é muito
jantar e depois dançar, ou assistir a algum show. Irei ao seu encontro bonito e bem cuidado.
após deixar o meu amigo no aeroporto. Concordou entusiasmado! — Sim, é muito competente, trabalha para o Jaime desde sem-
Há algum tempo não saíamos para um momento só nosso, precisá- pre. Cuida também do jardim da fábrica, mas este jardim não chega
vamos aproveitar a ocasião. Com o meu marido. nem perto do seu!
Fiquei aliviada em constatar que, tanto o Jaime quanto os — O jardim lá de casa é outra linguagem. Feito por um pre-
nossos filhos tinham entendido a importância da vinda do Rui. É miado paisagista
a primeira vez nesses últimos anos, vejo finalmente a casa vazia o — Bem, por hora vamos esquecer as flores, já estamos um
dia inteiro. Filhos e netos estão sempre me solicitando. Com a com- pouco atrasados. Vou lhe dar um exemplo para facilitar o meu tra-
preensão de todos, o meu trabalho vai render muito mais. balho, vamos começar com a Marta. O que levou você convidar a
O Rui volta de avião para São Paulo, às dezenove horas. Não Marta para ir à praia.
podíamos perder tempo, cada minuto era precioso. Era um homem —Sim! Depois você narra tudo sobre o período da minha
muito objetivo, deu tempo de passar tudo o que eu precisava saber. ausência, na vida de vocês.
Desde a sua chegada, percebi que ainda não tinha superado a Quando viu qual seria o título do romance, ao perceber a
sua perda, foi exatamente este o motivo o adiamento da sua vinda. expressão do Rui, tive a impressão de não ter gostado. Antes que
8 Liége Esteves Sempre há Tempo para ser feliz 9

argumentasse a sua insatisfação, rapidamente lhe expliquei: “Escolhi deles. Até a Amanda, a qual não conheço pessoalmente, sei da
este título por ter chegado à conclusão óbvia; todos nós seres huma- sua existência, sempre foi uma pessoa importante em sua vida.
nos, carregamos mais a dor, a desesperança e a infelicidade do que a Formada também em arquitetura, motivo da aproximação entre
alegria. Temos uma mente pervertida, nunca estamos satisfeitos com vocês. Começaram a ter um envolvimento romântico no dia da
o que temos.Vivemos ansiosos. E como a minha homenageada era formatura e, pelo filho, ficarão ligados para sempre. Se não fosse
uma pessoa positiva, feliz, apesar dos pesares, atravessou a sua vida pelo Jaime, hoje eu não teria uma família enorme. Estamos sem-
da maneira mais leve em que sempre dava um jeito de contornar pre conhecendo alguém novo. Isso enriquece a nossa vida, seja
os problemas. Vocês não eram mais jovens, quando conseguiram a por alguns segundos ou por um longo tempo. Você não é mais o
felicidade plena. mesmo de quando tinha vinte anos. Muita coisa foi acrescentada
— Você está me ouvindo? ao longo da sua existência. Principalmente através dos relaciona-
— Ah, sim! Eu estou ouvindo! Gostei muito do título depois mentos. Veja quanta experiência você teve com as três mulheres
da sua explicação. da sua vida. Enfim, estamos todos interligados nesta aldeia. Há,
dentro dos nossos relacionamentos, os que vieram para construir
Nós, seres humanos, seguimos o nosso roteiro como uma e outros para destruir. Os que passam e os que ficam. Temos
onda, por onde passamos deixamos pessoas e carregamos outras necessidade de trocar experiências com os nossos iguais, prin-
tantas. Como somos gregários, precisamos uns dos outros para cipalmente de nos sentirmos aconchegados. Deveríamos tolerar
saber quem realmente somos. Tudo está ligado! Formamos uma mais os nossos desiguais.
rede de relacionamentos, seja com pessoas próximas, ou com Minha amiga Augusta achava nisso tudo a grande oportuni-
pessoas distantes. Fazemos parte de uma rede de seres humanos dade para a nossa evolução!
trocando experiências diárias. Isso enriquece o nosso viver! Ao Veja o meu caso, mesmo tendo essa consciência, reconheço
misturarmos os nossos dramas diários, ao permitirmos que o que há situações em que nos apegamos demais às pessoas e não pen-
outro participe das nossas mazelas, somos cúmplices, mesmo samos no amanhã. Sem essa preparação fica difícil a separação. Viver
sem querer. Achamo-nos no direito de intrometermos na vida o momento é importante, como é importante ter a noção; nada dura
dos outros, dando conselhos ou sofrendo pelas pessoas, ainda para sempre! A vida passa tão rápido! E tudo o que há nela é uma
mais se são pessoas próximas. Cada ser é único, não é porque ilusão, somos verdades e mentiras.
eu tenho certa capacidade que o outro tem que ser igual. Temos O que eu penso de mim é diferente do que você pensa. E nem
que aceitar cada pessoa como é, com cada situação da vida seja um de nós está certo, tudo é um engodo.
ela agradável ou não. Se tivéssemos essa compreensão, seríamos — Você parece ela falando.
mais felizes, apesar de ser difícil nos livrarmos do que acontece — Estou citado os pensamentos do seu grande amor. Que mulher!
em nosso entorno. — Isso é uma grande verdade! Lidiane, nós éramos tão com-
pletos, não havia brigas, só harmonia, parecia ser eterno o nosso
Veja, se não fosse pela a Marta e pela Augusta, hoje não convívio, havia nela uma garra, um espírito bem mais jovem do que
seríamos amigos e compadres. Foi através delas a possibilidade o meu. A sua compreensão com a vida e as pessoas, era admirável.
dessa ponte. Se não fosse por você, eu não teria conhecido a sua Às vezes, penso se a merecia, há uma culpa por não ter ficado com
irmã, ou o seu filho. Apesar de não sermos tão próximos, sei ela quando éramos um pouco mais jovens. O casamento nunca virou
que eles existem, quem são eles, e quase tudo sobre a história rotina. Ela sempre me surpreendia.

— E se você a teve em sua vida, foi porque a mereceu. Rui, — Eu posso até lhe compreender! Desculpe, Rui! Tudo o que
talvez você precise deste tempo para dar mais valor ao tempo em que foi dito faz parte do meu ponto de vista. Não tenho direito de intro-
estiveram juntos. meter! Desde que você chegou, tenho tentado não tocar no assunto.
— Não nego que, além da minha prática diária com o jorna- No teu caso, já está mais do que na hora de você aceitar a realidade!
lismo, aprendi muito com ela. Afinal, já não é mais criança e muito menos uma pessoa desprovida
— Talvez seja por causa da minha idade avançada, a dificuldade de inteligência. Já se faz tarde a sua volta para vida.
de esquecer. Sinto um vazio enorme! Era sem dúvida à luz da minha — Eu já aceitei, mas me faz falta sua presença
existência. Às vezes, me pego lembrando quando lhe acariciava, e Vivencie o maior tempo possível com a sua netinha, aproveite
lhe dizia doces palavras me olhava sorrindo e falava: “Não confunda esse contato com esse bebe até que complete sete anos. E muito mais
apego com amor!” No começo, me desconcertava, logo em seguida, anos, se a menina continuar vivendo com você. Você não imagina
me abraçava, beijava-me, sorria rodopiava, depois agradecia por ser quanta alegria ainda vai lhe proporcionar. Agradeça tudo de bom que
tão feliz. Até agora não sei como posso viver sem aquele sorriso. a vida lhe ofereceu ao longo desses anos. Reavalie e verá, você mais
— Dê tempo ao tempo, porém há muito ainda para se viver. É ganhou do que perdeu. Depois... Quem ama deixa ir... Ela era espiri-
assim mesmo! Existem pessoas mais emocionais e outras mais frias. tualista, acreditava em vida após a morte. Chegou a hora dela, já não
Depois, eu tenho certeza... No caso de vocês, era um amor profundo, era mais jovem, deixe-a descansar em paz. Afinal, foram setenta e dois
não uma paixão qualquer. O importante nisso tudo é que foram feli- anos bem vividos. Ninguém se prepara para a morte, para as perdas,
zes! Eu imagino a falta que ela lhe faz! Em qualquer tipo de relaciona- só que está é a única realidade que temos do nosso futuro.
mento, quando optam pela separação, sempre é difícil, o emocional Não gostando muito do rumo que a conversa estava tomando,
fica abalado! Já em certas situações e para certas pessoas tudo é mais Rui levanta da poltrona exclamando:
complicado de ser digerido e transformado. Ninguém lida bem com — Bem, vamos ao que interessa! Depois da sua colocação,
a perda, com o fracasso dos seus sonhos. A transformação fica mais acho que você está certa.
dolorosa para aqueles que não se preparam. Quanto mais idosos nos — É isso! Que bom! Você pegou o espírito do romance. Por ser
tornamos, carregamos mais manias, mais apegados nos tornamos. uma homenagem, peço que revele todos os detalhes sem esquecer
Vivemos de doces lembranças. As experiências diárias, na de nada.
maioria das vezes, não nos torna mais realistas. O melhor a fazer é Seja prático e objetivo. Depende da sua verdade para a histó-
viver o presente. ria ser mais fidedigna aos acontecimentos. Não devemos condenar
As perdas acontecem a toda hora. Falar sobre a morte neste ninguém, muito menos tentar modificar as pessoas dentro do nosso
país ainda é um grande tabu. Ninguém se prepara para a maior das padrão de pensamento. Por isso, peço desculpa. Vamos ao trabalho...
transformações. Mais breve do que você pensa o seu sofrimento Devo confessar, estou bem curiosa para saber a parte da história,
pertencerá ao passado. No momento, pode até não acreditar, em que eu não estive presente. Agora, não adianta ficar curioso! Só
quando der por si, tudo será apenas uma doce lembrança. Tenho quando o romance for editado, você o lerá. Acabo de lembrar algo
certeza de que você não lembra da fisionomia do seu melhor amigo muito importante: quero que fique gravado. Rui, você sabia que foi
da faculdade, nem o que comeu uma semana atrás. Alivie um a minha amiga quem leu o rascunho do meu primeiro livro e me
pouco a sua mente. incentivou a publicá-lo? Foi ela também quem me aconselhou a não
— Você tem razão! Mas só quem passa por esta situação pode publicar o segundo sem antes rever o conteúdo. Não ter pressa e
avaliar, o quanto é difícil aceitar, éramos tão companheiros. entregar uma obra de qualquer jeito por pressão, não sei o porquê.

Não levei em conta os seus argumentos naquela ocasião. Sempre foi
tão sensata a minha amiga. Deslumbrada com o primeiro sucesso,
imatura acabei cedendo à pressão da editora. E o livro foi publicado
foi o maior fracasso.
Diante da minha primeira derrota e dos sábios conselhos da O ROMANCE
minha amiga, acabei mudando de editora e me tornei essa escritora
de sucesso.
— Nunca soube disso! – Respondeu o Rui.
— Devo à minha querida amiga todo o meu sucesso.
— Ok! Ela pode ter dado o primeiro empurrão, estimulando o
seu talento. Mas o mérito é todo seu.
— O trabalho foi exaustivo, mas muito produtivo.
Cada fato narrado desconhecido por mim nos levou a um
M
carrossel de tensões e emoções, mas, mesmo assim, correu tudo a eses depois, finalmente o romance é editado e chega às mãos
contento. do Rui. Diante do livro, hesitou, surge-lhe a dúvida, deveria
Ao nos despedirmos no aeroporto, agradeci a sua colaboração, ler ou não?
exigindo que voltasse a nos visitar. A capa mostrava o rosto de três mulheres: duas na
luz, a terceira na sombra. Só a foto das três mulheres já o deixa
deprimido. Anda de um lado para o outro dentro da biblioteca;
tomado pela emoção, decide: Não precisava ler, pois conhecia o
conteúdo! Pensa o quanto seria difícil rever aqueles momentos
felizes. Além da saudade, ia sentir ciúmes de certos momentos
que foram vividos por sua mulher. Sempre a proibiu de reve-
lar-lhe o passado, o qual, na opinião dele, só a ela pertencia. O
importante era a vida dos dois no presente.
Logo agora que está começando a se adaptar a viver
sozinho, mesmo a trazendo, bem viva em seus pensamentos.
Decide: Não! Não vai ler! Essa situação só vai alimentar a sua
dor! Tinha certeza! Surgiria do âmago da sua sombra um pesa-
delo de dor. Ler só ia aumentar a saudade e a enorme vontade
de aconchegá-la em seus braços. Ouvir a sua risada, escutar o
coração pulsando junto ao seu. Ouvir palavras cheias de sabe-
doria. Pronto, foi o suficiente para encher os olhos de lágrimas.
A perda ainda lhe era tão dolorida. Pensa: – A escritora espera
a sua opinião, não pode ser deselegante com a sua amiga. Abre
a página onde Lidiane lhe agradece a colaboração. Na página

seguinte, surpresa! Uma foto antiga das três, tirada na época da — Na certa jantou por lá! Pai, devia ter avisado a dona
adolescência. Fecha novamente o livro. Depois de tanta indeci- Margarida! O senhor sabe o quanto ela fica preocupada, está lá na
são, resolve realmente não ler! Coloca o romance na estante de cozinha à sua espera.
livros, sabe que mais cedo ou mais tarde haverá um dia em que — Eu já disse para essa senhora não se preocupar comigo, afi-
a sua curiosidade de rever os bons momentos vividos o levará a nal já sou bem crescidinho.
devorar cada página. Rui evita tudo o que a relembre, há muitos Dona Margarida está com o Rui desde que ele se formou na
conflitos ainda dentro de si. Procura mergulhar na sua antiga faculdade. Quando construiu a nova casa, acabou levando-a para
ocupação, aliviando um pouco tanta responsabilidade nos perto de si. Além de cozinhar, sempre teve o papel de governanta,
ombros do seu filho. Afinal ainda tinha a sua família, e alegria ficou ao seu cargo a incumbência de contratar os funcionários.
de ver a netinha cada vez mais esperta, trocando as letras “v” Desde então, age como fosse mãe do Rui, que, apesar da grande
por “b” ao pronunciar bobo, à qual ele sempre responde: O seu estima que nutre por ela, procura manter uma certa distância.
avó é um bobo mesmo! A menina tinha recebido o nome de Dona Margarida fica aflita quando ele demora a chegar. Nunca
Clara Augusta. Em homenagem às suas avós. A nora tinha um negou que sempre sentiu ciúme das mulheres dele. Com a Marta
grande carinho por Augusta. A menina enchia o avô de muita ainda foi pior!
ternura. Longe da neta ou de uma ocupação qualquer, as lem- Dizia claramente que nenhuma delas servia para o patrão.
branças ainda o atormentam. Adora a presença do filho e da Ultimamente, Rui vem irritando-se com os cuidados excessivos que
nora morando com ele. Apesar de, na maioria do tempo, Clara ela lhe dedica.
ficar com a Amanda. Apesar de ser ele, durante a semana, a ir João Paulo quer saber se estava tudo bem com a tia e o resto
buscá-la todas as tardes na casa da avó, acaba sentindo ciúmes da família?
da criança, por ser tão apegada a Amanda. — Está tudo bem! As filhas estão preocupadas, são da opinião
Foi ele mesmo a sugerir a permanência da criança junto de que já passou da hora da mãe ir morar com a mais velha.
à avó até ela ter idade para frequentar uma escola infantil. Mas Rui também vive insistindo para sua irmã, mas sabe o quanto
acabava não achando justo tal sentimento. Incoerências de ela é teimosa. Cada vez que a visito, pergunta por todos... Quando
seres humanos! a gente ameaça responder, nos atropela e responde por nós. Não dá
Cada gracinha da menina relembra-lhe quando a sua mulher nem tempo de respirar, que dirá avisar alguém da minha demora!
sonhou com a chegada dessa criança, o quanto ajudou a nora do Rui Depois reclama o tempo todo, que vive sozinha, e o quanto a famí-
na decoração do quarto e no enxoval. lia tem lhe abandonado. Visito-a todos os sábados, já que nesse dia
não vou pegar a Clara, ainda sou acusado de abandoná-la. Você
Uma semana depois de ter tomado a decisão de não ler o acredita que hoje ela me perguntou por que a minha mulher não
romance, ao chegar em casa tarde da noite, encontra o seu filho, João foi mais visitá-la?
Paulo, com o livro na mão. — A surdez e a saúde frágil, deve estar sentindo-se muito só.
— Boa noite! — Mas se recusa ir morar com a filha.
— Boa noite! O senhor demorou. Já faz mais de duas horas Você precisa ir vê-la! Levar a Ritinha, mesmo sem a sua mulher.
que jantamos. Não havia condição de convencer a nora do Rui a gostar da
— Fizeram bem em não me esperar, estive na casa de sua tia Iracema.
tia Iracema. — Pai, você já leu? Gostou do resultado?

— Eis a solução! Como não pensei nisso antes! Estava tão sentir-se só vai à casa da Amanda, sua eterna amiga, onde durante o
angustiado! Na certa, você está interessado em ler? jantar conversam sobre o passado e o presente.
— Sim! Estou bem curioso! O romance já está vendendo bas- Rui fica irritado quando alguém se intromete em sua vida.
tante. É mais um grande sucesso da sua amiga Lidiane. — Tenha uma ótima leitura. – Boa noite!
— Que bom! Já está à venda? E eu ainda não dei resposta — Antes de me recolher vou dar uma passada na cozinha,
para a autora. Meu filho, você vai me salvar de uma situação dizer à dona Margarida que também vá descansar. Boa noite, meu
constrangedora. filho! Ah! Depois de ler, empreste o livro para a Amanda. Sua mãe
— Calma, pai! Não estou entendendo! também faz parte desse romance.
— João Paulo, não tive coragem de ler...
— O senhor Rui ainda não teve a curiosidade de saber se ficou
bom? Se o enredo está bem fiel à história real?
— Não tenho o menor interesse! Decidi que, pelo menos por
enquanto, não quero rever essa história.
— Eu não entendo. Pai, vai completar um ano! Está na hora de
encarar a realidade de frente.
— Tenho plena consciência de que a vida continua!
— Então, procure entender. Essa história de ficar preso ao
passado é coisa de pessoas idosas. Pensei que não ia acontecer
com o senhor. Afinal, teve sempre uma vida rica de aconteci-
mentos até há pouco tempo. O senhor foi sempre um homem
ativo, inteligente, de emoções maduras, equilibradas, para cair
nessa prostração.
— Não há revolta, mas vamos dar tempo ao tempo, até que as
lembranças já não causem tanto sofrimento.
— Vivi muitos anos da minha vida sozinho, mas ela preencheu
como ninguém meus últimos anos, sem cobranças.
— O senhor tem muito ainda para viver. Eu o vejo cada vez mais
deprimido, distante. – Ela era um sol, irradiou a vida de todos nós.
— Só que para ela, o tempo acabou. O seu momento ainda
está aqui no presente.. Ninguém está proibindo de esquecer as suas
boas lembranças. A sua mulher era bem mais velha, seguiu a ordem
da vida. Lembra quando dizia: “Vivo só o presente, saboreio cada
momento”? O senhor devia fazer o mesmo.
Na realidade, Rui não tinha a menor intenção de esquecê-la.
As lembranças lhe fazem bem, vão florir até os últimos anos da
sua existência. Depois, não pretende encontrar outra mulher. Ao

Até os meus quinze, gostava de ouvir os seus argumentos.
Ficava maravilhada com a sua sabedoria, me dava impressão de ser
mais velha do que era. Sobre as nossas conversas, nada contava para
OPINIÃO a minha mãe.

Depois comecei a dar a minha opinião. Quando entrei na
faculdade de jornalismo e ela foi cursar o magistério, nos víamos
bem menos. Fui convidada a participar de uma festa na casa de um
rapaz da nossa turma de jornalismo. Quem foi comigo? Augusta!
Depois de uma meia hora, o comportamento dos convidados
não vinha nos agradando, resolvemos ir embora.
No caminho de volta, o comentário girava em torno de como
éramos diferentes uns dos outros. Ansiosa e desapontada com o
desfecho do nosso passeio, não parou de falar. Sem dar brecha para
R
evendo detalhes do nosso passado, vou passo a passo pene- minha opinião, calada, quase não consigo lhe dar boa-noite. Aquela
trando em nosso roteiro, Chego à conclusão: tivemos um vida noite, confesso, me deu vontade de esganá-la.
maravilhosa e intensa. E como dizia a minha amiga: No dia seguinte, cheguei lhe dizer a verdade, de nada adiantou.
— Seja qual for o lugar do mundo onde há seres huma- A sua necessidade de se expressar era maior que ela.
nos, agimos todos emocionalmente iguais, salvo raras exceções, em — Sinto muito! Nós é que não devíamos ter ido àquela festa
qualquer país deste planeta. onde você nem conhecia o dono e os convidados direito.
Existem ódios, mágoas, ciúmes, despontamentos, depressões e Somos três amigas, cada uma com uma personalidade diferente
traições. As tramas e os dramas do cotidiano se repetem; sejam quais da outra. Compreender o outro! Conviver, como é difícil essa equação!
forem os conceitos e costumes, há sempre corrupção, e os poderosos — Eu e Augusta nos respeitávamos em nossa maneira de ser.
massacrando as multidões. Apesar de, quando éramos jovens, a minha amiga não gostar
Temos uma visão encoberta por uma névoa, atrapalhando a de ser contrariada, naquela noite da festa, desandou a falar tanto
clara visão da realidade. Na jornada da vida, gastamos muita energia sobre o que achava da sociedade vigente.
com bobagens. — Esse pessoal sempre teve os pais ausentes e vivem em con-
Jogamos o nosso precioso tempo fora. O homem está sempre flitos. Nós também tivemos dificuldade em compreender. Somos de
atrasado, correndo atrás da tecnologia, usando o tempo e a moder- gerações diferentes, apesar de nós não os termos mais presentes, nos
nidade a nosso favor, mas não evoluímos como seres humanos, no passaram os seus valores. Houve um choque. Também seremos alvo
mesmo ritmo. Achamos que a vida não tem propósito nenhum, e o de conflito se impusermos aos nossos filhos regras antigas. O homem
quanto é difícil viver. Atraímos o sofrimento. Infelizmente a nossa necessita de ser amado, acolhido pelos pais, amigos ou professores?
dificuldade de entender esse propósito da existência acaba atrasando Essa é uma questão que sempre me intrigou, somos mortais, hoje
o nosso desenvolvimento. estamos, amanhã não sei, ninguém aceita o fato. Somos humanos,
inseguros e carentes, engatilhando numa rede de incompreensão. O
E, para quem não está pronto, não adiantam palestra, cursos amor move o mundo, só pelo verdadeiro amor o homem se encontra
de autoajuda, frases feitas, nem reza brava! e entende o objetivo de tudo o que o rodeia. Não esse amor rasteiro,

cheio de imposições, apegos e ciúmes. Os seus novos colegas são tinha a maior dificuldade, ao longo da minha existência, de expressar
pessoas livres, sem compromisso. Vivendo o mundo atual. o meu amor por alguém em palavras. Eu sempre demonstrei em ati-
tudes. Simples palavras não me dizem nada. Já no caso da Augusta, é
Sendo pessoas de fé, Augusta e Marta eram muito religiosas; uma dessas raras pessoas que diz e demonstra em atitudes o seu afeto.
ou melhor Marta era religiosa, depois de um tempo, Augusta tor- Sempre me desarmava quando tocávamos em assuntos diver-
nou-se espiritualista. Mudou a visão, mas não a mania de falar. Tudo gentes. A nossa convivência fluiu bem melhor a partir desse pacto.
se move através de uma grande energia. Não há cobranças entre nós. Só uma profunda amizade baseada em
Desde muito jovem esteve convencida: o nosso destino compreensão, amor e muito respeito.
depende apenas de nós, mas, segundo ela mesma, existem situações Quantas vezes, ao nos encontrarmos à tarde, na praça do
na nossa vida que já vêm marcadas. Temos que passar por essas nosso bairro, dávamos boas gargalhadas ao ouvir os seus argumen-
situações, não por castigo, mas para facilitar o caminho da evolução. tos sobre os rapazes.
A humanidade segue numa busca insana atrás da ilusão da falsa feli- Certa vez quando surgiu o computador e se tornou popular
cidade, sem os reais objetivos da vida. E assim vamos vivendo num comentei as pesquisas pela internet, o qual ela era contra, argumen-
círculo vicioso. tava que na antessala da era de Aquário, a humanidade vivencia o
Ao acreditar não haver sentido nenhum, só aumenta o seu ápice da revolução na área das comunicações tecnológicas refor-
tormento. Eu não me sentia presa a nada. Nessa época, havia muita çando cada vez mais a expansão dos nossos conhecimentos. Esse
paz em meu ser. Eu e minha família seguíamos o nosso dia a dia impacto reabriu um novo diálogo de possibilidades para o homem
com muita tranquilidade, eu vivia fora da realidade do mundo. Era voar mais alto, um ótimo aliado para as pesquisas dos alunos em
o tempo todo amparada e protegida. Se a humanidade deste mundo benefício ou para a destruição do planeta.
sofria, para mim não importava, se nós estávamos bem. A internet, com as suas redes sociais, é uma realidade, interligando
Há muito deixei de contestar as suas crenças, principal- pessoas com os mesmos interesses em todo o planeta, fazendo com que
mente quando dizia: “Podemos mudar o nosso trajeto com o o mundo fique menor. E, nesta aldeia global, em minha opinião, apesar
nosso livre arbítrio, mas só dez por cento. Devemos agir intensa- de ser uma comunicação fria, cada vez mais se criam mecanismos para
mente, sem ficarmos presos ou sermos escravos dos nossos atos... nos abrirmos para um novo mundo, mesmo sendo a morte dos diálo-
Usar, mas não abusar!” Quando eu não concordava, respondia: gos, do olho no olho, com essa tecnologia ninguém mais conversa.
“Não vamos discutir! Isso é bobagem, perda de tempo. Sou o que Para ela, essa nova forma de diálogo não passa de uma situa-
sou! O resultado das minhas crenças. Você tem todo o direito de ção desastrosa. Como sempre fez uso da linguagem falada, recla-
ser como é... Plena em seus conceitos. A minha alma respira o mava sempre por não ter mais com quem conversar. Dizia: “Essa
Universo, em uma fé convicta, promovendo em mim a maravilha nova linguagem de comunicação é tudo de ruim.” Chegava a ficar
desse mistério. Agora, você é do tipo que precisa ver para crer. irritada! “Vivemos na era da morte dos relacionamentos pessoais!”
Portanto, estamos em lados opostos. Apesar das nossas diferen- Resistiu ao máximo se envolver com as redes sociais. E eu até
ças, saiba, eu te amo! A melhor coisa a fazer é respeitar as nossas concordo quando argumenta: “Esse tipo de linguagem reforça o
opiniões.” E sorria. mundo das aparências e das falsidades, onde todo mundo é lindo,
Ao chegarmos na maturidade, a via bem serena e menos ansiosa. maravilhoso, talentoso. Facilita a vida da aparência, e não do con-
A nossa ligação era muito forte. Demonstrar o seu bem-querer era teúdo.” Apesar dessas argumentações, eu sempre achei graça quando
exercido por ela com a maior facilidade. Assim era Augusta! Já eu afirmava não ser desse tempo. Posso afirmar com segurança, minha

amiga está sempre além do tempo! Sua maneira moderna de ser às E, hoje em dia, damos mais importância à tecnologia do que
vezes até me assustava. Cada um de nós é um ser fantástico, embora aos seres humanos. Agimos todos como robôs. E o interessante
só uns aflorem o seu potencial, outros, não. Apesar dessa consta- disso tudo: raramente damos conta dos nossos defeitos psicológi-
tação, Augusta sempre teve plena convicção: “A internet ajuda as cos. Tudo bem, a tecnologia vai ser cada vez mais a linguagem do
pessoas sozinhas e os idosos a se distraírem. São tantas as facilidades futuro. As crianças já vêm preparadas para esses novos tempos,
que ela nos oferece.” Mas, mesmo assim, faz pouco uso dessa tecno- mas nós, os mais velhos, entramos em choque com essas novas
logia, dizendo sempre: “Eu sou do tempo da simplicidade, não me formas mecânicas de nos expressar! Cada vez mais as pessoas se
adapto inteiramente a este novo mundo cheio de complexidade.” Se cruzam e se envolvem num desapego, cheios de solidão, vamos
ela não tivesse a mim como amiga, para ouvi-la, e o seu talento para cumprindo o rumo da história de cada época. Ao mesmo tempo,
explicar a matéria para os seus alunos, na certa já teria pirado! não queremos ser pessoas invisíveis.
O objetivo da vida é, sem dúvida, o amor. Ser invisível mal-
Conheci um rapaz no primeiro ano de faculdade, com três trata qualquer um. Bem, como estamos na antessala do futuro – seja
meses de namoro já quis ficar noivo, estava bem de vida, foi logo o passado, o presente ou o que vier pela frente, só há um caminho, o
propondo casamento sugerindo que eu largasse a faculdade. Ao do amor, em todos os sentidos.
saber, Augusta me deu muito apoio quando da minha decisão em Não estou falando do falso amor entre um homem e uma
desfazer o compromisso. mulher, mas em todos os sentidos: amor de pais, amigos, parentes e
— Por que a humanidade só atrai sofrimento em vez da feli- filhos. Os vários tipos de amar sem distinção. Haverá um tempo em
cidade? Porque os nossos desejos falam mais alto. Temos a necessi- que todos entenderão o amor universal e, mais adiante, o transpes-
dade de sermos amados, reconhecidos por nossos feitos. Faz muito soal. Não que eu os conheça e pratique. O amor não existe, é mais
bem em se separar desse rapaz. Ainda é muito jovem, essa coisa de uma invenção do homem.
que só no casamento seremos felizes é coisa do passado. Tudo é uma Recebi de presente um livro da Augusta sobre esses temas
questão de escolhas e atitudes. Ainda bem que você não caiu nessa quando demonstrei o interesse de saber mais sobre o assunto. Não
esparrela. Um jovem vazio; machista e egoísta. Não lhe faria feliz. cheguei à página seis. Sem aceitar o conteúdo, realmente não houve
Quando eu era jovem, ao ouvir suas palavras, a dúvida muitas vezes interesse; discordava de algumas informações ali contidas. Fui ler
me angustiava por uns dias. Augusta, ao perceber o meu interesse dez anos depois.
em saber a verdade, me emprestava os seus livros. O Bhagavad-Gita, escrito pelo filosofo Humberto Rod Hohden.
— Não acredite em tudo o que lê ou te falam, forme a sua Esse livro foi libertador para mim. Apesar de não concordar
própria opinião. com muita coisa. Nós criamos mais o inferno do que o céu. Este foi
o livro de cabeceira da Augusta por muitos anos.
Nós, seres humanos, relacionamo-nos, trocamos as nossas
energias, cheios de heranças do passado. Temos medos, culpas, A vida é cheia de argumentos e possibilidades, e sempre está
complexos. São contextos fortes, cheios de obsessões individuais, nos surpreendendo. E foi nesse emaranhando de possibilidades
coletivas, carregados de inveja, ciúmes, desencanto e desamor. que as minhas duas amigas de infância se envolveram num des-
Vamos construindo o novo tempo, empurrando a nossa existência, tino cruzado, modificando a vida de todas nós, parentes e amigos.
tentando sempre nos adaptar à nova onda, descuidando-nos, com Mesmo sendo eu a menos atingida, houve respingos por ser pró-
raras exceções, de nós mesmos. xima de ambas.

Criando coragem, veio se sentar ao meu lado, e as suas primei-
ras palavras foram: “Você está linda com este vestido!” Aquela criança
com as bochechas rosadas nunca mais saiu da minha mente. Sua ima-
AS AMIGAS gem parecia ter saído de um quadro. Fiquei encantada com as suas
palavras, já demonstrava ser uma criança muito inteligente. Não para-
mos de conversar, em poucos minutos já estávamos correndo pela
festa com a garotada. Foi nesse momento mágico, na pureza de duas
crianças, que selamos uma união para sempre. No dia seguinte, por
intermédio dela, conheci a Marta. Infelizmente, desde o começo, não
houve uma afinidade entre nós. Marta estava com noves anos quando
fomos apresentadas, me cumprimentou com indiferença, já se achava
adulta. Era bem desenvolvida para a sua idade, uma pessoa de traços
fortes realmente muito bela, corada e alegre.
M
arta, Augusta e eu... Ah! Ia esquecendo de dizer: eu sou a Nós relacionávamos através da Augusta. E, por causa dela, nos
Lidiane, jornalista, filha de pais amorosos, casada duas vezes, suportávamos.
e tive três filhos. Desde muito jovem, sempre li muito. Em Fui praticamente criada pelos meus avós. Deles, recebi muita
relação a muitos assuntos, ouvia, lia... A universidade e a informação e o gosto pelas artes em geral. Vovó criava muitas his-
minha vivência no jornal mudaram a minha concepção do mundo. tórias infantis, também escrevia poesias. Eu adorava ajudar a con-
Ah! Augusta também! feccionar os seus livrinhos artesanais de conteúdos infantis. Vovó
Quando os meus pais vieram de Porto Alegre para São Paulo, não os confeccionava para obter lucro, tinha o maior prazer de me
fomos morar no mesmo bairro e na mesma rua onde viviam Augusta presentear, e também às suas sobrinhas e às crianças dos colonos.
e Marta. Dela herdei o gosto pela escrita.
Morávamos em uma casa grande. Apesar da minha pouca Desde a nossa adolescência, comecei a perceber que eu era, das
idade, amei o lugar, era bem bucólico, havia muitas crianças. três, a mais quieta, Augusta a mais expansiva, e Marta um enigma.
Tornamo-nos grandes amigas, compartilhamos do mesmo Até hoje sou mais de ficar na minha. Quando o gelo é quebrado, aí
colégio e dos mesmos sonhos. Desde pequena, sempre fui uma eu me relaciono fácil.
pessoa mais pé no chão, fria e fechada. Nunca fui de grandes Estranha mesmo, sempre foi a Marta, da qual eu nunca fui
demonstrações de emoções. E tenho plena convicção de que muito íntima. Diria que a minha relação com ela sempre foi mais
até hoje sou assim. Tenho dificuldade de fazer amigos, e sei o de uma amiga de infância ou de uma irmã com a qual não se tem
quanto as pessoas me acham enigmática, antipática, esquisita. nenhuma afinidade.
Conheci a Augusta no prezinho, Ambas tivemos que esperar o A sua presença me fazia mal, só mais tarde descobri o porquê.
ano seguinte para entrar no primeiro ano. Mesmo sendo ela oito Tinha ciúmes da Augusta.
messes mais velha. Sou bem nascida, a minha casa e a do jovem Adernar eram
Foi na festa de aniversário do meu vizinho, o menino Ademar, bem mais amplas e bonitas das do restante do bairro, tínhamos até
que a nossa amizade se tornou sólida, na troca de um sorriso ingê- piscinas. Eu tive mais sorte que as duas, apesar da beleza estonteante
nuo e na insistência do seu olhar, admirada pelo meu belo traje. da Marta.

Eu sempre soube o quanto eu era favorecida financeiramente,
aliada à minha inteligência e a uma certa dose de perspicácia, isso
me favoreceu ao longo da minha existência. O fato de ter recebido
muito amor de meus avós e dos meus pais foi fundamental para o
meu desenvolvimento equilibrado. As sardas em meu rosto demons- MARTA
travam ser um tipo exótico de beleza. Eu e a Augusta nunca repeti-
mos de ano. Já a Marta... Marta aquele tipo de pessoa que nasceu
com outro tipo de talento, aos onze anos, começou a cozinhar, se
tornando uma excelente cozinheira. Igual a tantos seres humanos,
não tinha talento para os estudos. Mas os pais a forçavam a frequen-
tar a escola. Resultado: não passou do ensino básico.
— Papai veio para São Paulo por estar cansado da vida de
agricultor, abriu um depósito de bebidas nacionais e internacionais,
C
comercializava inclusive os vinhos da vinícola dos meus avós. idade de São Paulo, vinte nove de junho, início da virada das
Papai sempre foi um ótimo comerciante, muito bem-sucedido nossas vidas.
em seus negócios. Marta de Oliveira Costa é o seu nome. Nascida a três
de março, no alto dos seus quarenta e seis anos, dos quais
vinte e nove anos viveu casada com Rogério. Dessa união teve
três gravidez, a primeira interrompida. A menina, sua primeira
filha, nasceu morta. Mais um dos golpes que a vida lhe pregou!
Impregnada pelo seu passado, vem vivendo, ou melhor, vem
arrastando a sua existência tornando aqueles momentos mais
difíceis do que já eram. Na realidade, foi sempre uma pessoa
de emoções profundas: mimada, depressiva, invejosa, sem ini-
ciativa. Ao meu ver, debaixo daquela fragilidade, escondia uma
pessoa vingativa e rancorosa. Ao longo da sua caminhada, nunca
conseguiu ser responsável por si, muito menos pelas outras pes-
soas. Sempre teve quem cuidasse dela, primeiro, a mãe, depois, o
marido, agora, Augusta. Essa demorou a ver a verdadeira face da
Marta, por amá-la e estar sempre próxima dela. Na minha opi-
nião, Marta era, para Augusta, a filha que ela nunca teve.
Assumir responsabilidades àquela altura da existência era para
Marta uma carga muito pensada, preferiu entregar-se ao desalento.
Na verdade, eu diria que a sua rede de neurônios não lhe pro-
porcionava enxergar a realidade.
Passava a ter inveja das pessoas fortes e vencedoras.

Hoje, uma bela manhã de domingo, os primeiros raios sola- No caso da Marta, sinto que ela se acomodou nessa situação.
res nos informam: A temperatura está bem mais alta que a dos dias As paredes daquela velha casa sem pintura e cheia de infiltra-
anteriores. ções colaboram com a situação de ânimo bem estranha daquela
Marta, enclausurada em sua antiga casa, não desfruta os ares mulher. Marta nem sempre foi assim, estava quase com treze
daquela belo momento. Aguardava ansiosa a chegada da Augusta. anos, quando sofreu o primeiro baque da sua vida: a morte ines-
Nem as janelas da casa teve a coragem de abrir. Deitada na sala em perada do pai e a do seu irmão caçula, pessoas pelas quais tinha
um sofá todo ensebado, cabelos embaraçados, atitude normal, de muito carinho. Este fato a transformou totalmente, deixando-a
quem se incorporou ao papel de vítima. com um pessimismo à flor da pele. A maldade toma conta da sua
Essa atitude vinha se arrastando por não conseguir lidar sozi- ingênua juventude, maltratando os seus parentes. A luz do o seu
nha com as suas crises. Situação esta cada vez mais presente e mais rosto se apagou.
forte, sentindo-se completamente deslocada, uma névoa a confunde Foi exatamente nessa ocasião que as pessoas próximas começa-
a enxergar a realidade de maneira concreta, acha impossível retor- ram a perceber... Havia uma atitude estranha em seu comportamento.
nar à vida social. Presenciando a situação, tinha certeza de estarmos Esse modo novo de ser, para mim, já estava escondido em seu
lidando com uma pessoa bipolar. Não posso tocar messe assunto âmago. O seu humor passou a ser muito variável. Quando perdeu
com a Augusta, mesmo tendo plena certeza tratar-se de uma pessoa a filha, aparentemente, era de uma indiferença total, apesar da sua
doente e que precisava ajuda de um psicólogo. mãe ter presenciado o quanto ela chorou escondida de todos.
Eu vivia dizendo para Augusta: “O tempo nos dirá quem tem razão.” Era uma jovem belíssima, herdou do pai, de origem Alemã
E essa certeza ficou cada vez mais forte em minhas convic- tamanha beleza. Em compensação, sempre teve muito mau gosto
ções! Nesse tempo, eram difíceis os dias em que não surgissem cri- para se vestir, diria até que, quando éramos jovens, sempre me
ses lhe atormentando, como era bem confuso para nós entender a invejou! Se eu colocasse um vestido, ela também tinha que se
sua mente. Ou havia uma preguiça mental para reverter a situação. vestir mais ou menos igual, se eu colocasse uma tiara, um laço no
Circulava automaticamente do seu quarto para sala, da sala, para o pescoço, ou lenço na cabeça, ela também tinha que sair assim. Se
quarto, essa era a sua rotina, a TV raramente ligava. eu comentasse algum fato, comentava algo parecido. Enfim, havia
O rapaz que lhe traz a quentinha todos os dias nunca a nela uma tentativa de sempre me imitar, e se igualar a mim. O seu
conheceu! comportamento diante das outras pessoas e dos filhos foi sempre
O mesmo, orientado por Augusta, deixa no chão perto da frio, distante e indiferente. Essas perdas fizeram da Marta uma
porta, toca campainha e vai embora. Muitas vezes, Marta pega a pessoa mais esquisita do que sempre foi. Para mim, além do pai
comida e nem come e do irmão caçula, ela só gostou com um sentimento verdadeiro
O engraçado ou trágico dessa situação é que Marta, como de mais duas pessoas nesta vida: o Rogério e a Augusta. Essa sim
Augusta, desde muito jovem tinha um exagerado apetite. E pensar... lhe foi de grande importância no contexto real da sua existência.
Passa até fome, e nem dá conta, de tanta comida. E nesse modo de se Nada mais parecia lhe interessar! Lembro-me: quando criança
fazer de vítima, para chamar a atenção da Augusta, foi se arrastando, não comia feijão de jeito nenhum. Frutas nem pensar. Também
vivenciando um caso típico depressão profunda. Atitude de quem tinha a mania de tomar qualquer líquido sem açúcar. Agora, se eu
realmente abandonou a vida! aparecesse comendo alguma fruta, lá ia a Marta pedir para a mãe
Eu tinha pleno conhecimento do quanto a depressão cor- que queria comer uma igual. Se não tinha, ficava furiosa com a
rói a mente de muita gente, sendo verdadeiro o seu sofrimento. sua progenitora.

Quando criança essa mania da Marta tomar líquidos sem sociais. Marta, em sua obsessão, não enxerga nem mais a si mesma.
açúcar me arrepiava, eu não compreendia. Em compensação era Acho que nunca enxergou
louca por doces, comia à vontade e não engordava Chegava até a Apesar de não concordar naquele tempo com tudo o que a
causar um pouco de inveja. Já Augusta, essa engordava só de olhar minha amiga dizia, era conivente com o seu argumento: ninguém
a comida. Hoje, eu tenho certeza, mesmo sem ter conhecimento: consegue ser perfeito e feliz o tempo todo. Nossos defeitos psicoló-
a mania de Marta ajudou a proteger a saúde. Nem os prazeres da gicos modificam num processo lento. Sendo este o motivo de não
mesa não lhe apeteciam mais. Tivemos quase uma vida inteira, aceitarmos as situações que são reservadas para nós. Quem con-
de convivência, mas, confesso, nunca consegui entender esse ser segue agir com equilíbrio já ganhou um passo para a felicidade, o
humano. Em muitas situações chegava a duvidar se era sincero o verdadeiro paraíso. Era eloquente em seu discurso, mas, no dia a dia,
seu comportamento. se contradizia.
De estômago vazio, estava a Marta mergulhada em seu Toda a humanidade corre atrás da felicidade sem reparar o
infortúnio. quanto, o tempo todo, ela está ao nosso lado. Sem compreensão e
Enquanto aguardava a sua amiga, chorava copiosamente em aceitação de todos os fatos existenciais, exigimos demais de nós e
seu desalento, praguejando contra a vida e contra Deus. Em cada dos outros perdidos em desejos, num vazio estranho. Que embasa a
nova crise, revivia o seu passado, e sentia-se cada vez mais depri- nossa vista. Há uma ansiedade para sermos felizes a qualquer custo.
mida. E nesse ritmo de fazer-se de coitadinha, reforçava toda a sua Acabamos afugentando-a. A felicidade é uma arte. Ela não é a causa,
desventura, prostrada num marasmo, em que nada e ninguém neste é o processo de cada um. Ser feliz não significa que estou sorrindo o
mundo conseguia lhe fazer feliz. tempo todo. Aceitar! Aceitar! Gostar da vida. Valorizar tudo o que
Só uma coisa desejava, a volta do seu ex-marido! nos foi dado já é um bom começo., podendo modificar situações
Exatamente! O marido era a chave da sua desgraça e também a difíceis. Sei que não é fácil, nem todos conseguem. Cada ser humano
esperança de continuar viva. Diante dessa verdade, a Augusta dizia: está num degrau da escada. Essa situação é o que enriquece a exis-
— É só nessas situações de sofrimento que nós apelamos tência. E não adianta falar para quem não está pronta a entender,
para Deus! Quando tudo vai bem, as pessoas nem se lembram. assim é a Marta. Dá mais valor e atenção para as tragédias.
Esquecemos de agradecer as coisas boas proporcionadas pela vida. Foi um desses erros estratégicos e incoerentes da Augusta que
Agora, se as coisas vão mal, culpamos Deus, e até o Diabo, e os nos- a levou a um beco sem saída. Fica difícil para ela ver o quanto a
sos pais, por todas as nossas mazelas. Esquecemos com facilidade Marta não era aquilo que ela projetava, e o quanto o seu comporta-
o quanto só nós somos responsáveis por tudo o que nos acontece. mento vem prejudicando a sua amiga.
Se olhássemos para trás, veríamos quantas pessoas estão em pior Na opinião da Augusta, a revolta que as pessoas têm contra
situação. Somente nós, com o nosso livre arbítrio, enveredamos por Deus é o reflexo contra si mesmo, aflora incapacidade em conseguir
caminhos tortuosos. Essas atitudes pode nos levar tanto para a glória reverter a situação. Observar e questionar a necessidade que o povo
como para o inferno, seja para reativar a felicidade ou cair em um tem em esperar tudo de Deus, ou de alguém que lhe pareça um ser
mal sem cura, atraindo só infelicidade. Não viemos neste mundo poderoso: como o pai ou um padrinho dos, políticos, do marido
para sermos felizes plenamente. Para obter essa graça, temos que ou dos seus chefes. São frágeis criaturas fracas, imaturas, esperam
ter a compreensão do objetivo da vida. Enfim, só aceitando a nós, e por um porto seguro onde o seu barco possa atracar em paz. Não
cada pessoa como é, conforme a evolução de cada um, alcançaremos são capazes de arregaçar a manga jogar a rede com coragem e fir-
a sabedoria em viver bem conosco e com os nossos relacionamentos memente ser o condutor do seu barco... Quando encontram um

amparo, sem muito esforço, sugam o mais que podem essas pessoas Seja no amor ou no ódio, em qualquer outro setor do nosso
ditas generosas. E essa necessidade de sugar nos vem desde criança. dia a dia... Viver dá muito trabalho!
Se nos tornamos adultos com desejos infantis, continuamos com Pessoas como eu são ditas como loucas ou bobas. Cada um
desejos de sugar a teta disponível. Esse é o caso da Marta em relação tem as suas verdades, tudo está certo. Não adianta criticar, essas são
a Augusta, claro, com a conivência da minha amiga. as minhas verdades! Ilusórias ou não! Cada um é o que é! Eu devo
Como cada ser humano está num estágio existencial, não pode ter nascido de mau humor. Aprendi a sorrir ao longo do trajeto.
querer que todos rezem na mesma cartilha. Essa riqueza de opiniões Gosto de conhecer gente, não gosto de rotina. Adoro viajar e conhe-
faz sem dúvida a vida mais rica! cer novos lugares e estar sempre aprendendo.
Augusta é bem diferente de Marta. Uma pessoa firme e deci- Essa era Augusta! Um ser autêntico que fez de cada sofri-
dida. Adora trabalhar nunca precisou de alguém para tomar conta de mento um degrau para a sua evolução. Nunca demonstra claramente
si. Traz em seu caráter muita determinação e coragem aliadas à sua quando está sofrendo, sempre empenhada com o seu trabalho, com
fé. Minha amiga querida possui uma força inesgotável e uma alegria seu sorriso largo, para os outros e para si mesma. Quanto mais foi
invejável. Tem sempre a certeza de poder superar os sofrimentos, atingindo a maturidade, o seu comportamento agressivo, seco na
com aceitação e compreensão dos fatos sem os valorizar muito. aparência, começou a ser bem mais controlado.
Os seus três únicos defeitos para mim:a sua mania de querer Em cada etapa o nosso melhor está sempre se modificando, diz
ajudar todo mundo, achando ter o poder de aliviar o sofrimento ela: “Tanto o seres bons, como os maus, agem sempre de acordo com
das pessoas; o outro é perder a sua paciência fácil em frente de o seu melhor dentro da visão de cada um, dentro do seu momento.
uma injustiça. Não tenho certeza absoluta sobre nada! Temos sempre que nos ocu-
Já o terceiro, para mim, é o mais grave: fala demais. Sempre par e não nos preocupar.”
muito crítica e observadora, nada escapa ao seu olhar, tem mania de Reclamava a falta de diálogo dos rapazes quando éramos
criticar e reclamar de todas as situações, que lhe contrariam. Já foi adolescentes. Não se conformava com a investida dos meninos em
muito prejudicada pela sua franqueza exagerada. Quando éramos querer beijar, agarrar, sem antes haver um conhecimento de ambas
jovem, agia como se fosse a única pessoa certa no mundo, sempre foi as partes. Para ela, sempre foi um sofrimento não haver esse tal
nervosa, brava e mandona. Perdeu muitas oportunidades e amigos diálogo. Não levava nenhum rapaz a sério. dizia: “O amor nasce da
por agir assim, sem diplomacia. Sua franqueza e desconfiança não convivência!” Levou esse conceito até a nossa maturidade. Demorou
têm limites. Quando a confronto, vai logo respondendo ser apenas para ter namorados com mais comprometimento. Já um pouco mais
uma pessoa autêntica. Ao ver que a maioria das pessoas neste país velha, ria, achando uma bobagem esse seu conceito. Tanto para ela
quer emprego, mas não quer trabalho. Quer uma resposta firme como para Marta, mesmo por enfoques diferentes, ninguém servia.
do governo diante das necessidades básicas, mas não toma atitu- Toda essa sua maneira de ser era compensada por ser uma pes-
des decisivas quanto isso lhes é negado. Realmente este é um povo soa cheia de entusiasmo. Agora quando a presença de alguém lhe
maravilhoso, que não aprendeu lutar pelos seus direitos, facilitando fazia mal, cortava logo esse relacionamento, mesmo sem deixar de
aos poderosos todo o tipo de corrupção. Criticar os outros é fácil, cumprimentar a pessoa, não admitia intimidade. Muitas vezes, pre-
colocar-se no lugar do outro, entendendo que cada um tem que fazer senciei a minha amiga baqueada, realmente no chão, na sua doente
a sua parte para uma melhora na sociedade.. Queremos amor, mas teimosia de nunca dar o braço a torcer. Sempre muito forte sai de
não sabemos amar. Eu luto pelos meus direitos. Sou mulher, sozi- todas as batalhas convencida de ter sempre uma saída. Por incrível
nha, se não me dou o respeito, quem vai me respeitar! que pareça, sobrevive a todos os seus percalços.

Eu e a Marta sempre fomos pessoas bem mais calmas em pergunto: Sou o que acho de mim? Ou o que as pessoas pensam? Ou
comparação com a Augusta. Esta sim!... Arteira, esperta, e muito sou um mistério para mim e para o outro
honesta. Em seu semblante, um ar de uma pessoa séria, engana Só o tempo para me dizer se estou contribuindo para a trans-
quem não a conhece. Entre tantos talentos, o mais forte é o de gostar formação dos meus defeitos psicológicos. Em sua firme opinião,
de crianças! Quando éramos adolescentes, vivia dizendo que iria ter temos que viver intensamente, sem ficarmos presos aos nossos atos.
dez filhos. Por ironia, nunca foi agraciada com o dom de ser mãe. A Eu sempre fui mais ambiciosa. Sigo a onda da vida para onde
paciência, o amor pelas crianças fizeram dela uma excelente mestra. ela me leva. Nem tanto ao céu nem tanto a terra. E levo a vida até
Teve sempre um grande amor pelos animais, adora os cavalos e os hoje nesse princípio. O mundo é para os fortes! Se tudo o que eu
cachorros. Bolinha, Negrinha e Dominique foram os maiores amo- acredito é bobagem... É nisso que eu acredito. Por mais que o jor-
res da infância e juventude. nalismo tenha me feito deparar com tantas mazelas diárias, sempre
— Esse povo só reclama, mas não age! Tudo só depende de tive o dom de me desligar das realidades feias. Amanhã posso pensar
nós! Certos ou errados, somos nós que atraímos estas situações para completamente diferente.
a nossa vida. Sabe Lidiane, tudo é energia! Não adianta culpar o Aprendi muito com Augusta, mas a vida me levou para outros
outro. De um jeito ou de outro, somos sempre nós os responsáveis caminhos. A minha profissão me fez crer... O mundo cada vez mais
por tudo que nós acontece é feito só de violência.Tenho essa consciência. Da minha janela, me
Eu já não acredito nessas coisas de “estava escrito, vem permito só ver o que me agrada
traçado, é Kármico”, tenho plena convicção, são muitas as E, como ela, sempre tive opiniões fortes.
situações árduas em nossa jornada. Qual razão de tudo? Desde Concordo que não podemos julgar as pessoas, mas ela sempre
sempre nunca pensei muito nisso! Tenho uma leve desconfiança, me julgava.
sempre achei que todos os caminhos são frutos dos nossos Lidiane, você sempre foge de situações que lhe trazem dificul-
esforços, impulsionando para o nosso desenvolvimento e o nosso dades para serem resolvidas.
crescimento humano. Conceitos com que ela também concorda. Nesse labirinto de ideias, sempre achei a atitude da Augusta
Por que e para quê? Não me pergunte! Que o mundo evoluiu não incoerente quando se tratava de ir socorrer a Marta, em suas cri-
é segredo para ninguém! ses e delírios principalmente. Agia como se fosse a responsável
O homem, em seu emocional, vai mais devagar, cheio de que- pelos problemas da sua amiga. Mesmo com toda sua bagagem
rer, vivemos de ilusão. Nisso ela até tem razão. Quando Augusta teve filosófica de vida, não percebe ou não quer perceber o quanto a
consciência de tudo isso através de cursos e palestra, no começo, sua atitude é prejudicial para a Marta. Dentro dos seus princípios
era muito engraçada, achava que podia salvar a humanidade ou caridosos, não consegue entender o quanto a sua intervenção
pelo menos as pessoas à sua volta. Quando teve consciência de estar alimentava cada vez mais a obsessão e a neurose da nossa amiga.
enganada, ainda “buzinou” em meu ouvido por uns bons meses. Não adiantava falar. A sua convicção e teimosia falavam mais
— Lidiane, você não acredita nos meus argumentos. Não tem alto, e mais alto ainda o seu amor e carinho para com a Marta.
importância! Você e milhares de pessoas neste mundo pensam igual. No começo, quanto tentei alertar...
Qual de nós está certo, só o tempo dirá! Como cada um de nós tem Não aceitando os meus comentários, me recriminava, age
o tempo certo para despertar a consciência, para isso acontecer vai assim por ter consciência que recebe muitas graças do céu. Não
depender da bagagem que cada um traz e de como é formada a custa nada doar um pouco de você, para quem necessita dos seus
nossa personalidade. A partir desse ponto de vista, eu sempre me préstimos. Realmente não adiantava nenhuma interferência, estava

convicta em estar certa da forma como vinha agindo... Quem era
eu para contrariá-la? Afinal, por mais consciente que uma pessoa
seja em uma situação ou outra, sempre acaba mostrando o seu lado
frágil. Nesse momento da minha vida, depois de refletir a respeito,
acabei aceitando, respeitando. Comecei a me distanciar, o problema MARTA e ROGÉRIO
era delas! Agindo assim, consegui levar a nossa amizade adiante.
Olhava tudo de longe, não me envolvia no convívio doente
das duas.
No início, eu tentei entender a Marta, me compadeci da sua
dor, tentei ajudar realmente. Quando percebi a dificuldade da Marta
em reagir, mesmo com a desaprovação da Augusta, perdi a minha
paciência. Compreensão para o problema eu até tive. Tenho cons-
ciência: certas neuroses não se desfazem como um passe de mágica,
H
mas ficar segurando a alça dessas malas que não se ajudam e nem oje, Marta não aceita ter sido deixada da maneira como
querem ser ajudas, em nome de um drama sem fim, simplesmente tudo aconteceu. Até concordo não deve ser fácil ser traída
não dá. A meu ver, não existe caridade nenhuma em ter essa ati- pela pessoa amada, ou por parentes mais próximos, em
tude, já que não atinge o objetivo principal: estimular a nossa amiga quem depositamos a maior confiança. Marta vive a suspirar
a sair dessa situação por ela mesma orquestrada. Apenas alimenta renegando a si própria, dizendo que não é assim, mas não faz
essa angustia eterna, a qual vem lhe causando um estresse emocionada para mudar. O impacto do desfecho do seu casamento foi
nal de grandes proporções. Como ninguém ajuda ninguém, ao não tão forte, abalou toda a sua frágil estrutura, mimada e infantil.
ser havendo o desejo do enfermo a se ajudar, esse não foi o caso, e Inexperiente e pouco estudada, fez do Rogério o objetivo da sua
realmente desisti. vida. Não aguentou a perda, consequentemente, não suportou a
O impacto de não aceitar as mudanças e perdas na vida acar- transformação repentina do seu destino. Atirada nesse abismo,
retam em certas pessoas um mal eterno. Os sentidos. longe da confortável rotina em que vivia, dificulta a si mesma
Afinal tudo passa e nós passamos também. A única coisa de ter compreensão da realidade. Não! Não estou falando em cinco
que temos certeza sobre o nosso futuro é de que um dia vamos mor- meses, já faz cinco anos desse desenlace. Sim! Faz cinco longos
rer, mas mesmo assim ninguém se prepara para isso! Na ilusão de anos que o seu sólido casamento acabou.
que vamos viver eternamente junto aos nossos entes queridos, nin- Quando os seus filhos entraram para a faculdade, Rogério
guém se prepara para a separação. Desde muito cedo perdeu os avós, não querendo ficar longe dos jovens, mudou-se com a família
o pai e um irmão. Marta já devia estar acostumada. Viveu ao lado do novamente para a capital. Depois de um longo período sem ter
Rogério, numa dessas fantasias, bem longe da realidade. notícias, eu e Augusta voltamos a nós reaproximar da Marta.
Tudo corria tranquilamente. Aparentemente, fomos todos
iludidos, tínhamos a nítida impressão de estarmos diante do
casal perfeito. Rogério era todo carinhoso e atencioso com a
mulher. Mas já há algum tempo vinha preparando-se para essa
separação.

Esperou aposentar-se, depois casar os dois filhos, para sogra. Entra em casa aos berros: “Graça a Deus! Livrei-me dessa
finalmente tomar uma decisão definitiva em relação ao seu casa- velha! Adeus megera!”
mento. Agiu sem nenhum respeito pela companheira de tantos — O que é isso homem? Enlouqueceu!
anos, seguiu o seu caminho, sem olhar para trás. Entrega o bilhete para Marta, dizendo ser da sua mãe.
Tudo aconteceu no começo do mês de maio. Naquela tarde,
o vento soprava violentamente, balançando os galhos das arvo- Querida filha,
res levantando folhas e poeira. O céu todo nublado anunciava o Ando muito cansada, não pretendo voltar...
prenúncio de um grande temporal, e também o prenúncio do fim De hoje em diante, vou ficar morando com seu irmão.
do casamento! Como era de costume, Rogério foi ao supermer- Os seus filhos já estão crescidos, não precisam mais de mim.
cado fazer a compra do mês. Como já havia planejado, comprou Finalmente vou me livrar do seu marido.
tudo em dobro e, ao chegar em casa, levou uma bronca por ter Desejo muita sorte e felicidade para vocês.
comprado tanta coisa a mais, e por ter entrado em casa com os
sapados encharcados. Marta distraída, reclamando dos gastos des- Um beijo da sua mãe que lhe ama muito
necessários do marido, ia guardando as mercadorias, falando para Matilde
si mesma o quanto ele estava se tornando um velho gaga. Rogério
começa a anunciar a sua saída da casa e da vida da Marta: Rindo ela lhe responde: “Ainda não foi dessa vez! Seu
— Não há mais desejos e amor! Agora não se preocupe! safado! Vou lhe denunciar por falsificação de assinatura.”
Vou ampará-la financeiramente para sempre. Marta logo percebeu aquela não era a assinatura da sua mãe.
Marta indignada com tanta compra, sem entender bem o Dona Matilde, mulher pouco dada a manifestações de carinho,
que ele lhe falava, vira-se e lhe pergunta: principalmente com a filha chamais lhe mandaria beijos ou lhe
— Vai ficar longe de casa por quantos dias desta vez? chamaria de filha querida. A mãe de Marta sempre cuidou bem
de sua filha, veio ajudá-la com a educação dos netos, mas elas
— Para sempre, ainda não entendeu? O nosso casamento nunca foram íntimas. Matilde apenas cumpria o seu papel de
acabou! Eu não a amo mais. Sem discutir, deixou a Marta falando avó. Posso afirmar com muita certeza, Marta nunca amou a sua
sozinha, pegou algumas roupas e colocou em uma mochila, Saiu progenitora. Apesar de conhecer bem aquela que lhe deu a vida,
de casa e simplesmente nunca mais voltou. tinha consciência da distância que a havia entre elas.
O mais engraçado dessa história, se assim posso dizer... Já a avó Matilde amava demais os seus netos para ir embora
Naquele exato momento, Marta achava que o marido estava brin- assim de repente.
cando, não era a primeira vez que ele lhe dizia que estava tudo Rogério tinha também a mania de esconder objetos,
acabado, saía, horas depois voltava dando risada, abraçando a principalmente os óculos de Marta, deixando-a irritada de tanto
mulher, lhe dizendo, estar arrependido, o seu amor era tão forte, procurar... Tudo acabava sempre em sexo.
e também a sua desgraça, não conseguiria viver sem ela! Rogério “É a idade!” Dizia ele rindo, “eu entendo, isso, e coisa de
gostava de pregar peça, sempre teve esse lado brincalhão, meio gente velha! Já está ficando esclerosada.” Horas depois colocava
sem noção. Em certa ocasião, a mãe de Marta foi visitar o filho o objeto no mesmo lugar em que estava antes. Essas situações
mais velho, sob o protesto da família, menos do marido, que eram normais em sua variedade criativa para não deixar o casa-
aproveitando a ocasião, escreve um bilhete imitando a letra da mento cair em uma rotina.
Sempre há Tempo para ser feliz 41

Como havia nele um prazer em deixar a Marta nervosa. aceitando a forma de ser daquele homem. Marta, sem dúvida,
Por gostar exageradamente de sexo, era o setor onde mais capri- vivenciou estes momentos apáticos da mãe, e acabou portando-
chava. Sabia apimentar, fazendo com que a relação se tornasse se como ela. Marta tinha verdadeira veneração pelo pai. Dona
cada vez mais prazerosa para a sua mulher. E por mais que aos Matilde nunca envolveu os filhos em suas desavenças com o
olhos dos outros, Marta não passasse de uma mulher infeliz, a marido.
seu modo, vivia realizada. Marta dedicava um amor profundo ao pai, agia sempre a
Dona Matilde confessou uma vez para os netos o seu seu favor, brigava e culpava a mãe pela indiferença, e pelo modo
desgosto com a sua única filha, por ter deixado morrer a sua de o tratar. Se nunca houve afinidade entre elas, depois da morte
personalidade em favor do marido, ter aceitado os mandos e des- do pai e do irmão, tudo ficou bem pior. Dona Matilde sofreu
mandos daquele homem, sem contestar. Era notório o quanto o muito pela perda do filho. Agora, quanto ao marido... Suspirou
genro e sogra não se toleravam. Dona Matilde tinha razão, Marta aliviada!
antes de conhecer o Rogério tinha um personalidade forte, era Marta sempre acusou o irmão mais velho de ter sido o
respondona, vivia xingando a mãe e o irmão mais velho, só fazia responsável pela tragédia que vitimou as pessoas que ela mais
as coisas que lhe davam na cabeça, sendo sempre apoiada pelo amava. Mãe e filha voltaram a ter contato só quando dona
pai e pelo irmão, fizesse o que fizesse! O seu sonho de jovem era Matilde foi cuidar dos netos. Mesmo assim, havia dias em que
vir a ser modelo. as duas não trocavam nenhuma palavra. Dona Matilde tinha um
Dona Matilde não conseguia aceitar a renúncia da filha em quarto só para ela, quando o genro estava em casa, refugiava-se
favor daquele homem, engolia a seco os desaforos do genro em em seus aposentos, saindo de lá só no dia seguinte quando este
favor dos netos. Marta ficava quieta diante de algumas atitudes saía para trabalhar.
do marido que não lhe agradavam. Rogério, pensando sempre Apesar de tanta dedicação para com o Rogério, houve
no melhor para os filhos, convivia com a sogra no dia a dia, mas momentos difíceis, em que Marta tinha vontade de enfrentar o
sempre mantendo certa distância. Se a mãe de Marta estivesse marido e até o ameaçava, mas ele sabia como acalmá-la com a
viva, ao presenciar a separação deles, na certa, morreria de des- sua sedução. Não posso deixar de dizer o quanto era romântico
gosto ou soltaria fogos, depois de ter testemunhado o quanto a e o quanto lhe presenteou com flores, bombons e revistas. Não
filha tinha descaracterizado a sua personalidade para agradá-lo. era só pelas frivolidades daquele homem, Rogério era a ale-
No fundo da alma, talvez suspiraria aliviada. Algumas vezes se gria da casa, mas só a Marta apreciava o seu comportamento.
indignava por ter dedicado tanto pelos seus netos, sem nunca Realmente, daquela antiga jovem, nada restou. Quando eu penso
ter ouvido da parte daquele homem um obrigado. Como viveu na sua opinião sobre os homens no passado, e o quanto era deci-
uma vida difícil ao lado do pai da Marta, e por ter aguentado dida em suas decisões, ninguém entendia como se deixou ser
firme até o fim do casamento pelos filhos, talvez a separação totalmente dominada por aquele homem. É como dizem por aí:
deles realmente lhe traria um grande alivio. “O amor, emburre-se as pessoas!” Quer dizer, o falso amor mexe
O pai da Marta foi um homem sensível, muito bom, mas e desequilibra toda a parte emocional das pessoas envolvidas.
era muito mulherengo. Dona Matilde, no início, colocou várias Eu acredito que o verdadeiro amor nos faz feliz e nos rea-
vezes o marido para fora de casa. Com o passar dos anos, perce- liza. Já o falso amor não passa de uma paixão egoísta. Esse sim,
bendo não ter jeito, o homem não se emendava, começou igno- nós faz sofrer! Mas essa mulher sentia-se plena. Do seu jeito,
rar o marido, Cada qual vivia sua vida independente, fingia estar conseguiu ser feliz!

Ficamos sabendo, no seu primeiro ano de casada, por ser uma Esses acontecimentos de perdas na vida de Marta me faziam
bela mulher, morando em uma cidade pequena, sem muita experiên- questionar, por que essas fatalidades acontecem repetidas vezes
cia foi vítima de um episódio muito desagradável. Rogério lhe dava com algumas pessoas e com outras, não. Nem Freud explica.
toda a liberdade, até o incidente com um jovem funcionário do banco. Como o seu comportamento mudava a cada perda. Na
O rapaz, na festa de recepção de boas-vindas ao novo gerente, se terceira gravidez, esperou o bebê com uma grande indiferença,
encantou pela Marta, depois houve a festa de fim de ano, novo encon- ainda mais quando soube que seria novamente um menino.
tro. A partir daí, começou a persegui-la na rua até o dia em que, fora Antes de completar três meses, pensou até em abortar. O amor
de si, acabou agarrando-a na frente dos transeuntes. Aos gritos, ela de ser mãe morreu antes da semente se desenvolver. Apesar da
acabou chamando atenção de muitas pessoas. A fofoca correu solta. indiferença, foi o filho que mais lhe preocupou.
Marta, com o susto, sofre, grávida de poucos meses. Foi
uma gestação difícil, ela perdeu a criança.
Em pouco tempo na nova cidade, Rogério começou ouvir

piadas e sorrisos irônicos dos amigos do banco sobre o rapaz
estar interessado em sua mulher. Rogério começou a ficar inco-
modado com os comentários sobre a esposa. Apesar de achar ela
muito jovem para viver presa, diante dos comentários do povo,
Achou melhor ela não sair de casa sem ele. Três meses depois,
Marta ficou novamente grávida. Rogério proibiu de vez a esposa,
de sair de casa, sem a companhia dele.
Ela acabou aceitando sem contestar. Apesar de estar acos-
tumada com as gracinhas dos homens, acabou obedecendo ao
marido. O susto foi muito grande! Mergulhada mais uma vez na
preparação do enxoval do bebe, renovando a esperança de ser
uma menina, com o tempo, sabendo que a criança seria do sexo
masculino, sua alegria se desfez. A gravidez foi tranquila, nem
sentiu falta de sair na rua. Jurou a si mesma que ficaria grávida
só mais uma vez, na tentativa de ter uma menina. Os nove meses
de alegria transformaram-se em uma grande decepção, só não
interrompeu a gravidez em favor dos desejos do marido.
Foi inevitável a dor e a depressão por ter perdido a pri-
meira filha, com tantos meses enclausurada, aliada à revolta e ao
sofrimento, acostumou a viver dentro de casa. Acordava tarde, e
lentamente fazia os seus deveres domésticos.
Na verdade, Marta só cozinhava, o resto das tarefas domés-
ticas ficava a cargo da sua mãe.

sabia onde o pai do rapaz estava morando. Jairo ficou surpreso com
a revelação. Na véspera de sair definitivamente da vida da sua mãe,
o pai esteve em sua casa na hora do jantar e nada lhe revelou. Ao
A SEPARAÇÃO saber que o mesmo estava com outra mulher, morando em um lugar
desconhecido, ficou muito triste e magoado. Tentou acalmar a mãe
sem nada lhe revelar. Conhecendo a Marta como conhecia, sabia
o quanto aquela notícia iria abalar toda a sua estrutura emocional.
Revoltado, não se conformava com a atitude do pai. Mesmo tendo
sido uma péssima mãe, foi uma esposa exemplar para aquele ingrato.
Jairo não esperava é que sua mãe caísse nessa crise profunda
por tanto tempo.
Quinze dias depois, Rogério lhe enviou um advogado com
os papéis do divórcio para ela assinar. Marta ficou por uns minutos
R
ealmente, Rogério preenchia todas as necessidades da Marta, a olhando para aquele senhor.
tornara uma mulher sem grandes ambições. O seu maior pra- O senhor diga para o Rogério que ele foi longe demais com as
zer era estar nos braços do seu marido. Não passava pela sua suas brincadeiras! Ao ouvir do advogado que não se tratava de uma
mente levar aquela atitude de separação a sério. Tinha plena brincadeira, o choque da notícia a deixou sem fala. Refeita, dizia para
convicção, conhecia o homem com quem foi casada por tantos anos. si mesma: “Não pode ser verdade, uma vida de cumplicidade acabar
E nessa sua ilusão, tinha certeza de não passar de mais umas de assim friamente.” Olhava Para o semblante sério daquele senhor.
suas brincadeiras. Não podia haver engano, aquele homem demons- De repente, soltou um riso nervoso. Não aceitava as argumentações
trou, durante o período compartilhado, ser ela o grande amor de daquele estranho. A sua vida, de uma hora para outra, se transformou
sua vida. Não saberia viver sem ela? Não! Não ia deixá-la, assim de em um pesadelo. Ao vê-la sem reação, o causídico repete a sentença.
repente! Não podia ter mudado o seu sentimento de uma hora para Ela nem ouve até o fim, acaba desmaiando. Ao se recompor, ator-
outra. Depois, tinha deixado quase toda roupa e seus pertences. Só doada, percebe, aquele homem horroroso, portador de más notícias,
ficou um pouco intrigada pelo motivo de ter sido a primeira vez, e continuava parado no mesmo lugar, passivo, lhe olhava através das
não lhe informar sobre o seu paradeiro. lentes grossas do óculos, sem nenhum sinal de espanto. Mesmo assim,
E assim continuou fora da realidade, despreocupada dizendo Marta acabou se recusando a assinar o documento.
para si mesma: – Daqui a pouco estará de volta, rindo da sua mole- Ao perceber que a notícia da separação não foi bem recebida,
cagem. Com o passar dos dias, começou a ficar intrigada com a falta para se ver livre daquela situação, acabou revelando a verdade:
de notícias... Nada do seu marido voltar. Os tempo foi passando... “O senhor Rogério, seu marido, há mais de cinco anos, tem uma
Acabou pedindo ajuda para o seu filho mais novo. Marta estava amante. Antiga funcionária do mesmo banco, onde um dia ele foi
achando que algo de muito grave estava acontecendo e questionava gerente. Ambos tiveram uma menina, hoje, com três anos e meio.
se ele não estava morto ou hospitalizado. Portanto, minha senhora por mais que seja difícil, vai ter que assinar
O rapaz, mesmo sabendo que o pai, não trabalhava mais no a separação.”
banco, foi até lá para conseguir alguma informação. Um antigo Foi só aí que Marta realmente se deu conta de que o Rogério
amigo do Rogério lhe informou o que estava acontecendo, mas não tinha lhe deixado.

Mesmo assim, naquele primeiro momento, não se confor- casal. Muito menos que o Rogério agiria de forma tão covarde. Por
mava, não queria acreditar nem entendia como aquilo podia ser conhecê-lo bem, tínhamos a nossa razão de estarmos todos revolta-
verdade. Não, ela não conseguia entender aquela situação. O seu dos Acabamos concordando... A sua atitude foi a de um canalha em
casamento seguia tranquilo, era verdade que ultimamente o seu sair tão intempestivamente da vida de Marta, sem prepará-la para
marido, demorava para chegar em casa, mas não houve desenten- tal decisão. Aquele homem, mais que ninguém, sabia da fragilidade
dimento, não podia acreditar que tudo estava acabado, eles sem- da sua mulher.
pre foram cúmplices, eram felizes e muito unidos. Não podia ser... Já ela o conhecia bem, como pregoava. Já estavam idosos.
Tudo bem! Pensava... Desde que voltou a morar em São Paulo, o Rogério sempre gostou de mulheres novinhas. Depois que voltou
casamento deu uma esfriada, acabou em uma rotina, como quase para São Paulo, permitiu a aproximação de Marta com o irmão e
todos os casamentos longos. Acabou se adaptando, por achar que conosco, suas antigas amigas. Augusta como sempre, mais do que
era pela idade avançada dele. Sair da sua vida sem explicação, agora eu, passou a ter mais contato com o casal.
enviar um advogado, para se intrometer em suas vidas? Não! Isso era Na verdade, por não ter interesse, e nem muito tempo. Nos
demais para ela. Esse não foi o homem com quem se casou e sempre meus momentos de folga, preferia estar sempre só com a Augusta.
a protegeu, depois, até o dia em que resolveu sair de casa, foi sempre Na verdade, nunca conhecemos as pessoas de verdade, e como
amável e carinhoso, continuava elogiar a sua comida e... Ao chegar todos nós mudamos ao longo da nossa existência tanto para o bem
no ponto máximo de indignação e dor exclamou bem alto: “Por quê? como para o mal, realmente não esperávamos essa atitude do Rogério.
Por quê?” Em sua cabeça nada daquilo era verdade! Na nossa frente, sempre tratou a Marta com carinho e res-
O seu marido já tinha passado do tempo de ter esse tipo de peito, mas já estava tendo um caso com a moça, com quem hoje está
comportamento. Nova mulher... Criança... Levar suas coisas... vivendo. Sofrimento maior da Marta foi saber que uma criança do
Nunca mais ia voltar! Nada daquilo tinha sentido, parecia tudo tão sexo feminino, o qual foi o maior sonho da sua vida, foi também a
irreal. Tudo girava em sua mente como uma valsa descompassada. causa da sua desgraça
De repente, num impulso incomum, movida por uma raiva desco- Ao passar dos dias, nada do Rogério aparecer. Surpreendendo
munal, começa a chorar e a gritar, expulsou o homem da sua casa a todos nós, como prometeu, rasgou toda a roupa do marido e se
aos berros: “Depois de velho enlouqueceu! Gritava! Quer o divórcio desfez dos seus pertences.
e as suas coisas? Pois lhe diga que venha pessoalmente buscar. O Todo esse tempo, só chorava, quase não comia, só dormia com
senhor está falando com a mulher dele e não com uma vadia qual- o efeito de calmantes.
quer para ser tratada desse jeito. E tem mais, se em dois dias ele não Augusta inconformada, não suportando ver a dor da amiga,
voltar para casa, eu rasgo todas as suas roupas e jogo fora todos os descobre o endereço com o Jeferson, decide ir até o prédio, e fez o
seus pertences.” maior escândalo! Rogério tentou se retratar:
A velha personalidade escondida há tanto tempo ressurge, e — Augusta você conhece bem a sua amiga, se eu não agisse
foi só depois de tudo consumado, que caiu em si. Ele foi embora por dessa forma... Marta ia dificultar a minha saída de casa! Eu não pre-
causa da filha que ela não deu para ele. Entrou no estado profundo tendia me separar, por ela tenho muito carinho e respeito! Aí, veio
de depressão. a criança... Já estou com certa idade e... Amo a minha filha! Essa
Nós tínhamos muito respeito pelo Rogério, perplexas, tam- criança renovou a minha vontade de continuar vivo. O pouco tempo
bém fomos surpreendidas, não queríamos acreditar na sua decisão, que me resta quero estar ao lado dela.. Desde a nossa volta para a
nunca nos passou pela cabeça haver separação na história daquele capital, a minha intimidade com Marta vinha rareado. Ao ouvir

aquelas justificativas, Augusta foi tomada pela raiva, colocando para mesma o escândalo que fez em uma oficina de consertos de gela-
fora todo o seu temperamento violento. Conhecendo está mulher deiras. Depois, foi no cemitério por ocasião da morte de sua mãe.
como conheço, não estranhei a sua reação Em momentos extremos Essa é a Augusta, um doce de pessoa, não deixa de dar bom-dia com
de indignação e revolta, não aceita nada que lhe pareça injusto, real- um sorriso largo e amável a todas as pessoas. Sempre agradece as
mente perdia as estribeiras, agindo sempre de forma destemperada, gentilezas e os serviços prestados. Mas não a provoque!
saindo do seu eixo, vomita tudo o que está represado no seu emocio- São essas atitudes no cotidiano presenciadas por minha pessoa,
nal. As palavras daquele homem lhe soaram provocativas. Onde já que reforçavam em mim o quanto o homem evolui muito devagar.
se viu, pensava ela, quanto egoísmo, pensou só no seu bem-estar. A Augusta está sempre de bandeira na mão, lutando pelas injustiças,
Marta que se dane... Viveram bem até agora, não eram inimigos? Ela ajuda todo mundo e, de repente, vira uma pessoa irreconhecível.
ia dificultar a sua saída? Ah sei! Isso é atitude de pessoas covardes. Como irreconhecível ficou a Marta, quando separou-se.
Acabou provocando um escândalo tão grande, levando-a a ser Depois de dois dias do vexame da Augusta, com muito custo,
expulsa do condomínio por dois porteiros. Fora do prédio, conti- o Jéferson, filho mais velho, foi com a esposa ao encontro de Marta.
nuou a xingar o Rogério de covarde e machista. Novamente os por- Precisava intervir sobre a separação deles. Há muito o rapaz sabia do
teiros pedem para ela sair do local. envolvimento do pai com a sua nova mulher. E ajudou a convencê-
Quando a revolta passa e a emoção se desfaz, pergunta para si -lo, diante da sua incerteza, a deixar a sua mãe. Acabou trazendo os
mesmo: Por que não consegue agir com a razão? Nessa ocasião, che- papéis para ela assinar o divórcio e também a pegar os pertences do
gou a confidenciar o que achava ser muito provável. Rogério e Marta pai. Jeferson ficou surpreso quando a mãe lhe disse ter jogado tudo
não se amavam, apenas tinham uma forte ligação sexual. Marta ape- no lixo. Furioso partiu para cima dela e tentou lhe enforcar, se não
nas era apegada àquele homem que a satisfazia plenamente os seus fosse a interferência da sua mulher, teria, na certa, matado a Marta.
instintos femininos. Praticamente obrigou-a assinar, argumentando: “Papai é louco pela
Assisti várias vezes ao seu destempero. Quando soube, só minha irmãzinha, é uma linda criança, tem todo o direito de criar a
imaginei a cena. Tem uma passagem para mim inesquecível, éramos menina. Ele quer ter o prazer de conviver com a filha. Depois, já não
ainda crianças, foi pela ocasião da eleição. O seu tio era candidato é mais criança, quer estar perto da garota.
à reeleição. Nós ficamos tomando conta na praça de uma pequena Não é a senhora que vai impedir! Esse é o desejo dele! Se tivesse
banca cheia de santinho. Distribuímos a tal propaganda para as pes- lhe dado uma filha mulher, mas foi incapaz. Tem outro agravante, se
soas que passavam, e ainda não tinham votado. Naquele tempo, esse a senhora não assinar, vai perder a sua pensão. Papai não vai mais
tipo de propaganda não era proibido. Ficamos em pé a manhã toda! voltar! Ouviu, ele não vai mais voltar!
Como estávamos muito cansadas, resolvemos nos sentar um pouco Aliás, também já não é mais jovem, o melhor a fazer é recons-
no banco, à espera das pessoas que iam nos substituir. Um menino truir a sua vida, novamente! Mesmo sozinha, sem grandes expecta-
aproveitou o nosso descuido e roubou um pacote da propaganda. tivas, se não for possível adaptar-se à nova realidade, azar!”
Augusta, ao dar conta do ocorrido, saiu correndo atrás do jovem. Aquelas palavras soavam no seu ouvido como badaladas de
Ao alcançá-lo lhe deu uma surra daquelas. Se não fosse um pessoal um sino, respondendo para si mesma, não é verdade não pode ser
apartar a briga, ela teria ferido de verdade o garoto. Eu chorei muito real, parecia mais um vendaval que logo ia passar. Mas não passou.
ao ver aquela cena, vi toda a fúria guardada dentro da Augusta, des- As gargalhadas do Jéferson provocavam uma ferida maior em sua
nudava pela primeira vez como era de verdade a sua personalidade. mãe, com toda a sua crueldade lembrava o quanto ela o tinha des-
Por uns dias, não quis nem vê-la. Certa vez, fiquei sabendo por ela prezado e, agora, estava provando do próprio veneno.

Olho para o seu filho, aquele homem que desde sempre foi A vontade deles venceu.
um estranho para ela. Ao longo da sua convivência, nunca lhe deu Sua mãe volta a viver na sua antiga casa, toda reformada e pin-
afeto, não entendendo a sua revolta e tanto desamor. Mesmo não tada pelo Jairo, proporcionando maior conforto à mãe. Com o pas-
querendo admitir a sua culpa, pensa... “Teve o amor e atenção do sar do tempo, percebendo o quanto sua progenitora não conseguia
pai, da avó, nunca lhe faltou nada, depois, empenhou-se tanto para reagir, acabou confessando para Augusta, como tinha sido a vida
lhe dar uma bela festa de casamento. Como pode? deles quando viveram no interior. Havia uma curiosidade em suas
Acabou se tornando um rapaz tão cruel!” intenções; queria saber se desde criança e jovem, a mãe era diferente.
Certa ou errada, ela era a sua mãe. Marta, humilhada, parte Já que a avó falava pouco e não gostava de tocar no assunto
para cima do filho, chegando a unhá-lo no braço e no pescoço. — Mamãe sempre foi dominada pelo o julgo do papai, pois
Jéferson a domina, a empurra. lá em casa tudo girava em torno dele, a sua vontade era lei! Nunca
Desequilibrando-se Marta cai no chão. bateu nela ou a ofendeu. A sua atitude de agora não me causou muito
“Desejo cada vez mais um destino assim para dona Marta; espanto. Amigos, ela nunca pode ter, não admitia visita de parentes,
arrastando-se no chão, humilhada e desamparada.” Esse era um privilégio só da vovó, e de nós, os filhos. Não podíamos
Em prantos, magoada, fora de órbita, Marta acaba cedendo e convidar nossos amigos para frequentar a casa. Roupas, escola, o
assina o documento. Só mais tarde, dá conta do que fez. Nunca mais que íamos comer, nossa vida social, tudo era ele quem escolhia.
perdoou o Jéferson por tê-la forçado a abrir mão do seu marido. Foi Para você ter uma ideia, quando mudamos para uma casa maior,
esta ocasião a última vez em que se viram. Se já não havia afinidade eu estava muito feliz, não ia precisar dormir mais no mesmo quarto
entre mãe e filho, a partir daquele episódio, ficou realmente impos- com o Jeferson, insisti para mamãe me levar na loja de móveis, para
sível a convivência entre eles. escolher a cama e o guarda-roupa para o meu novo quarto. Quando
Sem dúvida nenhuma, Jéferson saboreou a derrota de sua mãe, ele chegou e soube da novidade, ficou furioso, primeiro por ela ter
sentia-se vingado por tantos anos de desamor, indiferença e ódio. saído na rua sem a presença dele, depois por ter a iniciativa de agir
Explodiu um prazer enorme ao vê-la sofrer. A cicatriz pro- sem a sua permissão. No dia seguinte, bem cedo, foi à loja, suspen-
funda deixada em sua alma veio à tona, revelando o complexo de ter deu a compra, e adquiriu tudo do gosto dele. Tínhamos uma casa
sido criado, com tanta indiferença, que deixou lhe marcas profundas. bonita confortável, mas até a cor das paredes tinham que ser como
Já com o Jairo, houve mais aproximação, e mesmo assim sofreu ele gostava.”
tanto quanto o irmão, mas conseguiu perdoá-la. Ele nos levava para pescar, jogar futebol, e sempre estava ao par
O Jairo também não perdoou o irmão, não pela separação de como estávamos indo na escola. Na verdade, os meus pais mere-
judicial, mas obrigar a mãe concordar com a pequena pensão. ciam um ao outro. Se não fosse a minha avó ter nos criado, eu não sei
Como também com a exigência da venda da casa, onde ela o que teria sido deste casamento e dos filhos. Tudo o que aprende-
morava, e a divisão da herança entre eles. mos, como nos comportamos diante da vida, veio dos ensinamentos
Jairo tentou persuadir o irmão em passar o imóvel para o da vovó. Já com meu pai, enfrentaram-se várias vezes, ela era sempre
nome deles, com o usufruto em favor da mãe e deixá-la morando vencida pela força da união do casal. Já com a mamãe... Vovó brigava
na casa. Infelizmente, a sua intenção foi vencida pelos argumentos o tempo todo, tentando fazer com que Marta enxergasse o óbvio. O
do seu irmão e também do seu pai. Ambos diziam que a casa era quanto estava errada na maneira de tratar os próprios filhos. Era em
muito grande para Marta viver ali sozinha. “Ela que viva na antiga vão. Depois de tanto tentar, desistiu. Se não fosse pelo grande amor
casa da vovó.” que nutria pelos seus netos, não teria teimado em ficar cuidando

de nós por tanto anos. Vovó era uma mulher forte! Enchia-nos de nunca vi a mãe de vocês tão brava, avançou para cima de mim, com
carinho. Foi, sem dúvida, a nossa verdadeira mãe. Tudo o que eu tamanha violência, chegou até me agredir. Vejam estes arranhões, é
e meu irmão somos hoje devemos a ela. Eu e o Jeferson sofremos a prova!” Ria, ria.
muito pela ocasião da sua morte. Por nós dois, suportou ser explo- A reação da minha mãe foi tão louca, nunca a tinha visto tão
rada pelos meus pais. Ocupava-se de todos os afazeres domésticos. brava! Trancou-se no quarto, acabou ficando dois dias sem falar com
Quando se afastava por uns dias, ocasião em que vinha para São ele, antes, jogou a roupa de cama, em cima do sofá.
Paulo visitar o nosso tio, a casa ficava uma bagunça.
Marta cozinhou só nos primeiros anos de casada e, depois, — Engraçadinho, isto é para você se ajeitar aí pela sala.
quando vovó veio a falecer. Contrariado, foi a vez dele ficar bravo: Bateu várias vezes na porta, e
Tudo o que usávamos, minha mãe acumulava sem lavar em nada dela abrir. Os dois ficaram sem jantar aquela noite. Espantados,
cima da pia. Éramos obrigados a arrumar a casa e lavar a louça. O vovó eu e o Jeferson, ficamos quietos, olhando a briga dos dois.
Jéferson se revoltava, xingava a mamãe de vagabunda. E negava-se a Foi exatamente nesse dia que entendi a mamãe. Ela tem grande
ajudar na arrumação. Apanhou várias vezes violentamente do papai, dificuldade de demonstrar os seus sentimentos. Eles foram dirigidos
mas do serviço não escapava. a uma só pessoa: ao meu pai.
No dia seguinte, longe do senhor Rogério, voltava xingar a No próprio quarto, papai ficou uns três dias sem entrar. No
dona Marta de cada nome! Mamãe nem reagia, o deixava o falando quarto dia, ele chegou mais cedo para pegá-la, de surpresa antes de
sozinho. Ela nunca nós deu carinho, mas tenho que ser justo, tam- ela se trancar.
bém nunca nos bateu. Nos defendia quando vovó ou papai ameaça- Agarrou-a com força, dando vários beijos. Marta relutou o
vam nos castigar com violência. quanto pode.
Certa vez, querendo testar o grau de amor que ela nutria por Como sempre, ele a dominou e as pazes foram feitas.
nós, papai entrou em casa com um ar de preocupação e sofrimento Comemoram como sempre; espalhafatosos, sem se importar
e num tom dramático, disse para mamãe: Marta, não sei como lhe conosco. Mais uma vez, o importante era a alegria dos dois.
dar a notícia... Você vai ter que ser forte! Uma tragédia abateu sobre Jeferson, no dia em que eles fizeram as pazes, começou imitar
nossas vidas. Os meninos e sua mãe acabaram de falecer, foram atro- a voz deles:
pelados por um ônibus... — Abra a porta, Marta!
— Ah! O que você está dizendo? — Não abro!
— Leva-me imediatamente aonde eles estão? — Chega dessa brincadeira!
Rogério ri, ao ver o desespero da mulher. — O único que vive me enchendo com suas brincadeiras é
— Quando chegamos em casa... Percebemos... Algo não estava você! Pode espernear, gritar, que eu não vou abrir! Não tem mais
bem! Ele voltou a provocá-la. Meninos, a mãe de vocês acabou de graça!
provar o grande amor dedicado a vocês. Começou a nos contar o — Abra essa porta! Vamos, eu estou mandando!
que tinha ocorrido: — Os seus mandos e desmandos neste momento são indife-
“Marta ficou pálida e imóvel, por alguns segundos, acabei rentes para mim. Sei... Na certa, já anda com saudades dos meus
me assustando com a sua reação. Pensei comigo, ‘agora ela vai des- beijos. Você já passou dos limites!
maiar’, mas, para o meu alívio, as lágrimas rolaram, aí comecei a rir. Jeferson imitava os dois direitinhos! Rimos muito aquele dia,
Percebendo ser mais uma das minhas brincadeiras, meus filhos, eu da barriga chegar a doer. Eu sugeri ao meu irmão... Devia seguir a

carreira de cômico. Ele não gostou muito do meu comentário, acabei Fez-se um silêncio, quebrado minutos depois, com muitos risos e
sendo agredido por ele. Papai, ao me ver todo machucado, deu uma gritos, depois novamente silêncio. Para encurtar o que aconteceu,
surra no Jeferson. nós, as vítimas daqueles dois, ficamos todos sem o jantar especial,
Depois desse ocorrido, presenciei minha mãe novamente con- feito para ocasião.
trariar o meu pai. Era o dia do seu aniversário, vovó lhe deu um Nós três não participamos da comemoração e muito menos
dinheiro de presente, para gastar com um vestido novo que fosse do provamos do bolo do aniversário.
seu gosto. Do quarto, ouvíamos o som bem alto, eles dançaram, como
O vestido era muito bonito, estampado e bem colorido. A sempre acontecia nessas ocasiões. Ouvíamos os gemidos, gritos e
briga foi mais feia que a anterior. risos. Nesse dia, como a situação foi piorando, vovó, não querendo
Mamãe o esperava toda feliz, estava deslumbrante naquele que presenciássemos aquela situação, acabou nós levando para o
vestido. Ao entrar em casa, o Seu Rogério, por uns instantes, para e parquinho, onde jantamos cachorro-quente, pipoca e sorvete. Eu e o
admira tamanha beleza. Jeferson adoramos o passeio, eram raros os dias em que comíamos
Ele realmente se orgulhava de ter um mulher tão bela. Na hora, essas guloseimas. Estava com doze anos e mesmo já tendo assistido
ordenou que tirasse aquele vestido! Nem quis ouvir os argumentos cenas semelhantes, entendi naquele dia: “O que unia aqueles dois,
sobre ter sido um presente da vovó. Não quis saber, avançou para era a vida íntima deles.” Nos fins de semana, quando eu era criança,
cima dela, rasgou toda a roupa em nossa frente, gritando para quem acontecia com mais frequência, eu ainda me lembro da minha inge-
quisesse ouvir, “eu, gosto de você sem roupa, mulher! Igual a você nuidade, quantas vezes aos prantos batia na porta, pedindo para ele
na cama não existe! Não precisa dessas bobagens para me satisfazer. parar, pensando que mamãe estava sendo maltratada.
Isso só podia ser ideia dessa velha. Depois, quem lhe deu ordem para Ele gritava furioso, pedindo para vovó me tirar dali. Eu e o
sair sozinha?” meu irmão logo
Em uma cena inusitada, eles se agrediram, minha avó acabou esquecíamos, íamos brincar na rua com outras crianças.
interferindo, antes da situação piorar o acusou: Vovó deixava a televisão ligada e aproveitava para conver-
— O senhor não passa de um ignorante egoísta, nem lem- sar com as vizinhas e os meus pais nem desconfiavam onde nós
brar do aniversário da sua mulher, lembrou? Agora, não pode nem estávamos.
receber um presente da própria mãe! Como pode rasgar a roupa na Essa situação perdurou por várias noites. Só quem presenciou
frente dos meninos. Isso é exemplo para dar a eles? Não passa de um para saber o quanto os dois proporcionavam a si mesmo momen-
machão, tarado, grosseiro! tos de causar inveja a qualquer um. Hoje sei... A felicidade da dona
— Isso é presente que se dê? Depois a senhora, mais do que Marta se resumia à felicidade sexual proporcionada pelo seu marido.
ninguém sabe: eu não gosto que ela saia sozinha. Se minha mãe nos tivesse criado desde pequeno, teria sido um
— O caso do rapaz do banco ninguém mais lembra. Só o caos, você acredita, os dois levaram o bolo para o quarto, comeram,
senhor, com este ciúmes ridículo. Qualquer dia vai acabar machu- tomaram muito vinho? No dia seguinte, tomaram o café na cama e o
cando a sua mulher. que sobrou do bolo, foi tudo jogado no lixo, sem se importar com os
E vamos parar por aqui, amanhã os vizinhos e a cidade toda seus filhos. A desculpa era que o glacê tinha estragado por ter ficado
vão comentar essa baixaria. fora da geladeira.
Por esse ocorrido, mamãe chorou muito! Papai, arrependido, a Na verdade, os dois viviam como se só eles existissem.
pegou no colo, e a levou para o quarto, cantando “parabéns a você.” Vovó chegou a comentar que havia muito glacê na roupa de cama.

Nessas ocasiões, eu odiava o meu pai por ser um homem Quando aposentou-se do banco ia levava e buscá-la
esquisito e egoísta. Tudo o que envolvia os dois só pertencia a eles. Pendurado na parede do corredor do meu apartamento existe
Esse ódio era maior por ela, que estava sempre a favor dele e contra uma prova do quanto Marta era talentosa. Augusta também ganhou
nós. Na verdade, os dois se mereciam. Hoje em dia, sei que existem um belíssimo quadro enorme, tomava quase toda a parede da sua sala.
homens mais violentos que o meu pai, chegam até matar suas espo- Houve até uma tentativa da nossa parte em estimulá-la vol-
sas, seres imaturos que descarregam em suas mulheres todas as suas tar a pintar. Esse talento não foi o suficiente para reerguê-la. Nada
frustrações e seus complexos. adianta, nenhuma das tentativas de reanimar aquela mulher a sair
A única certeza nossa é que só a vovó nos amou de verdade. do torpor em que vivia. E a cada dia sua depressão aumentava mais.
Quando eles estavam juntos, nós éramos os excluídos, enfim, cresce- Quando Augusta me contou sobre essa conversa. Não pude
mos em uma família dividida. E assim foi a vida toda. deixar de pensar: Como nós, seres humanos, somos uma caixa de
A Dona Marta, hoje, eu a entendo mais do que nunca. O que a surpresa. Quando eu podia imaginar que aquela menina bonita,
deixa nesse sofrimento não é amor pelo meu pai, mas a falta de sexo. muito esperta e determinada, da nossa adolescência se tornaria ape-
O fogo não deve ter diminuído a chama só por estar na meia-idade. nas um objeto de desejos, matando o seu verdadeiro eu, por causa
Dona Marta só aproximou-se de nós depois que crescemos, o do domínio de um homem. Sempre foi esquisita, porém eu a via
desgaste do casamento, a perda da mãe, a sua facilidade de se relacionar cada vez mais estranha.
mais com os adultos. Na verdade, essa aproximação foi mais comigo. — Ah! Estava pensando o quanto Marta é uma mulher sozi-
Consegui perdoá-la. Jeferson foi o que mais sofreu! Sua mágoa nha, por culpa dela mesma. Agora, entendo o motivo de sofrer tanto
será eterna, nunca vai perdoá-la! De nós dois, foi quem mais alimen- com a ausência do marido.
tou uma raiva descomunal. Quanto mais adulto se tornava, mais — Para dona Marta, só existe uma razão para continuar viva:
crescia o seu ódio. o seu Rogério!
Cheguei à conclusão de que ela nunca nos perdoou por termos Eu e a minha esposa chegamos a ter esperança, com o nasci-
sobrevivido, e a nossa irmã, não! mento da nossa filha, como você sabe... Não houve reação alguma.
Mantinha, cada vez mais, uma distância de nós e ficávamos Nem quis conhecer a neta. Não era ela que ia criar!...
vários dias sem trocar uma palavra sequer. Eu desisto de tentar trazê-la novamente para a vida. Sem o
Relembro saudoso da vovó, tão querida! Reconheço toda a sua meu pai, ela não existe, Marta é a típica mulher que não consegue
dedicação. viver sem um companheiro, ou melhor um homem, com as mesmas
Ela, sim, nos criou para sermos homens de bem, responsáveis características do meu pai.
e respeitáveis. Só a ela devemos o que somos hoje. E foi assim que Marta se viu privada da companhia dos seus filhos.
Toda vez que estou com o Jeferson, relembramos dela com cari- Mesmo conhecendo a sua indiferença e frieza diante deles,
nho, o quanto foi fiel aos seus princípios. Hoje, meu irmão sempre dis- me deixava indignada, com a sua atitude! Não fazia questão alguma
farça a emoção e as lágrimas que correm em seu rosto ao lembrarmos da presença deles, muito menos de conhecer a neta. O trauma pela
a Vovó Matilde. De nós dois, sempre foi o mais sensível e carente, uma perda do pai, do irmão depois a primeira filha, a qual esperou com
pessoa carinhosa e gentil com os outros. Já com a mamãe... tanta alegria e um enxoval de primeira.
Quando deixamos a cidade do interior e viemos morar em Quando me contou o desabafo do Jairo, percebi... Foi nesse
São Paulo, Marta quis entrar num curso de pintura. Claro! Com a momento o despertar da Augusta. Finalmente, chegou à conclusão
aprovação do seu marido. que estava perdendo o seu tempo em querer ajudar a sua amiga.

Eu amo meus filhos e gosto de sentir eles sempre perto de
mim. Fica difícil entender como alguém pode agir assim com tanta
indiferença. Como essas mães que jogam fora ou doam os seus
rebentos? Na realidade, Marta secou o seu instinto de mãe. Todos
nós, parentes e amigos, sabíamos o quanto nunca teve paciência A INDECISÃO
com criança. Porém, tratá-los como se não existissem? Toda vez que
engravidava, a esperança voltava! O ultrassom logo a decepcionava
e vinha acompanhado com o desespero de ter que esperar por noves
meses para se ver livre daquelas criaturas. Teve esses filhos em sacri-
fício próprio, só para agradar o marido. Marta realmente era uma
mãe desnaturada.
Depois que o Jairo tomou a firme decisão de não ajudar mais a
mãe, restou toda a responsabilidade para minha amiga samaritana.
A
ugusta desligou o telefone a dúvida lhe consumia, ir ou não ir
à casa da Marta?
Não tinha obrigação nenhuma de largar tudo e ir tentar
aliviar mais um desejo da sua amiga. Não via da parte dela o
mínimo de esforço em favor da sua melhora.
Queria mesmo era aproveitar aquele domingo tão agradável.
Ótimo mesmo para ficar em casa e terminar a arrumação do
apartamento. Realmente não havia ânimo suficiente para largar o
que estava fazendo e ir até a casa da amiga. Augusta, ao terminar
de limpar o banheiro, pensa... Marta não completou os estudos,
nunca trabalhou, sempre só teve a sua beleza e sensualidade
como as suas aliadas. Acha tudo fácil, pensa estar todo mundo
à sua disposição. Augusta está realmente cansada dessa situação!
Finalmente percebeu o quanto alimentou a neurose da amiga.
Acaba decidindo ajudá-la ainda, da maneira que der, ajudaria
só em termos materiais. Quando eu não acreditava mais em sua
decisão, respondia agressiva: “Não esperem que vá continuar à
socorrê-la. Vou tratar da minha vida!”
Depois da revelação do Jairo, foi a Augusta quem batizou a menina.
Não sentia mais ser responsável por Marta viver no meio da
sujeira, desde sempre dificilmente abre as janelas daquela velha
casa. Não admite empregada, quem tentava pôr um pouco de
ordem, quando tinha tempo, era a minha amiga, samaritana. A

pensão do marido, uma miséria, se não fosse pela ajuda finan- Já está aposentada e bem decidida, ninguém iria atrapalhar o
ceira do Jairo e a benevolência do seu irmão em deixá-la morar seu projeto de quase uma vida. E na indecisão se vai ou não,
naquele lugar, onde sempre viveu até se casar, a situação teria resolve ir ao encontro da amiga, para terminar definitivamente
sido bem pior. Com a saúde meio debilitada, tem sido uma cruz com aquela situação. E naquele domingo de sol, resoluta em pôr
para Augusta carregar e ampará-la, já que a Marta não possui um ponto final de ser muro de arrimo, foi tomada por um misto
plano de saúde. Sem ter noção, Marta estava acabando com as de coragem e alegria, por ter certeza de que aquela atitude seria
energias e a parte econômica da sua amiga. benéfica para ambas. Ao ter conhecimento, a minha primeira
Augusta não gosta quando a temperatura cai muito. O seu reação foi de alegria, depois, fiquei preocupada. Diante da
apartamento é muito gelado. Se isso acontece em dias de folga, fica Marta, iria conseguir? Estava tão envolvida!
no sofá enrolada nos cobertores, lendo um bom livro, tomando chá,
e acaba não fazendo trabalhos domésticos.
Mas, nesse dia de um céu azul brilhante, sem nenhuma nuvem,
foi um estimulo para limpar todos os cômodos do apartamento.
Colocar travesseiros e os cobertores no sol.
Já em relação à Marta, estava cada vez mais firme na sua
decisão de ir se afastando gradualmente da amiga. O seu coração
mole, aliado à preguiça de sair, lhe dominava em uma dualidade
a todo momento, devia ir ou não? Como fiquei aliviada, eu não
acreditava na sua decisão anunciada. Tardou, mas Augusta
tinha acordado! Chegou finalmente à conclusão de que todo
o seu esforço foi em vão! Querer tirar a amiga daquele estado
deplorável foi um erro. Ninguém ajuda ninguém, quando não
se quer ser ajudado. Achou melhor cair fora. Outro dia, quando
levou Marta a um médico particular e teve novamente em arcar
com as despesas... E percebeu que todas as recomendações
alimentares passadas pelo doutor, para resolver o problema
do esôfago, não foram respeitadas, inclusive o conselho dela
procurar um psicólogo. Diante da recusa de Marta, Augusta
ficou muito nervosa ao perceber o quanto ela não cooperava
mesmo. Correu para pagar a consulta particular, e arranjar um
lugar, um tratamento terapêutico em grupo. Mas o resultado
foi em vão. Como sempre, a Marta negou-se a frequentar esses
lugares. O limite da sua compreensão chegou. Estava cansada,
cheia mesmo, com os inúmeros problemas da sua protegida.
Era gastar energia inutilmente nesse jogo sem fim. Depois,
têm planos de viajar pelo mundo no começo do próximo ano.

— Sei... Uma boba achando que é boazinha! Fica que-
rendo ajudar todos os seus amigos e não resolve os seus pró-
prios problemas. Se eu estivesse em seu lugar, mandava ela se
Lidiane matar mesmo.

— Não brinca, Lidiane, é sério! Hoje, ela estava mais desnor-
teada do que nunca Percebi ao ouvir a sua voz pelo telefone, há dias
não consegue dormir.
— Para mim, nada que vem da Marta ultimamente é sério.
Ser desnorteada faz parte da personalidade dela desde que nas-
ceu. Tem outra coisa, de uns tempos para cá, desconfio dessas
crises, para mim o que ela quer mesmo é só chamar a atenção.
Principalmente a sua!
E como você dá corda, continua a fazer chantagem.
O
telefone toca novamente e Augusta atende muito brava: — Lidiane, não seja tão cruel com a Marta, eu acredito no
— Alô! sofrimento dela.
— Alô! Augusta sou eu, a Lidiane, você está brava? — Eu também acredito que ela sofra, afundada nas suas pró-
— Augusta disfarçando: oi, querida, já voltou? prias neuroses.
— Sim! — Você podia me fazer um favor? Liga para ela, veja como está
— Não ia ficar até o fim do mês? O que houve? a situação por lá.
— Não aconteceu nada. Estava muito frio, resolvi voltar antes Enquanto isso, eu vou me arrumar, irei em seguida. Mesmo
—Sabe quem acabou de ligar? que você não acredite... Nunca estive tão decidida
—Essa é fácil! A Marta! Agora entendi o porquê atendeu o — Com toda essa preocupação? Duvido! Enfim, você é
telefone tão nervosa! O que aconteceu desta vez? Aposto que o quem sabe.
mesmo de sempre. Tudo bem eu vou ligar e ouvir um alô, de quem está morrendo.
— Sim! — Só você, Lidiane, para me fazer rir neste momento. Mas liga
— Estou estranhado, como não foi ainda tentar salvar a nossa mesmo, ela vai ficar contente. Faz tempo que vocês não se falam. E o
amiga de mais uma das suas crises? Ricardo conseguiu estar lá com vocês?
— Estou pensando se vou ou não. — Sim, ele foi!
— Que milagre! Você já sabe o que eu penso sobre —Deu para matar a saudade?
tudo isso — Sim, correu tudo bem! A família toda reunida, o paparico dos
— Sim! Que eu também tenho a minha parcela de culpa. meus avós. O Ricardo como sempre implicando comigo. O impor-
Fique você sabendo que ultimamente eu tenho ido muito pouco tante é que conseguimos estar todos juntos. Demos boas risadas. Foi
ao seu socorro. um reencontro familiar bem agradável. Uma festa! Apesar de ter ido
— Por que a dúvida, então? embora antes do previsto. Passou mal, por este motivo, acabou vol-
—Tenho medo de que ela tente novamente o suicídio, você tando logo para Boston. O meu caçula foi junto. Sempre me acusando
sabe como eu sou... de ser a culpada por tudo de ruim o que acontece com o pai.

— O que ele teve? Os meus avos vieram para o Brasil em 1946 com a família,
— Não sei! O Junior foi quem o levou para o hospital de meu pai estava com 27 anos e mãe com 21 anos, já estavam casados,
Porto Alegre. e esperando a segunda filha.
Diante das minhas indagações, permaneceu calado. Só Vovó veio com emprego prometido no estado do Paraná pelo
depois de muita insistência falaram em uma pequena indispo- seu primo que a muito tempo estava no Brasil. Aos vinte e quatro
sição, disfarçaram dizendo estar tudo bem! Mas depois disso, anos a família faz uso das suas economias e compra uma pequena
deram a desculpa sobre o trabalho. Logo voltaram para Boston. chácara no Rio Grande do Sul.
Tenho certeza de que ambos estão me escondendo alguma coisa.
Sabe como é! — Alô, alô! Lidiane
— Sei... Você sempre fugindo, não é mesmo? Não faz questão Você ainda esta aí?
nenhuma em saber a verdade. —Sim!
— Se eles disseram estar tudo bem, por que eu vou me preocu- — Aconteceu alguma coisa?
par? Já são bem grandinhos. Se o Ricardo não confia mais em mim, — Não aconteceu nada! Voei longe... Recordando, a história
deseja manter segredo, o que eu posso fazer? Eu só espero não ser dos meus avôs.
nada grave. — Que susto! Pensei que tinha acontecido alguma coisa com
— E o seu coração, como se comportou depois de tanto tempo você. Ficou muda de repente!
sem vê-lo? — Não seja dramática!
— Sem grande emoção! Cheguei à conclusão de que acabou — Isso é hora de devaneios? Ainda mais ao telefone! Vamos,
mesmo! Principalmente depois de ter encontrado o Jaime. fale da sua viagem.
— Quem é Jaime? — Foi ótima! Surpreendente! Conheci uma pessoa...
— O importante é que continuamos a ser amigos, e preservar- — Hum! Hum! Uma pessoa... Sei...
mos a união da nossa família. — Conheci uma pessoa importante!
Augusta, nós precisamos nos encontrar, já faz uns dois meses — Você já me disse que conheceu uma pessoa.
sem colocarmos os nossos assuntos em dia. Precisamos aproveitar — Mas não lhe disse o quanto ele é especial! Foi importante!
as férias para estarmos juntas, depois tenho novidades para lhe Nessa altura da vida, não me passava pela cabeça conhecer alguém
contar... A viagem foi ótima, além de estar com meus amores, tive que viesse mexer novamente com os meus sentimentos. O nome
um descanso merecido. O ar da fazenda me fez muito bem. E ainda dele é Jaime! Um senhor tão distinto e sedutor.
fui agraciada com uma situação inesperada. — Louro e de olhos azuis!
— E seus avós, como estão? — Você se enganou desta vez! A pele dele é bronzeada,
— Estão bem! Eles têm mais saúde que nós duas juntas. olhos negros cabelos grisalhos, não é gaúcho, nasceu em São
Você mais do que ninguém sabe... Meus avós, depois dos Paulo, é um empresário, viaja muito, vive em hotéis... Tem um
meus filhos, são as pessoas da minha família por quem eu mais bom gosto para se vestir! É um homem fino! Foi um jornalista,
tenho amor. um amigo em comum, que nos apresentou. Eu estava na cidade
Admiro demais a sabedoria desses dois poloneses. Quando fazendo umas compras, depois fui almoçar, quando eles che-
estou com eles, me sinto plena. As lembranças do meus velhinhos... garam. O restaurante estava cheio, acabaram almoçando em
Morro de saudades. minha companhia

— Amiga, há tempos não a vejo tão entusiasmada, por causa — Tudo Bem!
de um homem! — O almoço vai ser na minha casa ou na sua?
— Parece ser um próspero empresário. Menina! Senti uma — Nenhuma das duas opções, amanhã é dia de faxina, o apar-
emoção tão forte quando eu o vi, trocamos olhares profundos, numa tamento ficou fechado, vamos nos encontrar ao meio-dia, almoçare-
cumplicidade, tenho certeza de termos sido pegos sentindo as mesmos no lugar de sempre. O que você acha?
mas emoções. No mesmo dia, me convidou para jantar, fiquei na — Ótimo! Se as coisas fugiram do controle com a Marta você
cidade, voltei para fazenda só no dia seguinte. liga de volta. Tudo bem?
— Já ficou com o homem logo no primeiro dia? Estou lhe — Tudo certo! Até amanhã.
estranhando!
— Claro que não! Dormi na casa do meu filho mais velho! A
impressão que me passou foi de ser uma pessoa enigmática, char-
moso, perfumado, envolvente e muito educado.
— Eu estava brincando! Se o tal senhor é tudo isso, devia
mesmo é ter passado a noite com esse homem maravilhoso e tão
envolvente!
— Augusta!
— E sério! Há muito tempo não a vejo interessada com tanto
entusiasmo por alguém. Por que então voltou antes da hora? Não me
vai dizer que foi por causa do frio, se havia alguém para lhe esquen-
tar. Você, na certa, fugiu para não se comprometer.
— Desta vez está completamente enganada. Além de estar
muito frio, voltei por motivos particulares, eu e a Verinha, decidi-
mos pôr o nosso apartamento à venda, vamos procurar um menor,
bem mais perto da faculdade.
— Você não me disse nada sobre essa decisão!
— Decidimos lá no sul, pôr em prática uma vontade antiga
nossa.
Como dentro de uma semana voltamos a trabalhar, teremos
tempo para procurar algo que nos satisfaça.
— No meu prédio tem um ótimo para vender. O local é bem
mais perto da onde ela estuda. Preço de ocasião. Talvez vocês nem
precisam vender o que vocês moram
— Tudo bem, depois eu passo lá para dar uma olhada. Agora
me diga: Vai dar para nos vermos amanhã?
— Se for na hora do almoço! Logo cedo vou dar uma passada
na escola.

— Não vejo beleza nenhuma no dia de hoje. Feche essas jane-
las, estou com frio!
— Não! O sol veio nos presentear com este belo dia! Deve
A Decisão estar cega também! Não está vendo os raios do sol em sua janela?
Está tudo azul sem nenhuma nuvem, nos dando o prazer de um dia
bem agradável!
Coloque uma cadeira no quintal, tome um pouco de sol, deixe
os raios solares entrarem na sua alma e dentro desta casa fedorenta.
Quem sabe aquecendo um pouco os seus miolos, você sara dessa sua
doença incurável! Coloque, de uma vez por todas, em sua mente, que
o seu casamento acabou. O Rogério nunca mais vai voltar! Vamos,
diga comigo! O Rogério nunca mais vai voltar! O Rogério nunca
mais vai voltar...
Q
uando Augusta chegou ao apartamento de Marta, a encon- Marta, cada vez mais assustada com a reação da Augusta, pede
trou bem mais calma, facilitando, assim, a sua decisão. para ela parar. Pensa: Foi sempre tão equilibrada. Hoje, está irreco-
Marta reclama por ela ter demorado e lhe oferece uma nhecível, alguma coisa aconteceu? O que será que houve?
xícara de chá. — Na verdade, Marta, eu vim até aqui para lhe dizer que não
Percebendo a tranquilidade da amiga fica furiosa. conte mais comigo, Estou cansada de ficar lhe ajudado. O tempo
— Não, obrigada! Pelo jeito já está tudo bem com você? está passando e eu não vejo resultado algum! Na verdade, você tem
Tomando chazinho... Ótimo! Assim fica bem mais fácil. Eu não vou o prazer de me atazanar, não é mesmo?. Já que não quer ser ajudada!
me demorar, estou cheia de compromissos. Mesmo consciente de que o casamento acabou, faz questão em ficar
— Como? Você acabou de chegar! pousando de vítima.
— Chega desse seu joguinho. Preciso ter uma conversa séria Augusta tinha que reagir daquela maneira com Marta, esteve
com você! Estou cansada, não dá mais para sair correndo toda vez sempre à disposição da amiga.
que você tem um desses seus chiliques. — Olha aqui! Estive todo esse tempo à sua disposição. Só que
— Chiliques, eu? Nossa! O que aconteceu, está tão diferente? agora chega! Vem arrastando esse seu drama tempo demais. E a
O que foi que aconteceu? Por que está tão nervosa? tonta aqui sempre lhe apoiando.
Augusta pergunta se ela tem cera no ouvindo. Ao anunciar Marta finge não estar entendendo nada. Só que Augusta não
que não ia mais sair correndo, e deixar os seus afazeres só porque a desiste e fala do Rogério, o quanto ele deu um novo rumo para sua
madame está toda hora em crise. – Desta vez, devo estar enganada. vida, enquanto ela insiste em não querer aceitar a verdade. Marta
Não há crise! Você parece estar ótima! tentava fazer a amiga se calar, a verdade era muito doída, sendo a
Marta, ao perceber que Augusta está gritando, se assusta. sua única realidade. Começou a se distanciar ao ouvir que o tinha
Enquanto Augusta vai abrindo as janelas, Marta a segue fechando-as. perdido para sempre!
— Olha para essa casa, toda suja, nem as janelas você abriu! — Por que essa insistência? – Dizia Augusta. – Às vezes acho
Veja, que belo dia está fazendo. Você nem se deu conta de que o que está fingindo, gosta mesmo de chamar a atenção, ser paparicada.
inverno já chegou? Dentro do seu íntimo, vejo que finalmente, perdeu a esperança, não

voltou até agora, não é mesmo? Chega dessa pasmaceira! Vê se reage fadas acabou. Só você não consegue acordar desse sonho! Minha
de uma vez por todas! Por incrível que pareça, apesar de todo esse amiga, já faz tempo que a história de vocês dois terminou e você
seu sofrimento, continua com a tez corada, sedosa, o tempo parece continua aí se acabando. Homem nenhum merece tanto sofrimento
não passa para você. Como também não passa essa sua teimosia em e renúncia. A vida é assim mesmo, hoje está tudo bem e amanhã não
não querer lhe dar uma nova chance. está. Depois, se você não fosse tão submissa, quem sabe ele não a
— Pare com isso! Deixe de ser desagradável. Eu sei que o tinha lhe respeitado mais. Homens gostam sempre de carne nova, e
Rogério não vai mais voltar não sou nenhuma idiota. Só queria de mulheres inteligentes.
desabafar. — Nossa! Por que voltar nesse assunto? Há muito que nem
— Não é idiota? Claro que é! Tem desperdiçado todo esse penso nisso.
tempo gastado a sua energia com quem não lhe merece. Lembre o — Que bom! Se já não pensa mais, está na hora de mudar
que foi bom! Agradeça por ter tido esses momentos maravilhosos o seu comportamento. Preste atenção! Em breve, eu não vou estar
em sua vida. Agora, bola para frente! Você ainda é uma mulher mais aqui para ajudá-la, você tem que ir se acostumando com isso.
bonita, está um pouco maltratada, é verdade, mas quanto a isso — Está pretendendo ir para onde?
pode se dar um jeito. Há muito devia ter reconstruído a sua vida. — Não interessa!
Neste minuto no mundo quantas mulheres estão separando-se — Nossa!
dos seus maridos? Eu também preciso às vezes desabafar e nunca Marta arregala os olhos, nunca tinha visto Augusta tão
tenho quem queira me ouvir. Se você começar a limpar tudo por descontrolada.
aqui, vai ser o primeiro passo, lhe garanto que vai sentir-se bem — Calma Augusta. O que os vizinhos vão pensar com toda
melhor. Comece limpando a casa... Aposto que tem comida estra- essa gritaria?
gada na geladeira, ouça música, cante, faça o regime que o médico — Ih! Marta, você é ainda do tempo que se importa com vizi-
mandou, depois, jogue fora tudo de ruim que você guarda na sua nhos? Vive tão alienada de tudo que na certa não está sabendo da
alma, em sua mente, e no seu guarda-roupa. Vá a um cabeleireiro novidade.
e melhore a sua aparência O que você está precisando é começar a — Não me interessa saber de novidade nenhuma.
ocupar o seu tempo, e livrar-se de uma vez por todas de tudo o que — O Rogério está doente!
lhe prende ao passado! Pare de ser vítima de si mesma, deixe de ser Por que Augusta foi tocar neste assunto? Rogério realmente
a sua pior inimiga, não olhe mais para trás siga em frente Descarte estava doente e internado, e era grave o seu estado de saúde. Marta
tudo o que não lhe serve mais. Siga em favor da vida, que está virá ficou desesperada, queria saber em que hospital ele estava, precisava
a seu favor. Marta, eu estive com você esse tempo todo... Agora ir visitá-lo.
chega!... Mais do que ninguém sei o quanto, a seu modo, você foi Augusta, vendo o desespero da amiga e lhe conhecendo a con-
feliz no seu casamento. A vida com o Rogério, como você vive a solou, alertando à amiga que ele tinha a mulher e os filhos para se
ladear, sempre foi um mar de rosas... ocuparem com isso. E que ela não era mais nada dele.
Rogério foi um ótimo marido! O ideal de todas as mulheres! — É isso que me dói... Não consigo entender... Tantos anos...
Conheço toda essa sua ladainha. Ok! Pense bem nisso, você Compartilhando uma vida juntos, havia tanto amor, éramos amigos,
foi uma mulher premiada, ele a aceitou do jeito que você é, foi cari- amantes, lhe dei filhos. Assim, de uma hora para outra, tudo fica
nhoso, um cavalheiro, bom de cama, seu protetor, nunca lhe traiu, tão confuso. Não consigo aceitar! Nós que éramos unha e carne, tão
era romântico. Mesmo que tudo isso tenha sido real, o conto de íntimos, Não entra na minha cabeça. Agora somos dois estranhos.

— Chega desse blá, blá, blá! Vocês eram casados, eram feli- Marta, depois que ouviu sobre a saúde de Rogério, pra-
zes, agora não são mais! Ponto final! Transformar, mudar, faz parte ticamente não prestou mais atenção nas palavras de Augusta,
da existência. Cada minuto que passa, alguém neste mundo está estava mais curiosa em saber qual era o real estado de saúde do
passando pela mesma situação. Separação é uma coisa tão normal seu ex-marido, estava curiosa em saber quem foi que contou
hoje em dia! Todo mundo casa na esperança de dar tudo certo para para a amiga. Augusta acaba lhe dizendo, depois de tanta insis-
sempre. Só que há muita diferença, ideológica, moral e psíquica. A tência, ter sido o Jairo o seu informante. Foi na última visita
maioria dos homens só pensam com a cabeça de baixo. Afinal, o seu feita à sua afilhada.
casamento deu certo por muito tempo e isso você devia agradecer. A Marta, inconformada, fica pensando em arranjar um jeito de
mulher de hoje é mais independente, não é fácil encontrar a pessoa ir visitá-lo no hospital. Augusta, percebendo que ela não está lhe
certa, adequada para suprir as expectativas de ambos. Você foi pre- escutando, grita mais alto lhe informando a sua decisão em ir para a
miada neste sentido, teve um casamento, sem problemas. Você sabe casa de praia no dia primeiro.
quantas viúvas existem? E quantas são arrimo de família neste país? — Vou ficar lá por uns dez dias! Pela última vez, eu estou lhe
Ninguém fica chorando por tanto tempo. Todas foram à luta e hoje convidando para ir comigo. Escutou? Vou ficar dez dias fora de São
são mulheres independentes. Paulo. Agora, se continuar a insistir em não ir, problema seu!
Marta, para com essa obsessão, o tempo passou, para de agir Estou lhe dando mais uma chance para transformação, mudar
como se tivesse sido ontem a separação de vocês. A vida é assim de ares. Se resolver ir, liga avisando da sua decisão.
mesmo, ninguém é de ninguém, muito menos é obrigado amar Quero deixar bem claro, vou cada vez mais tratar da minha
alguém. Você não foi a primeira, nem será a última, a passar por esta vida, de hoje em diante, não conte muito mais comigo! Depois no
situação. Eu também perdi os meus pais, A partir deste fato, fiquei fim do ano, vou ficar um bom tempo fora do país.
sozinha, não casei, não tenho filhos, mas nem por isso desisti de viver. Augusta sai e bate a porta deixando Marta, em choque. Nossa!
— Por isso mesmo que você não entende. Essa não é a Augusta, está tão estranha? Alguma coisa aconteceu...
— Entendo sim! Está mais do que na hora da senhora rea- Vai ver foi por causa da chegada da Lidiane, marcaram, na certa,
gir. Faz cinco anos, o prazo de validade para curtir essa decepção já algum compromisso.
caducou. Você precisa ter um confronto consigo mesma! A vida con- Marta não leva muito em conta o destempero da amiga, está
tinua... Chega dessa loucura! E quer saber do que mais? Eu já estou mais preocupada com a saúde do Rogério, precisa saber onde ele
farta de tudo isso! Dessa cantilena sem fim! Se é da sua vontade ir se está internado. Saber com mais detalhes sobre a doença, e pensar em
matando aos poucos... Mate-se logo de uma vez! Há muitos viadutos como vai poder ajudá-lo era mais importante do que aquele rom-
em São Paulo, atire-se de um deles e acabe com esse sofrimento. pante sem nexo. Pega o telefone e liga para casa do Jairo. O filho lhe
— Meu Deus! Augusta, você realmente enlouqueceu! Sabe mais trata agressivamente e quase nada lhe revela.
do que ninguém que sou católica, jamais cometeria um ato desse. A não ser que a doença do pai era muito grave, mas não era da
— É uma louca mesmo! O pior é viver como uma morta-viva! conta dela. Arrasada com as palavras duras do filho e da Augusta, no
Ou você não acha que essa sua atitude também desagrada a Deus. mesmo dia, num impulso repensa pela primeira vez... Augusta tem
Não aceita e nem compreende os seus desígnios. Também é uma razão! Depois de tanto tempo, chega à conclusão de que precisa urgen-
afronta grave. Você não passa de mais uma falsa religiosa. Deus nos temente dar uma nova chance para a sua vida. A vida quis assim... O
deu a vida para ser bem vivida. Depois, quanto tempo está longe de melhor a fazer era esquecer. Mesmo tendo consciência do quanto isso
uma igreja? ainda era difícil para ela. Já que não pode ajudar. Chora, indecisa não

sabe por onde começar, depois de tanto pensar... Decide ir para a praia
com a Augusta. Liga o resto do dia para a amiga, sem resultado.
Augusta aliviada sentindo-se bem mais leve com a sua decisão,
em paz, respira liberdade, profundamente. Resolve aproveitar o resto
do domingo. Dirige-se até o parque Ibirapuera, faz uma caminhada, Relacionamentos
por lá, almoça, depois, vai ao cinema, à tardinha, quando as nuvens
cobrem novamente a cidade, um ventinho gelado incomodava a sua
pele. Diante da melancólica paisagem cinzenta, cansada e ciente do
quanto aproveitou bem o domingo, resolve voltar para casa.
Ao chegar, ouve os vários recados da Marta na secretaria ele-
trônica. Ignora-os. Prepara um chocolate bem quente. Bem mais
animada, depois de lanchar, termina a limpeza em seu apartamento.
Em sua mente, passava como foi boa a sua atitude em ter definitiva-
A
mente aberto a mão de ser o porto seguro da Marta por tanto tempo. ntes de conhecer Jaime, as minhas únicas amigas bem chega-
Sentindo-se culpada por há muito não lhe ter posto um limite. das sempre foram Augusta e a Vera. Sempre convivi com muita
Lidiane sempre teve razão. Sempre agi errado, como uma gente, mas só as duas estiveram comigo até o meu segundo
boba. Também não devo me condenar, fiz o meu melhor, tive com- casamento. Vera conheci na repartição, colega de profissão, pra-
preensão. Depois, confesso: fui me envolvendo, tive pena, me sentia ticamente fomos admitidas na redação do jornal na mesma época.
bem em ser prestativa. Na verdade, fui me enganando ao pensar que Em todos os eventos sociais relacionados à minha profissão, eu com-
era uma pessoa boa. Que pretensão! partilhava da sua companhia, num desses eventos me apresentou o
Ricardo, meu primeiro marido. Nós duas passamos as férias viajando
pelas capitais do Brasil. Minha colega era uma companhia agradá-
vel, muito centrada, não havia tempo ruim em seu comportamento.
Vivia dizendo o quanto casamento não fazia parte dos seus planos.
Na última viagem que fizemos para Fortaleza, conheceu um francês,
seu atual marido. Eles vivem em Lion. Raramente nos comunicamos
pelas redes sociais.
Papai, costumava comemorar em junho, no dia de São Pedro,
data do seu aniversário. Realizava uma festa junina grandiosa. Todos
os anos convidava os amigos, parentes e vizinhos.
Convidei a Vera, já estava noiva com as malas prontas para
embarcar para França. Veio para festa com o seu amigo Ricardo, por
haver interesse dele por minha pessoa. Rimos muito, iria se casar
antes de mim. Casamento, não fazia parte de seus planos...
Logo em seguida, me casei com o Ricardo, foi realmente uma
festa para ninguém colocar defeito. Eu sou, como dizem, a raspa do

tacho, muito mimada e amada pela minha família. A festa de casa- Com o Ricardo, tive três filhos. Maria Rosa, a caçula, mora
mento promovida pelo meu pai, foi digna de uma princesa. comigo; Bernardo, filho do meio; Junior, o mais velho
Foi a última de sua vida, mamãe veio falecer logo depois, sem Quando Ricardo foi transferido para os Estados Unidos, fez
antes ter me pedido desculpa por ter me abandonado, quando eu era de tudo para levar a família com ele. Rosinha, tinha acabado de
ainda uma criança. entrar na faculdade, o Junior ia se casar e eu não queria perder o
A vida para mim sempre correu tranquila, os aborrecimen- meu emprego. Ainda tinha meu pai e meus avós vivos, não tinha
tos conto nos dedos. O mais difícil para mim foi quando estava coragem de ficar longe deles. Vivíamos bem até essa transferência
com dois anos, apesar de não entender nada do acontecido. Minha acontecer. Isso fez com que o nosso casamento fosse esfriando aos
irmã, com quatro anos, acabou sofrendo um acidente na cozinha, poucos e chegasse ao fim.
Queimou todo o seu antebraço e a mão esquerda, como a parte do Bernardo foi com o pai e nunca me perdoou pelo fim do casa-
peito direito. mento. Esse meu filho, na ocasião, teve muita dificuldade de enten-
Queimadura de terceiro grau. Como não assisti ao acontecido, der o meu lado. Quando estávamos juntos, o Ricardo sempre me
só mais tarde vim a entender a gravidade do fato. acusava: Se não fosse pela minha teimosia, ainda estaríamos juntos,
Desde esse acontecimento, fui morar com os meus avós. A a família não teria se desmembrado. Eu nunca me senti culpada, o
família mudou-se para o Estados Unidos. Chorei por muitos meses casamento já estava desgastado, apesar de saber o quanto nos dáva-
a ausência de minha mãe. mos bem, e ter a certeza do seu amor. Sim! O Ricardo sempre me
Lívia precisava de um tratamento especial. Papai não media amou mais do que eu a ele. Ricardo era um homem gentil, român-
esforços para salvá-la. Com cinco anos, estive visitando a família tico, alegre, e lindo!
em Nova Iorque, levada pelos os meus avós e pela minha tia, irmã A distância não fez morrer o carinho enorme que sempre lhe
do papai. Minha irmã melhorou depois de várias cirurgias, mamãe dediquei. Na verdade, naquela ocasião percebi o quanto eu gostava
voltou conosco, ficamos ainda um ano no sul morando na casa dos de viver sozinha, sem ter ninguém para me perturbar. Eu e a Rosinha,
meus avós, quando, então, nos mudamos definitivamente para São apesar de morarmos na mesma casa, quase não nos víamos.
Paulo, com a vinda do papai. O meu encontro com o pai dos meus filhos foi paixão, não
Minha irmã e titia permaneceram em Nova Iorque. Lívia houve amor.
nunca mais quis voltar, apesar de ter uma ligação muito forte com Esse relacionamento, na verdade, já vinha morno e, da minha
mamãe, que a visitava todos os anos. Por lá, formou-se e casou-se. parte, o desejo tinha acabado, mas eu demorei a me dar conta disso.
Eu e minha irmã sempre vivemos distantes uma da outra. No início da separação, foi difícil senti saudades, O bom dessa his-
Beneficiada financeiramente e sem muita modéstia, desde tória é que continuamos a ser bons amigos. Porém foram raros os
sempre, soube que a inteligência e uma certa beleza me favoreceram. momentos depois da separação ao compartilharmos a companhia
Papai, na volta dos Estados Unidos, cansado da vida de agri- um do outro. Nessas oportunidades, ainda me tratava como se eu
cultor, veio para São Paulo. fosse a sua mulher, acabávamos sempre brigando.
Eu estudei jornalismo, piano, ballet e pratico natação desde Tive muito tempo, para perceber como era bom viver sozinha;
criança.
No fim do casamento de Marta, eu estava com 42 anos. Sou
bem alta e dizem que eu tenho uma beleza exótica. Nessa época, já
estava separada do Ricardo.

eu nunca esqueci desse dia, o grito era de uma dor tão profunda!
Naquele dia, não conseguiu conter o choro. Também apanhou em
dobro, primeiro da mãe e depois do seu pai. A revolta da minha
Augusta amiga foi tanta, nunca esqueceu tamanha injustiça cometida. A cada
chinelada dada por sua mãe, eu chorava também desesperadamente
como se fosse eu quem estivesse apanhando. Mamãe tentou de todas
as maneiras me acalmar, mas foi em vão.
Fui dormir muito triste, nunca gostei de violência e muito
menos de destruição. Meus pais nunca me bateram, meus avos,
então! Diálogo e castigos eram o suficiente. Depois desse episódio,
perceberam o quanto eu amava a minha amiga. Nunca mais interfe-
riram na nossa amizade. Não entendia por quê eles eram tão severos
com a minha amiga, principalmente naquele dia, quando não tinha
A
ugusta desde sempre foi uma pessoa independente, responsá- culpa nenhuma. Eu tinha medo dos seus pais, a mãe era pior. Eu ia
vel e estudiosa. Os seus pais lhe deram uma educação rígida. muito pouco à sua casa. O pai era um homem frio distante, quase não
Desde criança, o seu temperamento era de uma pessoa livre, se falavam, apesar de ela ter cuidado deles até o fim. Nunca houve
mandona, senhora de si. afinidade entre eles. Augusta sempre foi uma boa aluna, e ajudava a
Por esse motivo, dizia sempre: “Está para nascer quem vai me mãe nos afazeres da casa. Quanto mais foi crescendo, os castigos e
proibir de ser uma pessoa livre, ou está para nascer o homem que vai as surras foram-se rareando, até serem extintos. Mas nunca houve
mandar em mim.” Era ainda uma criança, mas tinha uma empáfia. um gesto de carinho da parte daqueles dois. Nem por isso a minha
Quando ficava de castigo, abria a janela da sala e fugia. amiga deixou de ser uma boa pessoa, boa filha, estudiosa e muito
O seu pai foi dono de um açougue, acabou perdendo tudo. Sua criativa em nossas brincadeiras.
mãe era professora antes de se casar, lecionou em várias cidades do inte- Tinha que ser sempre a chefe, diretora, professora, a dona da
rior. Já casada, tornou-se diretora de grupo escolar. Augusta foi uma venda. Sua mãe dava aula na parte da tarde, aproveitava a sua ausên-
criança e adolescente muito levada! Das três, foi a que mais apanhou, cia para nos levar à sua casa. Quando queria brincar de teatro, circo,
raramente chorava. Certa ocasião, estava cantando em frente ao espelho dança, fazia com que nós subíssemos em cima de uma mesa redonda,
da penteadeira, ao dar um agudo, um vidro enorme de perfume que- e ficava nos dirigindo. Influenciada pelo comportamento rígido dos
brou-se, provavelmente por estar batendo muito sol através da janela. pais, era muito brava e autoritária conosco. Ao ficar sabendo que
Meus pais tinham grande apreço pelos pais de Augusta, mas achavam algum menino estava apaixonado por alguma menina ou vice-versa
que ela não era uma boa influência para mim. Não chegaram proibir a da turma, fazia de tudo para unir os dois. Seguindo a vocação da sua
nossa amizade. Principalmente depois do dia que o perfume quebrou. mãe contrariando o seu lado artístico, formou-se professora. Tem
Devia estar com uns dez anos, correu para minha casa, eu um temperamento forte, o tipo de pessoa que não leva desaforo para
nunca tinha visto Augusta tão desesperada, sabia que não ia escapar casa, sempre foi uma pessoa espontânea e muito franca. Essa fran-
de uma boa surra. queza lhe trouxe vários problemas. A vida inteira, a sua forte perso-
Minha mãe tentou intervir, contando o que realmente acon- nalidade, e talento em várias atividades, levou-a ser vítima de inveja.
teceu, mas não adiantou. Foi apanhando da minha casa até a dela, Sempre vendeu simpatia e sempre teve consciência da visão errônea

das outras pessoas sobre ela. Perdoa com facilidade. Enquanto lecio- noiva, ela é quem terminou o namoro. Pelo Manoel, arrastou por um
nou, dificilmente faltava, tinha um amor enorme pela profissão e ano um amor não correspondido. Com o Gustavo, a família dele foi
pelos seus alunos. Sempre foi reconhecida por eles. Chegou receber quem impediu o namoro, enviando o rapaz para se formar fora do
uma homenagem pelos serviços prestados na educação. O período país. Eles chegaram a se corresponder por um bom tempo.
em que tentou ajudar a Marta sair da sua crise existencial foram, sem Eu nem os conheci, estava envolvida com o meu casamento
dúvida, os piores momentos da sua vida. Cinco anos para esquecer. e o nascimentos dos meus filhos, nos víamos muito pouco nesse
Nesta ocasião, descobri o quanto Marta era uma mulher egoísta. Só período. O último namorado foi o Lucio, um cafajeste de primeira,
pensava nela!. A aposentadoria da Augusta chegou na mesma época um homem de meia-idade, carismático charmoso, e sem dúvida o
do fim dos cinco anos da separação do Rogério e Marta. Dedicada homem mais bonito dos seus envolvimentos, até aquele momento da
aos seus alunos, preferiu ficar lecionando até o fim do ano. Até esse sua vida. Chegou montar uma kitnet, onde passou a morar com ele
momento, permanecia solteira, a vida não lhe deu filhos. Viveu nos fins de semana. Durante a semana, morava com os pais. O Lucio
sempre com os pais, a mãe foi afastada cedo das suas funções de vivia bêbado, e aproveitava a ausência dela para levar outras mulhe-
professora por problemas de saúde. Tendo sempre os cuidados da res no apartamento. Foi pela ocasião do Natal, cansada das suas
filha. Aguentou as suas rabugices até a velhice deles. Eu admirava a bebedeiras, que deu um basta naquela situação, exigindo daquele
sua paciência diante das chatices dos dois. cafajeste uma decisão: ou era ela ou a bebida! Acabou escolhendo a
Ao perder, primeiro o pai, e em seguida a mãe, passou a morar bebida, apesar de perder toda a mordomia, preferiu a separação. Só
sozinha. quando foi se desfazer do apartamento, ficou sabendo, pelas vizi-
Salva por sua bondade, carisma e simpatia, aliada à sua inte- nhas, quantas mulheres o cafajeste levou no apartamento em sua
ligência e, principalmente, pela cultura, conquista as pessoas com ausência. Chegou à conclusão de que ele já estava envolvido com
um sorriso encantador. Apesar do temperamento forte, faz amigos outras. Depois desse episódio, desiludida, nunca mais teve ninguém.
com muita facilidade. É espiritualista e adora todos os segmentos Augusta, além de amiga e minha comadre batizou a Rosinha,
das artes. Como ninguém é perfeito, desde sempre foi muito ner- minha filha caçula. É prima em terceiro grau da Marta. Podíamos
vosa, e fala demais! Por volta dos seus vinte e quatro anos, participou pensar em ser esse o motivo dela ser bem mais próxima dela. Mas
de um grupo de teatro amador, onde permaneceu até os seus trinta não! Augusta é assim mesmo... A própria samaritana! Sempre teve
anos, quando o grupo se dissolveu. Ela sentiu muito, todos a consi- um gênio forte e difícil, é uma batalhadora incansável. É a melhor
deravam uma grande atriz. Chegou fazer uns testes e, mesmo sendo pessoa que eu conheço, às vezes, chega até ser boazinha demais. E
aprovada, não foi aceita para o papel. as pessoas aproveitam do seu jeito de ser. Uma coisa interessante
Quando tentava consolar, ia logo dizendo: “Não é para mim!” da sua personalidade é que sempre provocou a inveja das pessoas,
Desde jovem, teve muitos namorados, mas nunca um amor apesar de ser a mais baixa e a menos bonita de nos três. Mesmo
verdadeiro, eles só se aproximavam dela por atração sexual. Marta era não tendo sido privilegiada pela natureza, possui um positivismo
uma mulher bela e Augusta tinha um corpo de causar inveja. Se unís- diante da vida. Logo depois da minha separação, voltamos a ser
semos a beleza de uma com o corpo da outra, teríamos, sem dúvida, inseparáveis e, nesse nosso reencontro, Augusta tinha passado por
uma mulher perfeita. Lembro-me do Roberto, foi o seu primeiro caso, uma aventura incomum na sua vida, não parava de rir ao relembrar.
conheceu na festa do casamento da Marta. Ilusão de adolescente, Foi num feriado, exatamente na Páscoa, noite de sábado, estava ela
depois de três meses já estavam separados, Em seguida, veio o José, e a sua amiga, Clarice, num desses bares da moda, quando três
quinze dias depois... Já não o queria mais. Com o Afonso, quase ficou rapazes entre trinta e trinta e cinco anos sentaram-se à mesa ao

lado. O local estava lotado, as mesas muito próximas, facilitou ter lhe achado bem mais desinteressante, achou seria mais fácil lhe
um deles, o mais bonitão, a comunicar-se com a Clarice. Augusta convencer, pensando ser ela uma mulher carente.
puxou conversa com os outros rapazes enquanto Clarice e o moço “Devo confessar na hora não resisti, quando ele me beijou. Ah!
começaram a se interessar mais um pelo outro, dando coragem ao Embriagada pelo o seu perfume e beleza, acabei cedendo! Quando
bonitão a ir, sem nenhuma cerimônia, para a mesa delas. Os ami- me dei conta já estava transando em cima do tapete da sala do seu
gos dele permaneceram no mesmo lugar. Interessado em Clarice, apartamento. Além de muito bonito, era gentil e tinha e aquele per-
o jovem logo começou a passar a mão na perna dela por baixo fume!... Até hoje não esqueço. Ao amanhecer me surpreendeu com
da mesa, que correspondia a todo o interesse daquele homem. A um café da manhã. Apesar de ser tão gentil e delicado, não gostei da
conversa seguia animada e, de repente, Clarice levanta-se. Toda transa. Nada significou... Um homem tão bonito e desinteressante
preocupada com o adiantado da hora, estava com medo de perder sexualmente. Depois não sei... Estava me sentindo mal na casa da
o último ônibus que a levaria para casa. família dele, toda vez que eu olhava o retrato da esposa, parecia estar
Augusta achou estranha a atitude da amiga, estava certa de reprovando a minha atitude. Era uma mulher bonita, formavam um
que havia um forte interesse pelo rapaz. Nada entenderam, ficando belo casal. Já imaginou se, por qualquer motivo, a mulher voltasse
sem ação diante daquela decisão. Augusta também não compreen- antes da hora? Ou algum amigo, parente deles, ou até um vizinho
deu a atitude do rapaz por não ter oferecido uma carona para jovem. nos visse? Que saia justa!
Momentos depois, os amigos deles também se despediram. O mais interessante foi a Clarice, que, no dia seguinte depois
Ao me contar esta história, Augusta jurava ter esquecido o do almoço ligou ansiosa, ávida por notícias do rapaz! Não me fiz de
nome do rapaz... “Não sei se é, Gilmar, Gustavo, Guilherme... Sei lá!” rogada, contei toda a minha aventura, depois de perguntar por que
Dizia ela: “Não me lembro, mas tinha certeza, começava com G. Foi ela foi embora sem ele. Percebendo a sua ansiedade em querer saber
tudo tão sem importância, que apagou da minha memória, porém sobre o rapaz, passei logo sobrenome dele, e o local do seu trabalho,
foi muito engraçado.” A única certeza que tinha é que, quando todos também lhe informei que ele era casado. Ela não quis nem saber!
se retiraram, os dois ficaram por uns instantes em silêncio, depois Na mesma hora, procurou o sobrenome do rapaz na lista telefônica,
começaram a rir. Surgiu um clima. sem dar a mínima importância para o estado civil dele, depois de
O interesse do rapaz acabou virando-se para Augusta, quando dois dias entrou em contato. Saíram na semana seguinte. Chegaram
está lhe revela a necessidade de esperar o dia amanhecer para pegar a sair umas três ou quatro vezes. O mais engraçado disso tudo: Em
a condução. Entusiasmado, o rapaz viu a possibilidade de passar todos os encontros deles, era por mim que ele perguntava, chegando
aquelas horas em boa companhia. a pedir o número do meu telefone. E por mais que ela disfarçasse, o
Eram mais ou menos uma hora e quarenta e cinco minutos moço não desistia. Clarice com raiva, cheia de ciúmes, achando que
daquela madrugada, quando lhe ofereceu uma carona, revelando não devia mais investir naquela aventura acabou terminando com
que também tinha que fazer hora. Ia pegar um avião às sete horas aqueles encontros. Sabendo o quanto eu não gostava de me envolver
para Belo Horizonte, onde ia se encontrar com a sua família, mulher com homens casados, e a certeza de não haver interesse nenhum da
e filha, que estavam passando os feriados da Páscoa na casa de minha parte, inventou que eu era comprometida.”
parentes. Aceitou o convite, pois naquela altura, cansada, queria Esquecer aquela noite, por parte da Augusta, foi fácil! Tudo não
era chegar logo em casa. O mais louco de tudo isso... Em vez de passou apenas de uma aventura. Já a Clarice ficou por alguns meses
levar Augusta para casa, acabou levando a para o apartamento dele... bem chateada, com a amiga. Quebrando este mal-estar por ocasião
Minha amiga chegou à conclusão que o rapaz a escolheu porque por do seu casamento. Sim, dois anos depois ela acabou se casando.

Tinha certeza, ser solteirona era o seu destino. Acabou conhecendo
um senhor bem mais velho. Mesmo sem muito entusiasmo, uniu a
sua vida a este homem. Augusta ria muito ao lembrar deste caso.
Quando recebeu o convite do casamento, resolveu esquecer as
mágoas, como era de se esperar. Insistiu em me levar a tiracolo. Foi JOVEM MARTA
assim que finalmente conheci a Clarice. Professora, trabalhou sem-
pre na mesma escola onde a minha amiga lecionava. Era uma pessoa
bem magra, de pele morena, mostrava não ter nenhum entusiasmo
pela vida. Eu diria: Não era uma mulher feia, uma beleza normal,
não havia rompantes de alegria em sua personalidade. Devia haver
mais de vinte anos de diferença entre ela e o noivo. Ela não sorriu em
nenhum momento durante a cerimônia. Segundo a Augusta, ela era
assim mesmo. Uma pessoa enigmática e sofrida. Devia estar casando
Q
por casar com o senhor. Desde que o conheceu, relembra Augusta, uando éramos jovens, Marta sempre trouxe um toque diferen-
sonhava em se casar com alguém bem rico, para não precisar mais ciado de personalidade, Às vezes, o seu ego era inflamado ou
lecionar. Esse não foi bem o caso, não vai abandonar o magistério sofria de uma apatia doente, desde sempre nos passava
tão cedo. a ser uma pessoa insegura. Até os onze anos de idade, fazia
xixi na cama, chupou chupeta até os seis anos. Fatos estes revelados
por sua mãe. Marta ficava muito magoada por sua progenitora expor
a sua vida íntima. Na verdade, agia assim na esperança de alguém
trazer uma luz sobre o caso. A revolta com a sua progenitora era bem
visível. Já o seu pai... Como sempre, ia a favor da filha. O interes-
sante, por volta dos seus quinze anos de idade, não podia ver criança
com chupeta. Dava-lhe ânsia. Tendo oportunidade, conversava com
a criança e insistia para ela largar a chupeta. Apesar da minha pouca
idade, percebia o quanto era vaidosa, e se gabava da sua formosura.
Vivia se esquivando de tanto assédio e galanteios. Sua beleza foi sem-
pre o seu maior trunfo! Cabelos pretos, a tez clara sempre corada, os
olhos de um azul profundo. A boca bem carnuda. Era difícil para
qualquer pessoa descrever aquela beleza.. Desde criança, não tinha
um objetivo concreto. Às vezes, costumava dizer que ia ser atriz de
cinema. Seu desejo ficou só no sonho. Chegou a receber um convite
para ser modelo, um agente lhe deixou um cartão, insistindo muito
que fosse procurá-lo. Dentro de si, escondia toda a complexidade
da sua misteriosa alma. Só quem convivia podia sentir a sua insegu-
rança. Mesmo assim, foi procurar o tal agente.

Um canalha, dizia ela: “Tentou me agarrar, chegou rasgar a achando ser culpada, por não ter corrido logo de pronto a pedir
minha blusa. Gritou tanto! Chamou a atenção das pessoas do estúdio.” ajuda. Aquelas lembranças custaram-me várias noites sem dormir.
Nunca mais Marta quis saber de ser famosa. Nesse ínterim, Rogério foi promovido ao seu pedido. A
Como já estava envolvida com Rogério, este, quando soube remoção se deu rapidamente, foi transferido para Castanhos, uma
do ocorrido, ficou muito furioso, quis ir tomar satisfação com o tal pequena cidade do interior.
homem. Não querendo ir sozinho, pediu a Marta em casamento, para
Foi um custo a família convencê-lo, tal atitude ia prejudicar espanto de todos. Só eu e a Augusta não ficamos espantadas com a
a imagem da sua noiva. Marta, diferente da Augusta, nunca teve atitude dele. Havia passado dois meses do falecimento da esposa,
namorados, foi muito assediada pelos garotos da escola, e da rua, quando pegamos ambos em uma atitude suspeita.
mais tarde por rapazes! Como os atraía em suas paixões infantis. Marta tentou despistar diante do nosso interrogatório:
Isso a envaidecia. Certo dia, um vizinho, o qual não tinha amizade — Foi só um beijo... – Dizia ela – Só queria saber como era o
pula o muro da sua casa e tenta agarrá-la, a força. Esse evento a per- gosto de um beijo, só isso! Ela acabou ficando bem arredia conosco.
turbou, criando um mal-estar, e muita revolta por parte da Marta. Rogério, ao conhecer a Marta, toda vez que a via a devorava com os
Atraído pela gritaria, o seu irmão mais velho, pegou o garoto pela olhos. Mesmo casado, nunca deixou de deseja-la.
orelha e o levou até a casa dele, onde acabou apanhando. O irmão de Marta foi contra, mas a mãe, diante da dificuldade
Foi um escândalo, meses depois, a família do rapaz mudou-se do da família, acabou cedendo. Os familiares tinham certeza: substituiu
bairro. Já a Marta passou a dizer que os meninos eram todos uns bobos. o pai pelo Rogério.
Mas era nítido para quem participava da sua intimidade o quanto pas- O pai e o Rogério, depois a Augusta, foram, sem dúvida, as
sou a lhe fazer mal receber tantos elogios. Foi vítima várias vezes desses pessoas as quais mais amou nesta vida.
tarados. O único homem a despertar o interesse dela foi o Rogério. Todas as suas perdas eram um divisor de águas em sua perso-
Trabalhou como bancário, veio morar na nossa rua, logo depois do seu nalidade. Só a chegada do homem que viria a ser o seu marido a fez
casamento, morou na casa da sogra, por uns meses, no começo da sua renascer de novo. Acabou se afastando de nós. Intrigada com a nossa
vida conjugal. Ia completar um ano de casado, quando veio morar com certeza. Sabíamos que a jovem não era mais virgem. Estava fasci-
a esposa em nosso bairro, lugar onde a esposa dele veio a falecer. nada por aquele moço, comum como qualquer outro. Logo depois,
A jovem esposa estava colocando uma cortina na janela, a nossa suspeita foi confirmada. Mesmo assim, como o seu irmão
quando desequilibrou, batendo o frontal da cabeça na quina da mais velho, achávamos loucura aquela decisão de se casar tão jovem,
mesinha de centro. Fui a única testemunha ao vê-la despencar. A largando os estudos, para ir viver bem longe de todos, com um rapaz
janela estava aberta, passava bem na hora em frente à casa quando viúvo, bem mais velho e que ninguém sabia bem quem era.
tudo aconteceu, não querendo me envolver, não gostava de encren- Mas os conselhos, de nada adiantaram, aos dezessete anos, já era
cas, demorei para tomar atitude. Quando dei por mim, estava cor- mulher do Rogério, onze anos mais velho. Estava toda envolvida por
rendo para chamar a mãe da Marta, era a vizinha mais próxima. aquele homem. Para a nossa surpresa, estávamos todos enganados, o
Quando chamaram a ambulância, a jovem senhora já estava morta. casamento durou bastante, com o seu marido teve três filhos. Depois
Foi a primeira vez que estive diante da morte, tive uma noite terrível. da perda da menina. Jeferson, é o primeiro filho de Marta, quando
O pesadelo reforçava o meu medo, a imagem daquela mulher bebê, sofreu bastante na mão de dela que, desde sempre, mostrou não
desequilibrando com os pés para o alto, caindo de cabeça, o grito ter jeito e nem paciência com criança. São raras, mas nem todas as
e aquele barulho não saíam da minha mente. Passei muito tempo mulheres merecem toda a homenagem por serem mães.

O irmão de Marta se casa, mas continua morando na casa da
mãe. Por não se dar bem com a nora, ela deixa a casa para o filho. Na
mesma ocasião, recebeu a notícia da terceira gravidez da sua única
filha, e foi morar em Castanhos.Com o nascimento do Jairo, dona
Matilde acabou ficando por lá. Principalmente por todo o desinte- O ENCONTRO
resse de Marta pela criança. Desde então, passamos muitos anos sem
termos notícia sobre a Marta.
Depois da separação deles, cheguei à conclusão de que o
Rogério era um papa-anjo, a primeira mulher tinha dezenove anos
quando ele se casou pela primeira vez, a Marta, dezessete. Com a
atual mulher, a diferença de idade era maior ainda. A moça estava
com vinte e sete.
. A jovem, quando conheceu o Rogério, viu naquele homem
S
a possibilidade de se dar bem na vida, dando o golpe da barriga. egunda-feira, São Paulo amanhece com o dia bem mais
Quando a menina nasceu, ele caiu de amores pela menina. quente que o dia anterior. Atípico para o mês de junho. Enfim,
Rogério sempre se mostrou compreensível e amoroso com a há anos o clima não cumpre mais com equilíbrio as quatro
jovem, mesmo tendo conhecimento de quanto ela era ambiciosa e estações. Vejo esse descompasso como um reflexo do próprio
interesseira, chegaram ter uma união relativamente harmoniosa. homem diante do contexto da vida moderna. Quando a ambição
Muitas vezes, o marido de Marta teve vontade de procurá-la. Em fala mais alto, ninguém pensa no futuro das crianças, poluindo
seguida, desistia da ideia. todo o planeta.
Mal sabia o quanto a sua antiga esposa desejava a sua volta. Augusta perde a hora, pula da cama, rapidamente se veste,
toma um copo de leite, e sai às pressas. Tinha que passar na escola,
combinou com a Diretora que passaria na escola na parte da manhã.
O tema da conversa ia discorrer sobre a permanência da Augusta
diante da sua classe até o fim do ano. Tinha acabado de se aposen-
tar. Pelo seu apego com seus alunos, pretendia acompanhá-los até o
fim do ano letivo. Foi professora dessa turma desde o primeiro ano,
tinha a maior satisfação em vê-los formados.
No carro, Augusta vai fazendo planos, depois da escola, teria
de ir ao meu encontro, mas antes aproveitaria para passar em uma
agência de turismo e fechar um pacote de viagem para o começo do
ano. Pretendia pagar em suaves prestações até o dia do embarque.
Finalmente ia realizar o seu sonho de viajar para vários lugares his-
tóricos, matéria passada aos alunos por tantos anos. Agora, ela ia
conhecer esses lugares de perto. O primeiro destino seria o Egito,
depois, a Grécia, e, por último, Portugal.

Essa decisão foi sem dúvida o motivo maior que a levou a ter resolveu terminar o noivado quando ele foi operado de um tumor
aquela conversa difícil com a Marta. Teria que aprender a se virar no pescoço.
sozinha, pretendia se ausentar por um bom tempo. Mesmo todos dizendo que ele estava curado, você não quis
Eu já estava quase desistindo de esperar a Augusta, quando a arriscar. Foi a primeira a desistir da Marta. Foi assim com o seu casa-
vi correndo em minha direção, toda eufórica dentro do shopping. mento, até hoje eu não entendi. Por que mesmo vocês terminaram?
— Desculpe-me, está esperando há muito tempo? Passei em uma Entendiam-se tanto... Eram parceiros. Formavam um lindo casal.
agência de viagem, fui pesquisar roteiros e a condição de pagamento. Comecei a perceber o seu comportamento quando éramos criança
— Encontrou a viagem certa por um bom preço? ainda. Você não entregou o bilhete da escola para os seus pais com-
— Encontrei, até já paguei a primeira prestação. – Respondia parecerem por medo de eles descobrirem que, pela primeira vez,
quase sem conseguir respirar. – Finalmente, no começo do ano, estava indo mal na escola.
começo a viajar! Até que enfim vou realizar o meu sonho! O trânsito, — Nossa! Tinha até me esquecido disso!
como sempre, está insuportável, e esse calor fora de hora... Depois desse incidente, eu sempre fui boa aluna. Mas Augusta
— Oi, Augusta! Bom dia! Calma! vivia me cobrando certas situações. Como quando a mulher do
— Preciso tomar uma água, onde está o garçom? Oi, Lidiane. Rogério morreu.
Demos um longo abraço. Augusta chama o garçom. — Lembra quando foi dar o seu depoimento, apesar de todos
— Oi! Está mais calma? Acalmou?, rimos. terem dito que você tinha sido a única testemunha ocular, você
— Você está com uma aparência ótima. E aí, menina, me fala negou, dizendo à polícia que não tinha visto nada, que só tinha
do tal... ouvido um grito. Nós sabemos que já estava interessada no Rogério,
— Jaime! Veja você mesma, se ele não é um charme, tirei essa e olhou bem na hora em que ela começou a cair. Quando do faleci-
foto justamente para você o conhecer. mento do seu pai, recusou ir ao enterro, queria ter lembranças de
Tudo bem, é uma foto, tirei quando ele me levou até o quando estava vivo. E assim age com todos os conhecidos e parentes
aeroporto. que venham a falecer. Se há uma pessoa neste mundo que a conhece
— Interessante! Parece um senhor muito elegante. Deve ter bem, este alguém sou eu.
sido um homem bonito quando moço! Você sempre teve bom gosto — Ok! Não vamos brigar por isso! Estava com saudades.
para homens? O caso é sério? Depois, você, mais do que ninguém, sabe: não tenho medo de nada!
— Não sei, vamos deixar o tempo resolver. Sou apenas uma pessoa prática. Fujo das pessoas e das situações que
— Ah! O tempo é quem tem que resolver? Olhando assim... não acrescentam nada e não me fazem feliz. E, nesse caso do Jaime,
Mais profundamente para esta foto... Não sei... Não gosto dele! acabei de conhecê-lo. No momento, não pretendo me envolver seria-
Prefiro o Ricardo, mas, como a escolha não está em minhas mãos... mente. Saiba que hoje fui acordada com um telefonema romântico e
— Exatamente! Fique sabendo que Jaime é uma pessoa muito uma sensação bem gostosa de ainda podermos despertar o interesse
especial! – Foi por isso que veio embora correndo. Fugiu com medo de alguém, principalmente ser envolvida por um sentimento novo.
de se envolver com essa está pessoa tão especial! Vamos dar tempo ao tempo.
— Que mania! Você teima em dizer que eu vivo fugindo das Quem nos garante que não foi só um entusiasmo passageiro
situações por medo. de um espírito livre em férias? Trata-se de um empresário, vive
— Liliane, encare a realidade, você sempre foge das situa- envolvido com o mundo dos negócios. Depois, ficou viúvo há pouco
ções difíceis, as que fogem do seu controle. Lembra do seu noivo, tempo, ainda fala muito na falecida...

Eu realmente preciso resolver a venda do meu apartamento. podia ir comigo passar o fim de semana na praia, você sabe que a
Quando me ligou, estava todo preocupado querendo saber se estava probabilidade de a Marta aceitar o meu convite é zero.
tudo bem, se eu fiz uma boa viagem. Estou entusiasmada, confesso- — Cuidado, qualquer hora dessa ela acaba aceitando, – riem
lhe, mas é só isso! Prometeu que, no começo do mês de agosto, vem – aí, já viu... Fim da sua tranquilidade. Quem sabe se der... Não pro-
para São Paulo a trabalho, nessa ocasião, vamos nos ver. Ah, deixe meto. Se conseguir resolver as minhas pendências, vou até lá.
as coisas acontecerem... Se tiver que ser... Revivi antigas emoções Augusta acaba comentando sobre a gravidade da saúde do
em sua companhia. Percebi tratar-se de um tipo de machão onde Rogério e sobre a atitude da Marta diante dessa revelação, como
nada pode escapar. Depois, a distância pode esfriar esse entusiasmo também sobre a atitude da sua nova mulher ao ligar para o Jeferson
inicial. Quando vier em agosto, vamos ver o que acontece. e para o Jair pedindo que viessem buscar o pai, pois ela não tinha
— Ah! Mudando de assunto, você ligou para Marta ontem? condição nenhuma de tratar dele. Diante da recusa de ambos, amea-
— Liguei! Falei uma meia dúzia de palavras e logo desliguei. çou colocá-lo em uma clínica.
Não me adianta olhar desse jeito. Desliguei logo, antes de ela — Que folgada!
começar a despejar as suas neuroses. Você sabe que eu não tenho — A última notícia que eu tive foi que, diante da recusa deles,
paciência. A dona Marta não comentou nada sobre eu ter ligado? ela mesma está tratando dele.
Nem deu a entender se gostou de falar comigo? Estava bem normal, Almoçamos e conversamos por mais de meia hora. Ao nos
só você acha problemas nas atitudes dela. despedirmos, levou a minha promessa: iria ver o apartamento no
— Não teve tempo de comentar nada! Como lhe disse, fui lá seu prédio e estar com ela no fim de semana. Quando eu soube, nem
para lhe dizer umas verdades. acreditei! Marta finalmente foi com a Augusta para Ubatuba. Desisti
— Não acredito! Finalmente! Você teve coragem... Aleluia! Aleluia! da ideia, não queria atrapalhar.
—Despejei tudo o que há tempo precisava dizer, com o cora-
ção apertado, mas disse! Não esperei nem para ver qual foi a reação,
se o estrago foi grande, fui logo embora!
Você está sabendo? Nasceu a filha da Clarice! Como podia
saber, acabou de chegar de viagem?!
— Já nasceu, confirmou, é uma menina?
— Sim!
— Correu tudo bem?
— Sim! Já está com uma semana de vida. Como não deu para
ir ao hospital, fui visitá-las há dois dias. É uma belezinha a criança,
nasceu bem forte e, segundo a Clarice, é um amorzinho, calma, dei-
xa-a dormir à noite.
— Pensei que você já tinha ido para Ubatuba.
— Não tive tempo! Estava tentando junto a diretora ficar com
a minha turma até eles se formarem ainda bem que deu certo. Tenho
um prazer enorme de vê-los formados. Vou rever as matérias do
primeiro semestre para que todos passem. Lidiane, você bem que

pensar no quanto foi feliz com aquele homem! A tortura de Marta
era real. Estava começando a aceitar a separação quando soube o
quanto era grave a doença do Rogério. Naquele momento, volta a
NA PRAIA se revoltar. A raiva de não poder estar cuidando do seu ex-marido.

Num estado mental perturbador, voltam as lembranças, estas
já não lhe permitem aproveitar a agradável manhã.
Continua a sua jornada sem rumo. Não percebe mais ninguém,
nem se dá conta do quanto tinha se afastado de casa. Cansada, fraca,
de estômago vazio, acaba desmaiando.
Quando desperta, vê um belo rosto preocupado fitando-a.
A única e rápida sensação percebida é de estar nos braços de um
desconhecido...
— Está sentindo-se melhor? Atordoada, percebe alguém se
D
epois de quatro dias de chuva e muito frio, finalmente o sol aproximando e entregando para o homem uma garrafa de água.
banha toda a varanda da casa. Marta, arrependida e entediada, Ouve, ao longe, a voz de uma mulher. O rapaz tentou lhe dar uns
já tinha feito as malas na véspera, comunicando que iria voltar goles de água... Tentativa frustrada ao vê-la novamente desmaiar.
para São Paulo. Tinha sido inútil a sua vinda. Quando novamente desperta, percebe estar num pronto-socorro
O tempo não melhorava, as duas quase não conversavam. tomando soro. O mesmo homem com cara de anjo está ao seu lado,
Começava a sentir ser um peso para Augusta. Estava acostumada sorri com ternura...
a uma vida sem grandes emoções, mas a amiga não! Era nítida a O primeiro pensamento de Marta: Tanta beleza! Tanta bon-
decepção de Augusta. Ela vai para praia na segunda semana. dade! Só posso ter morrido... E estou na tal enfermaria do céu? Seria
Ao chegar à varanda naquela manhã, sentindo o calor do essa criatura o meu anjo da guarda? Só pode ser...
sol em sua pele, Marta, depois de todos aqueles anos reclusa, tem O seu devaneio é logo quebrado por uma voz aveludada...
uma enorme sensação de liberdade. O dia estava agradável, firme, — A senhora está se sentindo melhor?
anunciando o fim daqueles dias nublados. A brisa do mar parecia Quem seria tão fascinante pessoa? – Pensa.
chamá-la; sem muita noção do que estava fazendo, esquecendo- O rapaz traz Marta para a realidade. Ela, por sua vez, fica
se da viagem e da passagem comprada, volta para o quarto, troca muito triste ao saber que não está morta. Ao apresentar-se, diz-lhe se
de roupa, atravessa a avenida e toda a extensão da areia, respira chamar Rui. Passa a lhe narrar todo o ocorrido. Marta apresenta-se
bem forte e começa a andar à beira-mar. Caminha renascendo para o estranho, pedindo desculpa por ter lhe causado todo aquele
naquele momento. transtorno.
Perde a noção do quanto tinha andado, o seu humor muda — Não se preocupe, foi um prazer ajudá-la. O médico
de repente, o corpo vai ficando pesado, envolvida por pensamen- pediu que eu passasse essa pomada para aliviar as suas queima-
tos sombrios a respeito da saúde do Rogério. Pensa no seu grande duras. Senhora Marta, acho importante passar agora... Quer que
amor. Podia vir a falecer a qualquer momento. No trajeto restante, eu chame o enfermeiro ou, se permite, posso eu mesmo passar?
sofria em pensar não poder estar com ele naquele momento difícil. Marta nem responde.
A angústia se reverte em lágrimas que transbordam em sua face. Em Ao passar a pomada, Rui provoca um bem-estar em Marta.

— Não sei se reparou, mas está de maiô. certa, era isso! Apesar de saber estar tudo bem com a Marta, sentiu
Ao perceber o constrangimento da desconhecida... muita raiva.
— Não se preocupe, também estou.. Finalmente eles chegam. Durante o percurso, Rui falava sem
— O senhor está com uma camiseta. parar. Marta, atordoada com a medicação, escutava a sua voz bem
— Já disse para não se preocupar! Estamos em uma cidade longe. Desce do carro, nem se despede, passa pela amiga sem nada
praiana, aqui há muitas pessoas na mesma situação. dizer, vai direto para o quarto. Augusta, impactada, sentindo o cora-
Pede para a enfermeira um lençol e pergunta se ela podia pas- ção acelerar diante daquele homem, não se preocupa com a atitude
sar o restante do creme. Ela traz o lençol, aproveita para convocar ele da Marta. Rui quebra o silêncio.
mesmo a continuar passando a pomada em sua esposa. — Além de soro, foi medicada com essa pomada e calmante...
— Férias! O senhor sabe como é... Dobra a população! Não Você deve ser a Augusta. Muito prazer! Sou o Rui! – Diante do silên-
damos conta! Ambos ficam encabulados. Rui, constrangido, resolve cio, Hei! Hei!
ele mesmo proteger aquela bela mulher. Só então ela larga da mão dele.
— Com licença. — Ah! Desculpe! Essa atitude da Marta me deixou muito
— Marta, cada vez mais encantada com aquele homem, sen- desorientada. Foi um susto e tanto! Vamos entrar.
tindo a sua mão sobre a sua pele, sente um aconchego, uma emo- — Obrigado! Preciso ir! Estou há horas longe de casa. Preciso
ção, que há muito não sentia. Por sua vez, Rui, meio sem graça, fica tomar um banho, comer alguma coisa...
maravilhado com a beleza daquela mulher. — Diga-me pelo menos como foi... Essa minha amiga ultima-
Marta ao olhar o relógio da parede, percebe estar há horas mente só apronta!
longe de casa. Augusta vem à sua mente, fica apavorada em pensar — Como lhe disse ao telefone, sua amiga desmaiou na praia. E,
no quanto a amiga devia estar preocupada. pela distância...., Deve ter andado horas, até vir a desmaiar.
Esquecendo a massagem, passa o número do telefone para o Quando vi que não melhorava, levei-a ao pronto-socorro.
seu salvador, implorando que ele ligasse, tinha o dever de tranquili- — Marta! Sempre nos dando trabalho!
zar a amiga. Não se preocupe, não foi trabalho nenhum! Agora ela está
Augusta, ao ser informada, estava determinada a ir ao encon- bem! Vai dormir por umas horas, quando acordar, lhe dê alguma
tro da sua hóspede, sendo logo desestimulada pelo interlocutor, que coisa para comer... Uma sopa leve. Ao passar pela farmácia, comprei
lhe dizia não ser necessário. os remédios. Aqui está a receita!
Rui pretendia ficar mais um tempo sozinho em companhia da — Muito obrigada! Mais uma vez desculpe o transtorno.
desconhecida. Quanto lhe devo?
Ao passear sua mão pelo corpo de Marta, uma forte sensação — Nada! Não se preocupe com isso! Eu gostaria de passar aqui
de bem-estar também dele se apossou, ficou admirado com a maciez mais tarde, se não se importa, para saber se está tudo bem com ela.
daquela pele, acabou sentindo um forte desejo por ela. Os sentimen- — Marta, na certa, vai gostar de revê-lo, assim vai poder lhe
tos confusos lhe davam um grande prazer diante daquela presença. agradecer. Para mim também vai ser um prazer. Muito obrigada
por tudo!
Augusta não entendia por que a voz daquele homem a tinha Augusta pensava o quanto ela ia gostar se aquele homem real-
perturbado, chegando à conclusão: devia ser por ter passado tanta mente voltasse
apreensão. Ao receber a notícia, deu uma relaxada de alívio. Na — Até mais tarde!

Sem responder, fica olhando aquele moço pegar o carro e se À noite, ouve a buzina de um carro. Como prometera, lá estava
afastar da sua vista. ele com aquele sorriso encantador. Nas mãos, um buquê de flores.
Encantada, pensa alto: Gente, o que é isso, de onde surgiu essa Há muito Augusta não sentia uma emoção tão forte.
maravilha?! Meu Deus! Estou ainda sem fôlego. Com um nó na garganta, tremia toda...
Por que esse homem mexeu tanto comigo? Há tempo não sinto — Boa noite!
nada parecido. Cansada, dirige-se ao seu quarto sem se importar em — Boa noite! É um homem de palavra
ver se estava tudo bem com a Marta. Tentou descansar um pouco – Aquele comprimento soava tão familiar, como se há muito
depois daquelas horas de preocupação, merecia relaxar um pouco. tempo eles fossem amigos. Augusta tentava agir naturalmente,
Quem disse que ela conseguiu? diante daquela situação.
A imagem daquele estranho povoava a sua mente. Era uma Quem disse que ela conseguiu?
mistura de um bem-estar, de ansiedade, tensão por tudo o que Marta Rui estava mais bonito e cheiroso, usava uma bermuda branca
aprontou. Augusta, desde o começo, estava arrependida de tê-la con- e uma camisa azul-marinho, de muito bom gosto.
vidado. E, quando pensou estar livre da amiga, ela apronta mais uma. — E a nossa paciente como está?
Marta ultimamente, cada vez mais, tinha o dom de deixá-la — Continua na mesma. Acordou por volta das 17 horas, não
irritada... Inquieta, agitada. A imagem do Rui vem à sua mente, no falou nada, tomou uma canja, dei-lhe o remédio.
mesmo instante condena-se pela sua carência ilusória. Acaba levan- — O calmante.
tando-se, repentinamente, vai dar uma espiada na amiga, que dorme — Sim! Foi melhor assim! A nossa paciente voltou a dormir.
muito tranquila. Augusta fica contente. Todo esse transtorno serviu Sabe, há muitos anos a Marta não dorme direito. Sinto muito por
para alguma coisa: depois de tantos anos, finalmente Marta conse- você ter perdido o seu tempo em vir até aqui. Depois de tanto tempo
guiu dormir em paz. sem fazer exercício, deve ter exagerado... O esforço foi muito grande,
O seu semblante traduzia toda a beleza de uma mulher madura ultimamente nem calmante vinha mais lhe fazendo efeito.
e angelical. Ainda mais por ela ter ficado muito bem com aquele — É tão grave assim?
novo corte de cabelo. Era interessante constatar que, apesar de todo — Sim!
o seu sofrimento, conservava tanta beleza. Na verdade, há muito — Você tem um vaso?
devia estar em paz; eu, a idiota, estava me acabando com tanta preo- — Por favor, coloque essas flores em um vaso, são para a Marta!
cupação por essa criatura. Passa a pomada onde estava mais quei- — Já jantou?
mado, com cuidado para não a acordar, e vai preparar uma sopa. A — Não!
imagem daquele homem volta à sua mente. Chama bem alto: Rui! Augusta mente, tinha tomado também um pouco de canja.
Rui! Distraída, quase queima a sopa. A tarde foi longa, questionava — Ia justamente comer alguma coisa quando você tocou a
a todo instante se o rapaz cumpriria a sua promessa, afinal ele não campainha.
tinha nenhuma obrigação com duas desconhecidas. A sua boa ação — Eu também ainda não jantei. Como não podemos deixar a
do dia já havia sido feita! nossa
Depois, devia esquecê-lo – aquele homem não era para o seu paciente sozinha... Não seria justo convidá-la para irmos a um
bico. Dividida entre o sonho, a realidade e a incerteza se o veria restaurante...
novamente. Foram horas de uma tortura angustiante. Entra debaixo Gostaria de ficar mais um pouco, se você não se importar. Que
do chuveiro na tentativa de relaxar, mas não consegue. tal... Vamos pedir uma pizza?

— Ótima ideia! Só que eu acho... Tão cedo a Marta não vai Então posso encomendar, qual é a da sua preferência?
acordar! — Marguerite!
— Tudo bem! Você desistiu da pizza, ou é a minha companhia Rui pede duas pizzas médias, uma de Marguerite e outra à
que a incomoda? moda da casa. Ela nem presta atenção no pedido, só reparou quando
Os olhares cruzam-se deixando Augusta encabulada chegou, a dele vinha com pedaços de lombo. Sentindo-se como se
— Não é nada disso! Desculpe! Vai ser um prazer ter a sua estivesse flutuando, age como um robô ao ir colocar as flores no
companhia para o jantar, podemos nos conhecer melhor. Depois, eu vaso. Pega as taças e o vinho. Ao colocá-las na mesinha da varanda,
não faria tal desfeita a uma pessoa tão gentil e tão preocupada com percebe estar tremendo; disfarça, volta para a sala e coloca vários
a Marta. CDs no aparelho de som.
E, como eu já lhe disse, Marta, na certa, só vai acordar amanhã. Ambos vão para a frente da casa, aprovando a sugestão do
Na verdade, eu esperava encontrá-la acordada, mas já que não rapaz de esperarem a pizza na varanda. A noite estava muito agradá-
foi possível vel, a brisa vinda do mar refrescava um pouco o seu entusiasmo. Ali
— Há muito tempo quase não dorme! seria, sem dúvida nenhuma, o melhor lugar da casa para os dois fica-
Vamos fazer companhia um ao outro... Na verdade, não rem naquele momento. Augusta permanece por uns minutos calada,
gosto de comer sozinho, a essa altura a minha família já deve estar ouvindo o acelerar do seu coração. A sua alma sentia um bem-estar
jantando. indescritível. Era inacreditável como aquele estranho mexia com
Aquela proposta era tudo o que Augusta queria ouvir naquele ela... Havia um misto de prazer, timidez e uma curiosidade em saber
momento. Quem a conhecia perceberia o quanto ela se transformava um pouco mais sobre ele. Rui abre o vinho, coloca-o nas duas taças
diante daquele homem. Era inegável o quanto Rui exercia um forte e, em seguida, quebra o gelo, pergunta sobre Marta, despertando
poder sobre aquela mulher. Tentava disfarçar, mas o rapaz percebeu Augusta dos seus sonhos.
uma certa ansiedade no comportamento dela. Ah! Como ela queria permanecer por mais tempo fora do ar.
Realmente, a minha amiga estava em êxtase, vivendo intensa- — Marta me pareceu não estar nada bem. Se não for abuso da
mente aquele conto de fadas. Agia automaticamente, como se mais minha parte, gostaria de saber o que está acontecendo.
nada existisse à sua volta O mundo era feito só para os dois. A noite Augusta, contrariada, preferia conversar sobre outros assun-
estava agradabilíssima. Não parecia nem um pouco com aquela tos, aproveitar aquele momento para saber um pouco mais sobre
mulher convicta de não querer saber mais de homens em sua vida. aquele ser tão perturbador e fascinante. Respira fundo e nada res-
Só eu sabia como era falso esse conceito. A sua carência transbor- ponde. Diante da insistência, ela, contrariada, começa a falar:
dava em sua atitude diária.
— Tenho aqui um vinho ótimo! São algumas garrafas justa- — De fato, ela não está nada bem! Aliás, há anos! Desde o
mente para essas ocasiões. Acho delicioso toda vez que como pizza. fim do casamento. Há pouco, descobri o quanto ela me usou como
Gosto de degustá-la com vinho ou uma cervejinha preta. Não sei desculpa do seu sofrimento. Na verdade, sei o quanto ainda ama o
por que, não sou dada a tomar bebidas alcoólicas. Talvez seja melhor ex-marido. Até me fez esquecer o quanto acostumou, desde que se
para a digestão... Gosto quando a pedida é pizza, principalmente em casou, a viver longe da sociedade.
companhia de amigos. Bebo muito pouco, principalmente quando Novamente, por uns momentos ficam em silêncio.
estou trabalhando. Sua vontade, naquele momento era saber o porquê de tanto
— Eu já tomo uma taça diariamente, mas só uma! interesse por Marta. (Insistia muito em saber sobre, a ponto de

Augusta sentir muita raiva da amiga. Sem ter outra saída acaba nar- Imagine a minha aflição! Pensei em ir à polícia, comunicar o desa-
rando como foi a separação. parecimento. Depois resolvi esperar mais um pouco, Temos que
Por uns momentos, ele permanece em silêncio, pensando em esperar 24 horas para que a pessoa seja considerada desaparecida. A
tudo o que ouviu.) Interrompidos pelo barulho da moto, Rui vai minha apreensão foi abrandada no alívio da sua ligação. Realmente
receber a pizza. Augusta percebe que, debaixo da camisa Apolo, o dia de hoje foi bem tenso. Aliás, nos últimos anos, tem sido bem
existe um homem com um peito de atleta. Ele paga ao rapaz e sugere difícil aguentar a Marta. Há anos a convido para passar uns dias na
que eles degustem a pizza sem garfo e faca. Só com guardanapo de praia, mas nunca aceitou. Por um milagre, resolveu vir desta vez!
papel! Olhando-a de forma bem marota, pergunta-lhe se concorda. Confesso estar arrependida de tê-la convidado, ela e a chuva dos
Aprovando a ideia, encantada com a praticidade e simplici- últimos dias estragaram a minha expectativa de passar as férias bem
dade do seu novo amigo, corre para a sala, coloca mais CDs. Quando tranquila. Estou precisando repor as minhas energias e voltar mais
estão saboreando a pizza, tenta mudar de assunto, diante da insistên- equilibrada para dar aulas.
cia dele em querer saber o resto da história da Marta. — É professora?
Bem contrariada e sem ânimo, faz de conta não entender o — Sim!
insistente pedido. Ao tentar mais uma vez mudar de assunto, per- — Tenho muito respeito por essa profissão! Passar conheci-
cebe... O rapaz já estava na segunda garrafa de vinho. Augusta não mento é uma profissão nobre. Parabéns!
lida bem com homens bêbados. Estava ainda no fim da primeira — Obrigada! Apesar de hoje em dia não haver mais respeito,
taça, o exagero do rapaz era, sem dúvida, uma situação reprovável, eu nunca tive problema com eles. Gosto muito dos meus alunos,
que ela não podia aceitar. Volta a falar sobre Marta, na esperança de já estou aposentada. Continuo a dar aula só para essa turma que
que, ao se distrair com a sua narrativa, ele parasse de beber. está comigo desde o primeiro ano, sei que esse bem-querer é recí-
— Marta anda tão desorientada! Ontem à noite tinha desis- proco. Conheço todos, quem são seus pais, os seus problemas, gosto
tido de ficar, chegou a me anunciar que ia voltar para São Paulo, quando alguns deles vêm desabafar comigo os seus desalentos.
fez a mala, fomos comprar a passagem, pediu que um táxi viesse — Ao conhecer a sua amiga, tive a intuição de ser uma pessoa
buscá-la às oito horas. Chegamos até a nos despedir... Hoje, acor- fácil de ser amada.
dei às 9 horas, tomei o café da manhã bem sossegada... Quando — Não é bem assim!
entrei no quarto dela para abrir a janela, tirar a roupa de cama... Sem jeito, Rui volta a falar da Marta.
Qual não foi a minha surpresa ao constatar que a mala dela ainda — Ainda bem que essa louca lembrou-se de me avisar. E, como
estava ali. No primeiro momento, pensei: já deve ter ido embora dizem, não devemos desejar ou ter muita expectativa sobre as situa-
e esquecido a mala, mas quando vi a sua bolsa sobre a cama, com ções, para não nos decepcionarmos. Tudo é muito novo. Marta, às
todos os documentos... Desesperada, corri para a praia a sua pro- vezes, me cansa. Que dia! Gostei de conhecê-lo? Fala alguma coisa
cura, e nada... Perguntei para os salva-vidas se uma mulher não sobre você? Chega de Marta por hoje.
havia sido encontrada morta no mar. Rui percebe que a sua nova amiga está falando frases sem sentido.
— Meu Deus! Por que você achou que ela podia ter se matado? — Calma! Agora tudo já passou. Vamos aproveitar a noite!
— Porque ela já tentou várias vezes! Quem tenta e não consegue Sussurra em seu ouvido: “Relaxa!” Augusta sente um leve
é porque na verdade não quer morrer. Só pretende chamar atenção! arrepio; sem tempo para reagir, vê-se levada pelo braço, e começam
Como fez hoje. Depois da praia, fui até a padaria, andei a dançar de rosto colado. O vinho, a aproximação dos seus corpos, a
pelos quarteirões aqui em volta e, como você sabe, não a encontrei. noite, as estrelas são as únicas testemunhas daquela cena. Admirando

olha para o short verde e para as belas pernas de Augusta, frustrado Augusta. Aquelas mulheres tinham mexido com ele, principalmente
em seu ensejo de tornar rever Marta. De repente, em uma atitude a Marta. Passou a vida rodeado de mulheres, nenhuma o fez desejar
impulsiva rouba-lhe um beijo. Percebendo ser correspondido em tanto, a ponto de sentir essa enorme vontade de revê-la. Acaba jus-
seus desejos, os dois novamente se beijam loucamente até perder o tificando para si que a decepção de não vê-la fez com que bebesse
fôlego. Uma pausa. Ainda abraçados, olham-se com ternura. Num além da conta. Pensava nas coisas que Augusta lhe tinha dito sobre a
momento de lucidez, pedem desculpas, e, arrependido, ele a afasta amiga e tentava justificar o comportamento daquela mulher meiga,
abruptamente. doce e frágil, repetindo para si mesmo...
Dirige-se para o carro, cambaleando; vai pedindo desculpas: — Na certa, ela só precisa de alguém que lhe dê compreensão
“Já é tarde, tenho que ir. Boa noite!” e carinho.
Augusta mais uma vez naquele dia, o vê pegar o carro e sumir O beijo intempestivo também lhe povoava a mente. Não podia
da sua vista. negar – Augusta era uma mulher atraente, inteligente e tinha um
— Meu Deus! O que foi que aconteceu? corpo... E ainda por cima beijava bem... Mas era Marta quem realmente
Augusta questiona se não tinha sido leviana. O que estaria ele desejava. A visão embaralhada daquelas duas mulheres o atormen-
pensando a seu respeito para ir embora assim tão repentinamente? tava. E, por mais que tentasse esquecer, não conseguia entender por que
Estava em êxtase. Dança sozinha mais um pouco, inebriada com os beijara Augusta de uma forma tão louca. Não havia justificativa sobre a
acontecimentos. Sente-se como se estivesse levitando, já não importa sua conduta de beijar a moça pensando na outra. Depois de tanto ques-
a impressão que causou ao rapaz, afinal, ele estava bêbado. A única tionar a sua atitude, finalmente consegue dormir um pouco.
coisa importante foram os belos segundos vividos com tamanha Rui sempre foi um homem sedutor, gentil, culto e educado,
intensidade. Foi, sem dúvida, uma excelente aventura, quebrando mas, como não existe ninguém perfeito, perde a paciência fácil
a rotina daqueles dias enfadonhos. Depois, foram momentos para quando é contrariado. Nunca pensou em envolver-se com alguém
recordar o resto da vida. Augusta sorri. Recolhe todo o lixo, em seriamente. Fugiu a vida inteira de formar uma família e de todas as
seguida, vai para seus aposentos. responsabilidades advindas dessa situação. Rui, na verdade, naquela
Quem disse que Augusta conseguiu dormir aquela noite! Rui ocasião, prezava demais a sua liberdade, afastando qualquer possibi-
não saía da sua mente, principalmente aquele louco beijo. Sentia lidade de manter relacionamentos com as mulheres, principalmente
na sua boca todo o calor de seus lábios espremendo os dele. Nunca com as castradoras. Depois, havia a Amanda, que nos levou a pensar,
tinha sentido alguém corresponder tão loucamente os seus desejos. por um período curto de tempo, ser a mulher de sua vida, com essa,
E, num misto de encantamento e apreensão, a ansiedade novamente teria uma ligação para a vida toda, era a mãe de seu filho.
a invade – sem ter certeza de nada, se o veria de novo ou não. Nesse Mas estávamos enganadas. A beleza e a fragilidade de Marta
devaneio, misto de alegria e angústia, a noite parecia não acabar. mexem, pela primeira vez, com a sua forte decisão de permane-
Inquieta, vê o dia amanhecer, o lençol da cama todo em desalinho. cer solteiro.
Por outro lado, Rui também dormiu muito mal, não conseguia Mal sabia como seria difícil conquistá-la.
livrar-se dos Talvez tenha sido por ter sido desprezado por uma mulher
Acontecimentos; sentia-se como tivesse traído as suas convic- pela primeira vez. Nós, seres humanos, gostamos do que é difícil,
ções. O desejo e a frustração de poder rever aquela bela mulher. Foi complicado.
sempre um homem respeitador, não era dado a beber. As emoções Naquele momento, fascinado, tudo o que aquele homem que-
daquele dia agitado não saíam dos seus pensamentos... Marta e ria era estar com a Marta. No dia seguinte, Rui sente uma enorme

necessidade de liberdade, de voar. Acorda cedo, e, apesar da noite
atribulada, vai até a praia.
Perguntava a si mesmo se devia pedir desculpa para Augusta,
ou comportar-se como se nada tivesse acontecido. Realmente estava
em dúvida se esse seria o caminho certo. Depois de tanto questionar, O CONVITE
achou melhor deixar o caso seguir naturalmente. Augusta já era uma
mulher feita, mostrou ser uma pessoa inteligente, moderna, depois,
ele não a forçou a nada, tinha certeza de que havia sido uma aven-
tura muito agradável para ambos.
A
ugusta levanta meio indisposta a sua vontade era permanecer na
cama depois daquela longa noite sem pegar no sono. Vai dar uma
espiada na Marta, que dormia profundamente. Decide ir à praia.
Precisava dar um mergulho no mar e relaxar, esquecer aquele
homem, o beijo e tudo mais. Quando volta, encontra a amiga acordada.
— Bom dia!
— Bom dia! Que susto você me deu ontem! Dona Marta, o que
você tem nessa sua cabeça? Tinha decidido ir embora, de repente resolve
ir andar pela beira-mar, andar como uma maluca... Você não pensa? Há
cinco anos com o corpo parado, claro que está tudo atrofiando. Você
precisa ir voltando aos poucos para uma vida mais agitada. Ainda sai de
estômago vazio... O que deu em você, criatura, para caminhar a esmo, e
dar trabalho para os outros? E o taxista, será que veio pegá-la?
— Desculpe! Não sei! Não me pergunte o que aconteceu... À
noite, tive um sonho em que eu andava pela praia. Como todo sonho
é bem maluco, de repente me via em pé em cima das ondas, depois
eu corria pela areia e, apesar de acordar cansada, a sensação era boa...
Sentia-me livre; depois de tanto tempo, tive uma vontade enorme de
molhar os meus pés na água do mar, correr e sentir o sol queimando
a minha pele. Depois de tanta chuva... Você, mais do que ninguém,
sabe o quanto tempo vivi trancada, fugindo de mim mesma.

Depois da chuva! Surge este dia iluminado. Acordei decidida a lhe proporcionou grandes emoções. Desmaiou nos braços de um belo
ir embora, como o combinado. Ao olhar pela janela e perceber que o homem. Quantas vezes eu lhe disse que haveria um prazo curto para
tempo tinha melhorado, não resisti. Foi um impulso! Nem pensei... todo esse processo? Passando esse prazo, é doença mesmo!
O dia, o vento, o sol pareciam me chamar, fui andar à beira- Quem diria que eu veria você entusiasmada com a beleza de
-mar. Conforme as ondas batiam em minhas pernas, as lembranças um representante masculino?
do Rogério voltaram: Houve uma vez, você nem sabe disso, meus — Você tem razão! Mas por que para mim é tão difícil?
filhos eram ainda pequenas, quando fomos passar as férias do — Esqueça, Marta, cada pessoa tem um tempo certo para
Rogério na Praia Grande; ele estava muito estressado. Foi um amigo digerir os acontecimentos da sua vida. Não nego que você demorou
dele lá do banco quem alugou o apartamento para nós por um preço demais. Já que deu o primeiro passo, os próximos serão bem mais
camarada. Eu era ainda jovem, a primeira vez em que estive diante fáceis. Pense só no lado bom do acontecido. Você conheceu uma
do mar. Foram dez dias maravilhosos, estávamos tão felizes! Depois pessoa encantadora!
nunca mais viajamos. Comecei a relembrar esse tempo, depois a — Isso ele é mesmo! Quando eu despertei do desmaio, pensei
separação, agora Rogério doente, os pensamentos foram me envol- que tinha morrido e estava sendo amparada por um anjo... O Rui
vendo, nem percebi o quanto me afastei. Comecei a caminhar com comportou-se como um verdadeiro cavalheiro!
o peito apertado, as lágrimas voltaram – e também minha revolta. O Augusta estranha... O homem da noite passada nada tinha de
que eu posso fazer se não me conformo em não poder estar com ele anjo. – Você tem razão ele é um homem muito bonito! E muito aten-
nesse momento tão difícil da sua vida? (Começa a chorar) cioso. Depois que me deixou, demorou para ir embora?
— Marta, esse tempo todo em que você esteve mal, ele não — Não! Não chegou nem a entrar em casa. Voltou à noite, que-
estava nem aí para você. Portanto não sofra por não estar ao lado dele ria saber se você tinha melhorado. Essas flores são suas, ele trouxe
neste momento. Pense, criatura, não foi você quem o abandonou. para você.
— Você está sempre certa! Juro que quero esquecer tudo isso, mas — Que pessoa delicada, flores... Gentil, você não acha? Será
ainda é muito difícil me libertar totalmente! Já dei o primeiro passo, só que vai voltar? Apesar de estar quase o tempo todo meio zonza,
em ter vindo à praia com você. Quantos anos não tomava um banho de gostei muito dele. Preciso agradecer tanta gentileza, não arredou o
sol, e de mar? Nossa! A água estava tão fria! Desculpe! Foi sem querer, pé do meu lado lá no pronto-socorro. Para me distrair, enquanto
não queria atrapalhar o seu descanso. Quando eu ia imaginar que ia eu tomava o soro com os medicamentos, falou que era arquiteto,
desmaiar e, ainda por cima, acordar nos braços... Nossa!... E o tal do Rui, solteiro, tem um filho de onze anos. Chegou a falar do bom relacio-
foi embora logo? Você viu?... Que homem interessante namento com a mãe do menino. Uma... Tal...Ah! Amanda, esse o
Aqueles olhos, o dourado da sua pele! nome dela. Pessoa pela qual tem muito carinho.
— Só se eu fosse cega! Marta, você está bem animadinha para Também fiquei sabendo: trouxe o filho para passar as férias com
quem até outro dia estava morta para a vida. Isso que lhe aconteceu é sua irmã, ambos estão hospedados no apartamento dela. Contou algu-
uma pequena amostra do quanto a vida está sempre em movimento mas piadas para me descontrair. Chegou um momento, perguntou-me
e nos surpreendendo a cada instante. Tudo o que nos acontece, seja muito sério se eu não estava com vergonha de estar ali de maiô, mos-
para o nosso bem ou não, passa com o tempo. A vida está aí para sabo- trando as pernas para todo mundo. Nossa! Fiquei tão constrangida
rearmos cada momento. Há sempre tempos bons e ruins, depende com aquele comentário! Até aquele momento eu nem tinha percebido
de nós dar a volta por cima e amadurecer. Você já deu o primeiro como estava vestida. Riu tanto. “Não percebeu que também estou de
passo saiu do seu túmulo. Só foi dar esse pequeno passo, a vida já

maiô?”, disse me ele. “Com uma camiseta, mas, como a senhora, estou — Trouxe minha irmã para conhecer as minhas novas amigas
de maiô. Ria! Não se preocupe, estamos na praia. e reforçar o convite...
Engraçado, pensava Augusta, ontem à noite não lhe pareceu ser — Convite?
um homem engraçado, apenas decisivo e ousado. Tudo bem, estava — Sim, Augusta!... Gostaríamos que as duas viessem passar o
meio alterado por ter abusado do vinho. Augusta reparou de relance resto do dia conosco.
que Marta estava um pouco mais animada do que o costume. Seu Augusta, toda animada, ia confirmar, agradecendo o convite,
pensamento estava impregnado pelos longos beijos, já não prestava quando Marta se antecipa, pedindo desculpa, recusa o convite por
muito atenção em nada à sua volta. As lembranças da noite anterior, ainda estar muito cansada. Pretendia ficar por ali mesmo, sem muito
naquele momento, eram para ela o mais importante. A chuva tinha desgaste físico. A vontade da Augusta naquele momento era de dar
parado de vez. Augusta, que pensava até aquele momento ter per- umas boas bofetadas na amiga. Iracema insiste, Marta não recua da
dido as suas férias, acabou reconhecendo: Todo o episódio da Marta sua decisão. O Rui, vendo que não tinha jeito, convida Marta para ir
proporcionou-lhe conhecer aquele homem. Mesmo que não o visse tomar uma água de coco na praia.
mais, sem dúvida, vivenciou uma aventura interessante, daquelas Diante do espanto da Augusta, Marta o segue. Desde o café da
para serem lembradas para sempre. manhã, Augusta nota uma mudança no comportamento da Marta.
— Bem, sei que estraguei as suas férias, mas ainda podemos Questiona se, como ela, a sua amiga também ficou estremecida por
aproveitar os quatro dias que nos restam. Entusiasmadas tomam um aquele homem. Ao mesmo tempo, duvidava... Por mais complicada
café bem reforçado enquanto planejam a programação daquele dia. que sua amiga seja, se estivesse interessada não ia recusar passar o
Ouvem uma buzina de carro em frente à casa. Marta corre à janela dia com ele. Depois, até ontem, ainda sofria por causa do Rogério.
para ver quem é. Toda animada, anuncia que é o Rui, vai abrir a Iracema quebra o gelo:
porta. Augusta, ao ouvir o nome dele, sente um tremor pelo corpo. — Não vai me convidar para entrar?
Corre para a porta e percebe que tem uma mulher com ele. — Ah! Desculpe.
Questiona se seria a tal da Amanda. Volta para dentro de casa. — Não se preocupe com sua amiga! Rui, na certa, vai tentar
— Bom dia, Marta, está tudo bem com você? convencê-la a ir. Aconselho você a se preparar, pode apostar que
— Estou muito bem! Obrigada! Gostaria de aproveitar a opor- vocês vão conosco.
tunidade para agradecer tudo que o senhor fez por mim, perdoe-me Esse meu irmão, quando quer alguma coisa! Não se deu ao
por ter lhe dado tanto trabalho, desculpe o transtorno. trabalho de vir até aqui para voltar decepcionado. Já Augusta ques-
— Não precisa agradecer e nem se desculpar, é só não me tionava como aquela mulher tinha tanta certeza sem conhecer
chamar de senhor... Pode acreditar, eu já me sentiria bem recom- direito a Marta.
pensado. Foi um prazer ter podido ajudá-la. Gostaria de apresentar — Rui e o filho vieram passar uns dias com a minha família,
a minha irmã, Iracema! Esta é a Marta! mas, como sempre, está meio deslocado no meio da juventude. Ter
— Prazer! Eu a vi ontem de relance na praia, estava entregando conhecido vocês lhe deu uma esperança de passar os últimos dias
uma garrafa de água não sei para quem! Mostrando indiferença, de maneira bem mais aproveitável. Ele não comentou nada, estou
Augusta sai de dentro da casa e dirige-se ao grupo, fica aliviada por falando porque conheço muito o meu irmão. Mas uma coisa posso
saber não se tratar da tal Amanda, abraça a Iracema. Já a Marta, sem lhe dizer com certeza, gostou muito das duas. As palavras da Iracema
dar importância para a mulher, fica na sua. confortaram um pouco a alma da Augusta, mas ainda duvidava se

ia conseguir convencer a Marta, afinal ela ainda não era uma pessoa
fácil de se lidar.
— Sabe, moça, Rui falou-me sobre a situação da sua amiga,
e por esse motivo eu tenho certeza da força de convencê-la facil-
mente – dando um a piscada –, diríamos que ele é meio manipula- MARTA E O RUI
dor. Iracema ri... Nesse estado sensível em que ela se encontra, e a
habilidade dele em convencer as pessoas a fazer o que ele quer... Lhe
garanto que vai ser fácil.
Rui é uma ótima pessoa, mas, desde criança, não aceita ser
contrariado. Dá sempre um jeito de convencer as pessoas com os
seus argumentos.
— Os meus pais o mimaram demais. Eu nunca me esqueço
das suas birras, batendo os pés... Apanhou várias vezes por suas
A
teimosias. o chegarem à praia, Rui providencia no quiosque dois cocos.
A irmã dele devia ter razão; pensando bem, os acontecimentos — Marta, você deve estar meio atordoada com os acon-
da noite anterior só foram possíveis devido às artimanhas dele. tecimentos de ontem, mas eu também estou, tomei muito
Augusta ouviu de Iracema quase tudo o que a Marta já lhe vinho, à noite, oferecido pela Augusta, enquanto degustáva-
tinha revelado. Sou a sua única irmã. Eu sou a única família dele. mos uns pedaços de pizzas, esperava a minha princesa acordar. Ri!
Apesar de ter um filho, João Paulo, e por causa desse filho estamos — Ah! Para com isso! Não sou sua princesa. Comeram
todos juntos nestas férias. Como não é casado... com a mãe do pizza! Augusta não comentou nada, era segredo? Apenas comen-
menino, esta acostumado a passar as férias com o jovem. tou receber a sua visita à noite.
Segundo Iracema, no ano passado, eles foram todos à Disney. — Sim! Não! Não era segredo, na certa não teve tempo
João Paulo se deu tão bem com as primas, que resolveu passar de comentar.
mais umas férias com elas. Augusta, intrigada, não dava a devida Infelizmente, pelo efeito dos remédios, você dormia, e eu,
atenção à conversa da Iracema. decepcionado, fui furtado de revê-la. Como se vê hoje já estou
Pela sua cabeça só passava a sua estranheza na atitude de Marta aqui novinho em folha. Não há motivo para negar o meu con-
em seguir o Rui até a praia. Ele, por sua vez, evitou encará-la desde vite. Os acontecimentos de ontem devem ter lhe deixado um
a sua chegada... Na realidade, a tratou friamente. Toda a sua atenção tremendo desgaste físico.
foi só para com a Marta. Augusta sente uma ponta de ciúmes. Não Marta, eu gostei muito de você, dificilmente uma mulher
conseguia entender o comportamento daquele homem que há pou- mexeu comigo, gostaria de poder conhecê-la mais profunda-
cas horas tinha lhe beijado com paixão. E questionava se ele havia mente, não me negue esse meu desejo. Já que ainda está can-
tomado aquela atitude só para se divertir ou por estar bêbado. sada, pode ficar sentada o dia inteiro conversando com o meu
cunhado, ele não sai de baixo da barraca, nasceu na Suíça, é
muito branco, não gosta do sol.
— Quer me conhecer melhor, mas está me impondo que eu
fique conversando com o seu cunhado. Você é engraçado. Apesar

de eu já lhe ter agradecido, gostaria que entendesse: Aceitei vir Marta, por uns instantes, olha para o seu novo amigo fas-
aqui com você em agradecimento por tudo o que fez por mim, cinada pela sua voz melodiosa.
e pelas belas flores, mas não tenha esperanças a meu respeito. Rui não se contém, tenta beijá-la. Ela se esquiva.
Obrigada por sua visita ontem, pela preocupação. Foi muita gen- — Por favor, não faça mais isso.
tileza da sua parte. Desde a minha separação, só a minha amiga — Desculpe! Desde que a conheci, não consigo deixar de
esteve assim tão preocupada comigo. Sinceramente, eu não sei pensar em você. Gostaria...
como retribuir tanta gentileza. — Por favor, não continue! Não estou pronta para novos
— Sabe sim! É só vir passar o dia com a minha família! romances, ainda estou presa ao meu passado e ao meu marido.
— Conviver com pessoas estranhas ainda é muito difícil Eu não sou mulher para romances de férias, muito menos para
para mim, há anos vivo isolada do mundo. Só tenho a Augusta aventuras. Ainda estou bem machucada com a minha separação.
como companhia, Desculpe, eu não me sentiria bem no meio — Segundo a Augusta, o seu casamento acabou há mais de
de pessoas que eu não conheço... Depois, ainda tenho o corpo cinco anos.
dolorido. O rapaz ri... Ora, Marta, eu não sou assim tão estra- — O casamento acabou para o meu marido, eu continuo
nho! Augusta e a minha irmã vão estar lá... Ah! E também o meu casada com ele.
cunhado e três jovens. Eu não aceito não da sua parte, vai e volta — Por favor! Mulher, não entra nessa paranoia, vocês estão
de carro. Depois, pode ficar lá o tempo todo sentada. Vamos! separados legalmente. Dê uma nova chance para você ser feliz.
Faça destas férias um recomeço para sua vida. Se não for comigo, talvez com qualquer outra pessoa.
— O que você sabe sobre a minha vida? Espero que Augusta — Augusta não devia ficar falando da minha vida para os
não tenha enchido o seu ouvido com os meus problemas. outros!
Rui nega que Augusta tenha lhe falado sobre o seu passado. — Não fique brava com ela. Fui eu que praticamente a for-
— Quer dizer que a senhora tem problemas que ninguém cei a me contar.
pode saber? Mais um motivo para espairecer. Vai lhe fazer bem — Só uma coisa lhe peço: não alimente esperança a meu res-
mudar um pouco de ar e de roteiro. Quem sabe, com uma nova peito, há uma diferença enorme entre nós. Sou bem mais velha!
atitude, não lhe surja um novo amanhã?! Nada acontece por acaso. — Não sinto essa diferença! Depois você não aparenta,
O destino pode ter posto você em meu caminho, não ter sido em é linda.
vão... Vai depender só de você. Não desperdice a nova chance! — Pare com isso! Há uma incompatibilidade social e de
Depois, para mudarmos qualquer empecilho ou situação confli- gênio entre nós. Não sei por que estou lhe dizendo essas coisas.
tante, somos sempre nós que temos dar um empurrãozinho. Estou nervosa. Eu nem o conheço direito. Tudo isso é uma boba-
Quando você aceitou vir com Augusta à praia, acenou para gem! Ausentei-me do mundo por tantos anos, que nem sei como
a vida lhe abrir novas portas. me comportar. Vamos voltar!
— Ah! Mentiroso! Então, ela comentou sobre o meu — Tudo bem, eu sou paciente! Eu espero você adaptar-se à
passado. sua nova realidade.
— Apenas que foi casada e que você não aceita a separação. — Por favor, não insista. Eu agradeço muito o que o senhor
Eu adorei conhecer você! O nosso encontro salvou as minhas fez por mim ontem, mas isso não lhe dá o direito de invadir
férias. Por este motivo, estou aqui convidando as duas para que a minha vida desse jeito. Muito menos brincar com os meus
esse dia seja bem mais interessante. sentimentos.

— Mais uma vez, desculpe-me. Tire essa ruga desse rosto Questionava se o sol que havia tomado no dia anterior não quei-
tão lindo. E venha conosco. Prometo que não vou mais incomo- mara os seus neurônios. Mesmo tendo ouvido de Iracema sobre a
dá-la. Dê-me uma chance para lhe provar isso. Vamos ser ami- persuasão do Rui, não acreditava que o rapaz ia conseguir. Toda
gos! Se não for por mim, faça isso por Augusta, a sua amiga me aquela situação a deixa meio desconfiada. A sua estranheza foi
pareceu muito entusiasmada com o nosso convite. logo superada pela alegria em imaginar que estaria junto daquele
— Não reparei esse entusiasmo todo da parte dela! homem novamente. Naquele momento, nada mais importava.
— Marta, se a sua amiga não estivesse a fim, teria recu- Durante o trajeto, ficou calada, ouvindo os três, bem animados,
sado, como você o fez. Eu lhe garanto! Conheço um pouco do ser conversarem sobre o desmaio da Marta. A beleza da amiga, mais
humano, depois, ontem ela me revelou que as férias dela estavam do que nunca, sobressaía num sorriso tímido sob os raios do sol
muito enfadonhas. de um novo dia. Lembrava aquela jovem de anos atrás.
— E eu, na certa, sou a causa? Augusta realmente gosta de
conhecer pessoas... Mas ir passar o dia com vocês? Nós tínhamos Ela, por sua vez, estava bem saidinha, para espanto de
outro plano para hoje. Eu prefiro passar o dia com ela. Augusta. O que está acontecendo com Marta? Questionava: pri-
— Tudo bem! Vamos perguntar à sua amiga. O que vocês meiro foi ter aceitado vir com ela à praia, depois sua decisão
duas decidirem eu vou respeitar. de ir embora. Agora essa alegria toda ao lado do homem que
— Tudo bem! acabou de conhecer. Fica agindo como se fossem velhos amigos.
Ao retornarem, reparam em Augusta com uma sacola, Teria sido o Rui ou a doença do Rogério que a despertou
pronta para ir com eles. novamente para a vida?
— Eu não falei, Marta? A sua amiga parece estar preparada
para ir conosco. Augusta, toda animada, dirige-se a eles: Chega à conclusão: Marta não era burra! Ao constatar que
— Rui, gostei muito da sua irmã, ela é uma pessoa muito sim- era grave a doença do seu ex-marido, percebendo que não o
pática. Marta, para não deixar os nossos novos amigos esperando teria mais de volta, resolveu dar uma nova chance para si! A essa
por muito tempo, já peguei as suas coisas, está tudo aqui comigo. altura, Augusta tinha certeza de que todas as pessoas, quando
— Mas eu não decidi nada ainda! agem exageradamente por causa de sua dor, na maioria das vezes,
Rui puxa Marta de lado. estão apenas tentando chamar atenção das pessoas para si. E foi
— Marta, lembre-se do que você me prometeu. essa conclusão que fez Augusta entender por que ela aceitou o
— Tudo bem! Eu vou! Mas não se entusiasme... Que fique convite de passar as férias na praia. Depois do episódio do dia
bem claro! Estou indo por causa da Augusta. Tenho estragado as anterior, lá estava ela, risonha, como se nada tivesse acontecido
suas férias, não quero ser mais uma vez um empecilho... Ontem nos últimos anos.
eu tive a nítida impressão de estar diante de um cavalheiro, não O prédio onde Iracema morava era muito chique, e o apar-
me decepcione... Cumpra a sua promessa! tamento, mais ainda. Por estar localizado à beira-mar, Augusta
A vontade que eu tenho é de descansar, ainda me sinto chegou à conclusão óbvia de que se tratavam de pessoas muito
indisposta. Vou ficar debaixo da barraca com o seu cunhado. ricas.
— Seja como a senhora quiser! Marta, como prometeu, ficou sentada o tempo todo debaixo
Augusta acha estranho, conhecendo a amiga como da barraca, conversou bem pouco com o marido da Iracema.
conhece... Não entende como ele conseguiu convencê-la. Homem de poucas palavras se mostrou bem distante das duas.

Logo depois do almoço, cansada ainda pela véspera, arrependida com personalidade forte. Tem medo principalmente de perder a
de ter vindo, pensava ter sido bem melhor se tivesse ficado só sua liberdade.”
com Augusta acaba dormindo na cadeira. Rui, com a ajuda do — Iracema, pare com isso! O que a nossa convidada vai
cunhado, decidido também a ir embora da praia, carregou-a até pensar?
o apartamento e colocou-a na sua cama. Emocionado, admirou — Vai pensar que é um rapaz que gosta de ser admirado
a beleza daquela mulher, beijou os seus lábios de leve e deixou pelas mulheres.
Marta lá dormindo. — Cuidado com ele, minha cara, está diante de um sedu-
A má impressão de Augusta foi logo dissipada quando eles tor. Se você conhecesse a Amanda, ia entender o que eu estou
chegaram. Rui deu toda a atenção para ela, convidando para irem falando, uma mulher bonita, muito talentosa, culta e, ainda por
tomar um banho de mar. Tudo bem que os três jovens também cima, deu-lhe um filho maravilhoso.
os acompanharam, foi tudo muito divertido. Rui, sempre que Se fosse pela minha vontade, eles estariam casados. Como
uma onda forte vinha, segurava-a forte em suas mãos, em outros nesta vida não podemos nos intrometer na vida alheia...
momentos os seus corpos se encontravam. Augusta sentia um — Ainda bem! Não é, minha querida irmãzinha? Amanda,
prazer estonteante diante de tanta novidade. de fato, tentou várias vezes me persuadir, concluiu o Rui. Segundo
Na hora do almoço, além de servi-la, sentou-se ao seu lado. ela, seria muito bom para a criança se ficássemos juntos. Mas aca-
E foi nesse momento que puderam conhecer-se melhor, ambos bou aceitando de bom grado o meu argumento de que podíamos
chegaram à conclusão de que tinham muita coisa em comum. criar o menino juntos sem comprometer os nossos sentimentos
Estiveram jogando frescobol contra a sobrinha e o seu filho, o e a nossa liberdade, e a nossa sociedade. Você não acha que,
jovem João Paulo – garoto simpático e muito esperto. Logo de para dois seres compartilharem uma existência harmônica, os
cara, houve muita afinidade entre eles. A conversa entre ela e participantes precisam ter afinidade? Se há incertezas, o melhor
o Rui decorreu sobre vários assuntos, até que a conversa enve- é não arriscar. Foi bem melhor assim! Até o momento, mulher
redou para Amanda, a mãe do João Paulo. Acabou lhe confes- nenhuma mexeu com os meus sentimentos a ponto de me fazer
sando que nutria um carinho muito especial por essa mulher. perder a razão... Ou de mudar a minha opinião.
Fica sabendo tratar-se de uma arquiteta, sócia dele no escritório. Hoje, tenho certeza de que Amanda concorda comigo. Está
Foi nesse meio que se conheceram. Segundo ele, é uma pessoa tudo correndo bem! João Paulo é um ótimo garoto! Ao longo
muito simpát, inteligente, uma mulher jovem, moderna e muito desse tempo, nunca cobrou ou reclamou da nossa decisão. O
bonita. Como ele gosta. importante é o amor que temos por ele, o João Paulo sabe disso.
Minha amiga, nesse momento, ficou calada, pensando que Depois, o fato de ela ser a minha sócia, estarmos juntos todos os
não teria chance. dias, facilita resolvermos de comum acordo o que é importante
Ele e Amanda estavam envolvidos num relacionamento para ele.
sem muito compromisso, quando veio a notícia da gravidez. Ele Até aquele momento Augusta não tinha percebido com
deu todo o amparo, mas não nutria um sentimento mais forte, quanto carinho aquele homem falava da mãe do seu filho. A forma
suficiente para assumir um compromisso sério. carinhosa dirigida à tal da Amanda lhe despertou uma certa
Iracema, ouvindo o fim da conversa, acaba intrometendo- insegurança e um pouco de ciúmes. A nuvem que se apoderou
se dizendo: “Tenho certeza de que o meu irmão foge dos com- da sua mente foi logo dissipada diante da gentileza e da intimi-
promissos afetivos! Em minha opinião, tem medo de mulheres dade partilhada por ambos no segundo dia juntos, o que levava

Augusta a voar e a ter esperança. A convivência com a família e a — Não desmaiou, mas dormiu. Eu tive novamente de car-
pouca aproximação dele com a Marta a levavam a iludir-se cada regá-la, isso já está se tornando um hábito. Se essa situação con-
vez mais. Na sua cabeça, como era tudo tão recente, Rui talvez tinuar, vou ter que começar a cobrar o transporte. Todos riram.
não quisesse que sua família soubesse que estava havendo algo Marta, muito encabulada, não acha graça. Pede desculpa a todos.
mais íntimo entre eles. Quem visse a Augusta naquele momento — Augusta, vamos embora?
não acreditaria se tratar da mesma pessoa. Não havia nem um — Desculpe a brincadeira, não quis constrangê-la. Venha
pouco de racionalidade em seu devaneio. Ao longo do dia, os comer alguma coisa.
acontecimentos da noite anterior não foram comentados. Já na — Obrigada! Gostaria de ir para casa.
cabeça da minha amiga, ela via a atitude dele como se tudo fosse Augusta se incomoda com a grosseria da amiga, tenta dis-
bem normal para duas pessoas a fim de iniciar um namoro, mas farçar, mas Marta está irredutível.
que ainda estavam se conhecendo. — Tudo bem, eu vou levar vocês. Não está com fome? Ela
Esse é o Rui, arquiteto de 44 anos, um homem que exerce a nem responde. Apesar da grosseria, nos três dias seguintes, esti-
sua profissão com dedicação e prazer. Leva uma vida calma, não veram sempre em companhia do Rui. Na primeira noite, saíram
é dado aos prazeres mundanos. Não é dado ao esforço físico, é para jantar; na outra, estiveram até tarde num barzinho, assis-
mais voltado para as atividades intelectuais. Além do seu lado tindo à audição de dois músicos ao violão. Ao término deste,
persuasivo, é uma pessoa afável e agradável. Já o seu humor vacila Augusta foi conversar com um dos músicos para pedir que tocas-
bastante. Há horas em que é alegre, muito brincalhão, mas, na sem a sua música favorita. Nesse ínterim, Rui investe novamente
maioria das vezes, é muito sério. Insegurança só nos assuntos em Marta, mas ela continua irredutível.
sentimentais. Sendo filho de pais já falecidos, praticamente foi Na terceira noite, saíram para dançar. Só Augusta dançou
criado por sua irmã. Iracema, formada em Direito, trabalhou com ele. Augusta estranhou a princípio o comportamento mais
até se casar, casamento adiado o quanto pôde, para sustentar os leve e solto da Marta, estava sempre disposta para qualquer passeio.
estudos dele na faculdade. Quem os conhecia intimamente per- Além de estar envolvida, agradecia àquele homem ter con-
cebia que Iracema tinha um amor de mãe por ele. seguido tamanha transformação, mas não se detinha muito pen-
Depois da praia, todos foram tomar lanche no apartamento. sando nisso. Enxergava apenas aqueles momentos maravilhosos
Eram todos tão simpáticos. Augusta sentia-se em casa, a sensa- ao lado do seu bom e novo amigo. Mesmo com os sentimen-
ção era de estar rodeada de velhos amigos. Acabou sentindo uma tos confusos por aquele homem, o que importava era o quanto
pequena ponta de inveja daquelas pessoas que compartilhavam estava feliz. E era isso que realmente importava. Finalmente
bons momentos em família. Situação essa negada ao longo da podia aproveitar as suas férias.
sua existência, por ter uma família pequena. E os seus pais sem- Eu diria que, pela primeira vez na vida, Augusta agia egois-
pre foram mais um peso do que uma satisfação familiar. ticamente, o resto à sua volta não tinha nenhuma relevância.
Marta, meio constrangida ao acordar, percebe estar dei- Achava apenas que a mudança de ar e os novos amigos estavam
tada num quarto estranho. fazendo muito bem para as duas.
Ao se dirigir à sala, encontra a família toda olhando para No último dia na praia, Augusta começou a questionar,
ela. Constrangida, pergunta: diante da sua
— Nossa, como vim parar aqui? Não vá me dizer que eu incerteza, se estavam ou não namorando. Apesar da con-
desmaiei de novo! vivência, da troca de vários assuntos, de dar mais atenção a ela

e ser sempre tão amável, não houve mais intimidades, nada de
beijos, nem carinhos.
A ansiedade e aquele envolvimento inexplicável por aquele
homem fizeram-na ter a infeliz ideia de perguntar ao Rui o que
tinha significado para ele a noite em que se conheceram.... SÃO PAULO
—Nada – Respondeu! Em seguida, pede desculpa, lhe
dizendo ser uma pessoa sincera. Espero que para você tam-
bém não tenha tido importância nenhuma. Não vou dizer que
foi culpa do vinho, eu quis e você concordou. Ok! Esqueça, em
benefício da nossa amizade.
Augusta ficou sem ação e muito magoada com a atitude
grosseira daquele homem que, até aquele momento, tinha sido
sempre tão gentil. Tudo bem, ele tinha todo o direito de ser sin-
N
cero. Afinal, a expectativa foi sua. Decepcionada com a verdade, a sua última semana das férias, Augusta ainda envolvida com
a partir desse dia disfarçou bem o seu sentimento. os últimos acontecimentos procura com muito custo, seguir a
Rui apenas quis poupá-la de alimentar esperanças vãs, mas, rotina. Chega julho, trazendo a volta às aulas, desiludida, tenta
na intimidade, sabia o quanto mexeu também com ele. O resto esquecer, tentando enganar a si mesma...
foi coisa da cabeça apaixonada da Augusta. Naquele momento, Tudo não passou de mais um amor de férias. Chega mesmo
consternada convenceu-se, de que estava carente de afeto. a pensar o quanto foi melhor assim! Havia um misto de mágoas
e revolta e, ao mesmo tempo, uma vontade enorme de revê-lo.
Ocupava-se com as suas várias atividades e, por mais que tentasse
esquecer aquele homem, ele não saía da sua cabeça, ainda sentia
um doce devaneio ao lembrar-se dos seus beijos. Brigava consigo
mesma. Culpava-se por alimentar esperanças em vez de esquecê-lo.
Depois dizia que o importante tinha sido o fato de a Marta ter
ido com ela à praia. Estava realmente feliz pela amiga, voltou outra
pessoa. Com autoestima recuperada, voltou à vida. Estava tão ani-
mada que a sua primeira providência, logo ao chegarem a São Paulo,
foi levá-la para fazer umas compras, renovar o guarda-roupa, atitude
aprovada pela Marta. E, como sempre, quem bancou os gastos foi a
Augusta.
Os dias passavam... Tentou levar uma vida normal. A sau-
dade do Rui aumentava, todas as tentativas foram vãs! Nada a fazia
esquecê-lo. Augusta chegou à conclusão de que, por mais que ela
lutasse contra, uma força maior a envolvia cada vez mais naquele
sentimento, até resolver deixar que tudo corresse como tinha que ser

em suas atividades. Nem assim conseguiu esquecê-lo. A ausência, — O que você acha? Eu preciso dar uma resposta ainda hoje.
o cruel silêncio sufocavam-na, doía tanto que passou a viver mal- — Esse rapaz é muito ardiloso.
-humorada. Tudo a irritava. Quem a conhecia não entendia aquela — O que você está falando?
atitude vinda de uma pessoa tão bem resolvida. Passou até entender — Nada! Nada! Depois eu lhe conto. Eu só estou pensando se
a dificuldade da Marta em esquecer aquele que foi seu marido Não vou ou não vou. Depois de uma pausa responde, você sabe que eu
aguentando mais aquela situação, resolve ligar... Atitude que nunca não gosto muito de teatro. Depois, deve ser caro!
gostou de exercer na vida, esperava sempre o primeiro passo vir Ele já comprou os ingressos! Augusta tenta convencer,
deles. “Os tempos mudaram! Agora é a mulherada que corre atrás Prevenida, Marta não mostra nenhum interesse.
dos homens”, disse tentando se convencer. Estava muito difícil, Augusta não desiste: “Ele faz questão da sua presença. Vamos,
passava pela sua cabeça que era uma ilusão ou então estava louca, tenho certeza de que você vai gostar!”
nunca gostou de uma pessoa como gostava daquele homem, prati- Marta insistia em recusar o convite, tinha certeza de ser uma
camente um desconhecido. Precisava urgentemente resolver de vez artimanha do rapaz. Depois não gostava de música clássica.
aquela situação. Cada dia que passava, o martírio aumentava, Tinha O seu silêncio tortura Augusta. Ela via nesse encontro a opor-
que parar de agir infantilmente, condenava a si mesmo por tanto tunidade de esclarecer os seus sentimentos de uma vez por todas.
sofrimento. Não aguentando mais, resolveu agir. Fosse qual fosse a Precisava saber se, nesses dias longe um do outro, o Rui também
reação dele, estava preparada para ouvir qualquer tipo de resposta. havia sentido saudades. Teria o rapaz também interesse por ela?
Tinha que tentar alguma coisa para não enlouquecer. Quando a Finalmente ia resolver a situação.
secretária atendeu, o coração da minha amiga dava saltos. Ouviu Insistiu com Marta. Lembrou também o quanto Marta gostava
da moça: “O Sr. Rui no momento não pode atender! Quando puder, da companhia do Rui. Acusou-a de ser uma desmancha-prazeres, e
retorna a ligação.” Inconformada, porém bem mais tranquila, seguiu assim acabou convencendo a amiga a aceitar o convite.
a rotina. Tinha a convicção de que, em qualquer dia, ou qualquer No encontro, Augusta estava com as pernas trêmulas. Apesar
hora, talvez em alguns meses, acabaria tirando aquele homem dos de ele continuar a ser muito gentil e ter se sentado ao seu lado no tea-
seus pensamentos. Afinal, tudo ainda era muito recente. tro, Augusta chegou à triste conclusão: Não havia interesse nenhum
Bem mais sensata, aceitou a situação, afirmando para si que daquele homem por ela. Nem como amigos tinha certeza do inte-
esse homem não era para ela. Mais uma vez a vida lhe negava o resse dele.
amor, não adiantava insistir. Ao se comportar friamente ao deixá-la em casa, antes da
Tudo seguia normalmente até aquela manhã de quinta-feira, Marta, sentiu-se decepcionada. Só de uma coisa tinha certeza, não
começo da segunda semana de agosto, quando foi pega de surpresa iria desistir!
por um telefonema do Rui. Ah! Como ela queria ser novamente beijada.
Ao ouvir aquela voz familiar, tão gentil, renasceram as suas Por quase dois meses, os encontros nos finais de semana foram
esperanças. Sem perder tempo, numa felicidade infantil, ligou para uma constante. Depois, começaram a rarear. Agiam apenas como
Marta, anunciando a boa-nova: bons amigos. Augusta acabou se conformando e ficando na sua. A
— Marta, nós duas erramos quanto ao nosso amigo Rui, achá- única desculpa que dava para si mesma era uma só, a existência do
vamos que ele nunca ia nos procurar quando voltássemos a São filho e da Amanda na vida dele. Com certeza, mesmo o Rui dizendo
Paulo. Adivinhe! Acabou de ligar, convidando-nos para o concerto não haver nada entre eles, a mãe do seu filho era a pessoa mais
de música clássica no teatro municipal importante para ele. Sempre a citava em suas conversas. “Porque a

Amanda gosta disso, a Amanda era interessada naquilo, agia assim e
assado”, deixando-a muito intrigada com isso.
Nesse período de convivência em São Paulo, mesmo notando
que o rapaz não tinha nenhum interesse, estava sempre distante
e muito informal, a sua presença já era um bálsamo para alma da A SURPRESA
minha amiga.
O pouco tempo em que eu estive em companhia da Augusta
naquele período, estranhava o seu novo comportamento sonhador
e distante, já quase não ria, estava sempre irritada. Havia um jogo
de esconde-esconde entre os participantes. Era um forte indício de
que o destino em rede atuava fortemente, brincando com aquelas
pessoas.
Augusta nada sabia da real intenção dele; por outro lado,
M
eu nada sabia da sua paixão pelo rapaz, muito menos qual era a arta, ao recuperar a autoestima, passou a maior parte do
intenção dele para com a Marta, apesar de desconfiar. Havia uma tempo longe de Augusta.
trama bem armada num segredo bem guardado pelos três, mesmo Aliviada, acha ótima e saudável essa a sua nova ati-
sem intenção; não havia um forte motivo para não ser revelado, em tude. Depois, não tinha vontade de falar com ninguém.
minha opinião. Até os telefonemas diminuíram entre elas.
Marta estava radiante com a sua nova condição diante da vida, Marta passava o dia limpando a casa, pintando as suas
só tinha um pensamento: recuperar o tempo perdido. telas, saía para fazer compras e até ficou amiga da sua vizinha.
Augusta, diante do afastamento do rapaz, sem nenhuma notí- Estava irreconhecível. Nesse período, por motivo do meu traba-
cia, torturava-se. Quando não aguentou mais de saudades, resolveu lho, fiquei umas semanas afastada. Depois de vários dias, a Marta
saber o que estava acontecendo. Chegou a perguntar para Marta se apareceu na casa da Augusta de surpresa, com uns convites na
tinha notícias dele. Marta disfarça em seu silêncio! Diante da res- mão. Augusta, ao ver a amiga tão alegre e até corada, ficou feliz
posta negativa, foi tentar saber alguma coisa por meio da irmã dele. por vê-la cada vez bem melhor, sem ter a mínima ideia de que
Esta, por sua vez, meio reticente, também nada soube dizer ou não aquela visita lhe traria uma notícia desagradável, que desman-
quis dizer sobre o paradeiro do seu irmão. Mesmo não gostando do charia todos seus sonhos no ar.
envolvimento dele com Marta, preferiu ficar calada, já que ambas — Marta, você está com um semblante ótimo! Como é bom
eram amigas. A única notícia revelada foi sobre a visita dele no fim vê-la assim, tão radiante, feliz, como há muito tempo eu não via!
de semana ao um grande amigo do tempo da faculdade, na cidade O que aconteceu?
do Rio de Janeiro. Depois, não soube mais nada. Ele anda afastado da — Fiz questão de ser você a primeira pessoa a saber! Estou
nossa família, disse-lhe. Até aquele momento, não teve mais notícia. realmente muito feliz, sinto-me leve... A vida está me dando uma
Augusta, isolada das pessoas, seguiu a sua vida sem entu- segunda chance. Não estou certa se mereço tanta felicidade ou se
siasmo, agindo como um robô. Nada mais tem graça, até dar aulas a minha atitude em aceitar assim tão rápido é o certo, só sei que
não lhe dava o mesmo prazer de antes. estou feliz, decidi arriscar! Já perdi muito tempo sofrendo!
— O que você está dizendo, criatura?

Marta, sabendo que Augusta não podia imaginar o que era muito jovem, pouco conhecia do meu futuro marido, e deu
estava acontecendo em sua vida, dispara a novidade: certo! Decidi: Vou tentar de novo!
— Eu vou me casar com o Rui. Tudo em volta da Augusta girava, já não escutava mais
— Ah! Com quem? o que a amiga falava. Agarrou-se à beirada da mesa para não
— Com o Rui! Desde que vi aquele rosto, parecido com um cair. Não podia ser verdade! Não, a vida não podia maltratá-la
anjo, fitando-me tão apreensivo... Tanta delicadeza com a minha assim. Ela não podia estar falando sério... O seu Rui e Marta...
pessoa, você sabe? Casamento... Descontrolada, olhava para a amiga com o pensa-
— Não sei de nada... mento longe. Relembrou, em um lance, todos os momentos com
— Estamos apaixonados Foi amor à primeira vista, não ele. Uma decepção descomunal se apoderou das suas entranhas.
diria de ambas as partes; Logo com a Marta, logo ela seria sua rival, a destruidora dos
ele, mais do que eu. Mas, devo confessar, fiquei impres- seus sonhos.
sionada por esse homem desde o primeiro dia. Depois de tantas — O que você tem, ficou branca de repente?
investidas... Acabou me convencendo. Você me desculpa? Eu só Absorta, não respondia, só pensava o quanto tudo aquilo
não lhe contei antes por não ter certeza de nada e por ter relutado era injusto, como uma mulher desequilibrada como aquela con-
por todo esse tempo contra as investidas dele; eu, realmente, não seguiu conquistá-lo? Não! Não podia ser verdade!
queria me envolver... Verdade! Estava tudo tão confuso e, ao mesmo tempo, tão claro.
Afinal, fiquei tanto tempo desinteressada em viver plena- Quantas vezes não sonhara em ver a amiga recuperada e feliz,
mente. Eu não pretendia ter nenhum relacionamento mais sério, mas aquilo era muito cruel e injusto.
você sabe... Sou bem mais velha, não tenho certeza se realmente Marta tinha que se apaixonar logo pelo seu amor?
esqueci o meu antigo marido. Questionei muito se não passava de Depois de conhecerem o rapaz lá na praia, vinha notando a
uma fantasia da minha parte, empolgação momentânea por esse mudança de comportamento rápido da amiga, mas quando podia
homem. Depois, veio a morte do Rogério. No começo, emoções imaginar que o motivo era o Rui?! Pensava ser pela mudança
se misturavam em relação a ele ou ao outro. de ares, por ter conhecido novas pessoas. Depois da morte do
O Rui não desiste fácil, diz a toda hora que não têm impor- Rogério, ao perceber não haver mais jeito, resolveu renascer para
tância a minha incertezas... Ama-me o suficiente por nós dois. vida. Houve um silêncio entre elas. Augusta não gostava dessa
Por mais que eu tentasse me afastar das suas investidas... Cheguei situação. Tomou um copo de água, conseguiu com muito custo
até a proibi-lo de vir à minha procura, mas é um ser muito insis- se recompor.
tente, chegava a ser inconveniente. No começo, tratava-o mal, — Vocês não acham que estão se precipitando? Casamento
tentando desencorajá-lo. é uma coisa séria.
Um homem tão bonito, culto, tratando-me com tanto — Não era você que vivia me dizendo que eu tinha que
mimo e carinho, acabei me convencendo ser o melhor para mim. recomeçar a minha vida? Não tem melhor oportunidade que esta!
Depois, você sabe o quanto eu não consigo viver sozinha, um Depois, eu estou tão feliz, ele é tão amável e paciente comigo!
companheiro me faz falta. Acabei aceitando, depois de tanta Eu quero que você seja a madrinha! Vai ser uma cerimônia
insistência. Cedi, mesmo não estando muito certa... A vida está simples, a irmã dele vai organizar tudo.
me dando uma nova oportunidade para ser feliz, eu resolvi agar- Está me ouvindo? Eu quero você como a minha madrinha
rar essa nova chance. Afinal, quando me casei pela primeira vez, de casamento... Augusta!

— Ah! Sim! É que eu fui pega de surpresa. Ainda não digeri ambos estamos de acordo? Vamos ver se vai dar certo. Ele contra-
bem essa história de casamento, ainda mais com o Rui. tou um padre, o casamento vai ser na casa dele.
— Eu sei que vocês são grandes amigos, ele sempre deixou Fazendo novamente um esforço enorme para não desabar
isso bem claro. No começo, ele não queria que ninguém soubesse diante da amiga, responde rispidamente:
do seu interesse por mim, muito menos você e a irmã. Disfarçou — Ver se vai dar certo não é coisa certa para um passo tão
bem até eu decidir. A alegria da sua amiga a deixava cada vez mais importante. Sinto muito, Marta, mas não vai dar para eu ser a
magoada e inconformada. Augusta estava irreconhecível, Sempre madrinha.
que era surpreendida brigando ou quando alguém lhe incomodava, — Como não dá?... Eu exijo que você aceite, para a minha
parava e questionava por que aquela situação a incomodava tanto. felicidade ser completa.
Agora não era o caso, sabia o por quê. A única vontade naquele — Estou com uma viagem marcada, finalmente vou realizar
momento era de se ver livre daquela criatura, que, em poucos o meu sonho de conhecer os vários lugares que fazem parte do
minutos, destruiu todos os seus sonhos. E ainda tem a audácia de currículo de geografia, o qual sempre ensinei aos alunos.
vir convidá-la para ser testemunha da felicidades de ambos. — Você está brincando! Não ia lecionar até o fim do ano? E
— Você estava falando sobre madrinha? Não sei... Diga-me, os seus alunos, como vão ficar?...
quando vocês pretendem dar esse passo tão sério? Augusta mente.
— No dia 19 de dezembro. — O ano letivo praticamente já está no fim. Arrumei uma
— Tão rápido assim? substituta, que vai rever a matéria até o dia do exame final. Eu
—Não é tão rápido, afinal não sou mais criança e, desde que consegui uma promoção excelente de viagem, não dá para recu-
nos conhecemos, estamos juntos. sar, vou economizar bastante. Marta, eu não podia imaginar,
— Ah! Não me diga! assim tão de repente... Você se casando novamente, ainda casar
— Não sei como você não desconfiou! Ao vir à noite para com meu amigo. Por que você não convida Lidiane para ser sua
me ver no dia do meu desmaio, aquela insistência em que eu fosse madrinha? Eu realmente não vou poder.
passar o dia com a família dele, ter me levado para a praia para — Por que você não pode adiar a sua viagem? Somos dois
tentar me convencer. Já aqui em São Paulo, fez questão da minha grandes amigos seus, como não cansa de frisar. Fazemos questão
presença no primeiro dia em que todos nós fomos ao teatro, e em da sua presença. Depois, foi a causadora do nosso encontro. Se eu
outros encontros. Juro que eu pensei que você já estivesse des- não tivesse ido com você à praia, não o teria conhecido.
confiada, apesar de ele pedir silêncio enquanto não estivesse for- — Sinto muito! Não vou mais me sacrificar por ninguém,
malizado. Vivia dizendo: “Não quero ninguém se intrometendo já tinha lhe alertado sobre isso. Realmente não posso! Como já
em nossa decisão, principalmente Augusta e minha irmã.” Você lhe disse, arrumei um pacote muito vantajoso, depois, resolvi há
sempre foi tão esperta! poucos dias, iria ser muito difícil ver os meus alunos se forma-
— Devo ser uma tola, pensei apenas sermos todos amigos. rem. Não ia aguentar a despedida. Logo em seguida, vem a tem-
— O local, a data, e o horário estão aqui no convite. porada das férias... E, com muita gente viajando, tudo fica bem
mais caro. Sinto muito, eu vou atrás do meu sonho, e você vai
— Os convites já estão prontos? Augusta nem o abre. se casar! Fico feliz por você. O Rui, finalmente, conseguiu fazer
— O Rui está com pressa. Como já lhe disse, ele também você virar o jogo, está novamente renascendo para a vida. Essa
acha que não somos mais crianças. Depois, para que adiar, já que realmente é uma ótima notícia! No momento, o que importa é a

sua felicidade. É só com isso que você deve se preocupar. Pense — Augusta, o que aconteceu? Sua aparência está horrível! Você
só em você neste momento. deixou tantos recados, agora eu a encontro assim... Você chorou?
Nessa nova trajetória, não há mais lugar para nós duas. De Eu fui para Goiania cobrir o desastre do Césio.
agora em diante, cada uma segue o seu caminho. Isso é muito Meu Deus! Diga logo, qual o motivo dessa consternação?
bom! Não significa que vamos deixar de ser amigas. Antes de eu Aconteceu alguma coisa com a Marta?
partir, comunico-me com você. Seja feliz, Marta! — A Marta vai se casar!
— Mas... — Com quem?... Por que esse semblante tão tristonho? Não
Empurra a Marta porta afora. Sente-se aliviada por ficar era isso que você queria?... Afinal, ela voltou à vida! Você final-
sozinha, com o peito explodindo de emoções conflituosas. Cada mente conseguiu! Só nos resta torcer para ela voltar novamente
vez mais acreditava: Uns vieram para ser amados e outros não. a ser feliz?. Não entendo o porquê de todo esse seu sofrimento,
Teve tantos namorados e nunca foi amada por ninguém. Como não vai me dizer... Não acredito. Está com ciúmes ou com medo
pode uma mulher tão vazia, neurótica, virar a cabeça dos homens de perder a amiga novamente?
apenas pela sua beleza? Como pode o seu amado... Tão culto, — Ela vai se casar com o Rui!
inteligente, cair nessa esparrela? Revoltada, sente a necessidade — Ah!
de desabafar com alguém... Sem controle, lágrimas correm pelo — Ela vai se casar com o meu Rui! – Amparo-a, Augusta
seu rosto, resolve me procurar. Sobe as escadas correndo. acaba chorando em cima do meu ombro.
Eu acabei fechando o negócio com o apartamento, no — A Clarice perdeu o marido, logo agora que eles tinham
mesmo prédio dela. Depois de uma pequena reforma, há alguns conseguido ter uma filha.
dias estou morando neste novo domicílio. Fiquei muito feliz com — Calma, minha amiga, eu não estou entendendo nada!
o resultado da compra, depois da reforma, o apartamento ficou Que história é essa de meu Rui? O que houve com a Clarice?
uma graça, bem aconchegante e funcional. Como a minha antiga Calma, Augusta, Sente-se. Puxei a cadeira e consegui que ela se
residência era bem maior, vendi rápido e por um bom preço. sentasse.
Depois da tentativa frustrada, Augusta descobre não haver — Uma coisa de cada vez.
ninguém em casa. Tentou mais tarde, encontrou Rosinha, e, ao — Marta vai se casar com o Rui!
ser informada sobre a minha viagem a trabalho, precisando desa- — Ótimo! Marta vai se casar. Não me vai dizer que está com
bafar com alguém, e foi atrás da sua velha amiga a Clarice, mas ciúmes do seu amigo?
também não a encontrou. Esta tinha acabado de perder o marido, — Eu nunca disse para ninguém, tudo aconteceu em uma
teve um infarto fatal dentro da fábrica onde trabalhava. Foi um noite mágica de verão, quando dois solitários encontraram a cir-
choque tão grande para ela que acabou não avisando ninguém cunstância certa que os levou a se beijar. Foram só dois... Que
sobre o acontecimento. Só a mãe dele e os colegas do trabalho beijos! Nunca eu fui beijada com tanta intensidade! Foi uma
seguiram o funeral. Logo em seguida, foi com a sua filha para noite maravilhosa, Só nós dois, éramos os protagonistas! Nos
o interior, hospedar-se na casa de uma prima. Augusta já não divertimos muito, conversamos, dançamos e nos beijamos. Fui
estava bem, ao ouvir da sogra da Clarice o ocorrido, desabou de tão feliz, como há muito não era. Jamais imaginei poder amar um
vez. Não sabe como chegou em casa. homem novamente.
Já passavam das vinte e uma horas, quando eu toquei a Você é testemunha das minhas desilusões amorosas.
campainha do apartamento. Quando a gente aceita não merecer mais nada, o interesse por

alguém surge de novo, de repente, tudo muda e você se vê nova- — Uma noite tão especial, que a trago comigo a todo
mente amando alguém. E esse alguém é, nada mais, nada menos momento, o seu sorriso, – as palavras soavam tão melodio-
que o Rui. Um homem fascinante, desestabiliza todo o seu eixo, sas – envolveu-me de uma tal maneira, que me entreguei
a sua rotina. Amiga, está sendo muito difícil digerir essa história completamente.
de casamento. Quando eu o vi pela primeira vez, a emoção foi
tão forte, uma nova sensação, acordou os meus sentimentos há Entrei no jogo dele! Ou me deixei levar Agora não con-
muito adormecidos. Renovada, vivo esse momento mágico, que sigo esquecer os seus beijos, desejo esse homem profundamente,
alimentou as minhas esperanças. tenho agido o tempo todo como uma jovenzinha deslumbrada
Ao mesmo tempo, venho também vivendo momentos angus- diante do seu primeiro amor. Pela primeira vez, eu senti um pra-
tiantes, quantas vezes pensei estar ficando louca. Esse homem me zer enorme naquela entrega total.
fez rever a forte convicção sobre os assuntos do coração. Vivia — Entrega total!
acomodada e convicta de não querer ter mais envolvimento com — Não! Não é isso... Estou falando dos beijos.
ninguém. Você sabe disso e da minha opinião sobre o amor. — Tudo isso só por causa de dois beijos? Ah! Tenha dó,
— Sim! Quantas vezes não ouvi essa frase: “O amor só nasce Augusta! Você não tem mais idade para esses delírios.
com a convivência.” — Sei que pareço uma tola, mas eu sinto, há uma coisa de
Na verdade somos três mulheres românticas. Fomos cria- pele entre nós. Não me olhe assim como se eu estivesse agindo
das para casar, apesar de você ter sido a mais liberal, há muito como uma inconsequente cega diante dessa situação. Se existe
tempo está sozinha. uma certeza – esta eu tenho: Amo esse homem!
— Já não tenho mais certeza de nada! Esse homem mexeu — Augusta, pense bem, não deve ser amor! Isso só pode
com todas as minhas convicções. Como uma noite pode mudar ser uma projeção de um ideal, das suas fantasias. Ninguém é per-
todas as minhas verdades? É um sentimento tão forte! Desde o feito! Você nem o conhece direito. Depois não era você que dizia
momento em que o conheci, tentei me reencontrar, achar o meu que o amor não existe para você?
equilíbrio, sem êxito! Sua imagem não sai dos meus pensamentos. Os humanos só se apaixonam pelo amor, pela sua carreira,
Quase nada sei sobre essa criatura tão encantadora, não passa de por um partido político.
um estranho. Na maioria das vezes, tem um sorriso largo e gentil; Está há muito tempo sem ninguém. Deve estar sendo levada
quando contrariado, é frio, distante. Ama profundamente o filho pela ilusão.
e a sua profissão. Tem uma vasta cultura, ama as artes. Como — Se tudo é uma ilusão, não sei! No momento, para mim,
ninguém é perfeito... Acabei sendo uma vítima sua. Fui usada o tudo é concreto, eu existo, e sinto o quanto é real esse sentimento!
tempo todo, enganou-me só para estar perto da Marta. Se amanhã nada disso tiver importância, na certa, vou dar boas
Eu estava tão envolvida, acabei agindo como uma idiota. gargalhadas.
Envolvida nos meus sentimentos, acabei não percebendo. Você Já bolei um plano para me ver livre dessa situação.
acredita? Eu, que sempre fui tão esperta! O meu comportamento indeciso diante do fato me fez per-
— Não acredito. Meu Deus! Vocês duas e o Rui, um verda- dê-lo, devia ter lutado por ele, mas não foi essa a minha atitude.
deiro triângulo amoroso. Sempre fui assim, espero deles o primeiro passo. Agora, perdi
— A única intimidade que tivemos foi naquela noite! este round, no momento, quem ganhou foi a Marta!
— Que noite é essa? Espero que seja feliz! Sou a derrotada, saio de cena.

A vida não está do lado dos fracos, vou à Europa como Augusta falando sozinha. Saí e bati a porta. Descortina diante
turista, mas pretendo ficar por lá algum tempo. No momento, de mim uma nova mulher. Aquela não era a Augusta que eu
só quero me reencontrar. Não há possibilidade de me envolver conhecia, sempre forte. Quem sempre dava rasteira nos impasses
com essa história. Não consigo nem imaginar... O tempo todo o difíceis da vida, agora estava toda emaranhada com um senti-
interesse dele era pela Marta, eu apenas fui usada, fui subterfúgio mento não correspondido, e o mais grave: estava perdendo-o
que ele usou para ficar perto dela. para a Marta. Apesar do meu cansaço, demorei a pegar no sono.
Meu Deus! Como eu tenho sido estúpida! Aqueles momen- Augusta, Ricardo e o Jaime bailavam na minha mente. Tramas
tos foram suficientes para eu me apaixonar. Amo esse homem, humanos! Gastando minha energia com bobagens.
como nunca amei ninguém! Diante da notícia de eles estarem Augusta andava de um lado para o outro. Como não gostava
juntos e de que vão se casar, sinto-me tão impotente!. Depois de de tomar calmante, passou a noite em claro, andou pelo aparta-
tantos anos lutando para que Marta voltasse à vida, estamos apai- mento a noite toda, e o sono não veio.
xonadas pelo mesmo homem. Isso é louco, irreal, não pode estar Cansada, começou a falar com Deus: “Senhor, peço socorro
acontecendo. Meu Deus! Por quê? Em relação a essa pessoa, dei humildemente! Mas não lhe perdoo por me envolver nessa
uns passos para trás. Vou lhe confessar: apesar de haver dentro situação sem saída. Espero que entenda este meu momento
de mim ainda uma semente dedicada à espiritualidade, só queria de fraqueza, o flagelo em que me encontro com a alma ferida.
ser feliz com esse homem, satisfazer os meus desejos terrenos. Perdoe-me a revolta. Deus, neste momento, só isso tenho para
Cheguei à conclusão de que há um limite para todos nós, o meu lhe oferecer, esta é a minha verdade, nesse momento. Peço-lhe
transbordou! Perdi para Marta. com fervor sua ajuda para o esquecer. O senhor sabe quanto eu
— Meu Deus!! Não estou ouvindo isso! Augusta, sinto gosto muito de mim. Também sei que tudo passa, amanhã vai
muito. Como você pode perceber, estou chegando de viagem. ser um outro dia. Por que permitiu nascer dentro de mim tanto
O meu dia foi muito cansativo, estou chegando de Brasília, fui amor por esse homem? Que brincadeira é esta em permitir que
cobrir a falta de uma outra jornalista. eu e Marta nós tornássemos rivais? Amanhã vai ser um novo dia,
Hoje, foi um dia daqueles...As mazelas deste mundo cada mas hoje me deixe chorar, e perdoe a minha revolta. Sei que está
vez mais vem me fazendo mal. Preciso ir para casa descansar! ocupado para me atender.”
Sinto muito, mas não estou em condição de ajudá-la neste Há uns trinta anos Augusta não chorava. Teve tantas per-
momento. Preciso de um tempo para digerir o que você aca- das, mas sempre se manteve firme. Esta noite, em compensação,
bou de me contar. Isso é loucura! Uma mulher tão lúcida. Vivia chorou por toda uma vida, o que estava há anos represado. Só
dizendo estar fora dos relacionamentos ilusórios. Não acreditava quando se esgotam todas as possibilidades, nós, seres humanos,
mais no amor, o sexo forte só queria só como amigos! Como foi conseguimos reencontrar um outro caminho. Sem encontrar
deixar isso acontecer? Não pode ser verdade! Vá descansar tam- uma solução, viveu a sua dor por um bom tempo.
bém! Tome um calmante e vá dormir. Amanhã, com mais calma, No dia seguinte, a minha vontade era permanecer por mais
conversaremos. Estou atordoada. tempo na cama, já que não ia trabalhar, mas nos primeiros raios
— Está atordoada, ou mais uma vez foge das situações de do sol, ao me lembrar de Augusta, pulo da cama como se estivesse
difícil solução? perdendo a hora. Visto-me rapidamente. Ainda meio zonza de
— Essa sua suposição não merece nem reposta; se você não sono, não parei nem para o desjejum, corri para o apartamento
respeita o meu cansaço, eu respeito o seu sofrimento... Deixei da minha amiga, estava preocupada e ansiosa para saber o que

realmente tinha acontecido. Ao encontrar a porta do aparta- aquela sensação... Um misto de surpresa, alegria, eu diria, eufo-
mento de Augusta entreaberta, fui entrando. Sentindo o aroma ria. O coração acelerado no peito. Tudo nele me hipnotiza.. Muita
do café, sigo até a cozinha. coisa pronunciada, nem ouvi! Ao despedir-se, prometeu voltar à
— Augusta, Augusta? noite, precisava ter certeza se estava tudo bem com a Marta.
—Aqui! Toda aquela preocupação... Nossa! Como foi gentil, encan-
— Bom dia! Você deixou a porta aberta desde ontem, ou tador... Essa maneira de ele ser me encantava.
hoje já saiu? Fiquei observando aquele homem afastar-se. Uma sensação
— Não! Da maneira que você bateu a porta ontem, pensei tão estranha e boa invadia a minha alma. Passei o resto do dia
que tinha trancado. ansiosa, na expectativa de revê-lo. Naquela noite, quando ele che-
— Um! Esse é aquele pãozinho que só você sabe fazer. gou, mais uma vez o meu coração disparou. Veja a situação, eu,
— Desculpe o meu ato intempestivo; além de estar muito que nunca acreditei em amor à primeira vista, sempre tive os pés
cansada, você há de convir, não esperava ouvir uma notícia tão no chão com os outros relacionamentos amorosos.
desconcertante. E aquele seu comentário idiota. À noite, ao voltar como prometeu, Marta dormia com o
efeito dos remédios. Percebi o quanto ele ficou decepcionado por
Sua aparência está bem pior! Pelo jeito você não dormiu. não encontrá-la acordada. Não levei a sério o interesse dele em
E vai tomar só esse café? Nada disso! Sente-se e deixe que eu saber sobre o estado de saúde de Marta, afinal foi por causa desse
prepare um completo café da manhã para nós. interesse que ele voltou. Esse seu jeito de ser, toda aquela consi-
— Eu não estou com fome... deração me encantava cada vez mais. Estava tão envolvida que
— Imagine, fala como se eu não a conhecesse, você pode acabei não percebendo que a intenção do Rui ia muito mais além
estar no fundo do poço, mas nunca deixa de ter um enorme ape- do que consideração e preocupação pela saúde da Marta.
tite. Desculpe, amiga, mas ontem estava sem condição alguma de Logo em seguida, mudou a sua expressão e foi logo pro-
poder lhe ajudar. Nem sei se vou conseguir também hoje, este é pondo: “Que tal pedirmos uma pizza?”
um assunto muito sério e delicado. Você tem que entender! Fui Eu, bem abobalhada e irreconhecível, olhava aquele homem
pega de surpresa! Pelo seu estado, vejo que é verdade esse seu interessante e atraente, e agradável. E a cor dos olhos... E aquela
sentimento pelo Rui. Você conseguiu pensar melhor a respeito? voz melodiosa entrava em meus ouvidos como um bálsamo.
Gostaria, de verdade, que tudo isso fosse apenas um sonho, mas Nossa! Concordava com tudo o que ele propunha! Conversamos,
vamos enfrentar a realidade juntas. Conte-me como tudo isso bebemos, rimos, dançamos... A certa altura, inesperadamente ele
aconteceu... Você nunca me falou nada! De repente essa novidade. me abraça e me beija. Ah! Não foi um beijo qualquer, foi uma
— Bem, você já sabe como conhecemos, eu e o Rui. entrega em fúria de duas almas carentes. Foi tão louco que nos
Mas o que ninguém sabe é o que aconteceu quando ele acom- beijamos novamente. Trago comigo ainda o calor de seus lábios.
panhou a Marta, pela primeira vez, do hospital até em casa. Ao Nos dias seguintes, em nossos encontros era comigo que ele
abrir a porta e me deparar com aquele belo homem de meia-idade, ficava, conversávamos sobre tudo, raramente se dirigia a Marta.
camiseta azul claro, sem mangas, todo bronzeado, senti uma emo- Hoje, dói saber que tudo não passou de uma artimanha
ção tão forte, por uns segundos não consegui balbuciar nenhuma para estar perto da sua amada.
palavra. A emoção era tão nova, cheguei a sentir uma pequena — Não é bem assim! Eu sinto que o Rui tem um grande
vertigem. Já tive vários casos afetivos, mas por nenhum deles senti apreço por você. Agora, eu já desconfiava da intenção dele em

relação a Marta. Tenho certeza de que, por estar de fora, percebi como é, só nós sabemos, agiu daquela maneira. Como não vi a
logo o interesse dele pela nossa amiga. Lembra-se daquele Jantar? cena, essa foi a conclusão que eu cheguei.
— Qual? Diante desse homem, o meu comportamento mudava,
—Aquela sexta-feira, quando fomos primeiro ao teatro, quando ambos não quiseram nos acompanhar ao teatro, nem
depois, por insistência sua em querer que eu viesse conhecer por um instante passou pela minha cabeça o interesse dele pela
o Rui, fomos ao encontro deles no restaurante. Você fez muita Marta. Justamente pela problemática Marta. Tudo o que eu lhe
questão de que eu a acompanhasse. No primeiro convite, em revelei sobre ela não significou nada. Deve ter pensado coisas
agosto, não pude ir. Insistiu muito, só que o Jaime veio de Porto horríveis a meu respeito. A mulher perfeita sempre foi ela. Deve
Alegre, como tinha prometido. No segundo convite, mesmo eu ter ficado muito animado quando sugeri que fosse buscar Marta
lhe dizendo que precisava acordar cedo, empenhou-se para que em sua casa.
eu fosse conhecê-lo de qualquer maneira. Lembra, foi naquele dia Na certa, aproveitaram o ensejo, conversaram bastante
do teatro, quando estávamos só nós duas, sentou-se ao seu lado sobre o envolvimento deles sem a nossa presença. Tinha me dito
um jovem esquisito, passou o tempo todo resmungando, batendo que ia sair tarde do escritório, por esse motivo, não ia dar para
o pé, deixou cair o encosto do braço da poltrona, lembra? A ati- nos acompanhar.
tude dele deixou você irritadíssima! Quanto à Marta, não insisti... Sabia tratar-se de um texto
— Ah! Já sei! Era um texto pesado de reflexão, pensávamos pesado, não era do agrado dela. Depois, você também ia.
o quanto o rapaz não estava gostando ou não estava entendendo; — Por mais que Marta tenha mudado, sei o quanto vocês
quando a peça acabou, ele foi o primeiro a ficar em pé e gritar duas ainda têm dificuldade em se relacionar. Sobre o seu comen-
“Bravo!” Rimos muito! tário daquele dia, tinha tanta certeza das minhas convicções...
— Isso mesmo! Lembro-me do quanto você ficou brava. — Que idiota! Estava tão enganada! Ficava tão realizada e
— Quem não ficaria? Sentar-se ao lado de uma pessoa feliz ao lado dele acabei não dando muita atenção para o que você
esquisita, que me incomodou o tempo todo e tirou a minha aten- me dizia. Estava cega!
ção da peça em vários momentos. Os dois já estavam comunicando-se! Marta nunca comen-
Agora me lembro daquela noite! Fomos ao encontro do Rui tou sobre as investidas do Rui. Só agora fiquei sabendo: Imagine
e Marta, que nos aguardavam no restaurante, onde jantamos. você, tudo começou no dia seguinte, quando veio nos convidar
— Exatamente! Você se afastou um momento, se não me para passar o dia com a sua família. Achei estranho quando ele a
engano para ir ao toalete. Foi quando eu vi. Ao tentar pegar na levou até a praia, na tentativa de convencê-la a aceitar o convite.
mão de Marta, ela se desvencilhou. Ambos disfarçaram. Marta Como não sabia de nada, nem por um instante desconfiei que ele
enrubesceu; Rui, meio sem graça, começou a falar comigo. Eu até tinha tentado lhe dar um beijo.
cheguei a comentar com você sobre a minha desconfiança, e você Depois, no resto do dia, toda a atenção dele foi para comigo.
me disse que eu estava enganada, lembra? E, por incrível que pareça, a Marta nunca comentou nada. Desde
—Sim! Agora me recordo tinha tanta certeza! Como já lhe que nós chegamos a São Paulo, ele sempre a procurou. Os dois
disse, ele sempre deu mais atenção a mim do que a ela quando combinaram não revelar nada para ninguém.
estávamos só nós três. Como podia desconfiar! Achei que ele Iracema até me falou o quanto o irmão era persuasivo,
pegou na mão dela para lhe dizer alguma coisa, e ela, complicada sempre conseguia o que queria! Desde criança, nunca aceitou ser
contrariado. Estava tão empolgada com a ideia de passar o dia

inteiro com ele, no momento, nem dei muita atenção. Depois, — Nem imagino!
pensa... Quando soube que ele não se permitia ser contrariado, — Respondeu friamente: Nada! Diante disso... Calei-me
logo cheguei à conclusão: Marta o estava contrariando. Estar para sempre e para todos os meus sentimentos. Despedimo-nos
perto dele era o que me importava naquele momento. formalmente, e foi por iniciativa dele que trocarmos os nossos
A única coisa que sei... O amor nos fragiliza, e sinto um contatos. Decepcionada, pensei comigo: nunca mais vou velo.
vazio corroendo a alma, uma dor infinita. Sinto uma dor no estô- Foram tantos outros, aqueles que trocamos o endereço, e fica por
mago só de pensar... Estou perdendo o meu amor e o meu melhor isso mesmo. “Empolgação do momento.” Sem esperança, volta-
amigo para a Marta. Esta, quando veio trazer o convite, pediu mos para São Paulo. A vida seguia a rotina de sempre.
desculpa por não ter me contado a verdade. A saudade vinha me sufocando, o seu silêncio era uma tor-
— O que você sente é paixão e não amor! A presença insis- tura e, pela primeira vez na minha vida, tomei a iniciativa de
tente dele, que estava lhe fazendo bem. procurar por um homem. Liguei para o seu escritório, mandou
Pensa Augusta depois de tanto tempo de sofrimento pra- dizer que estava ocupado. Quando finalmente consegui falar com
ticamente sozinha, conhecer alguém interessado nela. Acabou ele, respondeu-me, bem indiferente:
cedendo. — O dia em que eu puder e quiser fazer um programa com
Nós até comentamos que a mudança dela foi espantosa. vocês, eu as procuro. Lidiane, você me conhece, sabe que eu sem-
Agora sabemos o motivo. pre detestei tomar a iniciativa com os homens. Até agora eu não
E agora lhe pergunto: Qual foi o seu argumento por não ter sei como tive a coragem de ter tido a iniciativa de procurá-lo. E,
contado nada para ela? Se tivesse sido sincera, talvez não esti- como sempre, nas poucas vezes em que eu tive a iniciativa, dei-
vesse passando por essa situação. me mal. Então, achei melhor ficar onde sempre me coloco, como
— Eu sabia que ele não me queria, a sua amizade já me bastava. se diz; ele sempre foi muito bonito, charmoso, rico. Então, me
Então, eu resolvi não contar para ninguém o que eu sentia. calei diante de todos.
Foi só por isso! Preferi que todos achassem que éramos só ami- E assim foi... A iniciativa de nos procurar de novo foi dele.
gos. Só há poucos dias decidiu aceitar. Você precisava ver como Quando o revi novamente, tive a certeza definitiva de que amava
estava segura com aqueles convites nas mãos. muito aquele homem. Não era uma ilusão, como muitas vezes ten-
Chegou até de táxi! Já imaginou a nossa amiga medrosa tei me convencer. Por um tempo curto, estávamos sempre juntos.
andando sozinha de táxi? Os seus olhos brilhavam como a de Às vezes me tratava muito bem, em outras, era meio seco. O seu
uma criança que acabou de ganhar o brinquedo que tanto queria. comportamento me deixava insegura, estava sofrendo bastante, mas
— Eu acho ótimo! Augusta, não sei por que você está tão me contentava em ser sua amiga. Sempre achei que, no fundo, ele
revoltada, afinal você também não revelou o quanto estava gos- era apaixonando pela Amanda, a mãe do seu filho. Resolvi ficar na
tando desse homem. Fomos sempre confidentes, não consigo minha. Não queria que ninguém soubesse sobre aquela noite, os bei-
entender por que nada me disse. Não confia mais nesta sua amiga? jos... Os quais para ele não passaram de uma aventura.
— Não é nada disso! Quando as férias acabaram, diante do O quanto eu tinha sido idiota! Já que não era para ser... Já
comportamento do Rui... Antes de nos despedirmos, depois de devia tê-lo esquecido. Contentei-me com migalhas. Por nenhum
tudo que houve entre nós... Sua atitude me confundia cada vez homem que passou na minha vida senti algo tão forte. Agora, cai
mais. A coragem me invadiu e eu lhe perguntei o que tinha signi- como uma bomba a revelação da Marta. O pior foi descobrir o
ficado aquela noite. Sabe o que ele respondeu.? quanto ele me usou.

Imagine, veio ontem me convidar para ser sua madrinha! — Você sempre foi tão forte! Ainda penso que devia ser
Olhe o convite, deixou um para você também! Como posso ser a honesta com a Marta e lhe dizer a verdade. Pense bem! Depois
madrinha? de todos esses anos vivendo para ajudá-la, eu acho que seria mais
— Nada mais justo ter escolhido você! correto.
— Justo seria em outra ocasião, se o noivo fosse outro. — Por isso mesmo! Não vou estragar tudo, bem agora que
— Você está agindo sem raciocinar! Como ela podia imagi- ela conseguiu dar uma guinada em sua vida. Os outros não me
nar..., E se não desconfiou até agora! importa, sinto-me ridícula comigo mesma diante dessa situação,
— Não sei como Marta não percebeu a minha frustração culpo-me por ter perdido todo o meu bom senso. Agora, se eu
diante da sua revelação. disser para Marta, ela vai renunciar o Rui. Ela já demorou a acei-
— Mas você aceitou o convite? tar por ser mais velha; se eu contasse a verdade, ela renunciaria.
— De jeito nenhum! Sugeri que ela convidasse você... — Os fortes, de vez em quando, também desabam.
— Como você me envolveu nisso? Imagino como ela deve — Neste momento, sou como a borboleta, preciso voar para
estar desapontada. Não deve estar entendendo nada. longe e renascer de novo. Tenho certeza de que só com a distância
— E no meu desapontamento ninguém pensa! Fica difícil vou poder esquecer esse pesadelo.
fingir, sufocar todo o meu sentimento. Você, mais do que nin- Não! Aquela não era a minha amiga de tantos anos. Augusta
guém, sabe o quanto sou transparente? estava irreconhecível, pela primeira vez a via fugindo de uma
— Sim, eu lhe conheço? Este é o motivo de não estar te situação sem enfrentá-la. O enredo da sua vida sofrida sempre
reconhecendo. foi aliviado pelo seu temperamento alegre e determinado.
— Quanto ao fato de você ser a madrinha, espere o convite Não! Ela não merecia estar passando por essa situação. Mas
vir da parte dela, mesmo não sendo amigas chegadas, você sabe... quem somos nós para julgarmos o que está certo ou errado? Por
Não há mais ninguém! que a vida nega mais uma vez a felicidade plena para Augusta?
— Quanto a ser madrinha, tudo bem! Eu só acho que não Quando ela pensa que tudo vai dar certo, tudo volta para trás.
está sendo justa com a Marta. Ter como rival a sua querida Marta. Naquele instante, não
— Lidiane, não acredito que estou ouvindo isso! Sei o quanto conseguia concatenar bem as ideais e muito menos entender a
é difícil entender; aconteça o que acontecer, você sempre está de minha amiga. Aceitava o interesse do Rui pela mãe do seu filho,
bem com a vida. Não deu ainda para perceber o quanto eu estou mas não era capaz de aceitar o interesse dele pela Marta.
sofrendo? O quanto estou decepcionada? Ainda não consigo Amanda é uma pessoa incorporada na vida dele. Já a Marta...
digerir o que está acontecendo. Tudo não passou de um sonho. — Para mim, você está confundindo o que sente? Afinal, a
Pela primeira vez na vida, me sinto impotente, no momento, não Marta despertou novamente para a vida! Fico dividida entre vocês
tenho condição nenhuma de me relacionar com os dois, como se duas... Como sua amiga, acho que você não merece passar por isso...
nada estivesse acontecendo. Lidiane, está sendo muito difícil, eu já estou decidida vou
Não sei não! Penso que o Rui desconfia dos meus sentimen- me afastar de ambos. Perco neste momento também o amigo.
tos. Como encará-lo? — Tem certeza de que não é só entusiasmo? Você sempre
— Será? afirmou a sua opinião sobre o amor com tanta convicção. Amor é
— Desconfio! Tento de todas as maneiras esquecer. Não convivência, dizia de boca cheia. Afinal, só houve uma aventura
sou eu a buscar esse sentimento, é ele que me invade. com dois beijos. Uma noite, entre vocês... Está há algum tempo

sozinha, esse seu sintoma para mim é de uma pessoa carente, que o comportamento dela diante do irmão, e principalmente dos
disfarça sempre dizendo estar tudo bem. filhos. Ela está sempre em primeiro lugar. Se os que estão à sua
—Eu continuo tendo a mesma opinião sobre o amor! Tudo volta vão sofrer, não importa.
tem um propósito, esse é mais um mistério, ele mexe comigo, não Sei que você está me estranhando, eu sempre pensei pri-
sei por quê? Sinto-me como uma pessoa sem chão, sem persona- meiro na felicidade dos outros, mas neste caso... Não tenho con-
lidade; Você talvez tenha razão sobre a carência. É tão intenso, ao dição psicológica de participar da felicidade deles, agindo como
seu lado sou a pessoa mais feliz deste mundo. Como você sabe, se nada estivesse acontecendo. Cansei de ser sempre a boazinha,
nunca senti isso por ninguém. a perdedora em assuntos afetivos. Vou ficar sofrendo por quê?
A única coisa importante para mim neste momento é ter Não! Longe, vou esquecer bem mais rápido.
de volta a minha serenidade. Sei que você deve estar me estra- O meu maior objetivo foi alcançado, aparentemente parece
nhando! A vida não é uma linha reta, e sim feita de ondas. Tudo que finalmente esqueceu o Rogério, eu, sinceramente, duvido.
é energia; ora estamos do lado de cima, ora estamos do lado de Espero estar errada. Duvido também de que esse casamento dê
baixo. Estar por baixo é a minha situação atual. No momento, o certo. O Rui, conheço muito bem! Diferente de mim, sei que não
importante é eu me afastar. vai aguentá-la por muito tempo. Seja como for... Espero que eu
— E agora, o que você vai fazer? Não pode fugir dessa esteja errada e desejo de coração que eles sejam felizes. Há algum
realidade! tempo venho pensando seriamente na minha vida. O quanto eu
— Claro que posso! Já disse para Marta que não posso ser preciso de uma transformação radical. Finalmente aconteceu!
madrinha, pois eu vou viajar, vou ficar um longo tempo fora. Este acontecimento é o estímulo para a mudança. Chegou o
— Como vai viajar? Não era em janeiro? Quando você decidiu? momento! O empurrão foi dado. Daqui para frente vou pensar
— Ontem! só em mim, os meus interesses vão estar em primeiro lugar. Você
— Eu não acredito! Qual foi a reação dela? sabe! Passei uma existência querendo ser livre para poder viajar.
— Não gostou! Claro! Ontem, antes de procurar você, liguei E tem mais, vou morar por uns tempos na Europa.
para a agência e antecipei a viagem. — Não acredito! Morar fora do país? Você só pode estar
— Vai ter coragem de deixar a Marta na mão nesse momento brincando. É tão apegada a esta cidade, a sua casa. Não consigo
importante da vida dela? Não acredito! vê-la morando em outro lugar que não seja o seu apartamento.
— Lidiane, agora você acertou! O momento é importante Durante o café da manhã, tentei ainda fazê-la mudar de
para ela. Eu não tenho nada a ver com isso! Vai ser bem melhor ideia quanto ao projeto de ficar morando na Europa por um ano.
assim. Depois, graças ao Rui, já não vai mais precisar mais de Ao meu entender, naquele momento, não passava de uma lou-
mim. Antes de ir à praia, lembra, já tinha dito a ela que não espe- cura, uma atitude momentânea.
rasse mais nada da minha pessoa. Desde então, tem andado bem — Só com a minha ausência a Marta vai se dedicar ao seu
independente. Temos nos visto bem pouco, ainda mais depois novo casamento, transferir o apego da minha pessoa ao Rui.
que ela aceitou o pedido de casamento. Quando casou com o Argumento algum fez aquela mulher mudar o seu projeto.
Rogério, ficou anos sem nos dar notícias. Tenho notado a sua Estava tudo bem esquematizado em sua cabeça. Depois que a
mudança e como está bem. deixei, confesso que fiquei uns três dias angustiada com aquela
A Marta sempre foi uma pessoa mimada, emotiva em situação. Não sabia como ajudar. Gastei todos os meus argu-
seus dramas e muito egoísta. Sempre fez questão de ressaltar mentos. Realmente, eu nunca tinha visto Augusta tão revoltada

arrasada, agressiva, até comigo ela se portava de forma diferente Antes do casamento da Marta, foi rumo ao Egito. De lá, iria
da habitual. Todo ódio e mágoa guardados por tantos anos explo- à Grécia e, em seguida, iria fixar residência em Portugal.
diram naquela ocasião. Qualquer argumento sobre aquela situa-
ção ou qualquer sugestão só fazia a sua irritação aumentar. Um dia antes de partir, decidiu: não queria que ninguém a
Só mesmo o tempo para deter e amenizar o rumo acompanhasse até o aeroporto. Esteve em minha casa, na véspera
daquela história. da sua partida, na hora do jantar, oferecido a ela como despedida.
Aquela mulher que eu admirava pela sua segurança emo- Conversamos sobre vários assuntos, menos sobre o casamento de
cional sempre foi mais forte e compreensiva com os baques da Marta. Foi tudo muito rápido. Augusta ainda estava muito aba-
vida. Estava irreconhecível, completamente inconformada, dava lada, comeu muito pouco.
para perceber nitidamente o quanto estava com o seu amor-pró- Discutimos os últimos detalhes. Comprometi-me a entre-
prio ferido. Impotente, não tive nenhum argumento decisivo gar a chave para a faxineira vir limpar o apartamento de quinze
para intervir naquela loucura. Para mim, dava muito bem para em quinze dias.
realizar as suas viagens, voltar para casa e depois voltar a viajar. Deixou a incumbência também de vender o seu carro,
Dava muito bem para não ter contato com eles, já que a capital de movimentar a conta da aposentadoria, por dois meses através de
São Paulo é enorme. uma procuração. Confesso a minha admiração, sofrendo como
Tanto o casal como Augusta estariam vivenciando uma vida estava, ainda conseguiu resolver tudo em poucos dias. Ao chegar
nova. Mas nenhum dos argumentos que sugeri a convenceu. Eu em Portugal, ligaria informando qual era o número da conta e o
acabei concordando, tinha todo o direito de decidir a respeito do seu novo endereço.
seu futuro. Após trinta dias em Lisboa, entrou em contato, ficou preo-
Eu, mais do que ninguém, sabia que não se tratava de uma cupada por eu ainda não ter conseguido vender o carro. Com as
teimosia infantil. Custou-me entender, mas cheguei à conclusão do despesas gastas em mobiliar o novo apartamento, as suas reservas
quanto era verdadeiro o seu sentimento. Acabei me convencendo vinham rareando.
do quanto estava sofrendo de verdade, mas, ao mesmo tempo, eu De posse do número da conta para a qual eu devia enviar o
não conseguia entender como ela pode deixar a Marta, sozinha, dinheiro, não me conformava com a sua atitude de ter comprado
sem apoio, na véspera do seu casamento. Esgotados todos os meus um apartamento, logo imaginei que a sua pretensão era ficar mui-
argumentos, comecei a achar a sua decisão a mais certa, tanto para tos anos fora do país. Agilizei o envio dos pagamentos atrasados.
ela, como para todos os envolvidos. Mesmo me parecendo o con- A venda do carro demorou, mas, depois de alguns meses, logo
trário diante do fato, a minha intenção foi a mais correta possível, foi resolvida. Augusta ligou para agradecer. Nessa ocasião, tive
sabia que ia sentir muita saudade, apesar de acreditar no seu breve conhecimento... Na sua primeira noite em Lisboa, foi com umas
retorno. Não imaginava Augusta conseguindo ficar muito tempo turistas brasileiras a uma casa de show e dança, onde acabou
longe da sua casa. Sabia o quanto ela adorava o seu apartamento. conhecendo um rapaz que, por coincidência, estava hospedado
Assim, convencida ingenuamente, nem imaginava a sua precipita- no mesmo hotel. No dia seguinte, esteve com esse mesmo grupo
ção, em ter comprado um apartamento em Lisboa. no Mosteiro dos Jerônimo. Com o rapaz português, atravessou
Como nada podia ser feito, concordei com todos os seus a ponte, acompanhando-o a uma visita a uma indústria. Dele,
pedidos e recomendações enquanto estivesse ausente. Como pro- recebeu de presente um agulheiro. Esse mimo foi guardado para
meteu, viajou com o olhar cheio de esperança em esquecê-lo. sempre; levou muitos anos para usar as agulhas. Até os últimos

contatos nossos, ainda possuía o agulheiro, era em forma de uma
carteira cheia de botões, e tinha um dedal.
Eu, apreensiva, cheguei a lhe dar uma bronca por dar con-
fiança a um estranho. Rindo, responde:
— Não se preocupe, o encontro durou só uma noite e um O CASAMENTO
dia,; apesar de ser português, mora fora de Lisboa. Chegou a ligar
à noite depois do nosso passeio, insistiu. Como não me interes-
sava, não atendi! Rolei de tanto rir no chão do quarto do hotel
com a insistência. Logo cedo, saiu do hotel e nunca mais o vi.
Com todas essas mudanças em nossas vidas, cheguei à
conclusão de que, mesmo que convivamos com uma pessoa por
muito tempo, não a conhecemos de verdade. Aquela mulher tão
sorridente, era a que eu conhecia? A nova Augusta me assustava.
O
Os novos ares pareciam estar lhe fazendo bem! O seu com- casamento da Marta foi realizado no belíssimo jardim da man-
portamento seria verdadeiro? Saiu do Brasil tão arrasada. O que são. Fiquei encantada com aquela casa toda planejada pelo dono.
estaria escondendo dela mesma? Linda, funcional e de muito bom gosto! Ao conhecer o lugar,
A nossa personalidade pode ser transformada ao longo da cheguei à conclusão de que o noivo estava muito bem de vida –
existência, mas a nossa essência, não. Podemos modificar o nosso não chegava ser uma casa de milionário, mas estava bem perto. Fiquei
comportamento, externo, mas o nosso eu interior, para mim, era pensando... Qualquer mulher, só de morar naquele lugar, já deveria
difícil. Internamente nossa essência, fica escondida de nós mes- sentir-se feliz. Marta daria valor para esse detalhe? Eu acho que não.
mos, sempre reaparecendo em momentos de fortes contrariedades, Como não deu muito valor à bela festa que Iracema lhe
desequilibrando o nosso eu. Devo confessar... Depois do casamento, tinha proporcionado. Acabei aceitando ser a madrinha e levei o
vivendo em outro país, a nossa amizade deu uma esfriada. Jaime a tiracolo para ser o padrinho; não pude recusar o convite.
Marta não tinha mais ninguém, e o casamento estava próximo.
Jantamos dias antes com o casal, estava muito feliz pela
Marta. Esse acontecimento proporcionou para mim uma apro-
ximação mais íntima com o Jaime, quando não recusou vir de
Porto Alegre para ser padrinho. Os nossos destinos mostravam-
se cruzados para sempre.
Foi um casamento simples, mas de muito bom gosto! Marta
parecia ter saído de um conto de fadas. Apesar da sua maturi-
dade, depois de tanto sofrimento, não havia dúvida, sua aparên-
cia estava rejuvenescida, ainda era uma bela mulher. Ninguém
diria haver diferença de idade entre eles.
A recepção foi só para um pequeno grupo, de umas sessentas
pessoas. Foi tudo muito bem organizado pela irmã do Rui. Marta

casou-se com um vestido de renda creme, bem rústico, modelo bem — Não deixe esses fantasmas estragarem a sua festa, não
campestre. Em vez de véu ou chapéu, tinha um lenço na cabeça, gaste energia com quem não merece... Hoje, o dia é só seu! Não
imitando uma camponesa, do mesmo tecido do vestido. Estava real- dê chance para os inimigos. O mundo é dos fortes, erga a cabeça e
mente maravilhosa! Trazia nas mãos um buquê enorme de flores do aproveite a sua festa. Marta abraçou o Jaime, com ternura – Foi um
campo, traje apropriado para a hora e o lugar. Casar em um jardim abraço demorado. O abraço que sempre faltou na minha convivên-
dos sonhos como aquele... Os trajes coloridos das senhoras ajuda- cia com ela. Depois, aproveitou cada momento da sua festa. Não
vam a compor aquele belo quadro. Talvez, por ser eu a mais alta das parecia nem de longe aquela mulher morta em vida. Houve uma
solteironas, o buquê veio direto parar nas minhas mãos. pequena rusga entre mim e o Jaime pelo comentário que fez sobre a
Jaime aplaudiu, todo entusiasmado! Sussurrou em meu Augusta. Existem coisas inexplicáveis! O Jaime gostou do casal Rui
ouvido: “Você está me pedindo em casamento?” Rimos! Essa e Marta desde o primeiro dia em que se conheceram no almoço.
brincadeira me deixou emocionada e satisfeita por estar acom- Deixando bem clara a sua reprovação à atitude da Augusta, mesmo
panhada por aquele senhor. sem a conhecer pessoalmente, me disse:
O filho mais novo estava presente com sua família. Foi a — Essa sua amiga, pelo que você me diz, é bem madura,
oportunidade de Marta conhecer a neta... Emocionada, tirou até bem resolvida, não devia ter abandonado a Marta neste momento
foto com a criança. Todos elogiavam a beleza da menina, sem dei- tão importante.
xarem de comentar a semelhança com a avó. Até o seu irmão mais Eu preferi me isentar de qualquer comentário. Só eu sabia
velho, sem a família, deu uma passada por lá rapidamente. Tudo o quanto tinha sido difícil para Augusta ter tomado aquela deci-
correu em paz. Apesar de termos nos divertido bastante, fiquei são. Cheguei a comentar o verdadeiro motivo com o Jaime anos
muito intrigada quando a Iracema, a uma certa hora, aproximou- mais tarde. Por ocasião do casamento, dava razão para a noiva.
se, dizendo-me, em particular, não estar acreditando muito naquela Quando pedi que ele aceitasse ser o padrinho, aceitou de pronto.
união. Eu não quis esticar a conversa, e achei muito desagradável Não esperava que, depois de conhecer Marta, tomasse as dores
uma pessoa tão próxima torcer contra a felicidade do casal, princi- da mesma. Ah! Homens!
palmente do próprio irmão. Certa ocasião, um amigo da redação, estava dirigindo um
Rui era só alegria, toda a sua atenção era para com Marta, carro do trabalho. Ao ver uma mulher na calçada que lhe cha-
e ela, por sua vez, estava radiante, apesar de não ter perdoado a mou a atenção, ficou olhando até onde pode em vez de prestar a
Augusta. Confessou-me, antes da cerimônia, com os olhos lacri- atenção na direção, e acabou batendo no carro da frente. Além
mejando, que não conseguia aceitar a afronta da Augusta, não dos ferimentos, teve que arcar com todas as despesas.
conseguia entender sua atitude. Ah! Se ela soubesse a verdade!
Estava de fato muito chateada! Aquele momento devia ser só Houve momentos em que até cheguei a sentir um pouco de
de alegria, uma sombra pairava no ar. Marta demonstrou toda ciúmes, do Jaime. Principalmente quando ele, como padrinho,
a sua mágoa em seu desabafo. Eu, por outro lado, fiz cara de foi dançar a valsa com noiva, entregando-a em seguida ao Rui,
paisagem, quando questionada se sabia o real motivo daquela para continuarem a valsar. Cheguei a pensar que, se ela não esti-
ausência. Mais de uma vez, deixou escapar que nunca iria per- vesse se casando, o Jaime a pediria em casamento. Não é mesmo?,
doar a Augusta pela desfeita. comentei. Respondeu, brincando, que, se a tivesse conhecido
— Você deve relevar, há muito ela planejou essa viagem. antes de mim, cairia aos seus pés. Se não tivesse notado tratar-se
Jaime, comovido com o que ouvia, respondeu-lhe: de uma brincadeira, tê-lo-ia deixado sozinho na festa.

Finda a cerimônia, sabendo que Rosinha tinha viajado
para o Rio de Janeiro com uma turma de amigas, levei Jaime
para o meu apartamento. Tivemos a nossa primeira noite...
Confirmando a certeza de que aquele era o homem com quem
eu queria ficar até o fim da vida. Ausência da Augusta
A
ntes de viajar, despediu-se da Marta por telefone. Minha amiga
reforçava a sua decisão de viver por um ano em Portugal, entre
as suas viagens. Confessou também ter sido muito difícil não
participar da formatura dos seus alunos e passar as festas de
fim de ano longe da sua casa e dos seus amigos, mas que tinha com-
prado um telefone, o qual facilitou a sua vida, Nossas conversas pelo
telefone, quem diria?
Certa da confiança em minha pessoa, pediu novamente
sigilo absoluto sobre o seu paradeiro. Nem a Rosinha podia saber
onde ela estava. Quando conversávamos pelo telefone, quando
conversávamos não tocávamos no assunto. “Marta”. Os nossos
contatos foram raros, ela viajava muito. Ricardo e o vovô vieram
a falecer, num curto espaço de tempo entre um e outro. Quanto
ao meu avô, apesar da dor e da saudade, conformei-me bem mais
rápido, pela sua idade avançada. Já pelo Ricardo, sofri muito. Fui
chamada às pressas pelo Bernardo, estive em Boston três dias antes
do seu falecimento – Tempo suficiente para assistir aos seus últi-
mos momentos. Não arredei o pé do seu lado até o último suspiro.
Me agradeceu por estar ao seu lado, dizendo que me amava e que
nunca me esqueceu. Quem me deu força nesse momento foi minha
irmã, a qual eu só conhecia por fotos e, que de tão integrada nesse
país, parecia mais uma americana. Ajudou-me muito nos trâmi-
tes para enviar o corpo para o Brasil. O aconchego dela e da sua

família foi um alívio para a minha dor ao presenciar alguém tão do falecimento do vovô, trouxe a vovó para morar conosco. Eu passei
querido sofrendo e definhando na minha frente. Em todo aquele todo esse tempo escrevendo e cuidando dela. Ela viveu ainda um ano
longo período, revi cada momento que compartilhamos, passou e quatro meses, então também nos deixou. Na realidade, desde que
como um filme em minha mente. O nosso casamento, o nasci- Augusta foi viajar, a minha vida tem sido muito agitada. Foram tantos
mento dos filhos e tantos outros momentos bons. Bernardo era os acontecimentos, não tive tempo de sentir saudades. Na última vez
quem mais sofria, acusando-me o tempo todo de ser a responsável que falamos por telefone, para a minha surpresa, anunciou ainda não
pela doença do pai. O clima estava tenso entre nós, revidava as suas ter vontade de retornar ao Brasil. Ela sempre viajando e eu entretida
acusações cobrando por eles não terem me contado a verdade. Pai em publicar os meus livros. Mesmo assim, num desses raros contatos,
e filho eram muito apegados. Vendo o sofrimento do meu filho, combinamos que, antes de ela voltar, viajaríamos até a Turquia, deci-
logo lhe perdoei por toda a sua agressão e revolta, insisti que vol- diríamos a respeito um pouco mais para frente. Demorei muito para
tasse comigo para o Brasil. aceitar. Não tinha mais os meus avós ao meu lado.
Acabei voltando sozinha. Três meses depois, já estava casada. Deixaram realmente um grande vazio em minha vida, a sau-
dade era enorme. Eu sempre me pego pensando por que eu os amei
Jaime, brincando, dizia para família: “Toda essa precipitação mais do que os meus próprios pais. Devaneios sem respostas concre-
em casar logo foi por causa do episódio do buquê. Quando ela pegou tas, já que fui sempre amada por todos, sem distinção.
o buquê, na festa de casamento da Marta, me vi comprometido, tive
que aceitar o seu pedido de casamento. Naquele momento, eu queria
estar no lugar do noivo.”
No começo, ficava brava com essa sua brincadeira, depois,
deixei para lá. Jaime era assim mesmo... Um ser muito sério, fazendo
sempre valer a sua austeridade, com uma educação machista. Tinha
esses lampejos de humor.
Larguei o jornalismo e fui morar em Porto Alegre. Naquela
ocasião, o meu avô já andava muito doente, por esse motivo não tive
lua de mel, preferi ficar ao seu lado. Meses depois, veio a falecer. Foi
um ano de muitas perdas. Se eu não estivesse casada nessa época,
teria sofrido muito mais. Confesso que essa foi a pior época da
minha vida.
Se não fosse esse segundo casamento e todo o apoio recebido
do meu marido, não sei... Teria aguentado?
O casamento até agora tem sido tranquilo, diria “água com
açúcar”. Jaime é um bom homem, atencioso, faz todos os meus gos-
tos, mas é muito ocupado. Ao seu lado, sinto-me protegida, eu diria
realizada, nessa fase da minha vida.
. Essa união madura trouxe toda a comodidade e a segurança de
que eu precisava. Recebo apoio em todas as minhas decisões. Depois

meses, começou a me comparar com o seu primeiro marido: “O
Rogério era mais alegre, mais carinhoso e tinha mais tempo para
ela. Era bom de cama.” Isso é conversa para trocar com o seu
A VISITA DO RUI novo companheiro? Não consegue entender por que geralmente
chego às 20 horas em casa. Faz que não entende a diferença de
morar no interior e na capital. Reclama de tantas outras coisas,
não dá nem para comentar. E, por mais que eu me esforce em ter
um diálogo franco para ver se entra na sua cabeça o quanto eu
e o antigo marido somos pessoas diferentes, e essas diferenças
são a grande riqueza da vida, não adianta! A cada dia, percebo,
todo o meu esforço está sendo desperdiçado. Já não tenho mais
paciência. Aquela mulher doce e frágil transformou-se em uma
mulher distante, fria, chata. Não faz nenhum esforço para salvar
N
o começo do mês de maio, um ano e meio depois do meu o casamento.
casamento, recebi com surpresa, a visita do Rui. Comemorar a festa de um ano de casado foi ideia minha,
Estava sem a Marta... em mais uma tentativa de melhorar a situação. Em vão! Nada
Foi logo pedindo desculpa por estar ali sem avisar. adianta, tudo voltou a ser como antes! Ouvi a vida inteira que o
Anunciando de imediato a sua pretensão em voltar à tardinha casamento passa por fases e que o primeiro ano é o mais difícil.
para São Paulo ao perceber o meu constrangimento diante da Tentei então dar um incentivo para procurar uma ocupação que
visita inesperada. a fizesse esquecer os nossos problemas. Como você sabe, não
Precisava falar urgente comigo. tem família, se eu a deixar, não sei o que vai ser... Por isso vinha
O assunto não dava para ser tratado por telefone. Percebi tentando. Afinal, eu a persuadi a se casar comigo. Ouvi a minha
logo a sua desolação e, e a revelação, o casamento não ia nada vida inteira que o homem não deve viver só. Quando conheci a
bem. O intuito da sua visita era saber do paradeiro da Augusta... Marta, cheguei à conclusão de que já estava na hora de levar uma
Disfarcei, mudei de assunto. Até consegui mudar a conversa, que vida mais séria. Não queria mais viver solteiro.
transcorria tranquila, quando começou a desabafar mais deta- A nossa lua de mel em Angra dos Reis, depois em Parati,
lhadamente sobre o seu casamento com a Marta. Reclamou ser foi perfeita, voltei entusiasmado, certo da minha escolha. Aí,
ela uma pessoa muito ciumenta, ela não aprovava o seu relacio- veio a rotina. Percebi a sua não adequação à casa e ao casamento.
namento com a família, principalmente com o filho. Talvez tenha sido esse o motivo de eu ter demorado tanto em
Logo eu que vivo para o meu trabalho e as exigências da minha querer entrar nessa fria.
família. Chegou também a confessar sobre a vida íntima deles: — Está tão difícil assim? Vocês não são mais crianças! Não
— Marta é uma pessoa muito esquisita, muda de humor estarão realmente apenas vivendo as primeiras dificuldades? Eu
constantemente, está tudo bem, de repente, por qualquer motivo nem diria do casamento. Tem que pensar... Marta sempre foi uma
bobo, já fica chateada. Estou desiludido, muito cedo a nossa união pessoa difícil. Esteve casada durante vinte e nove anos, casou-se
vem mostrando um desgaste, como se estivéssemos casados há com o seu primeiro namorado. Em compensação, você nunca se
muitos anos. Diria... Um desastre total. Logo nos primeiros casou, penso que terão que chegar a um denominador comum.

— Você acha que eu não sei de tudo isso? Como já lhe Já, quanto ao Rui, realmente foi um ato precipitado ter
disse, eu tenho tentado levar esse casamento além das minhas casado tão rápido, sem conhecê-la direito. Era um homem
forças e paciência. Percebo não ser uma crise qualquer de um vivido, como pode ter se iludido a respeito?!
casamento em que há momentos de altos e baixos, com a Marta Hoje, me confessou que foi a sua beleza e fragilidade que o
só há momentos baixos. encantaram. Coisa de macho idiota! “Deixei-me enfeitiçar por sua
Se, para ela, relacionar-se com os seus filhos não é prio- formosura.”, dizia ele, isso ninguém pode negar, apesar da idade, é
ridade, para mim é muito importante! Eu não troco o amor e uma mulher muito atraente. “Achava que ia moldá-la por achá-la
o ótimo relacionamento que eu tenho com o João Paulo por frágil. Quando aceitou se casar comigo, era meiga, tímida, cari-
mulher nenhuma! Foi ilusão minha ter achado que Marta era nhosa. Parecia meio assustada. Por uma noite, confesso, até fiquei
uma mulher frágil e que eu saberia conduzi-la para o bem do meio balançado entre Marta e Augusta. Na minha opinião, foi a
nosso relacionamento. A sua fragilidade é falsa, ela não perdoa sua resistência em não querer se envolver comigo. Não ter aceitado
quem não satisfaz a sua vontade. Acha que todos nós viemos o meu pedido de casamento no princípio me fascinava. Tudo que
a este mundo para agradá-la. João Paulo não gosta dela. Eles é difícil sempre nos atrai, não é mesmo?” O Rui havia tido, até
apenas se aturam. aquele momento, muitas mulheres aos seus pés – mulheres fortes,
Diante dessa revelação, logo veio à minha mente as pala- modernas, das quais sempre se esquivava. Não conseguiu aceitar
vras da sua irmã, Iracema, e depois da própria Augusta, dizendo: ser desprezado pela Marta. Outra coisa que deve tê-lo atraído
“Ele não vai aguentar a Marta por muito tempo!” foram aqueles olhos azuis tão misteriosos. Cheguei a sentir uma
Cheguei também à conclusão, apesar da Marta não ter certa preocupação pela Marta diante da insistência dele em querer
esquecido o Rogério, o segundo casamento não preencheu a sua saber do paradeiro da Augusta. Eu disfarçava, mudava de assunto,
expectativa. Todas as experiências traumáticas que viveu não lhe tentando livrar-me logo daquela situação constrangedora. Fui
adiantaram de nada! Não passa de uma pessoa fora da realidade. negando-me a dizer a verdade... Resisti até o momento em que pro-
Apesar de eu ter a esperança da sua transformação, sempre tive nunciou o quanto sentia a sua falta. Augusta é uma mulher culta,
a certeza, trata-se realmente de uma pessoa infantil e egoísta. conversávamos sobre qualquer tema: política, arte, educação, etc.
Eu presenciei o quanto estava feliz pela ocasião do seu segundo Estava sempre de bom humor.
casamento, pela sua reação durante a festa em comemoração ao — Sinto muito, Rui, ela me pediu sigilo total sobre o seu
seu primeiro ano de casada, dava-nos a certeza de estar tudo paradeiro. Depois, tenho certeza... Você é a última pessoa que
bem! Depois, eu tenho certeza, não fazia parte da personalidade ela quer ver neste momento.
da Marta ser franca e demonstrar algo que não estava sentindo. — Eu já desconfiava. Você, com essa atitude, vem só me
Ao questioná-lo sobre isso, respondeu: confirmar o quanto nutria um forte sentimento pela minha pes-
— No começo, parecia estar tudo bem, tudo era novidade. soa, vai além de uma simples amizade. Se naquele momento eu
Já na festa de comemoração do primeiro ano, fui eu que a entu- tivesse prestado mais atenção nela, não teria feito a besteira que
siasmei a comemorar, tentando fazê-la se ocupar de alguma coisa eu fiz. Sei que nada justifica esse arrependimento. Tudo aconte-
Devia ter sido isso, um entusiasmo passageiro, talvez tivesse ceu como tinha que ser. Só que agora, não dá mais!
ainda certeza ou ilusão de poder esquecer o homem da sua vida, Diante dessa revelação, eu continuei calada, indecisa e
em companhia do Rui. Naquele momento, o mais importante incomodada com tanta insistência. Olhava sério para aquele
para mim era a sua atitude de estar tentando. homem. Apesar da intenção dele parecer sincera, eu não podia

trair a Augusta. Depois, um encontro entre eles só ia reativar o — Eu já pensei nisso. De qualquer maneira, eu já machuquei
sofrimento da minha amiga. as duas. Sem querer, por minha causa, elas se separaram. Marta, ao
— Eu disse a Marta que iria viajar. Estive há poucos dias na mesmo tempo em que deseja saber onde ela está, sempre diz que
casa de praia da Augusta. Está praticamente abandonada! Estive não pretende perdoar. No momento, eu só sei de uma coisa: estou
lá na esperança de encontrá-la. perdido, preciso encontrar a Augusta. Tenho certeza de que ao lado
— A única coisa que posso lhe dizer é que ela não está dela eu vou encontrar o meu rumo. Como a Marta, eu também sinto
morando no Brasil. Quanto à casa da praia... Antes de me casar, muito a falta dela. Sei que estou agindo egoisticamente, mas esta é
levei a faxineira dela até lá. Foi feita uma ótima faxina, mas agora, a verdade. Neste momento, eu preciso da Augusta. Só ela pode me
morando tão distante... Avisei a Augusta, perguntei se não era ajudar, preciso estar com ela, tenho que descobrir se a amo.
melhor pôr a casa à venda, já que não pretende voltar tão cedo. — Que brincadeira, Rui! Claro que você não a ama. Não con-
E eu, morando tão longe, ela não quis nem saber! funda as coisas. Está passando apenas por uma crise existencial.
O ano passado foi muito tumultuado, não tive nem tempo... — Você pode ter razão. Mas, entenda, não posso contar
Rosinha esteve em minha casa em janeiro, passando as férias, com a minha irmã, ela sempre foi contra o meu casamento com
levou o noivo para que eu o conhecesse. a Marta. Por favor, Lidiane, já esgotei todas as possibilidades de
— Estive em Mongaguá por uns quatro dias, na casa da encontrar Augusta.
minha irmã. De volta a São Paulo, procurei a Rosinha, através Não tenho certeza se estou agindo corretamente, afinal
dela fiquei sabendo... Só você sabe o paradeiro da nossa amiga. Augusta me pediu tanto sigilo sobre onde estava. Depois de
Lidiane, por favor, você disse que ela está morando fora do Brasil? quase dois anos, teria ela esquecido o Rui? Quem sabe, ao revê-
Eu preciso falar com ela! É muito importante! Tenho certeza... -lo, agiria friamente diante de mais uma ilusão? Em nossas pou-
Augusta não vai ficar brava com você. Eu sempre tive certeza, cas conversas pela internet, ela nunca mencionou ou perguntou
essa mudança radical dela foi por minha causa. sobre o casal.
Cada vez mais surpresa, nada lhe respondi. Aquela situa- Diante desse fato, respeitando o seu silêncio, nada lhe
ção estava me angustiando, era muita insistência. Não! Eu não revelava. O assunto preferido dela era falar sobre as suas viagens.
podia traí-la. Depois, ele mesmo confessou que queria encontrá- E eu sempre respeitei o acordo que fizemos, mas diante da insis-
-la para ter certeza dos seus sentimentos. tência... De repente, tive uma intuição, o que estava escondido
— Vamos fazer o seguinte: eu primeiro a consulto e depois, dentro de mim veio à tona. Talvez fosse bom para ambos esse
se ela concordar, eu passo o endereço por telefone. encontro.
— Não! Desse jeito, é claro que não vai concordar! Eu pre- Quem sabe Augusta já o tinha esquecido? Ou a distância
tendo surpreendê-la. Você estará fazendo um benefício a nós só teria aumentado o seu sentimento? Longe há dois anos, agi-
dois. Eu lhe garanto. Só se ela estiver casada... ria friamente, com pés firmes no chão. Tinha certeza que sim!
— Que eu saiba, não! Rui, você não imagina o quanto ela Ninguém a conhece como eu. Diante do olhar sofrido e pedinte
sofreu, agora você quer ir até ela por qual motivo? Quer que do Rui, acabei lhe entregando o endereço da amiga em
ela volte para ajudar a Marta. Não seja egoísta, deixe Augusta Portugal. Não durou nem uma hora a nossa conversa. Ao se reti-
em paz. Deve primeiro resolver definitivamente o seu problema rar, o remorso me atormentou por uns dias. Sabia que ela nunca
com a Marta antes de tentar procurar a Augusta. Não vá com mais ia me perdoar. Como não me perdoou o Jaime em defesa da
essa intenção, vai acabar machucando as duas com a sua atitude. Marta, acusando o Rui de irresponsável, não tinha nada de nos

envolver com os seus problemas. Agindo como dois adolescen-
tes, brigamos feio. Ficamos dias sem nos falar. Até aquele dia eu
nunca tinha visto o Jaime tão bravo. Sua forte autoridade nunca
foi dirigida a mim. Não era romântico como Ricardo, nunca
me presenteou com flores, mas me dá muito apoio e tem muito A VIAGEM
respeito pelo nosso relacionamento, assim como pela minha car-
reira, sem proibir os meus negócios literários.
Mas nunca perdoou a atitude do Rui.
Nunca foi aos meus lançamentos. Sabe como é... Tem que
ser sempre o rei, nunca o mordomo. Gosto do seu jeito discreto
e elegante de ser. Ao seu lado sempre me senti amparada. Tenho
um lar harmônico. A união da família é o que conta. Tenho cer-
teza de que, para nós dois, nessa altura da vida, o mais impor-
D
tante é a amizade e o respeito que temos um pelo outro. ois anos se passaram, e nada de Augusta voltar. Enorme era a
saudade! No começo de fevereiro do ano seguinte, Jaime mar-
cou uma viagem para a Europa, mais precisamente para Paris,
onde iria resolver assuntos de seus negócios. Tinha pretensão
de expandir os seus produtos para a Europa. Seria uma viagem de,
no máximo, dez dias. Convidou-me para irmos juntos, realizar a
nossa atrasada lua de mel. Na hora aceitei o convite. Toda animada,
impus-lhe uma condição: ficaria dois dias com ele na França e depois
iria com Augusta conhecer a Turquia, mais precisamente a cidade de
Istambul – expliquei-lhe ser um antigo sonho nosso. A princípio,
Jaime não gostou muito da ideia, fez uma cara de desaprovação! E a
nossa lua de mel? – Reclamou.
— Vamos passar na Grécia!
— Grécia? Não haverá tempo para isso!
— Você é dono do seu próprio negócio! Há muito está neces-
sitando de umas férias. Depois, tem os seus filhos, já está na hora de
confiar neles para conduzirem o comando da fábrica.
Vamos fazer o seguinte, vou com você até Paris, de lá sigo para
Istambul, dou-lhe sete dias para ir ao meu encontro. Da Turquia, segui-
remos para Creta, depois Atenas. Vamos precisar de uns vinte dias.
— Sim! Nós merecemos. Acabou concordando, sabia que, se
ficasse com ele em Paris, eu ficaria a maior parte do tempo sozi-
nha! Não era uma viagem turística, estaria a maioria do tempo

ocupado em reuniões de negócios. Empolgada com a possibilidade
de estar com Augusta e principalmente de viajarmos, liguei logo
para Portugal, mesmo não tendo certeza se ia encontrá-la. Ou se
ela estava zangada por eu ter dado o seu endereço para o Rui. Dei
sorte! Augusta aceitou de pronto a proposta. Nem tocou no nome ISTAMBUL
do seu antigo amor. O nosso entusiasmo era tanto... Até esqueci a
visita dele. Finalmente estaríamos juntas de novo, e isso era o que
mais importava.
As reservas das passagens e do hotel ficaram por conta da
Augusta, ela tinha mais disponibilidade e experiência com viagens.
Foi também sugestão dela acrescentar ao meu roteiro com o Jaime a
ilha de Santorine, dizendo ser o lugar ideal para uma lua de mel. Essa
parte da viagem eu acabei deixando ao encargo dele. Já tinha cedido
C
bastante às minhas vontades. Fiquei surpresa quando ligou dizendo heguei a Istambul no fim da tarde. Como Augusta tinha che-
que estava tudo certo, passaríamos dois dias na ilha sugerida pela gado mais cedo, aguardava-me no aeroporto, acenava com o
minha amiga. Finalmente estaríamos, pela primeira vez viajando seu sorriso contagiante. Revê-la causou-me uma forte emoção,
sozinhos depois de casados. corri para um longo abraço. E ela gritava, rodopiava! Quase me
Na realidade, nós dois estávamos precisando tirar umas sufocava com o seu abraço.
férias. Depois, viajar me daria mais combustível para os próximos — Meu Deus! Quem diria... Finalmente estamos juntas, pron-
romances. tas para realizar o nosso sonho.
Essa viagem me deixou bem animada, não via a hora de chegar Esses arroubos de entusiasmo não me agradavam muito,
o dia do embarque. Na verdade, eu conhecia quase todas as capitais mesmo me sentindo bem ao lado da minha irmãzinha, apesar de
do Brasil. Outros países, só nos Estados Unidos, estive umas oito achá-la eufórica demais. Naquele momento, tive a certeza de serem
vezes. Nos dias que antecederam a viagem, pesquisei bastante sobre muito fortes e recíprocos os nossos sentimentos. Havia uma alegria
a cidade de Istambul, e me senti como se lá já estivesse. infinita dentro do meu ser. Ao dirigirmos para o hotel, ela me infor-
No alvorecer do dia doze, finalmente embarcamos para Paris, mou que ficaríamos hospedadas no centro histórico Suthanahmet.
onde, como era esperado, passei dois dias praticamente sozinha, Nesse local, se encontrava a maioria dos pontos turísticos, e isso ia
conhecendo os pontos turísticos. Apesar do meu encantamento com nos facilitar, já que éramos turistas independentes e tínhamos pou-
aquela cidade, no terceiro dia, depois do almoço, mesmo contra- cos dias para conhecermos tantos locais maravilhosos. Notei que,
riando a vontade do Jaime: apesar de tanta euforia, minha amiga estava mais madura; apesar
— Sempre foi o meu sonho conhecer Istambul – argumentava. da sua aparência jovial, um pouco mais magra e muito mais falante
O meu marido tentou me persuadir a mudar de ideia, impondo do que o costume. Engano da minha primeira impressão. Nos dias
sua autoridade. Sem dar muita importância aos seus queixumes, não seguintes, quase não falava com tal entusiasmo e vagava com o seu
desisti, fui finalmente ao encontro de Augusta. olhar distante. Não perguntou nada sobre a Marta e o Rui. E muito
menos teve a curiosidade de saber como estava o casamento deles.
Até aí, tudo bem! Mas não querer saber como estava a Marta era

uma situação estranha a meu ver, por sempre ter estado ao seu lado hotel e tudo mais... Entre outras coisas, Augusta me revelou o quanto
ao longo da vida. O bem-estar da Marta sempre a preocupou. Esse tem sido importante ficar bem longe de tudo. O seu retiro tem lhe
seu desinteresse ao mesmo tempo me acalmou; bem mais aliviada, ajudado a voltar-se mais para o seu interior, num silêncio saudável.
decidi não revelar nada sobre a visita inesperada do Rui em minha Eu a olho sem acreditar muito.
casa em busca de notícias sobre o paradeiro dela. Havia momentos — Não adianta me olhar assim, com essa cara. Estou falando
em que eu sentia uma espécie de remorso por ter quebrado o jura- bastante sério. Todo esse entusiasmo pela alegria de reencontrá-la é
mento sobre a sua nova residência. Depois, eu dizia a mim mesma: passageiro, afinal estamos separadas por tanto tempo!
“O Rui não seria louco de deixar a sua mulher para vir cor- Não tenho amigos em Portugal. Quando viajo, quase não con-
rendo atrás da Augusta. Aquela atitude de ir até a minha casa, após verso. Tenho um relacionamento de turista, são poucas as pessoas com
a primeira crise com a Marta, simplesmente deve ter sido um ato quem eu troco e-mails. Fico sempre sozinha nos quartos de hotéis.
impulsivo, de um marinheiro de primeira viagem. Sim! Era isso! — Eu imagino! Detesta pessoas roncando ao seu lado. – Rimos.
Apesar de ser um homem maduro, casado pela primeira vez, era – Eu não sei como vão ser estes dias, nós duas no mesmo quarto.
inexperiente, não sabia direito como lidar com a questão. Enfim! — Vai ser ótimo, você vai ver, teremos tantas coisas para fazer,
Casamento é assim mesmo, cheio de altos e baixos. Passa por fases, tantos lugares para visitarmos, chegaremos tão cansadas dos nossos
de vez em quando, e pensamos ser o fim. Mas só é o fim da paixão. passeios, o sono logo virá!
Ambos devem estar ainda passando pela fase de adaptação, apesar — Não sei! Mesmo cansadas, já não somos mais jovens!
de ele dizer que não. Marta conheceu só um homem, complicada — Augusta, se você está assim tão equilibrada, não está na
como sempre foi. hora de parar de fugir e voltar para casa? Ao fechar sua expressão,
Ajuste e compreensão eram muito importantes para aqueles tive a confirmação: não estava na hora de relembrarmos o passado.
dois. Muita crise, na certa, ainda iria acontecer ao longo da jornada. Pelo seu silêncio, resolvi mudar de assunto, quando ela decide falar:
Ao pensar estar certa, tentava minimizar a minha culpa de ter — Viver é uma constante busca. Quando eu pensava que já
revelado o endereço para o Rui. sabia de tudo e que não tinha mais nada para aprender, percebo
Enquanto o carro cortava as ruas de Istambul em direção ao estar completamente enganada. Devo lhe confessar que, no pri-
hotel, eu ia apreciando o movimento daquela cidade, cujo país era meiro ano, foi bem difícil, como se diz: “Quem viaja para esque-
ao mesmo tempo oriental e ocidental. A minha amiga segurava a cer os problemas está enganado. Ao levarmos a nós mesmos e
minha mão, e, sentindo-a bem mais calma, também me acalmei. A as nossas mazelas fazendo parte das nossas bagagens, fica difícil
minha primeira impressão era de que aquela cidade nos recebia de deixar o passado.”
braços abertos. — O que eu percebo é que você está com uma aparência ótima!
Nossa primeira noite em Istambul foi para pôr a conversa — Isso é um fato, ando me sentindo muito bem! Muito mais
de dois anos em dia. Naquela noite, resolvemos jantar no hotel calma, a vida tem sido bem mais tranquila do que nos últimos anos
mesmo. Havia tanta ansiedade em contarmos uma para outra tudo no Brasil. Viajar acrescenta muita experiência e também é uma
o que nos acontecera... Muita coisa acabou escapando – é sempre riqueza na vida da gente, ando bem mais culta. Ri. Devo lhe con-
assim quando se tem muito a dizer em um espaço curto de tempo. fessar que ultimamente estou com muita saudade da minha casa,
Estaríamos uma semana juntas. Falamos tanto, a garganta começou inclusive da Marta.
a reclamar. Fomos dormir bem tarde. Antes do boa-noite, pergun- Fiz menção de falar alguma coisa referente à Marta, mas
tou-me se tínhamos recebido as passagens para a Grécia, o nome do Augusta se antecipou.

— Não me fale nada sobre eles! Não me interessa! Só sinto, de A jovem é casada e está morando com o pai, não quis deixá-lo
vez em quando. Ainda bem que estamos juntas, para amenizar um sozinho vivendo em uma casa tão imensa. Fiquei sabendo também
pouco esta saudade que sinto principalmente de você. que, nessa viagem à Espanha, o Ramón foi buscá-la de carro em
Em Lisboa, sinto-me vivendo em uma cidade dormitório é o um shopping. Ela o vê estacionado e, quando vai atravessar a rua,
meu porto seguro nos intervalos das viagens. um carro igualzinho para ao seu lado, e ela entra. Atrapalhada com
— Eu sei! Quantas vezes tentei falar com você, e não a encontrei. suas compras, só repara no erro, quando um senhor bem-humo-
Outro dia mesmo, estava comentando com o Jaime o quanto rado lhe pergunta:.
você tem uma vida movimentada, parece mais uma cigana. — Para onde vamos, senhora?
— Verdade! Estou sempre com a mala pronta para o próximo Diante do constrangimento, saiu rápido do carro, nem des-
roteiro. Livros, televisão e internet são os meus únicos companhei- culpa lhe pediu. Já o Ramón, pela primeira vez, dirigiu-se a ela de
ros quando estou em Lisboa. Viajando, eu os esqueço. Celular, só maneira grosseira.
para tirar fotos. Não tenho amigos, conheço as caixas do banco, do — Só convivendo para conhecermos realmente como as pes-
supermercado e a minha vizinha. Mas conheci muitas pessoas de soas são. Se eu não tinha vontade nenhuma de me envolver com
vários países que enriqueceram a minha jornada até esse momento. esse cidadão afetivamente, depois daquele dia, os meus sentimentos
Amizade e amor de viagem acabam quando elas terminam. esfriaram de vez. Mesmo assim continuamos bons amigos.
Ah! Quase ia esquecendo, tenho um amigo, sim! Só que mora Viajaram durante dez dias por Paris e seus arredores, tudo por
longe, na Espanha! Amanhã eu falo sobre ele, é uma história com- conta dele, que é dono de uma agência de turismo. Sendo aposen-
prida. Depois de tanto assunto, agora só quero dormir, amanhã tere- tado e viúvo, ultimamente, como Augusta, vive viajando. Deixou os
mos um dia longo pela frente! negócios nas mãos dos filhos.
Demorei um pouco para pegar no sono, apesar do cansaço, Tem estatura média e, segundo ela, é loiro, devia ter sido muito
pensando em tudo o que Augusta me disse; senti, com pesar, que bonito quando jovem, hoje é um homem barrigudo... (Risos).
esses dois anos não foram suficientes para ela esquecer o Rui. — Seria o homem certo para se envolver. Como somos pessoas
complicadas e descontentes, desejamos sempre o que está fora do
Bem cedo, como era de costume, já estava de pé. A pri- nosso alcance. Segundo ela, Ramon é um homem culto, alegre, está
meira impressão da cidade foi de estar vivendo o sonho de mil bem de vida. Se dão bem! Porém gosta dele como um bom amigo. É
e uma noites com Ali Babá e o Aladim. As ruas empoeiradas, um homem meio sistemático e não há química... Entendeu?
com gente caminhando depressa pelas calçadas eram um lindo — Se você está afirmando!
visual colorido, apagando o que havia de feio. Nesse primeiro — E tem outra coisa, tem sido a minha tábua de salvação.
dia, fomos conhecer a Mesquita Santa Sofia, logo em seguida, Estando a cada hora em um lugar, fica difícil fazer amigos. Os dois
almoçamos num restaurante próximo, “O Ko”Flecisi.” Durante amigos que fiz desde que estou afastada do Brasil, foram o Ramon e
o almoço, Augusta voltou ao assunto do seu amigo espanhol e a vizinha, com ela, sem grande intimidade.
contou-me como o conheceu. O pano de fundo dessa história — Hum! Quer dizer... Bem, com ele existe certa intimidade?
foi na Grécia, Desde então, os dois são bons amigos. Ramon — De certa forma, sim! Mas não como está pensando. Quando
passou um mês com Augusta em Portugal. Ela esteve também passou um mês em Portugal, ele ficou hospedado em um hotel perto
um mês em Madri, hospedada na casa dele. Pai de três filhos, de casa. Pensa que eu não tentei? Ah! Tentei! Fui pedida em casa-
dois homens e uma mulher. mento em Santorini, na Grécia. Não o levei muito a sério, pensei que

aquela atitude só foi possível por estar influenciado pelo romântico os acontecimentos, os bons e maus momentos, com a fidelidade de
casamento da sobrinha. quem os vivenciou. Foram experiências riquíssimas, confirmava.
Foi uma cerimônia dos sonhos de qualquer mulher. Ramón Garanto-lhe, dá para escrever um livro! Rindo... O título poderia
tinha ido até a Grécia justamente por causa desse acontecimento, ser: Experiências de uma Balzaquiana em Viagem. Ou A fuga da
incumbido de representar a sua família. A moça conheceu o marido Augusta! Também podia ser: Deixando o verdadeiro amor para trás.
grego na Espanha. O rapaz é de Atenas e, para não haver discórdia O que você Acha? Havia uma amargura em sua voz ao pronunciar o
entre as famílias, resolveram se casar em Santorine. Cerimônia para último título.
poucos convidados. Estava a família mais chegada da jovem, o tio e Sem responder, depois de ouvir falar tanto sobre o tal Ramón,
eu a tiracolo. Da parte do rapaz, a família, um pouco maior que a da aproveitei o ensejo e lhe perguntei se tinha esquecido o Rui, se a dis-
noiva, e dois amigos. A recepção foi ao ar livre, com aquela paisagem tância tinha lhe ajudado a colocar uma pedra nesse assunto. Percebi
deslumbrante... Aquele mar azulão. Nesse cenário maravilhoso, ao logo um constrangimento diante da pergunta.
som dos violinos, acabou me pedindo em casamento. Era tudo tão Depois de uma pausa e um olhar perdido, respondeu:
mágico nessa noite envolvente, que chegamos a vias de fato. Amiga, — Hoje consigo ver tudo com mais clareza. Mas isso não sig-
foi a pior experiência da minha vida! Hoje, somos apenas bons ami- nifica que eu o esqueci! Também não sou infeliz por isso. Apenas
gos e nada mais. Tivemos uma conversa séria e, para minha sur- aceito o fato! Espero de coração que a Marta esteja feliz e mudada.
presa, concordou com tudo, respeitou o meu momento, as minhas Mas não me interessa! Como já lhe disse ontem, não quero saber!
crises, e as dele também. Dentro da sua compreensão, chegou até a Aí eu pensei: Se ela soubesse como estava certa quando me
me comover com a sua atitude. Não que eu esteja sendo ingênua, disse “Quando o Rui defrontar com a Marta verdadeira... Não acre-
tenho certeza de que está apenas dando um tempo, tem esperança de dito nessa união! Espero estar errada.”
ainda me convencer. Enquanto isso, estamos conseguindo ser bons Mais uma vez, sobre a Marta a minha amiga não estava errada.
camaradas. A distância e a nossa idade fazem com que não nos pre- Acho que nem o Rogério conheceu tanto a Marta como a Augusta.
cipitemos em nada. Bem, para mim o importante foi ter confirmado: Até aquele
É isso aí, minha amiga, gosto muito da companhia dele. momento, o Rui não tinha se comunicado com ela. Aliviada, achei
Como amigo, é ótimo, mas casar é impossível! Se o sexo não fosse que foi melhor assim! Os dois já deviam ter acertado as suas desa-
primordial para os homens, dava até para pensar. A internet ajuda a venças. Diante da constatação, senti-me mais aliviada. Sem remor-
estarmos sempre em contato, eu diria até que diariamente. Quando sos, encerramos a conversa. Não falamos mais sobre esse assunto até
esteve em Lisboa, vinha todo dia almoçar em casa e ficava até o o fim da viagem.
jantar. Conversávamos muito. Fomos a duas casas de fados. Passei Ao término do almoço, fomos conhecer a Mesquita Azul.
uma semana com ele na cidade do Porto, ficamos hospedados na Em uma das nossas longas conversas, Augusta comunicou
casa de seus amigos. Foram todos ótimos, pessoas muito agradáveis. a sua intenção de voltar logo para o Brasil. Ia primeiro conhecer a
Essa experiência possibilitou me aprofundar na cultura da família cidade de Nova Iorque com o Ramón. A sua pretensão era também
portuguesa. As minhas viagens, deixo sempre a cargo dele, inclusive trazê-lo para conhecer o Brasil, principalmente a capital de São
essa aqui de Istambul. Foi ele quem providenciou tudo. Paulo. E continuou falando, nesse dia, eu só escutava, pouco falei.
Augusta reafirmou que adora essa sua nova vida independente, Estava mais interessada no tal Ramón. Continuei ouvindo.
sem compromisso com nada. Prometeu até escrever todas as suas Falou que, se quisesse conhecer as outras capitais do Brasil,
aventuras de viagem pelo mundo, contando detalhadamente todos teria que ir sozinho.

Estava cansada de tanto viajar, pretendia em breve jogar uma
âncora e novamente criar raízes na cidade de São Paulo. “Foi tudo
maravilhoso” – dizia ela, “uma aventura que só enriqueceu a minha
existência. Basta dessa vida agitada! Pretendia ficar só mais um ano
fora, já O FÃ TURCO
se passaram dois, no prazo de seis meses estou de volta, pode
apostar. Primeiro, conhecer Istambul, depois a cidade de Nova
Iorque – era o nosso sonho desde adolescentes, lembra quantos pla-
nos fizemos? Eu, principalmente, sempre dizia que um dia ia passar
a virada do ano em Nova Iorque. Por enquanto só você conseguiu
esse intento.”
Verdade. Foi um sonho realizado quando estive visitando o
Ricardo e o meu filho em Boston. Era obrigatório fazer uma pausa
E
em Nova Iorque. Não foi na virada do ano, mas valeu mesmo assim. u já estou acostumada a levar cantada de homens, mas nunca
Agora, era a vez da Augusta, e eu sabia: sem realizar esse projeto, um homem tinha investido dessa maneira sobre a minha pes-
não a teríamos de volta. Esses dois lugares eram um projeto que soa. Tudo aconteceu na segunda noite em Istambul.
pretendíamos fazer juntas, quando ainda jovens, o que, por várias Resolvemos que ficaríamos no hotel. O dia foi cheio,
circunstâncias, não foi possível. Estávamos felizes. Dessa vez, tudo estávamos cansadas e ainda tínhamos ainda muito o que conversar.
deu certo. Finalmente nós duas estávamos vendo o belo fim de tarde Logo depois do jantar, acomodamo-nos em uma sala confortável,
em Istambul. Cidade de lindas sinagogas, onde soam orações por pensávamos estar sós, quando um senhor aproximou-se, pegou em
todos os lados, dependendo da mudança do sol, repercutindo em meu queixo, exclamou!
todos nós. Outra coisa interessante era o trem no meio da rua, as — Que bela brasileira!
pessoas falando alto e a gente sem nada entender. — Que belo atrevido!
Eu e Augusta, juntas, desfrutando a história do mais alto vín- — Perdão! Perdão! Ao passar por mim, os seus olhos me fas-
culo do amor... A medusa enterrada de cabeça para baixo. cinaram. Tem um porte de rainha, ah! Tanta emoção diante de tanta
beleza provocou os meus instintos, fiquei fora do meu juízo, diante
Nos dias seguintes, por sorte minha, Augusta falava o mínimo da jovem senhora, perdoe-me!
necessário. Os comentários giravam em torno dos passeios que Não resistimos diante de tanta besteira, não contivemos o riso.
fazíamos. Ah! Chegou a me perguntar se eu estava feliz com o meu — Não riam, senhoritas, diante deste turco-brasileiro e sensível.
segundo casamento. Senhoras, por favor! Tudo bem, senhoras! Perdoe, perdoe, por
uns instantes sonhei em tê-la em meus braços, sorrindo, depois de
uma noite de amor...
— O senhor continua sendo inconveniente!
— O que significa ser inconveniente? Só nasci no Brasil, nunca
mais estive lá. Não domino a língua como vocês.
— O senhor é brasileiro?

— Por parte de mãe! — Lógico! Não era você o alvo das investidas. Depois, não pre-
Ignorando a minha atitude Augusta, insistia em ficar ouvindo cisa subir comigo, você pode ficar aí conversando com esse idiota.
aquele homem: “Rainha, vamos nós ver amanhã?”... Irritada com —Tudo bem! Não precisa ficar brava! Estamos em trânsito,
aquela presença abusada, quis me ver logo livre daquela situação... somos apenas turistas... Não leve as coisas tão a sério. Ah! Foi muito
Mas, diante da insistência da Augusta em puxar conversar com engraçado. Aposto que é casado.
aquele desconhecido... Osman era o seu nome, um comerciante — Não tenho nenhuma dúvida sobre isso!
nascido no Brasil, filho de um turco com uma brasileira. Arriscava — Logo que nos reencontramos reparei que você está mais
a sua comunicação entre o inglês e o português, e assim fomos nos séria do que sempre foi. A causa seria esse seu segundo casamento?
conhecendo. Morava numa cidade perto da capital. Sua mãe não se Apesar de ser a mais séria de nós três, você era bem mais leve, meio
adaptou aos costumes, voltou para o Brasil, deixando o pequeno aos sarcástica, mas havia uma alegria jovial. Quem a deixou assim?
cuidados do pai, como era costume. Foi praticamente criado pelos — Foi o Osman mesmo! Depois, não se esqueça, dentro de uns
avós e pelo pai, depois, pela segunda esposa dele, que lhe deu um dias o meu marido estará aqui! Assunto encerrado!
irmão que nem veio a conhecer. O menino, com poucos minutos — Desculpe!
de vida veio a falecer. Tem por essa mulher um amor de filho, até os Peguei um livro para ler antes de dormir.
dias de hoje. Acabamos dormindo estremecidas. Mal-estar quebrado logo
Era, sem dúvida um homem interesante, simpático, sua apa- cedo com o seu bom-dia.
rência revelava ser bem mais jovem que nós. Talvez fosse esse o Augusta me parecia estar realmente bem emocionalmente,
motivo de ser tão inconveniente nas suas investidas sobre a minha apesar de eu achar que às vezes exagerava em suas risadas.
pessoa. De seis palavras, duas eram para enaltecer a minha beleza. Nos outros dias, por sorte, não encontrei mais o turco Osman.
Augusta divertia-se com a situação, e saiu com esta: No quinto dia, ao chegarmos ao hotel depois de termos pas-
— Coitado do Jaime, não sabe de nada! sado um dia cheio de atividades...
— Quem é Jaime? Fomos ao Bósforo, atravessamos o estreito canal da Europa
— Meu pai! Não sei por que se fazia de rogado, se olhava o para a Ásia, deliciando-nos com as histórias de príncipes e faqui-
tempo todo para a minha aliança. res, como dos poderosos que tinham inúmeras mulheres, mas que
Augusta estava sem fôlego de tanto rir. Enquanto eu não achava moravam junto com as suas mães.
graça nenhuma. É muito bom ser surpreendida, ser ainda paquerada, Depois nos deliciarmos com as iguarias no restaurante à mar-
desejada, mas aquele homem tinha o dom de me irritar! Depois, eu já gem do Bório. Fomos também ao bazar de especiarias. Chegamos
conhecia bem a fama do homem turco em relação às turistas. bem mais exaustas.
Aquele homem era tão sem importância diante do seu Eu não via a hora de tomar um banho.
comportamento idiota! Decidi ir para o quarto; Augusta, bem Ao ver aquele homem na recepção, vindo na minha direção
contrariada, segue-me. com os braços abertos, dizendo: “Seni osledim”, saí correndo para o
— Liliane, o que você vai fazer no quarto tão cedo? elevador, estava com sorte, as portas logo se fecharam.
— Ler, conversar, ver TV. Qualquer coisa bem longe desse Augusta ficou para trás, subiu em seguida, entrando no quarto
tal Osman. morrendo de rir.
— Eu estava me divertindo, você sabe... Gosto de conhe- — Lidiane, sabe o que o Osman falava para você com os bra-
cer pessoas. ços abertos?

— Sinto a sua falta! Sinto a sua Falta! – Ri.
— Que absurdo!
— Você tem razão! Hoje, você fica brava, mas, daqui a uns
anos, quando se lembrar dessa cena, vai dar muita risada.
Confesso que, por aqueles poucos dias, eu já dava risada sozi- ÚLTIMO DIA NA TURQUIA
nha me lembrando daquele jovem senhor.
No dia seguinte, quando fomos tomar café, um funcionário do
hotel veio ao meu encontro e me entregou um buquê de flores. Ao
ler o cartão, constatei que era do Osman – tinha me enviado para se
despedir, com os seguintes dizeres: “Rainha, pode estar certa de que
vou levar a sua bela imagem comigo. Tenho a certeza, vai povoar
os meus sonhos eternamente. Quero que saiba: Só não insisti por
sermos ambos comprometidos. Estrela da manhã, o seu marido é
D
um homem de sorte.” Confesso que fiquei um pouco abalada, emo- epois de uma semana nos aventurando felizes por Istambul,
cionada mesmo. Havia um bem-estar, flores lindas e perfumadas... último dia na Turquia. Augusta sai de madrugada com
Tocava o meu ser. Aquele homem teria mesmo se impressionado um grupo de brasileiros, rumo a Capadócia, ia ver a cidade
com a minha pessoa? Mas, ao mesmo tempo, senti um alívio por em cima de um balão. Pernoitaria por lá e voltaria no dia
saber que não estaria por perto quando Jaime chegasse. seguinte pela manhã. Apesar de eu ser mais nova que a companheira
A vida vive nos surpreendendo. Este senhor se diverte com os de viagem, não tinha a sua disposição. Preferi ir fazer compras,
seus desejos imaginários. Deixa-se levar pela aventura de quem cai conhecer o Grande Bazar e a rua Augusta.
em sua rede. Na verdade, fazendo um balanço desta semana em companhia
da minha eterna amiga, diria que adorei estar ao lado dela, mas, no
quarto dia, comecei a sentir saudades do meu marido e da minha
casa. Notei também que a minha amiga disfarça bem, querendo
demonstrar estar ótima. Por mais que se esforce, não consegue enga-
nar uma pessoa que a conhece tão bem. Virou uma viajante com-
pulsiva para fugir de si mesma. Essa viagem a Capadócia não estava
em nossos planos. Mesmo sem a minha companhia, ela foi. Desde o
início reparei, nós duas não tínhamos mais as mesmas necessidades,
já não compartilhávamos da mesma cartilha.
As pessoas aqui são muito simpáticas, parece ser amigas,

porém dá para notar o interesse delas em negociar. Correm atrás da
gente, oferecendo-nos chá, convidando-nos a sentar nos lindos tape-
tes finos e decorados dentro das suas lojas. Enquanto degustamos o
delicioso chá, nos mostram os tecidos ou qualquer outro artigo que

têm para vender. Vez ou outra, as crianças aparecem correndo entre emoção, senti um arrepio, uma vontade de chorar, os olhos
os adultos, no meio das conversas, quase nos atropelando. acabaram enchendo-se de lágrimas. Alguma coisa me dizia, era um
Nesse último dia, senti uma falta enorme do Jaime; nostálgica, sensação esquisita, como se aquela fosse a última vez, nunca mais
percebi, pela primeira vez, o quanto o meu marido era importante estaríamos juntas, eu nunca mais a veria. E, no seu último aceno, os
na minha nova vida. Nessa noite, conheci, no hotel, uma brasileira, nossos olhares revelavam... Tivemos a mesma intuição. E, sem nada
estava com sua mãe, tinham chegado há dois dias. Como não via a dizermos, corremos para o nosso último e longo abraço. Deu alguns
hora de o dia amanhecer, fui com elas ver um show dos dervixes. passos, virou para trás e gritou com a voz embargada:
Fiquei encantada com os rodopios daqueles homens. — Se cuide, irmãzinha! Foi muito bom estar com você na
Eram quase nove horas do dia seguinte quando Jaime chegou viagem dos nossos sonhos! Mesmo que eu volte logo para o Brasil,
ao hotel. Eu o abracei tão forte, Jaime até estranhou. Como já disse, continuaremos separadas. É a vida! Haverá a distância! Mas vai estar
não eram do meu feitio demonstrações de carinho em público. sempre junto comigo, dentro do meu coração.
Saiu logo em seguida, ia pesquisar a possibilidade de trazer os seus Eu já sentia saudades. Augusta sumiu no meio das pessoas
negócios para Istambul. Poucas horas depois, Augusta chegou da rumo ao seu embarque. Eu continuei sentindo aquela sensação
Capadócia. Tomou um banho e, enquanto arrumava a sua mala, esquisita, por alguns momentos. A vida é assim mesmo! Sei que não
narrava como havia sido a sua experiência voando dentro de um deixaremos de ser amigas, apesar do silêncio e da distância. O amor
balão. Ao meio-dia descemos para acertar nossa estadia na portaria. é um movimento misterioso, onde o outro preenche as nossas neces-
Jaime já nos aguardava. sidades. Mas em geral é o objetivo da vida.
Ao serem apresentados, logo percebi a rejeição de ambos. Uma Dádiva de Deus!
Os dois apenas se suportaram durante aquele tenso almoço. Senti
que o ciúme rondava os dois. Esse momento só confirmou o
quanto a vida é feita de energias; desde o aperto de mão, uma
parede de gelo foi erguida entre eles. Eu fiquei dão desolada,
aquela situação me pareceu uma eternidade. A sensação que eu
tive: Augusta queria estar só comigo até o fim da viagem. Por
outro lado, Jaime sentia ciúmes, não teve tempo de matar a
saudade, Augusta era um empecilho. Apesar de saber que meu
marido não havia gostado da atitude da Augusta em relação à
Marta, sinceramente não esperava essa atitude. Tinha esperança
de que agissem mais educadamente. Aliviada fiquei quando o
almoço acabou. Nós três nos dirigimos ao aeroporto – íamos em
direções diferentes. O voo da Augusta ia sair uma hora antes do
nosso. Jaime despediu-se de Augusta secamente.
Em nossa despedida, Augusta cochichou no meu ouvido:
— Eu sou mais o Ricardo, mas infelizmente ele já não está entre
nós. Enfim, o problema é seu! Eu não tenho nada a ver com isso...
Adeus, amiga! Boa sorte! – Aquelas palavras continham tanta

— Desculpe... Não sei... Foi um impulso! Talvez pela sur-
presa. Estou há tanto tempo longe do meu país, ver de repente
uma pessoa conhecida... Desculpa! Jamais poderia imaginar
O INESPERADO vê-lo tão cedo, e aqui! Meu Deus!

Você, em Lisboa!
— Psiu! Está pedindo desculpa de novo? Eu não me des-
culpo por passar mais de dois anos longe de você.
— Pare com isso! Onde está a Marta, ela não veio?
— Estou reparando que o ar da Europa está lhe fazendo
muito bem. Você está com uma aparência ótima! Todo esse
tempo sem você. Ele a abraça, ouvem-se os corações acelerados.
Com ternura, lhe dá um beijo na testa e lhe diz:
— Estou tão contente em revê-la! Que felicidade! Foram várias
Q
uando Augusta desceu do táxi em frente ao prédio em que as vezes... Pensei nunca mais poder desfrutar da sua companhia.
morava, foi surpreendida por uma imagem. Por uns segun- Ainda muito envergonhada, com o coração aos saltos, repara
dos ficou parada, não estava acreditando, estaria vendo em como ele estava elegante dentro daquele terno cinza-chumbo,
uma miragem sonhando? Não! Não era possível Era real! com a camisa azul da cor dos seus olhos. Ela já tinha reparado o
O Rui estava a uns três metros a sua frente, sorrindo com aquele quanto ele gostava de se vestir de azul. Percebe também que os olhos
sorriso cativante. dele mostravam um rasgo de tristeza. Tentava disfarçar, mas dava
Ao se aproximarem, silêncio. Com o coração acelerado, para notar uma certa preocupação pairando em seu semblante.
Augusta, não podia acreditar, estava mesmo diante do seu amor, — Já faz longos dois anos longe de vocês, da minha casa. A
daquele homem responsável por toda a transformação em sua vida está sempre nos surpreendendo! Rui, o que você está fazendo
vida. Correspondeu ao seu sorriso e, num impulso, eles se em Portugal? Aconteceu alguma coisa com a Marta? Veio com
abraçam. Quando ela dá por si, estavam se beijando. Feliz, não você... Está aqui para participar de algum congresso? Não estou
pensa em nada, só em viver plenamente aquele momento real. acreditando! Parece que estou sonhando, custa-me acreditar!
Depois, a culpa, o silêncio! Os olhares se cruzam. O silêncio é — Calma! Chega de tantas perguntas! – Augusta toca no
quebrado pelos pedidos de desculpas. Encabulados, fitam um rosto do Rui.
ao outro e acabam beijando-se novamente. Augusta pede des- — É real, você está aqui na minha frente? Afinal o que
culpa novamente. está fazendo em Lisboa? Por que não me responde? Estou che-
— Minha querida! Por que estamos a nos pedir desculpa gando de viagem, cansada, acordei cedo, vim da Capadócia para
por esse momento tão sublime? Essa nossa atitude só reforça os Istambul e de Istambul para Portugal. A princípio, pensei estar
nossos desejos, escondidos até hoje dentro de nós. vendo uma miragem. Sorri...
Ah! Como queríamos que isto acontecesse de novo! — Estava com saudades desse sorriso.
Augusta nem ouvia o que ele lhe dizia. Quem visse aqueles Estive viajando pela Turquia, mais precisamente em
dois naquele momento teria a nítida impressão de tratar-se de Istambul, em companhia da Lidiane. Aproveitou a vinda do
um casal de enamorados que há muito tempo estão juntos. marido para a Europa. Veio a negócios, agora partiram para uma

viagem de lua de mel. Eu e Lidiane, realizamos um sonho antigo Por incrível que pareça, minha amiga não teve reação nenhuma
da juventude. – Eu sei! – Como soube da minha viagem? diante da revelação. Tinha certeza de que o casamento deles ia dar
— Pela vizinha, só não soube informar aonde você tinha ido. nisso. Na opinião dela, Marta era mulher de um único homem. Por
Rui imita a vizinha. uns poucos minutos lamentou pela amiga. Ao mesmo tempo, estava
—Disse-me ela: “A rapariga está sempre de viagem...” tão feliz e anestesiada com a surpresa daquele momento!. Tinha
Riram. Eu só não sabia que a Lidiane estava com você. acordado muito cedo, foram poucas horas de sono. Por incrível que
— De fato tenho viajado bastante, bem mais do que a minha pareça, a visita continuava a falar, Augusta só pensava em descansar,
expectativa inicial. Desta vez, a vizinha me viu saindo com a mala. pediu desculpa. Ia entrar no banheiro. Quando Rui a chama, pede
Não contendo a curiosidade, foi logo perguntando: “Está desculpa, vai dizendo não querer forçar a situação, em respeito ao
novamente indo viajar? A rapariga é quem sabe aproveitar a seu cansaço. Despede-se, mostrando a sua intenção de voltar cor-
vida! Vai demorar desta vez?” Diante da minha informação, rendo dentro de duas horas, contém a ansiedade e sorri.
ficou ciente do dia da minha volta. — Brincadeira, volto amanhã, para conversarmos.
— Graças a essa informação é que estou aqui, para recep- Foi embora, deixando Augusta embalada por um sensação
cioná-la. Estou aqui há três dias, vim à sua procura depois de ter de bem-estar, perguntando a si mesma se tudo aquilo era ver-
estado na Itália. dade. Enquanto a água escorre pelo seu corpo, pensa: “Foi um
Estou há horas a esperá-la na frente deste prédio. Estava sonho? Não! Foi real!” Uma realidade intrigante, brigou com a
quase desistindo... Se demorasse mais um pouco, afundaria esta Marta e veio atrás dela, dizendo, ao se despedir, que voltaria no
calçada de tanto andar de lá para cá! dia seguinte por volta do meio-dia, convidando-a para almoçar.
Surpresa e emocionada, ainda incrédula diante do seu Mais descansada e lúcida, sem a empolgação da surpresa, escla-
amor, Augusta sorri diante daquele homem causador de tanto recera todas as suas dúvidas. Como ele ficou sabendo onde ela
sofrimento. Estava esperando-a há três dias. Augusta friamente estava morando? Lidiane! Não! Ela não seria capaz, depois não
não demonstra estar abalada com aquelas palavras. comentou nada. Bem, fui eu que não quis saber nada sobre eles.
— Esperando por mim? O que está acontecendo.? E a Marta, Sorri ao lembrar a despedida, sem beijos, sem responder
está tudo bem com ela? Você está me deixando apreensiva! se aceitaria ir almoçar. Levou-o até a porta, sem pelos menos
Rui esquiva-se da pergunta. lhe dizer um até amanhã. Ao fechar a porta, gritou: “Eu te amo!
— Posso ajudá-la com a mala? Mala pequena e leve. Eu te amo!” Tão alto, deixando-se ser ouvida por quem estivesse
— Quanto menor a bagagem, maior é a espiritualidade. além das paredes. Já no banho, ouvindo só o barulho do água.
— Se você não se importar, posso subir com você? Em sua Intrigada, desperta para realidade achando haver algum inte-
casa conversaremos melhor. resse da parte dele
— Claro! Vamos subir! Ao se deitar, a imagem do reencontro não a deixava. Foi difí-
Já no apartamento, Augusta abre a cortina e a janela, cil descansar a mente e dar passagem para um sono tranquilo. Não
enquanto ele rapidamente coloca Augusta a par da situação acreditava na história de ter vindo a Portugal só para conversar.
sobre o casamento dele com a Marta... “Se o casamento não estava dando certo...O problema era
Mudando de assunto, fala que esteve uma semana na deles. Teria vindo para pedir o meu retorno ao Brasil? Está muito
Espanha e outra em Genova, na Itália, decidindo se deveria vir enganado, se pensa que vou largar tudo aqui para ir correndo socor-
ou não ao seu encontro. rê-la. Eles se casaram, desde então se tornou o único responsável

por sua amiga. Por que foi logo beijando-a? E eu, muito idiota, some de si. Incomoda-a a ideia de ser uma marionete nas mãos
retribuí. Bate em seu rosto. Mas sou uma idiota mesmo.” daquele homem. Começa a pensar na única solução – era aceitar se
Ainda não acreditando no que estava acontecendo... casar com o Ramon.
Cansada, depois de tantas emoções, logo adormece. Por mais alguns momentos, culpa-se pelos pensamentos
Ao acordar, já bem mais disposta e descansada, percebe confusos que a atormentam. Chega à seguinte conclusão: “seja
que acordou mais tarde que o costume. Antes de sair da cama, qual for o motivo da sua vinda, permaneceria tranquila diante
suspira em pensar que iria vê-lo de novo. Levanta sorrindo. E, da nova situação, não tinha culpa se a Marta não soube segurar
como é do seu costume, reverencia o dia de braços abertos. o seu novo companheiro.
— Bom dia! Bom dia! Mas, bom dia mesmo! Bem, afinal, foi o Rui quem teve a iniciativa de vir ao seu
Desta vez não é sonho. O homem amado, responsável por tanta encontro. Depois, não deve ter vindo por causa da Marta, se
reviravolta em sua vida, dentro de algumas horas estará adentrando não... Como teria a beijado daquela maneira?”
novamente pela porta do apartamento. Pelo menos por mais um Mesmo estando muito feliz, precisava tratá-lo com certa
dia, faria de conta não haver nenhuma esposa entre eles. Desfrutaria distância. Marta não merecia ser desrespeitada.
daquela companhia por mais umas horas. Toda a euforia foi se apa- E assim ficou Augusta, dividida, questionando-se, ansiosa,
gando ao pensar no quanto era idiota diante dele. Como não gostava até o meio-dia.
de sentir-se inferior.
“Pronto, foi só ele aparecer o passado retornou num sofri- A grande verdade é que, na realidade, até beijá-la nova-
mento de sempre? Volto a me desestabilizar. Bastou aparecer na mente, o Rui não estava certo dos seus sentimentos. Só quando
minha frente, pronto! Já saí beijando o homem como uma louca. a viu e a teve em seus braços novamente, reacendeu a certeza do
Depois de tanto tempo, continuo tendo uma reação infantil É, está quanto aquela mulher era importante para ele. Bem mais seguro,
na hora de voltar para casa. Não adiantou de nada esta fuga. estava certo da atitude a ser tomada. Ansioso, acabou indo mais
Mesmo que o casamento deles esteja em crise, continua cedo ao encontro da Augusta.
casado com a Marta. Meu Deus! Será que Marta entrou em surto Antes da hora marcada, a surpreende novamente, sorrindo
de novo? Teria sido esse o motivo de ter vindo? E assim ficou com uma caixa de Pastel de Belém, e com suas malas, fazendo o
pensando o que teria trazido aquele homem até Portugal.” coração de Augusta entristecer.
Essa história de que veio à sua procura só pode ser con- — Pretende voltar hoje para o Brasil?
versa fiada! — Não sei! Talvez sim... Talvez não!
“Tenho que me manter firme e distante dele. Dois anos — Espero que volte. Rui, o que veio fazer em Portugal?
separados, bastou aparecer na minha frente para eu perceber, o Quero saber toda a verdade sobre você e a Marta. Não estou
sacrifício não adiantou de nada.” gostando nada dessa história!
Bastou vê-lo para se render aos seus encantos. — Calma, Augusta, tire essa ruga do seu rosto. Vai depen-
“Ah! Que raiva! Esse fascínio doentio por esse homem tem der da nossa conversa depois do almoço. Reservei uma mesa no
que acabar!” Restaurante Alto do Século, que fica aqui perto, você conhece?
Sente-se, diante dele, tão fraca, desamparada. Esse encontro — Não!
serviu também para Augusta perceber, aquele homem sempre soube — Então, vamos ver se o aprovamos! Depois do almoço, tere-
do quanto ela o ama. Augusta acaba se transfigurando, toda alegria mos uma conversa séria... Podemos ir a pé, já que é aqui perto.

— Conversa séria? Nossa! Assim você me assusta. — Já lhe pedi desculpa pela minha atitude.
Chegou à conclusão de que veio por causa da Marta, quer — Sejamos sinceros um com o outro! Existe uma vontade
acabar o casamento e está querendo o seu apoio. muito forte, há entre nós umas labaredas de energia que nos impul-
Mesmo cada vez mais intrigada, Augusta o acompanha em sionam a querer estar um com o outro. Isso não é maravilhoso,
silêncio quando ambas as partes desejam a mesma coisa?! O nosso caso é
Rui, na frente do restaurante, sem muita cerimônia, fala- uma questão de pele. Não temos culpa desse fenômeno. É como um
lhe que veio à sua procura para decidir a pendência que havia ímã quando estamos perto um do outro. Se não estivéssemos no
entre os dois. meio de um restaurante, na certa estaríamos nos beijando.
Surpresa, Augusta responde não haver pendência nenhuma — Pare com isso, Rui! Você é um homem casado.
entre eles. — Tudo bem! Sou casado! Só que ontem ouvi a senhora
— Não me olhe como se o que eu estou lhe dizendo fosse gritar atrás da porta “eu te amo! eu te amo!”.
uma coisa do outro mundo, não se faça de desentendida; pensa — Estava falando no celular.
que eu não sei... — Celular, sei! Tudo bem! Não precisa ficar sem jeito!
— Sabe o quê? Olha, de repente está toda corada. Augusta faz menção de lhe
— Calma, vamos ver primeiro qual é a nossa mesa. responder, mas Rui se adianta. Ok! Sou um homem casado! Ou
— Você está me deixando cada vez mais apreensiva. melhor, estou em um casamento fracassado com a sua antiga e
Ao se acomodarem, Rui continua a conversa: – Você fugiu, grande amiga.
quando resolvi me casar com a Marta. Já me esqueceu? — Por que você está falando em antiga amiga? Nós duas
Minha amiga o fita sem nada responder. vamos ser amigas para sempre. Até comentei com Lidiane que
— Ou existe outra pessoa em sua vida? Não adianta negar! dentro de seis meses estarei de volta ao Brasil.
Ficar me olhando como se eu estivesse falando inverdades. — Duvido! Marta vive dizendo que nunca vai lhe per-
Quem ficou gritando para o prédio ouvir, quando nos despedi- doar. Lembra, você se recusou ser a madrinha e, para agravar a
mos ontem? situação, fugiu. Nunca mais deu notícias, deixando-a ressentida,
— Não tenho ninguém! Rui, você está me deixando ator- magoada. Sabe, descobri que, por trás daquela carinha doce, há
doada, não estou entendo nada. Só porque você e a Marta tive- uma mulher vingativa. Quando quis lhe contar que tinha des-
ram alguns desentendimentos, não tem direito de vir aqui me coberto onde você estava morando, percebi o quanto ainda a
perturbar. Foi a Lidiane quem lhe deu o meu endereço? Como minha querida Marta está magoada. Proibiu-me de falar o seu
você conseguiu me achar? nome. Inclusive de lhe dizer onde você está morando. Não tinha
— Isso agora não importa! Eu vim porque precisava ver percebido que, por trás daquela carinha linda, vive uma pessoa
você, estar certo dos nossos sentimentos. Os nossos beijos sem- tão rancorosa. Essa sua atitude de ter sumido naquela época só
pre foram a prova do nosso desejo e a confirmação de que há veio confirmar as minhas desconfianças... Você me amava!
uma ligação muito mais profunda entre nós do que o fato de — Nessa altura dos acontecimentos, nada disso tem impor-
sermos amigos. tância, se amo ou o amei. Por que você quer saber? Afinal, o que
— Temos uma ligação de amizade. Só isso! Desejos nada você quer de mim?
têm a ver com amor. Me torturar. Quanto à Marta, é só eu mandar um cartão
— Então é só por desejo que você se entrega aos meus beijos? para selarmos a paz entre nós.

— Duvido! – Rui, o tempo está passando e você nada — Não há homem nenhum em minha vida. A cidade de
esclarece. Lisboa é o lugar que escolhi para viver. Pela facilidade da língua,
Eu não vou trair a Marta! Vocês estão apenas passando pela segurança, e o principal para mim: a vida aqui tem um custo
por uma crise. Preste atenção: Amor não é uma coisa tão banal baixo, uma vez que o apartamento é meu! É o lugar onde descanso
assim. Podemos ter atração por uma pessoa, mas, sem conhe- nos intervalos das minhas viagens. Não fiz amigos! Quando estou
cer bem ou sem convivência, não dá para avaliar se é amor. O em Lisboa, às vezes dou umas caminhadas pela Praça Príncipe
nome disso é paixão! Veja o meu caso, eu me apaixonei por você, Real, ou vou fazer compra no mercado da Ribeira, vou para com-
tivemos um encontro superficial, uma aventura de uma noite. prar bacalhau. Sempre foi um dos meus pratos favoritos, não canso
Pensei que éramos amigos! Depois, veio a frustração, a mágoa. de me fartar dessa iguaria. Quando preciso de alguma coisa de uso
Você me usou para estar perto da Marta. Agora nada disso tem pessoal, como roupas, sapatos, tenho as lojas dos países que estou
importância. Estou muito bem sozinha, vivendo longe de vocês. conhecendo. A cidade de Lisboa, vejo da janela do táxi quando
Querendo ou não você ainda é um homem casado. Teve sauda- vou para o aeroporto. Já estive em Algarves e na Cidade do Porto.
des da sua amiga? Veio tirar dúvidas? Que dúvidas são essas? Aqui em Lisboa conheço também o mosteiro São Jerônimo como
Entre nós dois só houve dois beijos... turista. Quando eu decidir voltar para o Brasil, aí vou conhecer os
— Dois não! Agora já são quatro. E que beijos! outros pontos turísticos desta cidade.
— Não brinque com isso! Estou falando sério com você. No fim da refeição, decidem voltar novamente caminhando
Estava quieta no meu canto; afinal, o que você quer de mim? até o apartamento.
— Quero você! Precisava revê-la, estar assim junto de novo.
Rui a olha com carinho. Há meses estou seguindo pela vida — Augusta, por que você continua enganando a você
sem rumo, totalmente perdido, com os sentimentos confusos. mesma?
Confesso a minha ingenuidade naquela época. Iludido, pensava Eu sinto o quanto me ama. Mulher nenhuma se entrega a
ser amor o meu sentimento por Marta. Hoje, tenho certeza do um homem como você faz quando estamos juntos. Se não existe
meu engano. Lembra quando me dizia que temos que conviver um sentimento forte, o que é isso então?
para ter certeza sobre os nossos sentimentos? Bastaram alguns — Tudo bem! É a verdade que você quer?... Eu não sei se
meses para eu ter certeza da besteira que eu fiz. Tentei dar um é amor, atração ou só paixão. O que eu sei... Você mexe comigo.
jeito, mas não foi possível! Demorei tantos anos fugindo de Há tempo tento esquecer
mulheres, sem me comprometer. Acabei caindo nos encantos da Conheci uma pessoa, mas de nada adiantou.
beleza de Marta, sua falsa fragilidade e meiguice, achando que a — Uma pessoa! Então eu tinha razão. Existe uma pessoa?
mesma precisava ser amparada. Está namorando, é sério, vivem juntos?
— Marta precisa sim ser amparada! — Claro que não!! Somos apenas bons amigos. Chegou a me
— Calma, mulher, não precisa ficar brava! Vamos almoçar pedir em casamento, não desiste! Da minha parte não existe um
tranquilos. Vamos brindar o nosso encontro. Ao sairmos daqui, sentimento sincero o suficiente para juntar as escovas de dente.
prometo esclarecer tudo. Aqui não é o lugar ideal para termos Lembra-se do que você me dizia quando o assunto era a Amanda?
esse tipo conversa. O que você achou do restaurante? Você também não quis ficar com ela por não haver afinidade sufi-
— Aparentemente parece bom! Você soube escolher. ciente, é mais ou menos isso. A mesma coisa ocorre entre mim e o
— Confesse, você já esteve aqui com algum português. Ramon. Não o amo o suficiente para dar um passo tão sério.

— Ramon! Mora aqui em Lisboa? fragilidade, a simplicidade e a beleza da Marta. Talvez se você
— Na Espanha! Ele tem uma agência de turismo, isso tem tivesse me confessado que me amava, teria saído diferente.
me facilitado viajar bastante sem muitos gastos, fui com ele a Tenha dó, Rui, você sempre deixou bem claro, que o que houve
vários lugares. É um bom amigo! Na maioria das vezes não pode entre nós, foi apenas uma aventura. Sem grande importância.
ir para atender a sua vida particular. Mesmo assim, eu viajo sem- Naquela época, confesso, tive medo de você, da sua inteli-
pre pela sua agência. Saio sempre de Portugal sozinha, indo ao gência, sempre decidida, senhora de si; tenho certeza, essa foi uma
encontro da excursão, seja em que hotéis estiverem. O meu amigo das causas de eu ter me afastado. Você me lembrava a Amanda.
me facilita a minha vida turística desde que nos conhecemos. Já com a Marta, o meu lado machista falou mais alto, teria uma
Rui não gostou nem um pouco de saber que havia outro na mulher frágil e linda, sob o meu comando, que adorava sexo.
vida da Augusta. Seguem em silêncio, sentem apenas a respiração Tivemos momentos quentes antes de nos casarmos. Você mais
um do outro. Ao chegarem ao apartamento, eles ainda permanecem do que ninguém sabe o quanto sempre fugi de mulheres fortes,
em silêncio, sentados no sofá da sala. Augusta é a primeira falar: independentes. Nós, homens, damos muito valor às aparências,
— O que você tinha de tão importante para me dizer? acabamos caindo em armadilhas pela nossa infantilidade. Não
— Esse tal de Ramon é só seu amigo mesmo? posso negar, a beleza deslumbrante da sua amiga me deixou fas-
Augusta cai na gargalhada. Rui a interrompe beijando-a e cinado, ainda mais pelo seu jeitinho inseguro e por aquele olhar
a leva para o quarto. Diante da entrega de Augusta, ele não tem misterioso.. Fugi a vida inteira de um compromisso mais sério,
mais dúvida. Acaba lhe propondo ficarem juntos, por uns dias. acabei caindo nesse engodo. Compreendo o seu ressentimento.
— De jeito nenhum! E a Marta como fica? Não vou ser eu o A atração por Marta era bem mais forte, mesmo sendo ela
pivô da discórdia entre vocês. – Eu já lhe expliquei: Eu e a Marta uma mulher mais velha. Naquele momento, o nosso envolvi-
estamos separados. Só falta oficializar. mento não passou de uma aventura, uma aventura inesquecível,
— Agora é tarde! Você me usou, me enganou. Me usou desculpe, mas só isso! Agora desconfiei...
para eu ser intermediária para poder estar perto da Marta, isso E, por mais que eu tenha adorado aquela noite, eu nunca
eu nunca vou lhe perdoar. esqueci os nossos beijos, preferi responder grosseiramente, por
— Augusta, minha querida, você me deixa louco, quando uma simples razão:
está brava. Quem pôs essas ideias destorcidas na sua cabeça? não queria iludi-la por mais tempo. Como também
— Eu mesma! Sempre fui enganada. Quando a Marta apa- naquele momento não queria que nada e ninguém interferisse
receu com o convite de casamento, não quis acreditar... em meus planos para com a Marta. Éramos todos bons amigos, e
— Pois eu lhe digo, você esteve sempre errada. Por quem a senhora disfarçou muito bem os seus sentimentos. A mim não
me tomas? Estive várias vezes sozinho com a Marta, levei-a várias conseguiu enganar, também com aqueles olhares apaixonados a
vezes para almoçar, fui várias vezes à casa dela, nunca precisei mim dirigidos.
de você para intermediar. E tem outra coisa, quando a convidava
para jantar, ou ir ao teatro, você é quem levava a Marta. Sabia — Mentira! Mentira! Eu não disfarçava! Apenas me con-
da aversão que ela sempre teve pelos nossos passeios e eventos tentava com a sua amizade.
culturais, mesmo assim insistia para que ela fosse. Disfarçava para os outros. Para mim não? Quando decidiu
Peço desculpa por ter agido como um idiota a nosso res- fugir do meu casamento com a Marta, tive certeza daquilo que
peito. Não sei bem o que aconteceu, fiquei entusiasmado com a eu já suspeitava há tempo.

— Tudo bem, Rui, isso tudo já passou... E se você veio desprezo. Tenho certeza! Naquele momento, a minha atitude foi
aqui para confirmar o de que você suspeitava, pode voltar a mais correta, depois ela tinha você, não precisava mais de mim.
para o Brasil, para a sua vida, uma vez que já preencheu a sua — Está enganada! Marta ainda sofre com a sua ausência.
curiosidade. Eu o amava! Mas, dois anos depois, posso lhe Garanto que se você estivesse do lado dela Não teria se decepcio-
dizer: acabou! nado tanto com o casamento. E na verdade eu também. Ele a beija.
— Será? Quem foi que retribuiu os meus beijos ontem, não — Que bobagem você está falando, cansei de ser bengala
foi você? – Ria. – Desculpe! Pensei que era você. Tem outra moça para as pessoas.
parecida com a senhora morando aqui neste prédio? Já imaginou se ela souber que veio à minha procura? Ela já
E agora há pouco, foi essa mulher ou você que se entregou devia estar acostumada, não vou mais ampará-la em suas obsessões;
totalmente a mim? – Augusta ri. se fosse feliz com você, não se lembraria da minha existência.
Sempre fui livre, tinha dezesseis anos quando perdi a virgin- — Será? Quanto a nossa separação definitiva, tudo bem!
dade Ok! Não suportei a ideia de vê-lo casado com a Marta. Você Agora sobre mim e você, terá que se conformar.
me atrai! Há muito tempo deixei de ser pura. O que aconteceu aqui — Por favor, não é assim que as coisas funcionam. Não
foi só a curiosidade em saber se eu tinha perdido uma grande coisa. existe eu e você.
— Fui aprovado? Augusta, pare de se enganar! — Ô, mulher brava! Ponha uma coisa na sua cabeça, eu e
— Nessa altura das nossas vidas nada importa, fez a sua Marta, não há mais a menor chance. Não sou uma pessoa irres-
escolha! Se de fato os dois, de comum acordo, resolveram termi- ponsável nem estou aqui para iludi-la, só estou pedindo uma
nar o casamento... Espero que você não a desampare. Sabe muito chance para nós dois. Pode ser ilusão, ou volúpia, saudades da
bem que os filhos venderam a casa em que ela morava. amiga. Não pretendo enganá-la! O que eu realmente quero saber
— Eu já lhe disse que não vou desampará-la. Augusta, por é sobre a minha proposta de ficarmos juntos. Se concordar, gos-
quem me tomas? Estamos longe um do outro há mais de vinte taria de ficar, passar uns dias com você! Poderíamos nos conhe-
dias, resolvemos dar um tempo. E todo esse período,podia estar cer melhor, sermos mais íntimos e, juntos, conhecer os pontos
lá, desfrutando da minha casa. turísticos de Lisboa. Que tal? Depois decidiremos se somos real-
Você fica me cobrando, mas não imagina o quanto a sua mente importantes um para o outro.
amiga sofreu com a sua indiferença ao recusar o convite para ser Se o que sentimos é verdadeiro. Se não for só uma atração
a madrinha, e ter sumido. Só eu sei... física, ficaremos juntos para sempre.
— Eu também sei! A Lidiane me contou. Aliás, foi ela quem Se descobrimos que tudo não passa de ilusão, você vai se
deu o meu paradeiro para você? livrar de mim para sempre. Isso não vai ser bom? Eu errei com a
— Sim! Não fique brava com sua amiga, eu insisti muito. Marta, não quero errar com você. Já não somos crianças, vamos
Depois de dois anos, ela achou que você deveria estar envolvida tentar ser felizes.?
com outra pessoa. Augusta não estava entendendo nada, não queria acreditar,
— A realidade é que você e a Marta estão casados! depois de tudo que passou, aquele homem, razão do seu sofri-
Está muito preocupada com a Marta, mas ela não quer mento nos últimos tempos, estava pedindo para entrar em sua
mais saber de você. A nossa separação foi de comum acordo. vida, quem sabe definitivamente!
— Essa é a Marta! Só pensa nela. Mesmo assim, por ela Naquele exato momento, fugia-lhe a compreensão, era
tenho muito carinho e quero só o seu bem! Não importa o seu tudo tão maravilhoso! A sensação de estar flutuando era mais

forte. Esquecer os bons princípios, concordar com ele e ser feliz. Havia muita ternura, cumplicidade no relacionamento
Acaba nada lhe respondendo. deles. Resolvem em comum acordo. Que houvesse o que hou-
— Diga alguma coisa, Augusta? vesse, iriam ficar juntos. Rui transbordava de felicidade, já
— Posso responder amanhã? E se não der certo? Eu vou Augusta não conseguia ser feliz plenamente – havia uma rusga
continuar lhe querendo e você, não. Quem vai sofrer sou eu. Não de precaução. Por mais que não quisesse, havia a sombra da
acha que está sendo egoísta? Marta em seu caminho.. O peso da consciência não permitia um
— Não! Se não tentarmos, nunca vamos saber. A vida está respirar mais leve.
nos dando uma segunda chance. Rui já estava há tempo longe, sem dar uma notícia para os
— Não sei! Não sei! Tenho que pensar... parentes, não tomava uma decisão concreta a respeito da separação.
Rui a beija, impedindo que continuasse a conversa. Foi realmente uma atitude precipitada. Essa situação dei-
Novamente há uma louca entrega. xava Augusta muito desconfortável. Só que, quando percebeu e
— Bem! Então posso ficar até amanhã? Para saber a sua concordou com seu amado, não dava mais para viverem sepa-
decisão. Durmo no sofá da sala, já fechei a conta do hotel. rados. Rui entrou em contato com Amanda e, sem dizer onde
— Tudo bem! Nessa altura dos acontecimentos, não tem estava, pediu à mãe do seu filho continuar assumindo a dire-
cabimento você dormir no sofá. – Augusta ri. – Estou confusa, ção do escritório de arquitetura. Augusta, por sua vez, tentou
confusa! Só isso! Preciso acostumar com a ideia, de repente a persuadir o seu companheiro por várias vezes a voltar para São
minha vida vira de pernas para o ar. Paulo, esclarecer a verdade para todos.
Impactada pelo inesperado, tentou de todas as maneiras Sem muito entusiasmo, ele concordava, mas os dias passa-
comportar-se naturalmente diante do Rui. Mas foi provocada o vam e nada de tomar uma atitude definitiva.
tempo todo, como da segunda vez, quando a agarrou inespera- Plena era a felicidade do casal, levando o Rui a viver só o
damente. Foi difícil resistir ao apelo sensual daquele homem, presente. Sabia do compromisso deixado para trás. A urgência
embriagada pelo calor do seu corpo. Depois de ter passado da em voltar para resolver a sua pendência com a Marta e com o seu
idade, deixa a crítica de lado por sentir-se tão leviana, e acaba trabalho lhe davam uma preguiça Em vez disso, em companhia
entregando-se para valer ao seu amor. da amada, aproveitou para conhecer melhor a cidade de Lisboa,
Uma coisa não podiam negar, foi uma tarde inesquecível, e a si mesmo.
um jogo de puro prazer, sem dúvida nasceram um para o outro.
— Algo muito forte age para unir nós dois. Não adianta me Por incrível que pareça, Augusta tinha ido conhecer quase
olhar com esse ar de reprovação. Ao invés disso, podia me infor- toda a Europa, o Oriente, mas deixou Portugal de lado. Lisboa,
mar: Quem esteve em meus braços novamente em uma entrega até a chegada do Rui, não passava de um lugar ainda a ser des-
divina, foi você ou a sua sósia? vendado. As semanas voam... Seis meses de felicidade. Naquela
— Pare de se divertir às minhas custas... manhã, Augusta acorda mais preocupada, tinha sonhado com a
— Ah! Finalmente era você. Enche-a de beijos e, diante do Marta, resolve obrigar o Rui a retornar de uma vez por todas. O
inevitável, a minha amiga acabou rindo das brincadeiras dele, rapaz sempre lhe dizia estar em férias quando o assunto Marta era
concordando com a sua permanência. abordado. Augusta, cansada daquela indecisão sem fim, estava
Depois de um mês de convivência, ambos estão certos dos vivendo momentos maravilhosos com o seu amado, mas come-
seus sentimentos. çava a dar razão à irmã dele. É um homem manipulador, faz de

tudo para conduzir as situações como lhe convém. Encontra-o E ainda por cima há meses sem ter notícias suas. Agora o que eu
na cozinha, todo animado, preparando o desjejum. Tenta abor- sinto por você é forte e eterno, só que não vai dar certo se deixar-
dá-lo. Rui se antecipa. Com aquele sorriso encantador e duas mos o seu passado nos atropelar. Depois, se não ficarmos juntos,
passagens na mão, comunica-lhe: esse pequeno período vai me servir de alento para a vida toda.
— Depois do café, vamos pegar uma pequena mala e seleciona- — Você se contenta com tão pouco? E quem disse que não
remos quais roupas levaremos para passarmos uns dias nos Açores. vai dar certo, se já está dando?
Não é uma ótima ideia? Vamos passar a nossa lua de mel — Não! Eu só vejo e aceito as coisas como elas são! Você é um
naquelas ilhas maravilhosas. Vamos, Augusta! Por que está me homem comprometido com o seu escritório e com a minha amiga.
olhando desse jeito, com ar de desaprovação? Não vejo razão . Não vou sossegar enquanto tudo não for bem esclarecido.
para esse seu desânimo? Não gostou da ideia? Você não queria — Mas que mulher exigente eu fui arrumar! Não sei, não!
conhecer esse lugar? — Marta pode estar sofrendo sem notícias, sem uma solu-
Augusta acaba cedendo... Sem antes deixar bem claro que ção final. Não a deixe mais uma vez passar por uma situação de
na volta não aceitaria mais o adiamento em solucionar a questão abandono. Vai ser importante para ela saber tudo por você.
dele com a Marta; se não retornasse ao Brasil, não mais admiti- — Confie em mim, já lhe prometi que na volta retornarei
ria a sua presença em sua casa. ao Brasil. Agora chega desse assunto. Curta o presente e esqueça
Sorrindo, ele lhe responde. a Marta.
— Você vai ter coragem de me abandonar? – Estou falando E lá foram os enamorados viver mais uma aventura. Com o
sério, Rui! coração apertado, Augusta sabia que aqueles podiam ser os últi-
— Adoro quando você fica brava. Eu não só lhe prometo mos e derradeiros momentos ao lado do seu amado. Durante a
como realmente tenho que voltar, não só pela Marta, tem o meu viagem, mais calma, aceita a realidade. Entendia os desígnios da
filho, o escritório, já adiei demais a minha volta. E você, o que vida. Se os ventos estão soprando a seu favor, não seria ela que
decidiu, vai ficar comigo para sempre ou prefere aquele nanica iria estragar tudo naquele momento. Tinha que viver plenamente
espanhol? aquele presente que a vida lhe estava dando. Viaja, sentindo-se
— Não fale assim do meu amigo! Cuidado, eu posso mais leve e feliz.
escolher a ele e não a você. Amor, não precipite nada! Não crie
expectativa, primeiro resolva o seu caso com a Marta. Quanto ao
Ramon, garanto-lhe, não vou continuar fugindo. Enquanto você
não resolver a suas pendências no Brasil, não há chance nenhuma
para nós dois. Agora chega de expectativas sobre o futuro, o que
tiver que ser, será. Vamos nos preparar para a viagem.
Rui fica inseguro quando o assunto é o Ramon.
— Você está arrependida de ter ficado comigo?
— Não! Jamais imaginei ser tão feliz ao seu lado. Mas você
não pode ignorar os seus deveres, não pode desamparar a Marta.
Eu a conheço bem, deve estar sentindo-se muito mal com
a sua ausência, morando em uma casa onde se acha uma intrusa.

ser passada para trás mais uma vez por um homem, sendo a última
a saber. Tudo bem! Dessa vez o relacionamento deles não andava
nada bem... Rui até lhe comunicou não ser possível haver mais um
MARTA E SEU DILEMA entendimento entre eles, o quanto era importante para ele viajar.
Havia necessidade de eles ficarem afastados por uns dias e refle-
tirem se valia a pena insistir no casamento. No fundo, até aquele
momento estava gostando de ficar sem a sua companhia, naquela
casa maravilhosa. Só que a situação começou a ficar difícil. Viver
nessa expectativa sem uma solução. Já iam fazer sete meses os tais
“alguns dias”... Aquela situação já tinha passado do ponto. De uma
coisa tinha certeza: não devia ter acontecido nada sério... Notícias
ruins chegam rápido. Marta até estava conformada em se separar do
marido. O único amor da sua vida foi mesmo o Rogério; pelo Rui
M
arta tinha passado, o aniversário sozinha. Cansada de ser uma ela só tinha carinho e um imenso agradecimento por ter lhe trazido
mulher casada, vivendo praticamente só, sem marido, amigos, novamente para a vida.
e sem um objetivo na vida. Sente um grande vazio, carregando No primeiro ano juntos, ela até sentiu uma certa felicidade.
uma mágoa infinita, cheia de indignação por Augusta. Repetia O encanto acabou! Marta, bem mais madura, chegou à conclusão
para si, nunca ia lhe perdoar por tê-la abandonado. Mas um ano se de que eram de mundos diferentes, e suas necessidades não eram
iniciara e nada de ter notícias do Rui. Como gostaria de contar com o compatíveis.
apoio da amiga e participar o que estava lhe acontecendo. Nunca mais Agora não podia aceitar aquele silêncio.
ia ser como antes... A raiva era maior que o perdão. Marta estava morando naquela mansão maravilhosa, a criada
A vida já lhe dera várias rasteiras... Sente que está bem mais era a sua única companhia, era difícil haver algum entendimento
madura, mas não pretende ficar sentada, esperando que decidam com a dona Margarida. A governanta, desde o início, não escondia o
por ela. Anda desconfiada sobre o paradeiro do marido. Estão quanto não gostava dela, e a recíproca era verdadeira. Chegou até lhe
escondendo alguma coisa dela. Não é possível que ninguém saiba dizer que ela era culpada do patrão ter se afastado da casa que era dele.
onde ele está. Afinal, ele não é nenhum criminoso. Chega de indeci- Todas as manhãs Marta aproveitava a piscina, depois do
são! Necessito saber a verdade. Não esperava que o seu atual marido almoço, descansava por umas horas, havia tardes em que ia ao sho-
fosse tão covarde. Não dava mais para empurrar a sua vida, como se pping, às vezes, ia ao cinema. O de que ela sentia falta mesmo era
nada estivesse acontecendo. Estava na hora de tomar uma atitude. da Augusta, a saudade era imensa, mas a mágoa era maior ainda.
Decide ir à casa da sua cunhada, na esperança de ter definitivamente Aquela ingrata nunca mais tinha lhe dado sinal de vida.
notícias do Rui. Estava decidida: não sairia de lá sem uma resposta Era difícil entender a decisão de sua amiga em abandonar
concreta. Realmente não dava para continuar naquela situação de tudo, viver escondida de todos. Aquele silêncio: sem uma ligação ou
abandono. Se o marido havia resolvido que não tinha mais sentido carta do seu paradeiro.
ficarem juntos, ou se já estava com outra pessoa, tinha a obrigação Cansou de perguntar para si o que teria feito para provocar
moral de lhe falar, e ambos resolveriam de comum acordo pela esse afastamento. Às vezes pensava se Augusta não estava morando
separação legal. O que não dava era continuar vivendo no escuro e comigo em Porto Alegre.

Agora o seu segundo marido também a abandonava, sem tanto tempo em minhas mãos, perguntou se dava para eu continuar
explicação e consideração. Marta voltou a sofrer, não conseguia evi- por mais uns dias.
tar as lágrimas. Por que todas as pessoas que ela amava acabavam E continuou lhe informando o quanto estavam ansiosos pelo
morrendo ou se afastavam dela? retorno dele. Tenho plena autonomia no escritório, mas há coisas
Todas as despesas ainda eram custeadas pelo Rui, só que isso, que estão se acumulando, as quais só o Rui resolve.
naquele momento, já não lhe bastava. Toda essa situação ao mesmo Informei-lhe também o quanto seu filho sofria com a sua
tempo a deixava insegura. ausência.”
Sabia que não tinha para onde ir, isso a deixava apreensiva. Satisfeita com a conversa, fica sabendo finalmente onde estava
Ao mesmo tempo, tinha uma convicção, o Rui não ia desampará-la. o seu marido. Estava aproveitando umas férias... Egoísta! Custava
Sempre mostrou ser um homem de caráter. E isso lhe intrigava mais me dar notícias? Férias prolongadas... Sei! A revolta invade o seu
ainda. E, quanto mais o tempo passava, mais apreensiva ficava. Afinal, ser. Decidida a pôr um ponto final naquela situação humilhante, vai
aquela casa era dele, não era justo privá-lo daquela moradia, a qual procurar Iracema.
ele tanto amava. Por outro lado, Iracema há muito não retornava
os seus telefonemas, sabia do abismo que a separava da cunhada.
Tinha que superar o seu orgulho e ir procurá-la. Tinha a certeza: só
a cunhada devia saber onde estava o irmão! Sem outra saída, não
lhe restando outra alternativa, recolheu o orgulho e definitivamente
decidiu: iria procurá-la no dia seguinte. Naquele momento, sem
dúvida, era a melhor coisa a fazer, não podia adiar mais, mesmo que
isso lhe custasse!
Há dois dias, esteve com Amanda, foi quem ficou com a
incumbência de pagar todas as despesas da mansão do Rui. Mandava
o boy do escritório lhe entregar, todos os meses, um envelope com
dinheiro (despesas e com a casa). Esteve com João Paulo também.
Esse encontro acabou deixando-a ainda mais intrigada... Todo esse
tempo ausente, deixando o próprio filho sem notícias. Amanda só
lhe informou que ele tinha ligado há cinco meses, pedindo à mãe
do seu filho que continuasse à frente dos negócios. Era a única coisa
que lhe podia dizer. Depois de um bom tempo de silêncio para com
o filho, entrou em contato pela internet, há uns quinze dias.
“Pudemos perceber o quanto estava feliz. Revelou estar em
férias passeando pela Europa.” Prometeu ao filho que já estava
voltando.
João Paulo desconfiou, o pai não estava falando a verdade.
“Talvez dentro de uma semana, no máximo em dez dias,
estará de volta. Pediu desculpas por ter deixado o escritório por

— Sim, com a sua amiga Augusta! Por mais que me custe lhe
dizer, essa é a pura verdade!
— Deve haver um equívoco... eles são apenas bons amigos e...
MARTA DIANTE DA VERDADE — Sinto muito, Marta, não há engano nenhum, está tudo bem
claro, ele me disse estar muito feliz ao lado da Augusta.
Rui e sua amiga estão vivendo uma vida de casados. Para
surpresa de todos nós. Eu também fiquei chocada com a notí-
cia. Eu também fiquei muito magoada por ele sumir por tanto
tempo, deixando todos nós apreensivos. Sem muita cerimônia,
revelou-me que no seu retorno nos daria todas as explicações
possíveis sobre a sua decisão. E me recomendou que eu não
revelasse nada a você, nem para a Amanda, principalmente
para o filho.
A
o ver Marta na sala da sua casa, Iracema não teve mais como fugir. Implorou várias vezes! Tudo será resolvido quando eu voltar
— Boa tarde, Marta! Não a esperava. Apesar de saber o para o Brasil. E, sem muita cerimônia, desligou o telefone, sem um
que há por trás dessa visita até breve. Depois de um silêncio de meses, não reconheci o meu
A situação não está muito boa para o seu lado? Sem muita irmão. Há poucos dias soube dessa novidade! Até agora não entendi
cerimônia, pede desculpa por não ter atendido às suas ligações. nada! Rui estava muito estranho!
A incumbência de lhe contar toda a verdade seria do meu irmão. É bem verdade que eu tinha conhecimento de uma noite
Não esperava essa atitude dele! Você sabe, nunca foi covarde, muito romântica entre eles, no dia do seu desmaio, mas foi um fato
menos um cafajeste. Nós pensamos que conhecemos as pessoas e de sem importância, segundo as palavras dele. Em seguida, o casa-
repente temos uma tremenda surpresa... Fui eu quem o criou. Na mento de vocês. Depois, tive o conhecimento pelo meu irmão
verdade, não devia ser eu a lhe dar essa notícia... mesmo: o casamento de vocês não ia nada bem! Até aí nada
Você está aqui para saber do paradeiro do Rui, não é mesmo? de surpreendente. Desculpe a franqueza, diante da decisão do
— Sim! A Amanda me disse que ele está passando uns dias na casamento, sempre fui contra! Tinha certeza! Não podia dar
Europa, estava em Londres quando entrou em contato. O João Paulo certo! Só o meu irmão! Quando coloca uma ideia na cabeça...
desconfia, não acredita! Isso é verdade? Eu preciso saber... Ele está Não há ninguém que o demova da sua decisão. Vocês são muito
com outra mulher? Antes de viajar, devia ter vindo resolver primeiro diferentes. Agora, ele ir para Portugal atrás da Augusta, para
o nosso divórcio. Diante da expectativa da Marta, Iracema, contra- mim foi uma surpresa e tanto! Até pouco tempo ninguém sabia
riada com a situação, acaba revelando, sem cuidado algum, toda a onde sua amiga estava morando.
verdade para Marta. E, quando disse estar sentindo-se muito feliz, ao lado dela...
— Não sei de muitos detalhes. O seu marido está realmente Pegou todos nós, da família, de surpresa.
na Europa! Mas não está em férias, e sim vivendo com Augusta, em Marta, atordoada, deixa a sua cunhada falando sozinha. Pega
Portugal. a bolsa e sai sem se despedir. Só uma coisa martelava em sua cabeça:
— Com a Augusta? A minha velha amiga Augusta? Não pode Augusta estava morando com o seu marido. Esqueceu, diante da
ser! Você deve estar enganada? revelação, o quanto o proibiu de falar sobre Augusta. Em sua cabeça

atormentada, lembra que, no início, quanto o acusou de saber o seu conseguiu ser feliz. Depois, foram só reviravoltas e sofrimento. Na
paradeiro e não querer lhe dizer. certa, foi o seu comportamento diante da vida que a levou a atrair
— Não! Isso não pode ser! Meu Deus! Como fui ingênua! tanta desgraça. Ou como Augusta costumava dizer: “Ninguém
Augusta sempre o amou. Só agora tudo está claro. escapa do seu destino.” Só dez por cento do nosso livre arbítrio
Mais uma vez fui traída por uma pessoa da minha estima. funciona. O ser humano vive na periferia da vida. Cheio de desejo.
Que sina! Dizia ser minha amiga. Maldita! Depois do meu pai e Pragueja, cheio de inconformismo.
do Rogério, dediquei-lhe tanto amor, agradecimento e carinho. A Não entendemos que ao estarmos aqui não para ser feliz, mas
minha amiga Augusta hoje é minha rival e também a minha maior para nós fazermos felizes, ao irmos a favor da vida, mesmo com o
inimiga. Está lá bela e formosa, refestelando-se com o meu marido. coração sangrando, está se mostra sempre certa.
Enquanto eu estou aqui bem arrasada. Mesmo contrariada, ao receber o telefonema do porteiro,
Agora entendo todo aquele silêncio. A mágoa e o inconfor- Iracema foi quem a socorreu.
mismo aumentaram, e a raiva também. Traída, por sua melhor Nessa ocasião, ligou desesperada para minha casa, precisava
amiga! Ajudou-me tanto. Traição dupla! Foi isso que a vida lhe saber como entrar urgente em contato com Augusta. Vinha há dias
reservou. Ia praguejando, por que Deus permitia ser vítima de tanta tentando falar com o irmão, não respondia às suas ligações. Diante da
deslealdade e sofrimento, por quê? gravidade, comuniquei estarem eles em Açores. Tinha recebido uma
Era sempre a última a saber!. Augusta amava o seu marido. mensagem de lá. Augusta agradecia por eu ter revelado o endereço
Por que escondeu a verdade? Começa a desconfiar se essa traição já para o seu amado. E, apesar da sua preocupação com a Marta, estava
não vinha de longa data. Teria sido esse o motivo do fracasso do seu muito feliz. Eu, abismada com a atitude de ambos, condenei-os e nem
casamento? Ouviu muito bem a sua cunhada dizer: no dia em que se lhe respondi direito. Agora, diante do acidente de Marta, me vi no
conheceram, por ocasião do seu desmaio na praia, houve uma noite dever de dizer onde eles estavam, mesmo sem saber o endereço certo.
romântica entre eles. Depois de uma maratona para encontrar o hotel, finalmente
Marta estava convicta, Augusta era a única culpada do seu Iracema consegue avisar o irmão.
segundo casamento não ter dado certo. Sai do elevador, chorando Ao receber a notícia, Augusta e Rui interrompem a viagem e
cada vez mais; transtornada, inconformada, segue perdendo a noção voltam imediatamente para o Brasil.
dos acontecimentos à sua volta. Se soubesse desde o começo sobre o Diante de Marta, Rui lhe pede perdão por tê-la deixado tanto
envolvimento deles, não teria se casado. tempo sem notícias
Não entendo! Insistiu tanto no casamento. A esposa não acreditava em uma só palavra. Não adiantava lhe
Já era noite quando Marta deixa o prédio da cunhada! As luzes dizer mais nada diante do caso consumado.
da cidade a cegam. Nem repara na chuva fina caindo sobre o seu — A única coisa que eu quero saber é por que você insistiu em
rosto, misturando-se com as lágrimas. Diante do trânsito intenso querer se casar comigo, se estava interessado na Augusta?
do fim do dia, envolta em uma névoa de ódio, não ouve a buzina — Eu estava totalmente apaixonado por você. Infelizmente
ao atravessar, acaba sofrendo um grave acidente, resultando para o nosso casamento não deu certo, e eu estou totalmente tranquilo
aquela mulher uma infelicidade eterna. O resultado dessa tragédia quanto a isso, você não fez força nenhuma para dar certo.
deixou Marta paraplégica.
Na ocasião, ao saber da tragédia, não pude deixar de pensar... Os sucessivos acontecimentos me levaram a acreditar o quanto
Só no período em que foi casada com Rogério, Marta, ao seu modo, ela nutria em segredo um forte sentimento pela minha pessoa.

— Um pouco antes de nos separarmos, tentei lhe dizer, mas detalhe. Eu também tenho direito sobre esta casa? Só tem uma
você proibiu-me de tocar no nome dela. Marta, quando Augusta coisa: eu só fico se Augusta se mantiver longe de mim e deste lugar.
soube do seu acidente, deixou tudo para trás e veio comigo, gosta-
ria de vê-la; também ofereceu-se para abrigá-la em sua casa. Como Marta fica aliviada em relembrar: aquele imóvel também
ainda estamos casados, você é quem escolhe se quer permanecer lhe pertencia. Mesmo o casamento não tendo dado certo, Marta
aqui ou prefere ir morar com Augusta. amava aquela casa, sentia-se muito bem ali. O único senão era dona
— Nem uma coisa nem outra. Não quero ver a Augusta, muito Margarida. Assim ficou decidido sobre a sua permanência. Rui, ao
menos lhe perdoo por não ter me revelado a verdade. Era minha se inteirar sobre a doença da esposa, toma todas as providências
irmã do coração. Estou muito magoada. Além da traição quando para amenizar o sofrimento dela, inclusive manteve dona Margarida
eu soube que vocês estavam juntos... Foi por culpa dela que acabei longe da paciente.
sofrendo esse acidente. Não! Eu não lhe perdoo! Contratou duas enfermeiras, e mandou fazer uma adaptação
— Marta, eu compreendo sua revolta. Mas está enganada em uma parte da casa, para o seu livre acesso. Contratou também
sobre a sua amiga. Augusta não é a culpada pelo seu acidente, fui eu um fisioterapeuta para auxiliar nos exercícios feitos na piscina.
quem decidiu ir procurá-la. Marta sentia um certo prazer em atrapalhar o romance deles.
Acabou aceitando mais tranquila aquela situação. Dormiam
Desde a minha chegada a Portugal, tentou me convencer a em quartos separados e quase não se falavam. Nos primeiros dias,
voltar para o Brasil e resolver a nossa situação. Confesso, nunca fui depois do trabalho, Rui ia ao apartamento de Augusta. Esta, por sua
tão feliz! Tentei evitar ao máximo a minha volta. Se existe um cul- vez, achava ter sido inútil ter voltado na esperança de poder auxiliar
pado, esse alguém sou eu. a amiga.
— Não! Toda a culpa é dela! Devia ter me contado desde o Marta vivia questionando por que, desde o início, não lhe
começo sobre os seus sentimentos. Quando soube que vocês estavam havia contado a verdade, teria evitado tanto desencontro e sofri-
juntos, a minha revolta e desilusão com Augusta foi tanta a ponto de mento. Agora não queria saber. O Rui era o seu marido, e Augusta,
eu não perceber o carro ao atravessar a rua. Prefiro ir para uma clínica. apenas sua amante.
Não existem clínicas sem custo para pessoas com o meu problema? Deixou bem claro que, se ele deixasse aquela mulher entrar
— Bem, se a sua decisão é essa, vai permanecer aqui em casa. naquela casa, ela sairia. Sem saída, Augusta compreendendo Marta,
— A casa é sua. sentindo-se uma intrusa, anuncia ao Rui sua volta para Portugal.
Não quero atrapalhar. Depois, você e a Augusta não vão Essa notícia não lhe agradou nem um pouco. Chegam a se desen-
morar aqui? tender de verdade. E foi nesse clima, desfavorável para ambos, a
— Não, Marta, eu não acabei de falar que Augusta preten- breve separação. Augusta lança mão de um argumento definitivo:
dia levar você para o apartamento dela para poder lhe ajudar iria colocar o seu apartamento à venda e despachar a sua mudança
neste momento? para o Brasil. Rui, sem saída, permite que ela vá. Na opinião dele,
— Que ser caridoso! Como ela é boazinha! Estou certa, ela podia resolver tudo isso sem muita pressa, e sem precisar ir de
ficando aqui só vou atrapalhar! Vocês querem a casa livre da minha volta a Portugal.
presença. Augusta, sofrendo com a separação, na esperança da recon-
— Não é nada disso! Depois a casa também é sua, casamos ciliação do casal, já em Lisboa, com um telefonema, deixa Rui
com comunhão total de bens! – É verdade. Tinha esquecido esse muito apreensivo, ela não cumpriria o prometido de voltar logo.

Eles acabam brigando. Definitivamente o romance deles acaba. palavras em seus desabafos. Esses dois compromissos, como tam-
Rui já não conseguia mais viver sem ela. Sofre muito com a deci- bém as visitas mensais ao médico e o tratamento na piscina eram
são da amada. as únicas alegrias da Marta.
Ao saber da separação, Marta vibra de alegria. Foi uma alegria Esse foi o período mais produtivo em relação ao seu talento.
ilusória. Rui continuou indiferente. Produziu belos quatros. Através do escritório de arquitetura, Rui
Augusta aproveita a situação. Antes de enviar a sua vendeu vários para os decoradores, seus clientes.
mudança, livros, roupas e objetos pessoais, entra em contato com Rui adorava as sextas-feiras, ia direto do escritório para
o seu amigo espanhol, o Ramon, e ambos vão conhecer a cidade o apartamento da Augusta, onde passava o fim de semana com
de Nova Iorque, Lós Angeles. A Disney finalizou o roteiro das ela e com o seu filho, João Paulo. Nessas ocasiões, frequenta-
cidades programadas antes de sair do Brasil. Rui não leva a sério vam teatros, restaurantes, a casa da irmã. Essa foi a solução que
a separação com Augusta. Aproveita o tempo para estar mais encontrou para estar junto de ambos. Hoje em dia, o seu filho já
perto do filho. está com 24 anos, formou-se também em arquitetura e trabalha
Quando fica sabendo da volta de Augusta definitivamente para no escritório dos pais. A mãe nunca se casou, o prazer do tra-
o Brasil fica todo animado, porém, ao entrar em contato, a decep- balho e o contato direto com o filho tornava a vida da Amanda
ção lhe abate: Ramon, veio a tiracolo. Foi tomado por um ciúme completa. Teve alguns casos nesse período, não levava nada a
descontrolado. sério. Por esse motivo, Rui estava apreensivo com a mãe do seu
Essa situação causava um desconforto e muito e deses- filho. O rapaz estava noivo, de casamento marcado, em breve ia
pero. Cego pelo ciúme, tentou várias vezes a aproximação, sem afastar-se quase definitivamente da mãe. Ela se mostrava firme.
êxito. Nesse ínterim da separação temporária, Ramon volta para Pai e filho não acreditavam muito na liberdade da sua privaci-
a Espanha. dade anunciada.
Com a partida do Ramon, depois de várias tentativas, aca-
bam se entendendo. Augusta desiste de resistir. O amor de ambos Rui e Augusta estavam vivendo quase dois anos como amantes
era bem mais forte do que a mágoa. Ao fazerem as pazes, passam quando foi descoberto: sua esposa estava com câncer bem adiantado
a conviver em harmonia. Vivem como amantes mais de um ano e no cérebro.
meio. De segunda a quinta, Rui jantava com a Marta, esses eram os Marta desmaiou quase no fim da festa de casamento do
únicos momentos dedicados a ela. João Paulo, na qual não permitiu a presença da Augusta. Esta
Nesses encontros no jantar, tomava conhecimento de tudo de ajudou Amanda nos detalhes da festa e viu o casamento e a Marta
que a mulher precisava. Providenciava consultas médicas, contrata- escondida na igreja, sem participar da festa. Augusta e Amanda
ção de pessoal. Marta não se dava bem com ninguém, vire e mexe se tornaram amigas, mesmo sabendo o quanto a mãe de João
trocava de enfermeiras. Paulo gostava ainda do Rui.
No fundo, todos sabiam... Ela queria era ter a Augusta ao Essa amizade foi possível de tanto Augusta insistir que pai e
seu lado, mas não cedia O único que permaneceu no cargo desde filho a convidassem a fazer parte dos seus passeios. Amanda, meio
o começo foi o motorista, por ordem do Rui. O rapaz a levava pas- avessa a sair muito de casa, aceitou alguns convites. Ambas come-
sear de carro pela cidade às quintas-feiras, e aos domingos a levava çaram a se visitar, e Augusta foi muito importante em consolá-la
à missa. Era um homem compreensivo, tinha muita paciência, quando o rapaz casou-se e foi morar na casa do pai. O apartamento
acabou se tornando o amigo com quem Marta trocava algumas da mãe do rapaz era muito pequeno, só havia um quarto.

Passaram-se alguns meses até a Marta constatar a gravidade E assim conseguia desarmar, o companheiro, com a voz suave lhe
da sua doença. Pede finalmente a presença da Augusta. Essa, por sua chamando de velho chato!
vez, resiste por uns dias ao apelo da Marta. Logo em seguida cobria o Rui de beijos. Esse, por sua vez,
Foi um momento muito comovente o reencontro delas. resmungava:
Augusta passou a tratar da amiga até o seu fim, com muita dedica- “Você está me sufocando.” Mas ficou um velho chato mesmo.
ção e carinho. Nesse momento, tive que interromper a gravação. Rui — Acostumei-me tanto com sua companhia. Ainda não sei se
agiu normalmente com a morte da Marta. Mas desaba ao se lembrar um dia vou voltar a ser um homem pleno.
da Augusta. — O tempo ajuda a voltar a adaptar-se novamente à vida.
Depende só de você. Se ficar só alimentando o passado, vai ficar difícil.
Você e a Marta eram muito parecidos. Foi essa a razão da
sua atração por ela. Você não consegue aceitar as transforma-
ções. Sofri muito com a passagem da minha amiga. Enquanto
estamos vivos, temos que levar a vida para frente. Viver cada
dia intensamente. Muitas vezes as lembranças voltam, é há uma
saudade doída. Com as obrigações diárias clamando a nossa
atenção, esquecemos rapidamente. Depois, já vivíamos distan-
tes. Rui, por mais difícil que seja a realidade, você se casou com
uma pessoa já de uma certa idade. Morrer faz parte da vida.
Não sei porque ninguém aceita a nossa finitude já que é a única
certeza que temos.
Com a morte de Marta, o casal finalmente estava livre para

viver junto definitivamente. Augusta, naquela altura da vida,
não quis oficializar aquela união. Ambos estavam certos dos
seus sentimentos. Segundo ele, foi o período mais rico e feliz da
sua vida. Augusta era uma mulher incrível, alegre, compreen-
siva, carinhosa, cheia de vida. Encarava todas as circunstân-
cias com naturalidade e compreensão. Eu aprendia muito com
o seu positivismo. Não havia tempo ruim. Cumprimentava as
pessoas, nas ruas, ajudava os orfanatos. Transformou a antiga
academia da Marta em sala de aulas para jovens e idosos que
não sabiam escrever ou tinham dificuldade em aprender, só
pelo prazer de ajudar.
Se algum problema surgia, ela ia logo dizendo, “calma, não

somos mais crianças para perdermos a nossa energia com besteira”.

enorme, conquistada nessa união, com tantos afazeres, tomou todo
o meu tempo.
Rosinha demorou, mas também casou-se. Por essa ocasião,
A ESCRITORA mandou um convite para Augusta, que lhe enviou um belo quadro
da Marta, junto com um telegrama agradecendo o convite, parabe-
nizou-a, desejando felicidades eternas.
Rosinha já não mora mais comigo. Depois de dois anos casada,
engravidou; estava de oito meses, quando eu terminei as últimas
páginas deste romance.
Só Bernardo, o filho do meio, continua solteiro. Confesso,
hoje é o filho mais querido e amoroso, esqueceu todas as mágoas por
eu ter me separado do pai. Lembranças fortes ressurgem da minha
juventude ao lado da Augusta, permeiam os meus pensamentos
E
u me tornei uma escritora de sucesso, vivi afastada da minha por horas
velha amiga desde a viagem para a Turquia, nunca mais nos
vimos. O último contato entre nós foram de agradecimentos
que enviei a Portugal, agradecendo a sugestão da minha lua
de mel ser passada na Grécia. Duas mensagens dela sobre a viagem
para o Açores e outra para anunciar a Morte da Marta. A notícia
do acidente de Marta, fiquei sabendo pela irmã do Rui Recriminei
a conduta de ambos. Jaime sofreu muito pela sua afilhada de casa-
mento. Não me obrigou, mas sugeriu:
— Afinal, você e sua melhor amiga já estão morando distante
uma da outra, há tempo. A vida de vocês tomou rumos diferen-
tes, não acha melhor vocês irem se afastando definitivamente? No
momento não levei aquele pedido em consideração, definitivamente
era um tempo muito longo. Toda vez que eu lhe dizia ter saudades e
pretendia ligar para Augusta, Jaime inventava alguma coisa para me
distrair. A vida em si acabou nos afastando.
Rosinha, quando se formou, veio morar comigo. Bernardo,

depois de algum tempo da morte do pai, também veio viver em
Porto Alegre. Tenho dois netos. As minhas horas de folga são
dedicadas totalmente a eles. Os filhos do Jaime lhe deram cinco
netos. O Jaime, a cada ano, principalmente depois de se afastar das
empresas, exige muito de mim. A minha nova profissão e a família

O lançamento foi um sucesso. Entretida com as entrevistas e
os vários elogios dos fãs, a noite parecia interminável.
Acabei esquecendo a presença do Rui por umas horas. Quando
SAUDADES tudo acabou, estava exausta, depois de horas dando autógrafos, que-
ria só uma coisa: que o Jaime não demorasse muito para me levar
para o hotel. Naquele momento, só queria ir embora, tomar um
banho e descansar.
Comecei a ficar impaciente com a demora do meu marido.
Tinha até esquecido o Rui, quando o vi novamente parado perto da
porta de saída. Ao me acenar, vou ao seu encontro, surpreendida e
ressabiada com o seu comportamento
O que teria acontecido para ele se portar daquela maneira?
H
oje, faz exatamente vinte dias da morte da Augusta. Estou O casamento estará em crise? Ou Augusta está doente? Estaria ela
novamente em São Paulo, depois de tanto tempo. Venho lançar magoada com a nossa distância?
mais um livro. Recebo um forte abraço; com a voz embargada a princípio,
Foi uma exigência da editora, por ser a capital em que não consegue dizer nada. Com o coração apertado depois de tanta
mais leem os meus romances. Este é precisamente o meu quinto incerteza, recebo a triste notícia da morte da minha eterna amiga.
livro, cujo tema narra mais detalhadamente história dos meus avós. O impacto da notícia realmente me pegou de surpresa, deixou-me
E o tempo que eles substituíram os meus pais. bem abalada. Achei impossível não estar mais entre nós. Por que não
Para minha surpresa, vejo na fila de autógrafos o Rui. Confesso aceitamos a morte, ou não nos acostumamos a ela? Vivemos como
que estranhei o fato de ele estar sozinho, como também achei estra- se tudo fosse eterno. Mesmo separadas, só a certeza de que ela estava
nho deixar as pessoas irem passando a sua frente. Cheguei a pensar, viva e feliz já me bastava.
estava esperando por ela. Porque não me avisou?
Apesar da distância de tantos anos, o reconheci. Sua apa- — Quem tratou de tudo foi o João Paulo. Eu estava arrasado
rência era de uma pessoa sofrida, havia nuvens negras em seu Nostálgica, foi difícil aceitar Só quando ele me entrega o bilhete
semblante. A minha vontade era largar tudo e ir ao seu encon- da Augusta, escrito poucos dias antes do seu enfarte fulminante, eu
tro. Absorvida pelos autógrafos e fotos, por um segundo de dis- realmente dei conta da verdade.
tração não o vi mais. Enquanto aguardava na fila, eu assinava os A minha amiga já não pertencia a este mundo. Muito emocio-
autógrafos automaticamente, o meu pensamento estava focado nada e ainda surpresa com a notícia, leio o seu bilhete.
no Rui. Por que teria vindo sozinho? Estariam brigados? Onde Para minha eterna irmãzinha, Lidiane
estaria a minha amiga? A saudade invade a minha alma. Se
tivesse acontecido alguma coisa grave com ela, na certa, eu teria Querida amiga de sempre, a saudade é tão forte... Tenho
tomado conhecimento. acompanhado o seu sucesso profissional e o êxito do seu segundo
Todo o meu passando vem à tona. Não teria vindo por não me casamento. Ousei vir ao seu lançamento. Perdoe-me! Talvez essa
perdoar, devido ao longo silencio entre nós? Não! Augusta não era seja a última oportunidade de nós vermos. Afinal, já não somos
vingativa. Ou com passar dos anos se tornou... mais jovens. Amiga de uma vida. Não precisa falar comigo, sempre

entendi esse silêncio entre nós. O importante é que você esteja bem do Rui, fiquei sabendo: em seus delírios chamava por mim. Estava
ao lado do seu marido e com a sua família, recebendo os louros em muito debilitada. Acabei lhe fazendo companhia até o último sus-
sua vida profissional. Só quero poder vê-la. Não sei... Você... sempre piro. Não arredei os pés do seu lado. O Rui também não saiu do lado
foi muito prática. A pessoa que mais me conhece vai entender essa dela, dando-lhe muito carinho. Uns três dias antes do desfecho, já
minha necessidade! não nos reconhecia.
Antes do derradeiro adeus, poder estar com você por alguns Com a perda da Marta, comecei a questionar, passei pela onda
minutos, participando de mais uma conquista, vai ser um prazer. Ter dos cinquenta e sessenta, agora chego quase aos setenta e três e tendo
a honra do seu autógrafo neste livro com a história de seus avós, vai ainda tanta coisa para realizar.
ser uma alegria enorme para mim. Essas pessoas foram tão íntimas, Até os setenta anos continuei ativa, poucos fios de cabelos
eu as admirava através de você. A distância física nunca separa duas brancos, agora vivem eriçados. Vivo uma vida familiar tranquila,
almas amigas. queria viver mais tempo junto ao meu companheiro, poder con-
Aquele bilhete me deu a sensação do quanto ela devia ter tinuar a olhar a perfeição da natureza, coisas das quais eu gosto
intuído que o seu tempo estava chegando ao fim. tanto. Procuro não pensar em estar perto do fim da jornada,
Gostaria que você soubesse: Estou vivendo o sonho de poder já que comecei realmente a viver depois que o Rui foi ao meu
revê-la, compartilhar por uns momentos mais uma vitória sua. Vivo encontro. Aceito tudo numa boa... Tenho certeza de que nada é
em plena felicidade, junto ao meu amado. A vida vive nos surpreen- inútil, apesar das pessoas acharem que a vida não tem sentido.
dendo! Jamais podia imaginar que ainda encontraria a felicidade Agradeço a Deus todos os dias por tudo o que me foi ofertado.
plena. Demorou, mas consegui. Viver sempre na graça de ser pre- Talvez eu ainda chegue aos oitenta, lúcida ou caduca, mas sempre
miada com tanto amor e cumplicidade amparada pelo meu amor. Quem vai saber? Confesso... Não ria!
Rui é um homem simples, caseiro e muito romântico, um Ultimamente tento fazer um acordo com a morte para me deixar
parceiro e tanto! Vou parar por aqui, não quero lhe causar inveja. chegar aos oitenta. Quando podíamos imaginar o rumo que o
Juro! E sério, não estou rindo... Elogiar muito o parceiro para outras nosso destino tomou, vivenciar tantos anos em paz e feliz ao lado
mulheres pode atiçar a curiosidade... de pessoas tão especiais?
O único senão foi ter sido a causa da infelicidade da querida Agradeço também ter lhe conhecido. Viver com o Rui me tor-
e sempre saudosa Marta. Apesar da certeza de saber que ela nunca nou mais madura, sem aquela necessidade ansiosa de falar tanto.
o amou de verdade. Confesso que não carrego essa culpa, mas fica Parece mentira, passo horas em silêncio. Peço perdão por ter sido a
sempre um mal-estar. Você sabe... Mais do que ninguém, a iniciativa minha vítima com as minhas considerações sem fim.
de ter ido me procurar foi dele, com a sua cumplicidade. Presa à barreira que ele me impõe com os seus carinhos... Por
que falar? Sei que ainda tenho muito que trabalhar do meu lado
Depois não a abandonou, esteve com a Marta até o fim. Não sombrio, este louco mistério interior, aquele meu jeito nervoso, que
estou me justificando Há tantos mistérios envolvendo os nossos perde a paciência quando as coisas não vão ao meu favor.
destinos. O engraçado é saber, a essa altura da vida, que a alma não
Tenho certeza, ninguém teve culpa por esse triângulo amo- envelhece. Cada etapa, cada ano vivido, vou barganhando com
roso ter acontecido. Deus para ficar por aqui por mais alguns anos. A vida é uma
Um mês antes de morrer, pediu que eu fosse vê-la. Desculpamos onda, os meus conceitos não mudaram, mas sim a minha per-
uma à outra. Chegou a me agradecer os anos dedicados a ela. Através cepção. Ainda fico indignada com a política deste país, mas de

uma forma bem mais leve. Em cada eleição só tem porcaria para P S. Ia me esquecendo de lhe contar... Há quatro anos estive
a gente votar. E este povo ainda se ilude com as promessas engen- novamente em Istambul com o Rui. Ficamos no mesmo hotel. Sabe
dradas pelos marqueteiros. quem encontrei por lá? O Osman, tinha acabado de ficar viúvo.
Não importa, não voto mais! Nesse período do nosso distanciamento, percebi como o tempo não
A partir do momento em que foi me dada a oportunidade lhe ajudou, envelheceu bastante. Quase não o reconheci, em com-
de ser feliz como mulher, como nunca imaginei, parei de evo- pensação fui logo reconhecida. Conversou muito com o Rui. Ah!
luir. Como eu era pretensiosa! Hoje, mais do que nunca, parei Claro! Perguntou por você.
no tempo, vivo o normal de toda a população.. A minha força
caiu por terra. Ao lado do Rui sou apegada à minha casa, ao Um forte abraço! Sucesso sempre!
jardim, confesso que me tornei ciumenta, materialista, quero Com todo o meu amor
que a política se dane. O que me importa é a felicidade e a paz Augusta
deste meu relacionamento. Descobri não estar pronta! Sei ape-
nas: ninguém foge do seu destino! Passei a acreditar que não Essa era para ser mais uma noite gloriosa, porém transformou-
precisamos sofrer para evoluirmos e sermos felizes. Afinal, se no momento mais infeliz da minha vida, desabei nos braços do
tudo o que acontece neste mundo está certo, diante do conceito Rui; ainda abalado, juntou o seu sofrimento ao meu. Ambos caímos
humano da maioria, são tantas as vozes que clamam por neces- em prantos, até sermos interrompidos pela chegada do Jaime.
sidades diferentes. O Rui, ao ver o Jaime chegando, rapidamente despediu-se de
nós. Afinidades eles nunca tiveram, apenas um amigável código
(Não pude deixar de achar graça, fiz uma pausa ao misturar social. Não adiantava querer entender esse mistério. Da existência
arrepios, lágrimas e sorrisos com as suas últimas considerações. Essa das pessoas ligadas ao meu passado, Jaime só gostou mesmo da
era Augusta, uma das melhores pessoas, inteligente e amorosa, que Marta. Cheguei muitas vezes a lhe perguntar, brincando, se eu e
eu conheci, nos perdemos pelo caminho. Como pude ficar longe o Rui devíamos nos preocupar com tanto amor da sua parte por
desta rica criatura, minha querida amiga? Sempre a levarei comigo aquela bela mulher. Olhava-me sério, e não respondia, como sempre
na memória enquanto estiver viva.) foi o seu feitio – leva tudo muito a sério. Eu, mais do que ninguém,
entendia só pelo seu olhar. Perdi muita gente querida, por nenhuma
Rogo a Deus pelo seu sucesso, vou amá-la pela eternidade senti tanta dor. Há três meses, recebi a notícia da morte da minha
única irmã, a que morava nos Estados Unidos. Agora perdi Augusta,
Um grande abraço da sua irmãzinha, a minha verdadeira irmã de alma. Jaime recebeu a notícia friamente.
Que a ama muito Preocupado mais comigo, tentou me acalmar durante vários dias. Só
nesse momento, quando presenciou o meu sofrimento, conseguiu
Augusta percebeu a grande ligação que havia entre nós duas.
Um vazio enorme me atingiu. Foi tão difícil, as lembranças da
Chego à conclusão de que não merecia todo aquele amor. Que nossa trajetória voltavam, povoavam a minha mente, e o remorso
sua alma descanse em paz! Esse episódio foi um alerta, tinha deci- também. Ter remorso não faz parte da minha personalidade. Tudo
dido parar de escrever, esta homenagem seria o meu último livro. aconteceu como tinha que ser. Foi um ciclo que se fechou. Como ela
Não era mais jovem... Estava cansada. mesmo dizia, tudo o que tínhamos para vivenciar e aprender juntas

estava esgotado. O ciclo se fechou. Havia um conflito de compreen- Outra coisa positiva desse encontro: ao ter conhecimento da minha
são e incompreensão dentro da minha pessoa, às vezes me pegava culpa em relação à Augusta, recebi muito conforto.
cobrando o fato de ter me afastado da minha querida amiga por — As coisas nem sempre são como gostaríamos que fossem.
tanto tempo. Toda a frieza de uma existência explode num choro Augusta sempre entendeu, guardou ao longo desse tempo as boas
doído, prolongado por vários dias. Após quinze dias, já em Porto lembranças vividas por vocês. Comentava “A amizade e o amor ver-
Alegre, voltava a ser a mesma pessoa de sempre, cheia de compro- dadeiro resistem ao tempo e à distância”.
missos com os meus familiares. Nunca deixou de lhe querer bem. Rogava sempre a Deus pelo
Como sempre, fugi da perda, ou melhor, fugia de qualquer seu bem-estar e o seu sucesso.
sofrimento ao enfrentar a realidade. Para não ter atrito com o Afinal, a vida foi bem generosa para nós. Entramos em um
meu marido, deixei o tempo se arrastar... Sua carta reli muitas novo ciclo de transformação, em que não mais fazemos parte da
vezes – foi um conforto. Com seus acertos e erros, sempre foi um vida uma da outra. Lidiane é a irmã de coração! Sua nova trajetória
ser humano de primeira qualidade. Conheceu merecidamente, a absorve bastante, principalmente a de escritora. Tenho saudades,
depois de tanta luta, a felicidade ao lado do seu grande amor. A mas não cobro nada. As coisas nem sempre são como gostaríamos
saudade corroeu a minha existência por meses. O tempo, a rotina que fosse.
agitada fizeram a saudade ir se desfazendo. Quando estamos
felizes, não ficamos pensando que um dia tudo vai acabar. Em Sei o quanto este projeto nos ajudou a reviver bons momentos
pensar... Queria chegar aos oitenta! Na verdade, os compromis- e a sofrer. Já tinha decidido me aposentar, mas não podia deixar de
sos me tomavam tanto tempo. O fato me fez lembrar o óbvio: não prestar esta homenagem escrevendo um pouco da nossa história.
éramos mais jovens! Ao longo de todo esse tempo, preservar o Rui ainda sofre, em sua saudade suave. Tem tudo para refazer sua
equilíbrio e a felicidade da minha família era o que eu tinha de vida, ou viver o resto da existência na sombra.
mais real e precioso.
Passado um ano da sua morte, resolvi e escrever este, que seria Fim
o meu último romance, em sua homenagem.
Falar de Augusta era falar de mim e de Marta, ligações fortes
de toda uma vida.
No lançamento do quinto livro em São Paulo, antes de o Jaime

chegar, o Rui deixou comigo o seu cartão, o que me facilitou entrar
em contato.
No ano seguinte, finalmente consegui que viesse a Porto
Alegre, e, com a sua ajuda, pude escrever mais detalhadamente sobre
a nossa trajetória, principalmente sobre o tempo que ficamos afasta-
das. Só assim fiquei sabendo de todos os detalhes.
A passagem do Rui por Porto Alegre enriqueceu muito este
trabalho. Gravei horas do seu depoimento. Houve momentos muito
emocionantes, fazendo com que nós parássemos para nos recompor.

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OPINIÃO a minha mãe.

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Em pouco tempo na nova cidade, Rogério começou ouvir

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62 Liége Esteves Sempre há Tempo para ser feliz 63

Lidiane matar mesmo.

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NA PRAIA se revoltar. A raiva de não poder estar cuidando do seu ex-marido.

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